EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente
MERCADORIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: CONTRADIÇÕES
ENTRE PRÁTICA PEDAGÓGICA E TRABALHO PEDAGÓGICO
Ciro Bezerra
Universidade Federal de Alagoas
Sandra Regina Paz da Silva
Universidade Federal de Pernambuco
RESUMO
Este artigo tem como objetivo problematizar as contradições e diferenciações
epistemológicas entre prática pedagógica e trabalho pedagógico. Busca analisar como a
categoria prática pedagógica é utilizada como sustentáculo da ideologia da
profissionalização e a conseqüente mercadorização e precarização do trabalho pedagógico.
Ao problematizar tais categorias, o artigo questiona por que se massificou o termo prática
pedagógica em detrimento da categoria trabalho pedagógico, enfatiza os interesses
econômicos, ideológicos e políticos que se fazem presentes, implicitamente, nos discursos
que anunciam a laboralidade pedagógica como prática pedagógica. Enfatiza como e por que
essa categoria vem se instalando silenciosamente, e se difundindo sorrateiramente nos
discursos oficiais e no senso comum dos pedagogos, educadores e professores, e como
vem se reproduzindo e incorporando acriticamente a diferentes teorias da educação: nas
teorias do currículo, nas teorias sobre formação docente, nas teorias sobre gestão
democrática, nos livros, jornais e revistas especializados. Além de se incorporar aos projetos
político-pedagógicos das faculdades de educação que têm a responsabilidade institucional
de formar professores. Ao refletir sobre o referencial que fundamenta a formação da
docência baseada profissionalização e na prática pedagógica o artigo se pergunta em que
medida fundamentos comprometem os compromissos históricos com a formação de
intelectuais e pensadores da educação.
Palavras-chave: Formação docente, trabalho pedagógico e mercadorização.
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1. INTRODUÇÃO
Estas reflexões envolvem o debate sobre as contradições e diferenciações
epistemológicas entre prática pedagógica e trabalho pedagógico. Um debate que provoca
mal-estar em ler e ouvir, em pesquisas, artigos e seminários, que tomam como objeto a
formação de pedagogos, educadores, professores e a prática pedagógica como categoria
estrutural da docência. Isto porque o emprego dessa categoria raramente vem
acompanhado de referencial epistemológico rigoroso, que justifique, cientificamente, a
utilização desse termo como categoria. Na maioria das vezes, a categoria prática é
simplesmente utilizada como algo já estabelecido consensualmente pelos estudiosos da
educação1, deixando transparecer que não há necessidade de qualquer fundamentação. A
categoria prática pedagógica é aceita acriticamente pelos teóricos da educação. Assim,
trabalho pedagógico ou laboralidade pedagógica, é reduzido à prática pedagógica como
uma prática social qualquer2.
Objetivamos nesse trabalho discutir as implicações políticas e sociológicas dessa
naturalização, essa aceitação passiva, complacente e acrítica. Pretendemos questionar,
instigar, provocar os pedagogos, educadores e professores a refletirem sobre o por que se
utilizar a categoria prática pedagógica com tanta naturalidade em seus discursos.
Para tanto, questiona-se por que se massificou a categoria prática pedagógica em
detrimento da categoria trabalho pedagógico? Que interesses econômicos, ideológicos e
políticos se fazem presentes, implicitamente, nos discursos que enunciam a laboralidade
pedagógica como prática pedagógica? Como e por que essa categoria vem se instalando
silenciosamente, se difundindo sorrateiramente nos discursos oficiais e no senso comum
dos pedagogos, educadores e professores? Como vem se reproduzindo e incorporando
acriticamente às diferentes tendências teóricas da educação contemporânea no Brasil: nos
currículos de pedagogia, nas reuniões dos departamentos de métodos e técnicas de ensino,
nos livros de didática? E se incorporando às faculdades de educação que têm a
responsabilidade institucional de formar professores? Que referencial teórico legitima a
formação da docência baseada na categoria prática pedagógica?
O que está em questão não é o uso de determinada terminologia. Não é uma
questão nominalista. Tal questão envolve a dominação política e ideológica, a manipulação
do poder simbólico e a estruturação de sociabilidades no interior das instituições
educacionais brasileiras. Portanto, repercute em toda a sociedade na medida em que coloca
no centro de discussão a formação de professores e o sistema de escolarização nacional.
2. OS PROCESSOS DE DEGRADAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO
Quando admitimos o trabalho pedagógico como práxis humana, tomamos
consciência dos processos de degradação da educação brasileira. Essa situação se efetiva
por meio da política de formação de pedagogos, educadores e professores, apoiada na
1
Vários autores, nacionais e internacionais, focalizam nos seus trabalhos a categoria prática pedagógica em
detrimento de trabalho pedagógico, ou a usam de forma indiscriminada e/ou sinônimas. São eles: Ángel Pérez
Gómez (1992), Nóvoa (1992), Schön (2000); Pimenta (1996 & 1997), Veiga (1998), Freitas (1985, 1999 &
2000).
2
Um estudo que expressa claramente esta proposição é o de GUEDES, Neide C. & FERREIRA, Maria S.
Intitulado “Um olhar sobre o conceito de prática pedagógica na formação de professores”. Digitado.
Disponível em: www. Revista brasileira de educação. Acesso em: 20/05/2006.
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categoria prática pedagógica e sua conseqüente contribuição para degradar o trabalho
pedagógico. Mas o que é práxis humana? Enquanto perspectiva filosófica formulada por
Marx (1984), e aprofundada por vários pensadores marxistas, dentre eles: Gramsci (1981),
Kosík (1969), Konder (1992) e no âmbito da educação destaca-se o entendimento de
Kuenzer sobre a categoria práxis:
como o conjunto de ações [pedagógicas], materiais e espirituais, que
o [ser humano] o homem, enquanto indivíduo e humanidade,
desenvolve para transformar a natureza, a sociedade, os outros
homens e a si próprio, com a finalidade de produzir as condições
necessárias à sua existência (KUENZER, 2000, p.39).
Na medida em que se entende/compreende ou mesmo se reduz o significado do
trabalho a uma prática, desloca-se o eixo da problematização do trabalho pedagógico, como
atividade humano-intelectual, entendido como práxis humana, para um protocolo de
atividades, meramente burocráticas, que podem ser executadas por qualquer indivíduo,
desde que seja treinado para isso: formado no magistério ou cursado um conjunto de
disciplinas acadêmicas denominadas de práticas: práticas de estágio; prática de pesquisa,
práticas de ensino fundamental, médio, infantil, prática de ensino de língua portuguesa,
história, geografia, etc.
O que importa é a prática da docência: observar o fazer, aprender como fazer e
fazer. As atividades formativas, dentro do percurso formativo do pedagogo, do educador ou
professor têm priorizado, nos currículos de Pedagogia das universidades brasileiras, uma
certa profissionalização e habilitação profissional que se propõe a desenvolver a capacidade
da docência e habilitar para tal.
Na perspectiva curricular da maioria dos cursos de pedagogia não se tem priorizado
a formação de pensadores e cientistas em educação, dentro de uma perspectiva humanista.
Essa perspectiva foi anulada da história. O que importa é formar “profissionais da educação”
em massa, pois o governo brasileiro tem um déficit educacional que precisa ser coberto em
função das exigências do capital internacional para investir no País. Ora, a universidade, por
esse deslocamento, tem transformado as faculdades de Pedagogia em escolas técnicas e
profissionais de Pedagogia 3. Em que medida essa refuncionalização da universidade
compromete seus compromissos históricos com a formação de intelectuais para se pensar a
ciência da educação? Ou tal formação clássica e humanista pode ser descartada diante das
urgências de profissionalização do governo e do capital?
Fischer (1976) dá o exemplo mais “puro” dessa refuncionalização quando explicita
seu entendimento de metodologia de ensino:
a articulação de uma teoria de compreensão e interpretação da
realidade com uma prática específica. Essa prática específica pode
ser, no caso, de uma determinada disciplina. Quer dizer, a prática
pedagógica – as aulas, o relacionamento entre professores e alunos,
a bibliografia usada, o sistema de avaliação, as técnicas de trabalho
em grupo, o tipo de questões que o professor levanta, o tratamento
que dá à sua disciplina, a relação que estabelece na prática entre
escola e sociedade – revela a sua compreensão e interpretação da
relação homem-sociedade-natureza, historicamente determinada,
3
E hoje se questiona tanto o papel dos Institutos Superiores de Educação. Na verdade eles vêm apenas acelerar o
processo de certificação de professores em massa para cobrir tal déficit.
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constituindo-se esta articulação a sua metodologia de ensino
(FISCHER (1976, p.1, grifos meus).
Por que essa “articulação” tem que desembocar na prática pedagógica? Por que o
trabalho pedagógico, entendido como práxis humana, dentro de um percurso formativo
clássico ou humanista, acaba se perdendo num conjunto de atividades protocolares, que
mais parece com o processo de colonização da ação instrumental e burocrática sobre o
trabalho intelectual? Por tal entendimento metodológico de ensino o trabalho pedagógico,
travestido de prática pedagógica, se afasta da pretensão compreensiva e interpretativa
aludida acima e se aproxima, muito mais daquilo que se entende como as diretrizes e
habilidades profissionais. Há um claro deslocamento categorial do magistério e da docência,
comprometido com uma perspectiva filosófica humanista, para o profissionalismo e o
tecnicismo na Pedagogia.
Nessa perspectiva, o que importa é a prática da docência, observar o fazer para
aprender e fazer, sem qualquer reflexividade crítica. É o fazer pelo fazer. Por que tal
deslocamento é encarado como um dado natural e não histórico? O que implica tal
refuncionalização quando se perde a possibilidade de formar nas faculdades de Pedagogia
intelectuais capazes de pensar e propor mudanças estruturais? Quais as conseqüências
desse deslocamento no processo de formação dos professores e da escolarização de toda
uma população? Que compromissos políticos, socioeconômicos e culturais estão
associados a um projeto de sociedade com uma pedagogia estruturada dentro desses
parâmetros ideológicos? Qual o interesse em transformar o trabalho pedagógico em uma
prática instrumental, em uma profissão, semelhante a qualquer outra atividade existente no
“mercado capitalista de trabalho”? Por que rebaixar e degradar o trabalho intelectual
docente a uma condição técnica e instrumental de uma profissão? Estas são algumas
questões que nos possibilita reconhecer como o trabalho pedagógico é expropriado,
mercadorizado e degradado.
3. A MERCADORIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO
Dentre outras coisas, toda profissão funciona sob princípios, diretrizes, valores
instrumentais e reiterativos: a racionalidade, a eficiência, a produtividade, as competências4.
Tais valores fornecem a legitimidade necessária e os fundamentos teóricos da profissão. A
profissão também pressupõe a capacidade de manipular meios para atingir fins,
determinados a priori pelo capital. Hoje, soma-se a essas categorias a idéia das vantagens
comparativas, a flexibilidade, o dinamismo, a polivalência. Todo profissional deve possuir as
competências e as habilidades exigidas pelo mercado se deseja ser valorizado pelo capital.
Na sociedade [capitalista] do conhecimento o capital está a exigir com mais impetuosidade a
escolarização.
4
Que tomaram o lugar daquilo que conhecíamos tradicionalmente como habilidades. Perrenoud é um dos
principais intelectuais responsáveis pela implementação desse discurso na literatura educacional. Dentre os
principais livros divulgadores dessa ideologia, destacam-se: PERRENOUD, P. Práticas Pedagógicas Profissão
Docente e Formação: Perspectivas sociológicas. Nova Enciclopédia, 1998; Construir as competências desde
a escola., Porto Alegre, ed. Artes Médicas Sul, 1999. Novas competências para ensinar. Porto Alegre: ArtMed,
2000; PERRENOUD, P. (Org). Formando Professores profissionais: quais estratégias? Quais competências?;
Porto Alegre: Artimed, 2001; Práticas reflexivas no ofício de professor. Porto Alegre: ArtMed, 2002.
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É assim que a Pedagogia vai sendo transformada em um negócio e perdendo seu
clássico significado de uma atividade marcadamente intelectual para ser subsumida pelas
formas de sociabilidade da mercadoria. É preciso insistir, mais uma vez, e perguntar: qual a
implicação da profissionalização ou mercadorização do trabalho pedagógico para a
perspectiva humanista de conhecimento e universidade? Devemos nos conformar com o
fato da pedagogia ser transformada em uma atividade técnica e profissional nas
universidades brasileiras? Quais os desdobramentos históricos que decorrerão da
transformação das faculdades de pedagogia em escolas técnicas e profissionalizantes?
O problema é que o trabalho pedagógico vai sendo enquadrado em uma lógica
seqüencial e em uma temporalidade a que todas as profissões foram submetidas na história
das sociedades modernas, industriais e capitalistas, ao tempo social médio da reprodução
do capital5.
O que Schaff (1995) e muitos outros chamam de sociedade [capitalista] do
conhecimento e Casttels (2000) de sociedade [capitalista] da informação, são sociedades de
“novo tipo” em que o desenvolvimento tecnológico pressupõe a incorporação de
conhecimentos em grande escala na forma mercadoria, que tenham valor de
comercialização, nessas sociedades a escolarização precisa ser controlada diretamente
pelo metabolismo do capital. Nesse contexto, a escola, no lugar das fábricas e indústrias de
outras épocas históricas, se converte no lócus estratégico de investimento capitalista e
ataque ideológico visando afirmar “novos” valores sócio-econômicos através da
institucionalidade simbólica e cultural fundada nos princípios da filosofia utilitarista.
Na sociedade do século XXI os novos operários são operários com certificados
universitários, portanto, aquilo que no século XX, pelo menos até a sua primeira metade, era
entendido como intelectual, após a década de oitenta/noventa foi violentamente
ressignificado pela reconfiguração do capital (SILVA, 2003).
Nesse contexto, o conhecimento produzido socialmente e acumulado
historicamente se transforma em patrimônio do capital e a capacidade humana, a formação
humana, ganha outro significado, o de capital humano. Antes, o tempo do trabalho
pedagógico, como todo e qualquer trabalho intelectual, funcionava fora da órbita da
reprodução do capital. A natureza das tecnologias livrava o trabalho intelectual dos negócios
do capital. A natureza das tecnologias não tinha conseguido ainda penetrar no processo do
trabalho intelectual. Vivíamos em uma forma híbrida e combinada do trabalho artesanal e
industrial, na laboralidade do conhecimento. Hoje, as novas tecnologias incorporadas às
atividades econômicas, a partir da segunda metade do século XX, mudaram radicalmente e
reconfiguraram a reprodução do capital, que para preservar e ampliar a eficiência dessa
reprodução precisa, como um vampiro precisa de sangue, de trabalho intelectual como
mercadoria, conhecimentos em abundância. É o conhecimento que hoje se constitui no
principal insumo-produto de toda mercadoria na economia capitalista informacional. Isso
explica porque a escolarização passou a ser tão valorizada pelo capital.
É preciso então transformar o trabalho intelectual, o trabalho pedagógico, em
mercadoria. O que se consegue quando se transforma o pedagogo, o educador, o professor,
os pensadores da educação em profissionais da educação, com suas específicas titulações.
A partir da assimilação do signo profissional da educação procedem-se à homogeneização
da totalidade das atividades intelectuais a uma estrutura planificada de cargos, carreiras e
5
Ver E. P. Thompson O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo. In: Thomaz T. da Silva (Org) Trabalho,
Educação e Prática Social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre. Artes Médicas. 1991; Ver
também Michel Foucault Vigiar e Punir. Rio de Janeiro. Vozes. 1982.
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salários. E como assalariados consegue-se definir os rendimentos da atividade intelectual
pelas suas competências, habilidades, escolarização, produtividade, etc.
A única coisa que é excluída dessa refuncionalização é a jornada de trabalho. Por
quê? Porque o trabalho intelectual é contraditório com a lógica do capital. O seu tempo não
pode ser enquadrado no tempo do processo de trabalho capitalista. O tempo do trabalho
intelectual transborda o processo de trabalho capitalista, tal como ele se efetiva nas
unidades industriais, agrícolas, comerciais e de serviços. Quem escreve um romance, um
livro, um trabalho acadêmico é invadido por intuições, idéias e um tempo dedicado a
leituras, tempo que não pode ser definido nos parâmetros capitalistas. Simplesmente porque
as idéias e as intuições invadem todo o tempo concentrado no trabalho intelectual. Como
remunerar esse tempo? Qual o valor desse trabalho?
O tempo dedicado ao trabalho pedagógico possui as mesmas características de
todo e qualquer tempo em que se processa o trabalho intelectual. Ele não apenas se
processa no lócus da sala de aula, existe também o tempo de estudo e o tempo da escrita.
Momentos que acontecem, normalmente, fora da jornada de trabalho da laboralidade
pedagógica, distante do controle do capital. O trabalho pedagógico tem, imanente a si,
momentos de plena liberdade que nenhuma forma de trabalho possui. São momentos do
pensar concentrado, quando tomamos consciência daquilo que queremos conhecer. A
questão é que não se pode, capitalisticamente, definir um tempo para o pensamento
conhecer. O tempo dedicado ao conhecimento é objetivamente aberto e contíguo, não se
pode marcar horário para ele acontecer, como se marca o tempo em uma análise de
psicanálise. É no tempo do trabalho pedagógico dedicado à laboralidade do conhecimento
que se multiplicam e intensificam as intuições e as idéias, que não pode ser racionalmente
controlado. Esse é realmente o tempo de criatividade intelectual mais intenso.
Conseqüentemente, a racionalidade do capital não pode penetrar nesse tempo. Como
remunerar esse tempo de laboralidade do conhecimento, característico do trabalho
pedagógico? O tempo dedicado à aula não é suficiente para tal laboralidade.
Para dirimir esse problema é preciso um significado próprio em que a racionalidade
do capital penetre e controle, efetiva e eficientemente, o trabalho pedagógico. Esse
significado é a profissão, a prática profissional, a mercadorização do trabalho pedagógico;
quando a laboralidade do conhecimento é suprimida para dar lugar às atividades
padronizadas, produzidas e enquadradas nos moldes tayloristas, fordistas e flexíveis.
Mercadorizado dessa forma, o trabalho pedagógico pode ser comprado e comprimido no
relógio do Estado capitalista e do empresário da educação. Pode ser organizado em uma
estrutura hierárquica, nos termos da produção em massa, e a produtividade quantificada
estatisticamente em freqüência, evasão, avaliação, expansão da oferta, etc. Assim, pelos
mecanismos de mercadorização, o trabalho pedagógico é orientado a uma tarefa repetitiva.
Tão estafante quanto à produção em série do início do século XX. É freqüente ouvirmos de
pedagogos, educadores e professores reclamarem que dar aula é um “saco”, que não
agüentam mais corrigir provas, etc.
Feita tal refuncionalização gera-se, no interior mesmo do conjunto dos pedagogos,
educadores e professores uma mentalidade tacanha, que à primeira vista soa estranho, mas
é pronunciada com esmero e orgulho: sou profissional da educação. Oculta-se o conteúdo
histórico desse orgulho, que é ser, concomitantemente como todo profissional, escravo do
capital.
Agora que a ideologia da profissionalização penetrou em todos os poros dos
pedagogos, educadores e professores, dos pensadores da Pedagogia e converteu o
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escravo do capital em um orgulhoso profissional, fica mais fácil introduzir os valores do
utilitarismo e processar intensivamente a mercadorização da educação. Todos valem o que
têm: função, salário, status, consultoria, conferências, cursos de especialização,
capacitações, coordenação de projetos etc. Todos se empenham em aumentar seu poder
institucional. Todos estão convencidos que têm que formar para o mercado capitalista de
trabalho. Pedagogos, educadores e professores foram reduzidos a salário, a trabalhar por
salário para sobreviver. Assim foi sangrado na Pedagogia o sabor do conhecimento.
Processa-se o que Gentile (2000) chamou de mcdonaldização da escola. Aboliram-se
também os ideais de uma pedagogia libertadora que visavam, na década de cinqüenta e
sessenta, na América Latina, virar de ponta cabeça as relações capitalistas de exploração
em nome do socialismo, de sociedades mais igualitárias, autônomas, fraternas e
autogeridas pelos produtores6.
O operário da sociedade [capitalista] do conhecimento é o pedagogo, o educador,
sobretudo o professor. Apenas o professor, o trabalhador intelectual por excelência, aquele
que realiza o trabalho pedagógico na base, não tomou consciência desse fato. Não tomou
porque ainda não se deu conta de que a nova base técnica da sociedade capitalista do
conhecimento é a sua força de trabalho, a sua “intelectualidade-de-obra” [mão-de-obra]. A
“intelectualidade-de-obra” é transformada em energia que alimenta a acumulação ampliada
do capital. É ela que, na linguagem de Marx (1980), passou em tempos pós-moderno a ser
privilegiada como capital variável e extração de mais-valia relativa e absoluta, determinando
o desenvolvimento das forças produtivas do capital globalizado.
Houve, é verdade, uma grande transformação. O lugar que as fábricas ocupavam
no início do século XVIII, na Inglaterra, é ocupado pela escola no mundo contemporâneo.
Hoje o forno é a sala de aula. As matérias-primas, os cérebros humanos, animados por
sentimentos, interpretações e intuições de milhares de alunos e professores. E o capitão de
indústria, hoje, é o diretor. A escola é a fábrica da sociedade informacional do século XXI. E
com um agravante: com todos os valores que antes amedrontavam os capitalistas: a gestão
democrática, a conscientização das massas populares despossuídas, a universalização da
educação, etc.
Todos nós fortalecemos, de alguma maneira, essa trajetória e esse caminho
projetado para nós pelo metabolismo do capital e seus ideólogos. O pós-estruturalismo
tentou destruir o sujeito histórico, propulsor das transformações da realidade social. A
Escola de Frankfurt tentou reduzir a objetividade socioeconômica do capital a uma questão
de cultura e, aceitou, ainda que criticamente, o ponto de vista de Weber: a colonização dos
processos humanos de sociabilidade do mundo, da vida pela racionalidade instrumental.
Aliás, muitos teóricos advogam não mais existir realidade social, mas apenas signos,
significados e significantes. A questão não é mais a objetividade do capital que tudo
submete ao seu metabolismo reprodutivo (MÉSZÁROS, 2002), mas a intersubjetividade dos
indivíduos, senão o indivíduo propriamente dito.
Fortalecemos essa trajetória do capital porque o que nos interessa é o salário e os
nossos rendimentos. Temos que cobrir mensalmente o cheque especial, consumir mais
tecnologia disponível no mercado: a televisão a cabo, os softwares mais rápidos e arrojados,
os novos modelos de telefones celulares, marcas de roupas, etc. Assim conectamo-nos ao
6
Todas as editoras parecem se orquestrar ideologicamente na divulgação das idéias e valores que propagam a
prática pedagógica como categoria fundante de um novo tempo, aquele em que as faculdades de Pedagogia são
transformadas em escolas técnicas de formação profissional. A categoria prática pedagógica, o discurso da falsa
dicotomia entre teoria e prática, entre os fundamentos e as técnicas pedagógicas é o engodo enviesado por onde
se estrutura a “nova” sociabilidade da sociedade [capitalista] do conhecimento.
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mundo. Revelamos uma imagem atual que nos dá status e admiração social. É isso que dá
prazer e poder. O capital penetrou na nossa libido e passou a fabricá-la na medida em que
manipula os objetos de desejo através da propaganda e do marketing. Há uma profunda
identidade, embora histórica, entre o desejo dos professores e o desejo do capital.
É todo esse quadro que está associado ao ideário da prática pedagógica, em
formar professores para o mercado capitalista de trabalho. A crítica a esse posicionamento
intelectual deve começar se perguntando pela qualidade dos pedagogos, educadores e
professores que estão sendo formados e “fabricados” nas universidades brasileiras? Com
que perspectiva ideológica? Dentro de que projeto de educação e de sociedade? O que se
entende por formação pedagógica e por trabalho docente? Que estragos o posicionamento
que supervaloriza a prática profissional pedagógica já introduziu nos currículos dos cursos
de pedagogia para uma perspectiva humanista da educação? Quais são as possibilidades
de enfrentamento e as estratégias de que as perspectivas humanistas ainda dispõem para
enfrentar o posicionamento da racionalidade instrumental, hegemônico hoje nas
universidades brasileiras?
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MERCADORIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE