EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente MERCADORIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: CONTRADIÇÕES ENTRE PRÁTICA PEDAGÓGICA E TRABALHO PEDAGÓGICO Ciro Bezerra Universidade Federal de Alagoas Sandra Regina Paz da Silva Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Este artigo tem como objetivo problematizar as contradições e diferenciações epistemológicas entre prática pedagógica e trabalho pedagógico. Busca analisar como a categoria prática pedagógica é utilizada como sustentáculo da ideologia da profissionalização e a conseqüente mercadorização e precarização do trabalho pedagógico. Ao problematizar tais categorias, o artigo questiona por que se massificou o termo prática pedagógica em detrimento da categoria trabalho pedagógico, enfatiza os interesses econômicos, ideológicos e políticos que se fazem presentes, implicitamente, nos discursos que anunciam a laboralidade pedagógica como prática pedagógica. Enfatiza como e por que essa categoria vem se instalando silenciosamente, e se difundindo sorrateiramente nos discursos oficiais e no senso comum dos pedagogos, educadores e professores, e como vem se reproduzindo e incorporando acriticamente a diferentes teorias da educação: nas teorias do currículo, nas teorias sobre formação docente, nas teorias sobre gestão democrática, nos livros, jornais e revistas especializados. Além de se incorporar aos projetos político-pedagógicos das faculdades de educação que têm a responsabilidade institucional de formar professores. Ao refletir sobre o referencial que fundamenta a formação da docência baseada profissionalização e na prática pedagógica o artigo se pergunta em que medida fundamentos comprometem os compromissos históricos com a formação de intelectuais e pensadores da educação. Palavras-chave: Formação docente, trabalho pedagógico e mercadorização. VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 1 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente 1. INTRODUÇÃO Estas reflexões envolvem o debate sobre as contradições e diferenciações epistemológicas entre prática pedagógica e trabalho pedagógico. Um debate que provoca mal-estar em ler e ouvir, em pesquisas, artigos e seminários, que tomam como objeto a formação de pedagogos, educadores, professores e a prática pedagógica como categoria estrutural da docência. Isto porque o emprego dessa categoria raramente vem acompanhado de referencial epistemológico rigoroso, que justifique, cientificamente, a utilização desse termo como categoria. Na maioria das vezes, a categoria prática é simplesmente utilizada como algo já estabelecido consensualmente pelos estudiosos da educação1, deixando transparecer que não há necessidade de qualquer fundamentação. A categoria prática pedagógica é aceita acriticamente pelos teóricos da educação. Assim, trabalho pedagógico ou laboralidade pedagógica, é reduzido à prática pedagógica como uma prática social qualquer2. Objetivamos nesse trabalho discutir as implicações políticas e sociológicas dessa naturalização, essa aceitação passiva, complacente e acrítica. Pretendemos questionar, instigar, provocar os pedagogos, educadores e professores a refletirem sobre o por que se utilizar a categoria prática pedagógica com tanta naturalidade em seus discursos. Para tanto, questiona-se por que se massificou a categoria prática pedagógica em detrimento da categoria trabalho pedagógico? Que interesses econômicos, ideológicos e políticos se fazem presentes, implicitamente, nos discursos que enunciam a laboralidade pedagógica como prática pedagógica? Como e por que essa categoria vem se instalando silenciosamente, se difundindo sorrateiramente nos discursos oficiais e no senso comum dos pedagogos, educadores e professores? Como vem se reproduzindo e incorporando acriticamente às diferentes tendências teóricas da educação contemporânea no Brasil: nos currículos de pedagogia, nas reuniões dos departamentos de métodos e técnicas de ensino, nos livros de didática? E se incorporando às faculdades de educação que têm a responsabilidade institucional de formar professores? Que referencial teórico legitima a formação da docência baseada na categoria prática pedagógica? O que está em questão não é o uso de determinada terminologia. Não é uma questão nominalista. Tal questão envolve a dominação política e ideológica, a manipulação do poder simbólico e a estruturação de sociabilidades no interior das instituições educacionais brasileiras. Portanto, repercute em toda a sociedade na medida em que coloca no centro de discussão a formação de professores e o sistema de escolarização nacional. 2. OS PROCESSOS DE DEGRADAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO Quando admitimos o trabalho pedagógico como práxis humana, tomamos consciência dos processos de degradação da educação brasileira. Essa situação se efetiva por meio da política de formação de pedagogos, educadores e professores, apoiada na 1 Vários autores, nacionais e internacionais, focalizam nos seus trabalhos a categoria prática pedagógica em detrimento de trabalho pedagógico, ou a usam de forma indiscriminada e/ou sinônimas. São eles: Ángel Pérez Gómez (1992), Nóvoa (1992), Schön (2000); Pimenta (1996 & 1997), Veiga (1998), Freitas (1985, 1999 & 2000). 2 Um estudo que expressa claramente esta proposição é o de GUEDES, Neide C. & FERREIRA, Maria S. Intitulado “Um olhar sobre o conceito de prática pedagógica na formação de professores”. Digitado. Disponível em: www. Revista brasileira de educação. Acesso em: 20/05/2006. VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 2 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente categoria prática pedagógica e sua conseqüente contribuição para degradar o trabalho pedagógico. Mas o que é práxis humana? Enquanto perspectiva filosófica formulada por Marx (1984), e aprofundada por vários pensadores marxistas, dentre eles: Gramsci (1981), Kosík (1969), Konder (1992) e no âmbito da educação destaca-se o entendimento de Kuenzer sobre a categoria práxis: como o conjunto de ações [pedagógicas], materiais e espirituais, que o [ser humano] o homem, enquanto indivíduo e humanidade, desenvolve para transformar a natureza, a sociedade, os outros homens e a si próprio, com a finalidade de produzir as condições necessárias à sua existência (KUENZER, 2000, p.39). Na medida em que se entende/compreende ou mesmo se reduz o significado do trabalho a uma prática, desloca-se o eixo da problematização do trabalho pedagógico, como atividade humano-intelectual, entendido como práxis humana, para um protocolo de atividades, meramente burocráticas, que podem ser executadas por qualquer indivíduo, desde que seja treinado para isso: formado no magistério ou cursado um conjunto de disciplinas acadêmicas denominadas de práticas: práticas de estágio; prática de pesquisa, práticas de ensino fundamental, médio, infantil, prática de ensino de língua portuguesa, história, geografia, etc. O que importa é a prática da docência: observar o fazer, aprender como fazer e fazer. As atividades formativas, dentro do percurso formativo do pedagogo, do educador ou professor têm priorizado, nos currículos de Pedagogia das universidades brasileiras, uma certa profissionalização e habilitação profissional que se propõe a desenvolver a capacidade da docência e habilitar para tal. Na perspectiva curricular da maioria dos cursos de pedagogia não se tem priorizado a formação de pensadores e cientistas em educação, dentro de uma perspectiva humanista. Essa perspectiva foi anulada da história. O que importa é formar “profissionais da educação” em massa, pois o governo brasileiro tem um déficit educacional que precisa ser coberto em função das exigências do capital internacional para investir no País. Ora, a universidade, por esse deslocamento, tem transformado as faculdades de Pedagogia em escolas técnicas e profissionais de Pedagogia 3. Em que medida essa refuncionalização da universidade compromete seus compromissos históricos com a formação de intelectuais para se pensar a ciência da educação? Ou tal formação clássica e humanista pode ser descartada diante das urgências de profissionalização do governo e do capital? Fischer (1976) dá o exemplo mais “puro” dessa refuncionalização quando explicita seu entendimento de metodologia de ensino: a articulação de uma teoria de compreensão e interpretação da realidade com uma prática específica. Essa prática específica pode ser, no caso, de uma determinada disciplina. Quer dizer, a prática pedagógica – as aulas, o relacionamento entre professores e alunos, a bibliografia usada, o sistema de avaliação, as técnicas de trabalho em grupo, o tipo de questões que o professor levanta, o tratamento que dá à sua disciplina, a relação que estabelece na prática entre escola e sociedade – revela a sua compreensão e interpretação da relação homem-sociedade-natureza, historicamente determinada, 3 E hoje se questiona tanto o papel dos Institutos Superiores de Educação. Na verdade eles vêm apenas acelerar o processo de certificação de professores em massa para cobrir tal déficit. VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 3 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente constituindo-se esta articulação a sua metodologia de ensino (FISCHER (1976, p.1, grifos meus). Por que essa “articulação” tem que desembocar na prática pedagógica? Por que o trabalho pedagógico, entendido como práxis humana, dentro de um percurso formativo clássico ou humanista, acaba se perdendo num conjunto de atividades protocolares, que mais parece com o processo de colonização da ação instrumental e burocrática sobre o trabalho intelectual? Por tal entendimento metodológico de ensino o trabalho pedagógico, travestido de prática pedagógica, se afasta da pretensão compreensiva e interpretativa aludida acima e se aproxima, muito mais daquilo que se entende como as diretrizes e habilidades profissionais. Há um claro deslocamento categorial do magistério e da docência, comprometido com uma perspectiva filosófica humanista, para o profissionalismo e o tecnicismo na Pedagogia. Nessa perspectiva, o que importa é a prática da docência, observar o fazer para aprender e fazer, sem qualquer reflexividade crítica. É o fazer pelo fazer. Por que tal deslocamento é encarado como um dado natural e não histórico? O que implica tal refuncionalização quando se perde a possibilidade de formar nas faculdades de Pedagogia intelectuais capazes de pensar e propor mudanças estruturais? Quais as conseqüências desse deslocamento no processo de formação dos professores e da escolarização de toda uma população? Que compromissos políticos, socioeconômicos e culturais estão associados a um projeto de sociedade com uma pedagogia estruturada dentro desses parâmetros ideológicos? Qual o interesse em transformar o trabalho pedagógico em uma prática instrumental, em uma profissão, semelhante a qualquer outra atividade existente no “mercado capitalista de trabalho”? Por que rebaixar e degradar o trabalho intelectual docente a uma condição técnica e instrumental de uma profissão? Estas são algumas questões que nos possibilita reconhecer como o trabalho pedagógico é expropriado, mercadorizado e degradado. 3. A MERCADORIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO Dentre outras coisas, toda profissão funciona sob princípios, diretrizes, valores instrumentais e reiterativos: a racionalidade, a eficiência, a produtividade, as competências4. Tais valores fornecem a legitimidade necessária e os fundamentos teóricos da profissão. A profissão também pressupõe a capacidade de manipular meios para atingir fins, determinados a priori pelo capital. Hoje, soma-se a essas categorias a idéia das vantagens comparativas, a flexibilidade, o dinamismo, a polivalência. Todo profissional deve possuir as competências e as habilidades exigidas pelo mercado se deseja ser valorizado pelo capital. Na sociedade [capitalista] do conhecimento o capital está a exigir com mais impetuosidade a escolarização. 4 Que tomaram o lugar daquilo que conhecíamos tradicionalmente como habilidades. Perrenoud é um dos principais intelectuais responsáveis pela implementação desse discurso na literatura educacional. Dentre os principais livros divulgadores dessa ideologia, destacam-se: PERRENOUD, P. Práticas Pedagógicas Profissão Docente e Formação: Perspectivas sociológicas. Nova Enciclopédia, 1998; Construir as competências desde a escola., Porto Alegre, ed. Artes Médicas Sul, 1999. Novas competências para ensinar. Porto Alegre: ArtMed, 2000; PERRENOUD, P. (Org). Formando Professores profissionais: quais estratégias? Quais competências?; Porto Alegre: Artimed, 2001; Práticas reflexivas no ofício de professor. Porto Alegre: ArtMed, 2002. VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 4 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente É assim que a Pedagogia vai sendo transformada em um negócio e perdendo seu clássico significado de uma atividade marcadamente intelectual para ser subsumida pelas formas de sociabilidade da mercadoria. É preciso insistir, mais uma vez, e perguntar: qual a implicação da profissionalização ou mercadorização do trabalho pedagógico para a perspectiva humanista de conhecimento e universidade? Devemos nos conformar com o fato da pedagogia ser transformada em uma atividade técnica e profissional nas universidades brasileiras? Quais os desdobramentos históricos que decorrerão da transformação das faculdades de pedagogia em escolas técnicas e profissionalizantes? O problema é que o trabalho pedagógico vai sendo enquadrado em uma lógica seqüencial e em uma temporalidade a que todas as profissões foram submetidas na história das sociedades modernas, industriais e capitalistas, ao tempo social médio da reprodução do capital5. O que Schaff (1995) e muitos outros chamam de sociedade [capitalista] do conhecimento e Casttels (2000) de sociedade [capitalista] da informação, são sociedades de “novo tipo” em que o desenvolvimento tecnológico pressupõe a incorporação de conhecimentos em grande escala na forma mercadoria, que tenham valor de comercialização, nessas sociedades a escolarização precisa ser controlada diretamente pelo metabolismo do capital. Nesse contexto, a escola, no lugar das fábricas e indústrias de outras épocas históricas, se converte no lócus estratégico de investimento capitalista e ataque ideológico visando afirmar “novos” valores sócio-econômicos através da institucionalidade simbólica e cultural fundada nos princípios da filosofia utilitarista. Na sociedade do século XXI os novos operários são operários com certificados universitários, portanto, aquilo que no século XX, pelo menos até a sua primeira metade, era entendido como intelectual, após a década de oitenta/noventa foi violentamente ressignificado pela reconfiguração do capital (SILVA, 2003). Nesse contexto, o conhecimento produzido socialmente e acumulado historicamente se transforma em patrimônio do capital e a capacidade humana, a formação humana, ganha outro significado, o de capital humano. Antes, o tempo do trabalho pedagógico, como todo e qualquer trabalho intelectual, funcionava fora da órbita da reprodução do capital. A natureza das tecnologias livrava o trabalho intelectual dos negócios do capital. A natureza das tecnologias não tinha conseguido ainda penetrar no processo do trabalho intelectual. Vivíamos em uma forma híbrida e combinada do trabalho artesanal e industrial, na laboralidade do conhecimento. Hoje, as novas tecnologias incorporadas às atividades econômicas, a partir da segunda metade do século XX, mudaram radicalmente e reconfiguraram a reprodução do capital, que para preservar e ampliar a eficiência dessa reprodução precisa, como um vampiro precisa de sangue, de trabalho intelectual como mercadoria, conhecimentos em abundância. É o conhecimento que hoje se constitui no principal insumo-produto de toda mercadoria na economia capitalista informacional. Isso explica porque a escolarização passou a ser tão valorizada pelo capital. É preciso então transformar o trabalho intelectual, o trabalho pedagógico, em mercadoria. O que se consegue quando se transforma o pedagogo, o educador, o professor, os pensadores da educação em profissionais da educação, com suas específicas titulações. A partir da assimilação do signo profissional da educação procedem-se à homogeneização da totalidade das atividades intelectuais a uma estrutura planificada de cargos, carreiras e 5 Ver E. P. Thompson O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo. In: Thomaz T. da Silva (Org) Trabalho, Educação e Prática Social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre. Artes Médicas. 1991; Ver também Michel Foucault Vigiar e Punir. Rio de Janeiro. Vozes. 1982. VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 5 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente salários. E como assalariados consegue-se definir os rendimentos da atividade intelectual pelas suas competências, habilidades, escolarização, produtividade, etc. A única coisa que é excluída dessa refuncionalização é a jornada de trabalho. Por quê? Porque o trabalho intelectual é contraditório com a lógica do capital. O seu tempo não pode ser enquadrado no tempo do processo de trabalho capitalista. O tempo do trabalho intelectual transborda o processo de trabalho capitalista, tal como ele se efetiva nas unidades industriais, agrícolas, comerciais e de serviços. Quem escreve um romance, um livro, um trabalho acadêmico é invadido por intuições, idéias e um tempo dedicado a leituras, tempo que não pode ser definido nos parâmetros capitalistas. Simplesmente porque as idéias e as intuições invadem todo o tempo concentrado no trabalho intelectual. Como remunerar esse tempo? Qual o valor desse trabalho? O tempo dedicado ao trabalho pedagógico possui as mesmas características de todo e qualquer tempo em que se processa o trabalho intelectual. Ele não apenas se processa no lócus da sala de aula, existe também o tempo de estudo e o tempo da escrita. Momentos que acontecem, normalmente, fora da jornada de trabalho da laboralidade pedagógica, distante do controle do capital. O trabalho pedagógico tem, imanente a si, momentos de plena liberdade que nenhuma forma de trabalho possui. São momentos do pensar concentrado, quando tomamos consciência daquilo que queremos conhecer. A questão é que não se pode, capitalisticamente, definir um tempo para o pensamento conhecer. O tempo dedicado ao conhecimento é objetivamente aberto e contíguo, não se pode marcar horário para ele acontecer, como se marca o tempo em uma análise de psicanálise. É no tempo do trabalho pedagógico dedicado à laboralidade do conhecimento que se multiplicam e intensificam as intuições e as idéias, que não pode ser racionalmente controlado. Esse é realmente o tempo de criatividade intelectual mais intenso. Conseqüentemente, a racionalidade do capital não pode penetrar nesse tempo. Como remunerar esse tempo de laboralidade do conhecimento, característico do trabalho pedagógico? O tempo dedicado à aula não é suficiente para tal laboralidade. Para dirimir esse problema é preciso um significado próprio em que a racionalidade do capital penetre e controle, efetiva e eficientemente, o trabalho pedagógico. Esse significado é a profissão, a prática profissional, a mercadorização do trabalho pedagógico; quando a laboralidade do conhecimento é suprimida para dar lugar às atividades padronizadas, produzidas e enquadradas nos moldes tayloristas, fordistas e flexíveis. Mercadorizado dessa forma, o trabalho pedagógico pode ser comprado e comprimido no relógio do Estado capitalista e do empresário da educação. Pode ser organizado em uma estrutura hierárquica, nos termos da produção em massa, e a produtividade quantificada estatisticamente em freqüência, evasão, avaliação, expansão da oferta, etc. Assim, pelos mecanismos de mercadorização, o trabalho pedagógico é orientado a uma tarefa repetitiva. Tão estafante quanto à produção em série do início do século XX. É freqüente ouvirmos de pedagogos, educadores e professores reclamarem que dar aula é um “saco”, que não agüentam mais corrigir provas, etc. Feita tal refuncionalização gera-se, no interior mesmo do conjunto dos pedagogos, educadores e professores uma mentalidade tacanha, que à primeira vista soa estranho, mas é pronunciada com esmero e orgulho: sou profissional da educação. Oculta-se o conteúdo histórico desse orgulho, que é ser, concomitantemente como todo profissional, escravo do capital. Agora que a ideologia da profissionalização penetrou em todos os poros dos pedagogos, educadores e professores, dos pensadores da Pedagogia e converteu o VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 6 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente escravo do capital em um orgulhoso profissional, fica mais fácil introduzir os valores do utilitarismo e processar intensivamente a mercadorização da educação. Todos valem o que têm: função, salário, status, consultoria, conferências, cursos de especialização, capacitações, coordenação de projetos etc. Todos se empenham em aumentar seu poder institucional. Todos estão convencidos que têm que formar para o mercado capitalista de trabalho. Pedagogos, educadores e professores foram reduzidos a salário, a trabalhar por salário para sobreviver. Assim foi sangrado na Pedagogia o sabor do conhecimento. Processa-se o que Gentile (2000) chamou de mcdonaldização da escola. Aboliram-se também os ideais de uma pedagogia libertadora que visavam, na década de cinqüenta e sessenta, na América Latina, virar de ponta cabeça as relações capitalistas de exploração em nome do socialismo, de sociedades mais igualitárias, autônomas, fraternas e autogeridas pelos produtores6. O operário da sociedade [capitalista] do conhecimento é o pedagogo, o educador, sobretudo o professor. Apenas o professor, o trabalhador intelectual por excelência, aquele que realiza o trabalho pedagógico na base, não tomou consciência desse fato. Não tomou porque ainda não se deu conta de que a nova base técnica da sociedade capitalista do conhecimento é a sua força de trabalho, a sua “intelectualidade-de-obra” [mão-de-obra]. A “intelectualidade-de-obra” é transformada em energia que alimenta a acumulação ampliada do capital. É ela que, na linguagem de Marx (1980), passou em tempos pós-moderno a ser privilegiada como capital variável e extração de mais-valia relativa e absoluta, determinando o desenvolvimento das forças produtivas do capital globalizado. Houve, é verdade, uma grande transformação. O lugar que as fábricas ocupavam no início do século XVIII, na Inglaterra, é ocupado pela escola no mundo contemporâneo. Hoje o forno é a sala de aula. As matérias-primas, os cérebros humanos, animados por sentimentos, interpretações e intuições de milhares de alunos e professores. E o capitão de indústria, hoje, é o diretor. A escola é a fábrica da sociedade informacional do século XXI. E com um agravante: com todos os valores que antes amedrontavam os capitalistas: a gestão democrática, a conscientização das massas populares despossuídas, a universalização da educação, etc. Todos nós fortalecemos, de alguma maneira, essa trajetória e esse caminho projetado para nós pelo metabolismo do capital e seus ideólogos. O pós-estruturalismo tentou destruir o sujeito histórico, propulsor das transformações da realidade social. A Escola de Frankfurt tentou reduzir a objetividade socioeconômica do capital a uma questão de cultura e, aceitou, ainda que criticamente, o ponto de vista de Weber: a colonização dos processos humanos de sociabilidade do mundo, da vida pela racionalidade instrumental. Aliás, muitos teóricos advogam não mais existir realidade social, mas apenas signos, significados e significantes. A questão não é mais a objetividade do capital que tudo submete ao seu metabolismo reprodutivo (MÉSZÁROS, 2002), mas a intersubjetividade dos indivíduos, senão o indivíduo propriamente dito. Fortalecemos essa trajetória do capital porque o que nos interessa é o salário e os nossos rendimentos. Temos que cobrir mensalmente o cheque especial, consumir mais tecnologia disponível no mercado: a televisão a cabo, os softwares mais rápidos e arrojados, os novos modelos de telefones celulares, marcas de roupas, etc. Assim conectamo-nos ao 6 Todas as editoras parecem se orquestrar ideologicamente na divulgação das idéias e valores que propagam a prática pedagógica como categoria fundante de um novo tempo, aquele em que as faculdades de Pedagogia são transformadas em escolas técnicas de formação profissional. A categoria prática pedagógica, o discurso da falsa dicotomia entre teoria e prática, entre os fundamentos e as técnicas pedagógicas é o engodo enviesado por onde se estrutura a “nova” sociabilidade da sociedade [capitalista] do conhecimento. VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 7 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente mundo. Revelamos uma imagem atual que nos dá status e admiração social. É isso que dá prazer e poder. O capital penetrou na nossa libido e passou a fabricá-la na medida em que manipula os objetos de desejo através da propaganda e do marketing. Há uma profunda identidade, embora histórica, entre o desejo dos professores e o desejo do capital. É todo esse quadro que está associado ao ideário da prática pedagógica, em formar professores para o mercado capitalista de trabalho. A crítica a esse posicionamento intelectual deve começar se perguntando pela qualidade dos pedagogos, educadores e professores que estão sendo formados e “fabricados” nas universidades brasileiras? Com que perspectiva ideológica? Dentro de que projeto de educação e de sociedade? O que se entende por formação pedagógica e por trabalho docente? Que estragos o posicionamento que supervaloriza a prática profissional pedagógica já introduziu nos currículos dos cursos de pedagogia para uma perspectiva humanista da educação? Quais são as possibilidades de enfrentamento e as estratégias de que as perspectivas humanistas ainda dispõem para enfrentar o posicionamento da racionalidade instrumental, hegemônico hoje nas universidades brasileiras? VI SEMINÁRIO DA REDESTRADO - Regulação Educacional e Trabalho Docente 06 e 07 de novembro de 2006 – UERJ - Rio de Janeiro-RJ 8 EIXO TEMÁTICO I - Políticas educativas na América Latina: conseqüências sobre a formação e o trabalho docente 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, Michael W. Consumindo o outro: branquidade, educação e batatas fritas baratas. In: Marisa Vorraber Costa (org) Escola básica na virada do século: cultura, política e educação. São Paulo. Cortez, 2ª ed. 2000. . Repensando Ideologia e Currículo. 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