UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS
ROBERTO CARLOS DA SILVA BORGES
“SOU FEIA, MAS TÔ NA MODA”
- Funk, discurso e discriminação (ANÁLISE DISCURSIVA DE DOCUMENTÁRIO)
Niterói
2007
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ROBERTO CARLOS DA SILVA BORGES
“SOU FEIA, MAS TÔ NA MODA”
- Funk, discurso e discriminação (ANÁLISE DISCURSIVA DE DOCUMENTÁRIO)
Tese apresentada ao Curso de
Doutorado da Faculdade de Letras da
Universidade
Federal
Fluminense,
como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Estudos da
Linguagem. Área de concentração:
Estudos da Linguagem. Subárea:
Língua Portuguesa.
Professora Orientadora: Dra. Sigrid Gavazzi
Niterói
Julho de 2007
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
B732 Borges, Roberto Carlos da Silva.
“Sou feia, mas tô na moda” – funk, discurso e discriminação –
(Análise discursiva de documentário) / Roberto Carlos da Silva
Borges. – 2007.
207 f.
Orientador: Sigrid Gavazzi.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2007.
Bibliografia: f. 205-207.
1. Análise do discurso. 2. Documentário (cinema) Brasil. 3.
Funk (música) – Aspectos sociais - Brasil. I. Gavazzi, Sigrid. II.
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 401.41
ROBERTO CARLOS DA SILVA BORGES
“SOU FEIA, MAS TÔ NA MODA”
- Funk, discurso e discriminação (Análise discursiva de documentário)
Tese apresentada ao Curso de Doutorado da
Faculdade de Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial à obtenção
do título de Doutor em Estudos da Linguagem.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Profª. Dra. Sigrid Gavazzi (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________
Prof. Dra. Márcia Atálla Pietroluongo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________________________
Prof. Dr. André Valente Crin
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
________________________________________________________
Prof. Dr. Nelson Nóbrega Fernandes
Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________
Prof. Dr. Maurício da Silva
Universidade Federal Fluminense
A Maria Diva da Silva Borges e a Robson da Silva Borges
Agradecimentos
Em primeiro lugar, a Deus, que tudo pode.
À Sigrid Gavazzi, orientadora e amiga, que me acolheu carinhosamente e me
conduziu com intelecto, muita competência, paciência e pontualidade. Após ter
abandonado uma outra pesquisa já iniciada há quase dois anos, Sigrid Gavazzi
arriscou-se ao apostar em mim, a quem ela não conhecia, e em uma pesquisa
polêmica e delicada. Agradeço-lhe, Mestra, por tudo.
À Denise Garcia, diretora e produtora do documentário, que sempre me
recebeu com entusiasmo, autorizou prontamente a utilização de seu documentário
como corpus de minha pesquisa e forneceu apoio no que foi necessário.
Aos parentes e amigos que se sentiram preteridos durante o momento de
produção, mas mesmo assim foram capazes de compreender a relevância do meu
distanciamento.
À Fátima Maria Oliveira pela leitura do texto e por ser a amiga que me trouxe
riso e alegria em momentos que poderiam ter sido catastróficos.
A Holmes Fagundes Pereira Júnior, uma daquelas pessoas que a vida traz
para somar, sempre.
À Claudia Moraes Cardoso, que me apresentou à teoria analítica de Carl
Gustav Jung e, de forma ”piscianamente ” cuidadosa, carinhosa e competente,
ajudou-me a ter acesso a pontos velados do inconsciente, levando-me a
compreender que a aceitação e integração da Sombra é tão útil, saudável e
necessária quanto a integração da L uz.
A todos aqueles cujos nomes não são citados, mas torceram por mim e estão
ao meu lado, tornando-me, dessa forma, mais próspero.
“o certo e o errado são apenas modos
diferentes de entender a nossa relação
com os outros.” Saramago
Pontos de vista
Quando Nero queria ver
o mundo melhor
olhava-o através de
uma esmeralda.
Quando quero ver
melhor
o mundo
eu o olho através
das palavras
Marina Colasanti
“O homem que não atravessa o inferno
de suas paixões também não as
supera. Elas se mudam para a casa
vizinha e poderão atear o fogo que
atingirá sua casa sem que ele
perceba.” Jung
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar, pelo viés da Semiolingüística
de Partrick Charaudeu, o documentário “Sou feia, mas tô na moda” , de
Denise Garcia. Utilizando como embasamento teórico principal a “Nova
Análise do Discurso” de Patrick Charaudeau (1996) e perpassando pela
noção de Ethos (Charaudeau:2006 e Maingueneau:2002), pretendemos
refletir sobre o preconceito e a discriminação que giram em torno do funk no
referido documentário, como também sobre questões que tangem a
discriminação de gênero (sobretudo em relação ao feminino) e a
discriminação social em nossa nação.
Abstract
The goal of the present work is to analyze, through the use of Semiolinguistics'
theory of Patrick Charaudeu, the documentary film “Sou feia, mas tô na moda" (I am
ugly, but I’m trendy), by Denise Garcia’s. Using as main theoretical support the “New
Analysis of the Speech” of Patrick Charaudeau (1996) and glancing over the notion
of Ethos (Charaudeau: 2006 and Maingueneau: 2002), we intend to investigate the
prejudice and discrimination that permeate funk music in the aforementioned
documentary, and also on questions that refer to gender discrimination (specially
regarding sexism) and social discrimination in our nation.
Sumário
Capítulo
Página
I
Introdução
10
II
Algumas hipóteses, certas questões
14
III
Documentário: por uma conceituação
17
IV
Negros, quilombos, favelas: discriminação
25
V
Discurso de macho, discurso de fêmea: feminismo no funk?
36
VI
47
VII
Os vários olhares sobre o funk: muda o enunciador, muda a
história
Uma breve história do funk carioca
VIII
Ethos
76
IX
IX.1
IX.2
53
97
A Semiolingüística de Patrick Charaudeau
Análise Semiolingüística do texto e do discurso
101
110
IX.3
A Nova Análise do Discurso (O homem em sociedade –
Língua, comportamento e comunicação): o contrato de
comunicação
Características do contrato de comunicação
IX.4
Os S ujeitos da Comunicação
132
X
Considerações Finais
142
XI
Anexo I
Anexo II
Anexo III
Anexos
Transcrição do documentário
O amargo brilho do pó
Em entrevista inédita, Renato Russo fala de drogas e da
Legião
Funk Brasileiro põe o mundo para sacudir
Entrevista com as “Danadinhas”
Feminista, sim, e daí?
Sou feia mas tô na moda (1)
Sou feia mas tô na moda(2)
Filme sobre mulheres do funk terá estréia mundial em
Londres
Tati Quebra Barraco: Cinderela do Funk
Funk do Bope
Referências Bibliográficas
150
150
167
179
Anexo IV
Anexo V
Anexo VI
Anexo VII
Anexo VIII
Anexo IX
Anexo X
Anexo XI
XII
129
181
182
185
187
189
191
193
203
205
10
I) INTRODUÇÃO
Em outubro/novembro de 2005, fomos surpreendidos ao visualizar nos muros da
cidade cartazes com uma chamada bastante inusitada pelo teor que veiculava: “Sou
feia, mas tô na moda”. Essa chamada espetacular já era suficiente para provocar
reflexões a qualquer de nós, seres imersos em um tempo e um espaço nos quais a
beleza é uma imposição, em que aqueles que não são belos (não correspondem a
um estereótipo “x” ou “y” de beleza) estão alijados de um sistema perverso e
extremamente ditatorial.
Descobrimos, logo, tratar-se “aquilo” de um documentário sobre o funk carioca.
Vários outros cartazes começaram a aparecer e, tão logo houve a estréia do
documentário, apressamo-nos em assistir a ele.
O filme foi para nós uma verdadeira epifania. Estava ali na tela um objeto de
estudo rico e bastante promissor. Transformou-se, então,
em nosso corpus de
pesquisa para esta Tese de Doutorado.
Para a construção da mesma, resolvemos percorrer o TRAJETO exposto a
seguir:
O filme nos suscitou algumas hipóteses e nos levou a alguns questionamentos
que relacionamos no capítulo II, que foi intitulado de “Algumas hipóteses, certas
questões”.
No capítulo III, propusemos, a partir da obra “Introdução ao documentário”
(2005), principalmente, uma conceituação deste tipo de filme. Bill Nichols, autor da
referida obra, é visto, hoje, como um dos maiores pensadores do mundo na área de
cinema.
Como algumas questões levantadas por este documentário tangenciam
problemas ligados à discriminação de raça e à discriminação social, o capítulo IV –
11
“Negros, Quilombos, Favelas: Discriminação” tem como proposta expor/discutir,
ainda que de forma breve, alguns pontos-chave ligados ao problema sócio-racial no
Brasil. Nesse capítulo, fazemos uma revisão de literatura em que se parte de Castro
Alves, passa-se pela Bíblia, visita-se Darcy Ribeiro, observam-se gráficos e
estatísticas produzidas pelo IBGE e pelo IPEA, fala-se de Leis e se vai até
Andrelino Campos e sua discussão a respeito de Quilombos e Favelas.
O filme em questão foi produzido por uma mulher e a grande maioria das
pessoas que são entrevistadas – e nele aparecem –
são do gênero feminino.
Algumas questões sérias, próprias do universo feminino, são abordadas. Isso
justifica o capítulo V – “Discurso de macho, discurso de fêmea: feminismo no
funk?”. Lançamos mão, então, de alguns textos que refletem sobre questões
inerentes aos problemas advindos das diferenças de gênero. Por intermédio das
obras de Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy (“O que é o Feminismo”),
Maria Rita Kehl (“A Mínima Diferença”) e Regina Neri (“A Psicanálise e o
Feminino: Um Horizonte da Modernidade”), pudemos, ainda que indiretamente,
tocar em alguns pensamentos de Freud, Lacan, Simone de Beauvoir, Virgínia Woolf
e Kate Millet, por exemplo.
É no capítulo VI que trazemos à tona uma discussão cuja origem pode ser um
tanto polêmica, qual seja: a perspectiva escolhida ao se olhar um “objeto” pode-nos
trazer informações diferenciadas sobre esse “objeto”. Sob o título “Os vários
olhares sobre o funk: muda o enunciador, muda a história”, tentamos refletir a
respeito do enfoque dado a alguns “atos” dos personagens ditos funkeiros e como
esses mesmos “atos” têm sido avaliados, segundo a mídia, quando os “atores” não
são ligados ao mundo “funk”.
12
Como o documentário analisado aborda diretamente o “mundo” de pessoas que
produzem “funk”, o capítulo VII não poderia, a nosso ver, ser ignorado: “Uma breve
história sobre o funk carioca”. Com base, principalmente, no livro de Silvio
Essinger, tentamos aqui estabelecer o percurso do funk carioca com suas
características e peculiaridades. A História aqui contada remonta o início da década
de 60, quando ainda somente se falava de bossa-nova e de samba-jazz e era
impossível se pensar em um som/ritmo parecido com o do funk. Passa pela década
de 70, época do Black Power, chega aos anos 80-90, do Charme, até o surgimento
do funk, na década de 90.
Em seguida falamos de Ethos. O ethos, para Aristóteles, é a imagem que o
orador transmite de si. Para Charaudeau, o ethos se situa naquilo que o sujeito
falante dá a ver e a entender. Não está, portanto, ligado ao indivíduo, mas ao papel
a que corresponde o seu discurso. Logo, o conceito de ethos torna-se fundamental
para a Análise do Discurso. Por isso, o capítulo VIII parte da conceituação de ethos
e tem como proposta analisá-lo dentro do documentário em questão.
A fundamentação teórica que escolhemos para nosso trabalho baseia-se na
Semiolingüística de Patrick Charaudeau, cuja teoria apresentamos no capítulo IX.
Esse
capítulo
mereceu
algumas
subdivisões,
a
saber:
IX.1
–
“Análise
semiolingüística do texto e do discurso”; IX.2 – “A nova Análise do Discurso (O
homem em sociedade – Língua, comportamento e comunicação): o contrato de
comunicação”. ; IX.3 – “Características do contrato de comunicação”; IX.4. “Os
sujeitos da comunicação”. Por tratar da teoria que estrutura nosso trabalho, não
tivemos como fugir a tantas subdivisões.
No décimo e último capítulo, que denominamos “Considerações finais”, expomos
as conclusões a que nossa análise nos permitiu chegar.
13
Importante ressaltar o fato de que, nesta tese, tivemos, como opção
metodológica (respaldados por nossa orientadora), alinhar a teoria com a prática,
isto é, sempre que surgem pressupostos teóricos a eles é associada a análise de
dados. Daí ser nosso intento não separar, em compartimentos estanques,
observações teóricas e a sua aplicação.
Os Anexos (em que apresentamos a transcrição do filme analisado e onde
reproduzimos alguns textos, veiculados pela mídia, sobre assuntos relevantes para o
que aqui será discutido) foram dispostos após as Considerações Finais. Por último,
relacionamos as Referências Bibliográficas.
Assim, justificamos nosso trabalho: como a Análise do Discurso, que nos
serve de arcabouço, trabalha concomitantemente o espaço social e o Lingüístico,
esperamos que nossas reflexões, de cunho acadêmico e lingüístico, delineiem
traços de uma realidade na qual estamos inseridos. Se o tivermos conseguido,
nosso trabalho terá alcançado o seu fim.
14
II – ALGUMAS HIPÓTESES, CERTAS QUESTÕES
Conforme dito na introdução, como objeto de análise, o filme nos suscitou
algumas questões e hipóteses que relacionamos:
HIPÓTESES
1) O documentário faz uma denúncia do preconceito de algumas camadas
sócio-culturais em relação ao funk.
2) O preconceito não está diretamente ligado ao que o funk veicula, mas sim ao
enunciador que o produz.
3) Como apontado por alguns veículos midiáticos, há, sim, um discurso feminista
que perpassa o documentário.
QUESTÕES LEVANTADAS PELO DOCUMENTÁRIO
1) Que tipos de preconceito/discriminação ele denuncia? De gênero? De raça?
Sócio-econômico? Sócio-cultural?
2) O discurso que ele veicula pode ser apontado como feminista ou é um
discurso machista “produzido” por mulheres?
3) Por que o funk é tão rejeitado socialmente? O que tem maior “peso”: “O que
se diz” ou “aquele que diz” ?
4) Que ethos são criados/apresentados em defesa do discurso que se quer
veicular?
5) Por que, numa sociedade permissiva como a nossa, o funk ainda causa tanto
estranhamento?
15
Na tentativa de encontrar respostas para as questões suscitadas, resolvemos
adotar como
procedimento básico de análise o mapeamento do contrato de
comunicação estabelecido entre o “sujeito falante” (eu-emissor/comunicante) e o
“sujeito falante destinatário” (tu-destinatário/interpretante); e assim:
a) Explicitar o projeto de comunicação subjacente ao documentário,
detectando sua intencionalidade;
b) Analisar a coerência (ou a falta dela) entre o projeto de fala e o
contrato de comunicação pertinentes ao discurso ali veiculado.
c) Explicitar, pelo viés da Análise Semiolingüística
do Discurso, o
preconceito que , conforme supomos, o documentário se propõe a
denunciar.
Para um esclarecimento inicial, afirmamos que Charaudeau
propõe uma
distinção entre análise de texto e análise do discurso. Para ele,
“ A primeira se dirige ao texto; consiste em analisar um texto
(qualquer que seja sua configuração) – que é o resultado de
uma combinação (o produto) de certas condições de
produção com as operações de discursivização – , em seu
desenvolvimento
linear,
de
modo
simultaneamente
progressivo e recorrente. A segunda se dirige a um corpus de
textos semelhantes em nome de um tipo de situação
(contrato) que as sobredetermina, e das quais estudamos as
constantes (para definir um gênero) e as variantes (para
definir
uma
tipologia
de
estratégias
possíveis).
Freqüentemente se diz análise de discurso de um texto;
convém, então, precisar se o texto constitui um fim em si ou
se se trata de um simples pretexto.” (CHARAUDEAU, 1996,
p.40)
A partir dessa definição, nosso trabalho se erige: nossa motivação se concretiza,
portanto, pela possibilidade de averiguar se as estratégias traçadas na construção
16
do discurso que perpassa o documentário são suficientes para credenciá-lo/legitimálo frente aos “tus” (interpretante/destinatário) ou se não o são, tornando o projeto
parcial ou totalmente falho.
17
III) DOCUMENTÁRIO: POR UMA CONCEITUAÇÃO
Uma das tarefas difíceis e delicadas de nosso trabalho consiste em conceituar
o gênero “documentário”. Para nos auxiliar nesse objetivo, iniciamos com a leitura do
livro “Introdução ao documentário”, de Bill Nichols 1.
Na página 47 de seu livro “Introdução ao documentário”, ele nos diz que “A
definição de ‘documentário’ não é mais fácil do que a de ‘amor’ ou de ‘cultura’”. Diz,
ainda, que tal conceituação é sempre relativa ou comparativa, estruturando-se pelo
contraste com os filmes de ficção, experimentais ou de vanguarda.
Espera-se que seja mais ou menos claro para um grande número de pessoas
que o filme “documentário” aborda o mundo em que vivemos – pela ótica do sujeito
que o produz – e não uma ficção imaginada por um cineasta. Tanto é assim que as
expectativas que gera em seu público-alvo são bastante diferentes das do público
que vai assistir a um filme de terror, a uma aventura, a um melodrama, por exemplo.
Por mais claro que isso possa ser, no entanto, há um número cada vez maior
de documentários que lança mão de recursos, estratégias, convenções que podem
ser facilmente associadas ao filme ficcional – como ensaio, roteirização,
interpretação. Isso, muitas vezes, atenua (em muito) os limites entre o que é
ficcional e o que não é ficcional.
Para acirrar mais a dificuldade de conceituação, surgem, como aponta
Nichols, filmes ficcionais como Forrest Gump, A Bruxa de Blair e Truman Show, o
show da vida
que constroem suas histórias em torno de características que
poderíamos dizer inerentes ao filme “documentário”. Ficções como essas levam o
espectador a ter a sensação de que assiste a filmes que retratam a realidade, na
1
Bill Nichols é um dos intelectuais mais influentes da academia norte-americana contemporânea na área de
cinema. É autor de uma conhecida coletânea de textos em Teoria do Cinema: Movies and methods: An
anthology.
18
medida em que satisfazem a necessidade de se testemunhar a vida de pessoas que
parecem fazer parte do mesmo mundo histórico a que pertencemos. Os meios
digitais contribuem ainda para a intensificação dessa sensação pela possibilidade
de tornarem tudo evidente demais, real demais. Muitas tecnologias trabalham no
sentido de nos dar a impressão de autenticidade, mesmo quando estamos diante de
algo que foi produzido e fabricado.
A raiz da tradição do documentário consiste , portanto, em sua capacidade de
nos transmitir a impressão de que visualizamos algo autêntico. Logo,
não só a
seleção das imagens e a disposição do padrão de seqüência contribuem em muito
para a interpretação e para a construção do significado daquilo que vemos: muitos
outros fatores contribuirão.
Ora, tanto a propaganda política, quanto a publicidade,
trabalham com
nossos sistemas de crença. Hoje, até mesmo a ciência, na qual o diagnóstico por
imagens assumiu importância fundamental, apela para o mesmo sistema de valores.
Assim também o é com o documentário: precisamos crer que aquilo que estamos
vendo é testemunho do mundo para embasarmos nossa orientação (ou ação) sobre
ele.
Assim, há documentários que têm como intenção primordial persuadir o
espectador a adotar uma perspectiva ou um ponto de vista sobre o mundo vivido.
Quando isso ocorre, os cineastas têm de optar sobre como fazê-lo: ou tentam nos
levar a ver
o mundo que compartilhamos como se filtrado por uma percepção
individual dele ou com uma clareza e transparência que minimizam o valor do estilo
ou da percepção do cineasta. Em qualquer um dos casos, porém, tentam desviar
nossa atenção para o mundo que já ocupamos. Nisso, em nada diferem daqueles
19
que produzem ficção com o objetivo de atrair nossa atenção para mundos que, de
outra maneira, jamais conheceríamos.
Todo filme, na verdade, tem por base um “documentário”, assim o afirma Bill
Nichols logo no início de sua obra. A assertiva baseia-se no fato de que mesmo “a
mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a
aparência das pessoas que fazem parte dela.” (NICHOLS, 2005, p. 26)
Para ele, então, existem dois tipos de filmes:
1) Os de satisfação de desejos, ou filmes de ficção: expressam nossas
aspirações, sonhos e temores. Esses têm a capacidade de tornar concreto
aquilo que imaginamos. As verdades, idéias e pontos de vista, veiculados
nesse tipo de filme, são de natureza tal que podemos rejeitar ou adotar como
nossos;
2) Os de representação social, ou os de não-ficção: chamados de forma
generalizada de “documentários”. Em seu sentido restrito, representam, de
forma palpável, os aspectos desse mundo que ocupamos e compartilhamos.
É a realidade social que ressalta, prioritariamente, de acordo com a seleção
e a organização determinadas pelo cineasta. Na verdade, quanto à seleção e
ordenação por parte do cineasta, os primeiros também passam pelo mesmo
processo, mas isso se dá de uma outra forma, porém. Estes, pois, denotam
uma determinada compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá
vir a ser. Dessa forma, o filme documentário também veicula verdades.
Precisamos, porém, avaliar o que ele reivindica, seus pontos de vista, suas
20
afirmações e argumentos relativos ao mundo da forma como o conhecemos.
A partir disso, cabe a cada um de nós decidir se deve ou não acreditar nele.
Na verdade, o que veiculam são visões de um mundo comum, com o objetivo
de que as exploremos e as compreendamos. Ambos os tipos de filmes são
histórias
que
pedem
tanto
que
acreditemos
nelas
quanto
que
as
interpretemos. A interpretação está ligada à compreensão da transmissão de
significados e valores. A crença depende da forma como reagimos a esses
significados e valores. Certamente, um dos objetivos do documentário de
representação social é estimular, encorajar a crença. É necessário que se
creia no mundo do filme como real,
já que os documentários de
representação social pretendem exercer algum tipo de impacto no mundo
histórico e isso só é possível se a persuasão e o convencimento a respeito do
ponto de vista que veiculam forem eficazes. Bill Nichols, quando defende
esse ponto de vista, traz à tona um parecer muito interessante. Para ele, essa
necessidade do documentário instilar crença aproxima-o da tradição retórica,
na qual a eloqüência tem um objetivo estético e social.
Seu encanto reside, então, em colocar, diante das pessoas, questões atuais de
nossa sociedade, com seus problemas, apresentando-lhes suas possíveis soluções.
Dessa forma, o documentário acaba por nos tornar capazes de olhar para temas
oportunos que necessitam de atenção.
21
O documentário
se engaja no mundo pela representação de três diferentes
maneiras:
1)
Oferecem um retrato ou uma representação reconhecível do mundo:
mostram pessoas, lugares e coisas que poderíamos ter visto por nós
mesmos e isso com tal fidelidade que nos dá base para a crença de que
vemos o que de fato estava lá diante da câmera, logo, o que “vemos” é
“verdade”. Somos levados a acreditar que a imagem diante de nossos
olhos seja a própria realidade representada diante de nós.
Entretanto, ao mesmo tempo em que podemos crer na veracidade do que
nos é apresentado, a história ou o argumento expostos podem apresentar
uma maneira distinta (da nossa) de observação da realidade. No caso do
documentário que analisamos, podemos afirmar
que, quando os
componentes da comunidade expressam seu parecer a respeito do que
significa o funk para eles, somos compelidos a refletir a respeito da
experiência que nos apresentam, embora não a vivenciemos em nosso
cotidiano.
2)
Significam ou representam os interesses de outros: muitas vezes,
assumem o papel de representantes do público. No documentário que
analisamos, podemos notar, sem muito esforço, que há uma voz que fala
em favor daqueles que produzem funk, defende os interesses dos sujeitos
que são tema de seu filme.
22
3)
Defendem um determinado ponto de vista ou uma determinada
interpretação das provas: talvez essa maneira de engajamento seja
subliminar às outras duas, mas por intermédio desta eles afirmam qual é a
natureza de um assunto, para conquistar consentimento ou influenciar
opiniões.
Nos filmes de ficção, diferente do que acontece nos filmes documentários, as
pessoas são atores, dependendo de relações contratuais para a atuação em um
determinado filme. Por conseguinte, devem obedecer àquilo que lhes é traçado e o
diretor tem o direito de obter a performance que considera adequada. A valorização
do ator normalmente se dá pela sua capacidade de encenação e qualidade de sua
atuação.
Já nos filmes documentários, espera-se que as pessoas continuem a levar suas
vidas como se a câmera que as filma não existisse. Cria-se uma ambiência de
“entrevista ao vivo” e os “papéis”, em teoria, não seriam marcados previamente.
Quer-se uma pessoa falando de si, relatando experiências, fornecendo suas
opiniões.
Não há, portanto, uma expectativa em relação à qualidade de atuação daqueles
que ali são representados. Pelo contrário, espera-se ver fidelidade ao seu
comportamento ou a sua personalidade habitual. Nesse caso, se o diretor exigisse
uma performance, correria o risco de ter a integridade de seu filme, naquilo que
tange a autenticidade social, ameaçada. Para o cineasta, o valor reside justo no que
a vida dessas pessoas incorpora, não em sua capacidade de atuar como atores
teatrais.
23
Uma forma, então,
de sintetizar a interação tripolar (1. cineasta; 2. temas ou
atores sociais; 3. espectadores) pode ser mostrada através da sentença “Eu falo
deles para você ”. Assim teríamos:
1) A maneira como esse EU assume a voz pode variar: pode ser uma (voz) como
a de um deus a que se ouve, mas não se vê quem a emite; pode ser uma (voz) que
corresponda a uma voz de autoridade, proveniente de alguém a quem vemos e
ouvimos, que fala em nome do filme; pode ser também que o próprio cineasta fale,
diante da câmera ou não. O cineasta transforma-se, assim, numa persona ou
personagem em seu próprio filme, sendo também seu criador.
FALAR DE deixa claro que esse tipo de filme se propõe a representar outras
pessoas. Falar de alguém, de algum tópico, assunto, pessoa ou indivíduo .
2) O pronome de terceira pessoa (ELES) remete-nos diretamente àquele de
quem se fala. Logo, ao falar de ELES o documentário nos dá a sensação de que as
pessoas que estão sendo filmadas (elas e suas vidas) estão lá para a nossa análise
e/ou para a nossa edificação.
3) O VOCÊ, como também o é o ELES, exige uma clara separação. Há um
locutor, que é o EU, e o destinatário que ocupará o lugar do VOCÊ da sentença
inicial. O VOCÊ, representado pelo público que assiste ao documentário, ocupa um
tempo e um espaço social diferente daquele do ato de representação e do tema
representado. Logo, o papel que o auditório assume diante do filme documentário
pode apresentar aspectos um tanto quanto distintos de sua própria persona social,
conforme afirmamos anteriormente. Nesse momento, assistimos ao filme como
24
espectadores, como público. Todavia, esse VOCÊ é ativado como público quando o
cineasta consegue nos atingir de alguma forma, quando se tem a sensação de que é
a nós que ele se dirige. Se não for assim, ainda que se esteja diante da tela, não
assistimos ao filme.
Talvez, porém, a grande dificuldade em conceituar o documentário esteja no fato
de ele não ser uma reprodução da realidade, mas uma representação da mesma.
Como tal, apresenta uma determinada visão do mundo, de um dado aspecto da
realidade social.
E, ainda que soe como extremamente simplório, diz-se que documentário é
aquilo que a instituição que o produziu chama de documentário. Assim, se um filme
já chega com esse rótulo (“documentário”), antes de qualquer iniciativa do crítico ou
do espectador, adquire tal status.
É óbvio que podemos fazer avaliações ou conjecturas a respeito do grau de
objetividade, confiabilidade e credibilidade de quem o produziu, do assunto que
aborda, dos personagens sociais envolvidos, mas, se associado ao supracitado
“rótulo”, fizer referência ao mundo histórico que compartilhamos e não a um mundo
imaginado pelo cineasta, sua classificação como tal torna-se indiscutível.
25
IV) NEGROS, QUILOMBOS, FAVELAS : DISCRIMINAÇÃO
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? Que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
........................................................
Foi depois do dilúvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . "
Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o nômade faminto corta as plagas
No rápido corcel.
[...]
(Vozes d’África. In.: ALVES, Castro. 1990)
O poema Vozes d’África, de Castro Alves (um de nossos maiores poetas da
terceira geração do Romantismo brasileiro, que militava contra o poder monárquico
e suas instituições, como o escravismo, por exemplo), traz-nos, em belíssima
construção prosopopéica, a personificação do continente africano que expressa,
diante de Deus, a sua grande dor.
Cam, de quem nos fala o texto, é filho de Noé, patriarca bíblico. Por ter visto a
nudez do pai, foi amaldiçoado pelo mesmo, tornando-se escravo de seus irmãos,
conforme nos relata o livro sagrado:
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“ Os filhos de Noé, que saíram da barca com ele, foram Sem, Cam e
Jafé (Cam foi o pai de Canaã.). Esses três foram os filhos de Noé, e os
descendentes deles se espalharam pelo mundo inteiro. Noé era
agricultor; ele foi a primeira pessoa que fez uma plantação de uvas. Um
dia Noé bebeu muito vinho, ficou bêbado e se deitou nu dentro da sua
barraca. Cam, o pai de Canaã, viu que o seu pai estava nu e saiu para
contar aos seus dois irmãos. Então Sem e Jafé pegaram uma capa,
puseram sobre os seus próprios ombros, foram andando de costas e
com a capa cobriram o seu pai, que estava nu. E, a fim de não verem o
pai nu, eles fizeram isso olhando para o lado. Quando Noé acordou
depois da bebedeira, soube do que Cam, o filho mais moço, havia feito.
Aí Noé disse o seguinte: "Maldito seja Canaã! Ele será escravo dos seus
irmãos, um escravo miserável." E Noé disse mais: "Bendito seja o
Eterno, Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo. Deus faça que
Jafé tenha domínio sobre muitas terras, e que os seus descendentes
morem nos acampamentos de Sem. E que Canaã seja escravo de
Jafé."” (Livro de Gênesis, cap. 9, vs. 18-21)
Causa-nos grande estranhamento o “deslize” ter sido cometido por Cam e a
maldição recair sobre seu filho Canaã. O texto bíblico, porém, não nos esclarece
sobre isso2 e não é o que nos interessa no momento, mas sim que esse trecho teria
sido utilizado pela igreja durante séculos como um dos argumentos para endossar
sua omissão diante da barbárie cometida contra os negros. Segundo a Bíblia, pois,
conforme relatado, é nessa maldição, assentida por Deus, que se inicia a história da
escravidão do continente africano, como também a escravidão e sofrimento de
outros povos.
Sobre esse fato, o crítico Alfredo Bosi faz a seguinte análise:
“A narração da Escritura prossegue dando o elenco das gerações de
Cam, Sem e Jafé. “Camitas” seriam os povos escuros da Etiópia, da
Arábia do Sul, da Núbia, da Tripolitânia, da Somália (na verdade, os
africanos do Velho Testamento) e algumas tribos que habitavam a
Palestina antes que os hebreus as conquistassem.” (grifo nosso). (BOSI,
1993, p. 257)
2
A Bíblia de Jerusalém (Edições Paulinas, SP:1991, p. 43-44) diz que houve adulteração do texto original, onde
a maldição recaía sobre o próprio Cam)
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Entretanto, conforme aponta Bosi, se Noé viveu há muitos séculos antes da
era Cristã, é estranho, no mínimo, observar que tal evento (a maldição) se tornou
uma possível explicação para o escravismo como punição perpétua de um povo. Se
isso permanecesse no âmbito da ficção, não causaria incômodo algum. O estranho
é constatarmos, porém, que o pensamento mercantil dele se utilizou, durante os
séculos XVI, XVII e XVIII para justificar o tráfico de escravos. A punição de Cam, por
ter visto a nudez do pai, seria o argumento para domínio e castigo de todo um povo,
deixando marcas indeléveis em nossa história e em nossa alma.
Excelente a construção poética de Castro Alves, para quem nem mesmo
Deus, o deus cristão, se compadece diante de tanto sofrimento. Pelo contrário, age
com dureza e de forma vingativa contra uma vítima vulnerável e impotente diante de
tamanho poder.
Bosi (1993:259) observa, ainda, que depois da queda de Adão e Eva, toda a
descendência do pecador, ou seja, toda a humanidade, ficou marcada pelo pecado
chamado “original”. Mas o pecado de Adão, ainda que pudesse ser considerado
muito maior que o de Cam, já que nasce da desobediência de uma orientação do
próprio Deus, encontra remissão através da morte do Cristo, filho genuíno de Deus,
que simboliza “o próprio Deus que se fez carne”. Para o pecado de Cam, porém,
não há remissão, não há perdão e não há castigo que baste. A voz personificada da
África não silencia diante disso:
“Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal.”
(Vozes d’África. ALVES, CASTRO, 1990)
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Como punição ou como culpa, o escravismo perpetua-se no Brasil. Negros de
diversas etnias africanas, de diversas camadas sociais, chegam a nossa terra e aqui
vivem sob o domínio do homem branco. São tratados como animais e até mesmo a
igreja, que poderia ser o consolo de suas dores, olha-os como tal.
Os negros africanos, contudo, chegam aqui por volta do ano de 1.500 de
nossa era. Embora nunca tenha havido em nossa terra um “apartheid” assumido ou
por força de Lei – o Brasil tem sido considerado há muito tempo, em função de
algumas teorias utópicas, o país da democracia racial – é cada vez mais difícil
negar que há discriminação e que convivemos com o preconceito, ou seja: que as
distinções e as desigualdades dentre as raças são cada vez mais explícitas.
Ratificando isso, o IPEA (Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou,
em 2001, suas pesquisas que mostram o tamanho da desigualdade racial existente
no Brasil. Por sua vez, em um artigo intitulado “Desigualdades raciais no Brasil:
síntese de indicadores e desafios no campo das políticas públicas”, Rosana
Heringer apresenta uma série de gráficos e estatísticas, extraídos de órgãos
institucionais brasileiros (como o IPEA e o IBGE, por exemplo), que demonstram que
a desigualdade racial não é algo que faça parte do mundo imaginário dos grupos de
movimento negro.3 Já em ensaio intitulado “Sobre o óbvio”, o antropólogo Darcy
Ribeiro afirma que
“Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados
para gerar e desfrutar riquezas, e para subjugar o
povo faminto no trabalho, como os nossos senhores
empresários, doutores e comandantes. Quase
sempre cordiais uns para com os outros, sempre
duros e implacáveis para com subalternos, e
insaciáveis na apropriação dos frutos do trabalho
alheio.”
3. Não trataremos, especificadamente, desses detalhes estatísticos por não ser diretamente esse o assunto que
nos interessa no momento, a não ser pelo fato de servirem como comprovação de que o mito da democracia
racial no Bras il não passa de mito, como será referendado no documentário que nos propomos a analisar.
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Além disso, lançando mão de uma sofisticadíssima ironia, Darcy Ribeiro
discute, nesse ensaio, a forma pérfida como nossa sociedade se instituiu depois da
independência de nosso país e da diferença ante a
apropriação de terra que
aconteceu no Brasil e a que aconteceu nos Estados Unidos, onde bastava a
qualquer pioneiro se apossar, ocupar e trabalhar a terra para que ela fosse sua,
enquanto aqui construíamos “Casas-grandes e Senzalas” grandiosas para que, por
intermédio do trabalho escravo que elas abrigavam, seus
senhores
não
necessitassem trabalhar.
Darcy nos fala ainda da crueldade astuta das classes dominantes brasileiras
diante do advento da Revolução Industrial. As fontes de energia natural (como
carvão, depois a eletricidade e o petróleo) substituíram paulatinamente a força tanto
dos animais quanto dos escravos. O Brasil, porém, foi o último país do mundo a
abolir a escravatura – a luta contra a escravidão, em nossa pátria, prolongou-se por
mais de oitenta anos e só aconteceu dentro desse prazo em função da pressão
externa de outros países. Caso contrário, corríamos o perigo de que ela demorasse
muito mais
–
e o processo adotado foi bastante cruel e exacerbadamente
desumano.
Assim, o cinismo, a hipocrisia, o descaso, através de um jogo político
bastante sagaz, chefiado pelo Visconde do Rio Branco, do gabinete conservador,
emerge no dia 28 de setembro de 1871, sob a máscara de consciência humana
universal, recebendo o nome de Lei do Ventre-Livre, também conhecida como Lei
Rio Branco. Segundo a referida lei, qualquer filho de escravo, nascido no Brasil,
seria livre. Isso, ainda que de forma muito lenta e gradual, teria como fim a extinção
da escravidão em nossas terras.
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O filho do escravo seria livre; seus pais, não. Logo, liberdade de quem? Dos
senhores de escravo, exclusivamente, que além de retardarem o processo da
abolição, desobrigavam-se de alimentar as crianças que nasceriam “livres”. Desde
então, como atestam variados historiadores, já fazia parte da cultura de nossa nação
o fato de as leis não serem cumpridas, ou por desinteresse em aplicá-las ou pela
dificuldade em fiscalizar seu cumprimento: o que era promulgado, então, diante do
desinteresse, tornava-se “letra morta”. Durante os dezessete anos que separa a Lei
do Ventre-Livre da “efetiva” abolição da escravatura, os escravocratas criaram
numerosas estratégias para burlar a referida lei e ressarcirem-se, assim, daquilo que
julgavam ter perdido.
Embora os abolicionistas tivessem a esperança de que o processo de
abolição dos escravos se desse de forma justa e ética, ao contrário do que esses
esperavam, os negros libertos foram jogados na penúria e na miséria, sem que
tivessem direito à terra, moradia, escola, hospitais, assistência social... Tiveram
como pagamento, ou melhor, como troco, como esmola, somente a discriminação.
Substituíram a senzala por abrigos e casebres em lugares afastados.
Em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa assina um despacho determinando
que todos os documentos referentes à escravidão fossem reunidos e queimados.
Seis dias depois, o Congresso Nacional aprova o seu despacho. Há uma versão que
justifica o ato pela tentativa de apagar de nossa memória toda lembrança da
injustiça que houve por trás da escravidão no Brasil. Improvável essa intenção. Na
verdade, ela contribuiu em muito para que a dívida com os negros brasileiros esteja
pendente até os dias de hoje.
Por conseguinte, historicamente, a questão da desigualdade racial,
a
discriminação e a exploração do negro no Brasil pode ser facilmente constatada.
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Basta observarmos, como exemplos, as mulheres negras que foram durante muito
tempo utilizadas como objeto de iniciação sexual de adolescentes brancos e como
objeto de satisfação de seus senhores. Também a utilização do “mulato” no interior
da casa grande aconteceu devido à escassez da mão-de-obra branca e introduziu,
dessa forma, a falsa idéia de democracia racial brasileira. À pele menos “preta”,
menos negra do mulato vai ser associada à idéia de evolução, de mobilidade social.
Até mesmo o nome “mulato” denota o grande preconceito, pois, como podemos
observar (em Houaiss:2001, p. 1975) o termo tanto pode ser usado para designar
“jumentos, mulos” como para os “filhos de brancos com negros”.
A maior perversidade, porém, está na ideologia que perpassa as relações
interraciais no Brasil: o branqueamento da raça. A sociedade pretende que o negro
se torne branco e destrua, assim, a sua identidade.
Mesmo com a Lei Áurea, segundo a qual o negro alcançaria igualdade
jurídica com a abolição, a desigualdade social e econômica entre brancos e nãobrancos no Brasil continuou a existir, mas não de forma ostensiva ou contundente.
Isso certamente contribui até hoje para a idéia de que não há racismo no Brasil. A
diferença existente relega ao negro a posição de submissão. Não outra.
A abolição dos escravos no Brasil se dá de forma extremamente perversa e
desumana. Os negros, enquanto eram escravos, “possuíam” abrigo e o mínimo
para a subsistência. Quando libertos, deixaram de ter como viver. A Lei Áurea não
levou em consideração a necessidade de proporcionar-lhes, minimamente que
fosse, meios para subsistência como posse de terra, por exemplo. Sem dúvida, foi
esse o primeiro passo para a discriminação, para a marginalização, para o
desfavorecimento e a explicitação do preconceito. Junte-se a isso a chegada dos
imigrantes europeus para substituí-los em seu trabalho, em suas profissões, em sua
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ocupação. Os serviços que não exigiam grandes conhecimentos eram realizados
pelos negros que, obviamente, eram muito mal remunerados.
Sem casa e sem trabalho, os negros perambulavam pelas cidades e
ajunta vam-se em habitações sem a menor infra-estrutura, dando origem aos
primeiros aglomerados de pobres, aos cortiços e às favelas.
Campos nos diz que
“Historicamente, sobretudo na Cidade do Rio de Janeiro,
as favelas, assim como os cortiços, surgiram no cenário
urbano carioca para suprir o hiato formado pelo défict
habitacional, abrigando, inicialmente, em sua grande
maioria, uma massa de pobres que procuravam habitar
próximo aos locais onde era oferecido trabalho,
principalmente para aqueles que não detinham
qualificação profissional.” (CAMPOS, 2005, p.21)
Ele aponta para o fato de que os negros (escravos ou alforriados) não se
enquadravam nos ideais monarquistas – e posteriormente não se enquadraram nos
republicanos também – e, por isso, foram excluídos de qualquer prática política,
social ou econômica daquele momento. Dessa forma, eram considerados por aquela
sociedade como “vagabundos” ou “vadios”, expressões que trazem, em sua raiz, o
preconceito racial (o que até os dias de hoje, infelizmente, parece não ser diferente).
Antes do surgimento das favelas e dos cortiços, porém, havia os Quilombos.
Existiam duas maneiras de olhar o Quilombo: para os grupos dominantes,
representavam uma ameaça à ordem estabelecida; para os quilombolas,
significavam somente a única possibilidade de resistência à tirania do “senhoriato” e
do Estado Colonial. É possível que o espaço quilombola tenha sido justamente o
que foi transmutado em espaço favelado. Interessante observarmos que as
pesquisas (vide CAMPOS, 2003: p.35) falam da existência de Quilombos no final do
século XVIII e início do XIX em determinados lugares em cujas proximidades
existem grandes favelas, morros ou conjunto residenciais até hoje, como a Lagoa
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Rodrigo de Freitas, que pode ter dado origem à Cruzada São Sebastião; Floresta da
Tijuca, Morro do Boréu; Irajá, Morro do Juramento ; Floresta de Andaraí, Morro do
Andaraí. Os dois espaços (quilombo e favela) guardam alguns pontos em comum.
O principal deles talvez seja a estigmatização da estrutura espacial e das pessoas
que ali residem.
Esse espaço, habitado por aqueles que tinham sido excluídos de qualquer
direito à cidadania e à civilidade, passa a ser circundado pelo sentimento de medo,
de desconfiança que emana do restante da sociedade. Em função disso, a vítima é
transformada em culpada, através de todo um processo de marginalização
econômica, cultural e social.
Campos nos informa que
“Como no final do século XX, na fase de transição entre o governo imperial e a
República, a violência por parte do Estado era comum contra os grupos
desvalidos da sociedade, o negro era tradicionalmente acusado antes mesmo de
ter a culpa apurada, independentemente de sua condição social: liberto ou
escravo. Na fase republicana, todos deveriam ser tratados igualmente perante a
lei, mas, diante da polícia, os negros, por serem negros, tinham menos direitos,
inclusive a inviolabilidade do lar.” (Campos, 2005, p.43)
Ou seja: os fatos não são muito diferentes do que ainda acontecem nas
favelas nos dias de hoje.
Ainda segundo CAMPOS (2005: 55-62), há três versões que explicam o
surgimento das favelas:
A primeira delas fala da crise habitacional vivida pela cidade do Rio de
Janeiro em 1870. A população pobre, eminentemente negra, procurava os cortiços e
as casas de cômodos para permanecer próxima ao local onde havia empregos. O
governo imperial havia prometido alforriar os escravos que se dispusessem a
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combater na Guerra do Paraguai (1865-1870). Embora os senhores de escravos se
opusessem a isso, houve sucesso e muitos negros foram libertos.
Não havia moradias feitas com tijolos e alvenaria suficientes para abrigar
aquela população. As pessoas são, então, obrigadas a habitar as favelas e os
cortiços. Dos dois, a pior é a favela cujas “residências” eram barracos construídos
em terrenos de morros íngremes. É forçoso observar que esse tipo de aglomeração
começa a se dar mesmo antes da Abolição dos escravos.
A segunda versão fala da construção do primeiro trecho da Estrada de Ferro
D. Pedro II, que fora iniciada em 1858 e permitiu, a partir de 1861, a ocupação das
freguesias suburbanas que ela atravessava. Isso levou à proliferação de
loteamentos nas encostas dos morros no final do século XIX. Ainda segundo essa
versão, em 1897 foi dada autorização para que os soldados que retornassem da
campanha de Canudos ocupassem provisoriamente os morros da Providência e de
Santo Antonio. O que seria provisório, porém, revelou-se como a solução ideal para
o problema de habitação popular na cidade e esses morros deixaram de ser
moradias provisórias e se tornaram permanentes.
A terceira versão fala da ação do Estado, em meados do século XX, que tinha
como objetivo o descongestionamento da área central que se deu pela destruição
das moradias ali existentes. Os cortiços, principalmente, foram postos abaixo a partir
da ideologia higienista, que pregava que os hábitos das moradias dos pobres, por
serem focos de propagação de epidemias e de vícios de todos os tipos, eram
nocivos à sociedade.
A estigmatização, que até então era imputada a pessoas, passa a se estender
ao espaço, tornando-se generalizada em relação
aos seres que ocupam esse
espaço estigmatizado. O favelado passa a ser visto, em sua totalidade, como o
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diferente, como o Outro que ocupa, de uma diferente forma, o espaço urbano. Não
há dúvidas de que a pele escura é um dos elementos mais comuns que por ali
circula, mas a diferença étnica se faz notar: há brancos, negros, nordestinos que
são, antes de qualquer outra rotulação, pobres e todos classificados pela opinião
pública com um rótulo maior: perigosos. O negro, então, já era visto como elemento
socialmente perigoso, o fave lado passa a ser, independente de sua origem étnica,
como elemento perigoso, como nos mostra Campos. Logo, podemos concluir que o
indivíduo que fosse ao mesmo tempo negro e favelado podia ser visto como
duplamente perigoso, uma verdadeira ameaça social.
Portanto, embora estejamos há mais de cem anos da Lei Áurea, continuamos,
ainda, vivendo sob uma lógica escravocrata, que , infelizmente, somente há pouco
tempo, desde o início da década de 90, talvez, sob a pena da lei, demons tra-se uma
tentativa de dissolvê-la, o que pode ser conferido em vasta literatura sobre direitos
de negros e conscientização a respeito do que seja de fato racismo4. Surpreendenos também o fato de até hoje serem as favelas habitadas, em sua maior parte , por
pessoas de pele negra ou que descendam de negros. Como tratamos de um
documentário que aborda uma cultura nascida, produzida, expandida pela favela,
acreditamos que esse capítulo, com o título que lhe aferimos, fez-se necessário.
4
Isso pode ser conferido no texto da Lei Caó (7.716/89), do deputado Luiz Alberto Caó ou em textos como os
veiculados pelo boletim Políticas da Cor – SOS Racismo
(http://www.politicasdacor.net/boletim_ppcor/boletim_anteriores/boletim4/documentos/PRATICA_DO_RACISMO.
pdf ).
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V) DISCURSO DE MACHO. DISCURSO DE FÊMEA. FEMINISMO NO FUNK?
“Toda a educação das mulheres deve ser
relacionada ao homem. Agradá-los, ser-lhes útil,
fazer-se amada e honrada por eles, educá-los
quando
jovens, cuidá-los quando adultos,
aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida útil
e agradável – são esses os deveres das
mulheres em todos os tempos e o que lhe deve
ser ensinado desde a infância” (Jean Jacques
Rousseau – apud ALVES E PITANGUY, 2003,
p.35)
“Sou feia mas to na moda,tô podendo pagar
motel pros homens isso é que mais importante.”
(Tati Quebra Barraco – Musa do funk carioca)
“Me chama de cachorra que eu faço au au / me chama de gatinha que eu faço
miau”, esse é o refrão de um dos funks cantados por Tati Quebra Barraco, uma das
pessoas entrevistadas no documentário que analisamos. Discursos como esse e
como os que são veiculados pelo documentário podem ser classificados como
feministas? Ou são discursos machistas proferidos por mulheres? Poderíamos falar
em uma dicção feminista a partir de um discurso machista?
Parece-nos que nossas indagações nos levam a caminhos que desembocam
em encruzilhadas. Quando tentamos algumas respostas, simples à primeira vista,
essas suscitam novos e outros questionamentos.
A princípio, NERI (2005, p.140) diz ser o termo feminista “vago e impreciso
que amalgama, e não revela, a diversidade dos discursos feministas ao longo de sua
história”. Como apontamos em nossas hipóteses, acreditamos, junto com parte da
mídia, haver, sim, no documentário sob crivo,
um discurso que pode ser
considerado femi nista. Em busca de uma reflexão mais consistente em torno desse
termo vago e impreciso, como dele nos fala Neri, resolvemos recorrer a algumas
outras análises que serão expostas a seguir.
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Na mesma linha de Neri (2005), Alves e Pintanguy 2003, no primeiro
parágrafo da introdução de seu livro “O que é o feminismo” já dizem que
“É difícil estabelecer uma definição precisa do que seja
feminismo, pois este termo traduz todo um processo que
tem raízes no passado, que se constrói no cotidiano, e
que não tem um ponto determinado de chegada.”
Fora isso, há, ainda, uma série de reflexões e de questionamentos a respeito
de uma
falsa assimetria de gênero em nossa sociedade. A representação
discursiva tem sido fundamental para a compreensão e o desmascaramento dessa
falsa impressão. Podemos dizer, então, que essas reflexões/questionamentos em
torno da problemática do gênero apresentam como textos inaugurais livros como
“Um teto todo seu”, de Virgínia Woolf (1929) ou “O segundo sexo”, de Simone de
Beauvoir (1947), como também não se pode deixar de citar “A política sexual” de
Kate Millet (1970). Essas obras têm sido vistas como fundadoras de um movimento
de mulheres que se instaurou nos países ocidentais.
Como nos propomos a analisar o discurso, e focalizamos nossos olhar em um
documentário no qual a mulher tem papel fundamental, não podemos deixar de
refletir, minimamente que seja, a respeito de feminismo. É necessário que fique
claro, no entanto, que nossa pesquisa não tem como objetivo analisar o que foi
histórica, social, política ou psicologicamente o movimento feminista no Brasil ou no
mundo. Nem teríamos tamanha pretensão de assim o fazer diante da exigüidade do
tempo e da pontualidade da pesquisa. Pretendemos, a partir de alguns textos, que
nossa reflexão nos possibilite responder, de forma academicamente razoável, se o
que o documentário veicula pode (ou não pode) ser enquadrado no que é conhecido
como “discurso feminista ”. Se é que de fato este discurso exista, com marcas
próprias.
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Há, por todo o mundo, movimentos contrários às opressões. Nessa linha,
surgiram movimentos étnicos, movimentos gays e movimentos feministas, por
exemplo. Cada um, com sua especificidade, busca sobrelevar qualquer tipo de
tirania exercida sobre o viés da desigualdade.
Movimentos como o dos gays e das feministas têm por base que a
sexualidade humana também é política por, estranhamente, envolver, em seu cerne,
relações de poder (sempre houve, e ainda o há, quem pense ter o poder de julgar o
outro e de dizer a ele o que é correto e o que é incorreto fazer com o seu corpo, de
definir até mesmo a(s) forma(s) permitida(s) de obtenção de prazer). Esses
movimentos, porém, não possuem uma única forma de se organizar. Isso varia de
acordo com o local em que sua população vive ou com o momento histórico em
que está inserida, por exemplo.
Acreditamos que os focos desses movimentos, sejam eles de origem étnica
ou sexual, ou de que tipo forem, residirão, se não na totalidade, em sua maioria,
nas questões da anulação das diferenças, na necessidade do fazer igual, de ser
respeitado de forma igual. Se é permitido a um, ao outro também deve ser.
Retratando especificamente o feminismo, que é o que de fato nos interessa
no momento, pensamos que o movimento teve – e tem – como objetivo reinventar
relações interpessoais em cujas bases o feminino não seja jamais desvalorizado,
sob nenhum aspecto. Nas novas bases dessa relação, não há modelos
hierarquizados através dos quais um gênero, um sexo tenha maior poder social
(político, sexual, etc.) do que o outro.
Pode-se dizer que uma das indagações que acompanha todo e qualquer
movimento feminista é “quem deu direito soberano ao homem de oprimir o sexo
feminino?”. Essa opressão tem abarcado, historicamente, todos os setores da vida,
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desde o social ao político, do religioso ao sexual. Ainda é facultado ao homem o
direito de expressar sua sexualidade da forma que melhor lhe convier. Se um
homem declara que em um ano teve relação sexual com mil mulheres, ele é
socialmente valorizado, merece respeito, é alvo de inveja de muitos outros e, por
que não dizer, alvo do desejo de muitas que não fizeram parte de sua “lista”. Em
contrapartida, se uma mulher ousa dizer que em um ano teve relação sexual com
dez diferentes homens, isso é o suficiente para ser rotulada como devassa e imoral,
no mínimo.
Ainda, segundo Alves e Pitanguy (2003), a indagação supracitada a respeito
do direito soberano de oprimir o sexo feminino dado ao homem consta de um texto
de 1791, escrito por Olympe de Gouges e intitulado “Os direitos da mulher e da
cidadã”. O discurso, veiculado pelo texto , tinha caráter extremamente revolucionário
para a sua época, embora fosse totalmente fundamentado nos princípios do
liberalismo vigente. Sua ousadia consistia apenas em pleitear que o “direito natural”
também fosse estendido às mulheres. Essa atitude teve como recompensa a
guilhotina, à qual Olympe foi submetida no dia 3 de novembro de 1793. Esse era o
prêmio dado àquelas que tentavam questionar o poderio masculino.
Impressionante é observarmos que até hoje, ano de 2007, terceiro milênio da
era cristã, os meios de comunicação fazem questão de afirmar a velha imagem da
“rainha do lar”. Ora, é interessante que a mulher também ocupe posições que em
outras épocas foram exclusivas de homens. Não é incorreto que, em alguns casos,
tenha remuneração superior à grande maioria de homens, mas o papel de dona-decasa, de esposa e de mãe, com exclusividade, permanece mítico. O direito de
igualdade no campo da sexualidade ainda lhe é negado. O direito de expressar os
seus desejos e de falar sobre as formas como sente prazer ainda são vistos como
40
ameaça à honra. Não há mais dúvidas de que o discurso é um importante local para
que se conteste práticas ditas como incontestáveis. Verdades vistas como absolutas
podem ser derrubadas por ele e através dele. A maneira como nos imaginamos e
nos representamos tem forte teor político e o viés do discurso é um dos caminhos
pelos quais essa imagem pode ser contestada, recriada e questionada.
Nessa perspectiva , Funck e Widholzer nos falam sobre o fato de as teorias
críticas feministas de hoje partirem do pressuposto de
“que as convenções lingüísticas estão intimamente imbricadas com as
hierarquias estabelecidas pelo sistema social de sexo/gênero na cultura
ocidental. Convenções discursivas, mesmo nas suas mais ‘criativas’
instâncias, tendem a traduzir e perpetuar relações naturalizadas pelo
senso comum.”(FUNCK E WIDHOLZER, 2005, p. 11)
Se essas relações estão naturalizadas pelo senso comum, corremos o risco
de uma análise defeituosa por carecermos de distanciamento histórico necessário à
analise. Sendo assim, correremos o risco de julgar, preconceituosamente, qualquer
postura que se distancie do referido sentido.
Como já apontado por Simone de Beauvoir (apud ALVES E PITANGUY,
2003:52), o homem se auto-afirma pela identificação com o próprio sexo, que o
transforma em sujeito. O sexo da mulher é o objeto a que aquele sujeito se opõe
para ser visto como tal. Se ele (o homem) necessita dessa oposição para se afirmar
como sujeito, a tentativa de igualdade só pode lhe soar como ameaça.
Há um movimento feminista hoje que rechaça qualquer tipo de ideologia que
tente legitimar a diferenciação de papéis e reivindica a igualdade em todos os níveis.
Somente dessa forma seria possível pôr fim à relação de poder entre os sexos, pois
está cada vez mais claro que a diferenciação de papéis não se baseia, de forma
alguma, em diferenças biológicas, mas sim em construções sociais oriundas de uma
cultura extrema e exclusivamente machista, de uma ordem simbólica patriarcal que
41
busca
valorizar o falo e desvalorizar a sua ausência. Da mesma forma como
aprendemos culturalmente a ser homens e mulheres como os estereótipos nos
impõem que sejamos, teremos de passar por uma reeducação e por um novo
processo de socialização que não mais leve em conta esse tipo de condicionamento.
Não podemos perder de vista, porém, que o discurso que sempre afirmou a
naturalização da desigualdade está de tal forma internalizado na maioria de nós que
não será fácil romper com a imagem da desvalorização feminina. A própria mulher
ainda aceita o seu papel de “ser a menos”, de subordinação e muitas ainda são
capazes de se olharem somente por intermédio do olhar da cultura que as escraviza
e as discrimina.
Se pensarmos em questões ligadas à sexualidade, a mulher ainda a tem
controlada por diversas proibições e tabus em torno do seu próprio corpo, cujo
modelo a seguir está longe de ser o da liberdade, mas, ao contrário, o da contenção.
Como já sugerido anteriormente, o julgamento dado à mulher ainda hoje é feito em
nome da “honra” enquanto o julgamento dado ao homem é em nome de seu
desempenho. Não é, ainda, facultado à mulher o direito ao prazer sexual sem que
corra o risco de seu desejo e satisfação física serem considerados como perverso.
Embora a crise da hegemonia do masculino tenha sido instaurada pela
modernidade, há muito para se fazer pelo feminino – ainda considerado por muitos
como o sexo inferior. A mulher não pode, ainda, falar abertamente de seus desejos. 5
Talvez não tenhamos conseguido nos libertar das sentenças materializadas por
Freud e Lacan que, conforme é apontado por NERI (2005, p.138), respectivamente,
determinavam: “Tornar-se mulher, sendo mãe” e “ A mulher só existe como mãe”.
Como mãe possui a ura mítica, não pode ter sexo, não pode ter desejos.
5
Falar de desejos seria algo exclusivo aos “machos”.
42
Partindo-se do princípio de que liberdade é uma prática que necessita ser
exercida, é possível se falar em liberdade sexual sem que se pense em
licenciosidade? Talvez este seja se não o maior, mas um dos grandes problemas. O
homem, desde sempre, exerceu sua liberdade. A mulher tem falado e discutido
muito sobre ela. Lentamente aprende a exercê-la.
Neri cita L. A. Salomé, para quem
“ainda que a luta pela emancipação das mulheres possa se tornar uma
triste corrida para imitar os homens, que as afastaria de encontrar uma
especificidade do feminino ainda a ser construído pela mulher, ela
possibilita a evasão da mulher da estreiteza do círculo
familiar.”(SALOMÉ, apud NERI, 2005, p. 141)
É forçoso à mulher libertar-se da estreiteza que seu papel de mãe lhe
impingiu. Talvez isso seja a marca do feminino a se construir. No documentário,
podemos esbarrar com essa dúvida, apontada no início desse capítulo: será isso um
discurso feminista ou somente uma dicção feminina a partir de um discurso
machista?
“A esse respeito só se pode, portanto, pregar a liberdade, e ainda a liberdade,
e é preciso infringir todas as barreiras, porque é mais sensato confiar nas
vozes do desejo, mesmo quando se exprimem por atalhos, do que confiar em
teorias preconcebidas. Em todos os casos em que uma evolução pode conferir
a um ser esplendor e alegria, por mais bizarro que possa parecer seu
ziguezague, nem por isso deixará de estar no bom caminho, e terá como
objetivo conduzir a maturidade à própria mulher, ou seja, a sua mais secreta
capacidade de viver.” (L. A. Salomé, apud NERI, 2005, p.142)
Já é garantido à mulher de nossos tempos o direito ao voto, como ao trabalho
e ao estudo. Falta-lhe conquistar a maternidade livre, o direito de dispor de seu
corpo e de sua sexualidade. Este último talvez esteja sendo pleiteado nas letras dos
funks cantados hoje por mulheres. Dizer o que se deseja no ato sexual pode parecer
agressivo para muitos, talvez até o seja. Letras como as de “Abre as pernas...”,
43
cantada no filme 6, devem chocar a muitas pessoas.
Discordar, porém, de que a
verbalização daquilo que até então fora proibido seja um avanço no campo do
discurso, talvez seja impossível. O feminismo aí apresentado é o que rompe a
barreira da sexualidade que fora reduzida à função biológica de perpetuação da
espécie e que estivera presa à determinação psicanalítica outrora citada: ser mulher
= ser mãe.
Se pensarmos na prática do aborto (guardados todos os juízos de valores que
a mesma possa suscitar), vemos uma prática especificamente feminina no que
concerne ao corpo e ao sexo, utilizados exclusivamente para o prazer sem intenção
de procriar. Por que a prática do aborto é facilmente associada ao movimento
feminista e o desejo de mostrar seu próprio corpo ou verbalização de desejos
sexuais podem não ser?
É óbvio que o discurso de igualdade, como qualquer discurso, pode
apresentar eventuais equívocos, mas não podemos fechar os olhos para que o fato
de haver esse discurso, equivocado ou não, aponta para a necessidade de
questionamentos dos modelos de diferença / igualdade entre os sexos.
Como esclarece Kehl (1996, p.21) poucos conceitos mudaram, apesar de
todos os avanços. As mulheres e os homens continuam procurando a psicanálise
para falar da sexualidade. O que se diz nas sessões é que é diferente : as mulheres
se perguntam o que devem fazer para serem amadas e desejadas e os homens se
perguntam a respeito do que devem fazer para serem capazes de amar aquela que
finalmente lhes revelou o seu desejo. Há uma grande confusão diante da inversão,
pois era próprio do homem desejar e da mulher fazer-se amar. Narciso está ferido.
6
“Então de quatro, de lado, na tcheca e na boquinha / Depois vem pra favela, toda fresquinha e assadinha...”
44
As mulheres não sabem mais se fazer amar, os homens já não amam mais como
antigamente.
Estamos vivendo novos tempos. É natural que esses novos tempos sejam
construídos por sujeitos novos. Novos homens, novas mulheres. A psicanálise,
porém, já advertira há algum tempo que a barreira removida não nos mostra o
paraíso necessariamente. Na verdade, o que ocorre com freqüência é que a cada
véu que se levanta deparamos com um campo minado e totalmente desconhecido.
Parece-nos claro que os significados de masculino e
de feminino foram
deslocados, a tal ponto de nos sentirmos, quase todos, sem saber como agir diante
do “objeto” de desejo. Há menos de duas décadas a maioria das mulheres aceitava
ainda as investidas masculinas como elogio aos seus atributos ou como um “mal
necessário”. Hoje, independente da classe social, cultural ou econômica da mulher,
tudo está diferente. Elas têm a sua voz, ou procuram tê -la. Encontram respaldo para
isso nos livros, na TV, na propaganda e também nas músicas que cantam e que
ouvem cantar. A fala de Raquel, extraída do documentário, pode ser um exemplo
disso:
Raquel
-- Pras mulheres e pros homens também, né, porque, no caso dos homens,
chega e fala para as mulé, chega e fala “Ah, vamus ali”. As mulé antigamente,
antigamente antes de surgir o funk, ia numa boa, aceitava, vamos no meu
prédio, vai e assim tava indo, agora surgino o funk, não. Especialmente a
música da Tati, que está dizendo muita coisa, alertando as mulheres.
Possivelmente, presenciamos o nascer de um novo discurso masculino. É
comum ouvirmos frases do tipo: “O que elas querem de nós?”. Se a mulher age
como homem, assume o discurso do homem, dizem o que somente os homens
podiam dizer, qual é o papel do homem? Isso os feminiliza? Os territórios tornaramse próximos demais. As identidades estão ameaçadas.
45
Na Antiguidade, as mulheres que ousaram essa aproximação (entre
aparências, ações, atributos) foram designadas possuídas pelos demônios, bruxas,
feiticeiras, como atestam os estudos históricos. E as de hoje , que causam terror e
fascínio àquele que se vê diante daquela que tem a pretensão de se masculinizar,
sem deixar de ser mulher? Muitas daquelas tiveram como destino a fogueira ou a
guilhotina. O que nosso tempo reserva às ousadas de hoje?
Carecemos, é claro,
de distanciamento temporal para responder a essa
questão, como já dissemos anteriormente. Mas parece-nos não haver dúvidas de
que o discurso das mulheres funkeiras, veiculado no documentário, pode ser
considerado, sim, principalmente por sua ousadia em se expressar como SER, um
discurso feminista. Ainda que em “ziguezague” (conforme citação anterior - NERI,
2005, p.142),
ainda que repleto de equívocos, mas clara e sonoramente nos parece
poder ouvir uma voz feminina, não uma dicção, que clama por igualdade, que clama
pela liberdade de usar o seu corpo, o seu sexo, o seu desejo da forma como
considerar apropriada, sem se importar com o juízo que farão de si.
Como exemplos desse discurso que se constrói “ziguezagueante” e da nãovalorização do juízo que os outros farão daquilo que cantam ou das mensagens que
veiculam , podemos refletir sobre o exemplo de fala transcrito abaixo e sobre o funk
cantado por Tati Quebra-barraco, a saber:
Andrea
-- Ah, muitas mulheres eram muito acanhadas em fazer as coisas, entendeu,
então o que aconteceu, a música incentivou as mulheres a botá pra fora como a
Tati canta “bota na boca, bota na cara”, então hoje é mais aberto.
46
SeMarcar
Tati Quebra Barraco
se marcar eu beijo
mesmo, hein, Jesus
E se marcar eu beijo
mesmo
Não deu conta eu
beijo mesmo, hein
Tu tá marcando eu
beijo mesmo, hein
Vou te dar um papo
reto
É melhor ficar ligada
Não deu conta do
marido
Vai rolar a cachorrada
[...]
Eu sou a Quebra
Barraco
Vou falar bem de
mansinho
Pra sair com seu
marido
Só se for no
sapatinho
E se marcar nessa
parada
Vai rolar a cachorrada
E se marcar eu beijo
mesmo, hein
E se marcar eu beijo
mesmo, hein
Não deu conta eu
beijo mesmo, hein
Tu tá marcando eu
beijo mesmo, hein
47
VI) OS VÁRIOS OLHARES SOBRE O FUNK: MUDA O ENUNCIADOR, MUDA A
HISTÓRIA.
Fazemos questão de deixar claro que nossa visão sobre o discurso veiculado
pelo documentário não se trata de um olhar ingênuo, apaixonado, idealista ou
idealizador. Sabemos que a produção de um texto ou de um discurso (de qualquer
texto ou de qualquer discurso), privilegia a visão pessoal de quem o produz. É óbvio
que quando queremos convencer alguém a respeito de um assunto qualquer,
selecionamos os fatos, os ângulos, os pontos-de-vista que nos interessam
particularmente e, lógico, omitimos tudo aquilo que pode ferir nossos interesses ou
fugir deles.
Há, como é apontado no próprio documentário, funks e funks. O Rap da
Felicidade, de MC Cidinho e MC Doca (Eu só quero é ser feliz / andar
tranqüilamente na favela onde nasci, é... / e poder me orgulhar/ e ter a consciência
que o pobre tem seu lugar...), por exemplo, é uma das produções mais populares
que se originou na favela e que foi (e é) cantada por milhares de brasileiros. Pode
ser considerado como aquele que “deu certo ” e que, pelo conteúdo que veicula, foi
socialmente aceito, desceu o morro e se tornou campeão de audiência em diversas
rádios durante muito tempo.
Sabemos, porém, que também há outros, muitos dos quais sequer tocam em
rádios, que são os chamados “Proibidões”, como é mencionado no próprio
documentário. Esses fazem apologia às drogas, ao crime organizado, à violência, ao
“mal pelo mal”. Há quem os justifique tendo como base a violência vivida pelos
habitantes das favelas. No dia 19 de fevereiro de 2006, como mostra matéria em
anexo, o Fantástico, programa jornalístico da TV Globo, veiculou uma reportagem
48
com um novo tipo de “Proibidão”, que é uma mimetização do funk dos traficantes,
que enaltece, porém, a ação da polícia contra os moradores das comunidades. Uma
das letras, para citar um exemplo, fala do “Caveirão”, como é conhecido o carro
blindado que é usado pela polícia durante suas operações: “O terror do Rio é o
caveirão / entra em favela, invade o morrão / se você tem amor à vida e canta /
vamos te meter bala e não é perdida”
A louvação de comportamentos como esses, obviamente, só faz acirrar ainda
mais os ânimos contrários à produção funk. Não podemos, contudo, em função
desse tipo de produção, achar que todo funkeiro está envolvido com o crime, com a
marginalidade, com o mal. Ainda que ele o estivesse, nosso trabalho não tem como
objetivo esse tipo de pesquisa ou análise. Se há envolvimento com drogas ou com
crimes não é isso que interessa à nossa pesquisa, mas sim, e exclusivamente, o
discurso veiculado pelo documentário e o que consideramos estar estritamente
ligado a ele, como, por exemplo, as letras das músicas que são citadas ou cantadas.
Também a discussão ou a análise da vida particular dos personagens que
compõem o filme daria margem a um outro trabalho, talvez mais próximo à
Sociologia, à Antropologia ou à Psicologia. Ademais, com o objetivo de que
reflitamos, por mais que saibamos e tenhamos consciência de que o consumo de
drogas classificadas como não-lícitas em nosso país constitua crime, é do
conhecimento de muitos, como mostram alguns textos do anexo, que vários de
nossos grandes personagens ligados ao mundo das artes, da música, da moda já
tiveram seus nomes envolvidos ao consumo delas. Vários
de nossos músicos,
como Renato Russo, Cazuza, Rita Lee, Os Novos Baianos, assumiram ter usado
drogas. Elis Regina, uma de nossas maiores intérpretes de todos os tempos, morreu
de
overdose,
segundo
foi
veiculado
pela
imprensa
nacional
(vide:
49
http://veja.abril.com.br/idade/estacao/elis_regina/reportagem.html# ).
Os
Novos
Baianos produziram até mesmo uma música cujo título é uma paródia da Bíblia, “O
mal é o que sai da boca do homem”, que foi vista como uma explícita apologia à
maconha, pois sua letra dizia “Você pode fumar baseado, baseado em que você
pode fazer quase tudo”.
Diante disso, algumas perguntas não se calam: Por que em eventos como o
“Rock In Rio” milhares de pessoas estão juntas usando drogas e fazendo sexo e a
sociedade parece não agir e não se manifestar de forma tão veemente como o faz
em relação aos bailes funks? Por que a imagem do funkeiro/funkeira está sempre
veiculada ao que é marginal, ao que é proibido, ao que é feio? Por que, diante do
funkeiro, isso se torna tão relevante?
Poder-se-ia apresentar como resposta o fato de o Rock in Rio ter sido um
evento circunstancial e o os bailes funks acontecerem semanalmente. Esse tipo de
resposta, no entanto, não nos satisfaz, principalmente se pensarmos nas raves, que
são eventos de dimensões muito maiores do que os bailes funks, que atraem jovens
até mesmo de outros estados e que são espaços onde, sabidamente, ocorre tráfico
dos mais variados tipos de drogas e muito sexo.
A resposta, talvez, ou algumas das respostas, venham à tona no desenvolverse das reflexões de nosso trabalho.
Sabemos, no entanto, que as músicas/composições/letras de Tati QuebraBarraco e de Deize Tigrona (da Injeção) veiculam conteúdos e são compostas por
um léxico capazes de chocar/agredir/assustar grande parte da população, mas,
como estudiosos de linguagem, temos de nos despir de nossos preconceitos e
partir do princípio de que não há palavras feias,
e/ou palavras agressivas. Há
emoção, há o contexto, há a situação. Como já dissemos anteriormente, são essas
50
variantes que determinam o que é “feio” ou o que é “bonito”. São elas que
estabelecem o que é imoral, o que é amoral, o que é moral, o que é permitido, o que
é aceito e o que é não-aceito. Todavia, os conceitos de moral, imoral e amoral são
eivados de uma subjetividade inerente ao tempo histórico, à cultura, à localidade.
Em determinado momento do documentário, por exemplo, Mr. Catra questiona o que
é imoral (na verdade, o que é “sacanagem”), mencionando os conteúdos veiculados
pela Rede Globo nas novelas das 8 horas da noite e as sonegações e roubos do
governo.
O livro “Preconceito Lingüístico, o que é e como se faz” de Marcos Bagno
(SP: Loyola, 2000) fala, com clareza e objetividade, sobre questões lingüísticas e/ou
gramaticais que foram consideradas inaceitáveis num determinado momento e
perfeitamente aceitá veis e cabíveis em outro. Basta retrocedermos um século de
história para entendermos o quanto a mudança de costumes galopa em velocidades
muitas vezes surpreendentes.
Até mesmo a distinção entre o que é pornográfico e o que é erótico é bastante
delicada. No livro “O que é pornografia”, Moraes e Lapeiz (1985) tentam distinguir o
pornográfico do erótico. Afirmam o seguinte:
“A palavra pornografia provém do grego porno-graphos, que
significa literalmente "escritos sobre prostitutas". Assim, em seu sentido
original a palavra refere-se à descrição da vida, dos costumes e dos
hábitos das prostitutas e de seus clientes. Talvez por isso tenha chegado
a significar, como a definem os dicionários atuais, a expressão ou
sugestão de temas obscenos na arte.
Já a palavra erotismo surgiu no século XIX, a partir do adjetivo
erótico, este derivado do grego Eros, Deus do desejo sexual no sentido
mais amplo. Amor enfermo, paixão sexual insistente, busca excessiva da
sensualidade são algumas das definições que os dicionários correntes
dão do erotismo.”( Moraes e Lapeiz, 1985, p.7)
51
Talvez a citação de Alain Robe (apud MORAES E LAPEIZ, 1985, p.8),
resolvesse por si algumas dessas questões: Pornografia é o erotismo dos outros.
Chama-nos a atenção, também, o fato de o fenômeno funk ter descido o
morro e de haver cada vez um número maior de pessoas de todas as idades (não só
adolescentes, como muitos pensam) interessado tanto em seu ritmo como em suas
letras. Para que pudéssemos ter uma visão a respeito desse fenômeno, no dia 20 de
fevereiro de 2006, acessamos o Orkut (ferramenta ligada ao "império" Google, em
www.orkut.com, site de relacionamentos que permite que o internauta tenha sempre,
a um clique do mouse, uma lista de amigos, simpatizantes e comunidades com
perfis semelhantes) e procuramos por comunidades relacionadas a Tati QuebraBarraco. Não nos surpreendeu o fato de o site ter encontrado, em menos de dois
segundos, nada menos que 382 comunidades ligadas a esse nome. Das primeiras
duzentas que analisamos, 44 expressavam repúdio, ódio, nojo ou aversão, mas 156
declaravam amor, admiração, respeito. Das que repudiavam, a que encontramos
com o maior número de membros possuía 75.000 e era uma raridade, já que a
grande maioria não chega a ter 40 membros. Das que a enaltecem, encontramos
uma com 100.355 membros (http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=386029).
É óbvio que , no nível contextual, existe algo que ainda não conseguimos alcançar
por detrás desses fatos. E acreditamos que Denise Garcia, ao produzir o
documentário, teve essa percepção.
Surpreende-nos, também, o fato de a “Revista Marie Claire”, destinada às
elites femininas e cujo bordão é “Chique é ser inteligente”, na edição número 167,
de 03/02/20057, intitular Tati Quebra-Barraco de “Cinderela do Funk” e o texto de
abertura da matéria dizer o seguinte:
7
Vide: http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML902968-1739-6,00.html
52
“ Fenômeno genuíno da favela, a carioca Tatiana dos Santos Lourenço
circula à vontade pelo mundo das socialites da zona sul. Seu escracho
explícito, já acoplado ao codinome Quebra Barraco (transa, na gíria
funk), arranca aplausos nos bailes de subúrbio e nas cintilantes
passarelas da elite. A princesa Paola de Orleans e Bragança, por
exemplo, delirou na pista durante o seu show, na festa do estilista
Ocimar Versolato, há quatro meses. Para contagiar públicos tão
distintos, Tati abusa das letras apimentadas, que descrevem
preferências sexuais sem pudor.
Como sabemos, o direito ao prazer estava na base das reivindicações dos
movimentos feministas da década de 1970. Provavelmente, Deize da Injeção, Tati
Quebra-Barraco e As Danadinhas não tenham muitos conhecimentos a respeito
disso. No entanto, acreditamos que o funk criado por elas seja um tipo de
atualização daquele outro movimento.
Nosso interesse, neste momento,
como já dissemos, está ligado
exclusivamente ao discurso veiculado no documentário. Embora, ratificamos, não
estejamos alheios aos diversos outros conteúdos veiculados pelo funk, que fogem
totalmente ao nosso interesse, por ora.
53
VII) UMA BREVE HISTÓRIA DO FUNK CARIOCA.
Silvio Essinger, no livro “Batidão – Uma história do funk” (Record:RJ,2005),
conta, detalhadamente, a história do nascimento e da evolução do funk carioca. Sua
narrativa inicia-se em 1960, tempos de bossa nova e samba-jazz, quando ainda nem
se sonhava com o funk.
Pretendemos, utilizando-nos dessa obra, esboçar uma síntese do que foram
os principais acontecimentos para o funk carioca.
Em 1970, nos subúrbios cariocas, a partir da Tijuca, já podiam ser observados
movimentos de uma juventude dita “transviada” ligada aos embalos do rock de Elvis,
Chuck Berry e Little Richard. Em paralelo a
isso, nota-se um esboço de um
movimento black, em que casais negros e mestiços, em sua maioria, amalgamam,
em suas noitadas, o rock e o samba. As bandas “Devaneios”, “Brasil Show” e “Copa
7” – como os conjuntos de Ed Lincoln e Lafayette – eram responsáveis por reunir
aqueles rapazes e moças da periferia, cuja renda mal era suficiente para uma
sobrevivência digna. Os bailes, via de regra, aconteciam no clube Magnatas, no
bairro do Rocha, e em quadras de escolas de samba como Portela e Império
Serrano.
Num período anterior a esse, década de 50, o clube Renascença foi fundado
no Méier e depois transferido para o Andaraí. Tinha, como objetivo, reunir a
comunidade negra para que fosse possível trocar o máximo de informações, buscar
a ascensão no coletivo e, dessa forma, elevar sua auto-estima. Dom Filó 8, conta
que havia uma mobilização da juventude negra em prol de opções de lazer que
tivessem a ver com a realidade deles.
8
Asfilófio de Oliveira Júnior, militar, formado em Engenharia e um dos principais nomes do movimento negro
carioca daquela época, que passou sua adolescência no bairro do Jacaré.
54
Em 1968, havia festas de samba no “Renascença”. Zezé Motta e Antonio
Pompeo, por exemplo, encenaram lá Orfeu do Carnaval ao ar livre. Em 1970, Filó
foi incumbido de organizar bailes dominicais para a garotada negra. Com isso,
percebeu a importância da música para aquele grupo e descobriu que uma
revolução, através da música, era possível. Nessa descoberta ele não estava só. Em
outras partes da cidade começaram a surgir outros arautos da música negra. Dentre
eles estava Newton Duarte, garoto branco, gordo e tímido, pertencente à nata da
Zona Sul carioca que ficou nacionalmente conhecido como Big Boy, um dos
principais lançadores da música de James Brown em nossas rádios.
Como companheiro nas empreitadas dançantes de Big Boy, surgiu o mestiço
Ademir Inácio Lemos, que era dançarino de rock em 1966 no programa Os brotos
comandam , da TV Continental e que se destacou como discotecário em casas da
Zona Sul do Rio de Janeiro, como o “Jirau” e o “Le Bateau”. Ademir usava sua
cabeleira black com o objetivo de se livrar do estereótipo do negro submisso à
cultura branca. Seu estilo foi adotado por muitos jovens da cidade.
Em 1969, surge na cena Oséas Moura dos Santos, um jovem negro, morador
do Morro da Mineira, admirador de Big Boy e de Ademir Lemos. Oséas 9, por
influência do que ouvia com Big Boy10, resolve realizar um baile somente com
música de negros como James Brown, Stevie Wonder e outros mais. O lugar
escolhido para a festa, que pretendia ser 100% negra, foi o “Astoria Futebol Clube”,
no bairro do Catumbi, exatamente onde se localiza hoje o viaduto que passa ao lado
da Praça da Apoteose, santuário do carnaval carioca.
9
Oséas acaba por tirar de Big Boy o seu público, pois embora a música veiculada por esse último fosse
considerada muito boa por seus seguidores, a que Oséas passa a veicular era um soul pesado e marcado,
agradando mais aos que seguiam Big Boy.
10
Em 1977, aos 33 anos de idade, falece Big Boy, vítima de um ataque cardíaco fulminante, conseqüente,
segundo consta, de problemas com peso e com a asma.
55
A diretoria do clube Renascença resolve u visitar o baile organizado pelo
referido Oséas e ficou impressionada ao ver 1500 pessoas dançando alegremente e
o Santos (Oséas) fazendo o som sem nenhuma estrutura: contava com o auxílio de
apenas uma lâmpada. Resolveram promover um baile no mesmo estilo em seu
clube, com o diferencial de trabalharem com questões referentes à consciência
negra.
Foi em 1970 que Sebastião Rodrigues Maia, o Tim Maia, estreou em LP. Tim
viajara para os Estados Unidos em 1959, aprendera inglês e participara do grupo
“R&B The Ideals”. Em 1963, foi deportado depois de passar seis meses preso por
porte de maconha e, ao chegar aqui, transformou-se no soulman brasileiro por
excelência.
Já Antônio Viana Gomes configurou-se como outro grande astro da MPBlack.
Paulista, mudou-se para o Rio de Janeiro ainda muito pequeno. Foi vendedor de
balas, pára-quedista do Exército e cantor de Rock na rádio, quando adotou o nome
artístico de Tony Checker. Durante os anos 60, excursionou com um grupo de dança
pelo exterior e morou em Nova York no auge da explosão do movimento
black
power. Delatado para a imigração por ter se envolvido com traficantes do Harlem,
voltou ao Brasil em 1969 com visual totalmente black. Em 1970, obtém a fama com
a canção “BR3”, campeã do festival da canção realizado no Maracanãzinho. Nesse
momento, já conhecido como “Toni Tornado”, conquistou o direito de gravar um LP
(Toni Tornado – 1971), que se tornou um grande marco inicial do soul brasileiro.
Ainda em 1970, acontece no “Greip da Penha” o “Primeiro Encontro dos
Blacks”. Esse encontro reuniu 15 mil pessoas num lugar onde só caberiam 5 mil.
Uma banda chamada “Watergate Tape” fez parte desse evento e proporcionou o
primeiro encontro com música ao vivo em realizações daquela natureza.
56
Uma equipe chamada “Soul Grand Prix” resolveu entrar no ramo fonográfico
em 1975. O lançamento de seu primeiro disco foi realizado no “Guadalupe Country
Club”. Embora fosse um clube considerado de proporções razoáveis, não comportou
o número de pessoas que lá apareceu11. Entretanto, nem tudo foi agradável naquela
noite, pois, em um determinado momento, a Polícia Militar chegou com mais de 600
homens, na tentativa de pôr fim ao baile. Porém, com sabedoria, O DJ daquela noite
utilizando-se do microfone, elaborou um discurso pelo qual “informava” as pessoas
que a Polícia Militar estava ali para protegê-las, até porque o papel da polícia era
manter a segurança e não incentivar a violência. Indiscutivelmente, essa foi a
primeira demonstração do poder daquele público negro do subúrbio do Rio de
Janeiro, em busca de sua identidade e de diversão.
Ora, é evidente que a demonstração de força de um movimento realizado por
negros pobres, suburbanos, que conseguia reunir 15 mil pessoas em um mesmo
lugar, chamara a atenção – e preocupara – a polícia de um governo ditatorial como
o daquela época. Conta-se, inclusive, que pessoas estranhas começaram a se
infiltrar nos bailes organizados pela “Soul Grand Prix” 12.
Em 1963, nascera aquele cujo nome figuraria dentre os mais notáveis para o
funk carioca e que seria responsável para a exportação de nosso funk para vários
outros países do mundo: Fernando Luís Mattos da Matta. Filho de um policial federal
que vivia sendo transferido de cidade para cidade. Ainda menino, Fernando já
acumulara uma cultura musical bastante superior a dos outros meninos de sua
idade. O rapaz morava com sua avó paterna em Venda das Pedras, bairro de
11
Mesmo o público tendo arrancado o portão do clube, ninguém mais conseguiu entrar. Para se ter uma idéia, a
piscina estava vazia e as pessoas dançavam dentro dela.
12
Filó narra que houve até uma tentativa de forjar um flagrante de tráfico de drogas no escritório da equipe,
localizado na Central do Brasil. A pessoa que tentara forjar o flagrante, porém, fora desmascarada e confessara.
57
Itaboraí,município distante do Rio de Janeiro e, por isso, apelidado por seus amigos
de “Terra de Marlboro”.
Fernando teve sua primeira oportunidade como DJ durante um churrasco no
Clube Bandeirantes, em Amendoeira, um bairro de São Gonçalo. Isso foi o suficiente
para a sua fama como discotecário começar a se espalhar. Em 1980, ele estreou
profissionalmente como DJ na Equipe 2001 e assumiu o nome artístico que o
acompanhou pela vida a fora: “Marlboro”, aquele que vem de longe.
Neste ínterim, um movimento começa a tomar corpo no cenário carioca: o
disco-funk, que surge com o declínio da discotéque. O disco-funk revela um de seus
grandes apótolos: DJ Corello. Corello em 1980 tocava com uma equipe chamada
“Pop Rio” no clube Mackenzie, no Méier. É com ele, Corello, que surgiu o movimento
denominado “Charme”. O “Charme” era uma música mais romântica, mais lenta, que
funcionava como uma pausa para as pessoas descansarem. Criavam-se, então,
evoluções de dança mais apropriadas e tentava-se a “sorte no amor”. O “Charme”
ganhou espaço durante as décadas de 80 e 90 e se espalhou por bailes como os do
Vera Cruz (Abolição), Portelão, Cineshow Madureira e Disco Voador em Marechal
Hermes 13.
A revolução musical negra daquele momento não parou por aí. Uma outra
ainda mais importante (e com grande estardalhaço) estaca por chegar: o Hip Hop. O
Hip-Hop teve origem em áreas pobres e não assistidas de bairros pobres de Nova
York como o Bronx e o Harlem, onde conviviam a população negra americana e um
grande número de imigrantes, principalmente provenientes da Jamaica e de Porto
Rico.
O Hip-Hop escreveu um importante capítulo da história da música e do
comportamento dos negros americanos e de todo o mundo. Sem risco de errar,
13
Estabeleceu-se um código de vestimenta para os freqüentadores. Os homens iam sempre de calças
compridas, camisa e sapatos finos, muitas vezes com blazers e, sempre que possível, cordões. As mulheres
com seus melhores vestidos, sapatos e penteados belíssimos.
58
transformou-se num dos maiores acontecimentos culturais do século e se espalhou
por todo o mundo e sem o qual o funk carioca não existiria.
Foi, então, o jamaicano Clive Campbell que emigrara para os Estados Unidos
em 1967 e ficara conhecido como Kool Herc, que, nas festas de rua, aprimorou o
movimento. Ao levar da Jamaica um aparelho de som muito potente, com grande
reforço nas freqüências graves, divulgava , em grandes festas abertas para as
comunidades, as novidades do reggae. A semelhança com os bailes funks das
favelas cariocas já pode, a partir daí, ser facilmente notada.
Uma inovação por ele é criada: no meio de algum sucesso daquele momento,
ele inseria um break (passagem instrumental com batidas para dançar). Criavam-se,
dessa forma, novas músicas e inauguravam-se a discotecagem autoral e uma era de
música produzida a partir da colagem de outras músicas, posteriormente conhecida
como montagem. Durante os breaks, os dançarinos criavam passos de dança meio
robóticos, inspirados na dança de James Brown e juntavam a isso movimentos de
lutadores de kung-fu, o que deu origem ao breakdancing, a chamada dança break.
Surgiu, simultaneamente, a figura daquele que improvisava determinadas chamadas
ao público e “agitava a massa”: o MC (master of cerimony, o mestre de cerimônia).
Isso aconteceu em 1974, quando algumas das principais equipes de som do Rio de
Janeiro estavam nascendo. Duas décadas depois, muitos garotos nascidos naquele
mesmo ano, um pouco antes ou um pouco depois, adotariam o MC como prefixo de
seus nomes e trariam muito sucesso para suas equipes.
Um novo passo foi dado, então. Um DJ chamado Joseph Sadler, o
“Grandmaster Flash”, como era conhecido, lançou algumas novidades, dentre elas
a de tocar dois discos iguais e, assim, estender por um longo tempo os breaks e
também a de mover o disco para frente e para trás, enquanto este girava no
59
“prato” 14. Seu visual extravagante, sua performance exagerada (discotecava com os
pés ou de costas), conferiu-lhe grande popularidade. Vários outros se juntaram a
ele. Também um grupo chamado Furious Five produzia verdadeiros repentes sobre
as bases que Sadler construía. Essa fusão de ritmo funk e poesia ganhou um nome
próprio e também se espalhou por todo o planeta em discos e shows: o Rap, mais
uma ramificação do Hip-Hop.
Com o passar do tempo, o Rap, entretanto, assume o papel de denúncia
social, por recorrer, em suas letras,
a um tipo de representação mais cruenta da
realidade.
No Rio de Janeiro, o Rap inaugurado por Flash e The Furious Five sobre a
escravidão provocada pela cocaína teria paralelo na década de 90 no que será
conhecido como “funk proibidão”.
O “proibidão” é o funk que conta de forma realista, entusiástica ou apologética
histórias em que traficantes impõem seu poder contra seus opone ntes, sejam estes
a polícia, os delatores ou outras facções criminosas. Tipo de música jamais
encontrado em lojas oficiais, circula em fitas cassetes ou em CDs piratas e, de forma
mais ou menos discreta, é vendido por camelôs ou oferecido de presente pelos
traficantes aos seus clientes mais fiéis.
O primeiro funk “proibidão” que chamou a atenção foi o “Rap do Comando
Vermelho”, produzido sobre a música de “Carro Velho”, de Ivete Sangalo: “cheiro de
pneu queimado / carburador furado / e o X-9 foi torrado / quero contenção do lado /
tem tira no miolo / e o meu fuzil está destravado”.
14
O prato tem a função de acomodar e girar o disco de vinil no sentido horário e na rotação em que foi gravado,
para que o conjunto braço/cápsula/agulha possa trilhá-lo e ler as informações sonoras nele armazenadas.
Aparentemente é algo simples de ser feito, mas o tipo de tração utilizado é muito importante para que a rotação
seja correta e constante, além do que esse mecanismo deve ser o mais silencioso possível pois a cápsula capta
não só as vibrações dos sulcos do vinil, como a
t mbém as vibrações do conjunto Prato/motor. (wikipedia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Toca-discos#Prato.2FMotor Em 06/05/2007)
60
É necessário mencionar, porém, que o funk “proibidão” popularizou-se num
momento em que todo o mundo, não só o Brasil, vive u uma nova e terrível era na
qual o narcotráfico passara a ser a atividade mais rentável conhecida, cujo
faturamento chegava a ser superior ao produto interno bruto de muitos países do
Terceiro Mundo. É justamente esse contexto que vai servir de solo fértil àquele tipo
de música, sem que se perca de vista o fato de os bailes de clubes estarem
proibidos, levando o funk e os funkeiros para os bailes que aconteciam fechados
dentro das favelas e, por isso, submetendo-se às autoridades locais.
Dentre os acusados de gravar proibidões estavam Mr. Catra, Cidinho & Doca
e Duda do Borel. Em 2002, Catra se defendeu: “Ô, mano, o crime faz parte da
cultura da favela. Eu não sou cúmplice do crime, sou cúmplice da favela. Não estou
fazendo apologia, estou é relatando uma realidade.” E em 2004:
“O proibidão é feito para ser cantado no baile. Não é uma apologia
ao crime, mas um relato da minha comunidade. O funk nasceu na
favela e infelizmente o tráfico também faz parte dela. A sociedade
não está preparada para compreender o proibidão, porque quem
não sofre não dá valor ao sofrimento. Quem não vive no morro não
sabe o que acontece lá.” (ESSINGER,2005, p.235)
Abrindo parênteses: o que incomoda é o que é veiculado (o funk falar de
armas, drogas, mortes na favela) ou é o locutor da mensagem? Vejamos este
fragmento do conto “15 Cenas de Descobrimento de Brasis”15,
de Fernando
Bonassi, escritor contemporâneo:
15
In: Moriconi, Italo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. pp.
604-9
61
Cena 9
CANÇÃO DO EXÍLIO
Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres
amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma
pedrinha cor-de-bile que faz “tuim” na cabeça da gente. Tem
também muros de bloco (sem pintura , é claro, que tinta é a
maior frescura quando falta mistura) , onde pousam cacos de
vidro pra espantar malaco. Minha terra tem HK , AR15 , M21 ,
45 e 38 (na minha terra , 32 é uma piada). As sirenes que aqui
apitam , apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são
mais as das fábricas , que fecharam. São mesmo é dos
camburões , que vêm fazer aleijados , trazer tranqüilidade e
aflição.
Não temos aí o mesmo conteúdo sendo veiculado? A mesma história sendo
contado? O ambiente não é o mesmo? O mesmo discurso é autorizado a um e não
a outro? Por quê?
Infelizmente, é em 2002, porém, que o poder paralelo decide mostrar a toda
sociedade aquilo de que é capaz de fazer: em 2 de junho desse ano, o jornalista Tim
Lopes (tido como um dos maiores repórteres investigativos do país) foi baleado na
Vila Cruzeiro, uma das favelas do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de
Janeiro. Em seguida, levado para a favela da Grota, também no Complexo do
Alemão, onde foi julgado, torturado e morto por um golpe de espada samurai na
barriga. Depois foi esquartejado e queimado com gasolina e pneus, num local da
favela destinado exc lusivamente a execuções, denominado ironicamente de “forno
de microondas”.
Deixando o “proibidão” de lado, pelo menos por enquanto, voltemos à
reconstrução da história do funk carioca. Em 1988, Hermano Vianna lança o livro “O
mundo funk carioca”, resultado de sua tese de doutoramento. Esse livro se torna
62
um marco na história do funk carioca e transforma Hermano numa espécie de
tradutor para os intelectuais e para a Zona Sul do Rio daquela outra realidade
carioca. DJ Malboro, que se interessou por sua pesquisa tão logo o conhecera,
torna-se um parceiro importante para os estudos do autor. Um dos lançamentos do
livro se deu no “Clube Paratodos” e representou um verdadeiro marco para a nossa
sociedade e para a imprensa elitista e preconceituosa em relação a esse tipo de
música.
Em contrapartida, ao auxiliar Hermano Vianna em sua pesquisa, Marlboro
consegue também sua incursão nas boates da Zona Sul.
Hermano Vianna considera o mundo funk como “... um mundo paralelo que
se aproveita dos espaços em branco deixados pela indústria cultural ...” (apud
Essinger,2005:79). Para Hermano, uma outra idéia que o funk põe em questão é a
de a nossa classe média ser dominada pelos modismos internacionais e as classes
populares preservarem as autênticas raízes nacionais. Para ele, estamos diante do
que Oswald de Andrade denominou antropofagia: “só me interessa o que não é
meu”
“O funk chega ao Rio e é deglutido de maneira inédita. Não existem
bailes como esses em nenhum outro lugar do mundo. Alguns detalhes
aparecem em outras cidades. Mas a combinação desse tipo de dança,
com o tipo de roupa, com o tipo de música, com o tipo de organização
das equipes de som e a atuação dos DJs só acontece no mundo funk
carioca.” (Vianna, apud ESSINGER,2005, p.80)
Fernanda Abreu, garota da Zona Sul do Rio, estreara na Banda Blitz e era fã
de James Brown e de Toni Tornado. O produtor de seu primeiro disco solo foi
Herbert Vianna, irmão de Hermano. Hermano encarregou-se de apresentá-la ao DJ
Marlboro – ao ouvir a “Melô da Mulher Feia”, composta pelo DJ, muito a apreciou,
conforme consta. Segundo o livro de Essinger, ali houve a grande transformação na
63
vida musical e profissional de Fernanda, para quem “o mundo nunca mais foi o
mesmo”. Passou, a partir daí, a promover o funk carioca, o que a transformou em
uma de suas grandes divulgadoras.
Outros registros merecem destaque. Vejamos:
A) Por volta de 1992, acontece no Clube Mauá em São Gonçalo, o festival
denominado “Baile do Mauá”. Nesse evento, realizou-se um concurso de funk que
teve como vencedor o “Rap do Pirão”, cantado por um desconhecido chamado
D’Eddy. Esse concurso muda toda a história do funk no Rio de Janeiro. A partir dele,
as equipes começaram a tocar funks em português compostos por desconhecidos, o
que possivelmente atuou de forma direta na auto-estima daqueles que as ouviam,
deixando claro que qualquer um poderia compor e se tornar um artista.
Daí, o movimento de MCs prosperou no Rio de Janeiro e muitos nomes foram
aparecendo. Um que merece registro é Bob Rum, autor do “Rap do Silva” que se
popularizou pelo seu refrão: “ era só mais um Silva / que a estrela não brilha / ele era
funkeiro / mas era pai de família”. Embora a presença da adversativa (“mas era pai
de família”) pudesse ratificar o preconceito contra o próprio funkeiro, essa letra era a
representação daquele cidadão comum, respeitado pela comunidade e que tinha,
como lazer, ir a bailes funks. A mesma música, porém, fazia crítica ao preconceito:
“o funk não é modismo/ é uma necessidade/ é pra calar os gemidos/ que existem
nessa cidade.” A música estourou e o transformou em uma celebridade instantânea,
que logo voltou à obscuridade.
Muitas letras de diversos teores foram sendo criadas nesse cenário. Podemos
citar duas: uma em homenagem a Betinho, Herbert de Souza, sociólogo que
contraiu HIV e mobilizou toda a nação em uma grande campanha contra a fome e a
64
miséria (“Há sete anos atrás quando tudo começou / uma doença infecta o Betinho
constatou / mas esse homem é forte, ele tem sorte / esse vírus é maldito, já o
condenou à morte / não à morte instantânea, mas sim à morte lenta / e o Betinho
ainda tem força de lutar com a consciência / esse homem é capaz de lutar por algo a
mais / por isso foi indicado pro prêmio Nobel da Paz.”); outra em homenagem a
Ayrton Senna, o grande ídolo do automobilismo brasileiro (“você partiu mas deixou
uma simples lição, que o Brasil pode ser campeão”).
Um outro tipo de repertório surge e ganha força no cenário do funk carioca: as
montagens. Nelas, os produtores jogam simplesmente frases soltas de MCs ou de
discos que não apresentavam correlação com o funk, com as sílabas ou palavras
repetidas várias vezes e coladas juntas, seguindo um determinado padrão que
produz efeito de força rítmica considerável.
B) Já a década de 80 traz um estigma nada agradável para os bailes funks: o
da violência. Por mais que os defensores argumentassem contra isso, a imagem de
ambiente violento era cada vez mais vinculada aos bailes. Em 20 de maio de 1990,
o jornal O Globo publicou uma matéria a respeito do que acontecia na saída dos
bailes funk: “Gangues de rua aterrorizam o subúrbio”, era o título. Nessa matéria
definia-se a referida turma (“gangues compostas por 10 a 30 jovens – moças e
rapazes – que parecem encontrar prazer especial em arrombar lojas, invadir ônibus
para saquear passageiros, depredar carros, espancar e roubar quem encontram
pela frente”). Muitas histórias ligadas ao funk continuaram a ser publicadas nos
meses subseqüentes.
65
C) Em 1991, durante o lançamento do LP “Funk Brasil 3” no Maracanãzinho,
houve briga e confusão. Em fevereiro do mesmo ano, o prefeito César Maia
demonstrava sua insatisfação em relação à violência já comum em alguns bailes.
Em março, a Defesa Civil interditou cinco quadras de escolas de samba onde
aconteciam bailes do tipo.
Em 1992, começava a se falar da associação da violência dos bailes com as
grandes organizações criminosas das favelas, Comando Vermelho e Terceiro
Comando. Passeatas em protesto à proibição dos bailes foram organizadas, mas a
violência não cessou e os jornais não deram trégua, até que, em 18 de outubro
daquele ano, num domingo de sol, praia de Ipanema repleta de banhistas, houve o
pior de todos os incidentes: um grande “arrastão” 16 tomou a praia e os banhistas.
Micael Herschman, pesquisador e teórico de Comunicação, em seu livro “O funk e o
hip-hop invadem a cena” transcreve o relato do acontecido que fora transmitido pela
Rede Globo:
“Rapidamente as gangues tomam conta da areia... Uma parede humana
avança sobre os banhistas... pavor e insegurança... Sem que se saiba de
onde... começa uma grande confusão... O pânico toma conta da praia...
As pessoas correm em todas as direções... São mulheres, crianças,
pessoas desesperadas à procura de um lugar seguro... A violência
aumenta quando gangs rivais se encontram... Este grupo cerca um rapaz
que cai na areia e é espancado... A poucos metros dali um outro bando
avança sobre a quadra de vôlei... Os jogadores se afastam da quadra e
correm para proteger as barracas, mulheres e crianças... Dois policiais...
apenas dois... chegam até a areia... Eles estão armados mas parecem
não saber o que fazer com tanta correria... Perto dali, rapazes ignoram a
presença da polícia e aproveitam para roubar...” (apud ESSINGER,2005,
p.124)
16
Arrastão é uma técnica de roubo urbano inaugurada em praias do Rio de Janeiro e depois generalizada para
outros sítios públicos no qual um pequeno grupo corre violentamente através de uma multidão e “varre” dinheiro,
anéis, bolsas, às vezes até roupas das pessoas. O grupo pode ou não estar organizado, dependendo da
espontaneidade do assalto. Fenómeno também registado em outros países da América do Sul. (Wikipedia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arrast%C3%A3o)
66
Esse incidente, que se deu simultaneamente no Arpoador, no Posto 8 e no
Posto 4 (que já é área de Copacabana) tornou-se um verdadeiro marco no
imaginário popular e, embora a própria polícia reconhecesse que ele não tinha como
objetivo roubar os banhistas, serviu como base para uma verdadeira demonização
do funk.
D) Em dezembro de 1992, um grande seminário foi promovido pela
“Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro”
(Faperj): “Barrados no Baile – entre o funk e o preconceito”. Em sua abertura, o
então Secretário de Justiça e de Polícia Civil, Nilo Batista,
responsável pelo
encerramento de alguns bailes, surpreendeu a todos com sua defesa ao funk: “é
mais fácil ter medo de um garoto de 16 anos do que do sistema. Jogamos sobre os
pobres e os destituídos os nossos medos. Os funkeiros pagam uma taxa de toda
violência urbana.” No mesmo mês de dezembro, uma pesquisa apontou o funk como
o maior movimento cultural de massa do país. Maria Teresa Monteiro, da empresa
“Retrato Consultoria e Marketing” diz que “Quantitativamente, não há no mundo um
movimento formado por milhão e meio de jovens, a maioria deles negros, como o
movimento funk do Rio”. (ESSINGER,2005, p.127)
E) Entre os anos de 1993 e 1995 se deu o fenômeno que pode ser chamado
de promiscuidade entre classes e segmentos sociais: os meninos e meninas da
classe média passaram a ter contato com o funk, sabiam suas letras e não se
furtavam de subir os morros do Chapéu Mangueira, no Leme, O Morro Azul, no
Flamengo, o Santa Marta, em Botafogo e a Rocinha para participar do que era
produzido.
67
F) Em junho de 95, a polícia interditou o baile do Chapéu Mangueira sob a
alegação do incômodo que a altura do som causava em moradores do Leme e de
Copacabana, como também de reclamações ligadas ao tráfico de drogas. A
senadora Benedita da Silva logo interveio: “é uma maldade vincular o funk à bocade-fumo. O tráfico da Vieira Souto não é diferente do que se vê no Chapéu
Mangueira”.
Como a falta de paz e o desrespeito não eram “digeridos” pelos moradores
das comunidades, em 1995, Cidinho e Doca, moradores da Cidade de Deus,
gravaram o funk que se tornará um hino carioca e será cantado por todo o país, por
pessoas das mais diferentes classes sociais e culturais, até mesmo por aquelas que
jamais pretenderiam freqüentar um baile de comunidade: o “Rap da Felicidade” (“Eu
só quero é ser feliz/ andar tranqüilamente na favela onde eu nasci/ é!/ e poder me
orgulhar/ e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”).
E) Mais ou menos em torno de 1993, dois rapazes bem aceitos pela mídia e
pela sociedade tomaram o cenário do funk e se torna ram muito famosos: Claudinho
e Buchecha. Seus espetáculos correram todo o Brasil e alcançaram brasileiros de
várias partes do mundo. Em 1997, já haviam conquistado a fama e o respeito não só
do público e da mídia como de muitos cantores consagrados de nossa MPB. Em
julho de 2002, porém, um desastre na Via Dutra encarregou-se de desfazer a dupla.
Claudinho faleceu num desastre de automóvel.
F) O carnaval de 1997, demonstrou que o funk é um fenômeno cultural
irreversível: a bateria da escola de samba Viradouro, sob o comando de Mestre
Jorjão, fez uma intervenção “miami bass” no meio do samba, o que, para surpresa
68
de muitos, agradou em demasia o público. Isso despertou uma discussão cultural
envolvendo as músicas dos bailes como raramente aconteceu naquele ano, pois, na
maioria das vezes, o funk continuou sendo acolhido intensamente pelas páginas
policiais.
Em julho desse mesmo ano, verificou-se mais um escândalo. Motivada por
denúncias, a polícia faz a apreensão de uma fita de vídeo: Rio funk proibido. Sob a
trilha de Cidade Maravilhosa em ritmo funk, apareciam várias dançarinas tirando a
roupa no palco de um baile, enquanto jovens entre 15 e 20 anos tentavam tocá-las.
Em outro momento, cenas de meninos com menos de 10 anos de idade ao lado de
mulheres com pêlos pubianos pintados de todas as cores. Muitas cenas de
simulação de sexo oral e de lesbianismo. O locutor eufórico incentivava as meninas:
“Vai, vai, dá na cara do cabeção!” e elas batiam várias vezes com os quadris e a
virilha no rosto dos funkeiros. Segundo Rômulo Costa, a fita era uma fraude pois as
dançarinas que apareciam ali eram garotas de programa que foram levadas ao baile
com o propósito de produzir aquela fita.
G) 1997 também foi o ano em que surgiu o bordão “Ah! Eu tô maluco!” que
transbordou para as arquibancadas dos estádios de futebol e acabou virando um
bordão extremamente popular no Rio de Janeiro e, em pouco tempo, no resto do
Brasil.
H) Nos primeiros minutos de 2001, quem assistiu à festa de fogos na Praia do
Leme pôde ouvir, em primeira mão, um som festeiro muito alto e muito empolgante,
jogado à rua pelos alto-falantes de um apartamento qualquer. Havia uma só batida
pesada e uma rima declamada com certa dose de malícia erótica. O breque era
69
marcado pelo som de um “tigre em ataque”: “Tchu-tchucaaaaaaaaaaaaa, vem aqui
pro seu tigrão / vou te jogar na cama e te dar muita pressão”. Essa foi a grande
sensação do ano e que fez com que o funk, como em 1995, ficasse mais uma vez
com relevante visualização para a população. Era o “Bonde do Tigrão”, formado
pelos adolescentes Leandrinho, Tiaguinho, Waguinho e Gustavinho oriundos da
mesma Cidade de Deus que já revelara Cidinho & Doca.
O sexo e a alegria eram a tônica das letras desse novo tipo de artista. Talvez
a inspiração estivesse em grupos de pop inofensivo espalhados pelo mundo, como
já houvera Menudo, New Kids on The Block, ‘NSync e Back Street Boys, mas
nenhum deles tão lúbricos – e sensuais – quanto o Bonde do Tigrão.
Como registra ESSINGER (2005: 199-201), outras músicas do Bonde do
Tigrão estouraram como “O Baile Todo”, por exemplo 17, e “Entra e sai” (“entra e sai,
entra e sai, na porta da frente e na porta de trás”). Segundo Gustavinho, um dos
componentes do grupo, explica que as músicas têm duplo sentido e só quem é do
gueto é capaz de apreendê-los. Entra e sai na porta da frente e na porta de trás, por
exemplo, não se refere exclusivamente ao sexo, mas também ao ônibus cheio (sic.),
que são obrigados a pegar todos os dias para ir ao trabalho.
O grande estouro do Bonde do Tigrão se dá com “Cerol na mão” 18. É o
grande sucesso dos meninos, que, a partir daí, são acolhidos pela grande mídia e
começam a aparecer nos programas vespertinos de grande audiência de sábado e
domingo.
Rômulo Costa lançou o “Cerol na mão” em um disco intitulado “O Tornado 2”.
Esperava-se que a
17
vendagem ficasse em torno de 10 mil cópias, mas, para a
“só as cachorras / uh, uh, uh, uh, uh / as preparadas / uh, uh, uh, uh, uh / o baile todo / uh, uh, uh, uh, uh uh,
uh, uh, uh, uh / as poposudas / uh, uh, uh, uh”
18
“Eu vou cortar você na mão / vou mostrar que sou tigrão / vou te dar muita pressão / então martela, martela /
martela o martelão / levante a mãozinha na palma da mão / é o Bonde do Tigrão. “
70
surpresa de todos, são vendidas em torno de 200 mil cópias, sem se levar em
consideração as 400 mil cópias em média que veiculam através da pirataria. Esse
disco foi um dos lançamentos fonográficos mais bem sucedidos daquele ano,
ficando lado a lado com os grandes gigantes de nossa música, como Roberto
Carlos, por exemplo.
Outros sucessos de “O Tornado 2” estouraram também. Um deles foi
“Tapinha” (“dói, um tapinha não dói, um tapinha não dói”) e outro a “Dança da
motinha” (“dança da motinha / as popozudas perde (sic.) a linha”), de MC Beth, uma
paulista, moradora de São João de Meriti, que era professora formada pelo Instituto
de Educação e começou a cantar como terapia para ajudar no tratamento contra a
perda da memória. Surpreendente mesmo foi ouvir Caetano Veloso em seu show
“Noites do Norte” cantar “Tapinha” como contraponto a “Dom de iludir” (“você diz a
verdade e a verdade é seu dom de iludir / como pode querer que a mulher vá viver
sem mentir”). Obviamente, a reação do público não foi a melhor. A atitude do artista
despertou muitas vaias.
Porém a mais polêmica composição de “O Tornado 2” foi “Jonathan 2” que
dizia “dance potranca, dance com emoção, eu sou o Jonathan da nova geração”.
Ingênua, se comparada às outras músicas funk. O grande problema era o MC
Jonathan ter apenas 7 anos de idade e ainda dizer na música que estava crescendo
e logo ia “pegar um filé com popozão”. Em decorrência, Siro Darlan, juiz titular da
1ª. Vara da Infâ ncia e da Juventude, ameaçou tirar a guarda da criança de Rômulo
Costa e Verônica Costa, seus pais.
I) Outro nome que não pode ser esquecido,
que também surgiu em “O
tornado 2”, é o de MC Vanessinha, a do funk “Pikachu” 19, que durante algum tempo
19
“me chama pra sair / olha que decepção / me leva pro cinema pra assistir o Pokemon / se liga no papo reto
que eu vou mandar pra tu / eu quero é ir pro hotel pra brincar com o Pikachu”.
71
ficou conhecida como “A virgem do funk”, pois, embora sendo funkeira, chegou aos
18 anos de idade virgem.
J) Após o carnaval de 2001, a classe média se “rendeu” de vez ao funk a e
bailes como os do “Castelo das Pedras”, que aconteciam dentro da comunidade Rio
das Pedras, em Jacarepaguá.
Até mesmo um advogado, ex-militante do Partido Verde, obteve espaço no
funk em 2001. Maurício Carneiro, DJ Saddam, estourou nas rádios e pistas de
dança com a música “Calça da Gang”, cuja letra falava de uma marca de calça jeans
de cintura baixa e corte justíssimo, que ajudava a levantar e a realçar a região
lombar 20.
L) Nem todos os fatos, entretanto, foram felizes para o funk em 2001. Em
março, com um título “Grávidas do funk”, os jornais veicularam matérias que
mostravam meninas de até 12 anos de idade que iam ao bailes de saias curtas, sem
calcinhas e participavam de trenzinhos nos quais mantinham relações sexuais nas
pistas de dança. Quando o resultado da orgia era a gravidez, tornava-se quase
impossível saber quem era o pai da criança. Muitas das jovens diziam até mesmo ter
contraído o vírus HIV quando participaram dessas “festinhas”.
Por outro lado, em pleno Rock In Rio 3, em 2001, no meio de seu show, a
cantora Fernanda Abreu cita os seguintes versos: “me chama de cachorra que eu
faço au, au / Me chama de gatinha que eu faço miau / Se tem amor a Jesus Cristo,
demorou”. Os versos eram de inspiração de uma outra carioca, Tatiana dos Santos
Lourenço, nascida em 1979 na Cidade de Deus, e de seu irmão, Márcio da Silva
20
“calça da Gang, toda mulher quer / duzentos reais pra deixar a bunda em pé”
72
Santos, nascido em 1975. A dupla torna-se a responsável pela personagem que vai
paulatinamente tomar conta da cena do funk carioca: Tati Quebra-Barraco.
M) Tati surge com bordões que chocam, mas chamam a atenção pela
originalidade e ousadia. “Sou feia, mas tô na moda”, por exemplo, que dá nome ao
documentário que nos propomos analisar é de sua autoria. Frases como “tô
podendo pagar motel pros homens, isso que é mais importante” e “Chega de homem
esculachar a gente! Agora se tiver que comer vai ser na mão!” fazem com que a
moça seja vista como a mulher do ano 2000, ou seja, como a mulher futurista que
pode falar assumidamente da própria sexualidade.
Tati havia trabalhado como merendeira em uma creche na Cidade de Deus,
onde fazia sucesso com um rap que falava de “quebrar o barraco”, gíria usada para
o sexo ( considerado “selvagem”, porém satisfatório). Fez cursos de tinturista e
cabeleireira e estudou somente até a quarta -série.
Ela gravou seu primeiro disco em 2001, na Pipo’s.
As músicas, bem
rudimentares, eram variações do “quebra meu barraco”. Segundo Essinger (2005), o
disco era o Kama Sutra resumido 21.
Márcio, o irmão de Tati, tenta explicar o seu comportamento: “Todo mundo
acha que a Tati xinga muito, mas não é xingar por xingar. Às vezes, homem ofende
a mulher na música e ninguém critica. Mas é porque ninguém respondeu a ele. As
mulheres tinham que ouvir e ficar quietas. Aí eu falei para a Tati: ‘ então vamos lá,
você vai fazer as músicas escrachando mesmo os homens. Vai falar o que você
pensa e eu vou escrever isso. ‘ Tudo o que eu não gostava que uma mulher
21
Nele estavam, dentre outras, a “Montagem pidona” (“bota na boca, bota na cara / bota onde quiser”), a
“Montagem assadinha (69)” (“sessenta e nove, frango assado / de ladinho a gente gosta / se tu não tá
güentando, pára um pouquinho / tá ardendo, assopra”) e a “Montagem marra de Sansão” (“seu pitbull é Lassie /
tu é rosa, margarida / tu tem marra de Sansão / mas tu é Dalila”).
73
dissesse para mim eu escrevia para ela dizer para todo mundo.” Está criada, assim,
a personagem, Tati Quebra-Barraco, uma verdadeira entidade do mundo funk.
Em 2004, Tati começou a ser procurada por produtores de boates GLS da
Zona Sul carioca e vira musa gay, fez show até mesmo no São Paulo Fashion Week
e tornou-se uma das importantes personagens do documentário que aqui
analisamos. Ela tornou-se, quer se queira ou não, pelo menos para alguns,
realmente a mulher do novo milênio, como aponta Essinger (2005:221). Sobre Tati,
Fernanda Abreu diz o seguinte:
“As pessoas acham que a Tati está falando de sexo de uma
maneira masculina, porque ela está falando como os homens
falam das mulheres. Mas isso é o que os homens acham que as
mulheres deveriam falar – de uma forma submissa, subliminar,
carinhosa, mais light... Mas quem disse que é assim? Na cama,
as mulheres não são submissas, nem light. Então por isso é que
incomoda as pessoas tanto ela falar que não gosta de pau
pequeno. É um troço muito corajoso e libertário para essas
meninas. Não acho que é nada desse negócio de estar
denegrindo a imagem da mulher. Na verdade, o que querem é
deslocar aquela música do baile funk para dentro da universidade
e tentar ler como um Chico Buarque, um João Gilberto... é outra
poesia, outra dinâmica, outro português, outra gíria, outro
sentimento, outra realidade.” (ESSINGER: 2005, p.221)
N) Uma história do funk carioca não pode deixar de mencionar o nome de Mr.
Catra. Wagner Domingues Catra, um dos maiores sucessos do funk a partir da
segunda metade dos anos 90, considerado um dos grandes talentos que nasceram,
cresceram e se desenvolveram sem freqüentar os corredores das emissoras de TV,
revistas pops ou programas de rádio da burguesia.
Catra nasceu em 1968, bem antes da maioria dos MCs com quem divide a
cena, no Morro do Catrambi, Tijuca, de onde vem seu nome. Filho de empregada
doméstica, cujo patrão o adotou e fez questão de que estudasse em conceituados
74
colégios, Catra é uma espécie de “irmão mais velho” e conselheiro de grande parte
dos MCs cariocas e é também um dos mais ferozes ideólogos do funk.
O) O ano de 2002 iniciou-se também com o ritmo do batidão. Logo nos
primeiros dias do ano, pôde-se ouvir em diferentes bairros da cidade uma música
singular que era a representação de uma relação sexual que atinge o seu
ápice
através de uma letra de funk22.
As pessoas que ouviram a letra ficaram curiosas para saber quem era esse
tal “Serginho”. Sérgio Manhães, morador do morro do Jacarezinho, logo começou a
aparecer em jornais, revistas e programas de TV. Popularizou-se ao lado de seu
parceiro Marcos Aurélio Silva da Rocha, dançarino extremamente espalhafatoso que
passou a ser conhecido nacionalmente como Lacraia. Os dois colecionam vários
sucessos que saíam dos bailes para as festas de condomínios de todas as partes do
Rio de Janeiro e do Brasil, dentre os mais conhecidos estão “Vai, Lacraia” e
“Egüinha Pocotó”.
Lacraia é uma figura andrógina. Homossexual assumido, pele negra, cabelo
curtinho, tingido de louro, roupas justíssimas e muito coloridas, muitos apetrechos,
sorriso extenso e coreografia ainda mais exagerada que tudo. Por incrível que possa
parecer, Lacraia se tornou um ícone do funk, capaz de despertar atenção e
admiração em crianças, mulheres e homens. Alguns o chamam de unanimidade
positiva do funk e já houve até concursos em bailes para beijá-lo na boca e muitos
dos homens presentes participaram23.
22
Na referida letra, um homem diz: “Bate as pernas, faz beicinho, eu vou morder seu umbiguinho.” Uma mulher
responde: “Vai, Serginho, vai Serginho”. Ele:”Eu vou beijar a sua boca, vou morder o seu queixinho.” Ela, com
voz gemida: “Vai, Serginhooooo, vai Serginhoooo!” O homem: Eu vou lamber sua orelha, vou morder seu
pecocinho.” A mulher, à beira de um ataque:”Vaaaaaaaaaai, Serginhoooooooo, vaaaaaaai, Serginhoooooo”. Ele,
para finalizar: “Eu vou descer mais um pouquinho, vou morder o seu.... huuummm!” E a moça: “Vaaaaaaaaaaai
Serginhoooooooooo!”
23
Alguns pagavam para beijar Lacraia sem se importar com os julgamentos e olhares alheios.
75
É impossível fechar os olhos para esse fenômeno que é o funk carioca.
Certamente, como apontou Caetano Veloso em entrevista coletiva para lançar seu
disco “A foreign sound”, o funk representa uma “virada” histórica. Talvez essa seja a
proposta de Denise Garcia ao produzir o documentário que aqui analisamos. Mostrar
que nossa história mudou. Não é mais a mesma. E é isso que tentaremos, também,
apontar.
76
VIII ETHOS
“De fato, o ethos, enquanto imagem que se liga àquele que fala, não é
uma propriedade exclusiva dele; ele é antes de tudo a imagem de que
se transveste o interlocutor a partir daquilo que diz. O ethos relaciona-se
ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar
daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê. Ora,
para construir a imagem do sujeito que fala, esse outro se apóia ao
mesmo tempo nos dados preexistentes ao discurso – o que ele sabe a
priori do locutor – e nos dados trazidos pelo próprio ato de linguagem.”
(CHARAUDEAU, 2006b, p.115)
Falar de ethos é remetermo-nos à Antiguidade Clássica, quando
Aristóteles lança a proposta de divisão dos meios que influenciam o auditório
em logos, ethos e pathos. O logos está ligado ao racional e é o que torna
possível convencer e o pathos, como também o ethos, estão ligados à emoção
e à possibilidade de emocionar. O que os distingue é o fato de o pathos estar
ligado ao auditório e o ethos ao orador.
Como é o ethos que nos interessa, podemos dizer que ele corresponde não
a um estado psicológico real daquele que fala ou daquele que ouve, mas, sim,
àquilo que se crê que o outro tenha em mente.
Para Aristóteles, pouco importava a sinceridade ou não-sinceridade do
orador ao se mostrar a sua platéia. Ele entendia o ethos como a imagem que o
orador transmitia de si mesmo, por intermédio de sua forma de falar, quando,
então, adotava as entonações, os gestos, o porte que melhor conviesse aos
seus propósitos. O que importava de fato era como era compreendido, como era
olhado e como era aceito pelo público que se propunha a ouvi -lo. O causar boa
impressão vinha antes de tudo. Charaudeau nos diz que os analistas do
discurso situam o ethos na aparência do ato da linguagem, “naquilo que o
sujeito falante dá a ver e a entender”. (CHARAUDEAU, 2006b, p.114)
77
O ethos não está ligado ao indivíduo, mas ao papel a que corresponde o seu
discurso, ao exercício da palavra. Na verdade, em relação ao ethos, o sujeito
constrói uma identidade discursiva para si. Essa identidade se atém aos papéis
que ele pensa inerentes ao seu ato de enunciação, que é o resultado das
estratégias escolhidas para seguir e das situações coercitivas que a ele se
impõem.
Aquilo que somos e aquilo que dizemos formam uma dupla identidade.
Disso depende o sentido veiculado por nossas palavras. O ethos também é o
resultado dessa duplicidade identitária que, por intermédio dele, funde-se em
uma identidade única.
Charaudeau chama-nos a atenção para o fato de que o ethos não tem de
estar exclusivamente ligado aos indivíduos. Ele também pode dizer respeito a
grupos. Isso nos interessa por refletirmos sobre
o ethos que perpassa um
documentário que não analisa o indivíduo, mas todo um grupo de falantes.
“Em último caso, os grupos julgam os outros grupos com base em
um traço de sua identidade. Em decorrência de sua filiação, os
indivíduos do grupo partilham com os outros membros desse mesmo
grupo caracteres similares, que, quando vistos de fora, causam a
impressão de que esse grupo representa uma identidade
homogênea. [...] O ethos coletivo corresponde a uma visão global,
mas à diferença do ethos singular, ele é construído apenas pela
atribuição apriorística de uma identidade que emana de uma opinião
coletiva em relação a um outro grupo.” (CHARAUDEU, 2006b, P.117)
Vemos então que o ethos nada mais é do que o resultado dos
julgamentos que fazemos uns dos outros – e daquilo que imaginamos que
pensam sobre nós –
encenação
quando agimos ou falamos. É o resultado de uma
sociolingua geira
cujo
resultado
depende
julgamentos cruzados pertinentes a um dado grupo social.
diretamente
dos
78
MAINGUENAU (2002) nos diz que o ethos pode ser visto como uma
forma de encarnação de um tipo de ser por meio da palavra. Essa encarnação
traz em si as manifestações que podem associá-la a um determinado padrão de
comportamento e que tem, como grande objetivo, a adesão de um tipo de
público, que se identificará com aquele ethos expresso por uma enunciação.
É necessário que fique claro, porém, que é impossível separar o ethos
das idéias. A maneira de apresentá-las está, na verdade, intrinsecamente
associada às imagens que serão criadas, embora não se possa dizer que
existam marcas específicas de ethos.
Numa tentativa de nos guiarmos na análise do ethos dividimos o
documentário em segmentos 24, quais sejam:
Segmento 1: Ethos da afirmação social feminina:
Apresentação, histórico e fundamentos. Inicia com a abertura do filme. MC
G cantando, passa por Deize da Injeção, que faz uma síntese da história do
funk da Cidade de Deus e vai até Silvio Essinger que expõe um pouco da
história da “Black Music”.
Podemos dizer que há , nesse segmento, claramente, um ethos de alegria,
humor e descontração sendo mostrado. Além disso, o fato de Deize aparecer
andando pelas ruas da Cidade de Deus rodeada por homens, contando a
história do funk tem a intenção, certamente, de nos mostrar um ethos de uma
mulher conhecedora do assunto a que se propõe discutir e que não se sente
incomodada por ter de falar rodeada por pessoas do gênero masculino.
24
A transcrição integral do documentário encontra-se no Anexo. Nela podem ser encontradas todas as falas que
compõem cada segmento.
79
A enunciadora Deize ainda faz questão de se apresentar como precursora
do funk na Cidade de Deus:
Deize:
— [...] desde que eu comecei a cantar, né, eu tenho o prazer de falar, de
mencionar aqui pra vocês que eu saí arrastando geral, [...]
Temos de citar ainda que nesse segmento surge um ethos de mulher que
desafia a virilidade masculina, a capacidade sexual do macho, chegando
mesmo a duvidar dela. Esse ethos põe em xeque as questões masculinas que
sob hipótese alguma podiam ser questionadas, sob o risco não só de a mulher
ficar “mal falada” como sofrer agressões físicas sem que houvesse quem a
defendesse. A letra do funk cantado pelo “Bonde das Boladonas” explicita esse
ethos:
“ ... diz que é o cara na pressão até de manhã, gatinho seu safado, quer me
enlouquecer, 12 horas de suíte, eu vou pagar pra ver...”
Estamos diante de um ethos feminino que “paga para ver” se o homem é
mesmo tudo aquilo que ele alardeia. Se ela “paga para ver” é por que se sente
no direito de duvidar dele. Ela pode duvidar disso.
Segmento 2: Ethos da competência.
É o do Saber Fazer, em que DJ Duda e Grandmaster Raphael falam da
forma como produzem o funk.
Faz-se questão de demonstrar que a produção do funk envolve, também,
tecnologia de ponta:
80
Grandmaster Raphael
-- Eu uso um programa de computador, mas depois que eu processei, quando
cheguei no som que eu quero, eu passo para a bateria, porque pra bateria você
pode programá-la, (...), fica muito mais fácil para você fazer batendo.
Segmento 3: Ethos do prazer:
Mais uma vez são apresentados fundamentos e histórico do funk, só que ,
dessa vez, o conhecimento é mais empírico do que o apresentado no segmento
1. Deize faz questão de frisar a alquimia, a metamorfose, a transformação que
se deu no funk. Isso é endossado por DJ Duda. Está presente um ethos que
aponta para essa transforamação do funk em “funk do prazer”, no qual não só
as mulheres rebolam, mas os homens também. Se elas são objeto de prazer,
eles também passam a ser.
Há uma apresentação do “Bonde faz gostoso” e das “Tchutchucas”. Os dois
grupos são formados por mulheres que rebolam os quadris com extrema
sensualidade e, algumas vezes, simulam posições sexuais.
Paradoxalmente, no entanto, é interessante observarmos que em um
momento do show das “Tchutchucas” um preservativo cheio de ar, como se
fosse uma bexiga de festa de criança, paira sobre o palco, podendo produzir a
impressão de que tudo é uma grande brincadeira.
81
Segmento 4: Ethos da conscientização feminina: “status” feminino e
poder de escolha.
Este segmento é quase exclusivamente formado por mulheres. A única
exceção é Mr Catra que aparece para falar sobre elas. Nesse segmento, as
mulheres falam a respeito das mudanças que o funk e suas letras provocaram
em suas vidas. É importante notar que há uma entrevista com Kate Lyra,
apresentada como pesquisadora. Ela surge como
uma voz do saber
academicista, endossando o que está sendo mostrado.
Verificamos, portanto, que há um ethos de mulher que está consciente de
seu poder de escolha no que tange a sua sexualidade, como também de que há
um ethos que crê no poder de conscientização de seu grupo.
A voz de Tia Júlia, que aparece nesse segmento, mostra-nos o ethos de
uma mãe moderna, à frente de seu tempo, que deixará a filha agir da forma
como quiser agir:
Tia Júlia
— Não é totalmente apologia ao sexo, é um duplo sentido e se ela (a filha)
quiser cantar um dia, fazer um rap, fazer uma montagem, assim, tipo assim,
apologia ao sexo, eu vou, eu vou assinar embaixo. Por quê? Por que vou
assinar embaixo? Porque serve.
Vale ressaltar que a própria figura de Tia Júlia não é muito convencional.
Ela usa um “piercing” o que denota uma preocupação com a moda e desapego
ao julgamento alheio. Importante também que ela é denominada “Tia” nas
legendas do próprio documentário. Para além do tratamento genérico que é
atribuído às mulheres de uma certa idade, parece-nos que a forma “tia” tem aqui
uma outra função, até mesmo por que nenhuma outra mulher do documentário é
chamada assim. Temos a impressão de
que não só nos aponta para uma
82
relação de carinho, como também denota a presença da relação familiar como
instituição. Não temos dúvida de que uma das mensagens implícitas nessas
informações semioli ngüísticas, ainda que pudesse parecer jocosa ou irônica a
nossa colocação, seja a de que a despeito dos preconceitos e dos julgamentos,
funkeiro também tem família.
Neste segmento, há aind a uma apresentação do grupo “Juliana e as
Fogosas”. As meninas se apresentam vestidas com uma roupa branca,
totalmente transparente, cantando uma música que menciona o nome do grupo:
“ Fo-fo-fo / gosa-gosa-gosa”. Embora a grafia seja outra, não há como não
entender o imperativo em questão.
Diante do parágrafo anterior, um ponto que o corrobora, porém, chama-nos
a atenção. Há, não temos dúvida, um discurso de libertação no que concerne à
sexualidade, sobretudo pela forma como é abordada em todo o documentário.
Porém, em paralelo , parece haver um desconforto por parte de alguns
personagens do filme. Temos a impressão de que eles próprios às vezes são
incoerentes em relação à seleção léxica e àquilo que tentam apregoar. Parecenos que isso seja um sinal de que a escolha está clara, a justificativa da escolha
talvez não e steja. Vejamos as duas falas que seguem:
Denise
-- O funk quando fala aquelas coisas depravadas, é o que está acontecendo
mesmo. É isso aí mesmo. E não só os homens, mas as mulheres também
gostam.
Raquel
-- E se o funk fala nessas depravações como ele fala, e na televisão?
83
Elas mesmas reconhecem o funk como depravação. Ato falho talvez. É
necessário tempo para que as novidades sejam assimiladas e digeridas até
mesmo por quem as produz. Vivemos um momento de eclosão dessa nova
história. Só o tempo poderá (ou não) sedimentá-la e mostrar-nos os resultados,
sejam eles quais forem. O funk será mesmo depravado? Assim, como todo
movimento novo que sugere contestação, porém, o funk continua sendo
rejeitado socialmente, o processo de sua assimilação não é nada fácil.
A fala de D. Lena nos diz que, sob sua ótica, o que acontece hoje com o
funk não acontecera anteriormente pela falta de liberdade característica de
épocas anteriores:
Dona Lena
-- Com certeza, seria essa loucura, porque na minha época não tinha, ninguém
namorava, porque o pai da gente não deixava. Tinha que ficar todo mundo
olhando. Hoje, não, hoje tudo é liberado.
A forma de tratamento usada para se referir a ela já fala um pouco sobre si:
“Dona”. Denota respeito, distância, trata-se de uma senhora. Mas essa senhora
de aparência pacata, de fala mansa, deixa claro que o que acontece hoje , na
sociedade que produz o funk, não aconteceria em sua época porque não
seria
permitido, porque , certamente, seria censurado.
Em uma outra fala, conclui seu pensamento:
Dona Lena
-- Claro que eu ia gostar se fosse na minha época, né. Nossa... Acho que eu não
vinha nem em casa. Acho que eu ia ficar só na rua, atrás de funk.
84
Há também no documentário a personificação de uma mãe consciente das
demandas de seu tempo que pode ser averiguado na seguinte fala de Denise:
Denise
-- Pelo menos eu tenho minha filha, a mais novinha está com 4 anos. Eu aprendi
na rua, que minha mãe não tinha liberdade de conversar comigo sobre sexo.
Então, o que vou fazer com minha filha? Eu vou conversar. Eu vou tentar ser
liberal com ela pra ela poder ter confiança em mim, entendeu, pra não acabar
acontecendo com ela o que aconteceu comigo: eu me perdi com 11 anos e com
16 já era mãe. Não me arrependo. Tô aí, graças a Deus, meu mais velho está com
15 anos. Mas falta de diálogo e se a gente não olhar pros nossos filhos daqui pra
frente pior mais vai ficar.
Denise nos fala de uma época em que os filhos não tinham liberdade de
falar sobre sexo/sexualidade com os pais. Diálogo sobre sexo se dava somente
na rua. Ela nos diz que com sua filha será diferente, pois haverá o espaço para
o diálogo na relação mãe-filha. Parece-nos não haver, ainda, muita segurança
sobre a questão da liberalidade, pois, se observarmos, ela nos diz que vai
“tentar” ser liberal. Por mais que se tente ser de fato liberal, às vezes, o próprio
discurso trai o enunciador. O conservadorismo salta, então, não só na seleção
do verbo “tentar”, mas também, e principalmente, quando ela diz “eu me perdi
com 11 anos”. A expressão “se perder”, que faz referência à relação sexual
(sem que levemos em questão a idade mencionada – aos
11 anos) faz a
conexão direta do sexo como um desvio de rota, como “perdição”. Se ainda se
pensa dessa forma, o que se avançou? Parece-nos que há um discurso social
que apregoa o diálogo e a liberdade, mas que este é apenas reproduzido, não
interiorizado.
A fala de Andrea também nos parece travestida de uma pseudomodernidade:
85
Andrea
-- Comprar o anticoncepcional para ela tomar, entendeu, e mandar ela usar
bastante camisinha, porque, né, conforme as várias, minha filha também tá
nessa, que, né, a gente mora aí, então a gente não tem do bom e do melhor para
poder dar a nossos filhos, a gente soa (sic) e corre atrás, mas não pode, né,
nem tudo, mas a gente chega lá.
Temos a impressão que o viés que o discurso de Andrea toma não é o da
conscientização, mas sim o da autoridade. À medida que ela nos diz que vai
“comprar o anticoncepcional para ela tomar” e “mandar ela usar bastante
camisinha”, isso nos soa como um descompasso com o discurso libertário a que
se propõe 25.
Andrea fala da falta de privilégios, de não ter “do bom e do melhor” para dar
aos filhos. Mas, à sua maneira, ainda que possa ser interpretada por alguns
como uma
forma equivocada, prete nde dar aos filhos aquilo que não teve
enquanto criança, como a maioria das mães o faria.
O poder matriarcal é explícito em uma outra fala de Denise:
Denise
-- Em minha casa sou eu e meus três filhos mesmo. Não penso em ninguém
pegando meu controle remoto e mandando em nós lá em casa, não. Só nós
mesmos, só eu e meus filhos. (um voz de fundo, cantando: “é nós que manda...”)
O controle remoto hoje é um instrumento de poder. Quem não sabe disso?
Qualquer família, independente do número de componentes, sabe que quem
detém o controle remoto, detém o poder sobre a programação, até mesmo sobre
os comerciais. A negação do homem como “mandante do lar” nos parece
explícita aí.
25
Não podemos deixar de lembrar da letra que dizia “ainda somos os mesmo e vivem os como nossos
pais”.
86
É neste segmento , ainda, que surgem duas falas que são as mais
significativas no que diz respeito ao deslocamento e a liberdade a respeito do
que fazer com o próprio corpo e com a sexualidade. Por estranho que possa
parecer são as falas que seguem de Raquel e Vanessinha Pikachu:
Andrea
-- A Raquel é virgem.
Raquel
-- Só de signo
Andrea
-- O trabalho que ela está pedindo é isso aí, cara! Chuchu...
Raquel
-- Tem isso também. Eu sendo dessa forma... Não estou me espelhando no funk
para uma coisa dessas. Como ela falou, muitas garotinhas novas aqui estão
crescendo nisso e eu não. Tô aí, simplesmente. E não é porque vai para o baile
funk e vai engravidar. Eu já curti vários bailes funks na minha vida e hoje em dia
eu sou o que sou.
Denise
-- É... mostrar que na favela também existem meninas virgens...
A fala de Andrea (“A Raquel é virgem”) soa como uma denúncia, contra a
qual Raquel, visivelmente constrangida, tenta se preservar (“Só de signo).
Raquel não consegue nomear a própria virgindade (“Eu sendo dessa forma...”).
A virgindade feminina que, durante muitos séculos, foi motivo de orgulho, de
honra, encontra-se totalmente distante do que já fora um dia. Os valores hoje
são outros. Virgindade agora, como se vê, é motivo de pejo e deve ser
silenciada. A jovem virgem é a diferente e a diferença, seja ela de que natureza
for, é excluída: “Eu já curti vários bailes funks na minha vida e hoje em dia eu
87
sou o que sou”. Eu sou o que sou, marca o lugar da virgindade, o lugar do
desconforto, da alteridade.
Quando Denise fala que na favela “também existem meninas virgens”,
temos de nos lembrar que “também” denota inclusão, logo, por detrás de sua
fala, podemos facilmente concluir que a virgem é a diferente. Então, podemos
apreender desse “também” a informação de que na favela é possível a cada um
utilizar seu corpo como lhe convém, até mesmo mantendo a virgindade.
Interessante é que , nesse momento, o filme nos mostra uma cena de
Raquel, que diferente da forma como são mostradas a maioria das mulheres
que aparecem no filme, está completamente vestida, dançando ao som de um
funk que toca ao longe. Ela dança ao lado de uma janela na qual podemos ver
claramente a presença de uma senhora que a observa.
Um dos depoimentos de Vanessinha Pikachu corrobora o estranhamento de
haver moças virgens no funk:
Vanessinha Pikachu
-- Quando eu saí na revista “Sexy”, colocaram logo na capa “ A virgem do funk”,
que na época eu ainda era virgem e com 18 anos. Eles acharam até estranho. Uma
menina do funk com 18 anos e ainda virgem.
Em “A virgem do funk”, o artigo definido deixa clara a singularidade da
situação. Ao aparecer na capa da revista “Sexy”, certamente Vanessinha
quebrava vários padrões, várias expectativas e vários estereótipos. Sua fala traz
elementos que revelam o estranhamento: “... ainda era virgem e com 18 anos”
O
advérbio
ainda,
com
sua
significação
temporal,
deixa
claro
o
estranhamento diante da virgindade da menina e a relação semântica marcada
pela conjunção e não pode ser, nesse contexto,
a de adição, mas sim a de
88
contraste pelo estranhamento diante de uma funkeira de 18 anos ainda ser
virgem. Há, sem dúvida, nesse discurso, a criação de um ethos de pureza
apesar do ambiente em que se vive.
Segmento 5: Ethos de mulher, guerreira e lutadora.
Esse segmento é essencialmente formado por fala de mulheres que não
“temem a luta ”. Nele surge uma das maiores musas do funk do Rio de Janeiro,
Tati Quebra-Barraco que, com oito meses de gravidez, não se furta ao trabalho
de cantar, dançar, viajar pelo país, apresentando suas músicas. O ethos
apresentado é o da mulher a quem nem mesmo a gravidez e o parto conseguem
“frear”:
Tati Quebra Barraco
-- Minha cesária é agora dia 26, se marcar dia 25, dia 23 eu paro. No dia 24, eu me
interno. Dia 29, estou em casa... que eu vou ligar, né? e quando for primeiro de
abril, eu vou estar na pista.
Outras mensagens são veiculadas ainda nesse segmento. Podemos ver a
entrada de um baile em que todos, indistintamente, são revistados. A
mensagem implícita que pode ser capturada é de que há segurança, sim, nos
bailes. É um show de Tati Quebra-Barraco. A letra da música cantada por ela (já
utilizada anteriormente como exemplo da não-valorização do julgamento alheio)
diz
se marcar eu beijo mesmo, hein, Jesus
E se marcar eu beijo mesmo
Não deu conta eu beijo mesmo, hein
Tu tá marcando eu beijo mesmo, hein
Vou te dar um papo reto
É melhor ficar ligada
Não deu conta do marido
Vai rolar a cachorrada
89
Consideramos
dois
pontos
bastante
interessantes
nesse
ethos
de
autonomia aqui apresentado: 1) Uma mulher que reproduz um discurso que
somente os homens considerados “machos” durante muito tempo reproduziram
e reproduzem ainda. Se o homem não satisfizesse a mulher sexual ou
emocionalmente , o coadjuvante 26 apareceria para “dar conta do recado”. Esse
ethos, embora feminino, ocupa esse papel; 2) contrariando as sentenças de
Lacan e Freud levantadas no capítulo em que intitulamos “Discurso de macho.
Discurso de fêmea. Feminismo no funk?”, para Tati a figura da maternidade não
afeta em nada a figura da mulher com seus desejos e sexualidade.
O ethos de mulher autônoma também pode ser verificado no discurso de
Valesca, da “Gaiola das Popozudas”.
Valesca (Gaiola das Popozudas)
-- Antigamente, as mulheres apanhavam, entendeu? Eram xingadas, entendeu?
E elas abaixavam a cabeça. E hoje não. Hoje elas se mostram assim: trabalham,
entendeu? Se mantêm sozinhas, muitas, entendeu? Cuidam de seus filhos e
vivem sozinhas, guerreiras. Hoje as mulheres são guerreiras, são muito
guerreiras.
A imagem de Valesca por si só nos traz algumas informações. Podemos
perceber com clareza que, no que concerne ao padrão culto da linguagem, suas
construções sintáticas são bem elaboradas e há cuidado na escolha do léxico e
na forma de articular as pala vras. Ela é uma moça magra, tem os cabelos loiros
e olhos claros. Acreditamos que tanto a cor do cabelo quanto a dos olhos não
sejam naturais. Sendo assim, sua auto-imagem deixa clara a tentativa de
aproximação do padrão estético vigente, distanciando-a, dessa forma, da
imagem que (preconceituosamente ) se tem de uma moça de favela.
26
Comumente conhecido como “Ricardão”.
90
O teor de sua fala , por sua vez, aponta para um avanço no comportamento
das mulheres que não mais aceitam a tirania masculina no sentido de subjugálas.
Segmento 6: Ethos da libertação e da ousadia feminina.
Esse segmento é inciado por dona Lena, uma senhora que faz uma análise
sobre o movimento funk. Sua fala já foi objeto de algumas reflexões
anteriormente , no segmento 4, quando verificamos o “status” feminino e o poder
de escolha.
Também é composto por mulheres que explicitam suas impressões
sobre o movimento. Uma dessas mulheres é Kate Lyra, cuja fala pode causar
surpresa: não seria um exagero de interpretação ela dizer que às vezes vê a
sexualidade do funk como uma brincadeira, “como sendo uma coisa até quase
que infantil”?
Que infantilidade pode haver nessas letras e nessas
coreografias?
Há mais uma tomada com Vanessinha Pikachu. A música de fundo, cuja
letra é bastante ousada, diz o seguinte:
"me chama pra sair, olha que decepção, / me leva pro cinema pra assistir
o pokemon! / se liga no papo reto que eu vou mandar pra tu: / eu quero ir
pro motel pra brincar com o pikachu!"
Ela nos conta de sua estréia nas rádios que se deu com um outro funk cuja
letra diz:
“Pra você sair comigo / você tem que tá preparado / não é só tá de cyclone / e
dizer que é o brabo / te dei um lance maneiro / todo mundo viu / na hora do vamos
vê / cadê o cara? / sumiu”.
91
Fica claro o ethos da mulher decidida, que sabe o que quer. Uma mulher
diferente, uma mulher de nossos dias, que exige uma determinada performance
do homem e o homem, talvez por medo, talvez por susto, foge dela.
Não é exatamente essa problemática que emerge hoje nos consultórios de
psicanálise,
como
citado
no
capítulo
em
que
falamos
sobre
feminismo/movimento feminista?
Segmento 7: Ethos da comunidade pacífica e feliz (Cidade de Deus).
Esse segmento é bastante curto e se inicia com uma vista aérea da
comunidade. Acreditamos que sua importância resida no fato da tomada das
ruas da Cidade de Deus. Podemos ver, pelas ruas, muitas crianç as brincando
alegremente e pessoas que caminham tranqüilamente. A intenção clara é a de
que o povo visualize
o ambiente da favela não somente como um espaço
hostil, onde há exclusivamente guerras e tráfico, como muitas vezes somos,
preconceituosamente,
levados a pensar. A alegria, a tranqüilidade, a paz, o
bom convívio também são possíveis na favela.
Segmento 8: Ethos feminista.
A primeira fala desse segmento é do DJ Marlboro. Ele fala da discriminação
que existe em torno do funk por ser este um movimento dos “marginalizados”.
Marlboro ainda diz que não há outro movimento em que haja tantas mulheres
como há no funk. Katy Lyra afirma que o discurso das funkeiras é “feminista
total”, mas não justifica essa sua classificação. Valesca fala a respeito do
vínculo que a mulher espera que o homem crie e, por mais que ela (a mulher)
se esforce para lhe agradar, ele sempre está em busca de outras mulheres.
92
Então surge a fala indignada de Andrea em relação às mulheres que aceitam o
desrespeito masculino com resignação. O ethos da que não mais se aceita no
papel de submissa, mas assume um outro papel, o de “esperta”, que sabe
dissimular, que, diferentemente dos homens, age sem deixar pistas. Isso fica
evidente na fala de Valesca:
Valesca
-- Mas dizem que a mulher enganou até o diabo. Pior que quando ela quer, ela
engana mesmo. E pro homem passar vergonha, acho que é difícil, porque quando
a mulher quer fazer, ela sabe fazer muito bem, por debaixo dos panos.
A música cantada pela Gaiola das Popozudas nesse segmento ratifica o que
dissemos:
A sua mina está em casa / A noite toda no sofá / E você vai pro baile, / Tá
querendo esculachar / Vem andando cheio de marra / Pensando que é o Bam
Bam Bam / E lá na sua casa, / Tem festa até de manhã Vai pro baile, cheio de
marra /pensando que é garanhão / e enquanto na sua casa, / sua mulher tá com
o negão / É claro que sua mina, não vai ligar pra nada / Você está lanchando e
ela está sendo lanchada!
Há
deliberada
e
explicitamente
uma
desqualificação
do
homem
desrespeitoso para com a mulher, ainda que , como represália ao desrespeito,
um outro homem será usado, mas escolhido por ela (que ela leva para dentro
da própria casa de onde o primeiro saiu).
Segmento 9: Ethos do respeito à diversidade de gêneros.
Temos a figura de Mr Catra, um negro alto e forte que tenta nos convencer,
usando o exemplo da aceitação do Lacraia no mundo do funk, que , no funk, não
há discriminação de gênero, não há preconceito. Nesse momento, aparece um
93
show em que Serginho e Lacraia se apresentam. Este, como lhe é comum, usa
uma mini -saia, um “baby-look” e uma boina vermelha.
A entrevistadora pergunta ao Marlboro a respeito do envolvimento das
pessoas com Lacraia. O DJ ratifica o que fora dito por MC Catra. Por
conseguinte, o estatuto do segmento se baseia no fato de que o mundo do funk
respeita ria as diversidades.
Segmento 10: Ethos do trabalho e da mão-de-obra.
Neste segmento, o funk é apresentado como gerador de empregos.
Quando MC G fala a respeito dos valores pagos ao funkeiros no Rio de
Janeiro e compara esses valores aos de outros lugares, fica claro que o Rio de
Janeiro não valoriza o funk carioca. Interessante é observarmos, pelo que é
veiculado no documentário, que o funk carioca é mais valorizado não somente
em outros lugares do Brasil, mas em outros países também.
MC G
-- Eu costumo fazer nove shows por semana. Dentro do Rio de Janeiro está
numa faixa de 400 reais cada show, mas fora do Rio de Janeiro, 2.000, 2.500.
Segmento 11: Ethos da discriminação e do preconceito contra o
“favelado”.
Se pretendêssemos intitular este segmento, seu título poderia ser “muda o
receptor, muda o discurso”, pois fala da transformação do discurso funk em
função da mudança de seu receptor. Há um discuso funk produzido pela favela
para o asfalto e há um outro discurso funk produzido pela favela para a própria
favela.
94
Muitas falas dentro desse segmento (tanto a de Deize, quanto a de Cidinho
ou de Mr Catra) denunciam o preconceito. A fala de Cidinho, no entanto,
referenciada abaixo, parece-nos ser a mais forte por estar eivada de emoção. É
possível ver lágrimas em seus olhos no momento em que fala. É necessário
observarmos também que, enquanto fala, mais uma vez, imagens de crianças
brincando distraída e alegremente nas ruas da Cidade de Deus aparecem na
tela . O discurso implícito às imagens parece-nos poder ser claramente ouvido.
Essas crianças, por serem faveladas, não podem gozar do direito de serem
tratadas como cidadãs? E quanto aos 99% de trabalhadores, de pessoas
decentes, de pessoas “do bem”, aos quais Cidinho cita com propriedade?
Cidinho
— Esse cara (o motorista de táxi que se recusou a entrar na Cidade de Deus), ele
olha pro pessoal dali com medo ou com desprezo, sabe? Ou seja, ali tá um... ali
nem é o início da discriminação. Ali é a discriminação inteira, por compreto. Acho
que, pô, 4 horas da tarde... sei lá... porque em uma comunidade... a violência está
em todo lugar, lá também. Se fosse de madrugada e ele falasse para mim: “Não
vou, não, porque de repente a polícia pode entrar aí e bandido tem aí mesmo e os
caras pode trocar tiros, pegar em mim, amassar meu carro ou furar o pneu. Ele
pode se preocupar com ele, mas ele não pode se despreocupar comigo nem com
você, entendeu? Deve olhar não é só pra CDD, não, mas para todas as
comunidades do mundo, do mundo mesmo, sem exceção de ninguém, cara, como
gente, como pessoa, cara.
A mudança do discurso pode ser claramente exemplificada com a fala de
Marlboro. Já falamos sobre isso anteriormente, mas fazemos questão de frisar
que por mais que possam parecer cruéis a nossos ouvidos, as músicas funk
falam, muitas vezes, da crueldade da realidade, trazem à tona a realidade de
sua comunidade, a realidade com a qual aquelas pessoas convivem comumente
e da qual, às vezes, muitas outras nem tomam conhecimento.
95
DJ Marlboro
— Acho que o que acontece é muito mais cruel do que o quê as músicas
cantam. As pessoas continuam discriminando as músicas, falam mal das
músicas, mas só que esquecem que aquilo é uma realidade que tem que ser
tratada. Eles preferem calar a boca do moleque do que tratar o que eles vivem.
Isso é muito ruim. [...]
Segmento 12: A projeção do funk carioca para o mundo.
O segmento trata de como o funk carioca extrapolou as fronteiras de nosso
país, sendo admirado em diversos outros países do mundo.
Nesse segmento, há imagens de casas noturnas famosas em outros países
tocando o funk, como o é a “Favela Chic”, em Paris. Há também a leitura de um
texto publicado em uma revista estrangeira a respeito do percurso e da fama de
Marlboro, como ainda podemos ver uma entrevista com Bencave, da BBC
Radio, falando de seu fascínio pela música do DJ. Não é difícil perceber que a
intenção é de nos mostrar que o funk que aqui é produzido já extrapolou as
fronteiras brasileiras, sendo apreciado por pessoas especializadas em um tipo
de música que nós ainda insistimos em rejeitar aqui .
Segmento 13: O fechamento: igualdade entre todos.
O fechamento se dá com Deize rodeada de homens musculosos que
rebolam eroticamente ao som de um funk. Em sua fala, ela faz questão de dizer
que não há preconceito no funk e termina dizendo que no funk “todo mundo tem
que rebolar...”, ou seja: no funk todo mundo se iguala.
96
Se entendemos o ethos como a imagem que se liga àquele que fala e se
pretendemos explicitar o ethos que perpassa o documentário, acreditamos que a
ordenação do que analisamos na divisão em segmentos acima possa nos auxiliar a
visualizar mais facilmente o ethos preponderante em nosso objeto de análise.
A análise quantitativa nos mostra que dos treze segmentos, cinco (quase
40%) tratam de questões concernentes à mulher, à sua luta, à sua afirmação social
e à sua conscientização; dois tratam de igualdade para todos (um sobre diversidade
de gêneros e outro em que se tenta veicular que no funk homens e mulheres
rebolam igualmente); um trata da competência (o saber fazer); um aborda o prazer;
um mostra a comunidade como pacífica, um fala sobre trabalho e mão de obra, um
toca na questão do preconceito e da discriminação do “favelado” e um último trata
da projeção do funk para o mundo.
Preponderantemente, o ethos do documentário se quer feminino, mas
também se quer respeitado em seus direitos, aspira um tratamento igualitário de
nossa sociedade, quer ser visto ainda como trabalhador competente no que faz e
pretende desvelar o insistente preconceito do olhar de nossa sociedade sobre o
espaço da favela e sobre os que ali vivem.
97
IX) A SEMIOLINGÜÍSTICA DE PATRICK CHARAUDEAU
Antes de qualquer discussão, acreditamos que convenha esclarecer o que seja a
“Análise Semiolingüística do Discurso”. Como a expressão foi brilhantemente
exposta
por
Oliveira
(2003:24),
resolvemos
reproduzi-la
ipsis
litteris:
‘“Comecemos pela denominação. A análise semiolingüística do
discurso é semiótica (daí semio), é lingüística e é do discurso.
É semiótica, porque não se limita ao valor semântico (no sentido
restrito) das formas lingüísticas, interessando-se também pelo valor
semiótico: 1)da informação veiculada através do significado strictu
senso; 2)de dados extralingüísticos, extraídos da situação comunicativa,
como perfil do falante/escritor e do ouvinte/leitor, a conjuntura histórica,
o gênero textual, etc.
[...]
É lingüística, porque o ponto de partida da interpretação de um
texto é a descodificação dos seus signos verbais.
E é do discurso, porque é preciso analisar o texto em seu
contexto discursivo, do qual fazem parte outros textos pré-existentes a
ele, que circulam na sociedade em geral (passagens bíblicas, contos de
fadas, poemas, letras de música, provérbios, etc.) ou num dado grupo
social (‘casos’ que fazem parte da memória de uma família, empresa,
universidade,etc., por exemplo).
O texto é produto e o discurso, sem cujo conhecimento não se
analisam textos, é o processo.” (OLIVEIRA, 2003, p.24)
Acreditamos, inclusive,
que a explanação acima seja suficiente para uma
primeira compreensão do significado da nova expressão.
Em paralelo à definição de Oliveira, partindo do documentário que analisamos,
podemos adiantar alguns itens:
Acreditamos que nossa análise tenha de se iniciar obrigatoriamente pelo título
do documentário: Sou feia, mas tô na moda. Há nesse título uma proposta de
quebra imediata de um contrato de comunicação estabelecido há séculos em nossa
sociedade, qual seja: só o esteticamente belo pode estar na moda.
98
Como esse sujeito discursivo que se diz e se reconhece “feio” tem a ousadia
de afirmar que está na moda? A presença da adversativa mas deixa clara a
consciência de oposição, de contrariedade, de desacordo com uma idéia
reconhecida como legítima.
Um outro fator que nos chama a atenção é a série de metaplasmos sofridas
pelo verbo estar em sua conjugação “estou”, que no título o transforma em “tô”,
marca evidente da fala do povo e do discurso oral.
A abertura do documentário se dá com um homem (MC G) sentado sobre
uma caixa de som em um ambiente repleto de outras caixas de som. O homem
canta sem acompanhamento e está vestido com uma camisa vermelha onde se
pode ler com facilidade a palavra “Periferia” sobre um código de barras. Ele veste
também uma bermuda, calça sandálias de dedo e usa um cordão dourado no
pescoço. A cor da camisa e a palavra podem, já, carecer de uma breve e primária
análise semiótica: o vermelho, em nossa cultura, sempre representou a paixão,
como também a guerra. A palavra “periferia” certamente nos situa a respeito do
espaço geográfico em que se desenvolve o funk, que o documentário, objeto de
nossa pesquisa, procura desvendar.
Chama-nos atenção também a música de abertura cantada por MC G:
"Quem nasceu, nasceu/ Quem não nasceu, não nascerá/ Com paz, justiça
e liberdade/ o funk sempre vai rolar (refrão) Bis /Porque eu sou cria da favela/ e
só tenho é ser feliz/ falo do Cidinho e Doca, que é o funk de raiz/ um homem
plantado o mal/ e eu tive de te dizer/ como diz mestre mulato, vê se aprende a
viver”
A letra cantada na abertura pode nos proporcionar algumas reflexões a
respeito do que veremos. Ela fala claramente sobre a esperança do enraizamento
do funk, apresenta a paz, a justiça e a liberdade como reivindicações. Pode parecer
estranho para alguns um movimento que foi, durante um tempo, amplamente
99
mostrado pela mídia como movimento de guerra estar reivindicando paz. Que justiça
e liberdade são as requeridas por eles?
O nome da produtora aparece na cena seguinte: “Toscografics” . Os dois os
da palavra são representados por dois homens negros, com cabelos no estilo “black
power”. O nome da produtora nos soa como uma brincadeira, uma ironia, como
também o é a disposição da palavra na tela. Tosco, como define HOUAISS é
1. que se apresenta como veio da natureza; 2.feito sem apuro ou
refinamento, grosseiro, rústico; 3. que se caracteriza pela rudeza,
rústico, grosseiro; 4. destituído de cultura, de refinamento espiritual,
inculto e 5. a parte mais grosseira de uma construção.
(HOUAISS,2001, p.2741)
Humor é algo sério: pelo viés do cômico podem ser trazidas à tona grandes
verdades.
O cômico tem continuidade na cena seguinte: um casal na praia, formado por
um homem musculoso, com alguns pêlos no peito e uma mulher bem magra, ambos
loiros, brindam, usando duas taças nas quais aparece um líquido vermelho. No
fundo vemos apenas prédios altos e podemos ouvir um “batidão”27.
Repentinamente, os olhos do homem se mexem como se ele pressentisse a
aproximação do perigo. Uma sombra cobre os dois, que tremem de pavor, e nos
são mostradas pernas enormes sobre botas muito altas no estilo “plataforma”.
Logo podemos ver a dona das pernas e das botas: uma boneca funkeira
imensa, com um alto-falante no peito de onde sai o som do “batidão” que ouvimos,
diante da qual o casal se torna minúsculo.
Ela esmaga o casal sob suas botas e
podemos ver o líquido vermelho, mistura da bebida que havia nas taças com o
sangue do casal, escorrendo pela toalha que cobre a areia. Em seguida, todas as
27
Batidão é o nome dado, normalmente, ao funk .
100
outras pessoas que ocupavam aquele espaço correm apavoradas: uma mulher com
uma criança de colo (que é o único personagem que não demonstra pavor, pelo
contrário, sua expressão é de alegria e curiosidade diante do “brinquedão”. Seus
braços também demonstram disposição para se entregar ao “brinquedo”.) Até
mesmo um cachorro levanta suas patinhas e foge desesperado.
Só se pode rir diante de uma abertura como essa. Claramente vemos alusão
ao pavor que o funk e os funkeiros causam em nossa população. Estereótipo?
Estigmatização? Preconceito? É isso que tentamos analisar.
É importante frisarmos que a exibição do documentário se deu nos cinemas
chamados “Cinema de Cultura” das grandes cidades. Ele não foi exibido em
cinemas ditos “comerciais”. Isso significa que se dirigia a um público que tem como
hábito ir ao cinema,
para ver os filmes considerados mais refinados.
Cognitivamente , esse público é constituído por pessoas
socialmente como
cuja crítica é respeitada
mais apurada do que a da grande média e bastante mais
exigente no que diz respeito ao filme a que se vai assistir.
101
IX.1) A ANÁLISE SEMIOLINGÜÍSTICA DO TEXTO E DO DISCURSO
Charaudeau
opta
por uma abordagem do discurso na qual o insere (o
discurso) numa problemática que busca relacionar os fatos da linguagem à ação e à
influência, que são fenômenos ligados ao psicológico e ao social. Dessa forma, sua
abordagem torna-se um processo de semiotização do mundo, que, por intermédio
da ação de um sujeito, nada mais é do que o fenômeno da construção psico-sociolinguageira do sentido.
Sob esse prisma, os “personagens” que compõem o documentário constroem
seus projetos de fala para reivindicar, falam para influenciar. Sua intenção é, sem
dúvida, erigir-se como sujeito que tem direitos psicológicos e sociais como qualquer
um outro cidadão. Temos em Deize Tigrona, também conhecida como Deize da
Injeção (doravante chamada apenas
Deize ), a condutora principal do que será
apresentado no filme. Ela ocupa o papel de “cicerone”:
Deize Tigrona
-- Bom gente, nós estamos aqui na Cidade de Deus, onde começou o funk
sensual, né, por que já havia o baile “lado A lado B”... não a gente tem que falar
assim, sensual. Talvez não seja nem para falar, mas neguim fala que o funk é
pornografia, é não sei o quê, não é nada disso. É o funk sensual.
Deize, em sua fala, situa-nos espacialmente: Estamos na Cidade de Deus. É
forçoso observarmos a adjetivação eufemística utilizada para o funk: “sensual”,
opondo-se à “pornografia”. Embora tenhamos falado brevemente sobre o sentido da
expressão “pornográfico”, anteriormente, não podemos deixar de chamar atenção
para a distinção que ela estabelece. O sens ual é moralmente aceito. O pornográfico,
não. É estigmatizado.
102
A abordagem de Charaudeau caracteriza-se por estabelecer relações entre
alguns questionamentos ligados à lógica das ações e da influência social (que são
mais externos ao sujeito) e outros questionamentos ligados à construção do sentido
e à construção do texto (estes mais internos).
Charaudeau aponta , assim, para um duplo processo (necessário) para que a
semiotização do mundo se realize. Ao primeiro processo chama de processo de
transformação; ao segundo, de processo de transação. Para que possamos
visualizar os processos, ele cria o seguinte quadro:
Tomando o quadro de Charaudeau como ponto de partida, o que
encontramos? O documentário torna possível que o mundo de produção do funk
seja transformado em um mundo significado para todos aqueles que não o
conhecem, não o entendem, não fazem parte dele, mas querem, de alguma forma,
ter contato, conhecer.
Charaudeau nos explica que o processo de transformação compreende
quatro tipos de operações, a saber: 1) a identificação, que conceitua e nomeia
todos os seres (materiais, ideais, reais ou imaginários) do mundo fenomênico. Só
após a identificação torna-se possível falar desses seres, os quais passam a ser
“identidades nominais”; 2) a qualificação, a partir da qual os seres poderão ser
descritos por suas propriedades, especificidades, características inerentes; 3) a
103
ação, que os inscreve em esquemas de ação conceituados, conferindo-lhes razão
de ser (tanto ao agirem quanto ao sofrerem a ação). Portanto, são transformados
pela ação em identidades narrativas; 4) a causação, que nada mais é do que a
relação causal que se dá na cadeia de sucessão dos fatos do mundo. Ao agir ou ao
sofrer ação, o ser está inserido nesse círculo de causalidade.
Em relação ao processo de transformação, podemos dizer que temos um
sujeito (ou vários sujeitos), que podemos chamar de identidade nominal do
documentário, que direta ou indiretamente vive do mundo do funk, ou o produz, ou
o canta ou, minimamente, entende-o como manifestação cultural e histórica de um
dado grupo de nossa sociedade.
Esse
sujeito
é
qualificado
pelas
propriedades,
especificidades
e
características que aqui o tornam sujeito: seus discursos coadunam-se por
orbitarem em torno do mesmo tema, o funk.
Embora o documentário, como qualquer outro filme do gênero, retrate o
mundo em que vivemos e as pessoas que o compõem, o documentário não é o
mundo real, é uma representação desse mundo. A ação das pessoas que ali
aparecem, por mais que sejam de fato pessoas do nosso mundo, transformam-nas
em identidades narrativas.
Quanto à causação, por si só se explicita: agindo e sofrendo ação estamos
inseridos no círculo de causalidade.
O lingüista esclarece que o processo de transação se realiza de acordo com
quatro princípios:
1) o de alteridade que leva os parceiros do ato de linguagem a se
reconhecerem como semelhantes ou como diferentes. A semelhança estará ligada
aos saberes compartilhados e a seus objetivos em comum. As diferenças são as
104
marcas que explicitam o fato de que o outro é o outro, é a dessemelha nça que
traçará as fronteiras. Essa diferença pode-se dar apenas pelas posições ou papéis
ocupados na interação: ora se é o sujeito produtor-emissor do ato de linguagem
(sujeito comunicante), ora se é o sujeito receptor-interpretante (o sujeito
interpretante) desse ato. Tal princípio nos mostra que cada um dos parceiros está
envolvido em um processo recíproco, mas não simétrico, de reconhecimento do
outro pelas suas diferenças, pela alteridade. É essa interação que possibilitará a
legitimação do outro. Portanto, a legitimação é uma condição para que o ato de
linguagem possa ser considerado válido, como também é o fundamento do aspecto
contratual de todo ato de comunicação. Observemos:
Raquel
... Por que acha que só por ser favelado, a gente não tem cultura. Então
eles acham que funk não é uma cultura. Falou em funk, vê logo: Cidade
de Deus, os favelados.
Andrea
— Nós fomos pro show, outro dia com a Tati e aí chegamos nesse show e eles
falaram assim: “Chegou os favelados”. Nós debaixo, jogaram um jato d’água,
eu virei e falei assim: “Lá na CDD os favelados não joga água do prédio”. Maior
jatão, “scheleps”.
As duas falas anteriores demarcam com clareza o princípio de alteridade.
A fala de Raquel expõe, sob sua ótica, o olhar do outro, daquele que pensa
que o morador da favela não tem cultura e, por isso, não consegue analisar o funk
como sua manifestação cultural.
105
A fala de Andréa deixa mais clara a marca da alteridade: os favelados não
são capazes de agredir o não-favelado da forma como estão sendo agredidos por
sua condição.
A assimetria aí é evidente. A fala de Denise, que intermedeia as duas
anteriores, situa-nos espacialmente e, em tese, aponta-nos as diferenças sociais,
econômicas e culturais envolvidas, como se houvesse uma guerra de classes:
Denise
— Era um prédio de luxo em Copacabana.
É essa interação (ou a falta dela) que situará aqueles sujeitos como
diferentes. Um contrato de comunicação belicoso é estabelecido.
2) o de pertinência, segundo o qual os parceiros do ato de linguagem
necessitam da possibilidade de compartilhar (sem que seja necessário adotar) os
saberes ligados ao ato de linguagem em questão. Esses saberes devem estar
conectados ao ramo de conhecimento a que pertence o ato de linguagem (têm de
ser apropriados ao contexto e à finalidade), ou seja, saberes sobre o mundo, sobre
fatos e valores psicológicos, sobre comportamentos sociais, entre outros.
Silvio Essinger, jornalista, autor do livro “Batidão – Uma história do funk” , é a
primeira autoridade que surge, demonstrando seu saber:
106
Silvio Essinger (jornalista, mostrando vários LPs)
— Isso aqui é o começo de tudo, predominância de Soul. Baile do Big Boy,
começo dos anos 70. A gente tem aqui Ademir Lemos, outro grande DJ, que
fazia o baile junto com o Big Boy e que continuou nessa tradição do Soul. A
gente chega aqui às primeiras equipes de Soul. Soul Grand Prix, disco de 78,
Furacão 2000. A cada baile mais de 10.000 adeptos do Soul confirmam: este é o
som! E aqui você uma idéia do que era o baile da Furacão, anos 70, segunda
metade dos anos 80, Two Live Crew, Miami Bass, Hip Hop, que até hoje serve de
base para o funk carioca.
A fala de Grandmaster Rafael também nos esclarece um pouco a respeito da
tecnologia utilizada na produção dos funks:
Grandmaster Raphael
-- Quando eu faço na bateria, eu faço nesse teclado também, que esse teclado é
acoplado nesse sampler. Esse sampler é um Darose 760, que eu uso. Eu estou
batendo aqui, mas quem está gerando o som é esse equipamento aqui. Isso é um
sampler também. Depois isto vai para o mixer e começo a berrar em cima. A
melodia é sempre a mesma, em 90% das montagens. Então uma frase “dá, dá, dá,
dá, dá...”
Ainda que possa ser visto como primitivismo o “... e começo a berrar em
cima...”, é o tecnológico que sobressai na fala. O “berro” pode nos remeter a uma
espécie de música tribal. Grandmaster Raphael nos diz que a melodia, em 90% das
montagens, é sempre a mesma. Seria isso suficiente para que se considerem o funk
não-cultura?
3) o de influência que, como seu próprio nome sugere, pretende influenciar o
outro, atingi-lo seja com que fim for (para agir, pensar, emocionar ou orientar). Em
contrapartida, trata, também, do alvo dessa influência que é o sujeito receptorinterpretante do ato de linguagem. Esse saber-se alvo viabiliza a possibilidade de
interação e, ao mesmo tempo, obriga os interlocutantes a considerarem as
restrições ao exercício da influência.
107
Em relação ao princípio da influência, duas falas nos chamam atenção.
Mr Catra
— Um coroa comendo a criancinha na novela das 8 não é sacanagem, tá ligado?
— O cara trepado em cima da mulher 8 horas da noite na TV Globo não é
sacanagem. O funk é sacanagem. Sacanagem é o dinheiro que o governo
sonega, rouba. Isso que é sacanagem, isso que é crime, tá ligado? Realidade
não é crime, realidade não é sacanagem. Todo mundo gosta de fazer amor, todo
mundo gosta de gozar gostoso.
Mostrar a pedofilia, que se constrói no abuso sobre um outro que ainda não
tem poder de escolha e por isso é abusado, que tem como conseqüências marcas
que jamais serão apagadas, e falar sobre ela, é permitido – desde, é claro, que o
enunciador seja autorizado.
As falas de Catra levam-nos a pensar em algo que para os "funkeiros" soa
como evidente: outros enunciadores – mais aceitos socialmente – podem abordar a
realidade, entretanto o "funkeiro" não (ainda que a realidade seja a mesma que os
outros veiculam).
4) o de regulação, pelo qual os parceiros de um ato de comunicação
recorrem a estratégias que garantam uma intercompreensão minimamente
necessária para que a troca se efetive. Esse princípio está estreitamente ligado ao
princípio anterior, por que, como se sabe, à influência pode haver (como resposta)
uma contra-influência. Os sujeitos do ato comunicativo sabem, de forma consciente
ou não, sobre aquilo que trata o ato de linguagem do qual participam. Esse é o
princípio que permite que o ato linguageiro prossiga e chegue a uma conclusão,
sem que sejam necessários confrontos físicos nem ruptura de fala.
108
Thelles Henrique (produtor)
-- Eu me lembro muito bem que o então secretário, Josias Quental, nessa
mesma reunião dessa senhora, me disse, me fez uma pergunta, ele não
tinha conhecimento: “Mas por que o apelo sexual no funk? Por que essas
letras sexuais?” Eu disse para ele o seguinte: “ Secretário, na época,
essas pessoas que cantam funk hoje, elas têm entre 16, 17, 18 anos. E eles
cresceram e quando crianças o funk não era um sucesso da mídia. O
sucesso da mídia era o Axé Music. E essas crianças que hoje estão se
formando adultos, cantam “69 frango assado”, cantam outras letras que
vocês se sentem agredidos, elas ouviram nada menos agressivo do que
“Vai ralando na boquinha da garrafa, vai descendo na boquinha da
garrafa” e uma mulher semi-nua, se esfregando no gargalo de uma garrafa
de cerveja e isso é o maior sucesso.
A troca de idéias mostra-se clara. Há uma pergunta, em tom de crítica, que
parte de um locutor cuja influência é inquestionável. O interlocutor parte para uma
contra-influência que tem como base a própria história social e musical. A
intercompreensão se efetiva e o princípio de regulação é posto em prática.
Não podemos fechar os olhos, porém, para o gesto que o locutor faz durante
sua fala (ele une o dedo indicador ao polegar em forma de círculo e levanta os três
outros dedos, o que, em nossa cultura, substitui um desejo ou um imperativo visto
como bastante vulgar). A postura de não-aceitação ou de contrariedade diante do
que havia sido tratado anteriormente é evidente . 28
Os dois processos (de transformação e de transação) são solidários um para
com o outro, ainda que se realizem conforme procedimentos diferentes. O processo
de transação controla as operações de identificação e de qualificação do processo
de transformação, denotando, assim, que há uma hierarquia entre os processos.
28
Uma pergunta nos intriga: Por que o “axé-music” não sofria tantas críticas quanto sofre o funk ? Era chamado
por alguns de “bunda-music”, mas não passava disso. Será que as mulheres eram mais próximas esteticamente
do ideal de beleza de nossa sociedade? Será que o fato de não serem negras/faveladas influenciava o
comportamento dos outros?
109
“Postular a dependência do processo de transformação para
com o processo de transação equivale a marcar uma mudança
de orientação nos estudos sobre a linguagem, buscando-se
conhecer o sentido comunicativo (seu valor semânticodiscursivo) dos fatos de linguagem. Assim como não é mais
possível contentar-se com as operações de transformação
isoladamente, também é necessário considerá- las no quadro
situacional imposto pelo processo de transação, quadro que
serve de base para a construção de um ‘contrato de
comunicação’.” (CHARAUDEAU, 2005, p.16)
Dessa forma, os fatos que os cineastas desejam repassar ao público sofrem,
primeiramente, um processo de transformação. A seguir, são negociados levando-se
em consideração o auditório esperado (tu-comunicante) e a imagem que se tem
desse auditório (tu-destinatário).
O esquema que segue mostra a hierarquização dos processos:
110
IX.2) A NOVA ANÁLISE DO DISCURSO (O HOMEM EM SOCIEDADE – LÍNGUA,
COMPORTAMENTO E COMUNICAÇÃO): O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO.
Em artigo publicado em 1996, no livro “O discurso da mídia”, Charaudeau
propõe o acréscimo do qualificativo “nova” à Análise do Discurso, criando-se, pois,
uma Análise do Discurso sob nova perspectiva.
Ao apresentar sua proposta, o lingüista
nos traz uma primeira dicotomia
inerente a ela: o lingüístico e o situacional. Para ele, a significação discursiva é
resultante de dois componentes: um componente lingüístico que opera com a língua,
seu material verbal e
um componente situacional, que opera com um material
psicossocial, o qual tenta dar conta do homem em sociedade, de seus
comportamentos e de sua comunicação. A significação discursiva, então, seria a
resultante dessas duas forças que originariamente são autônomas, mas seus efeitos
são interdependentes.
Um ponto que nos chama atenção é o fato de que, para Charaudeau,
codificação e decodificação são processos ativos, ou seja, o emissor produz o
seu texto. Ao lê-lo e interpretá-lo, o receptor torna-se co-autor ao acrescentarlhe significados novos, nos quais, muitos deles, o autor pode sequer haver
pensado. O texto decodificado pelo receptor dificilmente será exatamente o
mesmo texto que o emissor codificara antes, pois tudo colabora e/ou interfere
para que não seja.
Logo, a maneira como o funk é interpretado pode ser um bom exemplo
disso. Há uma dita elite que, durante muito tempo, viu-o como marginal,
indecente, imoral. Essa é uma das interpretações. Há, contudo, como nos
mostra o filme,
um outro grupo, formado por pessoas que produzem funk,
111
fazem parte das comunidades e freqüentam os baile funks que o compreendem
até mesmo como libertário.
Os elementos que compõem a situação da comunicação (sejam eles quais
forem, até mesmo o status ou o nível de intimidade/proximidade dos falantes)
interferem diretamente no significado do que se produz. Uma frase dita por um
amigo ou por um irmão pode assumir significado totalmente distinto se a mesma
frase for produzida pelo gerente geral da empresa ou por um desconhecido.29
Acreditamos que isso tenha ficado bastante claro no capítulo que intitulamos
“Os vários olhares sobre o funk: muda o enunciador, muda a história”.
Com a “onda” do “politicamente correto ”, podemos observar, por exemplo,
que as conseqüências advindas de uma produção como “—Cala a boca, negão!”
se direcionada a um homem negro, pode ter conseqüências totalmente
diferentes se produzida por um superior hierárquico branco ou por um amigo
qualquer.
O significado do discurso,então, é o resultado direto daquilo que é falado em
junção das circunstâncias em que se fala, sem que se deixe de analisar quem o
produziu e as informações sobre esse falante. Por isso, para que haja
comunicação, há a necessidade do outro. Ao
mesmo tempo que esse outro é
necessário, pode representar uma ameaça, podendo provocar a frustração ou a
negação do que se pretende. Isso faz do ato comunicativo um eterno risco: o risco
de não ser compreendido ou de ter o seu discurso negado, diminuído,
desrespeitado.
29
Os estudos da Pragmática tratam muito bem desse assunto. As frases, por exemplo, que soam doces
quando ditas no ouvido da amada pelo homem a quem ela ama, podem ser extremamente grosseiras se
ditas por um outro homem qualquer.
112
Deize da Injeção
— O problema não é o sexo. O problema não é que eles estão
discriminando o funk. O problema é que eles estão discriminando o
pessoal da comunidade, que eles não querem ver subir de jeito nenhum
A fala
de Deize, no exemplo acima, que tenta deixar claro que a
discriminação contra o funk na verdade é a discriminação ao favelado,
é um
exemplo explícito de discurso negado pelo preconceito , pois o discriminado não é
ouvido, há a cassação de sua voz. Se o sujeito é desqualificado social e
culturalmente, o seu discurso também o será.
Ora, à medida que não houvesse diferença, não haveria o outro. É pela
existência de um “Tu” que se produz a existência de um “Eu”. O outro se faz, a
alteridade se constrói pelas diferenças. Isso nos leva a pensar, conforme apontado
em Charaudeau,
“que todo sujeito falante deve preferir encontrar-se em presença de um
interlocutor que não esteja de acordo com ele – porque só por esse fato
ele o reconhece, ao menos, como parceiro de linguagem – do que um
sujeito que, negando-se (circunstancialmente), nega os interlocutantes, e,
assim, o próprio contrato de comunicação.” (CHARAUDEAU, 1996,
p.23)
Pragmaticamente, as diferentes situações podem exigir contratos de
comunicação diferentes, por serem responsáveis, cada uma, por sua gama
própria de implícitos. Esses implícitos estão ligados diretamente à situação que
os produz, criando-se um elo entre análise de texto e o contexto que o gerou.
Fora desse elo, a análise não é possível.
113
A comunicação se dá à medida que se procede à mise en scène30 de um
projeto de comunicação. Ela acontece quando assumimos o papel exigido pela
situação comunicativa: diante de nossos filhos, o papel que nos é exigido é de
pais. Nessa situação, por exemplo, caberia uma frase do tipo “João, vá escovar
os dentes”. Numa sala de aula, podemos assumir o papel de professor ou de
aluno. No bar, podemos ser somente amigos, que é um outro papel, onde a
frase “João, vá escovar os dentes”, dirigida a um amigo, só faria sentido se o
objetivo fosse fazer troça, por exemplo.
Como estamos a todo tempo assumindo papéis diferentes, posicionamentos
diferentes, fica-nos a impressão de que a mise en scène não cessa. Nossos
projetos de comunicação não terminam também, porque somos seres que se
comunicam o tempo todo, até mesmo quando em silêncio. Esses projetos de
comunicação, cada um pautado em seus objetivos, darão origem a diferentes
contratos de comunicação. Representamos/encenamos os papéis que nos
cabem durante todo o tempo.
Se os objetivos do projeto de comunicação não forem atingidos, dizemos que
houve falha no contrato. O referido mal-entendido é um bom exemplo e configura-se,
pois, como falha contratual. Nele, um sujeito falante elabora o seu discurso e tem a
impressão de que seus interlocutores o entendem, porém isso não passa de
impressão. A informação que chega ao interlocutor não é a pretendida pelo sujeito
falante.
Duas falas despertam nossa atenção em relação ao mal-entendido.
Observemos:
30
“A metáfora teatral é onipresente entre os analistas do discurso inspirados pela pragmática. Na análise do
discurso francofônica, a noção de cena é constantemente utilizada para se referir à maneira pela qual o discurso
constrói uma representação de sua própria situação de enunciação” (Maingueneau: 2000, 20)
114
Andrea
-- Ah, muitas mulheres eram muito acanhadas em fazer as coisas,
entendeu, então o que aconteceu, a música incentivou as mulheres a botar
pra fora como a Tati canta “bota na boca, bota na cara”, então hoje é mais
Raquel
-- Pras mulheres e pros homens também, né, porque no caso dos
homens chega e fala para as mulheres, chega e fala “Ah, vamus ali”.
As mulheres antigamente, antigamente antes de surgir o funk, ia
numa boa, aceitava, vamos no meu prédio, vai e assim tava indo,
agora surgino o funk, não. Especialmente a música da Tati, que está
dizendo muita coisa, alertando as mulheres.
Parece-nos que o discurso de ambas nos falam de algo positivo que o funk
proporcionou à s mulheres.
Na primeira fala, a de Andrea, embora o ato seja praticado pelo homem, a
mulher se permitiu fazê-lo (e falar dele). Aponta para, no mínimo, uma fala que
deixou de ser proibida. Não há mais acanhamento em se falar sobre a
intimidade. Parece-nos que, embora a ação seja masculina, ela, a mulher quer
que seja assim. Quer que ele faça de um jeito – e
não de outro. A mulher
assume, então, uma noção de comando.
A fala de Raquel, por sua vez, aborda a descoberta, somente agora, de que
a mulher não tem de ser objeto do homem. Somente agora, parece-nos, essa
mulher descobre – e, segundo Raquel, sob a influência da música de Tati
Quebra Barraco – que não tem de aceitar todos os desejos do homem.
31
31
Causa-nos grande estranhamento uma questão: As mulheres negras e pobres enfrentaram o mercado
de trabalho muito antes das feministas, mulheres brancas de classe média, levantarem a voz pelo direito
ao trabalho fora de casa. Por que somente agora se descobrem ou começam a se descobrir como nãoobjeto de uso do masculino?
115
Se as interpretações de Andrea e Raquel estão “corretas”, houve uma
grande falha, um grande mal-entendido no contrato de comunicação do funk.
Até o lançamento do documentário, não se ouvia falar muito dele a não ser
como perversão ou louvação ao crime.
Talvez seja
essa a
falha que o
documentário tenta corrigir.
A aproximação relacional, que trata do reconhecimento recíproco dos
falantes, pode ser um dos fenômenos a reduzir a ameaça comunicativa, a reduzir o
risco a que o sujeito falante se expõe.32
A comunidade “fala a língua” da comunidade, logo a compreensão torna-se
mais próxima, por que não dizer, mais fácil. Talvez seja esperado das mulheres que
compõem aquele espaço a mise én scene de “guerreira”, custe o que custar.
Diferente dos meios sociais em que vivemos, cujo padrão de conduta ainda é ditado
por normas rígidas de comportamento. Baseamos, ainda, nossos julgamentos em
torno do que seja socialmente apresentável ou não e, em nosso código social, uma
mulher falar de seus desejos sexuais (principalmente, dos mais íntimos), de suas
fantasias e usar o “palavrão” para isso ainda parece ser completamente inaceitável.
Mas o que se apresenta ali, no documentário? Se, em nossas vidas comuns,
consciente ou inconscientemente, representamos, vivemos uma mise en scéne,
é de se imaginar como isso se dá se estamos diante de câmeras, de luzes, de
pessoas que nos entrevistam. Esse é um dos grandes problemas do
documentário, como já apontado anteriormente. Te mos pessoas do nosso
mundo histórico, mas embora essas pessoas estejam sendo convidadas a
32
Talvez seja essa aproximação relacional que nos traga as respostas a respeito da diferença de compreensão
da manifestação funk .
116
mostrar a sua vida como ela de fato o é, embora o convite seja à naturalidade, é
muito difícil ser natural diante das circunstâncias de produção de um filme.33
O projeto de comunicação, segundo Charaudeau (1983:50) (apud Oliveira
2003:34), traz em si os objetivos e a finalidade do discurso. Quando escrevemos
e/ou falamos, temos objetivos em mente a serem alcançados e pensamos em
estratégias que nos levarão a atingir o nosso alvo. Esse conjunto de finalidades
e as estratégias para atingi-las constituem o projeto de comunicação.
Então, qual seria o projeto de comunicação subjacente ao documentário que
analisamos?
Vejamos, pois: há um interesse claro de se tratar da história e dos
fundamentos do funk. Isso ora se dá com base teórica e histórica (utilizando-se
como locutores pessoas que notoriamente viveram a história do funk, como o DJ
Marlboro, ou que o pesquisaram, como Silvio Essinger),
ora se apresenta de
forma empírica (com aqueles que , mesmo desconhecidos da grande maioria de
pessoas, contribuem com o seu relato, como os diversos moradores da
comunidade Cidade de Deus ).
O documentário pode ser dividido em treze segmentos, conforme apontamos
em capítulo anterior, no qual discorremos sobre Ethos.
A partir da análise desses segmentos, uma parte do projeto de comunicação,
não temos dúvida, está desvendada: o documentário tem como objetivo trazernos uma visão a respeito sobre o mundo do funk com a qual não estamos
habituados. Ele pretende nos mostrar o funk por um outro prisma, por um outro
ângulo de visão. Como muitos textos da mídia propalaram o nascimento de um
33
Falar de representação e de mise en scéne nos remete mais uma vez ao conceito de ethos .
117
novo discurso feminista a partir do documentário, acreditamos que, quanto a
isso, ele também atingiu o seu fim.
Isso posto, para que nosso discurso atinja o objetivo que se pretende, temos
que explorar a margem de manobra disponível, ou seja, temos de ser capazes
de administrar aquilo que nos é permitido (as liberdades) e aquilo que não nos
é permitido (as restrições).
É notório ao mais simples dos falantes que há um quadro de restrições e
de liberdades em que estão inseridos os atos de linguagem. É esse quadro
que nos deixa claro que não podemos falar o que quisermos, da forma que
quisermos, na ordem sintáti ca ou morfológica que desejarmos. Também
temos
clareza, porém, de que podemos estruturar frases que possuam o
mesmo significado partindo de escolhas sintáticas e/ou lexicais diferentes.
Isso nos mostra o quadro de liberdades em que os atos estão inseridos.
Tais restrições e liberdades podem estar ligadas à própria língua ou
ao comportamento lingüístico dos falantes. São inerentes à língua fatos
como restrições sintáticas, por exemplo. Não se deve usar um adjetivo
plural
que
tente
estabelecer
concordânc ia
com
um
nome
singular
(“criança bonitas ”, por exemplo ). Em relação aos comportamentos, os
contratos de comunicação também agem dentro de um quadro de
restrições e liberdades. Não é facultado à mãe da noiva dizer “eu aceito”,
em seu lugar, no momento da cerimônia de casamento em que o
sacerdote lhe pergunta se ela aceita o homem como seu esposo.
É o comportamento lingüístico que vai determinar quem pode dizer o
quê, em que circunstâncias, a quem e como. Sabe-se, porém, que um
discurso que não é aceito em uma dada situação (seja ela de tempo, d e
118
espaço geográfico ou da esfera social), pode perfeitamente ser aceito ou
amplamente veiculado em outra. São
exatamente as restrições e as
liberdades que vão determinar a natureza do contrato de comunicação
que está sendo erigido entre os parceiros de um ato de comunicação.
Ou seja, todo contrato de comunicação irá pressupor a situação
comunicativa em que ele está inserido.
A fala que segue, do DJ Marlboro, demonstra a diferença clara disso.
O discurso se erige também em função de seu destinatário:
DJ Marlboro
— Quando você tinha o Rap da Felicidade “eu só quero é ser feliz”, tinha o
Rap do Silva, era a favela cantando para o asfalto. Então, ele estava ali sempre
mostrando que a favela é muito legal, mostrando auto-estima, mostrando...
Quando o funk foi expulso do asfalto e foi para dentro da favela, passou a
favela a cantar pra a favela, já é outras regras, outras leis, outro ouvido,
ouvindo. É o ouvido que sabe o que está acontecendo de verdade mesmo.
Se o discurso da favela se dirige ao asfalto, a felicidade torna -s e a
maior das reivindicações. Nada mais é necessário. A despeito dos
olhares de fora, a favela é vista por seus moradores como “muito legal”.
Se há a mudança do "tu-destinatário", há, necessariamente, a mudança
do discurso. Se o "tu -destinatário" tem ouvidos daqueles que sabem o
que está acontecendo na realidade, a fantasia deixa de ser necessária. A
mis-én-scene é outra. Isso também pode ser visto, mais claramente,
ainda, nesta outra fala de Marlboro:
119
DJ Marlboro
— Aí, depois reclama das músicas, que a música passa a falar de uma realidade
da favela, que as pessoas se assustam, que funk, que é uma realidade que as
pessoas vivem, acham que é errado, que não podia fazer essas letras. Como
não? É o que eles vivem, é o que eles passam. Como é que você vai querer que
eles façam uma letra para você, se você não vive a realidade deles?
Mc Frank mostra o exemplo de como a música é produzida:
MC Frank
— Disseram na televisão que “vamos pegar os MCs para averiguação, vamos é...
“ como se diz?, é... “eles vão ter que dar depoimentos...” E a minha música
estava nesse... no jornal saiu quatro músicas minhas: uma do Menor do Chapa e
outro do Cidinho e Doca. Então, eu ali, no caso, era o mais visado. A maioria das
minhas músicas, elas são verídicas, são coisas que acontecem mesmo, por
exemplo: “Uma hora da manhã o bonde todo se apronta / desce pelas vielas no
estilo tipo Colômbia / Quando eu tava subindo, não deu pra acreditar / tiro pra
caramba, no estilo de Bagdá.” Eu estava subindo para curtir o baile e os policiais
estavam entrando na favela, e, ao mesmo tempo que os policiais estavam
entrando na favela, aí, os caras estavam descendo lá de cima. Então, rolou um
confronto de armas, tiro pra lá, tiro pra cá e eu fiquei naquele meio e o motorista:
“Caraca, cara...” e eu falei: “Maluco, é tipo Bagdá!”
Se as letras abordam um fato, se as histórias são verídicas, como se
pode levar à prisão alguém que retrata a verdade? A verdade da favela
não pode aparecer? As verdades daquelas pessoas são insuportáveis a
nossos ouvidos e por isso não merecem ser ouvidas?
É a capacidade de lidar
e transitar nesse espaço de restrições e
liberdades, de explorar essa margem de manobra disponível que vai garantir o
sucesso ou o insucesso do projeto de comunicação. Quanto mais o que o Eucomunicante supôs a respeito do Tu-interpretante estiver correto, mas chances
haverá de o projeto de comunicação atingir o seu fim. (OLIVEIRA, 2003, p.34).
O quê, dentro da margem de manobra disponível,
poderíamos considerar
como liberdades (o que é permitido) e como restrições (aquilo que não nos é
permitido) em relação ao documentário? A explicitação do contrato leva-nos a
120
retomar, mais uma vez, o capítulo de nossa tese “Muda o enunciador, muda a
história ”.
Caso se pretenda realizar um documentário que irá mostrar a um Tuinterpretante uma nova forma de olhar o funk, a demonstração da violência está
dentro do campo das restrições, o comércio de drogas também. Na verdade,
isso não interessa diante do universo que se quer dar notoriedade. Pode ser
visto como detalhe, da mesma forma que foi e tem sido mostrado como detalhe
quando os mesmos fatos (os mesmos eventos) fazem parte de outras
vidas/histórias eleitas socialmente como ídolos aceitáveis ou modelos.
No campo das liberdades, interessa exclusivamente a explicitação dos
discursos que “deram certo ”. É importante ir ao ambiente em que o funk é
produzido, conhecer as pessoas que o compõem, mostrar o que elas pensam,
qual a sua análise do movimento, como o movimento influenciou suas vidas e
seu espaço.
Acreditamos
que , nisso,
Denise
Garcia,
a
quem
consideramos
Eu-
comunicante principal do documentá rio (aquela que o idealizou e o produziu),
mostrou-se muito feliz em sua capacidade tanto em lidar, quanto em transitar
nos espaços de liberdade e restrições que se colocam diante de seu objetivo.
Independente do poder do locutor, porém, o projeto de comunicação pode ter
sucesso ou não. É óbvio que o “status” do locutor e o de seu interlocutor
configura uma das variáveis que influenciam esse sucesso ou insucesso, mas a
força do discurso está ligada muito mais à eficácia com que ele elabora e
executa o seu projeto de comunicação.
Ora, o contrato de comunicação fundamenta -se sobre três pilares, a saber: o
primeiro deles é a pertinência do saber, que tradicionalmente é conhecida na
121
análise do discurso como intertextualidade (a inter-relação de saberes pré-existentes
e a referência que se faz a eles).
O princípio de pertinência se dá pelo reconhecimento mútuo dos parceiros e
de seus saberes em comum, incluindo-se nisso todo um saber prévio sobre a
experiência do mundo e sobre o comportamento do ser humano em coletividade.
Isso pode ser observado na seguinte fala de Marlboro:
DJ Marlboro
— Essa música toda ela é feita com uma característica própria, como
lugar nenhum do mundo faz e esse reconhecimento, quem tem que
fazer isso é o Ministério da Cultura, a Secretaria da Cultura, antes de
qualquer tipo de lugar, né? Mas, infelizmente, o mundo reconhece e a
gente lá fica “funk é música de preto, pobre e favelado.”
Esse princípio se funda e se realiza num espaço de significância que é, ao
mesmo tempo, interno e externo à sua verbalização. Esse fenômeno aponta para o
surgimento de dois tipos diferentes de sujeitos de linguagem: os interlocutores,
denominados sujeito comunicante e sujeito interpretante; e os intralocutores,
protagonistas, responsáveis pelo ato da fala e denominados (sujeito) enunciador e
(sujeito) destinatário.
Assim, para que o sujeito falante tenha o direito à palavra e se previna do
risco de ter seu discurso desqualificado, é necessário lançar mão dessas
estratégias. Deve se empenhar para que o interlocutante atribua pertinência ao seu
discurso, ligando-o a um domínio de saber. Metaforicamente, o domínio do saber é o
espaço onde circulam os discursos de verdades e de crenças, sem que se pretenda
tratar de filosofias em torno de conceitos como “verdadeiro” e “falso”. Pretende-se
tratar somente de um discurso sobre o mundo.
122
Assim, os significados consensuais, construídos por uma comunidade social,
acabam por forjar esse discurso sobre o mundo, o qual se torna ponto de referência,
possibilitando a troca em suas representações supostamente partilhadas, dentre os
parceiros de comunicação. Essas trocas podem estar ligadas à percepção do
tangível (mundo físico), à experiência do mundo vivido (afetos e ações) e à prova do
raciocínio (intelecto).
O sujeito falante será avaliado, portanto,
em relação ao domínio que ele
apresenta do saber a que se propõe veicular ou transmitir
DJ Marlboro
-- Ela fala exatamente para poder mostrar, dar o grito de liberdade das
mulheres. Não estou falando que ela em particular sofreu repressão, ela está
fazendo isso por causa... Não! Ela falou por todas. Por isso que a mulherada, a
maioria das mulheres é fã da Tati. A mulherada geral é fã da Tati. Ela tem mais
fã mulher do que homem. Por quê? Porque ela grita e porque as mulheres
sempre gostaram de gritar, de botar homem na praça, de direitos iguais. Mas
ela é feminista sem cartilha, ela não aprendeu isso, ela aprendeu isso com a
vida, ela aprendeu isso na vivência.
( Tati cantando: “Não adianta de qualquer forma eu esculacho / me chamam de
puta só porque estou com seu marido...”)
Para conferir pertinência ao documentário, temos falas de pessoas que
demonstram
saberes
estritamente
conectados
aos
atos
de
linguagem
demonstrados, construídos, veiculados por ele.
Antes de mencionar qualquer um outro exemplo, o primeiro, sem dúvida, é o
da própria Denise Garcia, produtora do filme, diretora de estréia, que vê seu primeiro
filme sendo levado a salas consideradas de projeção de filmes de cultura nas
maiores cidades do Brasil, sendo levado também a cinemas de
Berlim, por exemplo , e discutido na mídia,
como
Londres e de
mostram alguns de nossos
anexos. Os textos dos anexos – veiculados pela mídia – podem ser considerados
como aptos a conferir a desejada pertinência ao documentário.
123
Como outros exemplos, citem-se Deize da Injeção, Tati Quebra-Barraco e Mr
Catra que são grandes nomes do funk carioca, como também o são Veronica Costa
e DJ Marlboro.
O segundo pilar em questão é o Reconhecimento do Poder, que tem de ser
encarado como a legitimidade socioinstitucional, tornando o discurso uma teoria da
instância da enunciação como apontou Parret (apud CHARAUDEAU,1996, p.28).
O Reconhecimento do Poder se estabelece não só pelo papel social do
sujeito falante. Não é somente o seu estatuto socioprofissional que o legitima, mas,
sim, a inter-relação entre este, que é sua identidade psicossociológica, e o papel
linguageiro, que nada mais é do que o papel comunicacional. Observe-se:
Eliete Mejorado (Lendo uma matéria publicada numa revista sobre o DJ
Marlboro)
Página 127: “Nada, senão um trabalhador, o carioca DJ Marlboro está na
cidade para tocar não em um nem em dois, mas em cinco pubs na mesma
noite.”
A legitimidade, então, não se dá de forma tão simples como pode parecer. O
espaço externo a confere, logicamente, mas não é essa a única instância. É
necessário que o sujeito seja capaz de fazer a adequação necessária e na medida
certa entre sua identidade psicossocial e seu comportamento como aquele que
comunica, como ser comunicante, como ser linguageiro.
O Saber Fazer é, então, o terceiro pilar que fundamenta o contrato de
comunicação. Observamos, assim, que , para que a legitimidade (que é pré-
124
adquirida) seja outorgada, é necessário não somente SER, mas também PARECER
SER.
Daí, só o estatuto da
legitimidade não é o suficiente para que se tenha o
direito à fala. A competência como sujeito que comunica tem de ser atestada, o que
só se torna possível pela Credibilidade, que tem de ser reforçada periodicamente,
isto é, apresentar atributos que confirmem seu valor dentro do social.
Bencave
— Tenho certeza de um crescimento no Reino Unido, um crescimento pela
Europa. Alguém como o Marlboro poderia se dar muito bem, muito bem. Isso
porque tem música um pouquinho parecida. As pessoas conseguem
entender um pouco mais hoje em dia, eu acho. Acho que é uma novidade,
definitivamente. Talvez nos últimos dois anos, ela tem atingido
devagarzinho, eu acho.
Logo, o Saber Fazer do sujeito será sempre avaliado, julgado e reconhecido
exatamente a partir de sua capacidade de se movimentar constantemente entre o
espaço interno e o espaço externo da cena comunicativa. Somente tendo um
projeto de fala, essa competência será possível.
Além dos exemplos retirados de falas do documentário, podemos citar mais
uma vez Denise Garcia, produtora e diretora do filme: embora seja este seu filme de
estréia, como dissemos anteriormente, teve seu saber fazer reconhecido. Além de o
documentário ter sido levado a salas de Londres, Berlim, Cannes,
teve também
seus direitos autorais comprados pela Rede de TV árabe Al Jazira (que ganhou
notoriedade mundial a partir da cobertura da Guerra do Afeganistão (2001) e em
razão da divulgação de vídeos terroristas com exclusividade).
125
Partindo-se do pressuposto que o ato de linguagem nasce de uma situação
concreta de troca, que nele sempre há uma intencionalidade, que o mesmo se
organiza em torno de um espaço de estratégias e de um espaço de limitações e que
constrói sua significação na interdependência entre um espaço externo e um espaço
interno, CHARAUDEAU (1996, p.35) propõe um modelo de estruturação em três
níveis:
1)
O situacional: que se ocupa dos dados de espaço externo, e que
constitui ao mesmo tempo o espaço de limitações e de restrições do
ato de linguagem. Nele se determina: a) a finalidade do ato de
linguagem, que, resumidamente, responde à pergunta “dizer ou
fazer o quê?” ; b) a identidade dos sujeitos linguageiros, cuja
pergunta é “quem fala a quem?” ; c) o domínio do saber, onde são
veiculados os conhecimentos, que tem como perguntas “a propósito
de que?/ sobre o quê?”; d) as circunstâncias materiais da troca, que,
embora não tratem de cronologia, dizem respeito ao tempo e ao
espaço e respondem à pergunta “em que quadro físico de espaço e
tempo?”. São as situações sociodiscursivas (sob a forma de
contratos de fala) que constituem essa competência.
O situacional pode ficar bem marcado na seguinte fala de Deize,
principalmente quando ela diz “... não, a gente tem de falar assim, sensual. Talvez
não seja nem para falar...”:
Deize Tigrona
-- Bom gente, nós estamos aqui na Cidade de Deus, onde começou o funk sensual,
né, por que já havia o baile “lado A lado B”... não a gente tem que falar assim,
sensual. Talvez não seja nem para falar, mas neguim fala que o funk é pornografia,
é não sei o quê, não é nada disso. É o funk sensual.
126
De certa forma, já abordamos anteriormente o situacional quando falamos do
espaço de manobras. Quanto ao que ele determina, podemos ainda ratificar que o
documentário tem, como finalidade de seu ato de linguagem, mostrar a nós
espectadores, tornados seus destinatários, um olhar diferente sobre o funk.
As circunstâncias envolvem nosso tempo presente e passam pela questão da
favela mostrando-se à não-favela. É um olhar que se desvela, é um “objeto” que se
expõe.
2)
O do comunicacional: nesse nível são determinadas as maneiras
de falar (escrever) em função dos dados situacionais. Responde-se
à pergunta: como dizer? É importante ao sujeito falante (seja ele
comunicante ou interpretante) as questões relativas aos
“papéis
linguageiros” que ele deve assumir e que garantam seu “direito à
palavra” (finalidade), explicitem sua “identidade” e lhe possibilitem
tratar de um certo tema (propósito) em certas circunstâncias
(dispositivo).
A fala que segue exemplifica a estruturação comunicacional, pela qual se
evidencia a preocupação de um sujeito comunicante em relação ao papel
linguageiro ocupado por ele:
MC Frank
— Disseram na televisão que “vamos pegar os MCs para averiguação, vamos é...
“ como se diz?, é... “eles vão ter que dar depoimentos...” E a minha música
estava nesse... no jornal saiu quatro músicas minhas: uma do Menor do Chapa e
outro do Cidinho e Doca. Então, eu ali, no caso, era o mais visado.
127
3)
O do discurso: que se estabelece como o lugar de intervenção do
sujeito falante, tornado sujeito enunciador. Esse deve satisfazer as
condições de legitimidade (princípio de alteridade), de credibilidade
(princípio de pertinência) e de captação (princípios de influência e de
regulação), para realizar um conjunto de atos de discurso os quais
formarão o texto. Para que esse se efetive, são necessários todos
os elementos apontados anteriormente, que sejam o auxílio de um
certo número de meios lingüísticos. Eles apresentarão, de um lado,
as limitações do situacional e as possíveis maneiras do dizer do
comunicacional, e, de outro lado, o “projeto de fala” próprio ao
sujeito comunicante. Destarte, as limitações da situação de troca e a
especificidade do projeto de fala produzirão o sentido de um texto.
As escolhas do sujeito comunicante sempre serão feitas com o
propósito de
construindo,
revelar sua própria finalidade, identidade, objetivo,
assim,
sua
própria
legitimidade,
sua
própria
credibilidade e sua própria captação.
O lugar de intervenção do sujeito enunciador, que satisfaz as condições
exigidas para o mesmo (ou seja, as condições de legitimidade – princípio de
alteridade, de credibilidade – princípio de pertinência, e de captação – princípio de
influência e de regulação) pode ser compreendido na seguinte fala de Marlboro:
128
DJ Marlboro
— Acho que o que acontece é muito mais cruel do que o quê as músicas cantam.
As pessoas continuam discriminando as músicas, falam mal das músicas, mas
só que esquecem que aquilo é uma realidade que tem que ser tratada. Eles
preferem calar a boca do moleque do que tratar o que eles vivem. Isso é muito
ruim. Eu toquei ontem em Paris. Toquei duas vezes em Paris. Toquei uma antes
de ontem e ontem. Foi o maior sucesso. Fazia carnaval o funk lá, né. Ontem eu
toquei nesses lugares e amanhã eu toco na Eslovênia também.
129
IX.3) CARACTERÍSTICAS DO CONTRATO DE COMUNICAÇÃO
Para CHARAUDEAU (apud OLIVEIRA, 2003, p.38), em um contrato de
comunicação tem de estar claros:
a) Que tipos de papéis na comunicação o Eu-comunicante e o Tu-interpretante devem desempenhar de acordo com o contrato relacionado a cada
situação comunicativa. No pronunciamento de um presidente, por exemplo,
cabe ao chefe da nação falar. O papel de todos os outros é o de ouvir em
silêncio. Qualquer tipo de crítica, comentário, observação só deve ser exposta
após o término do pronunciamento.
Em um documentário, o papel do Eu-comunicante é informar. É compartilhar
com o Tu-interpretante informações que a esse pareçam novas. É trazer a ele
um mundo que não é necessariamente o seu mundo. Acreditamos que o
documentário aqui analisado cumpre claramente esse papel, podemos citar,
como exemplo disso a fala do produtor Thelles Henrique:
Thelles Henrique (produtor)
-- Eu me lembro muito bem que o então secretário, Josias Quental, nessa
mesma reunião dessa senhora, me disse, me fez uma pergunta, ele não tinha
conhecimento: “Mas por que o apelo sexual no funk? Por que essas letras
sexuais?” Eu disse para ele o seguinte: “ Secretário, na época, essas pessoas
que cantam funk hoje, elas têm entre 16, 17, 18 anos. E eles cresceram e
quando crianças o funk não era um sucesso da mídia. O sucesso da mídia era o
Axé Music. E essas crianças que hoje estão se formando adultos, cantam “69
frango assado”, cantam outras letras que vocês se sentem agredidos, elas
ouviram nada menos agressivo do que “Vai ralando na boquinha da garrafa, vai
descendo na boquinha da garrafa” e uma mulher seminua, se esfregando no
gargalo de uma garrafa de cerveja e isso é o maior sucesso.
b) Se a comunicação é interlocutiva (os papéis de Eu-comunicante e Tuinterpretante se alternam, como na conversação diária) ou se é monolocutiva
(não há troca de papéis).
130
Charaudeau (idem, p.39) propõe que ao lado da dicotomia oral-escrito, deve se acrescentar duas outras, a saber: monolocutivo versus interlocutivo e
presencial versus não-presencial.
Podemos ver, por exemplo, que a comunicação pode ser interlocutiva,
presencial e oral, o que acontece num momento em que encontramos um amigo
e conversamos com ele; pode ser monolocutiva, não-presencial e escrita, quando
procuramos o significado de uma palavra no dicionário; pode ser interlocutiva,
não-presencial e escrita, quando nos comunicamos por intermédio de um Chat,
na
Internet.
Essa
comunicação,
porém,
pode
se
tornar
interlocutiva,
semipresencial e escrita se tivermos posse de uma web-cam e que ainda pode se
transformar em interlocutiva, semipresencial e oral, se, além da web-cam,
tivermos um software que veicule as vozes dos interlocutores.
“Na interlocução, se o Tu-interpretante rejeita o Eu-enunciador
criado pelo Eu-comunicante, este cria outro e testa outra
hipótese sobre quem seja o Tu-interpretante, ou seja, cria
também outro Tu-destinatário. Faz, assim, a gestão passo-apasso de sua produção textual, reformulando permanentemente
seu projeto de fala até lograr, numa hipótese otimista ser bemsucedido.”(OLIVEIRA, 2003, p.39)
No documentário em pauta, como se dá em qualquer tipo de filme, temos,
claramente, a comunicação monolocutiva não-presencial, logo se o “tuinterpretante” rejeitar o “eu-enunciador”, o contrato de comunicação terá sido
quebrado, já que, nesse tipo de comunicação, não é possível ao “eucomunicante” negociar sua “fa la” e criar, no momento, outro “eu-enunciador”.
131
d) Os rituais de abordagem
[...] constituem as restrições, obrigações ou simplesmente
condições de entrada em contacto com o interlocutor. Numa
situação de interlocução, trata-se de saudações, trocas de
gentilezas, perguntas, desculpas, etc. e numa situação
monolocutiva escrita, trata-se das introduções e fechos de
cartas, das manchetes de jornais, dos títulos de livros, dos
slogans da publicidade, dos prefácios, advertências, etc.
(Charaudeau, apud OLIVEIRA, 2003, p. 40).
Podemos falar de, pelo menos, três rituais de abordagem presentes no
documentário aqui analisado: o primeiro deles, sem a menor dúvida, é o título,
pelo inusitado do conteúdo (que se fez opaco para muitos e, talvez, por isso
mesmo, expressivamente atraente); a esse se junta o segundo, constituído por
cartazes (colados em muros e tapumes) que expunham somente o título sem
esclarecer do que se tratava, ratificando sua opacidade. Ressaltamos que foi
exatamente isso que
nos levou a procurar saber o que estava por detrás
daquele apelo e a assistir ao filme; o terceiro é a abertura com a animação
cômica na qual a protagonista é uma grande robô funkeira, que chega a uma
praia sob o som de um “batidão”. Isso gera expectativas a respeito dos
acontecimentos que estão por vir.
132
IX.4) OS SUJEITOS DA COMUNICAÇÃO
A quem se referem os pronomes “eu”, “tu”, “nós”, “você” numa dada situação
comunicativa? Essa é a primeira pergunta que temos de nos fazer quando
pretendemos analisar um discurso dado.
Rap da Felicidade
(Cidinho e Doca)
Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu
nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu
lugar!
[...]
Diversão hoje em dia, não podemos nem
pensar
Porque até lá nos bailes eles vêm nos
humilhar
[...]
Pessoas inocentes, que não tem nada a
ver
Estão perdendo o uso e seu direito de
viver
[...]
Quem vai pro exterior da favela sente
saudade
O gringo vem aqui e não conhece a
realidade
Vai pra zona sul pra conhecer água de
coco
[...]
O povo tem a força, só precisa descobrir
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo
daqui.
No funk acima, a quem se referem esse “eu” (“Eu só quero é ser feliz
/Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”) e esse “tu” (a quem o “eu” se
destina) que corporificam esse discurso?
133
Como já expresso, para Charaudeau, há dois “eus” como também há dois
“tus”.Dessas entidades, duas de cada uma delas têm existência no mundo real e
possuem identidade psicossocial: 1) o Eu-comunicante (aquele que fala ou escreve
o texto); 2) o Tu-interpretante (aquele que ouve ou lê – e interpreta – o texto oral ou
escrito). A esse conjunto de sujeitos que fazem parte do mundo real, Charaudeau
chama de circuito externo. Esse externo tem de ser entendido como exterior ao
discurso, pertencente ao mundo.
Como dissemos anteriormente, percebemos no documentário, com clareza,
dois “Eus-comunicantes”: o primeiro deles é Denise Garcia, produtora e diretora do
filme, quem o idealiza, quem o cria e o torna real; e o segundo, Deize Tigrona, que é
a voz que nos guia no interior da história que nos está sendo contada, mostrada.
O “Tu-interpretante” é qualquer um dos que assistiram ao filme, pessoas
concretas que compõem esse circuito chamado externo.
As outras duas entidades são formuladas no discurso e têm existência
teórica: o Eu-enunciador é a imagem que o Eu-comunicante tem de si, nessa dada
situação comunicativa. É essa imagem que ele quer passar ao Tu-interpretante, que
pode aceitá-la ou não. Ao aceitá-la, o Tu-interpretante a legitima. Como
conseqüência, podemos ter, na verdade, dois “eus” enunciadores: um imaginado
pelo Eu-comunicante e, em paralelo, outro imaginado pelo Tu-interpretante. A esse
conjunto de sujeitos que pertencem ao discurso, Charaudeau chama, como já
dissemos, de circuito interno.
Esse circuito interno é mais difícil de ser determinado, de ser apontado. A
imagem que o locutor faz de si já foi discutida anteriormente quando falamos de
Ethos. Dissemos que há dois principais “Eus-comunicantes” no documentário:
Denise Garcia e Deize da Injeção. Embora o “eu-comunicante” Denise Garcia seja
134
invisível no documentário, partimos do princípio que sua voz possa ser ouvida por
detrás da voz de Deize da Injeção (inclusive pela seleção/ordenação de cenas) e em
todos os momentos em que um condutor direto do discurso não aparece.
Tentaremos explicitar, primeiramente, o “eu-enunciador” que os “eus-comunicantes”
Denise Garcia e Deize da Injeção criam para si:
Logo no início do documentário, Deize faz a apresentação de todos os
importantes componentes, criadores, músicos que compõem o cenário do funk da
Cidade de Deus. Chama-nos a atenção o fato de haver entre eles um travesti,
chamado Ramona Guity, que é apresentada por Deize como sua amiga. É óbvio que
apresentar um travesti como amiga diante das câmeras de um documentário tem um
sentido. No mínimo, mostra desprendimento diante do julgamento alheio e do
preconceito de gênero (sexual) que pudesse ser suscitado.
Deize expõe a trajetória do funk, conhece sua história, desde o nascimento,
quando era chamado de lado A e lado B até sua transformação em funk sensual.
Em um determinado momento do documentário, Deize diz ser a precursora
das letras explícitas do funk:
Deize Tigrona
-- Vamos dizer que o que me deu ânimo assim para fazer esse tipo de montagem,
então vamos dizer que foi o cinema nacional, que passava. Com cenas picantes.
E a primeira montagem lá, que foi assim explícita, que, sabe, que levou a galera
ao delírio, falando assim sobre a mulher ficar de quatro, de lado (risos), foi a
minha. Foi a primeira montagem que eu fiz pro bonde das Bad Girls, que foi a
“Discurti” que diz que se os gatinhos paga o motel, elas faz o que eles querem,
então “ de quatro, de lado, na tcheca e na boquinha, depois vem pra favela toda
aberta e assadinha.”
Depois, ela nos conta que a produção das “montagens” são até mesmo
incentivadas pelo seu próprio marido, como o foi a criação da montagem da Injeção
que lhe trouxe a fama, levando-a até mesmo à troca de seu nome artístico:
135
Deize Tigrona
A injeção no caso foi assim: foi uma idéia, né, até tava assistindo televisão, eu vi
um homem lá brincando de forçar pensamento e ele falava: “Tá ardendo, mas tá
entrando”. E aquilo ficou na minha cabeça e meu marido falava: “Faz uma
montagem assim, faz uma música assim.” Entendeu? E por ele estar pedindo
para fazer uma música desse jeito, né, nesse ritmo, aí eu fiquei pensando, sabe,
martelei ali e lembrei que eu tinha médico marcado, né, eu tava grávida e tava
tomando a antitetânica. Então ajuntou uma coisa a outra e eu lembrei que eu
tenho pavor de injeção e ajuntei mais aquele trecho que assisti na televisão e
deu certo. A montagem foi um estouro, foi um estrondo e hoje eu sou conhecida
como Deize da Injeção.
Essa mulher, cuja imagem
é a de
mãe e de esposa, possui,
porém,
posições firmes a respeito de sua produção musical. Quando fala da posição da
mulher que “trai” e da que é “traída” deixa claro o que pensa a respeito de uma e a
respeito de outra:
Deize da Injeção
-- Eu sempre faço música a favor da amante, né, porque a fiel é sempre mais
humilhada. Pra mim, a fiel é sempre mais humilhada, porque a maior humilhação
que tem é o cara sair de sua casa para sair com outra mulher.
Ficar a favor da amante aponta, logicamente, para uma inversão de valores
sociais numa sociedade que ainda sofre muitas influências da mentalidade cristã.
Deize parece não se importar com isso. Outras questões, porém, podem estar por
detrás dessas escolhas. Perguntamo-nos: os “derrotados” dão Ibope? Os
humilhados podem ser cantados? Os vitoriosos, independente dos meios que
utilizem para chegar à vitória, é que entram para a história.
Falando ainda da imagem que esse "eu-comunicante" cria de si, não
podemos deixar de fora esta fala:
136
Deize da Injeção
-- Olha só, eu não sou nada, eu não sou nada, né, mas será que se aparecesse
na televisão, rebolando na garrafa, eu teria mídia? Eu teria! A Carla Perez
conseguiu.
O preconceito volta à tona. Embora cante o que cante, para Deize o fato de
ela não estar na mídia se deve ao não se ter “tranformado” em uma “mulherglúteos”, como foi o caso da cantora supracitada. Interessante ela afirmar que teria a
mesma mídia que a outra se atuasse da mesma forma. Entretanto, Deize não leva
em consideração o fato de Carla Perez ser loira (ou de se apresentar como tal) e
ela, Deize, ser negra e favelada.
Deize não se refuta, também, a mostrar-se como trabalhadora e empenha
esforços para desvincular a imagem do funkeiro da imagem do marginal:
Deize da Injeção
-- Porque o funk, hoje em dia, neguinho fala assim: “não, funk é diversão. Funk é
diversão pra quem vai lá assistir a gente. Pra gente é trabalho, é aonde a gente
ganha dinheiro. Só que não tem carteira assinada, né. Mas dá pra sobreviver
bem, se você faz 3, 4, 5 shows por fim de semana ou então num dia. Eu já fiz oito
shows num dia, num domingo.
Mostra-nos que o trabalho do funkeiro, embora seja um trabalho informal, é
tão árduo como qualquer um outro trabalho (“Pra gente é trabalho, é aonde a gente
ganha dinheiro”).
Todavia, como mulher trabalhadora, participante do mercado musical,
e
consciente do esforço que faz, Deize ainda aponta para a diferença de tratamento
dispensada a funkeiros e pagodeiros:
137
Deize da Injeção
-- Vamos ser sinceros,a gente vai falar a realidade: a gente sai para fazer o show,
casa de show grande, que aí contrata um grupo de pagode e contrata um MC. A
gente lota a casa de show, só que o tratamento é diferente. Sabe por quê? Porque
assim, a gente vai pra fazer baile pelo carro, entendeu, aí chega lá o carro do
pagodeiro é 800, o da gente é 100, 200 reais, entendeu?
Há, claramente, uma denúncia nessa fala. Ainda que possam ser os mais
procurados
pela
platéia,
os
funkeiros
recebem
tratamento
desigual,
são
discriminados. Deize, mostra-se, então, como aquela que conhece na própria pele a
estigmatização por ser funkeira. Para ela, a discriminação não está ligada às letras
do funk, mas sim ao fato de os funkeiros serem “favelados”:
Deize da Injeção
— O problema não é o sexo. O problema não é que eles estão discriminando o
funk. O problema é que eles estão discriminando o pessoal da comunidade, que
eles não querem ver subir de jeito nenhum.
Podemos dizer que, por conduzir o documentário desde a abertura e
promover o seu fechamento, Deize da Injeção pode ser apontada como aquela que
coaduna uma voz que perpassa todo o documentário. Seja a voz de Andréa (“Antes,
os homens se contentavam com uma. Hoje, os homi quer duas, três e as mulheres
fica todo mundo normal, aceita, entendeu?”), de Raquel (“E se o funk fala nessas
depravações como ele fala, e na televisão?”), de Tia Júlia (“Essa Ginecologista,
serve para a menina que está começando a namorar, está começando agora a ter
uma relação, é bom ir ao ginecologista tratar para amanhã, mais tarde, não pegar
uma doença.”), de Juliana e as Fogosas (O começo da música é “veterinária pra
cachorro, eletricista pra dar choque, ginecologista pode crer é pra dar toque, fogosa
e chapa quente vai ao ginecologista, ta ligado que é de lei dar um trato na pipita), de
138
Vanessinha Pikachu (Quando eu saí na revista “Sexy”, colocaram logo na capa “ A
virgem do funk”, que na época eu ainda era virgem e com 18 anos. Eles acharam
até estranho. Uma menina do funk com 18 anos e ainda virgem.”) ou de Tati Quebra
Barraco (“[...] Na Cidade de Deus, tinha um festival, aí todo mundo cantava. Aí, o
que eu fiz? Quando eu comecei a cantar, eu não tinha música, aí eu comecei a
divulgar eles, aí eu fiz o “69” na minha voz porque o dono do “69” deixou eu divulgar
eles.”), todas podem ser sintetizadas em um "eu-enunciador" que se olha como uma
mulher à frente de seu tempo, que pode cantar o que quiser, falar o que quiser, sem
ter de dar satisfação a quem quer que seja, o que comprova a nossa tese da
construção de um discurso que pode ser classificado como feminista . Esse "euenunciador" constrói o seu espaço e o demarca de forma tal, no documentário, que
não há como falar contra ele sem que se incorra ao risco de ser taxado como
preconceituoso.
O Tu-destinatário é uma imagem que o Eu-comunicante cria a respeito do
Tu-interpretante. O Tu-destinatário é, então, uma abstração, uma hipótese sobre o
Tu-interpretante criada pelo Eu-comunicante. É a essa hipótese, a essa imagem, a
essa abstração que o Eu-comunicante se dirige. Se a hipótese estiver correta (o Tudestinatário coincidir com o Tu-interpretante), o Eu-comunicante atingirá o seu
objetivo e a comunicação será bem sucedida. Caso não coincida, o projeto de
comunicação não terá sucesso.
Se o Eu-comunicante tem domínio sobre o Tu-interpretante, a imagem do
Eu-enunciador que o primeiro tenta passar é aceita e há muitas possibilidades de
que o projeto de comunicação tenha sucesso. Se o Tu-intepretante recusa essa
imagem do Eu-enunciador, certamente o projeto fracassará.
139
Podemos imaginar uma situação bastante comum em nossas salas de aula,
quando o professor, que tem há algum tempo, paulatinamente, perdido sua
autoridade, tenta chamar a atenção de um aluno e o mesmo lhe responde com uma
outra pergunta do tipo “Quem você pensa que é para falar comigo dessa forma?” A
imagem que esse Eu-comunicante criou de si não coincide com a imagem que o Tuinterpretante tem. Não há chance de se ter sucesso nesse projeto de comunicação.
Se pensarmos no "tu-interpretante" como o público que se disporá a assistir
ao documentário, podemos supor que o "tu-destinatário" criado seja aquele que
simplesmente vá ao cinema por prazer, buscar lazer e diversão, ou quem careça de
informações ou pretenda um olhar diferente sobre o funk. Essa necessidade pode
estar ligada a algum tipo de pesquisa, como é o nosso caso; ou a uma
inconformidade com os padrões sociais vigentes; ou ao simples fato de querer ouvir
o outro e aceitá-lo como ele é. Caso contrário, a não coincidência pode ocasionar
um verdadeiro fracasso neste projeto de comunicação.
A simples menção de pessoas, coisas e fatos de que se fala são suficientes
para que se pressuponha a sua existência. Os fragmentos das falas do
documentário citado nos mostram alguns desses elementos. Mencioná -los já é o
suficiente para que nesse discurso eles se corporifiquem, passem a existir. Isso
demonstra, nesse discurso, sua força de evidência.
É o conhecimento do que seja o funk e as informações a respeito de Tati
Quebra Barraco e Deize da Injeção, por exemplo , as informações a respeito do que
seja a desigualdade racial no Brasil, os preconceitos ligados à mulher, à classe e à
discriminação sofrida por habitantes de comunidades é que pode nos levar à
compreensão dos significados de textos como os exemplificados neste trabalho.
Portanto, não só as informações a respeito dos sujeitos da comunicação bem como
140
a situação em que estão inseridos é que nos permitem analisar os discursos. Como
apontou Oliveira (2003:31), perguntas como “Que quis o autor dizer?” ou “Qual a
intenção do autor?” embora sejam sofisticadas, não são suficientes.
Oliveira (ibidem) sugere que devemos usar o neologismo de Charaudeau e
perguntar “Quens o texto fez falar?” Feita essa pergunta, a busca da resposta pode
nos levar a um Eu-comunicante ou a Eu-enunciador que pode ser um indivíduo,
uma instituição ou a "voz do povo".
Oliveira menciona ainda a existência de um “ça”, apontado por Charaudeau
(1996) que diz que
“Quando falo, falo eu com minhas características pessoais, mas fala
também um "ça" por meu intermédio, ou seja, um segmento social,
uma faixa etária, um grupo profissional, etc., de que sou porta-voz.”
(Oliveira, 2003, p.31)
Que “ça” estaria presente nas falas veiculadas pelo documentário? Essa é
uma das questões que estão sendo abordadas nesta tese.
Se nos preocuparmos com a ideologia, é a esse “ça” que devemos perseguir,
com a noção de que o "eu" é o menor dos "ças":
“Ao descrever a cultura de um povo, por exemplo, podemos, se
quisermos um grau maior de detalhamento, decompô-la em
várias culturas regionais (no caso de trabalharmos com a variável geográfica) ou de grupos etários, socioeconômícos,
profissionais, etc., podendo chegar até a grupos menores, como
a família e, por fim, ao indivíduo. A personalidade, vista assim, é
a cultura de um indivíduo e nesse sentido o "eu" é o menor dos
"ças".” (Oliveira, idem)
Esse Eu-comunicante pode recorrer a um agente indeterminado (que em
francês é expresso pelo pronome indeterminador “on”) que pode representar,
por exemplo,
a “voz do povo”. Fazer uso desse aspecto de pessoa não
determinada pode ser uma estratégia bastante eficaz, já que aquilo que é do
141
conhecimento de todos (“é óbvio que...”, “como todos sabem...”) assume um
caráter inquestionável.
Não temos dúvida de que o segmento social a que o documentário faz falar
é o daquele (que se considera e é visto por muitos) discriminado por ser pobre,
residir na favela e por produzir funk. Dentro desse grupo maior, encontramos
mulheres que produzem músicas explicitamente sexuais. Além disso, como já
foi apontado anteriormente, grande parte, senão a maior parte, dos moradores
de favelas são pessoas negras ou descendentes diretos de negros. Somandose essas características, o filme destaca diversas marcas de preconceito em
um mesmo ser: pobre, favelado, funkeiro, negro, mulher.
O documentário, acreditamos, tem como um dos objetivos criar este “ça”
que “joga luz” sobre a forma desigual com que o funk tem sido tratado. A
denúncia fica clara na voz de Mr Catra:
Mr Catra
— Um coroa comendo a criancinha na novela das 8 não é sacanagem, tá ligado?
— O cara trepado em cima da mulher 8 horas da noite na TV Globo não é
sacanagem. O funk é sacanagem. Sacanagem é o dinheiro que o governo sonega,
róba. Isso que é sacanagem, isso que é crime, tá ligado? Realidade não é crime,
realidade não é sacanagem. Todo mundo gosta de fazer amor, todo mundo gosta
de gozar gostoso.
142
X – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A finalização de qualquer trabalho exige reflexões a respeito do que foi
apresentado. Em nosso caso, temos de partir da premissa que o documentário que
analisamos, como qualquer filme desse tipo, trata do nosso mundo, do mundo em
que vivemos e não é uma ficção criada, imaginada por Denise Garcia. Deixamos
claro que não temos a pretensão de lançar mão de nenhum tipo de juízo de valor na
análise a que nos propusemos. Interessa-nos apenas o discurso veiculado por esse
instrumento. Se ele é verdadeiro ou falso, é uma outra questão que por ora, pelo
menos, não nos diz respeito.
Como apontamos no início do trabalho, o documentário nos suscitou algumas
hipóteses e questionamentos. Algumas das hipóteses e questionamentos estavam
diretamente ligados ao preconceito e à discriminação. No capítulo que intitulamos
“Negros, Quilombos, Favelas: Discriminação”, pudemos discorrer sobre essas
questões, partindo do poema de Castro Alves, passando pela citação bíblica da
maldição de Cam, citando estatísticas do IPEA que mostram o tamanho da
desigualdade ligada à raça, que ainda existe no Brasil, falando sobre o nosso injusto
e cruel processo abolicionista até tratar da formação dos quilombos e das favelas
brasileiras, especificamente das cariocas.
Pudemos constatar, algumas vezes, em nossa análise, a denúncia dessa
ainda existente discriminação. O discurso de algumas das pessoas entrevistadas
deixa clara a insatisfação com o tratamento desigual. Podemos citar como exemplo
as falas que seguem:
143
Deize da Injeção
— O problema não é o sexo. O problema não é que eles estão discriminando o
funk. O problema é que eles estão discriminando o pessoal da comunidade, que
eles não querem ver subir de jeito nenhum.
Para Deize, não há dúvidas de que o funkeiros são discriminados não pelo o
que cantam, mas pelo fato de serem “favelados”. No capítulo intitulado “Os vários
olhares sobre o funk: muda o enunciador, muda a história”, refletimos sobre
isso. Nossas reflexões não nos oferecem outra alternativa a não ser concordar com
Deize. Numa sociedade como a nossa, em que tudo é permitido, a rejeição que o
funk ainda provoca só pode estar ligada ao enunciador que o produz, não ao
conteúdo veiculado. Caso contrário, como expusemos anteriormente, outros
enunciadores, em outros momentos, também teriam sido rechaçados e, no entanto,
não o foram.
Algumas outras falas que trazem à tona esse assunto foram analisadas
também. Para fechar essa questão, citamos mais um exemplo:
Andrea
— Nós fomos pro show, outro dia com a Tati e aí chegamos nesse show e eles
falaram assim: “Chegou os favelados”. Nós debaixo, jogaram um jato d’água, eu
virei e falei assim: “Lá na CDD os favelados não joga água do prédio”. Maior
jatão, “scheleps”.
Os personagens falam do que vivem, do que experimentam. Portanto, são
legítimos em sua denúncia e, ao expressarem seu repúdio, relatam sua dor em
relação ao preconceito com que são tratados.
Nossa outra hipótese questionava a existência de um discurso feminista no
documentário. Quanto a isso,
encontramo-nos ainda divididos por várias
perspectivas, como já dissemos. A literatura a que recorremos nos diz que a
definição do termo feminismo não possui um ponto de chegada (ALVES E
144
PITANGUY, 2003). É muito claro não ser possível comparar o discurso das funkeiras
com nada de feminismo que foi produzido até agora, mas se partirmos do princípio
de que o movimento feminista que conhecemos teve (e tem) como objetivo
reinventar as relações interpessoais de forma tal que não haja diferenças de
comportamento, tratamentos e/ou aceitação dentre os sexos, não podemos negar
que o que elas pretendem é tratar de sua sexualidade como os homens sempre
trataram da deles. Isso pode causar estranhamento, é claro, principalmente pelo fato
de ainda relegarmos à mulher o papel de protetora da honra e dos bons costumes, o
papel de “rainha do lar”.
Assim, o fato de expressar abertamente a sua sexualidade e seus desejos
libidinosos confere, sem dúvida, a essas mulheres o papel de feministas, sim. Como
dissemos, o discurso é um importante o
l cal para que se contestem práticas ditas
incontestáveis. Se é a supremacia do “macho” ou o direito de somente o homem
falar o que quiser que está sendo contestado, não importa. O que importa é que à
mulher é dado o direito de falar o que quer da forma que desejar, como o homem
sempre o fez. A justificativa para tal pode ser encontrada no interior do trabalho na
citação de Salomé (apud NERI, 2005, p.142), para quem “[...] é preciso infringir
todas as barreiras, porque é mais sensato confiar nas vozes do desejo, mesmo
quando se exprimem por atalhos, do que confiar em teorias preconcebidas.”.
A carência de distanciamento, portanto, pode nos levar a análises defeituosas
desse discurso que irrompe com força por toda a nossa sociedade. Talvez seja a
isso que tenhamos de olhar no momento: o fato de esse discurso ser visto como
imoral, como obsceno, até como “sujo” e ter descido do morro e ter tomado os
salões ocupados por um grande grupo pertencente à classe média e à classe alta de
nossa sociedade.
145
Falamos na possibilidade de uma dicção feminina que se reproduz a partir de
um discurso machista nas letras de funk. Mesmo que assim o seja, concordamos
mais uma vez com Salomé, citada por
NERI (idem), ao dizer que ainda que a
emancipação feminina se dê pela imitação do homem, mesmo assim ela será válida.
A liberdade deve estar sempre em primeiro lugar. A expressão do desejo é uma das
formas de expressão da liberdade. Acreditamos que, para ser livre, é melhor
construir atalhos do que ficar preso aos padrões pré-concebidos de nossa sociedade
ainda machista e preconceituosa. Pensamos não haver dúvida no fato de que poder
dizer o que se quer na intimidade seja um grande avanço, ainda que para muitos
isso ainda soe como agressivo, imoral ou proibido. Nossa afirmativa funda-se no fato
de que ao homem isso sempre foi facultado e somente agora a mulher atinge esse
“direito”.
Um outro questionamento diz respeito ao ethos. Interessava-nos averiguar
que ethos são criados/apresentados em defesa do discurso que o documentário
pretende veicular. Como pontuamos, Charaudeau nos diz que o ethos pode dizer
respeito a grupos, não somente a indivíduos. Ao dividir o trabalho em segmentos,
pudemos observar que o primeiro ethos construído é o da alegria, do humor e da
descontração. A fa vela não é um lugar onde só existe violência, tráfico, desgraças e
tristezas. Isso é ratificado em alguns outros momentos quando, ao percorrer as ruas
da Cidade de Deus, as câmeras fazem questão de nos mostrar a alegria das
pessoas e as crianças que brincam.
Um outro ethos que nos chama a atenção por sua constância é da mulher que
desafia a virilidade do homem, que põe o macho em “xeque”, tanto nas letras dos
funks cantados como na fala de algumas das mulheres. Há também, ainda, um
ethos que desloca o papel de objeto sexual. Faz-se questão de demonstrar por
146
intermédio dele que se as mulheres têm sido objeto dos homens, agora eles também
passam a ser objeto delas. Em alguns momentos, somos levados a crer que há um
ethos de mulher que está consciente de seu papel de escolha em relação ao que
toca a sexualidade e que esse ethos crê na possibilidade de levar essa consciência
ao grupo a que ele pertence.
Os ethos criados para representação de mães configuram mães modernas, à
frente de seu tempo, como pudemos constatar no discurso de Tia Júlia e/ou
conscientes das demandas de nosso tempo, como pudemos observar na fala de
Denise:
Denise
-- Pelo menos eu tenho minha filha, a mais novinha está com 4 anos. Eu aprendi
na rua, que minha mãe não tinha liberdade de conversar comigo sobre sexo.
Então, o que vou fazer com minha filha? Eu vou conversar. Eu vou tentar ser
liberal com ela pra ela poder ter confiança em mim, entendeu, pra não acabar
acontecendo com ela o que aconteceu comigo: eu me perdi com 11 anos e com
16 já era mãe. Não me arrependo. Tô aí, graças a Deus, meu mais velho está com
15 anos. Mas falta de diálogo e se a gente não olhar pros nossos filhos daqui pra
frente pior mais vai ficar.
A ferramenta de análise que optamos por utilizar foi a Semiolingüística de
Patrick Charaudeau. Partimos de um mundo a significar: o discurso de mulheres que
produzem funk na Cidade de Deus. Para isso, utilizamos o documentário “Sou feia,
mas tô na moda”, de Denise Garcia. Pelo processo de transformação, chegamos a
um
mundo
significado
completamente
novo
para
nós.
Quando
dizemos
completamente novo, referimo-nos ao fato de que – até o início da pesquisa – nada
sabermos a respeito de funk e de funkeiros e, anteriormente a isso, basearmos toda
a nossa “análise” em conceitos pré-concebidos, os quais, lógico, davam origem aos
“pré-conceitos”.
147
Já na posição de sujeito falante do documentário, podemos apontar para a
existência de uma dupla enunciação. Podemos falar de um sujeito Denise Garcia,
que idealiza o documentário e o torna real, e de um outro, Deize da Injeção, que é a
voz, a “persona” que nos acompanha durante todo o trajeto. Somos, todos nós, os
sujeitos falantes destinatários a quem o documentário pretende atingir.
Parece-nos bastante claro que é justamente pelo processo de alteridade que
somos levados a refletir a respeito desse não-eu, tão diferente de nós. As diferenças
estabelecidas é que nos levam a legitimá-lo como o outro, como o não-eu.
Ao dar direito à fala às pessoas daquela comunidade, o documentário nos
leva a reconhecer a sua pertinência. Não há alguém melhor do que eles próprios
para falar da realidade que vivem em seu dia-a-dia.
Fica claro também
que a mise en scène exigida pelo contrato de
comunicação procedeu-se de forma bastante coerente. Os papéis exigidos pela
situação comunicativa foram plenamente representados. Dessa forma, se levarmos
em conta que o objetivo do documentário é nos trazer uma visão de mundo sobre o
funk com a qual não estamos ainda habituados,
não podemos considerar falha
existente nesse contrato de comunicação estabelecido.
Os pilares sobre os quais esse contrato de comunicação foi estabelecido são
bastante sólidos. Não há como questionar a pertinência do saber daqueles que
participam do filme. Suas experiências de mundo e comportamento social atestam
nosso reconhecimento de seu saber. Não há também como questionar o
reconhecimento do poder das pessoas que ali são representadas. Tanto Tati
Quebra-Barraco, como Deize da Injeção, como DJ Marlboro ou Mr Catra, para citar
somente alguns nomes, são figuras consideradas mais do que populares tanto na
mídia quanto fora dela, por aqueles que têm qualquer tipo de ligação com o universo
148
funk, o que lhes confere legitimidade, portanto. E a competência discursiva , ligada
ao que é inerente ao produzir funk, que cada um deles possui, é suficiente para
garantir-lhes credibilidade dentro do social.
A análise do documentário de Denise Garcia e a utilização da teoria de
Patrick Charaudeu nos garantiram, portanto, a possibilidade de ampliação de nossa
visão, no que concerne ao “mundo funk”.
Quando Bill Nichols, conforme apontamos, nos diz que o filme documentário
também veicula visões de um mundo comum, com o objetivo de que as exploremos
e as compreendamos, não temos dúvida de que a exploração desse documentário
nos trouxe uma outra compreensão, um outro olhar a respeito desse fenômeno
social que é o funk e nos fez entender o quanto de preconceito há em torno dos
discursos que circulam sobre ele. Fez-nos também refletir ainda mais a respeito
desses assuntos (preconceitos e discriminações) que residem na base de nossa
sociedade – e com o qual nos habituamos tão friamente a conviver que acabam por
parecer invisíveis.
O “encanto” do documentário reside justamente nisto: em colocar, diante das
pessoas, questões atuais de nossa sociedade, com seus problemas e com suas
possíveis soluções. Dessa forma, acaba por nos tornar capazes de olhar para
questões oportunas que necessitam de atenção.Isto posto, este documentário
realmente cumpre com sua função cultural/social.
Fechamos este trabalho, pois, como se fecha um ciclo. Se ousamos desvelar um
mundo por muitos considerado fora do âmbito acadêmico, cremos que só o tempo
nos revelará se nossa opção foi correta. Não nos furtamos, então, a traçar, pela
linha
do
documentário
sob
crivo,
a
vida
e
o
experienciar
diário
de
pessoas/personagens que nos revelam mais do que dados lingüísticos – falam de
149
um mundo (quase) paralelo ao nosso – para muitos afastado de uma Tese de
Doutoramento.
Mas nos negarmos a estudá-lo só ratificaria todos os preconceitos denunciados
pelo filme. Claro é que muito ainda há – até mesmo no documentário – para ser
explorado. Como dissemos, porém, colocamos ponto final em um ciclo – que teve
início na observação de um out-door e se finda nesta conclusão.
150
X – ANEXOS
ANEXO 1
TRANSCRIÇÃO DO DOCUMENTÁRIO:
•
Segmento 1: Apresentação, histórico e fundamentos (mais científico).
MC G (Na abertura do documentário, sobre caixas de som, cata sem acompanhamento):
"Quem nasceu nasceu/ Quem não nasceu não nascerá"
Abertura com animação e música eletrônica. Uma boneca com som no peito, invade um
praia onde um casal consome uma bebida em taças
Um funk de improviso, cantado por um grupo de homens em uma quadra na Cidade de
Deus.
Deize Tigrona
-- Bom gente, nós estamos aqui na Cidade de Deus, onde começou o funk sensual, né, por
que já havia o baile “lado A lado B”... não a gente tem que falar assim, sensual. Talvez não
seja nem para falar, mas neguim fala que o funk é pornografia, é não sei o quê, não é nada
disso. É o funk sensual.
-- São as nossas garotas...
-- É e vocês são os nossos...
-- Aqui é o Preto de Elite, o Cleber Preto, o Tico, aqui tá Os Havaianos, Tentação do Funk.
Essa aqui é minha amiga Ramona Guity. Foi daqui desde que o Duda começou a lançar os
grupos, né, desde que eu comecei a cantar, né, eu tenho o prazer de falar, de mencionar
aqui pra vocês que eu saí arrastando geral, tipo Carrasco, Bonde do Tigrão, Bonde do
Vinho, Faz Gostoso, Preto de Elite, Os Havaianos, Tentação do Funk, né, Tati Quebra
Barraco, Serginho e Lacraia. Tudo bem, não são daqui, mas também a inspiração veio
daqui, né, porque se não fosse a gente aqui a comçar... foi daqui da Cidade de Deus que
saiu para... o funk para geral.
-- Eu tenho o prazer de falar, de mencionar aqui pra vocês que eu saí arrastando geral, tipo
Carrasco, Bonde do Tigrão, Bonde do Vinho, Faz Gostoso, Preto de Elite, Os Havaianos,
Tentação do Funk, né, Tati Quebra-Barraco, Serginho e Lacraia. Tudo bem, não são daqui,
mas também a inspiração veio daqui, né, porque se não fosse a gente daqui a começar...
Foi daqui da Cidade de Deus que saiu pra... o funk pra geral.
Cidinho e Doca (cantando em um baile):
“Esse bonde é sinistro, esse bonde sempre abala...”
Doca
-- É o seguinte... o funk, ele sempre foi periferia, talvez agora que ele tá conseguindo assim
alcançar a sociedade “Classe A”.
151
Silvio Essinger (jornalista, mostrando vários LPs)
-- Isso aqui é o começo de tudo, predominância de Soul. Baile do Big Boy, começo dos anos
70. A gente tem aqui Ademir Lemos, outro grande DJ, que fazia o baile junto com o Big Boy
e que continuou nessa tradição do Soul. A gente chega aqui às primeiras equipes de Soul.
Soul Grand Prix, disco de 78, Furacão 2000. A cada baile mais de 10.000 adeptos do Soul
confirmam: este é o som! E aqui você uma idéia do que era o baile da Furacão, anos 70,
segunda metade dos anos 80, Two Live Crew, Miami Bass, Hip Hop, que até hoje serve de
base para o funk carioca.
Edu k (Defalla)
-- É chamado Miami Bass porque se criou esse termo em Miami, aquelas músicas com um
som grave, 808
Bonde das Boladas
“ ... diz que é o cara na pressão até de manhã, gatinho seu safado, quer me enlouquecer, 12
horas de suíte, eu vou pagar pra ver...”
•
Segmento 2: O saber fazer
DJ Duda
-- As capelas, aí começar a ter mais ou menos a idéia da música e as bases que você deve
usar de acordo com a música. Aí começa a caçar os beats certos para poder fazer a música.
Grandmaster Raphael
-- Eu uso um programa de computador, mas depois que eu processei, quando cheguei no
som que eu quero, eu passo para a bateria, porque pra bateria você pode programá-la, (...),
fica muito mais fácil para você fazer batendo.
DJ Sandrinho (somente apresentação)
Grandmaster Raphael
-- Quando eu faço na bateria, eu faço nesse teclado também, que esse teclado é acoplado
nesse sampler. Esse sampler é um Darose 760, que eu uso. Eu estou batendo aqui, mas
quem está gerando o som é esse equipamento aqui. Isso é um sampler também. Depois isto
vai para o mixer e começo a berrar em cima. A melodia é sempre a mesma, em 90% das
montagens. Então uma frase “dá, dá, dá, dá, dá...”
As Danadinhas
“A gente vai requebrar, danadinhas, rebolando devagar, danadinhas...”
•
Segmento 3: fundamentos e histórico (mais empírico)
Deize Tigrona
-- Mas antigamente havia o baile funk, mas só havia o baile funk de, ... como é que é? De
lado A e lado B, que era o country, baile country, onde havia baile de briga.
152
Silvio Essinger
-- Lado A, Lado B, época do baile de corredor. Isso chamou atenção no exterior. Falavam
em “Brasilian Fight Club”, a porrada era um negócio até recreativo. O negócio é que a coisas
às vezes extrapolava e gente morria, né.
DJ Duda
-- O funk estava em decadência total, vivendo há vários, naquela coisa de baile de briga,
baile de incentivo à violência, a gente conseguiu pular, mudar toda a idéia do funk.
Deize Tigrona
-- E passou a ser o funk do prazer, onde todo mundo rebola.
Bonde Faz Gostoso
“papo reto”
“história da vida”
“chão,chão, chão”
Luciana vai de bruço
As Tchutchucas
• Funk: “status” feminino e poder de escolha.
Andrea
-- Ah, muitas mulheres eram muito acanhadas em fazer as coisas, entendeu, então o que
aconteceu, a música incentivou as mulheres a botá pra fora como a Tati canta “bota na
boca, bota na cara”, então hoje é mais aberto.
Tia Júlia – Mãe e empresária (Fogosas)
-- Então tem muita montagem que fale com a menina e com o rapaz.
Raquel
-- Pras mulheres e pros homens também, né, porque no caso dos homens chega e fala para
as mulé, chega e fala “Ah, vamus ali”. As mulé antigamente, antigamente antes de surgir o
funk, ia numa boa, aceitava, vamos no meu prédio, vai e assim tava indo, agora surgino o
funk, não. Especialmente a música da Tati, que está dizendo muita coisa, alertando as
mulheres.
Tia Júlia
-- Não é totalmente apologia ao sexo, é um duplo sentido e se ela quiser cantar um dia,
fazer um rap, fazer uma montagem, assim, tipo assim, apologia ao sexo, eu vou, eu vou
assinar embaixo. Por quê? Por que vou assinar embaixo? Porque serve. Essa
Ginecologista, serve para a menina que está começando a namorar, está começando agora
153
a ter uma relação, é bom ir ao ginecologista tratar para amanhã, mais tarde, não pegar uma
doença.
Juliana e As Fogosas
-- A história é que as meninas hoje em dia que procuram a ginecologista, entendeu, pra se
tratar. Essa música quando começou a tocar deu uma polêmica do caramba. O começo da
música é “veterinária pra cachorro, eletricista pra dar choque, ginecologista pode crer é pra
dar toque, fogosa e chapa quente vai ao ginecologista, ta ligado que é de lei dar um trato na
pipita.”
Kate Lyra
-- Cantar é uma coisa de forma extremamente espontânea que agrada. Uma coisa tão
ousada uma mulher subir no palco e dizer “Eu quero isso, eu quero aquilo”. Eu vou fazer
isso, eu vou fazer aquilo”
Mr. Catra
-- Caralho, a negona é demais. A primeira vez que ela falou “bota tudo até os ovos”, eu falei:
“ai, que delícia!” Pra falar “bota tudo até os ovos” tem que ter disposição, tá ligado?
Denise
-- O funk quando fala aquelas coisas depravadas, é o que está acontecendo mesmo. É isso
aí mesmo. E não só os homens, mas as mulheres também gostam.
Raquel
-- E se o funk fala nessas depravações como ele fala, e na televisão?
Mr Catra
-- Um coroa comendo a criancinha na novela das 8 não é sacanagem, tá ligado?
Mr Catra (cantando “Tá lotado...”)
-- O cara trepado em cima da mulher 8 horas da noite na TV Globo não é sacanagem. O
funk é sacanagem. Sacanagem é o dinheiro que o governo sonega, róba. Isso que é
sacanagem, isso que é crime, tá ligado? Realidade não é crime, realidade não é
sacanagem. Todo mundo gosta de fazer amor, todo mundo gosta de gozar gostoso.
Dona Lena
-- Com certeza, seria essa loucura, porque na minha época não tinha, ninguém namorava,
porque o pai da gente não deixava. Tinha que ficar todo mundo olhando. Hoje, não, hoje
tudo é liberado.
Denise
154
-- Pelo menos eu tenho minha filha, a mais novinha está com 4 anos. Eu aprendi na rua, que
minha mãe não tinha liberdade de conversar comigo sobre sexo. Então, o que vou fazer
com minha filha? Eu vou conversar. Eu vou tentar ser liberal com ela pra ela poder ter
confiança em mim, entendeu, pra não acabar acontecendo com ela o que aconteceu
comigo: eu me perdi com 11 anos e com 16 já era mãe. Não me arrependo. Tô aí, graças a
Deus, meu mais velho está com 15 anos. Mas falta de diálogo e se a gente não olhar pros
nossos filhos daqui pra frente pior mais vai ficar.
Andrea
-- Comprar o anticoncepcional para ela tomar, entendeu, e mandar ela usar bastante
camisinha, porque, né, conforme as várias, minha filha também tá nessa, que, né, a gente
mora aí, então a gente não tem do bom e do melhor para poder dar a nossos filhos, a gente
soa (sic) e corre atrás, mas não pode, né, nem tudo, mas a gente chega lá.
Denise
-- Em minha casa sou eu e meus três filhos mesmo. Não penso em ninguém pegando meu
controle remoto e mandando em nós lá em casa, não. Só nós mesmos, só eu e meus filhos.
(um voz de fundo, cantando: “é nós que manda...”)
Andrea
-- A Raquel é virgem.
Raquel
-- Só de signo
Andrea
-- O trabalho que ela está pedindo é isso aí, cara! Chuchu...
Raquel
-- Tem isso também. Eu sendo dessa forma... Não estou me espelhando no funk para uma
coisa dessas. Como ela falou, muitas garotinhas novas aqui estão crescendo nisso e eu
não. Tô aí, simplesmente. E não é porque vai para o baile funk e vai engravidar. Eu já curti
vários bailes funks na minha vida e hoje em dia eu sou o que sou.
Denise
-- É... mostrar que na favela também existem meninas virgens...
Andrea
-- Pô... abre a boca, não está vendo? Tem que botar pra fora...
Vanessinha Pikachu
-- Quando eu saí na revista “Sexy”, colocaram logo na capa “ A virgem do funk”, que na
época eu ainda era virgem e com 18 anos. Eles acharam até estranho. Uma menina do funk
com 18 anos e ainda virgem.
155
•
Segmento 4: Mulher, guerreira e lutadora.
Verônica Costa
-- Com oito meses de gravidez, vai ainda enfrentar....
Tati Quebra Barraco
-- [...] você quer que eu fique dois meses parada.
Verônica Costa
-- Ela não vai agüentar...
Tati Quebra Barraco
-- Minha cesária é agora dia 26, se marcar dia 25, dia 23 eu paro. No dia 24, eu me interno.
Dia 29, estou em casa... que eu vou ligar, né? e quando for primeiro de abril, eu vou estar na
pista.
Cantando:
“Se marcar, eu beijo mesmo...”
“Eu sou Quebra Barraco...”
Valesca (Gaiola das Popozudas)
-- Antigamente, as mulheres apanhavam, entendeu? Eram xingadas, entendeu? E elas
abaixavam a cabeça. E hoje não. Hoje elas se mostram assim: trabalham, entendeu? Se
mantêm sozinhas, muitas, entendeu? Cuidam de seus filhos e vivem sozinhas, guerreiras.
Hoje as mulheres são guerreiras, são muito guerreiras.
•
Segmento 5: libertação feminina e ousadia.
Dona Lena
-- Claro que eu ia gostar se fosse na minha época, né. Nossa... Acho que eu não vinha nem
em casa. Acho que eu ia ficar só na rua, atrás de funk.
Deise Tigrona
-- Vamos dizer que o que me deu ânimo assim para fazer esse tipo de montagem, então
vamos dizer que foi o cinema nacional, que passava. Com cenas picantes.
(funk canguru perneta)
-- E a primeira montagem lá, que foi assim explícita, que, sabe, que levou a galera ao delírio,
falando assim sobre a mulher ficar de quatro, de lado (risos), foi a minha. Foi a primeira
montagem que eu fiz pro bonde das Bad Girls, que foi a “Discurti” que diz que se os
gatinhos paga o motel, elas faz o que eles querem, então “ de quatro, de lado, na tcheca e
na boquinha, depois vem pra favela toda aberta e assadinha.”
(Tetine cantando “ de quatro, de lado...”)
156
Kate Lyra
-- Muitas dessas coisas são uma brincadeira sexual, como também são uma coisa, às vezes
eu vejo, como sendo uma coisa até quase que infantil.
Vanessa Picachu
(funk: “Me chama pra sair, olha que decepção, me leva pro cinema pra assistir o pokemon”)
-- A primeira foi assim, não tinha nenhuma mulher cantando, eu peguei e fui no baile para
gravar antes do baile começar, que é quando eles testam o som, essas coisas. O DJ já
estava lá, ele chega mais cedo. Aí eu cheguei lá, tinham uns meninos gravando. Aí, só tinha
eu de mulher lá no meio. Aí eu falei: “Também quero gravar.”, mas eu queria ir por último, só
para os garotos irem embora e eu não ficar com vergonha eles ficarem rindo de mim. Aí, os
garotos” “Ah, você vai cantar, a gente vai ficar. Aí eu cantei a música, aí o DJ, que também é
produtor, aí ele gostou: “Nossa, isso é muito legal”, porque a música causou impacto,
porque a música é assim: “Pra você sair comigo / você tem que tá preparado / não é só tá
de cyclone / e dizer que é o brabo / te dei um lance maneiro / todo mundo viu / na hora do
vamos vê / cadê o cara? / sumiu”. Aí os garotos todos tiveram reação na hora. “Eu não sumi,
não! Eu tô aqui!” Aí o produtor viu que tinha impacto. Aí botou, produziu a música. Quando
eu vi, no fim de semana, já estava tocando na rádio. Ele botou pra tocar na rádio. Aí os
outros começou a ligar, a pedir. Aí me chamaram para gravar umas músicas para sair no
CD da equipe. Aí foi.
Deize Tigrona
A injeção no caso foi assim: foi uma idéia, né, até tava assistindo televisão, eu vi um homem
lá brincando de forçar pensamento e ele falava: “Tá ardendo, mas tá entrando”. E aquilo
ficou na minha cabeça e meu marido falava: “Faz uma montagem assim, faz uma música
assim.” Entendeu? E por ele estar pedindo para fazer uma música desse jeito, né, nesse
ritmo, aí eu fiquei pensando, sabe, martelei ali e lembrei que eu tinha médico marcado, né,
eu tava grávida e tava tomando a antitetânica. Então ajuntou uma coisa a outra e eu
lembrei que eu tenho pavor de injeção e ajuntei mais aquele trecho que assisti na televisão
e deu certo. A montagem foi um estouro, foi um estrondo e hoje eu sou conhecida como
Deize da Injeção.
(Funk da Injeção com Ramona dançando)
“Quando vou ao médico / sinto uma dor...”
(Grupo na rua, maioria homens, dançando, cantando e rebolando ao som da mesma música
ainda)
• Segmento 5: A comunidade Cidade de Deus.
Vista aérea da Cidade de Deus
Preto de Elite - Fabinho
Deize da Injeção
-- Gente, já ouviram aquela música “Pavarotti”? “Pavarotti, ê.ê...” – Ele é o autor.
Fabinho
157
-- “Pavarotti”, “Descontroladas”...
-- “Ah, vocês estão descontroladas...” Ele é o autor também. (Grupo ao som de palmas,
canta a música “Pavarotti”)
Chocolate
Canta um Funk
• Segmento 6: Feminismo.
DJ Marlboro
-- O funk é um movimento dos discriminados, né, um movimento do pessoal que, dos
marginalizados, daqueles que são colocados à margem, sempre. Eu acho isso muito legal,
eu me orgulho de ser funkeiro. E a quantidade de mulheres que tem no funk, nenhum outro
movimento tem.
Kate Lyra
-- Tanto é que hoje em dia, se você perguntar, por exemplo, a uma das meninas se elas são
feministas, a primeira reação delas é que não são feministas (entra a imagem da Gaiola das
Popozudas), que feminismo é uma coisa do passado, que não existe. Agora, o discurso
delas é feminista total.
Valesca (Gaiola das Popozudas)
-- Às vezes, homem é cachorro mesmo, sem-vergonha. Às vezes, a mulher faz de tudo,se
vira, até planta bananeira e ele vai para a rua procurar outra. E aí?
Andrea
-- Antes, os homens se contentavam com uma. Hoje, os homi quer duas, três e as mulheres
fica todo mundo normal, aceita, entendeu? Tipo assim, eu sou solteira porque eu quero. Por
quê? Os homens quer tudo sacanagem. Se me sacanear, eu sacaneio também, entendeu?
Tem que me respeitar. Eu vou respeitar ele, então tem que me respeitar também. Então, eu
fico sozinha. Eu fico, tu fica. Tchau, ele vai embora, eu também vou.
Valesca (Gaiola das Popozudas)
-- Mas dizem que a mulher enganou até o diabo. Pior que quando ela quer, ela engana
mesmo. E pro homem passar vergonha, acho que é difícil, porque quando a mulher quer
fazer, ela sabe fazer muito bem, por debaixo dos panos.
Deize da Injeção
-- Eu sempre faço música a favor da amante, né, porque a fiel é sempre mais humilhada.
Pra mim, a fiel é sempre mais humilhada, porque a maior humilhação que tem é o cara sair
de sua casa para sair com outra mulher.
(Música: “Vem para o baile, seu otário / pensando que é garanhão / enquanto na sua casa /
sua mulher tá com negão)
158
-- Mas numa casa que eu trabalhava, entendeu, a mulher chegou para mim, entendeu, e
falou: “poxa, Deize, aquela sua música é maneira, me dá um CD dela aí, não sei o quê,
entendeu”. Aí, poxa, eu tava passando no corredor, a certas horas da madrugada e o meu
CD estava rolando e eu tava ouvindo o cara: “hãn, hãn...” Excita... te dá estímulo, entendeu?
Tia Neide
--Eu acho normal, sexo é sexo o tempo todo. Então, como a música da Tati, o pessoal, no
início, falando muito, né, criticou. Mas hoje é só isso que rola. Então, eu acho assim, eu
acho legal.
DJ Marlboro
-- Ela fala exatamente para poder mostrar, dar o grito de liberdade das mulheres. Não estou
falando que ela em particular sofreu repressão, ela está fazendo isso por causa... Não! Ela
falou por todas. Por isso que a mulherada, a maioria das mulheres é fã da Tati. A mulherada
geral é fã da Tati. Ela tem mais fã mulher do que homem. Por quê? Porque ela grita e
porque as mulheres sempre gostara de gritar, de botar homem na praça, de direitos iguais.
Mas ela é feminista sem cartilha, ela não aprendeu isso, ela aprendeu isso com a vida, ela
aprendeu isso na vivência.
( Tati cantando: “Não adianta de qualquer forma eu esculacho / me chamam de puta só
porque estou com seu marido...”)
• Segmento 7: histórico, fundamentação, justificativas.
Tati Quebra-barraco
-- Quando eu comecei a cantar, eu não tinha muita música, eu só tinha o Barraco 1 e o 2.
Na Cidade de Deus, tinha um festival, aí todo mundo cantava. Aí, o que eu fiz? Quando eu
comecei a cantar, eu não tinha música, aí eu comecei a divulgar eles, aí eu fiz o “69” na
minha voz porque o dono do “69” deixou eu divulgar eles.
(Tati cantando: “69, frango assado, de ladinho a gente gosta...”)
-- Na Cidade de Deus tem... Eu vou sempre falar isso... Tipo assim... Começou com o
Cidinho e Doca, né. Aí a sensação foi a Tati, aí veio o Tigrão, Bonde do Vinho, Carrasco,
Faz Gostoso, Descontrolada, as Saradinhas... Tem a Deize da Injeção, “... não adiante de
qualquer forma eu esculacho...” também é dela.
Deize da Injeção
-- Olha só, eu não sou nada, eu não sou nada, né, mas será que se aparecesse na
televisão, rebolando na garrafa, eu teria mídia? Eu teria! A Carla Perez conseguiu.
Thelles Henrique (produtor)
-- Eu me lembro muito bem que o então secretário, Josias Quental, nessa mesma reunião
dessa senhora, me disse, me fez uma pergunta, ele não tinha conhecimento: “Mas por que o
apelo sexual no funk? Por que essas letras sexuais?” Eu disse para ele o seguinte: “
Secretário, na época, essas pessoas que cantam funk hoje, elas têm entre 16, 17, 18 anos.
E eles cresceram e quando crianças o funk não era um sucesso da mídia. O sucesso da
mídia era o Axé Music. E essas crianças que hoje estão se formando adultos, cantam “69
frango assado”, cantam outras letras que vocês se sentem agredidos, elas ouviram nada
159
menos agressivo do que “Vai ralando na boquinha da garrafa, vai descendo na boquinha da
garrafa” e uma mulher semi-nua, se esfregando no gargalo de uma garrafa de cerveja e isso
é o maior sucesso.
DJ Duda
-- E a televisão estava mostrando isso, as rádios estavam tocando esse tipo de produto e
todo mundo aceitando numa boa. Aí, quando a galera do funk aprendeu que poderia fazer
também, começaram a inovar, começaram a ser até um pouco mais abusados...
(baile funk)
Valesca (Gaiola das popozudas)
-- Hoje não é só o funk que fala sobre sexo, entendeu, no carnaval, a mulher bota o peito de
fora, então, quer dizer, todo mundo tá vendo. No funk, ninguém vai lá em cima do palco e
bota a bunda de fora, o peito de fora. No forró, entendeu, tem o duplo sentido também. Tem
aquela “libera o tonho que eu te dou dez contos”, “senta, senta, vira, vira na bicicletinha...”,
um negócio assim, entendeu, o Hip Hop também vem com duplo sentido, quer dizer, o funk
também é um duplo sentido. Só que não é pornografia, entendeu, todo mundo tem o seu
ritmo, o seu jeito de fazer música e colocar pro mundo.
• Segmento 8: Funk e diversidade.
Mr. Catra
-- Ué, meu amigo [...?] é machista. Não vê o Lacraia? Discriminado pra caralho, né. Todo
mundo é machista. Lacraia é um {...?] ótimo. O funk não tem discriminação.
(Serginho e Lacraia, cantando: “Cuidado com a Cuca, que a Cuca te pega...”)
Entrevistadora
-- Como é o envolvimento das pessoas com a Lacraia?
DJ Marlboro
-- As pessoas gostam dela pra caramba. O funk que não é um reduto gay, eles se aceitam,
eu acho isso muito legal. Mostra o quanto não se tem preconceito no funk.
(Serginho e Lacraia, cantando Eguinha Pocotó e “Ele é bonitinho, é o cavalinho...”)
-- Tanto contingente de gente que o funk movimenta, era pra ter um respeito muito grande
por parte da sociedade e da mídia, e não tem.
•
Segmento 9: trabalho e mão de obra.
Deize da Injeção
-- Porque o funk, hoje em dia, neguinho fala assim: “não, funk é diversão. Funk é diversão
pra quem vai lá assistir a gente. Pra gente é trabalho, é aonde a gente ganha dinheiro. Só
que não tem carteira assinada, né. Mas dá pra sobreviver bem, se você faz 3, 4, 5 shows
por fim de semana ou então num dia. Eu já fiz oito shows num dia, num domingo.
160
MC G
-- Eu costumo fazer nove shows por semana. Dentro do Rio de Janeiro está numa faixa de
400 reais cada show, mas fora do Rio de Janeiro, 2.000, 2.500.
(Bonde Faz Gostoso)
Kleber
-- Todo mundo ganha, o pessoal que carrega caixa, o motorista do caminhão. Então é um
mercado que gera receita, gera emprego para geral. Tem segurança dos bailes, tem o
pessoal do bar.
Segurança do Baile
-- Não vou dizer pra você que me sustenta o trabalho do funk, né. Porque eu tenho outros
trabalhos, eu faço outra segurança, mas final de semana eu trabalho com elas e o dinheiro
que eu ganho não vou dizer pra você que dá, mas me ajuda muito, quem diria se eu não
tivesse o funk.
Deize da Injeção
-- Vamos ser sinceros,a gente vai falar a realidade: a gente sai para fazer o show, casa de
show grande, que aí contrata um grupo de pagode e contrata um MC. A gente lota a casa de
show, só que o tratamento é diferente. Sabe por quê? Porque assim, a gente vai pra fazer
baile pelo carro, entendeu, aí chega lá o carro do pagodeiro é 800, o da gente é 100, 200
reais, entendeu?
Componente do Grupo Preto de Elite
-- E talvez a rapaziada foi para o show pelo pessoal do funk.
• Segmento 10: discriminação e preconceito. O discurso da favela para a favela.
Cidinho
-- Eles demoraram pra caramba pra curtir o samba, entendeu. Aprenderam. Mas estão
demorando muito mais pra curtir o funk.
Mr. Catra
-- Eu quero saber o que é que é. O bagulho é espontâneo, o bagulho nasceu na favela de
uma cultura dos massacrados, mano. Tá ligado? Despontou pro mundo, despontou pra
sociedade e taí.
Deise da Injeção
— O problema não é o sexo. O problema não é que eles estão discriminando o funk. O
problema é que eles estão discriminando o pessoal da comunidade, que eles não querem
ver subir de jeito nenhum.
DJ Marlboro
161
— Essa música toda ela é feita com uma característica própria, como lugar nenhum do
mundo faz e esse reconhecimento, quem tem que fazer isso é o Ministério da Cultura, a
Secretaria da Cultura, antes de qualquer tipo de lugar, né? Mas, infelizmente, o mundo
reconhece e a gente lá fica “funk é música de preto, pobre e favelado.”
Denise
— Os favelados, os negrinhos mesmo, né, e pra eles os funkeiros é ladrão.
Andrea
— Nós fomos pro show, outro dia com a Tati e aí chegamos nesse show e eles falaram
assim: “Chegou os favelados”. Nós debaixo, jogaram um jato d’água, eu virei e falei assim:
“Lá na CDD os favelados não joga água do prédio”. Maior jatão, “scheleps”.
Denise
— Era um prédio de luxo em Copacabana.
Raquel
— Mas não foi os pessoal da boate. Foi gente que mora acima. No prédio onde que tem a
boate. Por que acha que só por ser favelado, a gente não tem cultura. Então eles acham
que funk não é uma cultura. Falou em funk, vê logo: Cidade de Deus, os favelados.
Cidinho
— Morar em comunidade, às vezes, tem o seu lado positivo, sabe. Mas o lado negativo, ele
é amplo pra caramba, porque ali acontece tudo, cara, a discriminação é muito grande, sabe?
Outro dia, eu peguei, eu tomei um táxi, inclusive eu estava até com minhas filhas, sabe? E o
taxista falou para mim que não entrava dentro da Cidade de Deus. Que revolta, cara! Que
revolta... Eu falei: “Que isso, amigo? Você tá louco? Olha aqui, cara: eu estou com minhas
duas filhas aqui, cara. Pô, amigo, aqui dentro tem muito mais gente do bem do que do mal.
Dentro de uma comunidade, apenas 1% vai para o lado errado, restam 99, entendeu? Eu
sou incluído nesses 99 que restam, que é do bem. Tanto eu como minha família, meus
parceiros em geral.” O cara não entrou, cara! Ele não entrou! Aí eu fiquei tão puto com ele e
falei: “Então tá bom. Então, eu vou descer aqui na praça e não vou te pagar.” Sabe o que
ele falou para mim? “Pô, tá tranqüilo, parceiro.” Ele me quebrou. Ele falou para mim: “Tá
tranqüilo, irmão! Você nem precisa me pagar, mas não me pede para entrar, não...” Aquilo
ali, sabe... eu tenho certeza que... eu vou fazer uma música sobre isso, mas a minha ficha
ainda não caiu direito, porque eu falando para vocês aqui, eu ainda sinto um pouco daquilo,
sabe? Por que eu sou dali, cara, entendeu? Eu sou dali, cara... como se ele chegasse e
falasse mal da sua família, dos meus conhecidos, dos meus tiozão, das minhas tiazinhas
que tem lá, viu? Das minhas criancinhas. Aquilo ali me revoltou muito.
Raquel
— Você vai procurar um emprego e fala assim: onde é que você mora? — Cidade de Deus.
— Aguarda em casa.
Cidinho
— Esse cara, ele olha pro pessoal dali com medo ou com desprezo, sabe? Ou seja, ali tá
um... ali nem é o início da discriminação. Ali é a discriminação inteira, por compreto. Acho
que, pô, 4h da tarde... sei lá... porque em uma comunidade... a violência está em todo lugar,
162
lá também. Se fosse de madrugada e ele falasse para mim: “Não vou, não, porque de
repente a polícia pode entrar aí e bandido tem aí mesmo e os caras pode trocar tiros, pegar
em mim, amassar meu carro ou furar o pneu. Ele pode se preocupar com ele, mas ele não
pode se despreocupar comigo nem com você, entendeu? Deve olhar não é só pra CDD,
não, mas para todas as comunidades do mundo, do mundo mesmo, sem exceção de
ninguém, cara, como gente, como pessoa, cara.
Denise
— Mensagem diretamente pelas pessoas que a gente quer que ouve. Não só em relação a
mulher também, não. Até a violência na favela, como nossos amigos aqui mesmo, Cidinho e
Doca, que cantam o Rap da Felicidade que fala da nossa favela, pra respeitar a gente, do
preconceito, pra poder, os policiais não respeitam a gente.
Doca
— Ela tava falando dos grupos dançando lá fora, muito manero. Só de comentar já estou
com vontade de rir.
Cidinho
— Já é engraçado. La vai, hein... Lá vai a voz, hein...
Doca
— segura...
(Cidinho e Doca cantando o Rap da Felicidade)
DJ Marlboro
— Quando você tinha o Rap da Felicidade “eu só quero é ser feliz”, tinha o Rap do Silva, era
a favela cantando para o asfalto. Então, ele estava ali sempre mostrando que a favela é
muito legal, mostrando auto-estima, mostrando... Quando o funk foi expulso do asfalto e foi
para dentro da favela, passou a favela a cantar pra a favela, já é outras regras, outras leis,
outro ouvido, ouvindo. É o ouvido que sabe o que está acontecendo de verdade mesmo.
Mr. Catra
— Eu fui fazer um show. Estava no palco cantando, aí o cara falou que eu estava cantando
rap proibido. A galera na música, bombando, 6 mil pessoas lá dentro da quadra. Ele chega
do lado: “Pára de cantar, senão eu vou te prender que é rap proibido!”
MC Frank
— Disseram na televisão que “vamos pegar os MCs para averiguação, vamos é... “ como se
diz?, é... “eles vão ter que dar depoimentos...” E a minha música estava nesse... no jornal
saiu quatro músicas minhas: uma do Menor do Chapa e outro do Cidinho e Doca. Então, eu
ali, no caso, era o mais visado. A maioria das minhas músicas, elas são verídicas, são
coisas que acontecem mesmo, por exemplo: “Uma hora da manhã o bonde todo se apronta
/ desce pelas vielas no estilo tipo Colômbia / Quando eu tava subindo, não deu pra acreditar
/ tiro pra caramba, no estilo de Bagdá.” Eu estava subindo para curtir o baile e os policiais
estavam entrando na favela, e, ao mesmo tempo que os policiais estavam entrando na
favela, aí, os caras estavam descendo lá de cima. Então, rolou um confronto de armas, tiro
163
pra lá, tiro pra cá e eu fiquei naquele meio e o motorista: “Caraca, cara...” e eu falei:
“Maluco, é tipo Bagdá!”
DJ Marlboro
— Aí, depois reclama das músicas, que a música passa a falar de uma realidade da favela,
que as pessoas se assustam, que funk, que é uma realidade que as pessoas vivem, acham
que é errado, que não podia fazer essas letras. Como não? É o que eles vivem, é o que eles
passam. Como é que você vai querer que eles façam uma letra para você, se você não vive
a realidade deles?
Cidinho
— Muita gente canta a verdade. Nós ouvimos um cara passar amarrado e todo mundo fazer
aquele comentário rápido assim, ninguém quer chegar perto, né, nego até entra, finge que
não tá vendo, mas aí a gente sabe: — “aí, vai morrer”. “— Ah... Por que vai morrer?” “ —
Falaram que é X9, ou roubou alguém na favela.” A gente fala isso na música? Fala. Por
quê? Realmente acontece. A gente vive lá dentro. Se é para comentar sobre a música, nego
fala: “Ih, essa música é pesada. Esses caras aí, se marcar, são até bandidos também.” Mas
não é, cara, é que nós crescemos lá dentro. Nós não somos, mas aquele cara que estudou
com a gente, hoje em dia é. Aquele cara que trabalhou com a gente, hoje em dia é. O que
nos resta fazer é mostrar para eles que existe uma maneira de se viver melhor do que
aquela maneira que ele está vivendo. Ou seja, o nosso ritmo de vida é o ritmo certo.
MC G
— É do tráfico quem quer, se envolve com o tráfico quem quer, canta quem quer, mostra
cultura quem quer.
Essinger
— Essa é uma questão das favelas cariocas e no mínimo das facções criminosas. Têm
funks que são de louvação das facções criminosas.
DJ Marlboro
— Mas quando o funk fala que o Comando Vermelho é legal, que o Terceiro Comando é
legal, amigo... ele está falando do que ele vive. O poder público que entra lá, é só pra bater,
pra extorquir, pra poder prejudicar, pra poder tirar a paz da favela.
Essinger
— Têm raps que falam da violência, vidas ceifadas pelo crime. Não, não é uma apologia.
Muitas vezes é um repúdio à violência.
Doca
— É muito mais fácil o cara ouvir sua música do que ouvir um conselho teu, entendeu? Às
vezes, através de sua música, o cara pode tirar alguma coisa como exemplo. E se você
sentar ao lado dele e parar pra conversar, ele vai entrar aqui e sair aqui.
DJ Marlboro
164
— Acho que o que acontece é muito mais cruel do que o quê as músicas cantam. As
pessoas continuam discriminando as músicas, falam mal das músicas, mas só que
esquecem que aquilo é uma realidade que tem que ser tratada. Eles preferem calar a boca
do moleque do que tratar o que eles vivem. Isso é muito ruim. Eu toquei ontem em Paris.
Toquei duas vezes em Paris. Toquei uma antes de ontem e ontem. Foi o maior sucesso.
Fazia carnaval o funk lá, né. Ontem eu toquei nesses lugar e amanhã eu toco na Eslovênia
também.
•
Segmento 11: Funk carioca = projeção para o mundo.
Eliete Mejorado (Lendo uma matéria publicada numa revista sobre o DJ Marlboro)
Página 127: “Nada, senão um trabalhador, o carioca DJ Marlboro está na cidade para tocar
não em um nem em dois, mas em cinco pubs na mesma noite. “
Bencave (The Breezeblock / BBC Radio 1)
— Eu estava em Barcelona, mas eles fazem uma pré-estréia em Londres duas semanas
antes, porque muitos ingleses vão lá. Claro que eu fui ver, porque a gente gosta muito de
música eletrônica por aqui. A gente foi para essa rave enorme em Hackney, no East
London, duas semanas atrás e eu estava dando uma volta e vi essa sala que tinha um
batidão saindo de lá e pensei que soava muito como Miami Bass, soa uma pouco como
umas coisas que temos por aqui, mas não era uma coisa nem outra.
Público - Londres
— Nós o vimos no festival de Barcelona semana passada. Ele era o melhor DJ de todos os
DJs. Ele quebrou tudo. Descobri que ele ia tocar hoje em Londres e viemos para cá direto.
Li sobre ele nas revistas daqui e na Internet. O Rio, o funk brasileiro, essas coisas. Nunca
tinha ouvido essa música, a gente não tem nada disso por aqui. É muito parecido com os
sons de garagem, do underground de Londres, é muito pesado, um batidão pesado, é... nós
gostamos....
Bencave
— Ficamos lá e uma hora depois saímos muito suados e dançamos, eu e meus amigos, por
uns 45 minutos. Uau! Isso é muito legal! Ficamos tipo... isso foi muito bom, muito bom
mesmo. O Sonar é muito legal porque rola gente diferente, gente que nunca ouvimos falar.
Foi assim que ouvi Marlboro. Sei que ele é DJ há um tempão.
Marlboro (sobre o Favela Chic – Paris)
—Por incrível que parece, né, as mulheres rebolando a bunda, meio como se fosse um baile
mesmo, ainda estava um pouco longe do baile, mas, tipo assim, o espírito do baile eles
entenderam.
Bruno Verner
— Eu estava fazendo um show e botava uma ou duas ou três tracks de funk carioca no meio
do show e o povo ficava enlouquecido. Isso ao mesmo tempo era a música eletrônica
brasileira que já estava lá há anos acontecendo e aí fizeram esses quatro programas para
lançar o programa de rádio e foi tipo um sucesso absoluto. Tinha ligação toda hora e o povo
falava: “Que música é essa que vocês estão tocando?”
165
Bencave
— Tenho certeza de um crescimento no Reino Unido, um crescimento pela Europa. Alguém
como o Marlboro poderia se dar muito bem, muito bem. Isso porque tem música um
pouquinho parecida. As pessoas conseguem entender um pouco mais hoje em dia, eu acho.
Acho que é uma novidade, definitivamente. Talvez nos últimos dois anos, ela tem atingido
devagarzinho, eu acho.
Entrevistadora (para taxista)
— Você fala português?
Taxista
— Um pouquinho só.
Marlboro
— Vamos ver o que ele acha do funk, vamos ver como ele escuta o funk.
Entrevistadora
— Ele quer saber o que você acha do funk.
Taxista
— Minha opinião sobre o funk...
Marlboro
— Vamos ver o que o senhor acha do funk.
Taxista
— O que ele disse?
Entrevistadora repete em inglês e o taxista começa a expor sua opinião. A entrevistadora
lhe diz: Não, depois de você ouvir!”
(funk começa a tocar no cd: “é som de preto, / de favelado, / mas quando toca /ninguém fica
parado”)
Taxista
— É música boa. É como... Jazz Funk.
Marlboro
— O que ele pensa?
Entrevistadora
— De onde você é?
Taxista
— Eu sou de Gana, África.
166
•
Segmento 12: fechamento
Preto de Elite cantando Martelo de Thor
Deize da Injeção
— Então vocês viram que no funk não tem preconceito, uns homens desses, sarados. Olha
o músculo dele! Olha o corpo dele... o corpão do outro... Cadê ele? Fugiu? Corre não, cara...
Você também... Olha só o tamanho do homem! E todo mundo aqui sem preconceito... É o
baile funk: todo mundo tem que rebolar, tem que dançar, certo?
167
ANEXO II:
O amargo brilho do pó
Aos 36 anos, Elis Regina, a melhor cantora do Brasil, foi achada morta, trancada em seu
quarto, onde tomara a derradeira dose de cocaína
27 de janeiro de 1982
A morte da melhor cantora brasileira provocou um choque nacional, assim que a notícia
circulou pelo rádio e pela televisão na manhã da última terça-feira. Cheia de vitalidade nos
seus 36 anos, Elis Regina de Carvalho Costa, três filhos, passou metade de sua vida em
estúdios, distribuindo uma voz impecavelmente afinada por 27 LPs, catorze compactos
simples e seis duplos, que venderam algo como 4 milhões de cópias. Não é um recorde –
Roberto Carlos vendeu quatro vezes mais –, mas a qualidade é tão boa que lhe assegurou
uma das mais sólidas reputações da música popular brasileira. Sua morte, no apartamento
que ocupava nos Jardins, em São Paulo, foi chorada com lágrimas canções entoadas por 25
000 fãs, amigos e parentes que a visitaram no velório do Teatro Bandeirantes, palco de seu
maior sucesso, o show 'Falso Brilhante", no centro de São Paulo. Cerca de 1000 pessoas
integraram o lento cortejo que atravessou a metade da capital paulista para enterrá-la,
quarta-feira, à tarde, no cemitério do Morumbi.
Menos de 48 horas depois de seu desaparecimento, veio o segundo choque, talvez o pior.
Desde a véspera, um véu de obscuridade cercava a morte da cantora -a médica que a
recebera no Hospital das Clínicas, para onde havia sido levada já sem vida, não fornecera o
Atestado de Óbito por sentir-se impossibilitada de concluir por uma morte natural, o cadáver
foi assim remetido para autópsia no Instituto Médico Legal. Feitos os exames, emergiu uma
sombria conclusão: Elis Regina, dizia o laudo médico, morreu pela intoxicação combinada
de bebidas e cocaína. Antes da divulgação do laudo, no início da noite de quarta-feira, o
diretor do IML, o polêmico legista Harry Shibata, telefonarapara um amigo , o diretor do
DOPS, Romeu Tuma, com uma dúvida. "Só me restam, a esta altura, duas hipóteses",
expôs Shibata. "Ou foi barbitúrico ou então a ingestão de cocaína com álcool, por via oral,
que provocaram a morte. Você sabe me dizer se alguém toma cocaína diluída em líqüido?"
Tuma não sabia, mas consultou delegados especializados em drogas e a resposta foi
positiva: um deles esclareceu que está em moda a mistura de cocaína com uísque, para
potencializar o efeito da droga.
RESISTÊNCIAS FAMILIARES - O laudo, enfim divulgado na manhã de quinta-feira pelo
delegado Geraldo Branco de Camargo, que comanda o inquérito aberto sobre a morte da
168
cantora, é cauteloso e claro. "Na necrópsia procedida nada encontramos digno de especial
menção que pudesse explicar a morte –, escrevem os legistas José Luiz Lourenço e Chibly
Hadad, que assinaram o documento. O exame toxicológico, de suma relevância no caso,
dada a negatividade dos achados da necrópsia, veio nos fornecer a resposta da causa
mortis", acrescentam. Os dados desse exame levaram os dois legistas a concluir que "a
quantidade de álcool etílico encontrada em nível sangüíneo revelou estar a vítima sob
estado de embriaguez e a presença de cocaína caracterizando o estado tóxico, que em
somatória podem responder pelo evento letal".
Desde que o corpo de Elis fora mandado para o IML, essa hipótese estava no ar. Antes que
se tornasse pública e oficial contudo, houve uma cortina de resistências. Amigos da cantora
e seu último namorado, o advogado Samuel Mac Dowell de Figueiredo – que a encontrou
morta –, tentaram evitar a realização da autópsia, argumentando que ela não costumava
usar drogas. O argumento esquecia o aspecto legal da questão: são obrigatoriamente
submetidas a autópsia todas as pessoas a respeito das quais não se possa atestar com
certeza que tiveram morte natural. Além disso, os amigos de Elis suspeitavam do legista
Shibata, que em 1975 assinou o célebre laudo sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog –
declarando-o suicida sem ter visto o corpo remetido ao IML pelo exército, em cujo DOI CODI
ele morrera. "Ela não transava drogas e o Shibata tem ressentimentos do Mac Dowell", dizia
o compositor Edu Lobo - referindo-se a um complicador extra, o fato de Mac Dowell ter sido
um dos advogados no processo em que a União foi condenada pela morte de Herzog.
EXAME IRREPREENSÍVEL - Também Mac Dowell teria preferido evitar o exame médico
legal e não aceitou as suas conclusões. Depois de ser ouvido no inquérito policial, também
na quinta-feira, ele ditou uma taxativa declaração, durante entrevista coletiva em que pediu
para não responder a perguntas: "Não sabemos que esse laudo, por si só afirma verdades,
nem tem uma procedência que leve as pessoas a acreditar nas conclusões que ele
apresenta". Mac Dowell não deu maiores precisões, nem quis explicar melhor seu ponto de
vista - qualquer polêmica, a respeito, disse ele, seria "irrelevante e inoportuna".
Na verdade, é certo que Elis Regina não morreu de causas naturais, ou doenças, como,
provou a autópsia feita por quatro médicos - os dois que assinam o laudo, Harry Shibata e o
próprio médico da família da cantora, Alvaro Machado Jr. "O exame foi irrepreensível",
reconheceria Machado mais tarde. De fato, ao contrário do que imaginaram diversos amigos
de Elis, não se vê como a análise do laudo do IML poderia ter sido eventualmente fraudada por exemplo, acrescentando-se a cocaína às vísceras, sangue e urina da cantora depois de
sua morte. Essa hipótese é claramente fantasiosa: ao ser metabolizada pelo organismo, a
cocaína transforma-se em certas substâncias, seus metabolitos, num tempo determinado,
169
de modo que é possível especificar o momento em que ela foi ingerida. Por isso, a cocaína
simplesmente agregada a restos mortais é facilmente identificável.
"UMA GRANDE DAMA" - O fato é que o único elemento encontrado no corpo de Elis capaz
de matá-la é a cocaína. Resta a questão de quanta cocaína, exatamente, a cantora ingeriu
antes de morrer. O chefe do Departamento de Psicofarmacologia da Escola Paulista de
Medicina, professor Elisaldo Carlini, lembra que o laudo não especificou a dosagem de
cocaína encontrada. Mas não é preciso haver grande quantidade para que a droga tenha
efeitos potencialmente letais. O professor Carlini estima que a cocaína, ingerida por via oral,
pode matar uma pessoa se a dose excede meio grama. Raramente alguém ingere menos
que isso - e a média de doses encontradas em vítimas, em casos semelhantes, é de 1,2
grama. Seja como for, o IML, anunciou para esta semana a conclusão de um exame
destinado a determinar a quantidade de cocaína que Elis tomou.
As divergências que até o final da semana passada cercavam as circunstâncias da morte
não foram provocadas, na verdade, por um conflito de versões, mas pelo empenho do
advogado Mac Dowell e de amigos da família em preservar a imagem de Elis. Mac Dowell
explicou que gostaria de evitar efeitos negativos sobre os filhos da cantora - e contou que
impediu o filho mais velho, João Marcelo, 11 anos, de entrar no quarto onde ela estava
estendida no chio. Esse empenho, entretanto, se choca com o fato de que em casos nos
quais se desconhece a causa da morte, a lei manda que ela seja esclarecida por todos os
meios, a começar pela autópsia –, e acobertar o assunto o beneficia, em última análise, ao
traficante que vendeu a Elis as drogas que a mataram.
Mais do que tudo, de fato, o laudo mostra que Elis foi uma vítima - e sua perda seria
fundamente sentida por milhares de admiradores em todo o país. O presidente João
Figueiredo enviou um telegrama de pêsames à família, e não lhe faltaram epitáfios dignos.
"Ela é insubstituível", garantiu seu antigo parceiro Jair Rodrigues. "Essa moça era uma
grande dama da música brasileira", assegurou Tônia Carrero. Seu velório estava enfeitado
com uma constelação de astros de cinema, televisão, música e dança, como Lennie Dale,
que foi preso em fevereiro de 1971, no Rio, com um enorme pacote de maconha. O cortejo
que a levou ao cemitério foi coberto horas a fio pelas rádios de São Paulo - e o esquema de
acompanhamento da TV Globo incluía filmagens de helicóptero. Os jornais da Globo
dedicaram a Elis uma quantidade extras só comparável às da morte do presidente Annuar
Sadat e do atentado contra o papa João Paulo II.
FRASES ININTELIGÍVEIS - Elis Regina teve um enterro grandioso, mas fez sua última
viagem incógnita. Quando Samuel Mac Dowell a levou inerte para o Hospital das Clínicas,
por volta das 11h40 de terça-feira, pegou o táxi do português Manuel Gouvêa Alves, 46
170
anos, na rua Melo Alves, onde fica o apartamento da cantora. A corrida até o hospital não
durou mais que quatro minutos, e Gouvêa se lembra bem da hora porque estava ouvindo
pela rádio a parte final de seu programa favorito, o de Barros de Alencar. "Mas eu só soube
que transportei Elis Regina mais tarde, quando ouvi no rádio que ela tinha morrido", contou.
" Me deu uma tal tristeza que se eu tivesse dinheiro não trabalharia mais naquele dia".
Os dias anteriores do casal não permitiam vislumbrar um fim trágico – Elis e Samuel Mac
Dowell estavam procurando uma casa para viverem juntos. À véspera da morte, elis
recebeu um grupo de amigos no apartamento, músicos de seu conjunto e Mac Dowell. Na
ocasião, contam os participantes, ela bebeu Cinzano e uísque. Por volta das 21 horas, todos
se retiraram, menos Mac Dowell, que ficou para jantar e saiu às 23h30. "Evitei ficar até mais
tarde porque ela ia ouvir as fitas de seu novo disco", explicaria ele no seus depoimento à
polícia. Já em sua casa, o advogado telefonou algumas vezes para a cantora, que não
atendeu. Quando finalmente consegui completar a ligação, de madrugada, ele recebeu a
explicação de Elis. "Não ouvi o telefone porque estava ouvindo as músicas no volume mais
alto". Mac Dowell , então, achou a voz dela normal.
Às 9h30 da manhã de terça-feira, de seu escritório, ele voltou a telefonar para Elis. Ela disse
que não dormira de noite e, segundo Mac Dowell, conversou normalmente - no final da
ligação, porém começou a articular as palavras muito pausadamente, disse algumas coisas
ininteligíveis com a voz distante e afinal silenciou.
PRIMEIRA EXPERIÊNCIA – Mac Dowell, alarmado, deixou o escritório, pegou um táxi na
rua da Consolação e tocou para a rua Melo Alves. Ele calcula que chegou lá às 10h30 mais de uma hora, portanto, antes de embarcar o corpo de Elis no táxi de Gouvêa para a
viagem até o Hospital das Clínicas. Segundo seu depoimento, esse tempo foi gasto com o
arrombamento de duas portas para que pudesse chegar ao quarto de Elis, um telefonema
para o Hospital das Clínicas, pedindo uma ambulância, tentativas de reanimar Elis, e
telefonemas para seu colega de escritório, Mário Antônio Barbosa. Como a ambulância não
chegava, depôs Mac Dowell, sua decisão foi pegar Elis nos braços, descer até a rua e
apanhar um táxi. A essa altura chegara também a secretária da cantora, Celina Silva, que o
ajudou.
O advogado garante que encontrou no quarto de Elis um envelope vazio de Sonotrat,
antidistônico que ela usava para dormir. "Nunca tive conhecimento, nestes seis meses de
vida comum, que ela ingerisse tóxico", disse Mac Dowell à polícia. Amigos do casal
garantem, que Elis jamais usou cocaína na presença do advogado. Mas lembram que ela
experimentou drogas pela primeira vez há pouco mais de um ano, estreando, com um
cigarro de maconha. A cocaína surgiu na sua viagem, aos EUA no início de 1981 para
171
acertar a gravação de um disco com o saxofonista Wayne Shorter. Antes disso, ela
consumia cerveja e vodca.
ONIPOTÊNCIA - Pelo menos um dos ex-namorados de Elis, o compositor paulista
Guilherme Arantes, 28 anos, viu-a cheirando cocaína, durante o tempo em que andaram
juntos no começo de 1981, no Rio de Janeiro. Da mesma forma, um advogado amigo de
Mac Dowell lembrava no dia da morte da cantora que ela vinha consumindo a droga – ao
mesmo tempo que procurava, junto ao IML, convencer os legistas da conveniência de se
dispensar a autópsia. É possível, porém, que Elis jamais tenha sido viciada, nessa droga.
Sua relação com a cocaína, provavelmente, insere-se no mesmo tipo em que estão alguns
milhares de brasileiros, a maioria deles fora do meio artístico, ou intelectual - e que buscam
nesta droga potente um socorro eventual.
A diferença dos alucinógenos ou da maconha, capazes de patrocinar aos seus
consumidores momentos de grande alegria ou de profunda depressão, dependendo do
estado de espírito de, cada um, a cocaína -C17H2IN04, na sua fórmula química - é uma
droga de satisfação garantida. Cheirando-se um décimo de grama, conseguem-se de 15 a
20 minutos de uma sensação de onipotência, lucidez e segurança, e não há a menor
possibilidade, de no lugar disso vir qualquer tipo de depressão. "O problema é que você
cheira e se sente Deus. Depois, quando o efeito passa, você começa a achar desagradável
não ser Deus", confessa um consumidor.
Assim, Arthur Conan Doyle encontrou no pó alguns dos complexos estratagemas vividos
polo seu personagem Sherlock Holmes. Mas se o escritor usava a cocaína para divagar,
outro consumidor, o papa Leão XIII, se valia dela como uma ajuda temporal para resolver os
assuntos da Igreja. A onipotência ao alcance do todos fez da cocaína um produto do grande
consumo na alta hierarquia do fascismo italiano e o espalhafatoso marechal alemão
Hermann Goering, ao ser preso pelos aliados em 1945, teve de ser submetido a um
complexo programa do desintoxicação, dada a sua dependência em relação à coca.
INSEGURA - Nesse sentido, a cocaína, com sua ação sobre o córtex cerebral, difere das
drogas popularizadas na década do 60, que se poderiam chamar de produtos do
"esquerda". Ela é essencialmente da "direita": é a droga de quem não quer novidades, mas
apenas poder. A cocaína faz do preguiçoso um prodígio de energia, do tímido um audaz , do
lento um rápido, mas, na essência, não traz nenhuma idéia, como, por exemplo, as que o
escritor inglês Aldous Huxley teve ao tomar a mescalina que lhe ofereceu o tema para "As
Portas da Percepção". Para um cantor, por exemplo, a cocaína garante que ele terá
coragem de enfrentar a platéia, enquanto as drogas alucinógenas estão longe disso, e as
anfetaminas, se asseguram a euforia, garantem também uma segura depressão na ressaca.
172
Apesar de sua competência profissional, Elis Regina se confessava uma pessoa
profundamente insegura - e extraía um pouco do autoconfiança no consumo da cocaína.
Dona de um caráter e comportamento conturbados, que freqüentemente a faziam
expressar-se de maneira tortuosa e torturada, Elis não conseguiu, como muitos outros
colegas do mundo artístico, adquirir a segurança que procurava sem pagar um alto preço
por ela. Sua provável inexperiência no convívio com a droga leyou-a à fatal ingestão da
semana passada - e abriu sua vida pessoal a uma investigação certamente penosa e
dolorida para os que viviam próximos a ela.
"Nada tenho a esconder", desabafou Samuel Mac Dowell, ao final da semana passada, em
conversa com um advogado amigo, José Carlos Dias, destacado militante da Comissão de
Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. A confirmação de que Elis ingeriu cocaína
acabaria por derrubar a barreira de discrição que Mac Dowell tentou colocar sobre o caso e
que nos próximos dias estará sob a mira das investigações oficiais. Depois da divulgação do
laudo médico, o inquérito policial em andamento terá três objetivos: saber se Elis era viciada
em cocaína, apurar se houve "induzimento, auxílio ou instigação ao suicídio" e descobrir o
fornecedor da droga. Por enquanto, o inquérito está próximo da estaca zero.
O delegado Geraldo Branco de Camargo dispõe de poucos dados para resolver as três
incógnitas. A rigor, apenas uma pessoa conhece bem a história da morte de Elis, o
advogado Mac Dowell – e talvez conheça apenas parte do que aconteceu. Ele nega com
veemência que tenha discutido com Elis nos telefonemas que trocaram de madrugada –
enquanto a governanta Maria das Dores Souza ouviu Elis encerrar uma conversa telefônica,
por volta do meia-noite de segunda-feira, com um palavrão. Mas o próprio delegado não
encontrou pistas nos pri-meiros cinco depoimentos que colheu: "Em princípio, não vejo
conflitos no que disseram os depoentes", diz Camargo. A busca no apartamento da cantora
também nada revelou: os únicos medicamentos encontrados pela polícia eram pediátricos.
A tarefa do delegado Camargo não será facilitada pela biografia contraditória da cantora.
"Eu sou de Peixes, que é simbolizado por um peixe virado para a direita c outro para a
esquerda. Tem hora que estou com o peixe de cima e está tudo bem. Mas aí entra o peixe
de baixo e complica tudo", ela costumava dizer. Seu comportamento em público era descrito
por amigos como "careta".
É o que explica retratos tão diferentes que fazem dela mesmo os amigos mais chegados –
dos quais Elis cobrava atenção, telefone-mas, carinho, mas em relação aos quais era capaz
de repentinas explosões de generosidade. Quando soube que sua amiga Ione Cirilo estava
sem dinheiro, pagou todas as prestações que ela devia – sem dizer uma palavra à amiga.
Em outro repente, na greve dos operários do ABC, em 1980, doou 180 000 cruzeiros para o
173
fundo de greve – e arrecadou entre amigos, durante um jantar, mais 70 000. "Eu não vim
para os canapés, vim para a feijoada", justificava-se com uma ponta do misticismo que
sempre a envolveu.
As razões que a levaram à morte podem continuar envoltas em mistério, mas a morte não
conseguiu- lhe roubar o sucesso. Num único dia da semana passada, a Odeon, gravadora
do seu último LP, Elis Regina, recebeu 19 000 pedidos de cópias do disco, que vendera nos
últimos dois anos modestas 50 000 unidades. Nas próximas semanas, a Polygram vai lançar
uma caixa de discos com sua obra, e a WEA anuncia seu último disco inédito, Elis em
Montreux, para breve. De Elis Regina ficou a voz – exatamente o que esse complexo ser
humano tinha de melhor.
A perfeita alquimista
Misturando técnica e emoção, Elis resistiu às fórmulas fáceis e se tornou a maior cantora do
Brasil
Em dezoito anos de carreira, Elis Regina percorreu com sucesso o destino dos artistas que
jamais se contentam com o brilho do próprio ofício. A melhor cantora da música brasileira ou, pelo menos, a dona da mais perfeita alquimia entre técnica e emoção – vestia a fama
como se fosse um daqueles vestidos caros, que, por belos, devem ser sempre trocados. A
cada vitória ela safa, inquieta, em busca de uma nova parada: "Sempre vou viver como
camicase. É isso que me faz ficar de pé", confessava.
E foram muitos os vôos vitoriosos dessa estrela desde que ela chegou ao Rio de Janeiro,
em 1963, com 18 anos e 36 000 cruzeiros na mala. Aquela pequena gaúcha de 1,53 m
("Meu problema são 10 centímetros a mais; então estaria tudo resolvido") desceu nervosa
numa música popular enriquecida pela melodia da bossa nova e empobrecida pela
escassez de intérpretes que levava ao reinado de Nara Leão, desafinada, porém levemente
soturna, como se queria.
Agitada, chamaram-na "Pimentinha" . Movendo os braços para cima e para baixo, foi
ridicularizada pelo cronista Sérgio Porto, que dizia não saber se ela era "uma cantora que
nada ou uma nadadora que canta". Havia nela, porém, uma pessoa enérgica, inquieta e,
acima de tudo, uma cantora afinada. Não conseguiu ancorar-se num gênero que lhe
garantisse o sucesso comercial, como sucedeu a Maria Bethânia no modelo "amor
inesquecível". Muito menos agarrou-se à repetição de adoráveis recursos, como faz Roberto
Carlos. Faltou-lhe a alegria contagiante de Gal Costa e o pique de Rita Lee. Mas tinha algo
que faltava a todos e, por isso, nas próximas décadas, quando se procurar a voz desta
época, ela estará num disco de Elis.
174
CORTEJADA PELA ESQUERDA - Poucos são os cantores brasileiros que se fizeram
acompanhar por tantos compositores novos. Elis foi a primeira a gravar o desconhecido
baiano Gilberto Gil e o mineiro Milton Nascimento. Há pouco anos, descobrira João Bosco,
Aldir Blanc e Belchior. Nesta semana, começaria um novo LP onde incluíra uma
compositora, Irinéia Maria, que nem sequer vira pessoalmente. Tinha tudo para dar certo, e
deu, naquilo que sabia fazer muito bem: cantar. Surgiu sorridente, com seus dentes
pequenos e o cabelo curto, e assim poderia ter ficado por anos e anos, como eterna
parceira de Jair Rodrigues. Mas recuou em busca de maior perfeição técnica, roçou o perigo
das interpretações frias e, em 1975, com o show 'Falso Brilhante" conseguiu combinar a
cantora emocionada de antes com a técnica conquistada, firmando-se num estilo em que
morreu insuperável.
Mas, se o camicase voou bem no ofício, também afundou em ressentimentos e inimizades
na vida. Como, numa de suas distorções, o meio cultural brasileiro exige do artista não
apenas a arte mas uma espécie de atestado de idoneidade política – de direita para o
governo e de esquerda para a oposição –, Elis morreu filiada ao Partido dos Trabalhadores,
depois de um, percurso sinuoso e agressivamente patrulhado. Em 1969, ela cantou na
Olimpíada do Exército e em 1972 nas cerimônias pomposas do Sesquicentenário da
Independência. Por isso, foi colocada no "cemitério dos mortos – vivos" que o cartunista
Henfil – presente ao seu enterro – gerenciava na ocasião. Ela partilhava esse campo-santo
com Marília Pêra, Roberto Carlos, Tarcísio Meira, Glória Menezes e Pelé. Em 1978,
cortejada pela esquerda, fazia campanha para o professor Fernando Henrique Cardoso,
candidato do MDB ao Senado por São Paulo. Mas, aos amigos, confessava que preferia o
veterano Franco Montoro.
A participação de Elis em manifestações oposicionistas reconciliou-a com a esquerda e,
com o tempo, as mesmas patrulhas que apedrejaram passaram a afagá-la, tudo num
esforço inútil quer do ponto de vista estético, quer no aspecto político. É improvável que ela
tenha trazido votos a candidatos da oposição, assim como é certo que não foi pela sua
participação em festas do regime que a ditadura viveu tanto. Esteticamente, ela, que
lançava novas músicas e novos nomes, pouco acrescentou à sua biografia cantando
músicas simpáticas A esquerda, pelo simples motivo de que Barbra Streisand e Joan Baez
não são a mesma pessoa.
A irrequieta personalidade da "Pimentinha" levava as pessoas a querer afinar, sem sucesso,
a sua conduta. E, a cada "desafino" de Elis, brotavam sarcasmos. O maledicente compositor
Carlos Imperial, ao saber que ela se casaria com o produtor Ronaldo Bôscoli, comentou:
"Bem feito para os dois". Mas isso era pouco. A cantora Maysa garantia ter a prova de que
faltava caráter a Elis: ela a teria induzido a beber numa noite, para derrubar sua
175
apresentação num palco que ocupava em seguida. A acusação seria indiscutível se viesse
de um semi-abstêmio como Roberto Carlos. Maysa, porém, dificilmente precisaria ser
induzida a mais um copo.
AGUERRIDA E AGRESSIVA - "Elis vivia sempre com a corda esticada, a mil por hora, e
mudava de opinião em fração segundos", observou na semana passada o compositor Edu
Lobo. O psicólogo Roberto Freire, a quem no sucesso do show "Falso Brilhante" ela atribuiu
às emoções que distribuía do palco, tornou-se, meses depois, "um mau-caráter
aproveitador". Roberto Carlos, de quem ela morreu amiga, já fora "infantil e fugaz". E seu
segundo marido, o compositorCésar Camargo Mariano, com quem vivera feliz no alto da
serra da Cantareira por nove anos e dois filhos, virou, com o fim do casamento, "um
explorador". Como cantora, podia influenciar pessoas. Como pessoa, não conseguia fazer
muitos amigos.
Pudera. Teve um rápido romance há um ano com o cantor Fábio Júnior e, ao encerrá-lo,
fulminou o ex-namorado: "Ele foi como um sorvete, gostoso e rápido, mas brigamos quando
eu disse que ele estava com saudade do plim-plim da Globo". Aguerrida antes e agressiva
depois, Elis sempre suportou mal o presente. Assim como foi capaz de voar
melhor? Eu ou a Bethânia", perguntava com alguma insistência, há poucos anos, sem
segurança suficiente para acreditar na sinceridade de quem lhe garantia que era ela.
SEVERO APRENDIZADO - Era a melhor porque poucas cantoras tinham o seu espectro
vocal. Rita Lee admite que não tem a metade da extensão de Elis. Bethânia sabe que
para Nova York em busca do "sorvete" e de moê-lo depois, sustentava, enquanto o romance
durou, que vivia um grande amor. Mesmo no palco, passava por explosões capazes de
fazer com que o produtor Roberto de Oliveira dissesse, em tom de brincadeira, ""ela tem
tudo para ser a Judy Garland brasileira, mas não bebe".
Em 1977, antes de entrar no palco onde pouco depois sua grande rival Maria Bethânia, ela
teve uma crise de choro e recusou-se a cantar. Temia audiência, mas ao dominá-la, saiu
coberta de aplausos e chegou feliz ao camarim, onde, pouco depois, começou a quebrar
tudo. Por quê? Ouvira os aplausos dados a Bethânia e julgara-se batida. "Quem é
lhe faltam os agudos. Gal, com extensão e agudos, tem graves pouco educados. Elis
Regina, que no início da carreira esbanjava tanto agudos quanto fricotes, foi buscar pelo
exercício os graves que lhe faltavam e, ao final de um severo aprendizado, era capaz de
acompanhar as difíceis construções harmônicas de Milton Nascimento que já machucaram
tantos intérpretes.
176
Assim como não há quem lhe tire os méritos de grande cantora e intérprete, nenhuma briga
poderia tirar-lhe a conduta profissional impecável com músicos e colegas. Não apenas
protegia valores jovens como, também, defendia os
interesses de quem trabalhava ao seu lado. Há dois anos, quando fazia no Canecão o show
"Saudades do Brasil", soube que o empresário Mário Priolli negara um aumento aos
bailarinos. "Ou aumenta a moçada ou eu paro com o show", disse a Priolli recebendo de
volta o aumento. Doou dinheiro para entidades de defesa do direito autoral, e ,
recentemente, quando um grupo de cantores foi a Brasília pedir ao governo que liberasse o
disco da taxação dos supérfluos, fulminou a iniciativa: "Isso é defender as gravadoras. Elas
é que têm de se preocupar com essa questão e não os artistas, de quem já tiram sua
riqueza".Depois do rompimento com o compositor Camargo Mariano, Elis recompôs sua
vida sentimental com o advogado Samuel Mac Dowell Figueiredo. Trocou a casa ecológica
da serra da Cantareira, onde fazia longas análises dos confortos da vida silvestre, por um
apartamento no centro dos espigões paulistas. Deixou o espiritismo que a levava a
psicografar mensagens de um avô índio, perdeu o interesse pela parapsicologia e
concentrou--se nas virtudes do vegetarianismo – ostensivamente, só bebia guaraná em pó.
Ao lado de tanta excentricidade, porém, estava uma vocação caseira. Comia suas verduras
mas oferecia aos convidados lombo de porco com alecrim e molho de cerveja. Metódica,
acompanhava atentamente a educação dos filhos, a arrumação dos copos, e era capaz de
irritar-se se as suas meias coloridas fossem arrumadas fora da escala cromática que
pacientemente concebera. "Eu conheci o sucesso sem estar preparada para enfrentar a
vida", reconhecia Elis numa daquelas frases que soam proféticas depois que se morre.
No seu caso, porém, esse despreparo aparente não se refletiu quando ela chegou morta ao
Hospital das Clínicas,
mas sobretudo nos dias em que, vivíssima, era aplaudida em seus shows. A razão dessa
angústia poderia estar na origem humilde, mas nem todos os artistas nascidos humildes são
ostensivamente angustiados no sucesso: a imagem serena de Roberto Carlos prova isso à
exaustão. A melhor explicação, e a única capaz do desembocar num copo onde se
misturam álcool e cocaína às 10 horas da manhã, está numa competitividade exacerbada.
Compulsão esta germinada numa menina que aos 11 anos cantava no Clube do guri,
programa de calouros de Porto Alegre, e aos 22 casou-se de vestido cumprido com noivo de
fraque na capela Mayrink, templo do pernosticismo social carioca.SEGURANÇA FUGAZ Elis nunca foi uma artista publicamente envolvida com drogas Pelo contrário. Ao longo de
toda a década do tropicalismo ela hostilizou o desbunde chegou a sugerir que se
desligassem as tomadas dos palcos onde subisse Caetano Veloso, para que não pudesse
ligar a guitarra elétrica. Nada mais "careta". Afinal, em sua casa havia uma garrafa de
177
vermute, bebida improvável na prateleira de alguém que efetivamente procura álcool. Assim,
a cocaína não entrou no quarto de dormir do Elispela porta do modismo, mas precisamente
pelo pique, pela sustentação que dá ao competitivo, pela segurança fugaz que oferece aos
tensos. Nesse sentido, o próprio pó é a quintessência do caretismo.
Paradoxalmente, ela morreu quando se orgulhava de viver com um homem, com quem "não
poderia competir", pois Mac Dowell, ao contrário de todos os seus namorados e maridos,
ligados ao mundo do espetáculo, é um bem-sucedido advogado, que, antes dela, jamais
chegara sequer aos bastidores. "Passei anos complicando as coisas, agora quero voar",
dizia há poucos meses. E, de fato, pelas primeiras reações de quase todos os seus amigos,
ela vivia
não só um período de grande densidade artística, desde o sucesso do show "Trem Azul", do
ano passado, como também de muita felicidade pessoal.
A seleção de seu próximo disco, que deveria aparecer em março, poderia ser a grande
surpresa. Mostrava-se segura ousando gravar "O Amor", que Gal Costa acabara de colocar
nas lojas sem grande sucesso. E, além de novamente oferecer nomes novos, vinha com
velhos sucessos como "Till There as You", dos Beatles. Seu último disco "Elis Regina",
vendeu 52 000 cópias, desempenho medíocre para uma estrela e auspicioso para um
estreante. Mesmo vendendo pouco, ela era um dos melhores cachês de shows
e, no fim das contas, a pobre menina de 1963 estava rica, mas, sempre perseguida pela
maledicência, era acusada de avarenta, num mundo de inveja onde quem não é acusado
disso tem fama do pródigo, pois nada há de mais anormal do que se ver num artista alguém
normal, ou, pelo menos, alguém muito parecido com as demais pessoas.
Sua normalidade, tão pouco explorada, não se extingue na repetição do talento, mas vai a
alguns pontos até mesmo raros. Nada tinha de falsa vaidade das estrelas. Recusou uma
sugestão para que seu carro tivesse chofer, vestia-se conservadoramente e, na hora de
construir uma casa na
serra, da Cantareira, passou numa empresa de pré-fabricados, mandou embrulhar uma e
nela viveu feliz muitos anos. Jamais fez concessões ao escândalo ou ao gênero heroína do
fotonovela. Todos os seus romances tiveram endereço e, se dependesse dela, a imprensa
jamais os alcançaria.
Sempre manteve os filhos fora da linha de tiro dos espetáculos. Agora, deverá se esclarecer
com quem ficam João Marcelo, filho do Ronaldo Bôscoli, a quem ela proibia que visitasse a
criança, de 11 anos, Pedro, de 6, e Maria Rita, de 4, ambos vindos de seu casamento com
César
178
Camargo Mariano. Se a sua vontade de que os três nunca se separem puder ser cumprida,
ficarão todos com seu irmão Rodrigo ou com os avós, que vivem em São Paulo, trazidos e
mantidos por ela desde que o sucesso tirou-a definitivamente de Porto Alegre.
"FAÇO, MAS COM MEDO" - Para todos, desde os amigos até os parentes, o segundo
choque da morte de Elis, provocado pelo laudo médico, será, por algum tempo, o mais difícil
de absorver. No entanto, é certo que sua memória haverá de resistir às circunstâncias
dramáticas do fundo sua vida, assim como a cantora americana Janis Joplin, morta com
uma dose excessiva de heroína em 1970,
não teve sou valor artístico julgado pelos padrões do sua vida conturbada. Só morta, Elis
Regina conseguiu abrir o caminho para que a julgassem como artista, sem misturar a isso
sua vida pessoal e suas decisões erráticas. Afinal, ninguém acreditava nessa pessoa
audaciosa quando ela dizia que "morro do medo, faço todos os espetáculos me borrando do
medo, todos os dias. Faço, mas com medo. E se mandar parar, eu paro, porque medo eu
tenho".
Esse medo, porém, era convertido em agressividade nas relações cotidianas e em
inspiração sublime no palco. E Elis,
que sabia quem ela era, alcançava as maledicências que a perseguiam: "No dia em que
alguém for reorganizar o sou fichário na pasta ou no compartimento Elis Regina, vai ter
muito trabalho. "Eu não tenho a menor intenção de ser simpática a algumas pessoas. Me
furtam o direito inclusive de escolher. Sou obrigada a aceitar quem passar pela frente. Me
tomam por quem? Um imbecil? Sou algo que se molda do jeitinho que se quer? Isso é o que
todos queriam, na realidade. Mas não vão conseguir, porque quando descobrirem que estou
verde já estarei amarela. Eu sou do contra. Sou a Elis Regina do Carvalho Costa que
poucas pessoas vão morrer conhecendo.
179
ANEXO III:
11/10/2001 - 03h11
Em entrevista inédita, Renato Russo fala de drogas e
da Legião
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ALEXANDRE MATIAS
especial para a Folha
Há exatos cinco anos o pop brasileiro perdia o pouco de senso crítico que tinha, acelerando a
escavação do atual abismo cultural em que se encontra. Com a morte de Renato Russo, acabava a
Legião Urbana, uma das duas bandas de rock mais importantes do Brasil, funcionando no
imaginário nacional -ao lado do experimentalismo dos Mutantes- como os Beatles para o planeta.
O fim do grupo coincidiu com a aceleração da idiotização do pop brasileiro, hoje composto por
discos de regravações, muitos deles subprodutos da própria Legião.
No dia 21 de maio de 1994, Renato Russo e a banda viajavam pelo interior de São Paulo com a
turnê do disco "O Descobrimento do Brasil". O show daquela noite havia sido no ginásio municipal
de Valinhos (a 88 quilômetros da capital) e problemas com a acústica do lugar fizeram o grupo
convocar uma reunião de emergência na beira da piscina do hotel Royal Palm Plaza, em Campinas.
Leia trechos da entrevista concedida por Renato Russo, após a reunião.
Folha - Qual seu disco favorito da Legião Urbana?
Renato Russo - O "V", que eu acho o disco mais difícil. Gosto muito de "O Descobrimento do
Brasil". Agora, que encontrei a programação dos 12 passos -parei de beber e de me drogar-, tudo
está mais tranquilo. Esse show de hoje, por exemplo: o som estava um caos, tudo estava um
horror, e o público, superlegal. O lugar tinha uma reverberação brutal. O público berrava muito, e
o engenheiro de som teve de aumentar tudo, desequilibrou. No começo era só "bum-bum-bum" e
eu berrando, não dava para ouvir os detalhes. Mas, se fosse e m outra época, eu teria ficado tão
preocupado que ia beber, tomar um porre, falar: "Nunca mais vou fazer show", nhem-nhemnhem... Isso agora não existe mais. Há uma tranquilidade, uma serenidade que esse disco trouxe,
e acho que as músicas refletem isso.
Folha - Como foi sair dessa fase?
Renato Russo - Eu estava me destruindo e, em vez de me matar com um tiro na cabeça, preferi
procurar ajuda. Isso vem desde os 17 anos, mas no "V" foi a primeira vez que coloquei na música
essas questões. "Montanha Mágica" é sobre isso. Eu era jovem e acabei entrando num beco sem
saída.
Isso foi me consumindo, eu ficava deprimido e não sabia o porquê. Achava que o mundo era
horrível, igualzinho ao Kurt Cobain, nada mais valia a pena. E isso é estranho porque, se eu achar
um dia que as coisas não valham a pena, quero estar com a cabeça no lugar, e não com o corpo
cheio de toxinas. Parei com todo tipo de droga e vi que as coisas não eram tão ruins.
Folha - Isso se refletia na sonoridade da banda?
Russo - Isso a gente decide. Todo disco a gente tenta fazer uma coisa diferente, até porque é
mais divertido. E para não ficar na obrigação de repetir o mesmo trabalho. Não achávamos que o
"Quatro Estações" fosse estourar, porque é um disco bem difícil, mas todo mundo gostou. As letras
são complicadíssimas e não é tão pra cima quanto acham. É tão depressivo quanto o "V".
180
Tentamos fazer músicas mais pra cima porque era natural, mas não ficava bom. "O Descobrimento
do Brasil" não é um disco pra cima, é como o "Power, Corruption and Lies", do New Order. É a
coisa mais gloriosa do mundo, mas, se prestar atenção, é pesado.
Folha - Como o "Quatro Estações"...
Russo - No geral, as pessoas acharam que aquilo foi a coisa mais alegre que já foi feita. Enquanto
o "V", não. A gente tentou fazer uma música alegre pelo menos, de tudo quanto foi jeito, e não
saía. "Vento no Litoral" só tocou porque tem uma melodia bonita. Acho "Metal contra as Nuvens"
uma música superacessível. O problema é que o disco falava de coisas que as pessoas não
estavam querendo ouvir na hora. Foi quando estourou a axé music, a gente veio na contramão.
Mas o disco tem as melhores letras, de longe. Consegui falar tudo o que eu queria. Mas as pessoas
não queriam ouvir aquilo. Por exemplo, "Metal contra as Nuvens" é uma música sobre o Collor,
mas nunca ninguém falou sobre isso.
Folha - Como você vê a crítica?
Russo - Eles usam os motivos errados. Eu não sou o dono da verdade, mas, para mim, o que
motiva esses caras é um rancor e uma incompreensão do que é o nosso país e de como as coisas
funcionam. Existem iniciativas maravilhosas no Brasil e a gente não sabe. Aí a gente fica oprimido,
achando que tudo não presta, que tudo é horrível. Gostaria de poder apresentar um bom trabalho
para as pessoas que gostam da gente. Acho sacanagem, na posição que a gente está, não tentar
se esforçar o máximo para apresentar o melhor que a gente pode fazer.
Folha - E o futuro da Legião?
Russo - Não tenho idéia. Eu não vejo como a gente vai seguir o que está fazendo sem se repetir.
Depois de "Perfeição", eu vou escrever o quê? Depois que você fala "vamos celebrar a estupidez
humana", o que você vai falar? Então talvez a gente faça uma coisa parecida com o que o The Cure
faz, para depois, com o tempo, a gente fazer uma mescla. Ou virar uma banda de trabalho, como o
New Order. Eu não quero ficar falando como eu acho tudo horrível como está. Se a gente cansar, a
gente pára. Se a gente achar que ainda vale a pena fazer alguma coisa, a gente continua.
• Alexandre Matias é editor da revista "Play"
181
ANEXO IV:
Funk Brasileiro põe o mundo para sacudir
Fonte: Jornal o Extra, de 01 de agosto de 2004.
Postada por: Fernando Tojal
O funk genuinamente carioca ganhou o mundo. Prova disso foi o hit escolhido para
recepcionar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua viagem a São Tomé e Príncipe,
na África, no ultimo dia 26 de julho. Composta e cantada por Rosemberg Souza, o MC
Cepacol, que nunca viajou para o exterior, a música “Beijo na boca” já ecoa em diversos
pontos dos continentes americano, africano e europeu. Além do MC Cepacol, outros
funkeiros brasileiros vêm colocando os gringos para sacudir o popozão e estão engordando
suas contas bancarias com os generosos cachês, geralmente pago em dólar. O Bonde do
Tigrão, que realiza cerca de 30 shows por ano no exterior, se prepara para fazer turnês pela
Europa e pelos Estados Unidos, em outubro. A procura é tanta que o grupo já abriu dois
escritórios de representação na Europa. Por cada shows, embolsa mais de U$ 2 mil. O
cachê internacional de Mr. Catra, que já cantou até em Israel chega a R$ 10 mil, quase o
triplo que ele ganha em apresentações pelo Brasil. Os convites são para os grupos se
apresentarem em sofisticadas casas noturnas e festivais concorridos. “Na turnê pela
América do Sul, eu mal podia andar na rua e ficamos num hotel bacana. Um cirurgião do
Uruguai até ofereceu plástica de graça para minha família” - diz o MC Serginho que faz
sucesso com a inseparável Lacraia. Mais do que o retorno financeiro, os funkeiros dizem
que esperam, com o sucesso no exterior, acabar com o preconceito que o ritmo sofre em
seu próprio pais de origem.
http://www.midiafm.com.br/comunidadedofunk/ 27.02.06
182
ANEXO V:
Milla , Juliana , Luciana , Yasminee . Elas são consideradas pelos Promotores de eventos do gênero, DJs e os pixadões c
Xuxa Meneghel, Ronaldo Fenômeno e Souza (jogador – ex-Vasco), apostam na mística do bairro de Bento Ribeiro para tr
As 4 meninas fizeram o caminho inverso da grande maioria dos artistas do gênero que são quase em sua totalidade advin
apelido de as patricinhas do funk, que com muita luta e disposição ganharam a admiração e fama junto ao povo das comu
E para marcar o sincretismo que há entre o Samba e o Funk, ambos 100% oriundos dos morros e favelas, temos em noss
MUSA 2004 da Portela, ficando em 3° lugar no concurso de Musa do Carnaval 2004! É, brother, no Bonde das Danadinha
(Entrevista realizada em 22 /08/2004)
Curtisomrio:
Como surgiram "As Danadinhas"? Queria que vocês resumissem em um parágrafo a cronologia dos fatos. Como se co
Milla – Bem, era o ano de 2001 e em Bento Ribeiro havia um baile funk no Kasarão que era point, reunindo todos os Domi
ele fazia eventos de Hip Hop, quem nos apresentou uma proposta de formarmos um grupo de funk, aproveitando o apelid
surgindo então As Danadinhas!
Juliana – Deixa eu falar... Nossa primeira música foi Melô da Princesinha, produzida pelo Phabyo Dj que a lançou no Prog
apresentação no Palácio do Pagode em Madureira com um sucesso total, graças a Deus!
Curtisomrio:
A mulher a cada dia toma mais espaço em qualquer segmento da Sociedade, isso prova que o machismo já morreu há mu
como Dançarina de Mcs.
primeira a fazer sucesso foi Mc Cacau em 1994 e depois de 2000 Tati quebra-barraco e Vanessinha. Hoje dezenas de "
mulher no palco ou o preconceito impedia isso?
sminee - Eu acho que não é uma coisa, nem outra. O que nos afastava do baile e conseqüentemente do mundo artístic
palco, as meninas fazendo shows de boates da Praça Mauá e, infelizmente, ainda há pessoas que, erroneamente, abdica
o funk, dando margem para a Imprensa que forja estórias, como aquela que meninas engravidavam em trenzinhos, putz! N
temos que ter cuidado. Vencemos nossos obstáculos, nos apresentando com extrema sensualidade, sem abrirmos mão d
Curtisomrio:
Eu citei na pergunta anterior "bonde de saias", em referência a dezenas de Grupos femininos como Gaiola das Popozudas
união quando se apresentam vários em uma só noite nos clubes. Entre os grupos femininos existem essas cordialidades t
Jones - Olha só, ‘a simpatia' faz parte da natureza feminina, seria hipocrisia negar tal fato. As meninas estão ligadas que m
envolvidos do mundo funk. Afinal quem não queria pilotar esses “aviões”? Entretanto, elas administram bem isso e procura
admiração pelo trabalho alheio (adoram as Tchutchucas, Bonde Faz Gostoso, amicíssimas dos Carrascos, Mc Frank, Bon
ao concurso de Novos Talentos, o qual foi jurada apostando neles desde o início), sendo essa, a fórmula que desenvolver
gostam de fazer? Ir aos bailes e curtir os shows dos Mcs e Bondes, tal qual no passado... ou seja elas continuam... as me
Curtisomrio:
Sem querer desmerecer as outras co-irmãs de palco, mas As Danadinhas têm a estigma entre o público masculino de ser
sensualidade ou ela só ajuda? Sendo mais claro, as pessoas assistem ao show mais pela sensualidade do Grupo ou pelo
Luciana - Acho que os dois ajudam. Não adianta um Grupo ter uma música estourada e o show não cativar o Contratante
que rolar o som, aquela m....! Quanto à fama de as mais belas, agradecemos o título, mas... pô, a gente fica sem graça e
183
Curtisomrio:
Respeitando a opção sexual de cada um e logicamente a cada dia temos prova que isso não é mais tabu. A passeata GLS
mostra que o preconceito perde cada dia mais a sua força. Fiz esse esclarecimento para fazer a seguinte pergunta: As Da
Juliana – Tempos atrás, quando fomos fazer um show em Três Rios, uma 44 bico largo, se aproximando, nos convidou pa
Luciana – E mais nada, né? Afinal ela não tem ...nada! (risos geral) Que foi, gente? Falei alguma besteira?!!! Todos: Nããã
Curtisomrio:
Fiz a mesma pergunta para o Bonde do Vinho. Em cada grupo existe a mais sonsa, a mais intelectual, a mais conversade
Milla – Touro – A Intelectual do grupo, prestará ano que vem vestibular para fazer Faculdade de ... Química!! É a filha que
pasmem, a-d-o-r-a estudar!!! Está sendo preparada pelo seu curso pré-vestibular para passar entre OS TRÊS PRIMEIROS
Juliana – Escorpião – É a conversadeira do Grupo, menina com corpo de mulherão (possui 102 de quadril!!!), com persona
aí, amigo,,, sai de baixo! Totalmente perfeccionista nas coreografias, tem um sangue doce para atrair celebridades, que ba
burrão desses! Todos: Cala aa boocaaa, Lu!!! (risos) O que? Falei alguma besteira?!
Yasminee – Virgem – É… (risos) a perua do Grupo. Rosto angelical, possui uma imaginação extremamente fértil, vive faze
fala. Possui extrema habilidade em se fazer convencer e tem um coração doce e deste tamanhooooo!!!!
É o bibelô, a Penélope charmosa das meninas, altamente teen!
Luciana – Capricórnio – É a sonsa do Grupo. Percepção zero! Você lhe conta uma piada e ela rirá uma semana depois. Ex
merdas, tá sempre tomando esporro de geral, corpo escultural, é viciada em malhação e feirinhas. É a mão-de-vaca do Gr
Sugerimos que pintasse o cabelo de loiro, mas ela: Por que, gente? Hein?! Não entendi... Deixa pra lá, Lu (risos)
Curtisomrio:
Qual o show que marcou pra sempre a histórias das Danadinhas? Aquele que vai ficar na memória de cada uma?
Todas respondem:
Central de Guapimirim – evento do Roberto Promoções. Havia cerca de 15000 pessoas no campo e, geral participando at
Curtisomrio:
Qual os bailes que as Danadinhas curtiam antes de formarem o grupo?
Luciana - Baile funk no Portelão c/ Curtisomrio e Equipe Chapa Quente em 99/2000, Kasarão do funk, Fórmula do Gol (qu
Curtisomrio:
Atores, Djs, Grupos de rock etc... sempre tem alguém a qual se espelham ou tentam seguir o estilo. Muitos bondes trilhara
Danadinhas não foi diferente. Tiveram ou não um grupo como inspiração?
Juliana - Pelo contrário, a resposta de sua 2ª pergunta, também responde parcialmente essa. Nós fizemos a nossa referên
danadinhas de se vestirem para shows sem aquelas roupas levianas e coreografias idem, todas procurando serem sensua
Curtisomrio:
Considerações finais. Em nome da Curtisomrio agradeço a participação e a boa vontade de vocês nessa entrevista on
saúde e muita paz...
As Danadinhas:
Primeiramente agradecer a Deus, onde semanalmente vamos exaltá-lo na Comunidade evangélica Espaço da Vitória, no S
sua dedicação e carinho, ao Geiso Turques que foi o primeiro a apostar no nosso trabalho, junto com o Phabyo Dj, a T O D
184
Pipo's, Studio LD, Dj Gigante de Volta Redonda (alô Paulão!), Dj Silvinho, Dj Pancinha (Angra), Dj Caciá (RS), Dj Molho da
No âmbito familiar, nossos Pais, nossos amigos e amigas que sempre nos ajudam diretamente e os Djs independente Tub
Gerente Rangel Mix Mc, dono da letra Brincar de cirandinha, que conquistou as crianças, valeu parceiro!
Aos proprietários das Equipes de som em geral, abrindo um espaço aqui pro Reginaldo que é de uma honradez digna de
alô geral para os nossos amigos e colegas de palco e mandar um voto de extremo esforço e luta para os que estão procur
sobre a Juliana na revista n°2 da Big Mix (gente, ela vai estar ... de biquíni!!!) e acesse o nosso site/e-mail www.asdanadin
Luciano!!! Fomos!!!
185
ANEXO VI:
(CMI Brasil – Centro de Mídia Independente:
http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2006/01/342311.shtml)
Feminista, sim, e daí?
09.01.2006 | Pode ter sido lá no comecinho, quando a escritora Rose Marie Muraro trouxe
a feminista norte-america Betty Friedman ao Brasil, nos idos da década de 1970. Pode ter
sido um pouco depois, quando revistas como "Ele&Ela" e "Playboy" trataram de carregar
nas tintas e retratar as feministas como mulheres “feias, mal-amadas e mal-comidas”. O fato
é que o feminismo caiu em desgraça no Brasil desde os primórdios, embora seja um
movimento responsável pela promoção de maior igualdade entre homens e mulheres e
maior liberdade sexual para ambos. As reivindicações feministas estão na origem do
movimento gay e de na base da transformação do comportamento sexual, que se tornou
mais liberal graças às demandas das mulheres, que pediam o direito ao orgasmo e ao
prazer.
As teóricas feministas começaram a discutir como separar aquilo que é a definição natural
de uma mulher – fragilidade, docilidade, submissão – daquilo que é a cultural. Os chamados
estudos de gênero consideram que é culturalmente determinado que mulheres sejam de um
jeito e homens, de outro. Não há na biologia razões efetivas para as diferenças. A partir
dessa teoria, aqui super-simplificada, abriu-se a porta para que homens e mulheres
construíssem seu lugar na sociedade sem as amarras do determinismo biológico que define
que homens sejam fortes, mulheres, fracas, homens sejam sexualmente agressivos,
mulheres, passivas, e por aí vai. Foi por esta porta que passaram as reivindicações dos
homossexuais – afinal, se homens e mulheres podem ser diferentes daquilo que a biologia
determina, podem inclusive fazer outras escolhas sexuais para além do binônio clássico
homem-mulher.
Mas todo esse debate teórico se deu no século passado, e foi inclusive alvo de divergências
internas. Mulheres negras e pobres acusavam as brancas e ricas de reivindicarem mais
prazer, enquanto para elas a questão era exatamente oposta: objeto sexual de homens que
as consideravam “sempre prontas para o sexo”, o que elas queriam era pleitear mais
respeito, menos abuso, e não mais sexo. Reza a lenda que antropólogas brancas fazendo
pesquisa de campo em favelas ouviam das suas entrevistadas queixas do tipo “Ele quer
sexo todos os dias” e arfavam, invejosas, sonhando com um homem assim em casa.
Para além do folclore e das teorias, vieram os pós-estruturalistas da década de 1980/1990 e
desconstruíram a idéia da oposição homem x mulher para passar a defender a pansexualidade. Ou seja, assim é se lhe parece, e ninguém se definirá mais socialmente por
uma escolha determinada, deixando abertas as portas para todo tipo de manifestação
sexual. Avançado demais, né? Pois é, mas é por onde caminha o documentário “Sou feia
mas tô na moda”, direção de Denise Garcia, que retrata os grupos femininos do funk
carioca.Tati Quebra-Barraco, Deise da Injeção (foto) e As Danadinhas são algumas das
representantes dessa liberdade sexual, que traz junto ao direito ao sexo e ao prazer as
bandeiras de igualdade, exatamente como as feministas fizeram na década de 1970.
O direito ao prazer está na raiz no movimento feminista, que na França conquistou a
legalização do aborto em 1973 com o slogan "Mãe se eu quiser, quando eu quiser",
adaptado por aqui como "Nosso corpo nos pertence". No Brasil, essa etapa ainda não está
vencida: projeto de lei que propõe a legalização do aborto e pode vir a ser votado em
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fevereiro próximo.Sem nenhum respaldo teórico – e, diga-se de passagem, já sem precisar
da teoria, na medida em que a prática da igualdade entre os sexos tem se espalhado na
sociedade de forma saudável e natural – , as meninas do funk de Cidade de Deus sabem na
pele o que é preconceito, até porque, além de mulheres, são pobres, negras e faveladas. O
que não falta, portanto, é estigma. Quando cantam suas letras consideradas obscenas,
estão reivindicando mais do que prazer na cama, estão botando a boca no trombone para
denunciar todas as opressões das quais são vítimas. De quebra, ainda rompem com os
padrões de beleza vigentes: nenhuma delas é loura ou magra, e nem por isso deixam de
exibir o corpo, dançar ou se apresentar como mulheres altamente desejáveis.
O estranho é que essa é só uma das muitas apropriações das teorias feministas que
partiram das universidades norte-americanas na década de 1960 para ganhar o mundo, pelo
menos a parte Ocidental do mundo, ao longo dos últimos quase 50 anos. No entanto,
teóricas e militantes feministas não costumam reconhecer meninas do funk e outras
manifestações culturais menos formais como conseqüência da entrada do feminismo na
sociedade. As quatro novaiorquinas de "Sex and the City", por exemplo, que foram para a
TV de um país moralista como os EUA dizem que queriam “fazer sexo como homens” são
consideradas fúteis e bobocas, apesar da revolução que provocaram no comportamento das
mulheres solteiras no final da década de 1990.
Elas até são fúteis, é verdade, mas ainda assim Carrie e suas amigas defendem a liberdade
de ir para cama com quem quiser. Enquanto isso, o movimento feminista norte-americano
adota cada vez um discurso politicamente correto, moralista, que estabelece critérios para
definir assédio sexual e coloca as mulheres como vítimas sexuais de homens violentos. Ao
invés de contribuir para a desejável igualdade entre homens e mulheres, essa atitude
contribui para instituir uma relação de disputa com os homens, ao invés de incentivar uma
relação horizontal.
Não é de se estranhar que feminismo tenha virado quase palavrão, como se as defensoras
da igualdade quisessem eliminar os homens, subjugá-los, ou sobretudo vingar-se deles,
compensando o tanto de tempo que estiveram no poder. Pode ser que um dia feminismo se
torne, enfim, sinônimo de igualdade, como aprenderam as meninas do funk carioca. Prova
de que elas têm muito que ensinar.
187
ANEXO VII:
http://www.speculum.art.br/module.php?a_id=1647
05.01.06
SOU FEIA MAS TÔ NA MODA (1)
Marina Spirandelli
16/12/2005
Como um furacão cultural, o funk carioca saiu de uma vez por todas das favelas para atingir
as mais altas classes sociais, do Brasil e do mundo. Depois de trinta anos de morro, o
pancadão finalmente conquistou o asfalto, seus prédios e mansões. Soul Grand Prix e
Furacão 2000 começaram a escrever história, isso lá pelos anos 70. Depois veio a influência
do Miami Bass, um som mais marcado e forte, que ainda serve de base para as músicas de
hoje, de fácil memorização e que caem imediatamente no gosto popular.
Mas não é essa trajetória que faz do funk um destaque. Impressionante é a virada que deu o
movimento no curso de sua evolução. As letras de culto ao crime e os rumores de meninas
que engravidavam nos bailes já não são mais lembrados. Da violência masculina, mostrada
com exaustão pela mídia durante as brigas entre Lado A e Lado B, o funk carioca passou
para o erotismo, com mulheres expondo-se no palco em mensagens feministas e muita
sensualidade (ou pornografia, dependendo do ponto de vista).
Me chama de cachorra que eu faço au-au...
A sacada das funkeiras foi a de se inspirar no axé, dispensando a boquinha da garrafa e
tomando uma posição defensiva. É mais ou menos assim: ‘Se Carla Perez pôde, porque nós
do morro não?’ E aí entra toda a complicação do preconceito racial, discriminação e
exclusão social vividos diariamente por esse povo humildemente miserável que passa pela
breve sensação do sucesso além do Rio de Janeiro.
Sou Feia Mas Tô na Moda, o documentário produzido e dirigido por Denise Garcia, traz
depoimentos de muitas “personalidades” deste “funk sensual”, dando voz aos que fazem e
aproveitam as noites ritmadas por batidas frenéticas e contorcionismos pélvicos de
popozudas e lacraias. Uma face realmente muito interessante da diversidade brasileira. É
uma pena que um assunto ainda pouco explorado cinematograficamente tenha recebido
nenhuma atenção em termos de estrutura narrativa, criatividade e contraposição de idéias.
Há a opinião da atriz Kate Lyra, que focou mulheres, o rap e o funk em uma pesquisa para o
Centro de Estudos Sociais Aplicados do Rio de Janeiro, e uma breve passagem de um
jornalista que agrega dados mais históricos sobre o gênero. O resto é a comunidade
mesmo, contando, mostrando, defendendo, idolatrando. O DJ Marlboro funciona como uma
boa ponte para exemplificar a inserção do funk carioca na Europa, mas no geral a sensação
188
é de estar assistindo a um trabalho sem profundidade, até em concordância com a baixa
complexidade musical do objeto retratado.
O vídeo começa mal com uma animação da Toscographics – o nome dispensa comentários
–, a cantoria de um MC e uma “roda de funk” que parece ter ficado sem outro lugar melhor
para ser encaixada na produção. Foi gravado em mini DVcam e tem cerca de uma hora de
duração, o que pode ser muito para quem não quer ver um pout-pourri de apresentações de
Deise da Injeção, Tati Quebra-Barraco, Vanessinha Pikachu, Cidinho & Doca, Juliana e as
Fogosas, entre outros talentos.
189
ANEXO VIII:
http://www.estacaovirtual.com/arquivo/mat2005/sou-feia.htm 05.01.06
SOU FEIA, MAS TÔ NA MODA (2)
Como diz o hit: “É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado”. O funk
carioca - polêmico, vibrante, dançante, transgressor, dentre outros tantos adjetivos – é o
tema do documentário Sou Feia, Mas To na Moda, de Denise Garcia.
Ame ou odeie o ritmo, ele é uma verdadeira febre que já se espalhou pelo Brasil todo e
começa a conquistar o mundo. No filme, exibido no Festival do Rio de 2005, Tati Quebra
Barraco, Deise da Injeção, DJ Malboro, Mister Catra, Gaiola das Popozudas, Vanessinha
Picaxu e outros astros falam sobre o mundo funk, o preconceito que sofrem e sua inclusão
tanto nas festas alternativas da Zona Sul quanto em festas estrangeiras. Além disso, o
documentário aborda a crescente atuação das mulheres no universo funk, originalmente
masculino.
http://www.transmitindo.com.br/noticia.php?cod=2964 05.01.06
[...]
Porque o fim do percurso de Kaurismaki em seu mapeamento musical de Moro no Brasil
coincide com o começo de Sou Feia mas Tô na Moda. Mas é uma continuidade com
algumas fraturas no percurso. Kaurismaki percebe como a apropriação do rap e do funk pela
juventude carioca da Mangueira ainda mantém intacta a base rítmica do samba. Por trás da
letra basicamente falada do rap, subsiste a seção rítmica que fez a fama da melhor escola
de samba no pé do Rio.
Mas acontece que essa raiz parece muito menos presente no DNA dos funkeiros de Cidade
de Deus. Tanto assim que eles nem falam em "composição" mas em "montagem" das
músicas. A base rítmica é tirada de um computador, sampleada, e, sobre ela e uma melodia
muito simples ("sempre a mesma coisa", diz um dos compositores) se alojam as letras.
Estas sim são a grande atração, e sujeitas a polêmica.
Algumas delas são francamente provocativas e elogiam a marginália. Outras são maliciosas
e de apelo sexual. "São sensuais", dizem as garotas do grupo As Danadinhas, que vieram
do Rio para lançar o filme em São Paulo e, depois da sessão, fizeram um show no espaço
ultracult da Avenida Paulista chamado Reserva Cultural. Era o funk de Cidade de Deus
chegando aos modetes e culturetes de Sampa.
As meninas e os líderes dos grupos fizeram questão de desvincular o funk da marginália,
uma associação que servia para desqualificá-los e aumentar o preconceito, segundo dizem.
E, de fato, o filme mostra um outro lado do funk, esse lado que já víramos associado mais
ao rap - o protesto, o grito de uma periferia desassistida e olhada com medo e preconceito
pelas classes média e alta das cidades grandes.
Certo, é a voz da periferia, o grito rouco dos que estão por baixo na escala social de uma
sociedade muito injusta. Mas, para além do protesto, articulado ou não, há essa
extraordinária pulsão jovem, cheia de adrenalina e outros hormônios. Esse é talvez o lado
mais interessante a ser notado no funk, mais do que considerações estéticas de nariz em pé
sobre a sua pobreza musical, ou neomoralistas obre seus versos.
190
Talvez uma das seqüências mais impressionantes do filme Cidade de Deus, de Fernando
Meirelles, seja justamente a do baile funk, cheio de uma energia e agressividade que tanto
assustam como atraem. Não por acaso, na vida real esses bailes vêm se espalhando,
deixando a periferia e chegando às zonas "nobres" das cidades. Muitas garotas e garotos de
classe média gostam de freqüentá-los, porque os consideram antídotos certos contra o
tédio. Já não são um fenômeno carioca. Chegaram também a São Paulo.
Antes de desqualificá-las como toscas ou agressivas, seria melhor abrir a alma (e a mente)
para tentar ouvir o que essas vozes têm a dizer. Elas vão continuar gritando por aí, goste-se
ou não.
byLuis Z.O
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ANEXO IX:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/03/050310_funkebc.shtml
Filme sobre mulheres do funk terá estréia mundial em Londres
Eric Brücher Camara
O documentário Sou Feia, Mas Tô na Moda sobre cantoras de funk do Rio de Janeiro como Deise
Injeção, Tati Quebra-Barraco e Bonde do Faz Gostoso, entre outras, vai ter a sua première no dia 1
março, em Londres.
A estréia do filme na capital reforça a chegada do funk carioca às ilhas britânicas.
No ano passado, na cola do sucesso do hit Quem que Cagüetou, de Tejo, Speed e Black Alien – veiculad
propaganda de automóveis – foi lançada no país a coletânea Slum Dunk Presents Funk Carioca, com 18
Para completar, uma casa noturna em Londres dedica uma noite ao gênero.
O documentário que vai estrear em Londres foi dirigido pela gaúcha Denise Garcia e passeia, por quase
pelo universo do funk no Rio de Janeiro.
A idéia, segundo a diretora, é mostrar as "diferentes possiblidades" que o movimento funk apresenta às
comunidades carentes do Rio de Janeiro.
"Muitas mulheres, por exemplo, costumavam trabalhar como empregadas domésticas, e isso hoje não é
tão requisitado. Então muitas dessas meninas, que não têm muitas outras opções, começaram a cant
Garcia, uma das sócias da produtora Toscographics.
'Fonte de renda'
A diretora percebeu que a indústria do funk – um grande baile funk pode reunir entre 4 mil e 5 mil pessoa
como fonte de renda para várias famílias nas favelas, que acabam reinvestindo o dinheiro nas comunidad
"Vai desde o cara que é o dono da quadra onde o baile acontece, passando pela pessoa que aluga o sist
som e vai até os barraqueiros e motoristas que lucram com as festas."
Denise Garcia entrevistou artistas como Cidinho e Doca e as cantoras Tati Quebra-Barraco e Deise da In
entre outras.
No filme, a diretora conta também como as cantoras invadiram o funk, que até alguns anos atrás era dom
homens.
"As mulheres nunca foram chegadas a ficar se s ocando nos bailes na época do 'lado A/lado B' (em que g
rivais se confrontavam). Então, o DJ Duda, da Cidade de Deus, começou a fazer pequenos bailes", conta
cineasta.
Deise da Injeção
Foi em um desses bailes que surgiu uma das primeiras funkeiras do Rio: Deise da Injeção.
192
"E dali, a coisa começou a se ampliar para todas as comunidades do Rio de Janeiro."
O documentário mostra como hoje dezenas de "bondes" (grupos) de funk fazem várias apresentações em
todo o Rio de Janeiro em uma mesma noite, às vezes em extremos da cidade.
Em vez do glamour dos camarins iluminados, a diretora mostra o trabalho árduo daqueles que encontrara
uma profissão.
"Se as pessoas não têm um emprego, não é só o dinheiro que falta. Elas não têm uma identidade, uma fu
social. Eles (os funkeiros) conseguiram criar um lugar para elas", diz Denise Garcia, que rebate as acusa
que o funk não é cultura.
"É uma ignorância que vem do preconceito. Claro que é cultura. As pessoas se reúnem e desenvolvem u
que se repete e se torna um hábito, isso é cultura."
O filme Sou Feia, Mas Tô na Moda ainda não tem data prevista para ser apresentado no Brasil.
193
ANEXO X:
TATI QUEBRA BARRACO
Cinderela funk
Por Marta Barcellos
Fotos: Frederico Mendes
Marie Claire http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML902968-17396,00.html
Fenômeno genuíno da favela, a carioca Tatiana dos Santos Lourenço
circula à vontade pelo mundo das socialites da zona sul. Seu escracho
explícito, já acoplado ao codinome Quebra Barraco (transa, na gíria funk),
arranca aplausos nos bailes de subúrbio e nas cintilantes passarelas da
elite. A princesa Paola de Orleans e Bragança, por exemplo, delirou na pista
durante o seu show, na festa do estilista Ocimar Versolato, há quatro
meses. Para contagiar públicos tão distintos, Tati abusa das letras
apimentadas, que descrevem preferências sexuais sem pudor. Fora dos
palcos, no entanto, essa moça de 25 anos, que foi mãe aos 13, se revela
acanhada com a fama.
Avisa logo que não gosta de dar entrevistas e esta talvez seja a última. Em
um discurso pontuado por frases curtas, e por vezes ríspidas, ela conta que
o universo dos desejos de consumo sempre foi estranho à realidade do
lugar onde nasceu e cresceu, a Cidade de Deus. Na mesma favela que
inspirou o violento filme do diretor Fernando Meirelles, ela se sente
protegida: "Fora daqui é que tem risco".
A caminho do terceiro CD, sondada por grandes gravadoras, Tati se dá ao
luxo de recauchutar o visual com um pacote de cirurgias plásticas
programado para o início deste ano. Mas não abre mão de viver entre os
seus, na com unidade. Foi lá que Marie Claire a encontrou, primeiro no
apartamento da mãe, depois sentada no meio-fio e, por fim, na varanda da
casa da comadre, em um fim de tarde chuvoso no Rio de Janeiro.
Marie Claire A sua frase "sou feia, mas tô na moda" virou hit. Ela ainda se
aplica?
194
Tati Quebra Barraco Claro. Nada vai mudar a minha personalidade. Sou
feia, estou na moda, mas um dia passa. Tem muita casa de família aí para
eu trabalhar, ser babá, sei lá. Quando a fama passar, à toa é que não vou
ficar.
MC O que você faz para ficar mais bonita?
Tati Vou ao salão toda semana, no Méier [zona norte], faço escova e unha.
Compro as minhas roupas na Gang [grife preferida das funkeiras, famosa
pela calça que "levanta o bumbum" das mulheres].
MC Que mulher você acha bonita?
Tati A Sheila Carvalho, as meninas do programa "Caldeirão do Huck". Tem
muita mulher bonita por aí, dá até raiva [gargalhada]. Não tenho olho grande
no que é dos outros, cada um tem as suas coisas. Mas essas mulheres,
com esse corpo, dá vontade de dar nelas.
MC O sucesso mudou muita coisa na sua vida nesses últimos quatro anos?
Tati São seis anos de sucesso. Desde 1999 [quando passou a ser
conhecida no Rio] vou para o shopping e todo mundo me reconhece, me
pára.
MC Mas no início você só era conhecida no Rio e não recebia tanto
jornalista em sua casa...
Tati Até vinha, um e outro. Quando estourou mesmo [em 2004], foi um caos.
Passou a vir mais gente quando a Fernandinha Abreu cantou a minha
música no Rock in Rio: "Se tem amor a Jesus Cristo..." [canta].
MC Você gosta da fama?
Tati Para ser sincera, não gosto. Não escolhi ser MC [mestre de cerimônia
funk]. Aconteceu. Uma coisa é escolher, outra é acontecer. Não estou
acostumada com esse ritmo. Toda hora tem um me ligando, vindo aqui.
Quando não quero atender, a pessoa quer saber onde estou. Isso tudo
aconteceu de um dia para o outro. A partir do ano que vem, não vou mais
dar entrevista para ninguém. Não gosto, não ganho nada com isso. Para
que gastar três horas numa entrevista? Só para a minha cara aparecer
numa revista?
MC Como você era antes do sucesso?
Tati Mudou tudo. Antes, não esquentava a cabeça. Os meus filhos sempre
foram criados com a minha mãe. Eu ia para a pista, chegava, bebia todas.
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No outro dia, eu acordava, arrumava a casa, fazia um curso de cabeleireira,
trabalhava na cozinha da creche da favela.
MC Não tinha sonhos de criança?
Tati Nunca pensei no que ia ser quando crescesse. Depois botei na cabeça
de ser cabeleireira, que é uma coisa que dá dinheiro e curto muito. Fiz curso
de estética e queria fazer um de tinturista e escovista. Mas acho que não
teria paciência de botar cabelo como eu boto [
Tati faz megahair uma vez por mês, numa sessão que pode durar até 12
horas].
MC O que você faz com o seu dinheiro?
Tati Pago escola para os meus três filhos, ajudo a minha mãe e a minha
família. Vou comprando, investindo...
MC Investindo em quê?
Tati Prefiro não falar, senão daqui a pouco neguinho está me seqüestrando
e eu não tenho nem onde cair morta.
MC O que compra para você?
Tati Muita roupa e perfume da Natura. Não gosto de maquiagem. Uso só
para tirar foto. Em show não dá, porque transpiro muito. Não uso bijuteria,
só ouro porque tô podendo [risos].
MC Quanto você gasta com roupas?
Tati Gasto uns R$ 800 toda semana. Eu tinha 144 calças na última vez que
contei. Agora devem ser mais de 200. Guardo calça até debaixo da cama.
Estou tentando parar um pouco com isso, porque está virando uma neura.
Se não comprar uma roupa numa semana, não me sinto bem. Até tenho
condições, mas quero parar com isso.
MC Como tudo começou?
Tati Quando eu tinha 18 anos, fiquei três meses sem namorar. Então tive a
idéia de cantar para arrumar namorado. Comecei a cantar aqui na
comunidade, zoava [brincava] na favela, dizia para os caras: "Vem ver
minhas coxas, meus peitinhos". Fui colocando isso nas letras, até que deu
certo, estourou. Agora tenho que continuar com esse tipo de música. O
público não vai aceitar se eu decidir cantar uma coisa romântica. A música
que criei, com essas letras, me deu a chance de fazer um trabalho que eu
nem pensava que fosse possível. Não é que o meu passado tenha sido de
196
prostituta. Fui mãe com 13 anos porque quis, não fui obrigada. Me deu
vontade, dei mesmo, dei logo.
MC Você declarou uma vez que gostava do Roberto Carlos.
Tati Isso foi uma confusão. Eu falei que gostava do jogador Roberto Carlos.
Nada a ver. Sai fora.
MC Você é namoradeira?
Tati Se fosse, não ficava três meses sem namorar.
MC Quantos namorados você teve?
Tati Namorado mesmo uns cinco. De ficar, perdi as contas.
MC O que é muito tempo sem fazer sexo?
Tati E você não sabe? Nunca ficou sem?
MC Queria saber como é para você. Algumas mulheres ficam a vida inteira
sem fazer sexo, outras...
Tati Ah, não ficam não. Alguma coisa elas vão arrumar para fazer. Vão se
roçar, tocar alguma coisa...
MC Sexo tem que ser todo dia?
Tati Todo dia quando tem vontade. O sexo também não é tudo na vida. Mas
é uma boa coisa. Se Deus inventou coisa melhor, não deixou avisado.
MC Você dá vazão às fantasias sexuais?
Tati Não tenho fantasias, nunca fiz nada demais.
MC Nada diferente, um lugar exótico?
Tati Já fiz na escada.
MC Como foi a sua primeira vez?
Tati Foi boa [com descaso]. Mas dei e peguei logo uma gravidez. Dei azar.
MC Mas foi na primeira?
Tati Que nem cachorro [gargalhada].
MC Você quis ter a sua primeira filha? E o pai dela?
Tati Quis e ele assumiu, mas nunca foi meu marido. Quer dizer, assumiu em
termos, porque nome não mata a fome, e ele só deu o nome. A minha
família arcou com tudo. Hoje estou retribuindo porque posso comprar as
coisas, pagar escola particular.
MC Quando engravidou pela primeira vez, você sabia dos riscos?
197
Tati Sabia tudo. Aqui na favela ninguém é imaturo, não. As pessoas deixam
acontecer porque às vezes se perdem um pouco. Aqui rola de tudo. Não
aprende quem não quer. Quem não sabe o que é uma camisinha? Quem
não sabe o que é uma aids? A gente aqui sabe de tudo porque passa pelas
coisas, vê televisão. Ninguém leva ninguém para o mau caminho.Vai quem
quer.
MC O seu segundo filho foi planejado?
Tati Não, também foi acidente. Mas aí eu já tinha marido.
MC Fábio [Leite, segurança], seu atual marido, é o pai do Yuri?
Tati Não, cada filho é de um pai. O segundo filho, eu não queria. Mas a
minha avó falou para eu ter e aí veio o menino [Yuri tem 7 anos]. Como já
tinha Carol, fiquei com um casal. A Milla, planejei. Agora, liguei.
MC Você já ligou as trompas?
Tati Não me arrependo de ter tido os meus filhos cedo. Faria tudo de novo.
Mas, agora, daqui não sai mais nada, nem coelho.
MC Você fala sobre sexo com a sua filha mais velha?
Tati Não, mas ela sabe o lugar dela. A Carol não é como eu era. Comecei a
namorar com 7 anos, dava beijo na boca. A gente ainda vai falar, não quero
que aconteça para ela o mesmo que aconteceu comigo. Mas ela tem outro
ritmo, é mais de ficar em casa, de brincar. Eu não, com 11 anos fumava
cigarro, bebia.
MC O que você quer para os seus filhos?
Tati Quero o melhor, como toda mãe. Mas só eles é que vão saber o que
querem. Esse negócio de mãe pensar muito no que os filhos querem não
funciona. Os filhos acabam decepcionando, como fiz com a minha mãe. Fui
mãe com 13 anos, fazer o quê? Minha mãe queria que eu formasse uma
família, como todo mundo.
MC Os seus filhos fazem o que querem?
Tati Não pode fazer o que quer, não. Eu sou eu, eles são eles. Minha filha já
repetiu um ano na escola. Eles moram com a minha mãe. Nunca olhei eles.
Então, quando chego, chego logo para sacudir porque não tenho paciência
[pausa]. Agora estou curtindo mais, estou mais mãe. Carol chama a minha
mãe de mãe. Só o Yuri é que me chama de mãe. Tomara que a pequena
também chame a avó de mãe.
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MC Você não se importa?
Tati Não, até prefiro. Também chamava a minha avó de mãe porque ela me
criava. E assim vai ser.
MC Como a sua família vê o seu trabalho e as letras de suas músicas?
Tati Se estou ganhando dinheiro, não estou roubando, não estou traficando,
está tudo bom. E quem não gosta de sexo? Só que eu expresso isso.
MC Você também fala muito em Deus e Jesus nas suas músicas. Você é
religiosa?
Tati Você queria que eu falasse no diabo? Tenho fé em Deus. Se não tiver,
vou ter fé em quê? Sou católica, mas não freqüento nada.
MC Você está dando voz para as mulheres, invertendo o machismo do
funk?
Tati Não. Eu falo por mim, mas não pelos outros. Não é porque moro aqui
que estou respondendo pela comunidade. Elas são elas e eu sou eu.
MC E como você recebe a crítica de que as músicas são machistas?
Tati Elas fazem o que querem. Se acharem que têm que dar, vão dar. Não é
porque estou cantando que vão ser umas piranhas. Canto o que sinto. As
mulheres escutam se quiserem, fazem o que quiserem. Se escutar a minha
música e quiser fazer o 69, ficar de joelhos, aí o problema é delas.
MC Você caiu no gosto dos moderninhos, é a nova garota-propaganda da
grife Cavalera, e faz sucesso com gente rica. Como se sente nesse meio?
Tati Para mim, é bom. Quero que o sucesso venha de qualquer jeito, da
classe alta, média ou baixa. Quero cantar e arrumar o meu dinheiro.
MC Você chegou a se mudar para um apartamento em Inhaúma [subúrbio
carioca] e voltou para a Cidade de Deus. Por quê?
Tati Porque não tem nada melhor que a Cidade de Deus. Nasci e fui criada
aqui, não adianta, não tem como eu sair. Posso comprar casas fora, mas
vou sempre querer o meu lugar aqui. Em Inhaúma, durante um ano e meio
paguei R$ 600 de aluguel, mas, se dormi dez noites lá, foi muito. Só ia
quando arrumava um gatinho. Do jeito que está o mundo, é melhor ficar aqui
mesmo.
MC Você se sente protegida na Cidade de Deus?
Tati Quem é que vai me roubar aqui? Fora daqui é que tem risco. Uma
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comunidade é o melhor lugar para morar.
MC Você viu o filme "Cidade de Deus"? O que achou?
Tati Grandes merdas. Não foi filmado aqui, nem se passa na minha época.
Foi baseado na época da minha mãe, mas todo mundo diz que não era
assim. Não me interessa. Não gostei. Mas a Cidade de Deus foi divulgada.
Quando saí do Brasil fui bem recebida, me citaram como a
Tati Quebra Barraco da Cidade de Deus. Por esse lado, o filme foi bom.
MC A violência não é real?
Tati Só quem não vem aqui tem medo. Tem polícia porque tem que ter
mesmo. A nossa favela é a mais criticada em relação à violência, mas a
violência não está aqui.
MC Você está gravando programas na TV Globo. O que você espera do
futuro? Pensa em ficar rica?
Tati Coisa de rico nunca foi a minha praia. Temos que sonhar no nosso
limite. O rico pode falar: "Eu quero um Fox" [carro da Volkswagen], e pronto.
Se eu ganhar dinheiro daqui para frente -e só se eu ganhar- aí vou dar um
restaurante para a minha mãe, que cozinha muito bem. Depois compro uma
casa para ela e vou levando a vida.
MC Você usa um colar com a inicial do Fábio. Você é romântica?
Tati Ele também usa um colar com a letra T. Eu sou de ir logo ao ponto, ver
como é que fica. Esse negócio de muito romance não é a minha praia. Com
o meu marido, a gente brinca, mas não é de ficar muito nessa caozada
[enrolação]. Nem tenho tempo para romance. Ele trabalha dia sim, dia não,
como segurança, pega das 19h às 7h, e depois vai dormir. Quando acorda,
já estou na rua.
MC Como vocês se conheceram?
Tati Ele também é da Cidade de Deus. Dei em cima. Foi fácil até demais [ri].
MC Vocês são fiéis no casamento?
Tati Eu sou fiel. Se ele é, não posso responder.
MC Tem uma frase sua que a grife Cavalera estampou em uma camiseta:
"Não gosto de peru pequeno". Tamanho é importante?
Tati É, mas qualidade também é. Às vezes você pega um pirocão que não
faz porra nenhuma. Muito grande também não dá. Tá pensando que isso
aqui é poço artesiano? Mas no meu trabalho a gente tem que falar o que o
200
povo gosta. Então digo que é bom sentar no fundo, não no raso.
MC Fernanda Abreu e Preta Gil citam sempre o seu trabalho. Como é a sua
relação com elas?
Tati Tenho amizade com Preta Gil, falo muito com ela por telefone, fizemos
show juntas, vamos fazer uma música para cantar juntas. Com Fernanda,
nunca conversei.
MC Como ficaram as suas amizades depois da fama?
Tati Tenho os meus amigos antigos. Quem chega agora vai ser só colega.
MC Você é brigona?
Tati Sou. Já bati, dei latada. Mulher me olhando muito, não gosto. Acho
melhor lidar com homem, aí não tem fofoca...
MC Pessoas famosas têm falado que você é libertária, uma nova Leila Diniz.
Você sabe quem ela foi?
Tati Sei, tem um hospital com o nome dela aqui perto. Acho bom, porque
falo o que penso. Sou assim mesmo, ninguém vai me mudar, critique quem
quiser.
MC Qual é o seu maior vício?
Tati Beber cerveja.
MC E as drogas?
Tati Só fumo maconha.
MC Você vai deixar os seus filhos fumarem maconha?
Tati Eles vão fazer o que quiserem. Eu dei para isso, espero que eles não.
Faça o que digo, não o que faço.
MC Você não tem medo de falar sobre drogas publicamente?
Tati Não. Falo para quem quiser ouvir. E já falei que fumo maconha até na
televisão.
MC Você foi convidada pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil
em um encontro feminista na Alemanha no ano passado. Como foi essa
viagem?
Tati Foi bom, me trataram bem. Fui lá, ganhei meu dinheiro, voltei. Mas o
dia demorava a passar, queria voltar logo porque aqui era véspera de
feriado. Todo mundo na cachaça e eu lá [faz cara de tédio]. A cerveja era
ruim, quente e doce. Comprei uma câmera digital, mas achava tudo caro e
201
preferia comprar aqui.
MC Viagens e riqueza atraem você?
Tati Não. Eu sou uma mulher sem cultura, que só quer ganhar o seu
dinheiro e voltar para casa.
MC Não tem um lugar que você queira conhecer?
Tati Queria ir à Bahia, mas já fui. Acho que gostaria de conhecer Beverly
Hills, ver as patricinhas da televisão, porque eu via muito o seriado
"Barrados no Baile".
"CARTÃO
"TAPINHA ATRÁS TAPA
MAGNÉTICO"
NA FRENTE"
"ORGIA"
Ô me chamaram pra
Abre as pernas, mexe e O homem é assim,
orgia
gira,
pensa
Quer pressão
já viu como é que faz
que é o rei da
Ô me chamaram pra
O mané bateu com o
malandragem
orgia
carro,
Meu negócio é papo
Tati a Quebra Barraco
quis me levar pro mato
reto,
Ô me chamaram pra
É na suíte do mirante
você quer é sacanagem
orgia
que eu quebro meu
Fala até demais
Esse é o Bonde do
barraco
do meu jeito de agir
Tigrão
Lugar luxuoso
Já cansei de ser otária,
O que tu quer eu vou te
não entra mané
a Tati tem que reagir
dar
Só sobe de carro,
Nós mulheres somos
É só você me seduzir
quero ver subir a pé
assim,
Porque eu sou
Se liga na Tati,
não damos ponto sem o a Quebra Barraco
o ritmo é frenético
nó
E tô pronta pra sacudir
Pra você abrir a porta
Já arrumei mais um
Eu vou sim,
só com cartão
jeitinho
que eu sou teu macho
magnético
pra tudo ficar melhor
Nessa escola eu dou
Escute a minha forma
aula
pra você ficar comigo
Você é a Quebra
Você finge que me ama
Barraco
e eu finjo que acredito
Quero ver tu quebrar
Tapa na frente, tapinha
jaula
atrás,
De Tigrão tu não tem
202
ai gatinho tá bom demais nada
Tapinha atrás, tapa na
Mais parace um gatinho
frente,
Se eu entrar na sua
que jeitinho envolvente
jaula
O Tigrão fica mansinho
Se eu quebrar o seu
barraco
Vai se amarrar
na minha malícia e
Vai contar pra suas
amigas
Que o Tigrão é uma
delícia
PRODUÇÃO: CRISTINA FRANÇA E MARTA ZOLINGER CABELO E
MAQUIAGEM: CARLA BIRIBA
203
Anexo XI:
Funk do Bope
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1137270-4005,00.html
Primeiro vieram os "proibidões": músicas funk banidas das rádios, com letras que falam dos
bandidos cariocas como se fossem heróis. Agora surgiu o outro lado dos proibidões: o mesmo
tipo de música, letras igualmente questionáveis, mas enaltecendo as ações da polícia.
As músicas são todas em ritmo de funk, como o que se ouve nos bailes.
"Corre, eu vou te pegar... Corre, eu vou te pegar”, diz uma delas.
A letra de uma delas fala do "caveirão", como é chamado popularmente o carro blindado que
é usado pela polícia em operações: "O terror deste Rio é o ‘caveirão’. Entra em favela, invade
o morrão. Se você canta e tem amor à vida, vamos te meter bala e não é perdida”.
Em outra música, o tema é o Bope, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar:
"Bope vai te pegar... Bope vai te pegar... Homem de preto, qual é tua missão? Entrar pela
favela e deixar corpo no chão".
Outra letra menciona o 9º Batalhão da PM: "É o 9º Batalhão, boladão, igual Afeganistão, viu,
neguinho? Corre de quem? Espera aí que nós divulga daqui. Qual é, mano granada? Valeu,
mano fuzil."
Uma outra faixa fala do traficante Luciano Barbosa da Silva, o Lulu, morto em confronto com
a polícia, em abril de 2004: "Chegamos na Rocinha no complexo Zona Sul, equipe Alfa foi e
quebrou o Lulu."
Várias vozes diferentes podem ser ouvidas nas faixas. A autoria é desconhecida.
O antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, não
conhecia as músicas. Ele as comparou aos chamados "funks proibidões", como são
conhecidas as músicas que têm execução proibida nas rádios, por fazerem apologia ao crime.
"É uma espécie de mimetização, de cópia do canto dos criminosos, do discurso dos
criminosos. Aqui há uma homogeneização. Todos se tornam muito parecidos”, avalia o exsecretário.
Uma música diz: "Vou chegar na favela e vou mais adiante, entrar no beco para matar o
traficante.”
"Isso é muito grave. Não há nenhum eco, por mais distante que seja, da Constituição, do papel
constitucional, democrático, republicano da instituição pública Polícia Militar. Não há
nenhuma alusão a respeito, a cidadania, a preservação de diretos, liberdades da vida, defesa,
proteção, prestação de serviços”, critica Luiz Eduardo Soares.
Procuramos o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Marcelo Itagiba.
"Nós não admitimos nenhum funk do mal. Nós apoiamos todo movimento popular positivo
que construa alguma coisa para a nossa juventude. Então, nós não admitimos nem funk de
bandido, nem funk atribuído a policiais que tenha na sua mensagem qualquer tipo de
violência”, afirma Marcelo Itagiba.
Procuramos também José Júnior, coordenador-executivo do Afro Reggae, uma organização
não-governamental. O Afro Reggae foi fundado em Vigário Geral, subúrbio do Rio, que foi
cenário de uma chacina há 12 anos.
Vinte e uma pessoas foram mortas. Entre os acusados pela chacina, estão policiais do Bope e
do 9º Batalhão, citados nas músicas.
204
“Eu não sei quem produziu o CD, não sei quem fez, mas, com certeza, não foram pessoas de
comunidades, não foram pessoas das favelas que produziram isso, porque, nas favelas, esse
tipo de música, esse tipo de letra não toca. Então, quem fez isso, não sei se foi policial, fez
para criar uma situação de instabilidade, de terror, de pânico", opina José Júnior.
O coordenador-executivo do Afro Reggae diz que as polícias e a população das favelas e
comunidades estão em lados opostos, e defende a aproximação das partes.
“Aqui no Rio de Janeiro, eu estou tendo uma aproximação muito boa com a Polícia Militar,
no sentido de a gente também poder fazer uma ação que diminua esse olhar - que eu
considero um olhar também equivocado - das pessoas que moram em comunidades, que
acham que todo policial é violento e corrupto. E também do policial que acha que todo jovem
negro, pobre, favelado é bandido. Então, a intenção é diminuir esse apartheid que existe entre
as duas partes”, explica José Júnior.
Recentemente músicos da banda da Polícia Militar do Rio participaram de um show com o
Afro Reggae. A versão da música que o Afro Reggae tocou, “Imagine”, de John Lennon, será
tema de uma campanha mundial da Anistia Internacional, a partir da terça- feira.
“Eu acho que a gente está em um caminho hoje sem volta, mas de diálogo, porque esse é o
momento. Acho que ninguém agüenta mais a violência, seja a violência por parte da
criminalidade, seja a violência por parte da polícia”, observa o coordenador-executivo do
Afro Reggae.
“Nós trabalhamos com a cultura do bem, nós estamos integrados, inclusive, com o movimento
Afro Reggae, levando a integração da comunidade, da música com a polícia", garante o
secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Marcelo Itagiba.
205
XII: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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