Universidade Federal do Rio de Janeiro A RELAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS EM ...Y NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA, DE TOMÁS RIVERA, E LA FRONTERA DE CRISTAL, DE CARLOS FUENTES Luciano Prado Da Silva 2015 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa A RELAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS EM ...Y NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA, DE TOMÁS RIVERA, E LA FRONTERA DE CRISTAL, DE CARLOS FUENTES Luciano Prado Da Silva Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/Literaturas Hispânicas). Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva. Rio de Janeiro Fevereiro de 2015 CIP - Catalogação na Publicação S586r Silva, Luciano Prado da A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes / Luciano Prado da Silva. -- Rio de Janeiro, 2015. 224 f. Orientadora: Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós Graduação em Letras Neolatinas, 2015. 1. Literariedade. 2. Imagem. 3. Imaginários. 4. Fronteira. 5. México-EUA. I. Silva, Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da, orient. II. Título. Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes Luciano Prado da Silva Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/Literaturas Hispânicas). Aprovada por: ______________________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva Banca examinadora: ______________________________________________________________________ Professora Doutora Elena Cristina Palmero González ______________________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho ______________________________________________________________________ Professora Doutora Ana Cristina dos Santos ______________________________________________________________________ Professora Doutora Elda Firmo Braga ______________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Lizete dos Santos (Suplente) ______________________________________________________________________ Professora Doutora Carla de Figueiredo Portilho (Suplente) Rio de Janeiro Fevereiro de 2015 Para Shirlei e João Gabriel, meus dois. Para Genivaldo, Maria de Lourdes e toda minha família, sempre. À memória de Sonia, Sérgio, Paulo, Regina, Laura, Denise e Jaílton. Agradecimentos A Claudia Luna, pela mão amiga todo o tempo, e pela imensa generosidade com que sempre me tratou. Sem seu incentivo constante, eu não chegaria até aqui. A Shirlei e João Gabriel, meus dois amores, porque me mantiveram de pé com seu amor incondicional ao longo desses quatro anos de lutas. A Elena Palmero, por reconhecer em mim algo de que sempre duvidei: minha capacidade e competência para realizar trabalhos de grande monta. Agora eu sei quem sou. A Reginaldo Aquino, por prontamente financiar minha primeira viagem para meu primeiro congresso internacional, em UTEP, na fronteira entre El Paso (EUA) e Ciudad Juárez (México). A Adriana Ortega, pelo envio do e-mail que me informava do XVII Congresso de Literatura Mexicana Contemporânea em El Paso (Texas). A Ana Maria Aquino, por me guiar nos caminhos do conhecimento desde há muito tempo. A Ana Cristina dos Santos, por ser inspiração para tantos alunos formados na UERJ. A Alessandra Corrêa, por me incentivar quando eu já não acreditava. A Antonia Claudene, Diogo de Hollanda e Gabriel Poeys. A Vivian Pizzinga e Mônica Fadista, porque o clichê deixa de sê-lo quando a frase se volta para vocês: “Sem vocês nada disso, nenhuma dessas linhas teria acontecido”. Muito obrigado por tudo, sempre. Ao meu grupo da UERJ: Giselle, Aldenise, Michele, Andreia, João, Aninha Paula, Anderson, Carine, Caíque, Silvia, Karina, Helena, Marcelle e tantos outros. A Maria Aparecida, madrinha de coração maior que o mundo. A Viviana Gelado, pelo e-mail em que me dava ciência da preciosa, e fundamental, edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra. A Sonia Torres, por me apresentar ao romance de Tomás Rivera. A Monica Gomes e Nilciléia, amigas do mestrado e para toda a vida. A Graciela Silva Rodríguez, a Luiza Elberg, Hermes Delano pelos livros enviados. E a todos os amigos que fiz entre El Paso e Cd. Juárez. A meus irmãos e a todos os meus entes paternos e maternos, pelo apoio, incentivo e exemplo constante. A todos os alunos dos quais senti muita falta em um ano de afastamento para a tese. A Patrícia, Joana e Anderson, pela tradução. E aos meus amigos-irmãos de infância. A Patrícia e Nádia, da Secretaria da Pós, pela paciência diante das muitas solicitações. Cuando lleguemos, cuando lleguemos, ya, la mera verdad estoy cansado de llegar. Es la misma cosa llegar que partir porque apenas llegamos y… la mera verdad estoy cansado de llegar. Mejor debería decir, cuando no lleguemos porque esa es la mera verdad. Nunca llegamos. (Tomás Rivera, 1971) RESUMO SILVA, Luciano Prado da. A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Com a presente tese de doutorado, trabalho o tema da relação literariedade, imagem e imaginários na abordagem dos conflitos de alteridade entre mexicanos, chicanos e estadunidenses, à luz dos romances ...y no se lo tragó la tierra (1971), de Tomás Rivera (1935-1984), e La frontera de cristal (1995), de Carlos Fuentes (1928-2012). Concedendo um todo romanesco a contos que podem ser lidos e compreendidos isoladamente, ambas as obras convergem na estruturação fragmentada de suas narrativas sobre a fronteira México-Estados Unidos e as problemáticas advindas de quase duzentos anos de contato e choque, identitários e culturais. Assim, a partir da leitura atenta dos corpora, meu objetivo é demonstrar as estratégias literárias usadas pelos autores para, por meio de especificidades próprias da literatura, estabelecerem contato com imaginários acerca das situações de conflito bifronteiriço suscitadas em seus enredos. Para tanto, a fundamentação teórica que norteia este estudo, em termos gerais, passa por textos do formalismo russo (1914-1927), para literaturidade, e de Gilbert Durand (2011) e Wolfgang Iser (1983), para as correlações entre ficção, imagética e imaginário. No tangente a considerações acerca de literatura, cultura e identidade chicanas, tomadas do romance de Rivera, colaboram os argumentos de Ramos e Buenrostro (2012). Já no que toca a questões de identidade mexicana levadas à ordem do literário por Fuentes, contribui diálogo entretecido para com as observações de Bartra (2000) e García-García (2004). Após os estudos materializados nesta pesquisa de doutoramento, minha constatação é a de que ambos os autores dos romances em tela, mais do que apontarem para uma intencionalidade de composição com imaginários, deixam transparecer nas mostras aqui trabalhadas algo de seus posicionamentos político-ideológicos. Tais posições é que estreitam ligação, em maior ou menor medida, com imaginários prévios acerca dos eventos potencializados pela linguagem literária impressa por ambos, cabendo também às instâncias de recepção do leitor o caráter de permanência e agregação das imagens verbais produzidas ao aspecto de realidade caro a um imaginário. Palavras-chave: Literariedade. Imagem. Imaginários. Fronteira. México-EUA. RESUMEN SILVA, Luciano Prado da. A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Con la presente tesis de doctorado, trabajo el tema de la relación literariedad, imagen e imaginarios en el abordaje de los conflictos de otredad entre mexicanos, chicanos y estadounidenses, a la luz de las novelas ...y no se lo tragó la tierra (1971) de Tomás Rivera (1935-1984) y La frontera de cristal (1995) de Carlos Fuentes (1928-2012). Al brindar un todo novelesco a cuentos que se pueden leer y comprender aisladamente, ambas obras coinciden en la estructuración fragmentada de sus narrativas sobre la frontera México-Estados Unidos y las problemáticas que advienen de casi doscientos años de contacto y choque, identitarios y culturales. Así que, a partir de la lectura atenta de los corpora, mi objetivo es demostrar las estrategias literarias usadas por los autores para que, a través de especificidades propias de la literatura, establezcan contacto con imaginarios acerca de las situaciones de conflicto bi-fronterizo suscitadas en sus enredos. De este modo, en términos generales, la fundamentación teórica que orienta este estudio pasa por textos del formalismo ruso (19141927), para literaturidad, y de Gilbert Durand (2011) y Wolfgang Iser (1983), para las correlaciones entre ficción, lo imagético e imaginarios. Con relación a consideraciones, desde la novela de Rivera, sobre literatura, cultura e identidad chicanas aportan los razonamientos de Ramos y Buenrostro (2012). En lo que toca a cuestiones de identidad mexicana llevadas hacia lo literario por Fuentes, contribuye diálogo entretejido para con las observaciones de Bartra (2000) y García-García (2004). Tras los estudios que en esta investigación doctoral se materializan, mi constatación es la de que ambos autores de las novelas en destaque, más allá de que demuestren evidencia de intencionalidad de composición con imaginarios, dejan traslucir en las muestras aquí trabajadas algo de sus posicionamientos político-ideológicos. Dichas posiciones son las que responden por estrechar ligación, en mayor o menor grado, con imaginarios anteriores respecto a los eventos potencializados por el lenguaje literario que ambos imprimen a sus narrados. Cabe, además, a las instancias de recepción del lector el carácter de permanencia y agregación, de las imágenes verbales que se producen, al aspecto de realidad propio de un imaginario. Palabras clave: Literariedad. Imagen. Imaginarios. Frontera. México-EE.UU. ABSTRACT SILVA, Luciano Prado da. A relação literariedade, imagem e imaginários em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera, e La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. This doctoral thesis discusses the relationship of literariness, image and imaginary by addressing conflicts of otherness among Mexicans, Chicanos and Americans. It is done in the light of the novels "...y no se lo tragó la tierra" (1971), by Tomás Rivera (1935-1984), and "La frontera de cristal" (1995), by Carlos Fuentes (1928-2012). Giving a whole Romanesque perspective to the tales – which can be read and understood in isolation – both works converge in the fragmented structure of their narratives on the US-Mexico border and the problems resulting from almost two hundred years of cultural-identity contact and shock. Thus, from the careful reading of the corpora, my goal is to demonstrate the literary strategies used by the authors to establish contact with imaginary about the bi-border conflict situations arising in their plots through specificities of literature. Therefore, in general terms, the theoretical framework that guides this study goes through texts of Russian formalism (19141927) for literariness; and through texts of Gilbert Durand (2011) and Wolfgang Iser (1983) for correlations among fiction, imagery and imaginary. In regard to considerations about Chicanos literature, culture and identity from Rivera's novel, Ramos and Buenrostro (2012) give their contribution. When it comes to Mexican identity issues brought to literary order by Fuentes, Bartra's (2000) and García-García's (2004) observations collaborate to the dialogue. After the studies realized for this doctoral research, my finding is that, more than suggesting a composition of intentionality with imaginary, both authors of the novels analyzed show some of their political and ideological positions. Such positions narrow down connections, to a greater or lesser extent, with previous imaginary about events enhanced by printed literary language for both. It is also due to the reader's reception instances the character of permanence and aggregation of verbal images produced by dear aspect of reality to an imaginary. Keywords: Literariness. Image. Imaginary. Border. México-USA. SUMÁRIO INTRODUÇÃO pg. 11 1 A IMBRICAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS pg. 20 1.1 Da noção de literariedade pg. 20 1.2 Imagem e(m) literatura pg. 34 1.3 Historicizar para pensar: o que é um imaginário? pg. 59 2 ELIPSE E LACONISMO: A NARRATIVA EM INSTANTÂNEOS LITERÁRIOS DE ...Y NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA pg. 68 2.1 A elipse romanesca de Tomás Rivera pg. 69 2.2 A ficção do menino narrador riverano: um problema ontológico (?) pg. 85 2.3 Imaginária e imaginários de ...Tierra: “sacralidades” em questionamento 3 LA FRONTERA DE CRISTAL: COMPONDO (COM) IMAGINÁRIOS pg. 103 pg. 123 3.1 Nas trampas de um narrador coiote, (des)caminhos para os imaginários pg. 124 3.2 Metáfora ampla, o recurso de imagem na obra pg. 140 3.3“Mex-(anglo)-chicanidades” como resultado da equação “metáfora ampla = imagem → metonímia = imaginários” pg. 157 4 APROXIMAÇÕES FRONTEIRIÇAS: SIMILARIDADES E DIFERENÇAS pg. 184 4.1 Da literariedade em ambas pg. 184 4.2 Rivera: do implícito ao imagético. Fuentes e sua imagética explícita pg. 192 4.3 Os imaginários de dois romances em contos pg. 199 CONSIDERAÇÕES FINAIS pg. 206 BIBLIOGRAFIA pg. 211 ANEXOS pg. 221 11 INTRODUÇÃO Na presente de tese de doutorado tomo como objeto de estudo os romances ... y no se lo tragó la tierra (1971), do escritor chicano Tomás Rivera, e La frontera de cristal (1995), do escritor mexicano Carlos Fuentes. Neste trabalho científico, busco dar continuidade aos estudos de mestrado que levei a cabo. A saber: as conflituosas relações entre mexicanos, chicanos e estadunidenses à luz do olhar literário. Se em minha pós-graduação strictu senso (UFF, 2010) baseei meus estudos na supracitada obra de Fuentes, foi também durante esse período que travei contato, sem a leitura, entretanto, com o referido romance de Tomás Rivera. La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, é uma obra constituída por nove contos1 que, devido à grande força intrínseca a uni-los, acabam por compor um romance. Nesse livro, contam-se as glórias e os infortúnios, a servidão e, ao mesmo passo, a grandeza das personagens de uma família: os Barroso – especialmente de don Leonardo Barroso, uma espécie de self-made man mexicano, rico, poderoso e influente. Para tanto, Fuentes utiliza como pano de fundo os históricos laços de amor e ódio, de rancor e admiração entre dois países de conturbadas relações fronteiriças: o México e os Estados Unidos. Dessa forma, será utilizando esses vínculos históricos como base de sustentação para seus contos tão intimamente interligados que outros personagens e enredos vão, pouco a pouco, sendo apresentados ao leitor, inseridos, cada qual com seu devido destaque, no mosaico de imagens de encontros e desencontros fronteiriços que o romance quer transmitir. Em La frontera de cristal, destaco uma espécie de profusão da palavra literária, artifício levado quase ao excesso em construções sintáticas repletas de sinonímias, repetições usadas sem qualquer desejo de economia linguística na procura pela representação e transmissão das imagens que se quer transferir ao leitor, imagens que encaminhem a imaginários sobre as conflituosas relações fronteiriças entre mexicanos, chicanos e estadunidenses. E isso ocorre com o leitor sendo atravessado para o outro lado de uma escrita ora vibrante, pulsante e apaixonante, ora seca, crua e desalentadora; por vezes óbvia, mas comovente; ora surpreendente, mas execrável; ora suave e poética, às vezes abjeta e nauseante; uma verve léxica, adotada no uso de um traiçoeiro narrador (a que chamo de narrador coiote), a qual chega a confundir-se com o próprio fluxo linguístico, profuso e 1 Importa ressaltar que tal proposta (conto=capítulo=ROMANCE) se vê explicitada já no subtítulo que acompanha as primeiras edições da obra, tal qual no exemplar de 1997 da Editorial Alfaguarra, que faz parte da bibliografia desta tese, onde se lê: La frontera de cristal – una novela en nueve cuentos. 12 sedutor de Fuentes em ensaios como os de seu El espejo enterrado (1992), cujos antecedentes, não nos custa lembrar, advêm de uma homônima série televisiva (imagem) escrita e narrada pelo escritor mexicano para a instituição acadêmica estadunidense Smithsonian2. Além disso, desenvolve-se o enredo de La frontera sob o trabalho de “criação” e o contar das ações de personagens-tipo, ou, até mesmo, tipificados (entressacados de imagens prévias, anteriores, quase-que engessadas no “real” em que se baseiam). Assim, como prismas de um cristal aos cuidados de um narrador cambiante, tais personagens são o intento do autor em representar na ficção o modo de vida do mexicano (repleto de tradições, contradições, transculturações3 e mesclas multiculturais4), atormentado de um lado pela corrupção de seus governos e do outro pela discriminação no “eldorado” estadunidense. Para tanto, o gosto pelo desenrolar da palavra na narrativa de Fuentes se apega ao e se vale do processo de singularização do narrado que faz através do uso de duas figuras de linguagem essenciais para a apresentação de imagens que a obra quer emitir: a metonímia (na qual, a parte representada na inserção do personagem-tipo busca, finge, em verdade, abarcar a representação de um todo, contendo, dando margem a equações bastante reducionistas, simplistas, simplificadoras); e a metáfora, observada desde seu uso em sentenças mais curtas, frases, períodos, até o processo ao qual chamo de metáfora ampla, quando capítulos-contos quase por completo servem de grandes metáforas, agindo como extensas metaforizações das situações de alteridade com as quais estabelecem relação. 2 À época de apresentação do projeto para a imprensa estadunidense, em 1989, a Smithsonian agrupava um todo de catorze museus em Washington (EUA), sendo considerada já naquele tempo, e até hoje (contando agora com dezenove museus entre Washington, D.C. e Nova Iorque), um dos principais centros de investigação acadêmica do mundo (Cf.: G. BASTERDA para El País, 1989, p. 1 e M. HENSON, 2013, p.115). 3 No presente trabalho, o termo “transculturação” será utilizado como um dos abrangentes às mesclas multiculturais formadoras do povo mexicano desde tempos pré-colombianos. Vale lembrar, entretanto, que tal verbete foi usado pela primeira vez pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), em seu ensaio “Del fenómeno social de la ‘transculturación’ y de su importancia en Cuba” (1940). Cunhado para poder mais bem explicar as diferentes fases do processo de transição de uma cultura a outra, o conceito, em Ortiz, implica em potencial perda ou desarraigo de determinada cultura precedente, envolvidas estas nos entrechoques culturais a que se viu forçada a viver a América Latina, a partir dos “descobrimentos”. Mais tarde, o termo é levado, ainda, ao campo dos estudos literários pelo intelectual uruguaio Ángel Rama (1926-1983), em suas considerações sobre a transculturação em autores da narrativa literária latino-americana. Não sendo esse meu enfoque aqui, remeto o leitor ao artigo “Os processos de transculturação na narrativa latino-americana”, de Rama (1974 [2001]), e aos capítulos 2 e 3 de minha dissertação de mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em La frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010), onde o recorte ali adotado me permitiu desenvolver o tema. 4 Pelo termo “mesclas multiculturais”, aqui utilizado, entenda-se a pluralidade cultural que perpassa toda a trajetória de formação do povo mexicano desde antes da chegada do invasor europeu. Nesse sentido, advirto que meu uso dessa expressão (e de outras semelhantes) no presente trabalho não tem por finalidade maior aproximação ao temário dos estudos multiculturais no campo da literatura. Para tanto, para aprofundamento do assunto, remeto o leitor a, por exemplo, obras como Literatura e estudos culturais (FALE-UFMG), organizada pelas intelectuais brasileiras Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenço de L. Reis (2000). 13 Tal como o romance de Fuentes acima apresentado, a obra de Tomás Rivera ...y no se lo tragó la tierra, concebida vinte e seis anos antes, é um romance constituído de contos que se entrelaçam, “entre-enredam-se” para dar forma a algo maior, um romance de tom mais introspectivo, composto por catorze contos, catorze espécies de micro-narrativas. Neles, o protagonista busca os caminhos de sua identidade reconstruindo histórias vividas e a ele contadas durante doze meses de migração familiar, a maior parte do tempo, pelos campos de cultivo da região sudoeste dos Estados Unidos. Neste enredo, não expositivo, repleto de implícitos, ressalta-se a força do movimento chicano, dos trabalhadores migratórios e sua tenacidade. O termo “chicano” surge inicialmente para designar, de modo pejorativo, os mexicanos e os “americanos” de origem mexicana que, após o Tratado de Guadalupe-Hidalgo (produto do fim da guerra de fronteiras mexicano-americana, 1846-1848), passam a integrar a nação estadunidense. Ao fim da guerra, os mexicanos que optassem por permanecer do lado “anglo-americano” da fronteira teriam, teoricamente, direitos garantidos por lei. No entanto, seguiu-se a isso que essas pessoas, doravante denominados chicanos (alusão depreciativa ao inimigo mexicano facilmente derrotado), passaram a ser tratadas como uma classe de segunda ordem, a ser explorada como uma classe obreira, servil, braçal. A partir dos anos de 1960, entretanto, com a eclosão da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, os braceiros chicanos se unem na luta por melhores salários, condições dignas de vida e trabalho e igualdade de direitos. A partir de então, a manifestação com grande apoio popular que viria a ser conhecida como Movimiento Chicano concede nova semantização ao termo, agora assumidamente utilizado como marca de afirmação de uma identidade, a qual muitas das vezes busca marcar sua alteridade tanto diante dos Estados Unidos da América do Norte quanto ante os Estados Unidos Mexicanos. Importa ainda dizer que, mesmo havendo uma produção literária desenvolvida pela comunidade mexicanoamericana desde a existência das primeiras disputas fronteiriças entre ambas as nações5, somente a partir dos anos de 1960 tal produção passou a estar relacionada, vinculada aos movimentos sócio-políticos. Nesse tocante, o professor universitário e escritor Tomás Rivera passa a ser um dos nomes marcantes dessa nova vinculação, sempre preocupado em assumirse como um escritor chicano. 5 A esse respeito, remeto o leitor para o artigo “Apuntes para la historia de la literatura chicana”, de Lauro Flores, publicado em América Latina: palavra, literatura e cultura (PIZARRO, Ana (org.), 1995, 3v. p. 581600). 14 ...y no se lo tragó la tierra (cujos elos não são fáceis de serem unidos tão-somente em uma primeira leitura) conta a história de um garoto de ascendência mexicana, radicado nos Estados Unidos, criado, porém, dentro da cultura mexicana trazida por seus pais. Através de um recurrido quase todo ele em solilóquio (há a presença de uma narração em terceira pessoa, que só ao fim se revela como o mesmo protagonista que narra também em primeira pessoa) pode o leitor enveredar-se pelas difíceis sendas de um tempo repleto de preconceitos sofridos por conta da cultura e etnicidade de seu personagem principal. Pela narração nos são fornecidos dados, como a Guerra da Coréia em “El rezo” e em outros capítulos, que estabelecem um contexto sócio-histórico de finais dos anos de 1940 e início dos de 1950. Porém, se em Fuentes o destaque está em parte por conta do que poderíamos chamar de profusão da palavra literária, sua oposição estaria na economia linguística de Tomás Rivera em ...y no se lo tragó la tierra. Ainda assim, há que se observar que no romance em contos (catorze pequenas histórias aparentemente desatreladas; contudo, a união semântica da primeira para com a última short story dá a circularidade romanesca que quase passa despercebida na leitura das doze outras que entremeiam a obra) de 1971, do mencionado autor chicano, o laconismo no narrado sugere e ativa, instiga a percepção do leitor/receptor a partir do rumor que deixa a secura do narrar, a “ausência” de palavras a mais, ausência do que é “excesso” na obra de Fuentes, a profusão linguístico-literária. Essa mesma habilidade com o lacônico se assemelha à estilística de Juan Rulfo6, autor mexicano precedente ao chicano Tomás Rivera no uso desse estilo. E a observação nos serve de remissão à importância do trabalho empiricamente fotográfico realizado por Rulfo para a consecução de suas narrativas literárias. Assim, o elíptico em Rivera é também a orquestração, o manejo entre ficção, imagem (“fotografia”) e memória (história?). Isso também o há na narrativa de Fuentes; entretanto, há neste (em La frontera) todo um imaginário de guerra quase que perpetrado: à ficção, unem-se ensaio e História, como não houvesse terminado a Guerra Mexicano-Americana de 1846 a 1848. Naquele (em ...y no se lo tragó), contrariamente, o imaginário de conflitos entre mexicanos, chicanos e estadunidenses passa pelo viés psicológico, identitário de seu narrador e os narradores outros que são invocados por suas lembranças. E as imagens levantadas 6 Semelhança trabalhada pelos críticos Julio Ramos e Gustavo Buenrostro em edição argentina de ... y no se lo tragó la tierra (Ediciones Corregidor, 2012), a qual serve de apoio e diálogo teórico em parte da análise textual da citada obra de T. Rivera, no capítulo a ela destinado na presente tese. 15 surgem de antigos cuentos7 rememorados também em estampas 8 elípticas que introduzem os contos-capítulos da obra. Dessa maneira, do acima exposto se extrai algo das estratégias utilizadas pelos autores do corpus componentes da presente pesquisa até o encontro de suas obras para com os imaginários acerca das conflituosas relações de alteridade sobre as quais se inclinam. Assim, a partir do trabalho em conjunto com os dois romances, o tema de minha tese é a relação literatura, imagem e imaginários na abordagem dos conflitos de alteridade entre mexicanos, chicanos e anglo-americanos, tal como representados nos romances supracitados. No tocante à originalidade deste trabalho, muitos estudos foram feitos sobre o romance de Tomás Rivera. Porém, mesmo nos trabalhos mais recentes, não se observou a comparação do referido romance com a obra de Carlos Fuentes, tampouco uma análise crítica que abordasse a proposta de vínculo da narrativa de Rivera junto ao temário literatura/imagem/imaginários. Acerca dos estudos sobre o romance de Fuentes, mesmo nos artigos em que se trata da questão da simbólica na obra desse autor9, não se observaram abordagens ao teor imagético de La frontera agindo com e na construção dos imaginários sobre os quais debruço meus estudos nesta tese. A relevância desta pesquisa está em pensar uma vez mais a literatura como fonte de atuação e composição de imaginários sociais, agindo não somente a partir do real com o qual se relaciona, mas, também, sobre, junto a este mesmo real que visa ficcionalizar. Está, ainda, em buscar, através do estudo crítico de obras de autores que se debruçaram sobre o tema do imaginário, estabelecer uma definição, ou conceituação teórica mais palpável do termo que nos leva ao tema, para além do vocábulo “imaginário” qual uma palavra dada, quase um senso comum. As questões do sujeito migratório, e as consequências dos embates e entrecruzamentos culturais que surgem desse processo são outro ponto relevante a colocar a literatura dos livros em tela em consonância com importantes temas do homem contemporâneo, tal qual a 7 Cuento entra aqui não como o gênero literário escrito; mas, antes, como parte dos recuerdos, das histórias passadas entre as gerações, contadas e reinventadas sob as asas da imaginação, mais propriamente ligados à tradição oral, ao desenvolvimento de uma literatura oral. No caso de ...y no se lo tragó la tierra, e das raízes de trabalhador rural de seu autor, um método de narrar que usava sua gente nos campos migratórios. 8 Do termo “estampa” dou ênfase não somente ao seu aspecto de imagem que acompanha ou introduz um texto; mas, também, a sua sinonímia para com o termo anécdota, ou seja, um relato breve e ilustrativo ou simplesmente usado como exemplo e/ou entretenimento. Em ...y no se lo tragó la tierra, as estampas (ou anécdotas) podem servir tanto como imagem que abre o conto-capítulo que precede quanto serem micro narrativas que trazem em si ressonâncias de um ou mais contos do todo da obra. 9 A este respeito, remeto o leitor para a obra de referência Formação da simbólica erótica na obra de Carlos Fuentes, de 1995, onde a intelectual brasileira Maria Aparecida da Silva trabalha com pertinência a abordagem do simbólico em Fuentes. 16 migração como forma de sobrevivência em movimento, geradora de relações de subalternidade e, em contrapartida, atos de resistência carregados de contradições, dualidades, ambivalências e, por conseguinte, crises identitárias, aspectos (também refletidos na escrita, composição e representação levada a cabo pelo corpus escolhido) próprios do processo de choques entre culturas, das relações interculturais, talvez atualmente ainda mais agudos em regiões de fronteira. Ademais, a comparação entre ambos os romances (e os resultados dela obtidos) permite não apenas a simples aproximação entre as literaturas chicana, mexicana e estadunidense10; mas, sobretudo, o papel relevante de propor o pensar, refletir e entender academicamente a literatura chicana como um verdadeiro sistema literário; e, não, como um mero, um reles subsistema de produção literária orbitando entre e dependente de dois outros sistemas literários mais “fortes”: o mexicano e o estadunidense. Com relação ao problema principal deste trabalho, ele se constituiu em identificar de que modo o processo migratório no entorno fronteiriço que compartem México e Estados Unidos e as problemáticas relações entre os sujeitos envolvidos em tal processo são representados nas obras escolhidas. E de que modo tal tratamento literário trabalha com imaginários precedentes sobre esses choques interculturais, além de agir na perpetuação e renovação desses mesmos imaginários. A partir do reconhecimento deste problema principal, a ele agregadas se veem as seguintes questões: a) de que modo se desenvolve a relação entre literatura, imagem e imaginários nas obras em relevo? b) que elementos do imaginário sobre as conflituosas relações de alteridade entre mexicanos e estadunidenses estão presentes em ambas as obras? Como se dá, nas narrativas em questão, a relação com estes imaginários? c) que estratégias literárias são utilizadas por cada autor na inserção de seus posicionamentos político-ideológicos nos romances ora estudados? E, por fim: d) qual o ponto-chave observado na comparação de ambas as obras? Qual a relação estabelecida entre ambos os romances e o imaginário sobre os conflitos de alteridade entre mexicanos e estadunidenses? 10 Sobre tal aproximação, remeto o leitor à tese Contextualización de la obra de Tomás Rivera, de Ignacio J. Esteban Giner (2005, p.73-4-5-6-7), na qual o autor menciona a influência e comparação estilística e formal que exerceriam no romance de Rivera autores que vão desde o mexicano Juan Rulfo, ao chicano Américo Paredes, passando ainda pelos norte-americanos William Faulkner, John Steinbeck, Sherwood Anderson e Ernest Hemingway. No entanto, a meu ver, ao escrever também que o romance de Tomás Rivera encarna perfeitamente o modelo de Mexicanamerican literature, J. Esteban, ainda que bem intencionado pela utilização de um termo definidor sem o uso de espaços nem hífens, parece-me cair na armadilha de relegar-se a literatura chicana ao velho esquema de subsistema (ou mesmo modelo) literário relegado a vagar indeciso (inferior que seria), “perdido” entre dois outros sistemas (ou modelos) “maiores”, devidamente explicitados no vocábulo que antecede o inglês literature. 17 A premissa sobre a qual iniciei meus trabalhos se estrutura em torno do entendimento de que, em um primeiro momento, o elo comum que possibilita ser identificada a relação suscitada (literatura/imagem/imaginários) a partir da análise comparativa do corpus é a temática por sobre a qual ambas as obras debruçam seus enredos: a migração na região de confluência mexicano-estadunidense. Isto posto, a hipótese da qual parti é a de que ambos os autores relacionam (de forma mais explícita em Fuentes e mais implícita em Rivera) ficção e a inserção de dados da História que compartilham entre si México e Estados Unidos, com vistas a rivalizar e imbricar em um segundo momento memória e olvido, produto do embate entre os sujeitos das conturbadas relações mexicano-estadunidenses. Para tanto, fincam apelo às raízes da oralidade, buscando representá-la na escrita. Tal oralidade estará materializada, representada nos cuentos (forma que se “transforma” em capítulos nestes romances) que são passados de geração em geração. Assim, seria o caráter de permanência nas histórias contadas entre as gerações e a força imagética dessas pequenas histórias que auxiliariam na inserção dos imaginários a que estão presos os personagens desses enredos, sujeitos fragmentados em narrativas que partem do trecho para a busca do todo. Deste modo, a literatura, criadora também de imagens, coadunar-se-ia a imaginários já existentes sobre as conflituosas relações entre mexicanos, chicanos e anglo-americanos e, ainda, serviria para a perpetuação, renovação e recriação destes mesmos imaginários sociais. Tais cuentos, estampas e recuentos11 (formas de composição privilegiadas nos capítulos-contos dos dois romances) evocam imagens formadoras de algo maior, uma espécie de imaginário coletivo sobre as colisões interculturais entre mexicanos, chicanos e anglo-americanos. Mais que isso, a partir da busca de apreensão e representação do real vivido acerca dessa situação de embate, a literatura (nas observações levantadas da interpretação atenta dos corpora) estabelece também seu lugar de importância na renovação dos imaginários acerca dos conflitos de alteridade ora discutidos. Assim, observa-se que a literatura seguiria, passado muito tempo desde o auge de seu poder de ação sobre os imaginários nacionais (operando através de estratégias estético-estilísticas, conforme observado no estudo dos romances em destaque), com poder para agir junto com e junto ao real sobre o qual ancora sua apreensão e representação, agregando-se à criação de imaginários com força metonímica de “realidade”12. 11 Por recuentos, podem ser entendidas as histórias, os cuentos que, passados de geração em geração pela oralidade, passam também pelo viés da imaginação de seus receptores, que os recontam, recriam, reinventam, omitindo ou acrescentando-lhes novas ocorrências, agentes que são (ou serão) de características próprias da transmissão da tradição dos narrados orais. 12 Nesse tocante, parece-me bastante propícia a observação da célebre hispanista brasileira Bella Jozef (2006, p.166), a qual, sobre a relação possível entre real e ficção, escreveu que “a realidade, no sentido do artista, é sempre algo criado, embora o real empírico constitua um referente do qual o autor se serve para sua criação”. 18 Direcionado pela hipótese acima delineada, meu objetivo geral é estabelecer uma reflexão sobre as estratégias literárias levadas a cabo por Fuentes e Rivera para re(a)presentar, agir com e atuar sobre imaginários que a literatura ajuda a compor, atuando junto ao real apreendido das relações correspondentes ao entrecruzamento cultural mexicano-estadunidense. A este objetivo geral se agregam os seguintes objetivos específicos: a) demonstrar como se desenvolve a relação literatura, imagem e imaginários nas obras em epígrafe; b) descrever que elementos do imaginário acerca das conflituosas relações de alteridade entre mexicanos, chicanos e estadunidenses estão presentes em ambas as obras; c) apresentar as estratégias literárias utilizadas por cada autor na inserção de seus posicionamentos político-pedagógicos nos romances estudados; d) demonstrar o ponto chave a permitir a comparação entre ambas as obras. Evidenciar que relação se estabelece entre ambos os romances e o imaginário sobre os conflitos de alteridade entre mexicanos e estadunidenses. A metodologia utilizada parte de pesquisa e análise bibliográfica dos dados coletados. A pesquisa se embasa em textos literários, textos críticos sobre as temáticas levantadas e de crítica literária e cultural. Por conseguinte, a investigação científica em questão se caracteriza por ser uma análise qualitativa, documental e de caráter bibliográfico e comparativista. No que toca a este aspecto comparatista da pesquisa, agregou valor à metodologia adotada minha participação em congresso literário realizado entre as cidades que formam espaço privilegiado nos romances estudados: El Paso (EUA) e Juárez (México). Dessa maneira, ressalto que minhas participações nos XVII e XVIII Congreso de Literatura Mexicana Contemporánea em The University of Texas at El Paso (EUA), em março de 2012 e 2013, respectivamente, terminaram por proporcionar acesso quase direto a obras importantes para a referenciação bibliográfica de meu estudo. A partir de todo o material colhido, estabeleci um quadro teórico que entrasse em diálogo com os argumentos desenvolvidos ao longo dos quatro capítulos que deram forma a esta tese de doutoramento. Assim, no primeiro capítulo (talvez o mais rebuscado em função de estarem nele os principais traços definidores da tese) a fundamentação teórica sobre a imbricação literariedade, imagem e imaginários contou, em linhas gerais, com os trabalhos de: formalistas russos (1914-1927), Iser (1983), Lima (2010, 2011) e Durand (2011). No segundo, a abordagem acerca de literatura e identidade chicanas a partir da análise textual de ...y no se lo tragó la tierra passa, principalmente, pela argumentação de Ramos e Buenrostro (2012). No terceiro capítulo, a partir da interpretação voltada para o romance de Fuentes, discuto, em especial, a questão da mexicanidade suscitada pelo autor em sua representação narrativa. Nesse aspecto, destaco o diálogo estabelecido para com as observações de Bartra 19 (2000) e García-García (2004). Já o quarto, e último, capítulo da presente tese de doutoramento se constitui em uma seção menor que as anteriores por trazer enfim compactados os argumentos expostos em separado até então, razão pela qual retornam os componentes de toda minha fundamentação teórica, agora em posição de troca ainda mais entretecida. Por fim, para além da originalidade na escolha de comparação das obras em tela, distantes no tempo de sua publicação (1971 para T. Rivera e 1995 para C. Fuentes) e no cânone em que estão inseridos seus autores (apesar da proximidade cultural relativa chicanomexicana), acredito, com a realização do presente estudo, poder contribuir para novas leituras acerca do temário das relações de alteridade entre mexicanos, chicanos e estadunidenses e seu trato ficcional dentro das literaturas hispânicas. 20 1 A IMBRICAÇÃO LITERARIEDADE, IMAGEM E IMAGINÁRIOS Neste capítulo de abertura, apresento boa parte da fundamentação teórica norteadora do presente trabalho de doutorado. Aqui, irei da importância da noção formalista de literariedade junto à questão da imagem na literatura até uma abordagem algo mais aprofundada do que chamo grande amálgama IMAGEM e daí para a relação direta desse todo com imaginários que podem advir da leitura de obras literárias. No tangente de forma mais estrita ao imaginário, apresentarei no terceiro tópico deste primeiro segmento meu entendimento de que o imaginário está vinculado ao âmbito das faculdades humanas e de que sua tomada indômita desde a literatura dependerá, também, das instâncias de cognição e receptivas do leitor. Entendo, dessa forma, que este primeiro capítulo é base para o desenvolvimento das análises textuais dos capítulos subsequentes. Ao número 1, então. 1.1 Da noção de literariedade A abordagem teórica em que baseio os argumentos sobre literariedade na presente pesquisa toma em consideração o teor de inovação usado nas narrativas das duas obras em relevo. Dos dois livros ora analisados, há que se destacar a observação de que ambos são romances que compõem seu corpo, seu constructo, a partir de uma operação narrativa a qual poderíamos denominar como um “entre-mesclar” de contos. Isto implica dizer que fazem de contos os capítulos que enredam sua trama maior, ao mesmo passo em que também fazem de capítulos contos os quais podem ser lidos e compreendidos isoladamente. É certo que tal constatação, porém, não tem sua explicação esgotada de modo tão simplista, necessitando, para tanto, maior atenção, um desmembramento mais analítico. Sem desejar esgotar abruptamente debate tão promissor, informo que essa necessária discussão encontrará hora e vez mais adiante, nos capítulos em que se desenvolve de modo mais específico a análise sobre o corpus escolhido. Por ora, a intenção é abrir caminho para justificar o entorno teórico sobre o qual se trabalha a literatura, já que a relação proposta se estabelece iniciando-se de preceitos literários em destaque, para, só depois, apontar e demonstrar seu vínculo possível para com a imagem e a formação e perpetuação de imaginários, respeitando-se os limites do recorte proposto a partir da leitura interpretativa dos romances em tela. Isto posto, partindo-se do reconhecimento de arrojo na estética e na construção do corpus escolhido, onde ganham importância para o todo das obras as correspondências fundo 21 e forma, forma e conteúdo, reconhece-se encontro dessas operações discursivo-narrativoliterárias com preceitos (noções) levantados e defendidos pelos formalistas russos, em suas considerações para a formação de uma nova crítica literária em princípios do século XX. O grupo que viria a ser conhecido como formalistas russos nasce em 1917 das atividades da OPOIAZ (Óbchchestvo por izutchéniu poetítcheskovo iaziká – Associação para o Estudo da Linguagem Poética), cooperando ativamente com os esforços lançados pelo Círculo Linguístico de Moscou, este fundado no inverno de 1914-1915 por estudantes da Universidade de Moscou que objetivavam promover estudos sobre poética e linguística. De um modo geral, pode-se dizer que a OPOIAZ não somente colabora, mas que também avança sobre os caminhos iniciados pelo Círculo. Contando com nomes que viriam a se destacar nos estudos da ciência da literatura (dentre os quais figuraram Boris Eikhenbaum, Viktor Chklovski, Roman Jakobson, Viktor Jirmunski, Óssip Brik, Iuri Tynianov, Boris Tomachevski, Vladimir Propp, Viktor Vinogradov, entre outros), os jovens que compuseram a OPOIAZ tinham por objeto expor sua oposição à importância dada para os muitos campos da investigação científica extraliterária, aquela que se aportava e se detinha demasiado nos ramos de ciências outras, quer fossem essas, por exemplo, a história, a sociologia ou mesmo a psicologia ou a filosofia. Durante muito tempo, tal conduta opositiva fez com que boa parte do que havia de novo nos moldes do que muitos chamaram de formalismo fosse reduzido a uma possível tentativa de isolamento total da obra literária, alienando-a por completo, a título de exemplo, da História que a produz, ou, mais ainda, dentro da qual ela se produz. No entanto, a busca formalista era antes partir da análise estrita do texto literário (de sua estética, de sua forma, sua composição estrutural) em direção a prováveis e conseguintes correspondências advindas desse ato fundamental, do que propriamente excluir da pesquisa científica o estudo histórico da linguagem e sua aplicação na literatura. Ao contrário, o “método formal” nunca deixou, inclusive, de acentuar o valor que tem para a ciência literária a relação dialética entre sincronia e diacronia, a correspondência entre os fatos da linguagem e seu acontecimento, sua correlação com o tempo histórico. No entanto, haja vista que se toca aqui no estudo das particularidades, na abordagem sobre “os traços específicos da obra literária”, conforme apontava Eikhenbaum ([1925] 1973, p. 15), entendo como relevante elencar, descrever e desmembrar alguns desses traços característicos levantados pelo formalismo russo, com atenção especial àqueles que mais bem se integram e complementam a análise dos dois romances-foco do presente trabalho. Dentre 22 tais aspectos, destaco, pela ligação que têm entre si, as noções de forma (em contraste com a noção de fundo), literariedade, estranhamento e a de construção. É justamente a noção de forma (aquela cujo significante é aproveitado pelos que buscaram nominar, e (de)limitar a amplitude dos trabalhos dos formalistas) talvez a teorização de mais difícil tangência, dada a porosidade do tema. Discutir uma suposta correlação entre forma e fundo era ponto pacífico entre os que fizeram parte da OPOIAZ, isso porque seus integrantes coincidiam no entendimento de que a noção de forma devia distanciar-se da concepção desta como uma espécie de invólucro, como uma espécie de recipiente em que se deposita o líquido (o conteúdo), um (seu) fundo. Para os formalistas, “os fatos artísticos testemunhavam que a differentia specifica da arte não se exprimia através dos elementos que constituem a obra, mas através da utilização particular que se faz deles” (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13). Dessa maneira, apontavam esses estudiosos para a compreensão de que a forma não precisava ater-se a nenhuma noção que a ‘complementasse’, não necessitando, portanto, de nenhuma correlação externa; como conseguinte, tem-se que a noção de forma adquire então, segundo os pressupostos formalistas, novo sentido, “não é mais um invólucro, mas uma integridade dinâmica” (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13). Tal dinamismo permitiria à forma seu próprio desenvolvimento, através do qual se evidenciam elementos ligados não por um sinal de adição ou igualdade, mas, antes, por um sentido, um sinal, um movimento dinâmico de correlação (não uma correlação externa e, sim, interna) e integração. Ainda que tais argumentos apenas iniciem uma discussão verdadeiramente profusa, essas linhas iniciais sobre o assunto encontrarão eco na abordagem crítica do corpus que compõem a presente pesquisa científica, principalmente no que tange ao uso particular de “elementos outros” que não capítulos na composição, na formação de dois romances em que a utilização do “elemento conto” não prejudica a assunção, a preservação da forma romance, algo que, a meu ver, reitera, torna a encontrar respaldo na questão apresentada há pouco: o dinamismo da forma. Como coloquei no princípio desse tópico, existe muito de arenoso na questão da noção de forma, e os formalistas não se furtaram em buscar aprofundar a dialética que iniciavam com suas ponderações. No entanto, sua insistência em discutir a questão da forma na obra literária era antes um intento de chamar a atenção para a estimação excessiva desta noção usada como contrapartida, contraposição ao seu fundo, seu conteúdo. Pondo-a em discussão, os formalistas propunham, antes de simplificar e elucidar o problema levantado, uma 23 ressignificação da forma, através da qual fosse possível analisar a forma compreendida como o seu próprio fundo/conteúdo e, não, como uma noção associada a este. Para tanto, havia-se que passar pela sensação da forma, quer dizer, havia-se que sentila, experimentá-la, percebê-la enquanto arte, enquanto “palavra” artística, porquanto a impossibilidade dessas ações sem a transformação, sem a transposição da palavra habitual, quotidiana em forma artística. Para além de antepor interpretação mais detida, cabe o adendo de que tal operação é passível de ser notada em ambos os romances aqui estudados, nos quais transparece, por exemplo, ademais de procedimentos outros que importarão para a pesquisa, a busca da representação de uma pretensa oralidade (talvez algo da palavra quotidiana de que falavam nossos formalistas) por intermédio dos artifícios e procedimentos que permite a obra artística, o gênero/a forma romance quando da utilização, por exemplo, do recurso da repetição persistente de termos e expressões de suposto cunho mais popular, nas falas e em diálogos de personagens que buscam caracterizar, mimetizar, metonimizar características, traços das gentes mais simples captadas do real que se quer apreendido pela lente de seus caracterizadores, em nosso caso, os escritores Carlos Fuentes e Tomás Rivera. Para buscar deixar mais claro, procuremos pensar que, no caso mencionado, a arte é necessária para o afastamento do comum, do cotidiano, o qual, retomado pelo viés da escrita literária e seus atributos e artifícios próprios, passa a ser passível de percepção, nova apreensão e, portanto, provável reinterpretação, ressignificação. Ou seja, através de procedimentos artísticos, experimentar o que antes talvez passasse sem a devida detenção (a detenção para a qual querem chamar a atenção os autores) aos olhos (e ouvidos). Com o anterior exposto, sobressai, evidencia-se que o intento formalista não era a simplificação da noção de forma, mas o afastamento do caráter abstrato que lhe era atribuído até então, muito devido ao fato da justaposição para com a também confusa utilização do termo fundo, ambos usados como “correlatos” quase que estanques. A procura era pela concretização da forma, sua aproximação com o fato literário, algo a dar conta de que seus principais esforços se direcionavam menos para a procura obsessiva de um método particular do que para, em verdade sua real intenção, o estabelecimento da tese segundo a qual nos estudos de literatura deve ser privilegiada a abordagem dos aspectos específicos da obra literária (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.15). Com isso, podemos inferir que intimamente ligada à noção de forma se encontra a noção de literariedade, aquela que trata do que há de especificidade na obra literária, ou seja, o que lhe confere contornos próprios, distintos dos de outras áreas do saber. 24 Quando Eikhenbaum ([1925] 1973, p. 4) afirma não existir uma ciência completa, pois “a ciência vive enquanto supera os erros, e não enquanto estabelece verdades”, é preciso que nos atenhamos ao fato de que esse seu artigo, de onde se extrai a frase acima, entra já como uma quase defesa das distorções a que se viram expostos os integrantes da OPOIAZ no alcance de seus pensamentos sobre a ciência literária. Assim sendo, a frase visa reafirmar que o intento desses jovens cientistas literários de 1914 a 1917 não era o estabelecimento de um método, de uma metodologia formal imutável. Em verdade, a grande preocupação dos jovens “formalistas” era para com o devido destaque às características intrínsecas de uma obra de literatura. Tal preocupação perpassa toda a trajetória formalista e é estrategicamente retomada e reiterada por Eikhenbaum, quem, nesse mesmo texto de 1925, “A teoria do ‘método formal’”, faz um apanhado das teorizações, por exemplo, de membros como V. Chklovski e V. Jirmunski para reforçar que o principal objetivo da corrente de estudos da forma na literatura não é o formalismo enquanto teoria estética, nem uma metodologia representando um sistema científico definido, mas o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das qualidades intrínsecas do material literário. Nosso único objetivo é a consciência teórica dos fatos que se destacam na arte literária enquanto tal (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p. 5). A fixação de suas posições era algo merecedor de relevo, algo que importava ser demarcado pela repetição. Dessa forma, mais adiante, o teórico reforça seu discurso ao afirmar: “Estabelecíamos e estabelecemos ainda como afirmação fundamental que o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários, distinguindo-os de qualquer outra matéria” (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p. 8). Ainda assim, apresentados e desenvolvidos seus argumentos, o referido autor não se furta de, uma vez mais, após elencados e devidamente abordados os trabalhos de seus contemporâneos, reapresentar o cerne da questão “formalista”, de novo a necessidade de detenção daquela que, apoiada à busca de um novo sentido da noção de forma, talvez fosse a marca maior, quem sabe a principal bandeira do movimento: A partir dos estudos citados, é possível darmo-nos conta de que os principais esforços dos formalistas não se conduziam para o estudo da chamada forma, nem para a construção de um método particular, mas de que eles visavam estabelecer a tese segundo a qual devemos estudar os traços específicos da arte literária (EIKHENBAUM, [1925] 1973, p. 15). No entanto, de todos os argumentos retomados, talvez o mais expressivo seja o de outro coetâneo do grupo, Roman Jakobson, pois é dele o termo que daria contornos mais 25 significativos à proposta de uma noção que melhor apresentasse, mais bem definisse um caráter específico, próprio, o das particularidades inerentes à obra literária. Extrai-se de Jakobson o célebre trecho de sua Noviéichaia rúskaia poesia – nabrossok piérvi (A novíssima poesia russa – esboço primeiro), de 1919 (obra publicada em 1921), que terminaria servindo como espécie de manifesto do movimento seu e de seus colegas: A poesia é linguagem em sua função estética. (...) Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária (...). Se o estudo da literatura quer tornar-se uma ciência, ele deve reconhecer o “processo” como seu único “herói” (JAKOBSON, [1919] 1921, pág. 11). Pode-se dizer ser o termo cunhado por Jakobson, sua literaturnost (literaturidade, literariedade), verbete responsável por condensar o que entendia o pensamento formalista como particularidades intrínsecas do texto literário, da obra artística literária, o que a diferenciava da vida quotidiana que por vezes buscava representar e, ademais, diferenciava-a também de outras áreas do saber. Para os formalistas, talvez estivesse na noção de literariedade a questão sine qua non, primordial, base sobre a qual deveria partir a ciência que se dispusesse a debruçar-se sobre os estudos de literatura. Essa literariedade integra algo das estratégias utilizadas pelos autores do corpus componentes da presente pesquisa até o encontro de suas obras com os imaginários acerca das conflituosas relações de alteridade sobre as quais se inclinam. Porém, antes de avançar em direção a seu desenvolvimento nos romances de C. Fuentes e T. Rivera, para melhor compreendê-la, é preciso desvelar algo mais, destrinchar um pouco mais essa noção de literariedade. Para tanto, une-se a esta a noção de estranhamento, a noção do efeito de estranheza, preponderante para a identificação, para a percepção da literaturnost de um texto de literatura. Para abarcar o difícil campo da noção do efeito de estranheza, é preciso tocar primeiramente em um dos pontos de partida das colocações formalistas. A saber: muito do que postulavam os jovens do Círculo de Moscou e também da OPOIAZ tinha a ver com a oposição de suas ideias diante da abordagem da imagem, da relevância da imagem para e na literatura; ou pelo menos no modo como era alçada a um status de importância máxima a percepção do uso da imagem para o entendimento da literatura, nos estudos que, até então, apresentavam-se como científicos (e preponderantes) nessa área do saber. No tocante a essa questão, vale agregar que, ao proporem novas abordagens teóricas nos estudos da poética (e aqui se mesclam e se confundem os termos poética, arte e literatura) 26 e da linguística, os formalistas, análogos historicamente ao futurismo (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.6), apresentam-se como opositores abertos da escola que, pouco a pouco passava a perder muito do espaço e predomínio conquistados até então: o simbolismo russo e a teoria que se desenvolveu ao redor desse estilo poético. A esse respeito, um dos nomes mais confrontados, mais questionados é o do teórico literário Potebnia 13, defensor da associação imediata e inequívoca entre arte, entre a poética, a literatura e o pensamento por imagens. Em “A arte como procedimento” 14 (1917), o formalista Viktor Chklovski parte do axioma simbolista “A arte é pensar por imagens” e da frase “Não existe arte e particularmente poesia sem imagem” (POTEBNIA, 1905, p.83) para criticar tal associação. Segundo Chklovski, tais “argumentos” poderiam ser reduzidos a uma espécie de equação das mais simplórias, contida em termos onde teríamos “a poesia = a imagem”. Ainda para V. Chklovski, esta “equação” [s]erviu de fundamento a toda teoria que afirma que a imagem = o símbolo, = a faculdade de a imagem tornar-se um predicado constante para sujeitos diferentes. Esta conclusão seduziu os simbolistas (...) pela afinidade com as suas ideias, e se acha na base da teoria simbolista (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 41). O que por vezes se confunde é o fato de que a crítica formalista não foi direcionada propriamente à questão da imagem na literatura, mas, sim, ao modo como tal questão era colocada pelo movimento e pela teoria simbolistas. A crítica está no resumir arte, literatura, poesia em imagem; está, até mesmo, na simplificação simbolista da relação imagem/arte/literatura. Tal simplificação exagerada depõe contra o papel da imagem em sua correlação com a literatura, simplismo que se deixa evidenciar nos apontamentos de Potebnia, já seja quando este escreve que “a imagem é muito mais simples e muito mais clara do que aquilo que ela explica” (POTEBNIA, 1905, p. 314), ou mesmo quando expõe opinião segundo a qual a imagem “deve ser para nós mais familiar do que aquilo que ela explica” (POTEBNIA, 1905, p. 291). Eis, assim, uma das bases da cisão entre o pensamento formalista e o pensamento simbolista a partir das considerações de Potebnia. Para V. Chklovski, e como uma representação do pensamento formalista, a imagem a partir das observações de Potebnia tem status totalizador no estudo e no desenvolvimento artístico da poética levados a cabo pelo 13 Aleksandr Potebnia (1835-1891). As proposições apresentadas pelo ucraniano Potebnia viriam a influenciar não somente a poesia simbolista russa, mas, também, toda a crítica e busca de teorização literária que se desenvolveu ao redor do simbolismo russo. 14 Também traduzido como “A arte como processo”, derivando das possibilidades de tradução para o termo russo priom. 27 simbolismo russo, reduzindo ao extremo a amplidão de possibilidades advindas do estudo mais atento do poema. Deste modo, partindo do poema para um todo literário, à relevância da imagem levantada por Potebnia o formalismo opõe e apresenta o estudo do som nos versos, na rima, na métrica, na poética. No entanto, ainda assim, resulta de interesse para a presente pesquisa a inversão proposta pelo formalismo, evidenciada desde Chklovski. Para o formalismo, a definição de Potebnia quanto à imagem na literatura, esse simplismo, dá-se porque se a vincula à linguagem poética, quando, em verdade, tal familiarização deveria ater-se tão somente à linguagem quotidiana. E é justo na oposição linguagem quotidiana x linguagem poética que entra em cena a inversão de papéis na relação imagem/literatura defendida pelos formalistas. Por conseguinte, é aqui que entra em jogo a questão do estranhamento de que falará Viktor Chklovski, vinculada ao novo entendimento do papel da imagem como um correlato da linguagem poética e, não, da cotidiana. O termo ostranenie (остранение) utilizado por V. Chklovski para designar o que hoje se tornou comum traduzir-se na teoria literária em língua portuguesa por “estranhamento” é um neologismo introduzido à língua russa por esse formalista. Ao longo dos anos, sua abrangência derivou desde certo desfamiliarizar, singularizar como característica própria e atinente ao processo de compreensão, apreensão da arte como um todo e, mais especificamente, da linguagem poética, da arte literária, até a identificação do que causam no receptor desse processo artístico tais efeitos de estranheza, de estranhamento (para o caso literário, por exemplo, sua estética própria, o estilo de um autor, o uso da metáfora, da metonímia ou de outras figuras de linguagem). Em suma, a complementação, derivação e evolução das proposições iniciadas por e em Chklovski passa da busca de tradução de seu neologismo a todo um processo de desdobramento da noção teórica proposta por esse formalista a partir de seu остранение. Ainda assim, em todo esse processo de desenvolvimento do termo (ou da[s] terminologia[s] que surge[m] a partir dele), são em certa medida análogas a desautomatização, a desfamiliarização da língua quotidiana buscada desde o trabalho com a arte, a linguagem poética, a arte literária, singular. É nesse ponto-chave que se chocam a função da imagem para Potebnia e a função da imagem para os formalistas. Enquanto para aquele a imagem, apesar de exercer papel fundamental na arte poética (na literatura), é mais familiar do que aquilo que tem por função explicar, para estes (e em especial quando tocamos no texto de Viktor Chklovski) a imagem tem por objetivo buscar criar uma percepção singular do objeto, oferecendo-nos uma visão, a visão desse objeto e, não, seu reconhecimento. 28 Seguindo os termos de Chklovski, entende-se que está na transposição da percepção usual que comumente se tem de um objeto para uma esfera que altere tal percepção, deslocando-a do anterior lugar comum, anterior lugar de automatismo em que figurava para o receptor; está em tal transposição um dos atributos base da arte, um de seus procedimentos, o procedimento de singularização, “criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54). É interessante notar o caráter de permanência da descrição do procedimento de singularização, mesmo com as variantes e desdobramentos apresentados ao longo dos anos que sucederam os traços inovadores das teorizações formalistas. No caso particular da busca por expor tal procedimento literário, há que se destacar o trabalho com bases até mesmo aristotélicas. Chklovski encontra em Aristóteles campo para diálogo com o clássico (pese a toda revolução formalista requerida a partir de então no uso da ciência da literatura), certo fundamento para seus argumentos. Para esse formalista: “Segundo Aristóteles, a língua poética deve ter um caráter estranho, surpreendente” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54 – grifo meu). Aqui, então, talvez esteja a base para a formulação que visava destacar a existência do procedimento literário de estranheza, o surpreendente na literatura, o que lhe confere boa parte de sua literariedade, de seus traços característicos, intrínsecos, próprios, diferenciadores, particulares, singulares. Não se identificasse a existência desse(s) efeito(s) de estranheza e talvez não poderíamos chegar à literaturnost de Jakobson: dissecando-se a literaturnost, chega-se aos efeitos de estranheza; identificando-se estes, podemos falar da presença daquela como característica indissociável da obra literária. Ora, por certo é questionável por meios teóricos, pela observação atenta dos mais variados corpus se toda obra literária de fato tem evidente, se toda obra literária deve carregar em si, deve trazer em sua interpretação, ou seja, se se extrai de sua leitura a observação explícita de literariedade, de efeitos de estranheza tal como anotados a partir dos moldes formalistas. Contudo, no que toca a esta pesquisa, a abordagem literária tomando como marco teórico preceitos formalistas resulta de estudo reiterado dos romances sobre os quais me atenho para a composição da presente tese. Com relação à noção de forma, pude apresentar nos parágrafos referidos a ela sua correspondência, seu diálogo e relevância para com as obras em relevo nesta investigação. Já no tocante às noções de literariedade e de estranhamento, antes de serem apresentados dados mais específicos nos capítulos propriamente destinados para a análise textual dos corpora, pode-se aqui adiantar algo da evidência dessas noções nas obras ora estudadas e de sua importância no alcance dos objetivos apresentados para o desenvolvimento desta tese. 29 Em La frontera de cristal e ...y no se lo tragó la tierra, a eleição de se escreverem ambos os romances em contos, apesar de não se constituir um feito inédito 15, representa “estratégia” literária carregada de arrojo em seu intento estético e de construção narrativa, ato que confere caráter singular ao que busca representar, apreender do real vivido, incitando, “convidando” o leitor/receptor a uma abordagem minimamente distinta à que costuma dedicar à leitura/recepção e percepção e interpretação da forma/gênero romance. Mas, a literaturnost nas referidas obras de C. Fuentes e T. Rivera não se limita apenas ao efeito de estranheza estético acima descrito. Em La frontera de cristal, de modo resumido por ora, pode-se dizer que, além dos elementos até aqui já levemente destacados, faz parte ainda de seu processo de desautomatização do quotidiano o orquestrar mescla entre certo tom mais poético da linguagem (porquanto mais literário?) até seu caráter mais cru (porquanto mais popular?) ou histórico-ensaístico (porquanto mais elaborado?) no intuito de mostra das imagens que deseja passar, perpassar ou, inclusive, repassar. É importante lembrar que tal jogo de e entre linguagens é também enfocado pelo formalista Chklovski em suas explanações sobre os caminhos, sobre as estratégias literárias utilizadas para e na obtenção dos efeitos de estranheza, aqueles que conferirão a literariedade de que fala outro dos formalistas, Jakobson. Mas, se em Fuentes o destaque de estranhamentos está em parte por conta do que poderíamos chamar de profusão da palavra literária, sua oposição estaria na elipse dos contos curtos, e das estampas que os antecedem, em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera. Estará também nessas mesmas estampas “introdutórias”, quase epígrafes, o logro de efeito de estranheza da obra, porque sugerem, por serem aparentes introduções, coesão de enredo com os contos que precedem; algo, todavia, só alcançado com a chegada ao último conto, responsável pela circularidade romanesca do narrado. Enquanto isso, no La frontera de Fuentes (1995), este encontro se dá de maneira semelhante no último conto; entretanto, apesar da independência dos textos que o compõem, os nexos nos são apresentados, pouco a pouco, aqui e ali, em um ou outro conto componente do todo capitular da obra, pela repetição explícita de personagens de contos-capítulos anteriores, inseridos em contos-capítulos posteriores. Outra aproximação na literariedade de ambas as obras é o “apego” à oralidade, a busca por sua representação, imitação e emulação, o que lhes confere certo caráter popular, inclinando-se sobre o imaginário fônico, fonético (a imagem não é muda, crítica iminente na 15 Encontramos exemplos de estruturação semelhante em modelos dos mais distintos entre si, dentre os quais podem ser citados mesmo obras distantes em tempo e espaço, tais como o Decameron (1351/1353), do italiano Bocaccio (1313-1375), e Noite na Taverna (1855), do brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852). 30 leitura dos formalistas russos), ou seja, sugerindo-nos (ou mesmo enlevando-nos a crer, dependendo do grau de conhecimento, preparo e aceitação do leitor-receptor) sentenças, pensamentos, questionamentos tais quais: fala assim o mexicano pueblerino, o mexicano das camadas menos privilegiadas, mais populares? Fala assim todo mexicano? Seguro é que tais sentenças simplistas nos remetem a um pensamento, a um receptor estrangeiro. E é interessante lembrar que os formalistas também tocavam nessa questão linguístico-literária, na oposição e, porque não dizer, na complementação e intercâmbio entre a linguagem cotidiana e a linguagem poética, literária. Quando cita Aristóteles para tratar do caráter de estranho, de surpreendente que deve ter a língua literária, Chklovski acrescenta o adendo de que, em prática, essa língua é frequentemente uma língua estrangeira, e chega a citar o velho búlgaro como base do russo literário de sua época, tocando mais adiante na influência desta mesma linguagem literária russa nas massas populares, fato que trouxe ao seu nível muitos elementos dos dialetos dos quais se originou; e, ressoa interessante seu chamar a atenção para a preferência por dialetos e barbarismos, em movimento oposto ao exposto anteriormente (porém, a meu ver, em verdade, um movimento complementário), na literatura russa de seu tempo (Cf. CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54-5). Ainda que, ao fim e ao cabo, a defesa formalista parta da premissa de diferenciação entre língua poética (literária) e língua prosaica (cotidiana), esta em detrimento daquela, parece-me importante realçar a observação da influência e intercâmbio próprio a ambas as linguagens relatadas, relação igualmente extraída da leitura do corpus componentes da presente tese. Em uma correlação ainda mais expressa, é pensar também a possibilidade do trato literário de imagens trabalhadas desde o real apreendido podendo agir, atuar (por meio do receptor e da ação da literariedade e poder de conquista que a obra terá nesse mesmo leitor e, inclusive, sobre suas instâncias cognitivas) sobre e para a reinserção desses mesmos imaginários no real vivido, conferindo-lhe novos contornos ou não, (re)criando-lhes ou não, dependendo de todos os fatores anteriores o caráter de perpetuação, permanência, alcance e amplidão de tais imaginários. Tal caráter de permanência próprio de determinados imaginários 16, tocado e perpetrado pela obra de literatura, em princípio não pode ser mensurado; no entanto, a possibilidade de que se possa falar de uma relação entre imaginários e obra literária passa não somente pela identificação da presença, da representação e repetição destes em exemplares literários, mas, também, e principalmente, pelo modo como eles serão tratados, 16 Trabalharei uma conceituação mais detida sobre imaginários no tópico 1.3 do presente capítulo. 31 desenvolvidos, representados nas obras que acabam por imiscuírem-se (e aqui não se fala em intencionalidade) em seu universo “de ação”. Para tanto, podem ser vitais (como é o caso das mostras em que se baseia a presente tese) os estranhamentos que ajudam a compor sua literariedade, a qual – ainda que não uma regra fixa para a gama de abordagens que nos têm permitido até hoje a literatura e os estudos a partir dela advindos – se apresenta com relevância para a obtenção das ações ora propostas neste trabalho científico. Resulta que importa na correlação dessa literariedade para com a imagem e imaginários muito daquilo a que se atinham os formalistas russos; ou seja, as especificidades do literário na obra de literatura, sua estética, sua forma, sua composição estrutural, seu labor de construção. Assim, sem que se ignorem (ledo engano repetido nas críticas dirigidas ao formalismo) seus desdobramentos, as vias com as quais vai se conectando, importa também a formação do constructo literário da obra. É aqui que tornamos aos formalistas, encerrando momentaneamente a contribuição de suas teorizações (no tocante a este tópico) com uma leitura acerca da noção de construção. É Yuri Tynianov quem toca na questão acima em seu artigo “A noção de construção”, de 1923. O formalista baseia suas observações em duas espécies de dificuldades às quais estaria ligado o estudo teórico da arte literária: as primeiras, presas a seu material (a palavra, o vocábulo); as seguintes, ligadas ao princípio de construção de tal arte. Para Tynianov, a noção de material está intimamente vinculada à qualidade heterogênea, polissêmica que carrega em si a palavra, e o uno que é o vocábulo (enquanto significante) importará ao todo literário justamente em sua variabilidade, nas suas múltiplas possibilidades de significação (Cf. TYNIANOV, [1923] 1973, p. 99-100). No tangente de modo mais próprio ao princípio de construção, ou formação (como também o denomina o autor), Y. Tinyanov chama a atenção para o equívoco de abordagem deste princípio como um evento estático, sem dinamismo. Volta à tona aqui, a questão do dinamismo da forma (já brevemente abordada neste mesmo tópico), a qual faz com que as noções de construção e de formação se aproximem e se equivalham. Em relação à forma e seu caráter dinâmico, Tinyanov aponta que a unidade de uma obra de literatura é, em verdade, uma integridade dinâmica, com seu próprio desenvolvimento. Segundo o formalista, esse mesmo dinamismo a que se refere está também no princípio de construção. Nele, percebe-se a forma dinâmica ocorrendo na promoção de fatores em detrimento de outros; a deformação como característica marcante do processo de interação da forma, em que determinado fator promovido deforma os que a ele são subordinados. 32 Assim, para Tinyanov, nota-se a forma através da evolução (dinâmica, desatrelada da dimensão de tempo) do vínculo existente entre o fator subordinante construtivo e os fatores subordinados. A partir do exposto por Y. Tynianov, podemos apontar como condição sine qua non para a sobrevivência do fato artístico a interação enquanto conflito, desde a sensação de submissão, de deformação de fatores outros pelo fator construtivo. Se deixar de existir a sensação de interação dos fatores (com realce para a presença de dois elementos: subordinante e subordinado), o fato artístico se desvanece, a arte passa a ser automatismo, não se tem a experimentação da arte, não a experimentamos mais (Cf. TYNIANOV, [1923] 1973, p. 1012-3). Para trazer o que expõe sobre a arte à esfera mais estrita da arte literária, Tynianov recorre, por fim, ao metro da poesia. Grosso modo, a título de resumo, tem-se que o que é inovador em determinado momento na arte literária deixa-o de ser a partir do momento em que sua função subordinante, deformante, desaparece pela associação de fatores que lhe confiram somente a repetição, mera cópia com capa de “novo”. Não basta com que se introduza um fator qualquer, há que se buscar uma nova interação, conflituosa entre si, entre os fatores que faz interagir. Dando contornos finais ao que busca explicar, Tynianov nos diz, ainda sobre o metro: “Se colocamos esse metro em contato com alguns fatores novos, nós o renovamos, despertamos nele novas possibilidades construtivas” (TYNIANOV, [1923] 1973, p. 103). Tal exemplo serve de alusão e ponte ao que de fato me interessa no tangente à noção ora trabalhada: o princípio de construção na arte literária em prosa; aqui, no material selecionado de Carlos Fuentes e Tomás Rivera. Em La frontera de cristal e ...y no se lo tragó la tierra, a forma romance prevalece, mas não se apresenta como uma forma sacralizada, imutável. Ela, a forma romance, é o elemento subordinante, e a obviedade, a automatização estaria em pensar o que nos salta à vista: seus elementos subordinados são os capítulos que a compõem, o que, em parte, não é mentira. No entanto, o fato da dúvida (pro)posta na (in)certa dependência de seus (nas obras citadas) “capítulos” dá a perceber uma interação conflituosa entre fatores. O fator promovido são dois romances entrecortados, fragmentados, porque buscam a representação artísticoliterária de relações fragmentadas, de identidades fragmentadas em um espaço geográfico fragmentário por excelência: (um)a fronteira. A partir da fragmentação sobre a qual debruçam sua representação, o fator promovido, ou seja, em nosso caso, dois romances entrecortados, fragmentados “necessitam” deformar seu elemento subordinado mais evidente, o capítulo. E o fazem pela dúvida inarmônica, se capítulos que são contos ou contos que são capítulos. Deforma-se a “natureza”, o sentido 33 “mais natural” do capítulo: nestas duas obras eleitas, de Fuentes e Rivera, ele, o capítulo, não mais depende de estar junto ao todo para obtenção de seu sentido, de seu entendimento mais amplo; sozinho, tem seu sentido próprio, como um conto, pois é um conto; mas, ao carregar no seu narrar elementos do todo, a este se pode agregar, construindo algo maior e um tanto diferente: um romance que tem como fator construtivo principal a deformação do elemento subordinativo capítulo. No entanto, subordinado ao fator preponderante também está a forma conto, cuja independência se vê ao mesmo passo amarrada, costurada a uma narrativa maior, a qual, portanto, a deforma, interagindo e, porque não dizer, deformando a independência que dele se espera, ora deformado de seu isolamento também “mais natural”, o entendimento na concisão de seu alcance, a concisão como caractere básico a distanciá-lo da forma romance, distância rearranjada, desarrumada, quase não mais existente, já que foi deformada na proposta estética colocada em prática, levada a cabo na construção evidenciada em La frontera e ...y no se lo tragó. Ainda importará à noção de construção o que expõe Tynianov sobre função construtiva, ao dissertar sobre evolução literária em artigo seu de 1927 (Cf. TYNIANOV, [1927] 1973, p. 105-18). Outro trabalho que viria a auxiliar o exposto sobre o princípio de construção é a seleção reunida “Sobre a teoria da prosa”, na qual B. Eikhenbaum (1925) também faz exposição sobre limites entre os gêneros literários (especialmente sobre o romance, a novela e o conto). No entanto, entendo aqui que, no tocante à questão de construção na literatura, as primeiras considerações de Tynianov sobre o assunto bastam, nesse momento da tese, como contribuição para o caminho que nos leve ao passo a passo da relação literária para com imaginários. E no tangente ao texto de Eikhenbaum, por ora importa dizer que ele nos serve como reforço a um arcabouço o qual será mais necessário nos capítulos que tratem da análise específica dos romances em evidência. Tudo até aqui exposto visou fundamentar minha observação de relevância da noção de literariedade para a vinculação que estabelece, nas obras em tela, junto à questão de imagem e imaginários em ação com e a partir do literário. Os apontamentos do formalismo russo, depois de quase execrados por seus detratores, são retomados e desenvolvidos nas “Teses de 1929”, do Círculo de Praga. A partir de então, “esquecidos” e retomados costumeiramente, sua influência é notória, reverberam seus apanhados iniciais na crítica literária, na teoria literária ulterior, importando também para o estudo da historiografia literária, transcendendo, em muito, limites territoriais, posto que seus trabalhos não se limitassem a tratar tão-somente da literatura de seu país. 34 A dialética, acima do tom de manifesto próprio da tenra idade com que muitos de seus representantes começaram a escrever criticamente, é algo que perpassa o formalismo. Há em teóricos que ainda emprestarão seu conhecimento ao desenvolvimento do presente estudo científico ecos e desenrolar do nascido na fonte crítica do formalismo russo. Começar, pois, esta tese com o nascedouro do aporte teórico que me importará resulta do entendimento de encontro da literariedade segundo os preceitos formalistas para com a literatura enquanto arte de representação em La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, e ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera. 1.2 Imagem e(m) literatura i.ma.gem 1.Representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou de objeto. 2.Representação plástica de Cristo, da Virgem, dum santo, etc. 3.Estampa que representa assunto ou motivo religioso. 4.Reprodução de pessoa ou de objeto numa superfície refletora. 5.Representação mental dum objeto, impressão, etc.; lembrança, recordação. 6.Representação cinematográfica ou televisionada, de pessoa, animal, objeto, cena, etc. 7. Metáfora. [Pl.: –gens.] § i.ma.gé.ti.co adj. (FERREIRA, 2004, s/p.)17 A citação acima nos serve de amparo e introdução para o trato da conceituação em que me pautarei de agora em diante. A escolha das possibilidades apresentadas pelo Dicionário Aurélio de língua portuguesa (2004) tem a ver com a repetição em outros dicionários, apesar de acréscimos e pequenas variações, da maior parte das definições nele apresentadas para o vocábulo “imagem”. Ainda que todas estejam de certo modo interligadas no âmbito de desenvolvimento da presente tese, as significações que mais bem servirão de apoio para os argumentos ora apresentados são: a de representação mental (número 5), por sua correspondência para com o que entendo como caminho até a irrupção de um imaginário (argumentação melhor trabalhada no próximo segmento, tópico 1.3); a de metáfora (número 7), pelo entendimento de que é o principal recurso de imagem trazido à baila por Carlos Fuentes em La frontera de cristal; e a de representação fotográfica de pessoa ou objeto (número 1), por sua aproximação para com a linguagem de instantâneos fotográficos que surgem do laconismo, da economia linguístico-narrativa de ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera. 17 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Eletrônico versão 5.12 (2004). 35 Em consonância com o acima exposto e com observações do norte-americano historiador da arte William John Thomas Mitchel (1986), a professora, pesquisadora e antropóloga da Universidade de São Paulo (USP), Sylvia Caiuby Novaes, descreve várias possibilidades e/ou tipos de abordagem mais usuais, mais “comuns” para as imagens. Seriam elas: “gráficas (como as pinturas, as estátuas e os desenhos); óticas (como os reflexos no espelho e as projeções); perceptivas (como as aparências); mentais (como os sonhos, as memórias, as ideias); verbais (como as metáforas e as descrições)” (NOVAES, 2008, p. 455). Reitero que, tanto o recorte de acepções lexicográficas quanto o pequeno apanhado de conceituações teóricas têm por objetivo realçar como é constante e por isso mesmo possível a correlação das partes “imagem”, como vocábulo, como termo, a um todo maior, um grande amálgama chamado IMAGEM. Dessa forma, espero assim explicar que, apesar da existência de um enfoque no presente trabalho, grande parte das abordagens sobre imagem até aqui suscitadas serão retomadas hora e vez durante o desenvolvimento de materialização deste estudo, pois essas imagens se fazem presentes no corpus e muito porque, como poderemos verificar, nem sempre são ou serão estanques entre si. Assim sendo, repito, ainda, que as atenções principais do presente tópico estão voltadas para a imagem como fruto, como resultado de um processo mental, muito próximo da percepção, onde envolvidos estão os atores de tal processo: o autor – transmissor e “projetor”, incitador, provocador de imagens; e o leitor – ora também agente participativo e criador nessa demanda, ora receptor à mercê da voz ou de vozes narrativas criadas por seu (des)orientador, o escritor do texto literário. É sabido, porém, que a imagem, pensada como fruto de uma demanda, de todo um processo cerebral se apresenta como um terreno arenoso, a ser o mais das vezes evitado, ou, ainda, evitado de ser aprofundado, mesmo em abordagens teóricas de nomes já consagrados. Tal é o caso dos autores em que ancoro meus argumentos neste apartado. Porém, ainda que apenas resvalando na (ou mesmo desviando-se da) questão da imagem e, por conseguinte, do imaginário, como produto de todo um trabalho mental, acrescento que sem o diálogo com o raciocínio teórico desses mesmos autores, pouco elucidaríamos das teias em que se enovelam as imagens que saltam das linhas dos romances nos quais se calca o presente estudo. Um destes nomes é o de Gilbert Durand (1921-2012), filósofo francês, especialista do imaginário, referência nos estudos sobre este tema, fundador (1966) do Centro de Pesquisa do Imaginário e do CRI-GRECO 56 (C.N.R.S. 1982), que reúne 43 centros de pesquisa sobre o imaginário no mundo. De toda sua produção, a obra deste importante autor com a qual aqui dialogo é o seu O imaginário ([1994] 2011). Para além da relevância de um ensaio desse peso 36 a quem se debruce sobre o tema do imaginário, o recorte que mais bem se aproxima da reflexão a que me proponho no presente segmento tem a ver com o momento em que as linhas durandianas se inclinam a falar sobre uma espécie de base filosófica triádica da qual aparentemente não se pode furtar aquele que investigue sobre o conceito de imagem (e sua consequente ressonância na conceituação acerca do imaginário). Base da filosofia clássica, a tríade sugerida é a que traz os nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles. Para Gilbert Durand, apesar da certeza de termos nos dos últimos integrantes da tríade supracitada herdeiros do pensamento socrático, será Aristóteles (seguidor de Platão, portanto, o terceiro em ordem cronológica) um dos nomes que, de fato, fundamentam o método da verdade. Para Durand, tal procedimento é a base de sustentação e fortalecimento da civilização ocidental, principalmente após o que o filósofo francês chama de “batismo cristão” desse mesmo método da verdade, quando da redescoberta e retomada dos escritos aristotélicos, nos séculos XII ao XIV. Antes disso, as obras de Aristóteles estiveram praticamente desaparecidas por treze longos séculos, durante os quais a história do Ocidente testemunhou desde a queda da civilização grega e do Império de Alexandre, O Grande, até o principiar e o fim do Império Romano, o surgimento do Cristianismo, os cismas bizantino e romano, o nascer do Islamismo e das Cruzadas etc. (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 11-2). Foi Averroes de Córdoba (1126-1198), um sábio muçulmano de uma Espanha já há muito conquistada pelos mouros, quem redescobriu e traduziu para o árabe os escritos de Aristóteles. Tais traduções foram então lidas e relidas pelos filósofos e teólogos cristãos, dentre os quais estava a figura chave de São Tomás de Aquino, quem, obstinado por conciliar o racionalismo do método aristotélico às verdades da fé, acaba por estabelecer o sistema que se torna a filosofia oficial da Igreja Romana e a doutrina das universidades sob a égide da Igreja, a escolástica, nos séculos XIII e XIV (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 12). O método da verdade é baseado em uma lógica binária, na qual somente dois valores estão em jogo: “um falso e um verdadeiro” (DURAND, [1994] 2011, p. 9 – grifo do autor). A este pensamento binário o denominamos dialética: raciocínio, método, estilo e gênero eleito pela tríade supracitada um meio para difusão de seus preceitos filosóficos. Porém, conforme destacado anteriormente, vale reafirmar ser em Aristóteles que tal método viria a encontrar sua vertente mais fechada, menos aberta ao que foge da lógica do raciocínio. E é nesse aspecto em especial que se encontram a austeridade do pensamento aristotélico, de sua prática do raciocínio da verdade e a paradoxal relação da cristandade para com a imagem (aqui, uma vez mais, uma das partes do amálgama IMAGEM). Assim, entre o destruir e/ou o venerar, pode-se dizer que a linha de raciocínio aristotélica para a imagem “coincide” de modo 37 oportuno com um iconoclasmo religioso até certo ponto curiosamente conflitante, contraditório; mas, existente, sim, dentro da filosofia e da afirmação do cristianismo. Conforme afirma Durand ([1994] 2011: p. 9): “A proibição de criar qualquer imagem (êidolon) como um substituto para o divino encontra-se impressa no segundo mandamento da lei de Moisés”. Durante séculos, e principalmente a partir de Aristóteles (século IV a.C.), contaram a experiência dos fatos, as certezas do raciocínio lógico como única via de acesso à verdade. É conveniente, pois, a união do método binário da verdade a esse primeiro momento cristão de iconoclasmo. O binarismo da dialética, socrática, herdada por Platão e de tom mais agudo em Aristóteles, propõe para questões que visam ao alcance da Verdade uma solução absolutamente verdadeira e outra completamente falsa, excluindo de seu raciocínio, de suas possibilidades um terceiro argumento. Nesse tocante, se consideramos a imagem como algo incerto e ambíguo, objeto de contemplação, mais do que de apreensão pura e simples, mais do que entendimento, se certa ou errada, de descrição, como já pude apontar, quase inesgotável, porque se desenrola e se entretece a muitas mais definições, veremos quão impossível é obter desde sua percepção, sua “visão” apenas uma proposta de resposta, “verdadeiro” ou “falso”. Ainda sobre a questão da imagem em Aristóteles, Gilbert Durand diz que ela, a imagem, “propõe uma ‘realidade velada’ enquanto a lógica aristotélica exige ‘claridade e diferença’” (DURAND, [1994] 2011, p. 10, grifos do autor). Herdados principalmente a partir de Aristóteles, tendo a razão como seu único meio de acesso, ecos do método da verdade reverberariam e serviriam de base, ainda, para o avanço, para a caminhada rumo à supremacia, à “vitória” do pensamento científico sobre tudo aquilo que não pudesse estar minimamente próximo de ser, pelo menos, uma arte digna de ser considerada demonstrativa; e, preso a esta negativa, tal era o caso da imagem. Passando por cima, por exemplo, do que era a poética para Aristóteles, mas ainda ancorada em seu raciocínio lógico, racionalista e binário, essa continuidade de desprezo de valor do imagético poderá ser vista tanto em Galileu como em Descartes, se nos atemos ao século XVII; e tanto em Hume como em Newton, em um século XVIII no qual a imagem (e, por conseguinte, seu “produto”, ou seu igual, o imaginário) se afasta cada vez mais do então preponderante apego empirista ao “fato” (já o seja considerado histórico ou fruto da observação e da experiência) para aproximar-se mais e mais (ou relegada ser ao plano) do delírio, do sonho, do irracional (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 12-3-4). Ainda para Durand, o positivismo, as filosofias da História, o cientificismo – “doutrina que só reconhece a verdade comprovada por métodos científicos” – e o historicismo – 38 “doutrina que só reconhece as causas reais expressas de forma concreta por um evento histórico” (DURAND, [1994] 2011, p. 14) – dão o tom final do triunfo do fato, do factual sobre o imaginário no ocidente. E é tal afã por uma espécie de conhecimento mais “concreto” (algo visto desde o início da agudez contida na busca de supremacia desse racionalismo lógico) que possibilitará o impulso do progresso técnico e o domínio do poder material do ocidente sobre as outras civilizações não-ocidentais, as quais nunca separaram as informações (digamos, “as verdades”) fornecidas pela imagem daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Os ideogramas (...) dos hieróglifos egípcios ou os caracteres chineses, por exemplo, misturam com eficácia os signos das imagens e as sintaxes abstratas (DURAND, [1994] 2011, p. 6 – grifo do autor). O que nos propõe Gilbert Durand é uma relação entre “verdades”, no plural, e imagem, no que toca às civilizações não-ocidentais, muitas das quais politeístas; e, em contrapartida, a busca de estabelecimento de uma única verdade, “A Verdade”, “A Verdade Ocidental” e sua correlação com o apego à Razão e à lógica em detrimento do “vaguear”, do “bruxulear” da imagem, do imaginário. Durand também se exemplifica citando a América pré-colombiana, a África negra e a Polinésia como berços de “antigas e importantes civilizações” (DURAND, [1994] 2011, p.6), mas a estas parece, em verdade, diminuir sua relevância quando, a respeito delas, afirma que “mesmo possuindo uma linguagem e um sistema rico em objetos simbólicos, jamais utilizaram uma escrita” (DURAND, [1994] 2011, p. 6), informação hoje questionável, se levamos em conta outros preciosos estudos contemporâneos acerca do assunto18. Ainda assim, o autor francês acende uma chama sobre os diversos momentos de “encontro”, de choque da civilização ocidental para com as não ocidentais19. Na maior parte das vezes, vitoriosa, impondo-se pela força, inclusive, de suas doutrinas, importa dizer que muito do vigor impositivo dessa civilização ocidental vinha da resultante de todo um processo 18 Remeto o leitor para obras como La colonización de lo imaginario (1988), de Serge Gruzinski ou, ainda, La palabra de los aztecas (1993), de Patrick Johansson Kéraudren. 19 Remeto o leitor uma vez mais a Serge Gruzinski em La colonización de lo imaginario (1988) e A guerra das imagens ([1990] 2006). Informo ao leitor que não é o foco de meu trabalho a abordagem dessa guerra de imagens desde o choque do invasor ocidental com o indígena autóctone. A atenção maior à imagem desde uma ótica mais ocidental, desde um entendimento mais ocidentalizado da questão da imagem se dá devido a sua aproximação para com a estética de imagem observada no corpus em questão. Talvez em T. Rivera as imagens sejam algo mais mescladas, mais carregadas de uma mescla plural, um teor mais pluralizado de imagem. Mas, ainda assim, pelo não aprofundamento ao trato indígena, a raízes da cultura indígena e sua forte influência na cultura hispano-americana (em Fuentes o indígena quase sempre serve de remissão preconceituosa, menosprezada na fala de narrador e personagens), entendo que a leitura das imagens que “saltam”, ululam das obras se encaixa mais a uma visão desde uma teorização ocidental (nem sempre universalista). 39 de iconoclasmo 20 necessário à obtenção da supremacia do pensamento lógico, racionalista, algo que curiosamente fará parte de um imaginário a ser imposto ao mundo como característica, marca, na verdade capa, do homem ocidental: o homem “branco e civilizado”, diante de “culturas ‘pré-lógicas’, ‘primitivas’ ou ‘arcaicas’” (DURAND, [1994] 2011, p. 15 – grifo do autor), ainda reféns da limitação e do engano nas e das imagens. No entanto, é sabido que essa necessidade iconoclasta que atravessa a história do racionalismo ocidental não se dá sem resistências em seu próprio cerne, tampouco contradições ou paradoxos. Bem o representam os cismas da cristandade, a Reforma protestante e a resposta católica romana da Contrarreforma. Mas, também o representam séculos anteriores de “querelas”, “disputas” em que toda uma imaginária sacra cristã esteve entre a remissão icônica própria do culto aos santos21 (perpetuada, tal como o que o autor chama de mariolatria – o culto à Virgem –, por centenas e centenas de anos pela arte bizantina, a arte cristã do oriente) e os rastros deixados pela antiga tradição iconoclasta originária do monoteísmo judeu. Contudo, tal embate do imagético ocidental foi ainda mais além. Este passou pelo esplendor da iconodulie22 gótica dos séculos XIII e XIV, fomentada por e com seu êxito maior na ordem de São Francisco de Assis, atravessando também o tempo das catedrais e toda sua figurativa de vitrais, estátuas, iluminuras etc. Encontrou, ainda, nos monges franciscanos os criadores das mais variadas transposições da religiosidade, dos mistérios da fé para imagens (já fossem representações, encenações teatrais dos “Mistérios, da Via Crucis do Cristo, já fosse na divulgação das bíblias de mensagem moralizante, amplamente ilustradas). Mas, a imagem da santidade foi também, no posteriori franciscano e muito através de seu sucessor, São Boaventura, caminho, vestigium de “Toda a Bondade do Criador” (DURAND, [1994] 2011, p. 19). E, assim, temos nesse momento que é pela imagem (imago) que a alma humana melhor representa as virtudes da santidade (algo que se assemelha ao caminho proposto por Platão para que se chegue até A Verdade). Alcança-se, enfim, a similitudo, a sintetização de que Deus em sua infinita benevolência pode dar, pode conceder à 20 Ação de iconoclastia, de iconoclastas (do grego eikón, onos como elemento compositivo para “imagem”, mais Klastés, como “aquele que quebra”) (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 18). 21 Para Durand, uma das primeiras reabilitações das imagens no ocidente cristão está no ícone protótipo da imagem de Deus encarnada na pessoa de seu filho, Jesus (o que nos remete, ainda, à representatividade da imagem do santo sudário para a cristandade católica). A essa imagem “concreta” da santidade de Deus no Cristo, somar-se-ia a adoração das imagens de todas as pessoas santas – aquelas que, por conta de sua trajetória, tivessem de certo modo se assemelhado a Deus –, da mãe do Cristo (théotokos, “a mãe de Deus”), seguida pelas de João Batista, dos apóstolos e, por fim, de todos os santos (Cf. DURAND, [1994] 2011, p.17). 22 “Icono” (do grego eikón, onos como elemento compositivo para “imagem”), mais “dulia” (do grego douleía: culto prestado aos santos e aos anjos) (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 18). 40 alma santa uma “semelhança” a sua própria imagem, sendo assim o vestígio, a imagem propriamente dita e a similitude os graus das três representações imaginárias (ou seja, por imagem) a conduzirem a alma criada de volta ao seu Criador (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 20). Posteriormente, esse mesmo embate do imagético ocidental se materializa na resposta da Reforma Protestante, um contraponto ao ápice da imaginária sacra de então 23. Neste aspecto, são interessantes as observações de Durand sobre mais algumas contradições no seio do iconoclasmo cristão. Para o autor, embora a Reforma iniciada em Lutero combata (com a consequente destruição de estátuas e quadros) o que poderíamos chamar de estética da imagem na Igreja e sua agudeza sacrílega contida no culto aos santos, há, sim, uma aproximação à imagem na resposta protestante ao “exagero” da imaginária sacra de Bizâncio e Roma. E tal aproximação se dá tanto por imagens literárias (sem apoiar-se no icônico, mas como via de recondução à santidade de seu Deus Único, tal é o caso da linguagem poética das Escrituras em livros como o “Cântico dos Cânticos”, mantido na Bíblia protestante) como pela linguagem musical (onde entra, por exemplo – ainda que livre das imagens visuais dos quadros, estátuas e santos católicos –, todo o “imaginário” de incrível profundidade das cantatas e “Paixões” daquele que talvez tenha sido o maior compositor protestante, JohannSebastian Bach). Fato é que, entremeadas e quem sabe até como soluções exteriores a tanta “disputa” da questão da imagem pelo sagrado, a arte e a literatura pouco a pouco surgem como uma espécie de possibilidade de independência da imagem diante das querelas religiosas que a envolviam (e revolviam). A partir daí pode ser citado um nome como o de Shakespeare e sua imaginária teatral. Mas também entram em cena respostas a novas tentativas de impor rigores que estivessem mais próximos à Razão que ao “devaneio da arte, da imagem”. Assim, por exemplo, ao rigor racionalista do Neoclassicismo opor-se-ão o pré-romantismo (na Alemanha, Sturm und Drang) e o Romantismo e suas estéticas de clamor “da arte pela arte”, na busca de reconhecimento de algo mais que os clássicos cinco sentidos para apoiar a percepção, um “sexto sentido (...), uma terceira via de conhecimento, permitindo a entrada de uma nova ordem de realidades” (DURAND, [1994] 2011, p. 27). Ainda um maldito, o poeta, e isso estará em Hölderlin, Baudelaire, Rimbaud, passa então a reivindicar o status de “gênio, “vidente”, “guia”, “mago”, “profeta”, ou seja, o de uma espécie de condutor de imagens. 23 Aproximação cristã a paganismos celtas (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 20-1). 41 Tal apego ao lado imagético em detrimento do racionalista deixará heranças mesmo na busca pela perfeição do parnasianismo; porém, será ainda mais contundente, agudo e ousado na busca de uma independência da arte, da poesia, da imagem; será ainda mais evidente no simbolismo (fim do século XIX)24. Depois dele, a obra de arte, e sua consequente ligação com a imagem, pouco a pouco se libertam, afastam-se de seus serviços vinculados à religião e à política. Há uma busca por independência, por explicar-se a partir da identificação de que pode conter, criar realidades outras. Assim, para Gilbert Durand ([1994] 2011, p. 29-30, grifos do autor), pode-se dizer que O Surrealismo da primeira metade do século 20 será o resultado natural e reconhecido do Simbolismo. Este “sexto sentido”, que no século das Luzes revelou ingenuamente a estética, desabrochou na filosofia de um universo “completamente diferente” do pensamento humano. Isto opõe essa liberdade do imagético uma vez mais ao racionalismo aristotélico herdado, com marcas também no empirismo positivista que ainda deixará seus lastros durante todo o século vinte. A arte abstrata será o extremo, a aventura máxima da afirmação de emancipação da pintura, da música em relação até mesmo ao imaginário. Porém, não me aventuro nela eu, por ora; por entender que, no concernente à análise do corpus dessa pesquisa, adentrar o universo abstrato da arte pouco dialogaria com a proposta de leitura interpretativa aqui trabalhada. Retorno, então, a um dos pontos que abriram a argumentação do presente tópico. Da proposta de olhar lançado à questão da imagem a partir das observações do filósofo francês Gilbert Durand, extrai-se seu posicionamento de que, da tríade base do que o autor chama de Método da Verdade, o nome que mais influenciaria uma visão pejorativa lançada ao imagético seria o de Aristóteles. É interessante notar que Durand aponta, ainda, estar no predecessor de Aristóteles uma atenção menos radical para o papel da imagem na filosofia. Dessa forma, é no primeiro seguidor do socratismo que a imagem encontra talvez então o ponto de apoio para sua sobrevivência diante do racionalismo ocidental, o mesmo que (ainda plantando suas sementes) encontraria nas Américas, quando do Choque e Violência dos “descobrimentos” e das conseguintes colonizações, sociedades que através do pictográfico exerciam sua expressividade, seu poder de expressão e comunicação baseados na representação por imagens e que, de uma hora para outra, em determinado momento tiveram, ou melhor, viram-se forçadas a perceber a necessidade de “organizar” também as coisas 24 Remeto o leitor para o tópico 1.1 do presente capítulo, quando toco na importância que tem esse movimento estético nas argumentações que tecem os formalistas contra algo que poderia ser chamado de “ditadura da imagem”, “imposta” pelo simbolismo russo. 42 observadas, os frutos de sua observação e registro através da escrita alfabética, até mesmo para que sobrevivessem, conservadas fossem, diante da aceitação de derrota e consequente submissão, os traços de suas memórias, suas identidades, suas marcas. Com esse aparte, entretanto, quero tocar, antes, no choque dos conceitos e da relação para com a imagem, no choque da conturbada relação ocidental com o imagético e a imagem como meio, modo de expressão para os povos originários da América pré-hispânica, précolombiana. Isso implica tocar em uma ocidentalização do imaginário pré-americano. Porém, é necessário reiterar que, referente às obras literárias em destaque na presente tese, há muito mais um eco, uma via de acesso à abordagem da imagem desde seu âmbito ocidental de cismas, imbricações, vaivéns, contradições – razão pela qual privilegiei até o momento um remissivo olhar voltado para a imagem, digamos, algo mais ocidentalizado. Nesse aspecto, uma ressalva que, segundo Durand, propiciaria a sobrevivência, a resistência do imaginário dentro de um longo período de iconoclasmo, tem a ver com a figura de Platão e a importância de sua concepção de imagem, que acabou dando margem à resistência a toda uma iconoclastia não somente física (contra quadros, imagens, estátuas, etc.); mas, também, mental, espiritual (a imagem, a imaginação, o imaginário negados ou, quando muito, menosprezados e, até mesmo, ridicularizados). Embora a máxima aristotélica diga ser o filósofo também um “philômito”, um amigo do mito, “pois o mito é uma reunião de maravilhas” (ARISTÓTELES apud MORAES, 2007, p. 4), coincido com Gilbert Durand, quando este entende extrair-se de, ler-se, identificar-se em Platão, apesar, é lógico, de sua herança socrática, uma doutrina mais aberta relativa à imagem, menos aguda e de tom menos depreciativo do que a de Aristóteles, seu continuador (Cf. DURAND, [1994] 2011, p. 16). A partir deste raciocínio, abre-se espaço para que pensemos, ademais, na imagem como e no processo de (re)produção do pensamento filosófico destes mestres tão importantes para o estabelecimento da figura do homem ocidental civilizado. Isto porque, se conceituaram sobre a imagem, foi também muito através dela que se expressaram, natural “contaminação” em seus textos, haja vista que era também a imagem assunto de seus argumentos. Assim sendo, damos passo e espaço para que tratemos da imagem também como categoria textual, como peça importante na produção de um texto, algo que vem ao encontro do tema ora abordado neste trabalho. Na teorização de Platão sobre a imagem, o “mito”, a figura evocada de Sócrates, traz conceitos (como, por exemplo, o da Verdade Absoluta como ponto de referência para a promulgação de leis que discorressem sobre o belo, o justo, o bom) que reverberariam e respaldariam o Método da Verdade explorado e desenvolvido por Aristóteles. No tracejar da 43 linha platônica que divide a ordem do que é inteligível da outra ordem de coisas pertencentes ao gênero visível, a imagem encontra-se em uma das secções deste segundo gênero, abordada, comparada sob uma perspectiva binária, em que se relacionam obscuridade (as sombras, absolutamente ininteligíveis, porque não têm, de maneira alguma, sua razão em si mesmas) e claridade (as imagens refletidas na água e as que se formam nos corpos compactos, lisos e brilhantes, que remetem, da mesma forma que as sombras, porém, com um pouco mais de clareza, àquilo de que são cópias, reflexos). Ainda para Platão, como a opinião está para o saber, estaria a imagem para o modelo, este já pertencente ao primeiro segmento, o campo do inteligível. Nesta primeira secção, estariam o entendimento e a inteligência, ambos pertencentes à órbita, ao âmbito das ideias, estas mais próximas a um princípio original que as sombras e imagens do segmento do visível, que não separa as propriedades das coisas, dos modelos de que são cópias. O entendimento no campo das ideias, do inteligível, subjaz à verdadeira intelecção, porque faz de hipóteses princípios como se estas fossem claras para todos. Refere-se Platão em seu texto de remissão socrática à figura dos geômetras e aritméticos, razão pela qual classifica seu entendimento como o modo de pensar das ciências, que tratam como cópias o que traçam e cardam, obtendo entendimento pelo sensível, sem ter o alcance, a intelecção de que tratam de ver, em verdade (ao contrário das sombras e reflexos que geram suas figurações), as figuras absolutas, o princípio primeiro sobre o qual terminam por não se debruçarem, deixando de agir pela inteligência da Visão no Pensamento, para quase se igualarem à visão diretamente relacionada à ordem do sensível. À frente destas ciências, na primeira secção deste primeiro segmento da linha de raciocínio trazida à baila por Platão, está a secção da pura intelecção. Nela, a Ciência da Dialética adianta-se às ciências outras porque, como é próprio dos diálogos, seu movimento é o de ir, é o de partir de, é o de tomar hipóteses não como princípios, mas como hipóteses de fato (ao contrário dos geômetras que, mesmo operando suas demonstrações ante um interlocutor, tomam suas hipóteses como princípios claros a toda gente) para chegar-se, assim, ao princípio que as fundamenta ou rechaça, “para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, (...) até chegar à conclusão, sem se servir em nada e de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias” (PLATÃO [Séc. IV a.C.], (Trad.: Pietro Nassetti) 2000, p. 209). O raciocínio de Platão realça a relação claro/escuro, em que se parte da gradação mais escura da sombra (passando pelas nuances reflexo/imagem e ciência, tal qual aplicada desde a ótica dos geômetras/modelo) para o ápice da luz redentora contida na, e à qual se chega pela 44 ciência da dialética, aquela que pelo exercício dos diálogos conduz à essência de tudo. Tal linha de pensamento se vê em Aristóteles mais acentuada, sendo levada ao extremo da lógica binária do certo (de novo, o claro) ou errado (aqui, toda a gradação modelo, reflexo/imagem e sombra, sinônimos aristotélicos de obscuridade, engano e ignorância). Assim, tem-se, por um lado uma filosofia aristotélica de caráter por assim dizer mais realista, que deprime, decanta a imagem como deturpadora do real, posto que distante da Verdade Absoluta que também permeará as vertentes do pensamento racionalista ocidental desde a redescoberta e retomada dos escritos de Aristóteles; e, por outro, as matizes mais brandas lançadas para a imagem no pensamento do primeiro herdeiro socrático, Platão. Importa ressaltar que, ainda para Gilbert Durand, esta herança platônica de um olhar mais matizado para a imagem acabará por reanimar ora e vez o que o filósofo francês chama de resistências do imaginário ante todo um iconoclasmo que se agigantava, pouco a pouco se sobrepondo a ele, o imagético, o imaginário; algo mais evidente nas disputas religiosas sobre a questão da imagem desde o século VIII cristão, mas que, a meu ver, complementando o caráter mais propriamente material do assunto, também se aplica a todo um iconoclasmo que abrange ainda o campo das ideias, do pensar, do pensamento, do mental. E, em minha opinião, está justo nas tramas dessa gradação, justo nessa matização platônica em que entremetida está a imagem, é justamente aí que inserida está uma espécie de respeito, de consideração maior pelo imagético, pelo imaginário. Nesse tocante, um temário ganha relevância na órbita de considerações platônicas sobre a imagem. Nas palavras de Durand (2011, p.16, grifo meu), “Platão sabe que muitas verdades escapam à filtragem lógica do método, pois limitam a Razão à antinomia e revelamse (...) por uma intuição visionária da alma que a antiguidade grega conhecia muito bem: o mito”. Sim. O mûthos, que animará a observação aristotélica sobre o filósofo ser também um philómuthos, é em Platão mais do que “uma reunião de maravilhas” (respeitando-se os dizeres aristotélicos já mencionados). Desse modo, parece-me complementar tal observação o argumento de que [g]raças à linguagem imaginária do mito, Platão admite uma via de acesso para as verdades indemonstráveis: a existência da alma, o além, a morte, os mistérios do amor... Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica fala diretamente à alma (DURAND, 2011, p. 16-7). Isto exposto, vale pensar na concepção que Durand dá ao mito: “uma intuição visionária da alma”, unindo, através da utilização do adjetivo “visionária”, certo aspecto mítico (mais ligado a um passado no qual o mito se origina na tradição oral) a outros dois 45 pontos estabelecidos assim pela presentificação contida na figura do sujeito visionário e no sujeito paciente do que é “visto” e pelo futuro como objeto, ponto final da “visão”, daquilo que é visualizado ou, em outros termos, “visionarizado”. No entanto, em meu modo de ver serve ainda inquerir-se sobre o mito desde a perspectiva apresentada pelo historiador e sociólogo canadense Gérard Bouchard (2005, p. 3,), para quem “o mito (...) deve ser avaliado não na relação com a verdade (a conformidade com o real), mas na relação com a eficacidade (a capacidade de superar as contradições)” 25. Aparentemente dicotômicas, vejo ambas as concepções como complementares entre si, as quais podem dialogar, também de maneira complementária, com outras concepções mais tradicionais sobre o mito. Entretanto, para além do quão valioso seria aprofundar uma discussão mais abrangente das concepções, da percepção de relação do mito com a imagem nas letras (mesmo as que se originam no registro oral), no literário e na filosofia, entendo que, no presente estudo, tal aprofundamento contribuiria mais como um exercício de erudição do que propriamente de aporte. Por conta disso, e por conta do recorte ora proposto neste estudo, apresenta-se como mais produtivo debruçar-se acerca de como esses campos se mesclam, também, às ciências nos diálogos socráticos de Platão; ou seja, refletir brevemente sobre o modus operandi da imagem no texto platônico, na tecedura de suas exposições, algo que virá, enfim, ao encontro de tópico importante a respeito do trato do imagético na ficção de uma das mostras literárias (o La frontera de cristal, de Carlos Fuentes) componentes do presente trabalho doutoral. Passo, então, a tratar; anuncio, assim, que dou vez à abordagem da relevância da metáfora como recurso linguístico de imagem em um texto, buscando evidenciar abaixo as razões de tal escolha. Ainda que o termo “figura” tenha parte de sua significação prontamente aproximada à noção de imagem (ou à amplitude de suas significações), cogito a compreensão de tropos como a metáfora, a alegoria, a metonímia, para mais além da categorização gramatical e linguística de figuras de linguagem ou de palavras. Assim como Aristóteles (Livro III, IV, 1) primeiro afirma que “a imagem é uma metáfora” para logo em seguida apontar que “entre uma e outra a diferença é pequena” – deixando escapar ao fim que, sim, existe diferença, mesmo que pequena, entre ambas, explicando-se pelo uso da comparação (imagem) e da metáfora propriamente dita –, aponto diferença entre figura e imagem, concernente, baseado 25 Tradução de Zilá Bernd (2007). 46 no caráter ulterior da primeira, de reconhecida realização exterior à mente, e anterior da segunda, com sua formação e mesmo realização ainda no pensamento. Sendo assim, dada a expressividade do caráter imagético contido em tais tropos e seu atributo de anterioridade em relação à ulterioridade da figura, pode-se mesmo cogitá-los como a própria imagem na linguagem (já seja sob os auspícios de suas variações popular, culta, literária, etc.), o que nos permite (re)pensá-los até mesmo sob o epíteto, aparentemente tautológico, de “figuras de imagem”. Figuras de imagem na palavra, pela, através da palavra; figuras de imagem na linguagem, agindo sobre a linguagem – mesmo a poética, em verdade literária, que ora permeia e por onde às vezes “passeiam” a linguagem, a fala, a expressividade, o modo de se expressar de tantos outros campos do saber como a filosofia, a história, a antropologia; mas também ciências tidas como de caráter de expressão mais literal, mais objetivo, já sirvam como exemplo as físicas, as matemáticas, as biológicas –; agindo sobre a linguagem a partir do pensamento, de sua formação gestáltica como imagens no pensamento. Sobre a metáfora, cabe observar o caráter dúbio desde o qual pode ser interpretado o uso de tal figura de imagem26. A metáfora aparece muitas vezes como uma das sinonímias de imagem, recorrente nos mais variados dicionários. Assim, essa imagem verbalizada (imagem que verbo vira) é, grosso modo, a operação do raciocínio por semelhança (o que remete à lembrança de que similitudo é também um caráter dado às origens do termo “imagem”), transpõe-nos de determinadas significações de uma palavra para outra com quem tem essa já dita relação de similitude. Com vistas a “esclarecer”, facilitar a compreensão de algo no discurso, pode tanto aproximar-se a certo requinte de recurso linguístico em seu expressar-se por imagens, na sua transição de um sentido literal para outro tácito, latente, figurado; como ter em sua utilização um alvo de críticas, por, se usada em exagero, transferir a quem assim a utiliza aparente falta de objetividade ao expressar-se. Assim, parece estar precisamente entre objetividade e subjetividade o campo das discussões que atravessam as possibilidades do termo. No que toca à abordagem da imagem voltada para a análise literária das obras que compõem minha tese, o papel da metáfora é fundamental para a interpretação que dedico ao 26 Figura de imagem na/pela/através da palavra: chamo-a assim porque ela é, antes de tudo, imagem no pensamento para, depois, “materializar-se” no registro que a requer, ou do qual se tem ação subsequente, imediata a sua formulação e/ou estabelecimento no pensamento, o que não implica dizer que não possa haver aí uma relação de reciprocidade com momentos em que também a linguagem (ainda que entendida como pronta ação do pensar, resposta quase sempre imediata do/ao pensamento) serve, com informações que já prestou e emprestou ao cérebro que mnemonicamente as armazenou, à metáfora no seu processo mental de formação, reafirmação, reformulação ou reapresentação. 47 romance de Carlos Fuentes. Desse modo, afirmo que a metáfora nesse autor pode ser avaliada desde um diálogo entre uma apreensão teórica mais tradicional fundada em Aristóteles e uma visão mais contemporânea, eco talvez de uma abertura existente já nos preceitos platônicos sobre o assunto. A respeito da primeira apreensão, destaco os trabalhos do filólogo brasileiro Walter de Castro (1977), quem, ao refletir sobre o papel da metáfora em obras de Machado de Assis, elenca uma série de concepções de autores calcados em uma visão mais aristotélica que restringia a metáfora à ordem da poética, do literário, como efeito de estranheza. Apesar da plêiade de considerações teóricas que traz à baila, Walter de Castro não deixa, contudo, de fixar suas próprias observações sobre o temário, com destaque para a categorização que apresenta acerca dos tipos de formulação da metáfora: ligadas pela preposição “de”, verbais, adjetivas, em aposto, com o verbo de ligação “ser”, iniciadas por demonstrativo, de um só termo e associações mistas como o que chama de metáfora metonímica (Cf. CASTRO, 1977, p. 44-75). No tangente ao olhar teórico contemporâneo sobre a metáfora, ressalto o trabalho conjunto do antropólogo francês Dan Sperber com a linguista britânica Deirdre Wilson. Esses autores, através da perspectiva que denominam de teoria da relevância (1995), defendem a metáfora como elemento, produto linguístico, abordada a partir do ponto de vista de produção da e na linguagem, sem, para isso, afastar-se tanto (a metáfora em seu aspecto de produção) da linguagem literal. Também empenhados em explicitar que o papel, o uso e a relevância da metáfora não se restringem à linguagem literária, o linguista estadunidense George Lakoff e o filósofo também estadunidense Mark Johnson, através de sua teoria cognitivista de metáfora conceitual (1988), apontam para a importância do processo de metaforização que se destaca mesmo na linguagem cotidiana, algo que vai de encontro ao realce dado à questão pela linha teórica de tradição aristotélica, que destaca o valor do tropo metáfora como habilidade distintiva de escritores, em especial, dos poetas. Apesar de convergirem em ressaltar que a metáfora é própria também da comunicação quotidiana, Sperber & Wilson e Lakoff & Johnson divergem quanto ao ponto de partida do processo metafórico: para estes, importa mais seu processo mnemônico de formação primeira no pensamento; para aqueles, a metáfora, em verdade, vai da linguagem, primeiro, ao pensamento, depois. Com relação à abordagem que ora viso destacar, informo não fazer parte de meus objetivos neste trabalho doutoral refletir com profundidade sobre a natureza e a estrutura da metáfora. Ainda que por certo se vá reconhecer a leitura anterior de teóricos do assunto, a intenção aqui é, antes, expor, estudar e aprofundar os mecanismos de uso da metáfora como recurso de imagem literária no texto fuentesiano e a importância desse uso na contribuição de 48 formação e/ou reafirmação de imaginários. Nesse aspecto, se por um lado minha linha de análise por certo tende a coincidir bastante com a visão contemporânea (e creio mesmo que ambas as perspectivas linguistas não se excluem, antes, complementam-se, principalmente por entender que há a possibilidade de existência das duas vias defendidas por tais correntes, no que toca ao processo de construção/realização da metáfora); por outro, sob meus termos não se adentrará em demasia nos domínios da linguística, mormente importando, repito, a metáfora como recurso literário de imagem. Mesmo na abordagem de sua ação sobre imaginários, consequente de sua ação sobre e com o leitor-receptor, serão as especificidades literárias de tal ação que mais importarão, razão pela qual (e me explicarei ainda melhor mais adiante) há predileção pela remissão à metáfora em Platão, em detrimento da argumentação aristotélica. Muito do que então defendo quanto ao temário imagem/imaginário coincide com a teoria cognitivista que amplia o olhar lançado para a metáfora. No entanto, ainda que seja uma de minhas postulações entender a imagem, o imaginário como frutos de um processo no qual interagem mente-cérebro-pensamento, prisma a que se adere a psicologia gestáltica de fechamento de formas; ainda assim, é ao trato metafórico e metonímico da imagem, por vezes contrapondo-se à alegoria, dentro da literatura (reitero, aqui ainda em Fuentes), que procurarei mais bem me ater. Assim, é entre Platão e cognitivismo que se situa minha concepção particular, na visão que dedico à relevância da metáfora no romance de Fuentes, no processo que estabeleço como um amplo processo de metaforização, doravante ampla metáfora, como veio, via e caminho de relação com imaginários sobre os (des)encontros de alteridade com os quais dialoga a obra. As vias de acesso à metáfora, a busca por compreendê-la e até delimitá-la de maneira teórica acabam o mais das vezes por cair em um lugar comum. Do modelo aristotélico aos estudos mais contemporâneos sobre o assunto, temos variações que sintetizam a translação de sentidos própria do processo metafórico descritas em termos como A e B, A é B, B é A, domínio origem para domínio alvo, etc. Dessa maneira, percebe-se uma busca por abordar-se esquematicamente a essência da metáfora, comumente encontrada em toda ordem de teorizações onde o que se absorve, ao fim, é certo aspecto da qualidade metafórica de transferência de sentidos expressa a partir de estruturações cuja maior diferença entre si acaba por limitar-se ao âmbito das nomenclaturas. Por isso, ora ela é a mãe de todos os tropos, ou o único e verdadeiro tropo, ora ela se agiganta de outras maneiras, preenchendo toda a linguagem. Porém, em minha opinião termina por ser desprestigiado, ou ao menos não ser 49 explorado como deveria, seu princípio a meu ver mais importante: de fato, o da TRANSFERÊNCIA. Nesse aspecto, talvez tenham sido cognitivistas como Lakoff e Johnson 27 os que mais bem se aproximaram de tocar justo no deslocamento que sugere a metáfora, defendendo a existência do mapeamento entre os conceitos constitutivos dela. Ainda assim, mesmo que estes se aproximassem de ressaltar o caminho, resultam, tanto dos esquemas aristotélicos quanto da esquematização cognitivista, produtos binários, resultados de uma organização binária que beira, em verdade, a comparação: objetivo/subjetivo, concreto/abstrato, literal/figurado, A/B. A atenção voltada para o uso da metáfora em La frontera de cristal (título por si introdutor de uma grande metáfora), decerto tende a aproximar o leitor à comparação por meio de binarismos; mas, aí está o segredo: apenas tende. De fato há nas imagens de Fuentes duas pontas na linha de transição semântica de suas amplas metaforizações. Porém, passa a importar o caminho sinuoso dessa TRANSFERÊNCIA de sentidos, caminho que traz às pontas dessa transposição não verdades extremas, mas conceitos, relações de limites porosos. Assim, o que às vezes é aparência recebe profundidade. Desse modo, importa em La frontera pensar, na verdade, se o ponto aparentemente abstrato da linha de transferência de sentidos, que teoricamente pode ser que parta do aparentemente concreto, de fato é abstrato para o receptor; pois sucede que o autor usa de artifícios estético-literários para que, com efeito, esse sentido aparentemente abstrato seja, soe familiar ao leitor/receptor, a tal ponto que ganhe grau de concretude, germinando, ou atraindo-o para um imaginário. Deturpando, então, subvertendo, aproveitando-se da instabilidade que há no binarismo concreto/abstrato, literal/figurado, Fuentes dá margem a que se pense em “concretudes” outras para significantes cujo teor de concreção é aparentemente estável. Entretanto, cessam aí as artimanhas, porque tais significantes outros não se deixam interpretar sob outros universos de conceptualização, sob outras constelações semânticas, para aproveitar o termo cunhado por Zilá Bernd em interessantíssimo mapeamento de figuras e mitos das Américas (2007). É, em tal impossibilidade de reinterpretação em novos contextos, que a ampla metaforização fuentesiana se afasta de outra figura de imagem, a alegoria; por essa razão, aproximando-a, metáfora ampla, da composição com imaginários: por relacionar-se com a 27 Com argumentação desenvolvida a partir do que chamam metáfora e teoria popular no discurso, que advém de sua crítica e complementação à Teoria da Metáfora do Canal, do também linguista estadunidense Michael Reddy (1979). 50 alegoria através do afastamento, da oposição, da diferença; e com a metonímia pela proximidade, “parceria” entre ambas, da qual se aproveita o autor. Convém agora, explicitar tal relação, primeiro para explicar o que chamo de metáfora ampla/ampla metáfora e, depois, para esclarecer as correspondências e distanciamentos que a levam a compor com imaginários. Como já expus anteriormente, o uso da metáfora em La frontera de cristal parte primeiro da relativização de relações entre os extremos da ordem binária a que costumam ser vinculados os termos de uma metaforização. Assim como a fronteira mexicana (e)levada a um prisma de cristal atrai como ímã os personagens principais, Fuentes “convoca” os leitores por meio de suas imagens, as imagens que tece, trabalha, embaralha, desorganiza, reorganiza. Por meio da semelhança que propõem, as metáforas da fronteira em Fuentes são metáforas das relações de alteridade sobre as quais se debruça o ficto da obra em epígrafe. Para tanto, há a construção da metáfora ampla, que se caracteriza por basear-se em uma metáfora principal preponderante dentro de certos contos-chave do romance, uma imagem principal (particular para e em cada um desses contos) que é apresentada de forma fragmentada, porém repetida, pouco a pouco em tais contos-capítulo. Seu poder de agregar-se a, ou de implantar imaginários, é lógico, depende das instâncias de recepção de cada leitor. Mas, também para que tal articulação resulte eficiente, receba seu grau de efetividade, de eficacidade – relembrando o termo cunhado por Bouchard (2005, p. 3) em sua abordagem sobre o mito –, há apoio dessa repetição da metáfora principal, há o apoio desse processo de metaforização em outra figura de imagem importante para conduzir a metáfora ampla a um imaginário determinado: a metonímia. Sobre a metonímia, cabe o adendo de que alguns autores não enxergam razão para que se a separe da metáfora, entendendo-a como uma extensão desta, tamanha a possibilidade de tomar-se uma pela outra, de confundir-se uma com a outra, decorrência ainda da compreensão de metáfora como “mãe” de todos os tropos, de todas as figuras, e de que ambas trabalham com uma extensão associativa de significados. Linha diferencial tênue, porém bastante pertinente, é a de que enquanto a metáfora trabalha sob uma transferência entre termos de campos sêmicos, teoricamente, o mais das vezes bastante separados entre si, o que aumenta a possibilidade de estranhamento, de surpresa no efeito produzido, a metonímia atua desde um lugar em que os sentidos dos termos, dos nomes relacionados têm aproximação mais imediata, dado o caráter de maior contiguidade semântica que conservam entre si. Podemos dizer que há ainda na metonímia uma atenção maior à troca e uma consequente associação de sentidos entre nomes. Nesse caso, podem ocorrer as seguintes 51 relações de inclusão: hiponímica, a pars pro toto, em que há a substituição de nomes, da parte pelo todo; e hiperonímica, a totum pro parte, da parte que através do nome se toma pelo todo. Há autores que defendem hiponímia e hiperonímia como casos de outro tropo, a sinédoque. Outros autores, entretanto, colocam a sinédoque como um tipo de metonímia. Meu entendimento vai ao encontro da segunda opção, por entender que a origem grega de ambos os termos, “além do nome, o que sucede o nome”, para metonímia, e “compreensão simultânea” para sinédoque (Cf. FIORIN, 2013, p.2), acaba por ser respeitada nas abordagens sobre e para a compreensão mais ampla do sentido de metonímia; ou seja, segue respeitada a questão do nome, a qual se atém a etimologia do termo, tanto na transnominação simultânea de ordem hiponímica quanto na hiperonímica. Desse modo, a expressividade das imagens-metáforas escolhidas para se repetirem pelo narrado de cada conto se agrega ao poder sintetizador da operação metonímica todo pela parte, parte pelo todo, alcançando, obtendo efeito de imaginário, efeito plausível de inclusão e apreensão por parte do imaginário, de um imaginário, de imaginários, já que um imaginário para assim ser considerado necessita, em seu efeito totalizador, condensar sua coleção de imagens, as imagens que totaliza, sintetizando-as, produzindo, introduzindo, reproduzindo, reapresentando intencionalmente no texto conceitos e pré-conceitos, ideias que formarão, unir-se-ão a esse mesmo imaginário. Sendo assim, é desse modo que se dá a apreensão do receptor pelos imaginários sugeridos em La frontera de cristal: o leitor é submetido aos imaginários suscitados através de uma ampla metaforização inserida em contos-capítulos de forte relação de complementação entre a metonímia (condensadora de ideias) e a metáfora-base do conto, repetida até que se chegue à imagem final, à metáfora final, nada mais que reflexo da metáfora-base, mas que ganha caráter expressivo ainda maior, pelo uso dos recursos anteriores que a anunciam, fazendo dela cena expressiva de grande força imagética, ampla metáfora, metáfora aumentada, imagem maior, mas que sem o apoio na condensação e no poder de generalização da metonímia e na repetição de sua metáfora-base pouco produziria de efeito, pouco contribuiria para que se pensasse em imaginários na obra. Ainda com relação à contribuição das imagens suscitadas pela e trabalhadas na obra para a abordagem de imaginários, será interessante como a presença de outra figura de imagem não exercerá tal papel. Falo da alegoria, também presente em La frontera. Assim como a metáfora, a metáfora ampla que apresento e defendo como elemento constitutivo essencial para a leitura da obra desde seu teor mais imagético, aproxima-se, a meu ver, sobremaneira de imaginários, deles se afasta a alegoria pelas mesmas pequenas diferenças que 52 a afastam da metáfora. Pequenas, porém precisas e importantes para explicitar ainda mais o intrínseco da relação metáfora/imaginários. E nesta relação, por que esta (a metáfora) e não aquela (a alegoria)? Para entender a distinção que faço entre o uso da metáfora ampla e da alegoria em La frontera de cristal, é importante ressaltar que ambas são resultantes de processos de metaforização por que passam os contos-capítulos que integram a obra. Ocorre que, quando desse processo metafórico resulta uma leitura aproximativa de imaginários, isso advém do fato de que o produto final do conto-capítulo é uma metáfora ampla. Enquanto isso, nos contos cujo resultado final venha a ser uma alegoria, não há uma possibilidade de aproximação dessa resultante para com a formação ou perpetuação de imaginários. Para tanto, é necessário fixar bases de conceituação de um imaginário, tarefa da qual não me furto. Antes, porém, é necessário revisitar a alegoria e as concepções que envolvem os conceitos norteadores de sua apreensão. A alegoria, mesmo tomada como figura de imagem de relevante papel para a expressão do pensamento na linguagem (respeitando-se uma vez mais a via de mão dupla possível nessa interação), ganha desde Walter Benjamin (1892-1940) um caráter a mais, o de conceito crítico contemporâneo, majoritariamente aplicado, atinente à arte. Dessa maneira, somada a sua origem grega denotativa de usar linguagem pública para dizer algo expressando, em verdade, outra coisa, e a sua conotação e remissão à expressão voltada para difundir valores religiosos e políticos pela arte; somado a esses tópicos de historicidade do termo, Benjamin percebe analogia entre os sentimentos de perda do homem seiscentista barroco e do oitocentista romântico (este, a partir de Baudelaire, que, ao contrário do Romantismo vigente à sua época, vê no símbolo uma impossibilidade de expressão diante da submissão da arte pelo capital). Mesmo assim, enquanto em Benjamin o luto ante um mundo para ele em ruínas aproxima a melancolia ao grotesco, na linha divisória notada em Baudelaire, desde a cisão romântica, a ruína e a perda serão tratadas alegoricamente pela arte através da cólera (Cf. BENJAMIN, 1989, p. 164). Partindo-se, então, dessa concepção benjaminiana da alegoria, a perda, a ruína, o silêncio e o luto tornam ao alegorista, são de novo suas instâncias. Quanto à ruína, seu caráter de fragmento poderia ser pensado como aproximação à fragmentação da fronteira proposta já na divisão do enredo da obra de Fuentes em epígrafe. Entretanto, a fragmentação de um todo narrativo em contos não implica a construção de um romance fadado a falar sobre ruínas. Não. Quando quer ser alegórico, Fuentes o é em alguns contos da obra, os quais contribuem mais a uma nova rede de interpretações do que para um entendimento total de aceitação de 53 perda, consequente luto. E aí está outra importante diferença da alegoria para a metáfora ampla em La frontera. A variedade interpretativa, a possibilidade de releitura do alegórico em outros contextos é ponto pacífico da teoria que se debruça sobre a alegoria28. Já a metáfora, e mesmo a metáfora ampla em Fuentes, coincide em certa medida com a obliquidade do caminho que faz do abstrato algo concreto também no alegórico; mas, a quantidade de significados pertinentes a um determinado significante, por maiores que sejam as possibilidades, vai ater-se, restringida estará a um campo de significações muito próximas em seu grau de concretude para o receptor, presa a metáfora a uma mesma constelação semântica. Na alegoria, o que hoje pode ser lido de uma maneira; em contextos outros, será perfeitamente passível de novas interpretações. Por outro lado, nas metáforas de Fuentes, um homem e uma mulher que se “beijam” separados por uma vitrine de cristal, beijam-se metaforicamente em uma fronteira onde o encontro, a conciliação é dada como impossível. E ainda que a esses valores se agreguem o espelho e a fragilidade do cristal, o máximo que acontecerá será o empréstimo do frágil do cristal para a fronteira mexicano-estadunidense, que já tem como preestabelecida essa condição enquanto parte de suas significações com grau maior de concretude do que permite a aparência de abstrato do campo de significações a que pertence o frágil. Dada toda construção imagética, apoiada, ancorada, calcada na repetição da metáfora base do conto adjunta a momentos de metonimização, a interpretação mostrada pela metáfora ampla não é passível de releitura, com a mesma expressividade, em um contexto que dela excluísse a fronteira México-EUA e a fragilidade das relações nela estabelecidas. Do exposto acima, extrai-se outra característica que afasta a alegoria de imaginários: sua provisoriedade. Essa possibilidade de uma leitura de elementos outrora deixados de lado, passíveis de releitura em outros contextos históricos a afasta do caráter de permanência de um imaginário. Um imaginário pode até permanecer latente certo tempo; mas, ao ressurgir, o seu ressurgir indômito não traz em si uma possibilidade de reinterpretação dos caracteres que o compõem, que forjam sua inteireza. Inteireza forjada a partir da justaposição de elementos como conceitos, ideias e pré-conceitos a cuja ordem sintética melhor se adaptam e se agregam a metonímia, a metonimização e a metáfora, que em Fuentes não quer, não traz em si qualquer intenção de provisoriedade, razão pela qual pode unir-se a um imaginário. 28 Para aprofundamento ainda maior a respeito do tema, remeto o leitor para a interessante síntese que traz sobre a questão e a historicidade da alegoria a filósofa brasileira Zahira Souki, no artigo “Alegoria: A linguagem do silêncio” (2006), cujos dados completos de publicação constam na bibliografia da presente tese. 54 Uma alegorização pode até mesmo estruturar-se a partir de um processo metafórico, a partir do trabalho com imagens sugeridas por metáforas. Tal caso pode inclusive ser observado em Platão, nos livros VI e VII do seu A República (IV a.C.), quando as ideias que levam a ideias e a outras ideias até que se chegue ao princípio absoluto são repetidas vezes transmitidas a Glauco pela figura evocada de Sócrates através de imagens, explicações via metáforas. Não à toa o enredo dos dois livros, dada a maior proximidade do pensamento platônico para com o mito, é tratado tanto como Mito quanto como Alegoria da Caverna, provocadora de leituras e releituras, arbitrárias e intencionais, de acordo com o contexto histórico em que retomadas são. De maneira contrária, nas histórias que em La frontera se agregam a imaginários, apesar destas também se apoiarem no trabalho com metáforas, o processo de metaforização em que se ancoram gera não uma alegoria; mas, antes, uma metáfora ampla que terá seu lugar somente no contexto sobre o qual se debruça, buscando inserir-se dentro de um temário de força já bicentenária, a migração, os (des)caminhos de migração na zona fronteiriça de confluência que compartem México e Estados Unidos. Ainda com vistas a tratar da relação entre imagem e literatura, cabe agora expor considerações sobre tal leitura na outra obra componente do corpus deste estudo de doutoramento: o também romance em contos ...y no se lo tragó la tierra. Se em Fuentes sobressai a relação com o que podemos chamar de imagem verbal (categoria em que se insere o tropo metáfora mesmo quando, no caso da ampla metáfora, intensifica-se como conceito), a ligação do literário com a imagem em Rivera parte do estilo lacônico do texto para com a fotografia e a pintura. A elipse é a forma e o estilo que permitem a leitura do laconismo no texto de Rivera. Configura seus nexos de modo que, de fato, possa ser percebida certa harmonização de forma elíptica (da elipse matemática mesmo) no aparente “caos”, na aparente desorganização contida nas histórias de um chicano narrador sobre doze meses de migração e exploração de trabalho rural, braçal e as relações de exclusão e tentativa de inclusão vividas por ele e sua família em solo estadunidense, durante meados dos anos de 1950. A configuração elíptica da obra revela de modo curioso a relação entre dois números desde os quais se apoiam a volta da elipse na narrativa. O número 1 e 2 estreitam laços já na estruturação do romance. Os doze (12) contos que compõem o corpo narrativo da obra estão ladeados por dois outros localizados entre uma ponta e outra da narrativa. Apertura e cierre, início e fim, curiosamente os dois contos podem, inclusive, ser invertidos, ter sua posição oposta em cada ponta do narrado que, ainda assim, irão manter sua função de Introdução e Conclusão, artifício que nos 55 remete à lembrança de que Tomás Rivera, autor da obra, foi não só ficcionista mas também importante e atuante acadêmico dentro das letras chicanas nos Estados Unidos. Pois bem, a essa estruturação do doze (12) ladeado por 1 (Introdução) e 2 (Conclusão) se apoia outra: uma estampa introdutória para cada um desses doze contos que sucedem o conto-introdução e que precedem o conto-conclusão (e mais uma, para esse mesmo capítulo-conclusão). Dessa maneira, temos que, da estruturação 1 (12 e 12) (1) 2, lê-se uma introdução que precede doze estampas e doze contos antecedentes de uma última estampa e uma conclusão, um conto-conclusão em estrita relação de troca com a história introdutória, sem perda do ciclo elíptico-narrativo, com a conservação daquilo que em ...y no se lo tragó la tierra se pode chamar de elipse romanesca dada ao todo narrativo da obra, uma reunião supostamente desordenada de contos. Ora, se considerarmos que a elipse como figuração matemática se trata de uma curva plana fechada na qual todos os pontos apresentam uma propriedade comum, que é a soma das suas distâncias em relação a dois pontos fixos no interior dessa mesma curva, estabelece-se desde já uma analogia possível em que os dois pontos fixos (ainda que em constante possibilidade de troca de posição como eixos, razão pela qual podem ser mais bem entendidos como focos) na referida obra de T. Rivera são seus contos 1, de abertura, e 2, de fechamento; e todos os pontos restantes estão reunidos também no interior da curva elíptica narrativa, através da relação 1 e 1 (uma estampa, um conto-capítulo), repetida doze vezes, com suas distâncias relacionadas (não de forma linear, herança rulfoniana da qual falarei em posterior capítulo-análise dedicado ao texto riverano) para com os nexos que se estabelecem com os pontos “fixos” Introdução e Conclusão, conforme figura que poderá ser vista no primeiro tópico do segundo capítulo do presente trabalho. Estabelecida a “visão” dessa elipse como imagem formadora, ou seja, que empresta seu “desenho” à forma do texto, é importante anotar, ainda, de que maneira são orquestrados os recursos a permitir falar-se, também de modo relevante, em implícitos, em subentendidos, em omissão de palavras (características próprias da elipse gramatical, além de propriedade cara ao gênero conto do qual se forma o romance ora em destaque) em ...y no se lo tragó. A relação de leitura da obra supracitada é feita em um jogo de interdependência para com o leitor, pois é dele, receptor, que se espera a procura e o estabelecimento dos nexos que a narrativa deixa aparentemente de abordar, deixa aparentemente “no ar”. Entram então em cena a estampa29, como um micro episódio narrativo, um micro conto, e o conto breve que a 29 Remeto o leitor para a nota 6, onde busquei apresentar algumas das definições nas quais pauto minha abordagem para o termo estampa. 56 segue. Será o efeito de imagem inserido, produzido desde a realização de cada uma dessas estruturas narratológicas que permitirá visualizar a relação do narrado, do escrito com o imagético e o pensar a obra sob o ponto de vista de alocação junto a um ou mais imaginários. A estampa e o conto breve neste romance têm ligação intrínseca com a origem do próprio Tomás Rivera, nascido em Crystal City, Texas (EUA), no seio de uma família de raízes mexicanas. Filho de trabalhadores rurais migrantes, Rivera, quando menino, percorreu e viveu a migração e a exploração do trabalho chicano no sudoeste estadunidense, e as mazelas e os desvios que com tal percurso vieram na busca por sobreviver e por viver o que Julio Ramos e Gustavo Buenrostro (2012, p. 49) chamam de “ficção de cidadania”, o sentir-se cidadão do ou nos Estados Unidos da América do Norte. Assim, aceita já por toda uma crítica em torno do romance, há a interligação entre o que conta o menino narrador da obra (e as vozes que este rememora) e o que viveu o próprio autor em sua infância, fato que sugere uma estrita vinculação entre ficção e memória. Desse modo – como em um excêntrico memorial de um ano de migração familiar de um menino que se dividia entre o trabalho rural e o inserir-se em escolas onde o uso da língua falada com seus pais e a gente com a qual convivia nos bairros chicanos era constantemente repreendido –, as estampas e os contos da obra se apresentam como fragmentos de memória dispostos numa aparente desordem linear que, em verdade, quer remeter, quer fazer jus à falta de linearidade própria da irrupção de memórias no indivíduo, em qualquer indivíduo. No entanto, para a aparente desordem de suas recordações, de seus recuerdos, o narrador riverano deixa o conto primeiro e o último capítulo de seu romance, que mesmo se invertidos fecham em elipse sua narrativa, a qual necessita da volta do leitor aos nexos dispostos nas estampas que apresentam (ou não, pois nem sempre há uma relação imediata) os contos que as sucedem. Tais estampas trazem a relação com histórias contadas ao menino, e com sua ação e receptividade diante do religioso, do fantasmagórico e mesmo do cotidiano dos bairros ou dos assentamentos rurais em que vivia. Nesse aspecto, “brincam”, jogam, juegan tais estampas com o caráter dado a uma das significações possíveis para o todo, para o significante, para o grande amálgama IMAGEM: o de estampa que representa assunto ou motivo religioso, valor às vezes subvertido nas estampas de ...y no se lo tragó, representando também a posição de un niño ante tal religiosidade e a flutuação e maneira de lidar e apreender todo um sincretismo e cosmogonia que atravessam a interculturalidade de sua gente, entre raízes mexicanas já pluriculturais, entre o sentimento chicano (mais forte na ruptura do menino, no não “encaixar- 57 se” aqui ou ali, como um sentimento de geração ainda sem nome), e entre a imposição do estadunidense. Porém, além da pintura, enquanto representativa de estampa em relação com o cultural, o cotidiano e o religioso de uma coletividade, a estampa e seu laconismo funcionam também como um instantâneo advindo da memória, “fotografia” rápida de um momento, foto revelada da memória, instante que se finge captado, apreendido, pela lente da memória, apoiado na descrição de uma escrita lacônica, que sugere necessitar do receptor dessas imagens, na busca de um nexo, de um antes e depois da tomada da fotografia, na busca de sujeitos, na busca de saber e entender quem é agente e quem é paciente nestas, destas fotos, imagens, instantâneos, estampas lacônicas. Eis daí outra vinculação, pois subsequentes a estes instantâneos, a estas estampas estão vinculados os contos seguintes, não necessariamente de modo esquemático, a título de causa e efeito, porque não são todas as estampas que apresentam, que têm relação estrita com o conto que as sucedem. Mas, tal vinculação é dada à ordem de seu tamanho. Enquanto a estampa se assemelha a um instantâneo, o conto, o capítulo que a sucede é maior, é algo mais extenso. Assim, nessa hierarquização de brevidades, por ainda ser breve sugere a brevidade de uma fotografia mais detida, advinda de um fragmento de memória mais trabalhado (talvez no tempo maior que teve o narrador para pensá-las no conto final, conto conclusão “Debajo de la casa”, como veremos melhor no capítulo dois desta tese). Entretanto, enquanto as estampas-instantâneos trazem uma ou outra cor a mais, próprias da e necessárias para a descrição impressa na carga breve de sua narratividade, os contos-capítulos que as sucedem têm, em seu laconismo, no rumor que deixam suas (in)conclusões, aproximação maior com outro tipo de fotografia, a que se revela em preto e branco. Sim, pois na dureza e secura do narrado lacônico que apresentam, as narrativas dos contos pós-estampas deixam algo por conta do receptor; faltam-lhes “cores”, presas, caladas dentro do leitor-receptor das palavras que o tragam para dentro da narrativa. Esse algo a mais pensará o leitor, tornando a ler os contos, suas estampas precedentes e dando a volta inteira, como sugere o narrador na abertura, com os nexos estabelecidos em relação de troca nos contos introdução e conclusão. Mas, a remissão a essas fotos em preto e branco não é fruto de mera abstração descabida ou gratuita. É, antes, fruto do contato evidente da obra de Tomás Rivera para com a de Juan Rulfo, aspecto que melhor defino no tópico 2.1 desta tese. Por fim, ressoa importante contributo para a relevância da imagem na literatura e sua apropriação por imaginários pensar nas imagens de Tomás Rivera como um trato original para 58 questões repetidas, anteriores, mas vistas sob outros focos30. Ao mesmo tempo, seria interessante pensar nas imagens de Fuentes como imagens repetidas, mesmo que também de modo original, sobre um tema ainda relevante para o homem contemporâneo. Nesse aspecto, a reprovação formalista do valor da imagem segundo Potebnia acaba por agregar-se a um dos aspectos que defendo como de formação e reafirmação de imaginários. Há toda uma defesa dos formalistas que aponta que as imagens pouco têm de variável, pouco têm de variação, que Quanto mais se compreende uma época mais nos persuadimos de que as imagens que consideramos como a criação de tal poeta, são tomadas de empréstimo de outros poetas quase que sem nenhuma alteração. Todo o trabalho das escolas poéticas não é mais do que a acumulação e a revelação de novos procedimentos para dispor e utilizar o material verbal, e isto consiste mais na disposição das imagens que na sua criação (CHKLOVSKI apud EIKHEINBAUM, [1925] 1973, p. 15). Já que não toco aqui de maneira ferrenha em questões de originalidade, pois entendo que um imaginário pouco se apoia na originalidade das imagens que o compõem e antes sim no acúmulo, na repetição e na recuperação indômita dessas imagens por seu(s) vetor(es), aqueles que de algum modo (no nosso caso, pela literatura) estiveram sujeitos a tal imaginária, a citação de Chklovski ilustra com precisão a relação Rulfo, Rivera, Fuentes ora levantada. Ainda que o termo “poética” fosse abordado pelo formalista russo de modo mais estrito para a poesia (principalmente o simbolismo russo) e com um pouco mais de boa vontade para a literatura de ficção como um todo, pode-se fazer uma retomada do termo a partir do conceito contemporâneo de poéticas, donde extrairíamos o debruçar de Rivera e Fuentes (e algo trabalhado em Rulfo) sobre poéticas do deslocamento, da migração e das relações daí advindas. Aos imaginários em que vão tocar, aos quais vão se aproximar entram em destaque muito pelo procedimento que adota cada autor no tratamento de imagens acumuladas de uma já citada poética que se estende pela contemporaneidade. Esse acumular serve à continuidade dos imaginários, e o procedimento de cada autor, vinculado a suas instâncias sócio-étnico-culturais vai ditar a apreensão de leitores que acabam por se identificar a essas mesmas instâncias, latentes na ficção de cada um desses escritores. 30 Para o tópico do tema de exploração do trabalho migratório dos chicanos nos Estados Unidos, abordado desde outras perfectivas ficcionais de um lado e do outro da fronteira mexicano-estadunidense, remeto o leitor uma vez mais ao prólogo de Julio Ramos e Gustavo Buenrostro da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra (2012, p. 43-6). 59 1.3 Historicizar para pensar: o que é um imaginário? Imaginarium imaginario, ria. (Del lat. imaginarĭus). 1. adj. Que solo existe en la imaginación. 2. adj. Se decía del estatuario o del pintor de imágenes. 3. m. Imagen que un grupo social, un país o una época tienen de sí mismos o de alguno de sus rasgos esenciales. 4. m. Repertorio de elementos simbólicos y conceptuales de un autor, una escuela o una tradición. 5. m. Psicol. Imagen simbólica a partir de la que se desarrolla una representación mental. (Diccionario de La Real Academia Española en Línea/RAE). Da epígrafe deste tópico nos fixemos primeiro no tautológico de tomar o termo imaginário aqui antes como substantivo do que como adjetivo; ou seja, falamos antes de o imaginário que de algo imaginário, razão pela qual, para efeitos de continuidade desde já eliminamos as duas primeiras definições da palavra (ainda que, no caso da definição 2, como exercício de abstração, possamos sim pensar o escritor como uma espécie de “pintor de imagens”). Porém, as três propostas seguintes para definir o termo, por serem substantivações, mostram-se mais de acordo com o que busco descrever de agora em diante. O teórico literário alemão Wolfgang Iser, em sua busca por desvendar o que de fato há de fictício na escrita de ficção, escreve que o texto ficcional carrega em si uma finalidade fingida, a qual nada mais é que a preparação de um imaginário (Cf. ISER, 1983, p. 385). Para o autor, o fingir não pode ser deduzido da realidade que busca repetir, fator pelo qual desse modo nele surgiria um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Por conseguinte, a realidade repetida se transformaria em signo, enquanto que, o imaginário, em um efeito daquilo a que se refere (Cf. ISER, 1983, p. 385-6). Já em nota adjunta ao artigo de onde se extraem estas considerações 31, Iser deixa claro que trabalha o termo ‘imaginário’ como uma designação comparativamente neutra, distinguindo-a, portanto, de conceitos como faculdade imaginativa, imaginação e fantasia, constantemente justificados como faculdades humanas. O fato de que pudessem ser encaradas como faculdades humanas é questionável para W. Iser, pois para ele cada conceito destes pode ter significados distintos mesmo dentro de uma mesma área do saber; por exemplo, o da fantasia: um para Freud, outro para Lacan, se nos atemos tão somente ao que se enquadra à psicanálise. O teórico alemão esclarece dessa maneira não buscar determinar o imaginário, 31 Traduzido ao português como “Os atos de fingir ou O que é fictício no texto ficcional” pelos conceituados intelectuais brasileiros Heidrun Krieger Olinto e Luiz Costa Lima. 60 mas, sim, circunscrever as maneiras como se manifesta e opera. Pretende antes descobrir como ele funciona, para que, desde os efeitos descritíveis se possam abrir vias, caminhos rumo, em direção ao imaginário, algo que resultaria da conexão, de acordo com o que trabalha em seu artigo, entre o fictício e o próprio imaginário (Cf. ISER, 1983, p. 413). Haja vista que a argumentação de Iser se refere, frente ao texto literário, à não determinação do imaginário como uma faculdade humana, parece-me razoável, em dialética com os argumentos expostos pelo autor alemão, expor certa divergência que trago em relação a suas colocações. A partir das observações que surgem do eixo de minhas investigações, creio, sim, que se possa relacionar a questão dos imaginários como algo que de fato tem a ver com o âmbito das faculdades humanas, em especial com a psicologia (o que nos faz voltar ao significado quatro que o dicionário da RAE confere ao vocábulo ‘imaginário’) e com processos mentais, químicos, cerebrais os quais, estes, sim, penso estejam envolvidos na função de abrirem vias para o imaginário. Não obstante, será o próprio Iser quem, em determinado momento de seu texto irá, quase à maneira de um discurso que se complementa, porém que ao mesmo passo “trai” a si mesmo, destacar o caráter de produção psicológica na relação do real e do fictício com o imaginário. Irei utilizar tal “ato de autotraição” algo mais adiante, pois parece uma boa ilustração para o fechamento das questões que desenvolvo neste breve diálogo com Iser. No entanto, há ainda para explorar outras interessantes aclarações do teórico alemão sobre o tema imaginários. Uma delas diz respeito a apontar que no ato de fingir “o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria, e adquire, deste modo, um predicado de realidade” (ISER, 1983, p. 386). Para Iser, o real tem a característica da determinação (a qual se alcança através do ato de fingir) como sua definição mínima. Em consequência, ainda que não se transforme em real por este efeito determinante logrado pela ação de fingir, o imaginário pode, em verdade, adquirir aparência de real enquanto puder por esse ato penetrar no mundo e só então nele agir (Cf. ISER, 1983, p. 386). Neste aspecto, o imaginário desempenha um papel transgressor de limites ao sair de seu caráter de surgimento difuso para uma configuração determinada, razão pela qual só assim se assemelharia, confundir-se-ia mais com o real. De tal operação se depreende, ainda segundo Iser, que sucede ao imaginário uma realização (ein Realwerden) na conversão deste mesmo imaginário (que perde seu rasgo fluido em favor de uma determinação) em efeito da realidade vivencial, retomada pelo texto, à qual este mesmo imaginário se refere e com a qual ao mesmo tempo se relaciona (Cf. ISER, 1983, p. 387). 61 Ainda acerca da correlação que se estabelece entre realidade e imaginário, cabe observar que inclusive a eterna discussão sobre a intenção autoral merece a atenção de Iser no desenrolar de sua exposição. Para W. Iser, para além da intencionalidade do autor estaria a intencionalidade do texto, pois ela se manifestaria na decomposição dos campos de referência com que trabalha este mesmo texto literário. Dessa maneira, a intencionalidade textual passa a apresentar-se como figura de transição (Übergangsgestalt) entre o real e o imaginário, sob o preceito da atualidade que lhe é própria e inerente. Segundo sua linha de raciocínio, entendase por atualidade a forma de expressão do acontecimento; tal atualidade se refere ao processo pelo qual o imaginário age no espaço do real. Estabelecidas essas bases, Wolfgang Iser segue além com sua proposta substitutiva do binarismo que advém do lugar comum onde se costuma opor de maneira simplista ficção e realidade. A esse simplismo Iser propõe a entrada de outra visão: a de que se trabalhe a relação complementária entre real, fictício e imaginário. Nesse aspecto, há que destacar-se, ademais, o papel do fictício, uma espécie de conjunto de ficções (em um sentido que não se restringe apenas à arte ou à literatura, senão melhor como uma gama de entidades fictícias, compreendidas tais objetos de existência fingida pela imaginação).32 Para W. Iser, o fictício se qualifica como uma forma específica de passagem a mover-se entre o real e o imaginário, com a finalidade de provocar a complementação que um confere ao outro (Cf. ISER, p. 387). Com efeito, o papel principal do fictício seria o de garantir ao imaginário sua significação, por intermédio tanto da determinação de sua configuração quanto de sua referência a algo real, o que apenas poderia ocorrer através da língua. É pela língua que as ficções adquiririam aparência de realidade, aparência esta que teria origem na configuração concreta que as ficções, entidades fictícias, outorgam ao imaginário. Assim sendo, as ficções tomariam por empréstimo o caráter de realidade da língua. Como consequência, pode-se assim dizer que o imaginário sai de sua “irrealização” na imaginação para um caráter de “realização” na língua, seja, como aqui se nos apresenta como eixo analítico, em sua forma cotidiana ou literária. Isto exposto, é importante destacar que essa realização do imaginário por intermédio da língua passa antes por todo um processo de procura de significado, ou seja, uma busca de semantização da experiência do imaginário, necessidade sentida, vivida pelo receptor, para que o advento do imaginário se torne ou, melhor dito, molde-se a tons de mais familiaridade, tornando-se mais compreensível, menos expansivo e, portanto, mais controlável. Neste 32 Aqui Iser trabalha a partir dos estudos do filósofo inglês Jeremy Bentham, materializados em Theory of fictions, publicado em 1959, mais de um século após sua morte e passados dois anos da morte de C. K. Ogden, responsável por cuidar da organização desta obra de Bentham. 62 tocante, tenha-se o sentido em um texto ficcional como uma inevitável operação em que a semantização produz nos receptores o mesmo processo de tradução que o fictício efetua em seus agentes produtores. Tais processos complementares de tradução do imaginário comprovariam, assim, ser este a energia constitutiva do texto ficcional. Para Iser (1983, p. 409), “se o fictício é a tradução do imaginário na configuração concreta para o fim de uso, a semantização é a tradução de um acontecimento experimentado na compreensão do produzido”. Tudo isso resulta de outra correspondência com a psicologia, levada a cabo por Wolfgang Iser. Nela, o autor alemão trabalha a correlação entre percepção e representação tal como empregada pela psicologia gestaltista. A tomada que faz desta teoria advém da corrente da psicologia da Gestalt em que representação e percepção se empregam no sentido de fechamento de formas, com as quais ambas ocorrem ao mesmo tempo, em que ambas são produzidas através de nosso hábito psíquico de orientar a atividade de classificação dos elementos absorvidos do real. Compreendida a Gestalt, grosso modo, como um processo, um ato de buscar dar forma, de configurar o que se apresenta, o que se vê, o que se tem posto diante dos olhos, exposto à nossa mirada 33, pode-se dizer, a partir dos argumentos iserianos, que somente quando uma Gestalt se fecha é que se realiza a percepção, ou seja, apenas a partir de então o objeto imaginário surge na consciência imaginante. Por isso, buscamos a ‘ordenação’ dos dados, para que os possamos distribuir de maneira a possibilitar a eliminação da tensão que há no surgir aparentemente indômito do imaginário até enfim alcançar-se, já na Gestalt fechada, a determinação que se pretende ter, a procura por fornecer ao imaginário um caráter de “concretude”, diferente de sua inicial característica difusa de surgimento. Isso faz com que, do caractere arbitrário que traz consigo o imaginário quando de seu ‘nascimento’, produza-se de modo consequente a necessidade humana do receptor em controlar a experiência de acontecimento do imaginário (das ereignishafte Erfahren des Imaginaren) (Cf. ISER, 1983, p. 408). No que diz respeito a essa espécie de busca por controlar o imaginário, coincidem algumas ideias de Iser com as de outro teórico que lança olhar sobre o assunto. Trata-se do teórico literário brasileiro Luiz Costa Lima, contemporâneo do alemão e em quem ao mesmo passo ele encontra margem para diálogos entretecidos sobre algumas das questões teóricoliterárias que movem a ambos. 33 Entende-se aqui que mesmo os cegos podem “ver”, portanto imaginar, através e a partir de seus outros sentidos, portas aguçadas tanto para sua percepção quanto para sua representação (ou reapresentação) do que captam. 63 Embora o controle do imaginário a que se refere Wolfgang Iser seja tratado de modo mais abrangente pelo autor brasileiro (saindo um tanto mais da esfera do indivíduo para o uso dos aparelhos controladores do Estado, da Igreja, do mercado etc.), resulta complementador trazer à luz alguns de seus esclarecimentos sobre a abordagem do imaginário. Entretanto, é importante repetir que suas observações não se detêm tanto em teorizar o imaginário, mas, na verdade, referir-se ao controle exercido sobre este34. Ainda assim, em seu percurso na direção das origens de tal controle há também o registro do encontro do autor com possibilidades de origens do termo imaginário, estivessem estas tanto na mímema grega quanto na tradução romana, e depois renascentista, de mímesis por imitatio e não, por exemplo, por emulatio, que em verdade levaria até o sentido de emulação que talvez quisessem transmitir romanos e renascentistas (neste caso, uma provável escolha com propósito, ainda que não declarado, controlador). Porém, são as coincidências de pensamento entre o brasileiro e o alemão as que mais cobram atenção. Costa Lima retoma seu colega alemão ao corroborar uma questão chave na explanação iseriana sobre o que é fictício no texto ficcional: a explicação dos atos de fingir através de sua ligação com a estrutura que Iser denomina como se. Costa Lima concorda com Iser quando este aponta que é sob a ótica do como se que o ato de fingir se refere ao mundo e se conecta ao imaginário, atualizando-o. Por essa referência e conexão é que são assim transgredidos os limites tanto do mundo como do imaginário (Cf. LIMA, 2007, p. 96). O teórico brasileiro ainda estende um pouco mais suas explicações ao diferenciar ficção interna de externa. A primeira é a que se realiza em uma obra ficcional (um romance, um poema, uma peça teatral, um filme ou uma pintura não estritamente abstrata, por exemplo). As ficções externas seriam aquelas em que se dá a utilização do como se, por serem formas de presunção que presidem o inter-relacionamento humano, que não se baseiam em uma convenção estabelecida ou mesmo em uma hipótese razoável (Cf. LIMA in BASTOS, 2010, p. 381)35. 34 Haja vista, por exemplo, os títulos de suas obras dedicadas ao tema, como: Trilogia do controle (2007), compilação que reúne os volumes de O controle do imaginário. Razão e imaginação nos tempos modernos (1984), Sociedade e discurso ficcional (1986) e O fingidor e o censor (1988). Além de O controle do imaginário & a afirmação do romance (2009). Algo também preponderante em outro autor de suma importância a tratar do imaginário. O filósofo francês Gilbert Durand (2011, p. 12), já trabalhado no tópico 1.2 e que ora e vez será retomado na análise dos corpora, aborda muito o tema imaginário desde o ponto de vista de “resistências do imaginário”, resistências de toda uma imaginária (termo também do autor) por um iconoclasmo ocidental de cunho não só religioso, mas também ideológico, atinente ao campo das ideias, imposto pela retomada do pensamento racionalista aristotélico por correntes como o positivismo e o cientificismo ocidentais. 35 Explicação de Costa Lima sobre ficção interna e externa, no livro Luiz Costa Lima: uma obra em questão (2010), que reúne uma série de entrevistas concedidas a diferentes teóricos interlocutores, organizadas pelo teórico brasileiro Dau Bastos. 64 É curioso notar que estes dois relevantes teóricos, inclinando-se a estudar os efeitos, as relações e o controle sobre o imaginário se assemelham inclusive em possíveis contradições existentes em seus raciocínios, o que, a meu modo de ver, reflete-se principalmente no que toca à questão do imaginário como condição inerente a faculdades humanas. Costa Lima, voltado mais especificamente aos atos de controle, minimiza a importância, por exemplo, de teorias que vinculam a capacidade humana de imaginar a funções físicas básicas de sobrevivência ou a partes “arcaicas” do cérebro (Cf. LIMA, 2007, p. 168). Ao mesmo passo, contraditoriamente, traz exemplos nos quais o controle exercido sobre o imaginário encontrava sua “justificativa” na associação deste mesmo imaginário a divagações mentais, algo que o tornavam desde inimigo da Razão a partícipe na fratura humana entre a capacidade positiva de alcançar representações exatas e a negativa de sofrer paixões e criar imagens, limites estes demonstrados por Descartes e até mesmo pela Ilustração. Ainda que não se ateste aqui uma abordagem sua acerca do tema, pode-se verificar a proximidade de uma historicização do termo. E se em Luiz Costa Lima a vinculação do imaginário às faculdades humanas passa pelas ramas filosóficas, em Wolfgang Iser o questionamento a tal vínculo parece contradizerse quando este eleva suas abordagens a correspondências com a psicologia. Nelas talvez esteja a dicotomia de seu texto, pois, ao mesmo tempo em que questiona o imaginário como produto de uma faculdade humana, Iser dialoga com a psicologia e a psicanálise como parte do embasamento teórico que utiliza no aprofundamento de sua argumentação. Apoio-me, então, em um desses “deslizes” para reafirmar minha opinião de que o imaginário passa de fato por vias das faculdades humanas, apoiando-me para tanto no próprio Iser, quando ele escreve que o imaginário é por nós experimentado antes de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de referência. Ele se manifesta em situações inesperadas e daí que de advento arbitrário, situações que ou se interrompem ou prosseguem noutras bem diversas (ISER, 1983, p.386). Temos, pois, no fragmento acima a explanação iseriana sobre o modo como experimentamos o imaginário; sua característica difusa, informe, fluida, sem referencialidade só pode assim ser colocada se pensamos seu principal ponto de impacto no receptor: a mente, sua psique, as sensações (advindas de suas faculdades humanas, faculdades mentais) que nele despertam as situações inesperadas de que pode surgir num dado momento o imaginário, ou imaginários. Porém, para ainda uma melhor compreensão de que o imaginário passa pelas 65 vias de sensações e faculdades humanas, proponho uma espécie de exercício de imaginação, com a participação de um convidado ilustre: Octavio Paz Lozano. A figura de Octavio Paz é central no presente trabalho devido, primeiro, ao encontro de suas convicções com as de Samuel Ramos, outro grande pensador da identidade mexicana; e, depois, devido à influência de ambos sobre muitos dos temas levantados pela escrita de Carlos Fuentes36, um dos “carros-chefes” da pesquisa que ora se materializa. Dentre tais temas em que os três coincidem, está o da mexicanidade frente à alteridade ianque, anglo, norte-americana, estadunidense. Destaca-se, ainda, o registro da leitura e apreço ao clássico livro de ensaios pazianos El laberinto de la soledad, expressado em carta enviada por Tomás Rivera (junto com um exemplar de seu ...y no se lo tragó la tierra) a Paz em 197237. Referências apresentadas, tornemos enfim ao exercício em que viso aprofundar ainda mais a ligação do imaginário com faculdades mentais. Para tanto, interessa-me trazer à luz uma “imagem” imersa no cenário de conflitos identitários de que tratam meus argumentos. Evocada em seu El Laberinto de la soledad, nessa imagem é o próprio Octávio Paz quem “participa” da “cena”, mesclando-se ao imaginário do qual passa a formar parte quase como um personagem: Al iniciar mi vida en los Estados Unidos residí algún tiempo en Los Ángeles, ciudad habitada por más de un millón de personas de origen mexicano. A primera vista sorprende al viajero – además de la pureza del cielo y de la fealdad de las dispersas y ostentosas construcciones – la atmósfera vagamente mexicana de la ciudad (…). Esta mexicanidad – gusto por los adornos, descuido y Fausto, negligencia, pasión y reserva – flota en el aire (…) porque no se mezcla ni se funde (…) con el mundo norteamericano, hecho de precisión y eficacia. Flota, pero no se opone (PAZ, [1950] 1959, p. 12). Perceba-se que no fragmento acima travamos contato com um Paz quase baudeleriano, benjaminiano, um flâneur, um viajero que interfere sobre uma imagem a qual retoma, interagindo junto a ela, a esta paisagem, sob o auxílio da memória (“Ao iniciar minha vida nos Estados Unidos residi algum tempo em Los Angeles”/Tradução e grifo meus). Interpreta o que vê, o que sente, extrai disso uma mexicanidade (“negativa”, é bem verdade: “gosto pelos adornos, descuido e Fausto, negligência, paixão e reserva”) e, poeticamente, através de traços e tipos (também retomados por Fuentes em La frontera de cristal) subjacentes sob o 36 Para a leitura ainda mais aprofundada de vinculação entre estes três grandes intelectuais mexicanos, remeto o leitor aos capítulos 1 e 3 de minha dissertação de mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em La frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010). Ali, ao tratar de modo mais específico do interesse convergente dos três autores em deslindar uma pretensa identidade nacional mexicana, desenvolvo argumentação sobre a ligação entre as linhas de pensamento adotadas pelos três autores. 37 Remeto o leitor à seção de anexos da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra (2012, p. 262), onde consta fotocópia autorizada da referida correspondência. 66 manto da descrição, mas, também, como um yo quase personagem lhe outorga a essa mesma imagem-paisagem sua marca; sua contribuição a um imaginário (comparativo pendente para o “positivo” quando descreve o mundo norte-americano: “feito de precisão e eficácia”) o qual, este sim, flotará en el aire até que se o tome ou se deixe tomar por outro viajero, outro receptor, outro leitor de sua obra38. Entretanto, como parte final do exercício proposto, haveria que imaginar-se a um novo viajero, que, pela primeira vez, pisa em Paso del Norte Ciudad Juárez, parte do solo de seu objeto de estudo, presente em mostras literárias “reveladoras” de imagens utilizadas na composição, assunção e perpetuação de imaginários acerca das conturbadas relações mexicano-estadunidenses. Haveria que questionar-se alguém sobre o que sente, o que vê, que caminhos percorrem o imaginário, o depositário de imagens que traz de suas leituras contrapondo-se, entremesclando-se à ótica que insere neste real agora experimentado, porém antes imaginado por ele graças à literatura em Samuel Ramos, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Tomás Rivera, Juan Rulfo. Lográssemos imaginá-lo e talvez nos déssemos conta da quantidade de sensações quem sabe, e/ou inclusive, químicas que a literatura tem o poder de despertar, enquanto evocadora, provocadora de imagens, despertando, incitando a imaginação, participando em, fomentando a criação de imaginários, particulares ou mesmo coletivos. Imaginemos por fim que a este novo viajero se lhe surge de modo inesperado (semelhante ao defendido por Iser) a confrontação de seu imaginário prévio, particular (por que não dizer carregado de pré-conceitos, preconceitos) com o olor, a poeira, o espaço do deserto, com a guerra que já não há (não lhe tratam mal os “anglos”) e a guerra discursiva (nela o ano de 1848 não encerrou a Guerra mexicano-americana), ainda que por vezes quase, quase silenciosa, que ainda segue existindo em cidades onde pode alguém confundir-se se mexicanoestadunidencizadas ou estadounidensemexicanizadas. Daí que se pode inferir desse exercício de imagens em ação a possível renovação de imaginários sociais, transnacionais com os quais a mesma literatura que um dia se quis confundir com a História (contribuindo para a fixação do nacional) interage a partir dos efeitos que causa, da ação que proporciona junto às sensações, ao cérebro e à psique humana. Cabe, dessa forma, uma última proposta de contributo necessário à teorização do imaginário: o que se imagina de; ideia sobre; conjunto, depositário de imagens, de ideias assentadas na mente, na memória (individual e/ou coletiva), flutuantes em um inconsciente 38 Análises comparativas mais estendidas fazem parte dos capítulos de leitura do corpus. 67 coletivo, reconstruídas, (re)despertadas a partir de determinadas sensações, situações em que pode desempenhar papel decisivo a literatura. 68 2 ELIPSE E LACONISMO: A NARRATIVA EM INSTANTÂNEOS LITERÁRIOS DE ...Y NO SE LO TRAGÓ LA TIERRA O termo “chicana” figura em variados dicionários brasileiros de língua portuguesa o mais das vezes como um substantivo representativo de ardil, astúcia, malícia 39. Pouco usual na fala comum, cotidiana, é raro seu uso até mesmo nos discursos da dita norma culta, tendo utilização mais bem alocada ao meio jurídico, onde aparece como sinônimo de manobra capciosa, abuso de recursos com base em sutilezas propiciadas pela própria formalidade da justiça, mas encaradas como utilização intencional de meios, de detalhes irrelevantes dos quais pode se valer o advogado para atrasar todo um processo. Abordadas essas duas possibilidades semânticas do termo, esses dois aspectos do verbete em português, o fato é que em ambos há o encontro de que a palavra deriva do francês chicane. Tal galicismo parece remontar suas origens ao século XVI, com o significado bélico de desvio em ziguezague por um entrincheiramento. Essa mesma origem francesa acompanha, ainda, o significado de mecanismo que obstaculiza a livre passagem de um elemento fluido ou sólido, transposto, também, ao meio jurídico da mesma forma que em português e à outra utilização contemporânea no círculo automobilístico, como objeto de desvio, desaceleração por intermédio de pneus dispostos de modo lateral à pista ou por uma sequencial de curvas em “s” logo após uma grande reta. Não. Em sua etimologia, o galicismo feminino e o “mechicanismo”, tanto em masculino como em feminino, não parecem ter a mesma origem, algo que evidencie uma mesma raiz semântica. No entanto, resulta minimamente curioso o fato de que coincidam de certa maneira nas heranças neolatinas de chicane/chicana (do gálico ao francês e daí ao português) e meso-hispano-americanas de chicano (do náuatle que dá origem a “mexica” à apropriação espanhola, portanto também neolatina, com contribuição sufixal no termo “mexicano” e daí ao nome cortado – como sugere Jean-Luc Nancy em interessante ensaio de 201240 – “chicano”, já em solo estadunidense); resulta interessante, pois, a permanência semântica da relação com o movimento (migratório no caso chicano) e com o desvio (já seja encarado como desvio físico ou mesmo como desvio à norma, a regras, razão pela qual aqui tal caráter se assemelha à carga de imposições/significações depreciativas dadas ao nome “chicano” enquanto denominação estrangeira em solo ianque). 39 Dicionário Aurélio da língua portuguesa em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Eletrônico versão 5.12 (2004). 40 “Sol cuello cortado” (NANCY, 2012, p. 163-79). 69 É, então, atrelado a esse caráter chicano de deslocamento, que movo meus argumentos neste segundo capítulo. Seguindo essa linha de raciocínio, a interpretação que dedico ao clássico da literatura chicana ...y no se lo tragó la tierra se movimenta ao redor do seguinte eixo de abordagem: a) num primeiro momento, analiso a estrutura romanesca em elipse orquestrada por Rivera, com destaque para sua coincidência quanto ao modo elíptico de narrar usado pelo autor; b) em seguida, no segundo tópico do capítulo, volto meu olhar para o narrador (ou narradores) criado(s) por Rivera para contar uma história intimamente vinculada à infância do próprio autor, sem que isso, entretanto, afaste a obra ora em epígrafe do poder imaginativo caro às narrativas literárias de ficção; e c) terceira parte do capítulo, na qual as questões tratadas nos tópicos anteriores acabam por desembocar no imagético que se levanta do romance. Assim, é a partir da proposição de movimento acima descrita que me pauto para a consecução da leitura exposta a seguir. 2.1 A elipse romanesca de Tomás Rivera ...y no se lo tragó la tierra é um romance cujo tom introspectivo é ditado pelos catorze contos que o compõem de modo sugestivamente descontínuo, desconexo. Neles, o protagonista busca os caminhos de sua identidade reconstruindo histórias vividas e a ele contadas durante doze meses de migração familiar pelos campos de cultivo da região sudoeste dos Estados Unidos. Neste enredo, não expositivo, repleto de implícitos, ressalta-se a força do movimento chicano, dos trabalhadores migratórios e sua tenacidade. Esta narrativa, quase todo o tempo em primeira pessoa (cujos elos não são fáceis de serem unidos tão-somente em uma primeira leitura), conta a história de um adolescente de ascendência mexicana, radicado nos Estados Unidos, criado, porém, dentro da cultura mexicana trazida por seus pais. Através de um “relato”41 quase todo ele em solilóquio (havendo também a presença de outras “vozes” evocadas pelo próprio menino protagonista e ainda uma narração em terceira pessoa, que só ao fim se revela como pertencente a este 41 O termo “relato” aparece aqui entre aspas porque é comum que em espanhol ele seja usado também como sinônimo de conto, de narração. Ocorre que, em português, o termo tem sua semântica bastante aproximada à narração de fatos, algo que poderia dar-lhe uma carga maior de proximidade com o real, com a realidade empírica. Por essa razão, embora seja comum encontrar na crítica em espanhol a palavra relato para referir-se aos contos que dão forma à ...y no se lo tragó la tierra, tal palavra será aqui evitada o mais das vezes com vistas a desaconselhar uma possível, porém perigosa se excessiva aproximação da obra literária para com o real empírico. Ainda que seja um consenso crítico a vinculação do enredo ficcional de ...y no se lo tragó para com a vida de seu autor Tomás Rivera, é preciso que se separe o que em sua obra aparece, como o próprio escritor afirma (1975, p. 66-77), como parte de um processo imaginativo, perto, muito perto de seu passado de menino chicano, mas, ainda assim, simulacro que joga com o real empírico em relação de similitude, semelhança e não de perfeita igualdade, de retrato “fiel”. 70 mesmo “menino” narrador) pode o leitor enveredar-se pelos caminhos e descaminhos de um recurrido traspassado de preconceitos sofridos por conta da cultura e etnicidade de seu personagem principal42. O estilo trazido à baila nesta obra de Tomás Rivera indica a predileção pelo uso do que podemos chamar de economia linguística. Assim, o laconismo no narrado sugere e ativa, instiga a percepção do leitor/receptor a partir do rumor que deixa a secura desse mesmo narrar, certa “ausência” de palavras a mais demonstrada já no título do romance, iniciado de forma elíptica por reticências e pela conjunção y, sugerindo uma anterioridade ausente, “continuada” e abruptamente cortada em tierra. Em uma operação que cobra mais perguntas do que respostas, a busca de nexos para esse título elíptico dá esperanças ao leitor de encontradas serem tais “soluções” em um conto homônimo, na sétima história que empresta seu título à obra. Porém, mais do que o encontro com uma evidente e já esperada remissão à exploração do trabalho laboral com a terra, o leitor se depara ante a ação das resultantes desse trabaje y trabaje debaixo de sol e suor sobre a mente de um irmão de nosso personagem principal. Sentindo ódio e coragem, inconformado pela perda sucessiva de parentes próximos para a tuberculose, o irmão mais velho do menino narrador amaldiçoa a Deus, quando vê seu irmão menor e seu pai acometidos pela mesma doença que levara seus entes ou ao sanatório ou à morte. Desse modo, acaba sendo ledo engano do leitor a busca de nexos que respondessem pelo todo do enredo a partir do encontro de um correspondente para o título em elipse. Em vez disso, o que se tem é um contar seco em que o maior destaque é o desafio desesperado ao apego a tradições religiosas, forte na mãe dos meninos, entre conformada e esperançosa de que a vontade divina não fosse a de que a terra tragasse nem pai, nem filho menor, sequer o filho mais velho que amaldiçoava dessa maneira a Deus: Como a medio camino se empezó a enfurecer y luego comenzó a llorar de puro coraje. (…) Luego empezó a echar maldiciones. Y no supo ni cuándo, pero lo que dijo lo había tenido ganas de decir desde hacía mucho tiempo. Maldijo a Dios. Al hacerlo sintió el miedo infundido por los años y por sus padres. Por un segundo vio que se abría la tierra para tragárselo. Luego se sintió andando por la tierra bien apretada, más apretada que nunca. Entonces le entró el coraje de nuevo y se 42 Tal narrado de descaminhos não impede, porém, que se perceba na obra uma relativização da condição chicana, não havendo uma heroicização excessiva dos sujeitos migrantes e sequer uma demonização antitética, por assim dizer, da alteridade estadunidense. Ilustram tal observação a presença de personagens chicanos ladrões e assassinos, que tomam conta do menino narrador para que ele termine seu ano letivo durante uma das migrações trabalhistas rurais de sua família no conto “La mano en la bolsa”, e de personagens (especialmente professoras) estadunidenses “anglos” tocados (algo não muito comum nem à época nem no enredo do romance) pela ternura do menino chicano, como no caso de “La profesora se asombró...”, estampa que antecede o conto “Los quemaditos”. 71 desahogó maldiciendo a Dios. Cuando vio a su hermanito ya no se le hacía tan enfermo. (…) Esa noche no se durmió hasta muy tarde. Tenía una paz que nunca había sentido antes. (…) para cuando amaneció su padre estaba mejor. Ya iba de alivio. A su hermanito también casi le fueron de encima los calambres (Rivera, [1971] 2012, p. 49). Assim sendo, se vai o leitor direto ao conto que dá título ao romance em busca de um resumo da obra, o único com o qual se depara é uma proposta (em elipse lacônica) de que leia mais do todo para encontrar seus nexos. E é essa proposição de movimento que nos impele, pois, que tornemos à elipse e sua relação com a imagem em ...y no se lo tragó. Conforme adiantei ainda no primeiro capítulo, a elipse em Tomás Rivera, além de figura de estilo, é também uma remissão à forma geométrica de mesmo nome. Em forma de elipse matemática, a construção narrativa de ...y no se lo tragó concede ligação a pontos de aparente descontinuidade, ligados, contudo, entre dois outros pontos de fixação. Nessa configuração elíptica, os números 1 e 2 são essenciais na organização estrutural da obra. Os doze (12) contos componentes do corpo de desenvolvimento do romance estão ladeados por dois outros colocados entre um extremo e outro do enredo. Estas duas “extremidades” têm fixidez variável e, ainda que desaconselhável, uma possível troca de posição entre ambas não alteraria sua função de Introdução e Conclusão para a já mencionada “seção” de Desenvolvimento. Em tal construção narrativa do doze (12) ladeado por 1 (Introdução) e 2 (Conclusão) se apoia outra: uma estampa introdutória para cada um desses doze contos que sucedem o conto-introdução e que precedem o conto-conclusão (este também antecedido por uma estampa). Desse modo, como anunciei em meu primeiro capítulo, a estrutura 1 (12 e 12) (1) 2 leva à leitura de uma introdução precedente a doze estampas e doze contos antecedentes de uma conclusão (também precedida por outra estampa). Esse último conto é um capítulo conclusivo em possibilidade de troca posicional apenas com o capítulo introdutório, sem prejuízo do que em ...y no se lo tragó la tierra pode ser chamado de ciclo narrativo elípticoromanesco, uma grande elipse que encerra, na organização variável de seus elementos aparentemente descontínuos, uma totalidade romanesca cujo princípio dramático se vê preservado na trama de rememoração crítica que nos é oferecida pelo protagonista do romance. A lembrança da elipse como figuração geométrica – ou seja, uma curva plana fechada na qual todos os pontos têm como propriedade comum a soma das suas distâncias em relação a dois eixos fixos no interior dessa mesma figura – estabelece a possibilidade da seguinte 72 analogia: assim como na elipse matemática, há também, no romance de Tomás Rivera, dois pontos fixos, dois focos que são os contos 1, de abertura, e 2, de encerramento; concomitantemente, todos os pontos que restam se veem reunidos no interior da curva elíptica narrativa, por intermédio da relação 1 e 1 (uma estampa, um conto-capítulo), repetida doze vezes, com suas distâncias relacionadas (não de forma linear) para com os nexos que se estabelecem com os eixos “fixos” Introdução e Conclusão (esta também precedida por uma última estampa). A figura que criei e insiro abaixo busca ilustrar algo da descrição de construção elíptica operada pela narrativa de Rivera: 1 [(1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1) + (1 e 1)] (1) 2 Figura 1 – A elipse romanesca de Rivera em ...y no se lo tragó la tierra. A visão dessa elipse como imagem formadora do “desenho” do texto é importante, ainda, para anotar de que modo se correlacionam implícitos, subentendidos, omissão de palavras (propriedades tanto da elipse sintática quanto do gênero conto) em ...y no se lo tragó. O laconismo das elipses no romance de Rivera parece convocar o leitor a pensar a partir dos espaços deixados “em branco”, esperando desse receptor a procura de elos coesivos que a narrativa supostamente deixa em aberto. É quando chama a atenção o papel da estampa e da narrativa breve que vem logo em seguida, pois é do efeito de imagem alcançado por cada uma dessas esferas narratológicas que será estabelecido o vínculo do enredo com o imagético e, por conseguinte, com imaginários. O vínculo crítico entre parte da vida de Tomás Rivera e o enredo de seu romance, apesar de perigoso, acaba por fazer com que se possa pensar também essa obra como uma espécie de memorial de um ano de repetidos momentos de migração rural familiar de um menino, seus pais, seus irmãos e sua gente. Nesse sentido, estampas e contos na obra funcionam como a representação literária de fragmentos de memória dispostos em aparente descontinuidade que remete não só à fragmentação identitária de um sujeito entre bifronteiridades, bem como à ausência de linearidade comum à irrupção de memórias no indivíduo. Para a falta de linearidade em seus recuerdos, o “menino” narrador riverano deixa, porém, a disposição dos dois capítulos que, mesmo que trocados seus lugares entre si, abrem e fecham em elipse uma narrativa a qual necessita da procura leitora por elos coesivos nas 73 estampas que apresentam (embora nem sempre haja uma relação imediata) os contos que as seguem. Essas mesmas estampas irruptivas terminam, ao fim, por se revelarem como histórias contadas ao menino protagonista, e a ação dele ante os costumes e a cultura dos seus nos bairros e assentamentos rurais por onde passava em seu giro migratório e laboral familiar. Está, pois na relação das estampas narrativas com costumes e cultura uma imbricação seguinte desse modo breve de contar para com outra significação possível para o significante IMAGEM: a de estampa representativa de motivo ou assunto religioso, valores muitas vezes postos em xeque nas estampas rememorativas das ações de un niño, um muchacho diante de tal religiosidade em um solo alheio e hostil a tantas marcas pluriculturais, próprias do universo chicano. Entretanto, mais que pintura representativa de relação com o cultural, os costumes e o religioso de toda uma coletividade, a estampa e seu laconismo servem de verdadeiros instantâneos fotográficos de memória, instantes apreendidos por uma lente de reminiscências. Apoiadas em um registro literário lacônico, que sugere precisar do leitor/receptor dessas imagens na busca por um antes e depois da tomada desses instantâneos, essas imagens lacônicas incitam, ainda, a busca por saber quem é agente e quem é paciente na apreensão dessas “fotos”. É assim que, na procura por esses nexos coesivos há que se notar que, enquanto, em ...y no se lo tragó la tierra, estampa e instantâneo se assemelham, seu capítulo imediatamente seguinte é algo um pouco mais extenso, sugerindo pensar nele como uma fotografia, digamos, “mais trabalhada”, como um fragmento de memória para o qual se detém mais quem o recupera, para o qual dá talvez mais atenção o narrador dessas “fotos”. Dessa maneira, identifica-se até mesmo certa gradação entre as cores das imagens promovidas pela narrativa de Rivera. Enquanto, apesar de menores em extensão, as estampasinstantâneos trazem uma ou outra cor a mais ao narrarem, inclusive, embora não sempre, alguns momentos que beiram certo sentido (às vezes irônico) de felicidade e ternura; enquanto isso, como ia dizendo, os contos que as seguem têm, no rumor lacônico de suas (in)conclusões, aproximação maior com outro tipo de foto, a que se revela em preto e branco. Parece propositadamente faltarem cores às narrativas dos contos pós-estampas, com a intenção que se deixe por conta do receptor a reflexão do estranhamento causado pela elipse em preto e branco deixada em suas mãos. Esses nexos só poderão ser encontrados pelo leitor quando ele se propuser a reler os contos e suas estampas precedentes no romance, em um movimento de completar a volta 74 inteira da elipse narrativa de Rivera, como sugere o protagonista narrador na abertura, com os elos coesivos compreendidos na relação de troca evidenciada entre os contos introdução e conclusão. A remissão a essas fotos em preto e branco, todavia, leva, ainda, a outro ponto de análise da imagem no romance de Tomás Rivera, um contato evidente de sua obra para com a de Juan Rulfo, como demonstro a seguir. Na primeira edição latino-americana de ...y no se lo tragó la tierra, os já mencionados Ramos e Buenrostro (2012, p. 8-63) destacam tal vinculação, apontando para o fato de Rulfo fazer parte das genealogias literárias de Rivera 43. No entanto, ainda que esses autores realcem a proximidade estilística entre Rulfo e Rivera (pondo em relevo que muitos elementos do estilo rulfoniano terminariam por fazer escola, por influenciar autores tanto do gênero conto quanto de toda uma narrativa romanesca mais introspectiva, entrecortada por planos simultâneos), deixam de aproximar o caráter cru do laconismo com o trabalho empírico do mesmo Juan Rulfo como fotógrafo, de suas imagens em preto e branco, flagrantes de instantâneos de vida e espaço (“identidade”, topos e tempo) do mexicano. Ramos e Buenrostro, antes, aproximam o texto riverano a fotógrafos que lançaram um olhar particular para questões migratórias e fronteiriças44, o que é perfeitamente compreensível e pertinente. Contudo, ainda que Juan Rulfo em El llano en llamas não cruze a fronteira para os Estados Unidos e caminho inverso praticamente não o faça Tomás Rivera em ...y no se lo tragó la tierra (a não ser pela identidade de personagens carregados de mexicanidade), a obra de Rivera toca na fotografia rulfoniana. E o faz pela mesma crueza que estabelece correspondência para com os textos de Rulfo, através de narrados secos, duros e crus que só a elipse e o laconismo poderiam revelar, não como fotos que se apresentem, que finjam ser fiéis retratos da vida, mas como fragmentos de memória passíveis de toda observação, repaginação, removimentação e reapresentação. Fragmentos de memória, essa mesma instância, faculdade do pensamento carregada de imagens incertas, volúveis, que precisam ser completadas e recompletadas em sua rememoração, assim sendo carregadas de ficção. Crus, como uma foto em preto e branco está para a mesma foto em cores. Crus na ficção de memória proposta pelo menino narrador protagonista do chicano Tomás Rivera. Antes de encerrar este tópico, cabe, porém, um retorno à informação de que, ao postular a questão da elipse matemática como imagem maior à qual se encaixam a elipse 43 Apesar da primorosa contribuição dos argumentos de Ramos e Buenrostro (2012) para quem se inclina sobre o tema, destaco que tal vinculação Rivera-Rulfo já havia sido por mim demonstrada na comunicação “...y no se lo tragó la tierra: ¿De qué literatura hablamos aquí?”, apresentada durante o XVII Congreso de Literatura Mexicana Contemporánea, na University of Texas at El Paso (EUA), em março de 2012; enquanto a inestimável publicação argentina terminaria de ser impressa em outubro daquele mesmo ano. 44 São eles a estadunidense Dorothea Lange e o argentino Julio Pantoja. 75 gramática e o laconismo, apresentei também uma provável relação de troca entre o conto introdução e o conto conclusão. No entanto, versei tal operação como desaconselhável por entender, ao fim e ao cabo, que introdução e conclusão na obra em epígrafe têm, ou apresentam, em verdade, uma falsa, mesmo que possível, relação de troca. Tal proposição de troca de posições entre o conto introdução e o conto conclusão foi feita a primeira vez de modo bastante interessante pelo crítico literário e escritor espanhol especialista em literatura chicana Justo S. Alarcón (1988, p. 67-74). Nela, tal autor questiona a circularidade romanesca da obra de Rivera, observando desde um ponto de vista fenomenológico que [p]or una parte, el capítulo introductorio no es más que un pedazo desprendido del capítulo de la conclusión. Más aún, creemos que está mal colocado. Nos parece que la Introducción y la Conclusión debieran invertirse. La razón es simple: en la Introducción se nos habla de los «sueños» del narrador que no tienen agarre en ninguna parte. No hay conceptos, porque tal cual está planteado el problema no lleva a ningún lugar (…) ¿Cómo es posible, pues, que dicho capitulito sea la puerta, fabricada de sueños, para dejarnos pasar a los que sigue, que es un mundo realista en extremo? Es, pues, alógico, por no decir ilógico (ALARCÓN, 1988, s/p). A partir do acima exposto, tem-se que a pertinência dos argumentos de Alarcón praticamente “obriga” a um retorno, a novo exame aprofundado, a uma revisão da estrutura organizacional (ou “desorganizacional”, se assim pode ser dito) do romance de Rivera. Desta forma, contemplemos, a título de apoio a esta nova mirada, o capítulo que abre a compilação romanesca de contos de ...y no se lo tragó la tierra: Aquel año se le perdió. A veces trataba de recordar y ya para cuando creía que se estaba aclarando todo un poco se le perdían las palabras. Casi siempre empezaba con un sueño donde despertaba de pronto y luego se daba cuenta de que realmente estaba dormido. Luego ya no supo si lo que pensaba había pasado o no. Siempre empezaba todo cuando oía que alguien le llamaba por su nombre, pero cuando volteaba la cabeza a ver quién era el que le llamaba, daba la vuelta entera y así quedaba donde mismo. Por eso nunca podía acertar ni quién le llamaba ni por qué, y luego hasta se le olvidaba el nombre que le habían llamado. Pero sabía que él era a quien llamaban. Una vez se detuvo antes de dar la vuelta entera y le entró miedo. Se dio cuenta de que él mismo se había llamado. Y así empezó el año perdido. Trataba de acertar cuándo había empezado aquel tiempo que había llegado a llamar año. Se dio cuenta de que siempre pensaba que pensaba y de allí no podía salir. Luego se ponía a pensar en que nunca pensaba y era cuando se le volvía todo blanco y se quedaba dormido. Pero antes de dormirse veía y oía muchas cosas... (RIVERA, [1971] 2012, p. 77, grifo meu). A oração “daba la vuelta entera”, a qual grifei na citação acima, além de outros tópicos desse texto abertura, encontra correspondências que realçam a associação do conto riverano para com o conto “El hombre”, do El llano en llamas de Juan Rulfo. Isto atesta de novo a conotação de instantâneos literários entre ambos os autores, algo a que já me referi páginas 76 atrás. Porém, há mais a extrair das considerações sobre os contos-capítulos que abrem e fecham o romance de Tomás Rivera. Em primeiro lugar, o conto inicial, ao contrário dos outros doze conformativos do desenvolvimento da obra e do conto final, não é precedido por uma estampa curta, o que desde já lhe confere um caráter de distinção no que toca ao seu posicionamento, usado, no mínimo, de forma estratégica – reiterando: de modo evidente a que introduzam e concluam a obra de maneira cíclica, circular. A relação entre as doze estampas e os doze contos que ficam no intervalo, no lapso introdução – conclusão é outro aspecto que comunga, de modo contrário ao que defendeu Alarcón em seu artigo aqui utilizado, para a existência de um todo circular, ou, ainda melhor, um todo elíptico, como já apontei, na reunião contística orquestrada por Rivera. Conforme coloquei anteriormente, estampas e episódios que as seguem podem ou não ter estrita correlação. O próprio Tomás Rivera confirma isto ao afirmar, ainda sobre a estampa, que ela “a veces se puede ligar bien al cuento que precede pero no necessariamente. Sirve de ligación para la obra total” (Documento, Archivo Tomás Rivera apud OLIVARES, 1992, p. 417). Exemplificam tal correlação variável o caso de “Lo que nunca supo”, primeira estampa pósconto introdução, e o conto “Los niños no se aguantaron”. Entre esses dois primeiros narrados do desenvolvimento, a relação latente se transfere ao campo do elemento água; assim, enquanto na estampa o menino narrador burla a cosmogonia de sua mãe bebendo, sem nunca lhe contar, a água do copo que ela depositava em baixo da cama para os espíritos em que acreditava, deixando-a crer que eram estes mesmos espíritos que esvaziavam o copo; enquanto isso, no conto seguinte a água vem rememorada pela falta que faz na labuta rural de dois meninos que, ao contrário do que lhes dizia seu empregador, vão-se a um tanque sem permissão, onde um deles é morto por acidente, com um disparo, que seria apenas para assustá-los, dados pelo mesmo velho que os empregara e que, após o ocorrido, fica entre a loucura e a mendicância. Há, ainda, ligação evidente no caso do segundo par estampa-conto, caso da estampa “Se había dormido” e do conto imediatamente seguinte “Un rezo”, quando em ambos a mãe do menino protagonista roga pela vida e por notícias de seu filho mais velho, perdido na Guerra da Coréia (na estampa, a consulta é a um espírito em uma caixa; e, no conto, roga-se a Deus, à Virgem de Guadalupe, à Virgem de San Juan e a Jesus Cristo). Outra coligação imediata o há no nono par estampa-conto, que opõe as “cores”, a beleza poética da preparação para e da festa de um casamento (me)chicano da estampa “Fue um día muy bonito” à triste história seguinte “La noche en que las luces se apagaron”, na qual um ex-namorado se mata 77 preso a um transformador de luz num dia de baile, de festa, porque sua ex-namorada não queria reatar a história de amor que viveram. No entanto, note-se que são apenas três pares, de doze, ou treze (se consideramos ainda a última estampa “somada” ao conto conclusão) passíveis de interpretação sequencial, de ligação imediata entre um e outro, conferindo à estampa um caráter evidente de ilustração para o conto que a segue. No mais, há toda uma espécie de rompecabezas com estampas que ou se relacionarão a contos muito à frente daqueles que de fato as sucedem imediatamente ou então estarão relacionadas ao enredo como um todo, existindo ainda contos que estabelecem relação não imediata entre si. Tamanha assimetria visa como já expus a assemelhar-se ao recordar da memória, raramente linear. No entanto, visa também a um processo de movimento, a fazer mover-se, sair de seu lugar comum, de certa zona de conforto o leitor. Assim, na introdução do romance, além da proposta implícita em “daba la vuelta entera”, o conto termina com outra espécie de convite: “Pero antes de dormirse veía y oía muchas cosas...”. As reticências, antes à frente no título do romance, agora anunciam, prenunciam que algo virá; algo rememorado, talvez em estado de vigília, antes do dormir. Na sequência, há uma predileção por protagonistas e narrador(es) sem nome, o que impede saber se esses personagens se repetem nos contos subsequentes. É então que entra em cena a conclusão do narrado, o conto final e sua estampa, esta sim, algo mais próxima a uma epígrafe anunciativa não apenas da conclusão, mas, antes, do espírito, da poética de toda a obra. Na proposta de “fórmula” elíptica que apresentei como representação da volta romanesca de ...y no se lo tragó la tierra, de modo esquemático a estampa final “Bartolo pasaba por el pueblo...” é a única que isolo em um parênteses antes do conto seguinte. Em primeiro lugar, dada à localização do capítulo que tal estampa precede: uma posição estratégica, formal diferente daquela ocupada pelos doze contos do meio, estes também precedidos por estampas. Ocorre, entretanto, que, apesar de também vir precedido por uma estampa, o conto final está mais próximo, quanto a sua função estrutural, do conto abertura, este sem estampa precedente, do que dos doze contos-capítulos do desenvolvimento, também precedidos de estampas. Entender, pois, a razão para que o capítulo conclusão seja, dos dois contos que ladeiam a obra, o único que “imita” a estética de desenvolvimento do romance tem a ver com apreender algo da função, da ideia apresentada, re(a)presentada na última estampa de ...y no se lo tragó. A última estampa “Bartolo pasaba por el pueblo...” vai ao encontro de algunas explicações críticas recorrentes sobre estilo e estética do romance de Tomás Rivera. Já na tese “Contextualización de la obra de Tomás Rivera”, o espanhol Ignacio J. Esteban Giner aponta 78 para certa semelhança temática do romance riverano para com o corrido mexicano, enquanto gênero literário de resistência. Assim, para o doutor espanhol: La novela de Rivera podría ser entendida como una nueva forma de corrido mejicano en prosa, pues sus temas se refieren a la lucha, aventura o leyenda del pueblo chicano, donde los personajes combaten distintas injusticias sociales, realzando a la vez el orgullo de su herencia cultural (GINER, 2005, p.69-70 – grifo do autor em itálico). Neste aspecto, coincide tal observação com as colocações de Ramos e Buenrostro (2012) sobre a aproximação estético-estilística entre o romance de Rivera e os corridos. Desse modo, para a opinião (ancorada em entrevistas dadas pelo próprio Rivera) de Giner (2005, p. 70) de que, sobre as influências marcantes de Tomás Rivera, “fue la obra de Américo Paredes, With his pistol in his hand (1958), la que le influyó em mayor medida”, tem-se o complemento fornecido por Buenrostro e Ramos apontando o mesmíssimo Paredes, ao ser um dos primeiros pesquisadores da cultura chicana, como um narrador e antropólogo que inicia suas investigações a partir do gênero poético-narrativo do corrido da fronteira (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 22). Sendo assim, enquanto Giner materializa sua linha de pensamento a um nível de parentesco mais ideológico entre o romance de Rivera e o gênero corrido, Ramos e Buenrostro encontram na fonte já apontada por Giner (repetindo: Américo Paredes) caminhos mais amplos para a compreensão da função que cumpre o personagem Bartolo na estampa última do romance, como descreve o fragmento descrito: Bartolo pasaba por el pueblo por aquello de diciembre cuando tanteaba que la mayor parte de la gente había regresado de los trabajos. Siempre venía vendiendo sus poemas. Se le acababan casi para el primer día porque en los poemas se encontraban los nombres de la gente del pueblo. Y cuando los leía en voz alta era algo emocionante y serio. Recuerdo que una vez le dijo a la raza que leyeran sus poemas en voz alta porque la voz era la semilla del amor en la oscuridad (RIVERA, [1971] 2012, p. 154). A meu ver, Buenrostro e Ramos enfatizam demasiado certa função, certa importância de fundo linguístico na apresentação, na inserção do personagem Bartolo. Porém, parece-me, ainda que também abordado, deixarem um pouco de lado o valor simbólico da personagem, a representatividade desse mesmo caráter simbólico para a estruturação da obra. Ora, se nos atemos ao entendimento de que o gênero corrido é comumente aceito pela crítica como um gênero de poética narrativa oral (para alguns, com origens que remontam até mesmo ao antigo romancero espanhol), a estampa de Bartolo é emblemática justo pela aparente obviedade de inclinar-se sobre poéticas: desde as que se relacionam com o ritmo poético próprio mesmo da 79 oralidade, da estética dos corridos enquanto gênero literário, até poéticas que sobressaem do debruçar-se por sobre significados outros possíveis para o mesmo significante. O verbete corrido, além de sua característica substantivada, na qual se insere seu significado como gênero literário poético narrativo nascido para ser musicado, cantado, revela, também, ao ser particípio passado do verbo correr, adjetivação que denota, dentre outros aspectos que já abordarei, algo ou alguém deslocado, que está fora de lugar (Cf. o verbete no Dicionário Eletrônico Santillana de Espanhol, 2008). Eis então aqui outro aspecto das poéticas às quais está relacionada a estampa de Bartolo: poéticas que se relacionam com o movimento, o de partida, o de chegada, com o deslocamento; poéticas de movimentos migratórios em entornos fronteiriços, poéticas fronteiriças e seus embates e entrechoques de fronteiras outras onde instâncias culturais de alteridade entram ao mesmo tempo em contato e choque. Não parece ser à toa, portanto, que anteceda esta estampa o conto “Cuando lleguemos”, um capítulo em que, na sugestão de rememoração dos percalços de condução até novos postos de trabalho rural, uma das muitas vozes evocadas pelo menino narrador se mostra cansada desse aparente nunca chegar: - Cuando lleguemos, cuando lleguemos, ya, la mera verdad estoy cansado de llegar. Es la misma cosa llegar que partir porque apenas llegamos y… la mera verdad estoy cansado de llegar. Mejor debería decir, cuando no lleguemos porque esa es la mera verdad. Nunca llegamos (RIVERA, [1971] 2012, p. 153). No entanto, enquanto o final de “Cuando lleguemos” parece encerrar um processo apontando para uma demonstração de cansaço derivado de um nunca alcançar, de um eterno buscar, na estampa seguinte a esse conto, o deslocamento transladado à figura de Bartolo apresenta um caráter ainda mais formal, mais estrutural do que aparenta ter. Além é claro da possibilidade pertinente de remissão à figura do sujeito chicano que ainda busca um lugar, razão pela qual podemos pensar na busca identitária de um menino que se sente, que ainda busca, ainda está, como sugere a adjetivação corrido, fora de lugar; além disso, se pensamos na correlação de sentidos entre o corrido sugerido na poética do poeta Bartolo e corrido como adjetivo significativo de deslocado, veremos que a estampa “Bartolo pasaba por el pueblo...” tem estrita relação formal com o deslocamento de leitura que sugere a obra. Nesse aspecto, tal estampa seja talvez em todo o romance o único caso em que esse artifício funcione, ou seja, tenha, apresente uma função de epígrafe anunciativa, epígrafe que de fato abre o narrado que a segue, o todo da obra que a segue. Esse argumento só se completa, entretanto, se retornamos à questão de deslocamento estrutural, de coisas fora do lugar, levantada por Justo S. Alarcón, questionamento onde se lê, primeiramente: que o capítulo introdutório não seria mais que uma 80 parte desprendida da conclusão; e, segundo: que introdução e conclusão, tal como estão colocadas na versão editada para o público (questão não abordada, talvez por desconhecimento das versões anteriores à edição, por Alarcón), deveriam ser invertidas 45. Em certa medida, há pertinência nas colocações de S. Alarcón (1988) ao observarmos informações relevantes expostas anos depois por Ramos e Buenrostro, quando da primeira edição latino-americana de ...y no se lo tragó la tierra (2012). Para tanto, observem-se, por exemplo, as palavras dos próprios Gustavo Buenrostro e Julio Ramos (2012, p. 43-4, grifo meu), os quais, no apartado “Elipsis y fragmentación”, parte integrante do prólogo escrito por ambos para esta edição da obra, escrevem, sobre a “desconexão” na obra, que “la discontinuidad es un rasgo distintivo de esta escritura que por años mantuvo a Rivera en cierta indecisión entre la consideración de su escrito como un conjunto de relatos o como una novela”. Agregam valor a tal informação, os resultados que demonstram pesquisa detida de Julio Ramos apresentados na introdução aos anexos que complementam a edição de 2012 de ...y no se lo tragó. Nessa introdução consta logo em suas linhas iniciais a importante contribuição de que o primeiro manuscrito enviado por Tomás Rivera em finais de outubro de 1970 para fins de participação no primeiro prêmio de literatura chicana da editorial Quinto Sol (prêmio do qual Rivera terminaria por sair vencedor, já em 1971, com a conseguinte publicação de sua obra) levava o título de Debajo de la casa y otros cuentos (Cf. RAMOS, 2012, p. 183). E é dessa maneira que tornamos, enfim, ao conto capítulo conclusão da obra e às considerações de troca propostas com propriedade por S. Alarcón. Em “Debajo de la casa”, conto final do romance riverano, ali sim, os poucos nomes e os caracteres principais de alguns personagens ressurgem como marca identificadora de rememoração, em um texto-rio em cursivas que rivaliza com um texto não em itálico, símile, ambos talvez, do curso descontínuo das memórias. Repare-se, pois, a relação de nexo a qual se pode extrair da conclusão, em sua parte final: – Quisiera ver a toda esa gente junta. Y luego si tuviera unos brazos bien grandes los podría abrazar a todos. Quisiera poder platicar con todos otra vez, pero que todos estuvieran juntos (…) Necesitaba esconderme para poder comprender muchas cosas (RIVERA, [1971] 2012, p. 160, grifo do autor). Retornando ao conto inicial, não custa recordar que ele termina com a expressão “muchas cosas…”, cujas reticências parecem encontrar nexo somente, enfim, no trecho final supracitado, onde essas mesmas “muchas cosas”, enunciadas já sem a elipse das reticências de seu igual frasal da introdução, informam, por fim, haverem sido ditas ao longo do traçado 45 Remeto aqui o leitor a esse trecho escrito por Justo S. Alarcón, citado por mim integralmente há alguns parágrafos acima. 81 de memórias disposto em aparente falta de unidade, pelo menos no que diz respeito a uma unidade que apontasse para um todo mais romanesco. Cabe, ainda, o adendo de que, conforme explicita Julio Ramos (2012, p. 186), também na introdução aos anexos da edição latino-americana de ...y no se lo tragó, em um índice preliminar do romance “Rivera también había consignado al último texto el título alternativo ‘El año encontrado’”; algo que – compreendidos os doze contos do interior do enredo como alusivos aos doze meses de um ano de migração laborativa rural na vida de um menino chicano e sua família por volta dos anos de 1950 no sudoeste estadunidense – fecha com a estruturação “El año perdido”, como introdução, e “Debajo de la casa” (“El año encontrado”) como conclusão para o desdobramento descontínuo do recordar estes mesmos doze meses no desenvolvimento do romance, ladeado pelos já citados textos, capítulos de abertura e fechamento. Contudo, há mais a demonstrar na operação a ser realizada na busca de nexos para o romance. Essa lógica, mesmo que excêntrica, encontra-a o menino narrador no conto conclusão da obra, quando sai debaixo de uma casa onde havia estado, na dúvida ruminante de contar a seus pais ou não que havia sido expulso da escola ianque onde era desrespeitado por conta de sua etnicidade, para juntar os cacos de sua identidade nos fragmentos de memória de um ano perdido: Había encontrado. Encontrar y reencontrar y juntar. Relacionar esto con esto, eso con aquello, todo con todo. Eso era. Eso era todo. Y le dio más gusto. Luego cuando llegó a la casa se fue al árbol que estaba en el solar. Se subió. En el horizonte encontró una palma y se imaginó que ahí estaba alguien trepado viéndolo a él. Y hasta levantó el brazo y lo movió para atrás y para adelante para que viera que él sabía que estaba allí (RIVERA, [1971] 2012, p. 161). O presente trabalho é fruto de um estudo doutoral em que comparo esta obra de Tomás Rivera com La frontera de cristal (1995), outro romance em contos, este escrito pelo escritor mexicano Carlos Fuentes. E é interessante como na obra de Fuentes o nome próprio chicano é bastante explorado como marca de uma terceira alteridade nas relações identitárias do entorno fronteiriço mexicano-estadunidense. Curiosamente, em ...y no se lo tragó la tierra, obra de um militante autor chicano, tal escolha não é realizada. Em ...y no se lo tragó, a marca é o implícito, é o subentendido aos quais se vê “convidado”, impelido a buscar seus elos o leitor. Enquanto Justo S. Alarcón (1988) propõe a troca de posições dos contos margem da obra riverana, vinte e quatro anos depois, na primeira edição latino-americana do romance, Julio Ramos (2012) informa que, em apêndice de abertura da seção última da publicação (uma seção de anexos de manuscritos e trocas de correspondências entre Rivera e outros autores e acadêmicos), o primeiro manuscrito enviado pelo autor para participação no prêmio do qual terminaria por sair vencedor, logrando assim a edição de seu livro, tinha o título de Debajo de 82 la casa y otros cuentos. Somente com a inclusão, a pedidos, de outros contos é que a obra viria a fechar a elipse romanesca que a organização do evento já vislumbrava pela união coesiva dos contos. Isto demonstra que, no concernente à ligação de dependência entre o primeiro e o último capítulo, de parte desprendida que seria do último o primeiro conto, tem Justo Alarcón certa razão. No entanto, o fator pelo qual o último “ato” não é o primeiro está em que, se tal operação fosse levada a cabo, a busca, se existisse, por juntar e encontrar os nexos necessários para a apreensão do drama romanesco na obra seria facilitada. Ao fim e ao cabo, o que o menino narrador propõe é que o ato de juntar, contar, arrumar e rejuntar tudo, o ato de rever e reunir toda a sua gente (os personagens que sua narrativa “faz desfilar” nos doze contos de desenvolvimento do seu entremeado de memórias) tenha para o leitor o mesmo grau de dificuldade que ele, narrador, aponta ter nos últimos trechos de seu recuerdo “final”. Propõe, então, o menino narrador a mimetização do seu ato de recordar, a mimetização de sua ficção de memória. É um convite para dar a volta inteira, um convite à identificação. Identificação que se inicia na própria epígrafe “Bartolo pasaba por el pueblo...”. Sim, pois mais do que estampa fotográfica, como defendo, ou um de seus quadros coesivos entre os contos, como sugere o próprio Rivera em carta a um dos editores de Quinto Sol46; mais do que isso, esta passagem sobre o poeta Bartolo é uma epígrafe que encerra uma identificação do autor da obra e de seu jovem narrador, de seu narrador menino, adolescente para com o próprio Bartolo. Já no texto “Chicano Literature: Fiesta of the Living”, de 1975, portanto posterior à primeira edição de seu único romance, Rivera aclararia um pouco da translação de Bartolo, “personagem” de sua vida real, e a relevância desse movimento para a ficção de sua obra: When I met Bartolo, our town's itinerant poet, and when on a visit to the Mexican side of the border, I also heard of him - for he would wander on both sides of the border to sell his poetry - I was engulfed with alegría. It was an exaltation brought on by the sudden sensation that my own life had relationships, that my own family had relationships, that the people I lived with had connections beyond those at the conscious level. It was Bartolo's poetry – or was it simply those papers that looked like his poetry - that gave me this awareness (RIVERA, 1975 apud OLIVARES, 1992, p.339, grifo do autor)47. 46 Remeto o leitor à seção de anexos da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra (2012, p. 249-50), onde consta fotocópia autorizada da referida correspondência. 47 “Quando eu conheci Bartolo, poeta itinerante da nossa cidade e, quando em uma visita ao lado mexicano da fronteira, eu também ouvi falar dele – pois ele viria a vagar por ambos os lados da fronteira para vender a sua poesia – eu estava envolto em alegria. Foi uma exaltação provocada pela súbita sensação de que minha vida tinha relações, que a minha própria família tinha relações, que as pessoas que viviam conosco tinham conexões para além daquelas que tinham em nível consciente. Foi a poesia de Bartolo – ou simplesmente aqueles papéis que pareciam sua poesia – que me deu essa consciência.” (Tradução minha) 83 Um pouco mais adiante e Rivera escreve ainda que Bartolo foi seu primeiro, e viria a ser seu único, contato durante muito tempo com a literatura a partir de sua própria gente (fora das escolas em que era obrigado a aprender em inglês) (Cf. RIVERA, 1975 apud OLIVARES, 1992, p.339-40). E eis aqui a mimese, a introjeção, pois, ao introduzir a figura de um poeta itinerante que anuncia a leitura e o comércio de seus poemas a sua gente, Rivera anuncia a si mesmo, ou melhor, a seu menino protagonista como um narrador que fará quase o mesmo. Anuncia assim Rivera sua poética, suas poéticas. Por isso “Bartolo pasaba por el pueblo...” é epígrafe: por anunciar histórias por contar, espécie de corridos em prosa (na similitude ideológica entre este gênero poético e a função ético-política do narrado riverano defendida, como já apontei anteriormente, por Giner, 2005) por contar. Rivera, assim, introjeta o efeito de Bartolo sobre sua visão de menino e projeta essa figura como um símbolo nas linhas da narrativa de seu menino protagonista, do menino narrador de seu romance. Desse modo, a epígrafe de Bartolo anunciaria, como de fato termina por anunciar o “primeiro” capítulo do romance (seu último conto, último ato deslocado) e o faria mesmo se estivesse à frente de seu fragmento despedaçado, “El año perdido”, ou ainda que este próprio año perdido, primeiro ato mal colocado, como sugeriu S. Alarcón, complementasse el año encontrado em “Debajo de la casa”. Porém, é mister ainda mais singular entender o papel que cumpre a epígrafe Bartolo junto com o deslocamento contido não somente nas poéticas que anuncia mas também na estética estrutural da obra que as enuncia. É essa singularidade, é tal singularização, tal manter-se fiel ao deslocamento e fragmentação que permitem (sem esquecer que a mão editorial por sobre a estrutura e até mesmo a “definição” do gênero da obra contou sempre com o diálogo para com o autor48) perceber o poder, o alcance da literariedade desse, nesse romance. O narrador criado por Rivera é, ao fim e ao cabo, uma metáfora, uma projeção simbólica (pois a partir dele, da imitação de seu ato se projeta) do experiente Bartolo (figura introjetada), ou pelo menos cumpre papel, função metafórica, alusiva, atentando-se ainda ao fato de que corrido é também “Aquele que tem experiência. Experiente” (Cf. o verbete no Dicionário Eletrônico Santillana de Espanhol, 2008). Seguindo a linha de raciocínio iniciada em Giner (2005) e continuada em Ramos e Buenrostro (2012), complementando-as com algo da introdução que dei a este segmento, o jovem narrador riverano é, ainda, e também, em “outros termos” (outros significados para o mesmo significante), um menino corrido, 48 E nos revelam isso toda a conjuntura, toda a troca epistolar que antecedeu a edição final do romance, razão pela qual remeto o leitor para os anexos da primeira edição latino-americana de ...y no se lo tragó (2012, p. 24974). 84 deslocado, quem nos guiará, leitores, por chicanas, através de chicanes, num vaivém em ziguezague por entre caminhos bastante obstaculizados; sendo o compor, juntar, formar elos por esse percurso entrincheirado o que confere a sua narrativa caráter singular, desfamiliarizando a forma romance não apenas por compô-la a partir de contos; mas, principalmente pela maneira descontínua, ex-cêntrica como o faz. Esse seu modus operandi, seu modus descontinuum, espalhando, espaçando, “esparsando” os elos dramáticos da elipse romanesca de um mesmo enredo, além das múltiplas e variáveis relações que revela(m) os contos e as estampas entre si, possibilita ainda à leitura encontrar uma estrita correlação entre tempo e locus, entre imagem (memória “fotográfica”) e espaço. A memória é o passado que se presentifica, daí sua relação expressa, explícita, embora quem saiba tensa, com o tempo (cronos). O tempo da memória é em primeira instância o passado. Passado potencializado pela ficção, pelo fingir, enganar, enlevar ser (estar?) presente, como se presente de fato fosse. Dessa maneira, são seus verbos o “ser” e o “estar”: como pode o cronos da memória ser o passado, se os espaços, locus, topos que ela me faz estar, “viver”, são, me são tão presentes? Decorre que, apesar de o passado ser em suma sua matéria, sua instância primeira, é no presente, em seus ares de presente que ela se instaura. E é nessa presentificação que a memória salta aos mais diferentes espaços (topos), proporcionando, instanciando encontros com espacializações descontinuadas no tempo. Tal o faz o narrador de Rivera em seus elos mnemônicos aparentemente desconexos, aparentemente sem um centro ou, melhor, sem uma centralidade, sem uma centralização; tal o faz o narrador riverano em sua mnemônica “(in)coesa”, em sua imitação formal da memória, porquanto sua ficção de memória. Quando, ainda na conclusão “Debajo de la casa”, do alto de uma árvore no quintal de sua casa o protagonista acena para um alguém imaginário em uma palmeira no horizonte a sua frente, além de uma nova projeção de um menino que acena para um si próprio, porém mais velho; além disso, é ainda seu povo, sua gente, é um dos seus paisanos chicanos que ele, menino narrador, imagina estar na palmeira que avista. Entretanto, é também para o leitor que ele acena, demonstrando que ele sabe do leitor ali, dando a saber o que espera desse leitor: que ele dê a volta inteira para que entenda a dramaticidade excêntrica de seu romance contado em fragmentos de memória. Está, pois, nessa provocação de deslocamento também do leitor algo da literariedade da obra, o estranhamento contido em sua própria forma, levado às raias das instâncias de leitura daquele que lhe é estrangeiro; estranho, estrangeiro a tão ex-cêntrica forma de se narrar um romance em contos de relação tão intrínseca e, ao mesmo passo, tão 85 descontínua, quebradiça, movediça quanto a extensa região fronteiriça sobre a qual migram em busca de trabalho seus personagens. Tal movimento proposto para uma narrativa que trata do movimento imposto por um ano de trabalho rural migratório é a singularização, a desfamiliarização do narrado, de um narrado que prima por seus implícitos, por elos, nexos que somente serão encontrados em um movimento de volta inteira, como sugere o narrador na introdução “El año perdido”, pela elipse que o contorna e em respostas dadas pelo autor externamente, em entrevistas, nos seus ensaios, e na crítica que se debruça por sobre a obra. É o que lhe torna peculiar, sendo sua literariedade. 2.2 A ficção do menino narrador riverano: um problema ontológico (?) Este tópico se inicia a partir de um breve, porém necessário, retorno a algumas das últimas considerações expostas no segmento anterior. São elas as que se referem à correlação entre ficções de memória e sua desembocadura, sua afluência, sua concorrência para outro aspecto ficto: a ficção do menino narrador. Acerca da memória, sua aproximação máxima nesse romance de Tomás Rivera é para com as qualidades de uma memória fotográfica. Não por acaso, talvez, a possibilidade de comparação das estampas e contos-capítulos que compõem a obra com a fotografia, já sejam as que se assemelham à pintura ou instantâneos, caso das estampas, ou as que se achegam à crueza que pode haver em uma foto em preto e branco. Mas, vigora de igual maneira a questão do detalhe para o possuidor da faculdade mnemônica fotográfica. Atendo-se ao exemplo da epígrafe “Bartolo pasaba por el pueblo”, há de se notar, pela explicação fornecida por Rivera no artigo em que revela a existência de um Bartolo empiricamente real, a riqueza de detalhes captados em seu espírito, no espírito da ocasião dos encontros e dos efeitos sobre o menino Tomás Rivera, rica cena captada e levada à ficção quase como uma epígrafe real, repito, quase como uma epígrafe cuja origem empírica está no real vivido, qual mera descrição de fatos realmente acontecidos. Agora, se nos detemos na esclarecedora edição argentina, primeira edição de fato latino-americana de ...y no se lo tragó, outro exemplo revolve ainda mais a possibilidade de leitura da obra como resultante de um processo onde envolvido está um sujeito com memória fotográfica: trata-se de um capítulo que desenrola sua narrativa a partir de acontecimentos que se sucedem em torno à realização (ou tentativa de criação) de um retrato. Nesse caso, será interessante notar como justamente “realização” e 86 “criação” estabelecem proposital relação aproximativa entre “real” e “imaginativo”, ocasionando um efeito que sugere ser uma importante proposta do capítulo. Precedido pela estampa “Antes de que la gente se fuera”, o conto “El retrato” é o penúltimo dos doze capítulos componentes do corpo de desenvolvimento da obra. Apesar de relacionar-se com sua estampa anterior através da poética de deslocamento sobre a qual ambas investem, “El retrato” tem seu narrado revestido de situações distintas às que ocorrem no “quadro” coesivo imediatamente anterior. E, por ter ligação estrita com o recorte ora em relevo, é para a abordagem desse conto com algo de imagem já em seu título que convergem as linhas a seguir. Em “El retrato” um desfile sobre o poder e alcance da imagem é contado primando sempre pela dúvida, pela ambiguidade do ir e vir, do limiar entre o que pode ser verdade e o que se quer como verdade. Chuy, filho de um amigo do pai do menino protagonista, foi enviado à Guerra da Coreia e desde a partida para o combate sua família não mais voltou a vê-lo. Em meio à falta do jovem, seus familiares recebem um dentre tantos outros vendedores de retratos que visitavam povoados chicanos oferecendo seus trabalhos para transformar fotografias em retratos tridimensionais em alto relevo talhados e incrustados em madeira, garantindo-lhes, como diz o vendedor à família do soldado Chuy, um aspecto “así abultadito (...) Para que se vea como que está vivo” (RIVERA, [1971] 2012, p. 141-2). Após alguns impedimentos, certos percalços a aproximar o prometido (e pago) de uma trapaça, chega-se a um resultado forçado pelo pai do soldado desaparecido, desaparecida também sua foto, quando, após reencontrar o vendedor, obriga-o, mesmo sem a fotografia de Chuy, a dar conta do retrato-escultura a partir unicamente da lembrança do objeto fotográfico perdido. Tal resultado se evidencia no trecho do diálogo a seguir, no qual um amigo em visita à casa dos familiares de Chuy indaga ao pai do jovem soldado sobre o fato de o vendedor haver enfim produzido o retrato así abultadito todo de memória: – Y, ¿cómo lo hizo? – No sé. Pero, con miedo, yo creo que uno es capaz de todo. A los tres días me trajo el retrato acabadito así como lo ve cerquita de la virgen en esa tarima. ¿Usted dirá? ¿Cómo se ve m’ijo? – Pues, yo la mera verdad ya no me acuerdo cómo era Chuy. Pero ya se estaba, entre más y más, pareciéndose a usted, ¿verdad? – Sí. Yo creo que sí. Es lo que me dice la gente ahora. Que Chuy, entre más y más, se iba a parecer a mí y que se estaba pareciendo a mí. Ahí está el retrato. Como quien dice, somos la misma cosa (RIVERA, [1971] 2012, p. 145). 87 Uma pequena ficção de memória resulta, pois, da busca do pai de Chuy por um sentido de justiça que obrigasse o vendedor a “corrigir” seu erro em não apenas perder a fotografia de seu filho bem como, principalmente, em deixar de compor um novo retrato em três dimensões com um relevo em madeira que lhe conferiria um aspecto de parecer estar ali vivo, presente o referente da foto. Seu filho é um dos tantos que foram tragados (desde Cuba em 1898, passando pela 2ª Grande Guerra e pela intervenção na Coreia, até a Guerra do Vietnã) por certa invenção de cidadania, verdadeiro “drama político de la ciudadanía, la garantía sacrificial del acceso de sujetos minoritarios o coloniales a los exclusivos territorios de una supuesta plenitud ciudadana” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 49, a partir de Álvarez Curbelo, 1999). Por ter seu filho mais velho dado “somente” como desaparecido na Guerra da Coreia (1950-1953), a esperança de tê-lo vivo se vê renovada em seus familiares quando se deixam levar pelo prometido por um vendedor de retratos esculpidos em três dimensões. Portanto, a partir da ficção do “como que vive”, do “como que está vivo”, não lhes importará à mãe nem ao pai de Chuy que, ao fim e ao cabo, o retrato feito todo de memória pelo vendedor em apuros seja fruto da observação diária que lhe fora imposta e do aproveitar-se da máxima oportuna de que os filhos sempre “lembram” o pai. E se não lembram, lembrarão, parecerão com eles um dia, mesmo que isso esteja apenas na ilusão forçosa, forçada, memória desejada, fingida, “realizada” na construção de um retrato baseado em um referente já inexistente, persistente senão somente na ilusão/ficção de um pai; ou, ainda melhor, na construção de um retrato tendo o pai como referente/“modelo” e, não o filho, aquele que deveria ser o verdadeiro referente do “retrato” abultadito, “retrato-pintura-escultura”. Porém, a partir da noção dessa ficção de memória proposta já por Ramos e Buenrostro (2012) em seu prólogo à edição argentina do único romance de Rivera, pretendo tocar também num seu desdobramento, a relação estabelecida para com observações de uso de artifícios de mimese de memória fotográfica e sua consequente relevância para minhas observações sobre a questão da ficção envolta na eleição/identificação de um menino narrador, um menino como narrador de ...y no se lo tragó la tierra. Uma memória fotográfica seria aquela em que a pessoa teria a capacidade de reproduzir, de descrever através da recordação (com surpreendente riqueza e precisão de detalhes) momentos, situações por ela vistas, ouvidas, vividas. No que se refere ao contocapítulo “El retrato” chama atenção uma carta do autor para o professor David L. Epstein. Datada de 14 de fevereiro de 1978, nela Tomás Rivera descreve para Epstein, em resposta a um pedido deste último, “some thoughts I had when I set about writing ‘The Portrait’” 88 (RIVERA, [1978] 2012, p. 264)49. A partir de então, Rivera conta haver tido a ideia para “El retrato” quando, durante o período em que se achava escrevendo ...y no se lo tragó la tierra, visitou um tio em San Antonio (Texas) e viu em sua casa um retrato dele incrustado em madeira que ele, Rivera, não via fazia já algo em torno de vinte anos. O autor conta, ainda, que o retrato trazia a sua lembrança o/um vendedor que ia a sua cidade natal, Crystal City, a recolher pedidos para a transformação de fotos em retratos tridimensionais com relevo em madeira – tal e qual a situação descrita na ficção de “El retrato”. Na referida correspondência, segue como destaque o relato de outra recordação que o retrato na casa de seu tio provocara em Rivera. A lembrança era a de uma ocasião da infância do próprio Tomás Rivera na qual ele e outros meninos, brincando dentro de um bueiro, encontraram uma bolsa repleta de fotografias que haviam sido recolhidas pelo vendedor, mas que aparentavam haverem sido descartadas, ali abandonadas. Se lançamos olhar novamente para o conto-capítulo ora trabalhado será interessante notar a semelhança quase “fotográfica” do relato epistolar de Rivera para com o trecho mais para o final de “El retrato”, onde é descoberta a farsa na demora de entrega do produto encomendado pelos pais de Chuy: Y pasaron dos semanas más para cuando se descubrió todo. Se vinieron unas aguas muy fuertes y unos niños que andaban jugando en uno de los túneles que salían para el dompe se hallaron un costal lleno de retratos todos carcomidos y mojados. Nomás se notaban que eran retratos porque eran muchos y del mismo tamaño y casi se distinguían las caras. Comprendieron todos luego luego. Don Mateo se enojó tanto que se fue para San Antonio para buscar al fulano que los había engañado (RIVERA, [1971] 2012, p. 144). A correlação mimética, fotográfica, a situação que nos faz pensar no uso de uma memória fotográfica, por assim dizer, “a serviço da ficção”, torna-se inda mais aguda quando se observa o fragmento final “Don Mateo se enojó tanto que se fue para San Antonio”. Esta mesma San Antonio está tanto nesse trecho do conto quanto em seu início, quando se narra que é de lá que vêm os vendedores de retratos para os bairros chicanos. E está também San Antonio tanto no início da carta enviada por Rivera em resposta ao Sr. Epstein – quando Tomás conta da visita à casa de seu tio – como mais para o final dessa mesma carta, onde o autor chicano relata que I also recalled that one man had gone to San Antonio in search of the place where they inlaid portraits because apparently the salesman had taken his money and after almost a year he hadn't returned. This man returned with the inlaid picture of his son who had been killed in the war. I knew the young man and when I saw the inlaid 49 “algumas ideias que tive quando comecei a escrever ‘El retrato’” (Tradução minha). 89 picture it didn't look like him at all. Everyone said it did and of course the parents were sure it did (RIVERA, [1978] 2012, p. 265)50. Espacialização repetida e potencializada na e pela ficção de ...y no se lo tragó la tierra, San Antonio e as situações nela vividas por Tomás Rivera transcorrem espaços do e no tempo como uma espécie de registro de uma memória fotográfica. Tal prodígio se revela ainda mais próximo de evidência na comparação entre as “cenas” do encontro dos retratos no bueiro, descritas em detalhes bastante semelhantes, opondo uma curta distância entre o relato epistolar de Rivera e a ficção de seu menino narrador. Decorre daí a questão da memória fotográfica: ao fim e ao cabo, também uma ficção. Memória eidética é um termo cunhado a partir do vocábulo grego εἶδος, “eidos”. Ligado grosso modo ao campo do visual, portanto da memória visual, o termo é comumente conhecido por seu sinônimo mais popular, a memória fotográfica. Ocorre que, na verdade, o que leva ao emprego de tal terminologia é certo aspecto de perfeição imputado, conferido com especial recorrência às técnicas de reprodução fotográfica. Tornando a interessante artigo sobre a relação entre texto e imagem, trabalhado no fim do primeiro capítulo desta tese, coincido com as palavras da antropóloga brasileira Sylvia Caiuby Novaes (2008). Nele, a autora, refletindo colocações do renomado antropólogo e filósofo francês Lévi-Strauss (1969), observa com propriedade que de um modo geral “Imagens não reproduzem o real. Elas o representam ou o reapresentam. Nenhuma delas é idêntica ao real” (NOVAES, 2008, p. 456 – grifo meu). Coincido, ainda, com as ponderações de Sylvia Caiuby quando esta complementa sua argumentação a respeito da relação imagem/objeto. Para a antropóloga, apesar de que não se possa pensar em termos de nenhuma relação entre a imagem e o objeto/referente que ela representa, ou reapresenta; apesar disso, tal relação (mínima que seja em alguns casos e muito mais evidente em outros), a qual sempre existirá, não deveria implicar em que se absorvesse a imagem como cópia exata daquilo de onde é tomada, pois, conforme explica a mesma autora, “se a imagem fosse uma imitação completa do objeto, já não seria um sistema de signos” (NOVAES, 2008, p. 456). E é justo a essa simbologia, à questão da imagem como um sistema de signos, à questão da imagem, e nesse caso mesmo a fotográfica, como uma reprodução que simboliza em vez de ser tomada como o próprio objeto de quem parte sua reprodutibilidade; é a tal 50 “Também recordei que um homem tinha ido a San Antonio em busca do lugar onde eram feitos os retratos incrustados porque aparentemente o vendedor tinha levado o seu dinheiro e depois de quase um ano ainda não havia retornado. Aquele homem voltou com o retrato incrustado de seu filho, que tinha sido morto na guerra. Eu conhecia o jovem e, quando vi a imagem incrustada, ela em nada se parecia com ele. Todos disseram que sim parecia e, desde então, os pais estavam certos de que assim o era” (Tradução minha). 90 questão que se prende o levantado por mim acerca da memória fotográfica em Rivera, especialmente em seu “El retrato”. Para tanto, é interessante abordar esse viés a partir de outra argumentação de Caiuby Novaes, para quem Imagens, especificamente as que resultam das modernas técnicas de reprodução, como as fílmicas ou fotográficas, são signos que pretendem completa identidade com a coisa representada, como se não fossem signos. Iludem-nos em sua aparência de naturalidade e transparência, a qual esconde os inúmeros mecanismos de representação de que resultam. Eficientes na comunicação simbólica, sem constrangimento sintático, estas imagens podem ser eloquentes (NOVAES, 2008, p. 456 – grifos meus). Assim como no trecho supracitado, em “El retrato” se pretende, pela falta, por saudade, por carência afetiva, uma completa identidade do signo que é uma fotografia original para com seu referente empírico, real, para com o objeto/sujeito representado na foto, pela foto: Chuy, o filho dado como desaparecido em uma das tantas intervenções bélicas estadunidenses que serviram como bengala, ficção de cidadania para sujeitos de classes, etnias minoritárias, marginais, marginalizadas. Não importarão aos pais, principalmente a Don Mateo, pai de Chuy, os mecanismos de reprodução que darão vez ao retrato abultadito de seu filho; mas, antes, o resultado eloquente do produto, quer dizer, o quanto ele fala à memória, a sua quase inconsciente ficção de memória. Rivera toca dessa maneira em partes do amálgama IMAGEM ao problematizar os limites da imagem existentes entre foto, retrato, pintura e escultura, ao serem tomados, pelo poder imaginativo também da memória, repetindo o trecho supracitado, “como se não fossem signos”. “Como que está vivo (...) como que vive” (RIVERA, [1971] 2012, p. 142 – grifo meu). Este como que do “retrato riverano”, qual o “como se” de Sylvia Caiuby, remete-nos à noção do como se deslindada e estruturada pelo teórico literário alemão Wolfgang Iser, cujos preceitos sobre o imaginário se veem presentes já desde o terceiro tópico do primeiro capítulo da presente tese. Ao tecer sobre o fingir no texto ficcional, o autor alemão observa que por trazer a sua realidade criada traços identificáveis do real empírico – selecionados ou de um contexto sociocultural ou de outros exemplos literários nos quais este novo texto busca suas bases –, o mundo representado no texto literário é posto entre parênteses, para que ele seja entendido como se fosse o mundo dado. O teórico toca ainda no aspecto de totalidade que é conferido por este real posto entre parênteses na caracterização do como se. Esta totalidade, também fingida, é não mais que um aspecto, porque foi construída a partir de partes dos contextos que dão forma ao texto ficcional. Tais contextos são incorporados à ficção em função do uso a ela dado, sempre 91 objetivo, pragmático. Por isso mesmo, o autor considera que a própria realidade representada no texto não deve ser tomada de fato como real, pois pela fórmula condicionante vigente na expressão como se, a qual põe o mundo que em si encerra entre parênteses, dá-se uma irrealização indicadora de seu referente. Desse modo: “A literatura recebe característica geral de mundo representado e posto entre parênteses” (ISER, 1983, p. 401). Mas, quando se observam os constituintes de um imaginário, o imperativo de que a realidade re(a)presentada no texto ficcional não deve, ou seja, não tem que ser tomada como real empírico, a meu ver cai por terra, dando lugar à observação que mais bem define a ele, imaginário, levado em conta seu veículo, o sujeito imaginante; a observação de que tal realidade representada não deveria ser tomada como real, como se real fosse. Não deveria, mas o é, pois, quando se fala em imaginário, somente ao admitir que ela seja muitas vezes (e nem sempre à revelia da intencionalidade do autor) tomada como real pelo imaginante é que se pode dizer que a realidade do texto toca em imaginários, demasiado reais para quem os vive, realizando-os em sua absorção mental e sensível, ainda que não passem, ao fim das contas, de... imaginários. Esse adendo se completa no seguimento de argumentação do próprio Iser acerca do assunto levantado pela funcionalidade do como se para o texto de ficção. Entram em cena então as características, envoltas em sua tomada como real, de remissão do texto ficcional e, por conseguinte, de tornar-se, de querer, de buscar tornar-se visível, seu Wahrgenommenwerden. A essas se agregam particularidades outras, atividades de orientação, Einstellungenaktivitaten, que resultam do imaginar o mundo do texto literário como se o mundo real ele fosse. No entanto, a observação mais efetiva destacada por W. Iser está em apontar que tais características ocorrem porque “a ficção do como se utiliza o mundo representado para suscitar reações afetivas nos receptores dos textos ficcionais” (ISER, 1983, p. 405, grifo do autor). É, pois, a este suscitar reações afetivas, as quais de fato operam sobre a e a partir da apreensão que faz o imaginante sobre o texto ficcional, que a meu modo de ver está ligada sobremaneira a relação ficção/imaginários. Nessa relação irreal/concreção, para o mesmo Iser (1983, p. 406), “a representação do sujeito enche de vida o mundo do texto e assim realiza o contato com um mundo irreal”. Irreal que, insisto, torna-se real para o imaginante/leitor, ou melhor, real em sua visibilidade, seu Wahrgenommenwerden, ato provocado também pelo receptor ao se representar, se reapresentar, identificar-se no mundo apresentado pelo texto de ficção, tomando-o em sua irrealidade como se real empírico fosse, mais do que representasse. Dessa maneira, resumem-se assim tais concepções iserianas sobre a ficção do como se: 92 [O] mundo do texto entre parênteses não se representa a si mesmo, mas a um outro. Este outro constitui a possibilidade de seu tornar-se visível, que, ao mesmo tempo, provoca impressões afetivas no sujeito, que, de sua parte, causam atividades de orientação e, desta forma, reações sobre o mundo do texto. Causar reações sobre o mundo seria então a função de uso produzida pelo como se. Para isso é necessário irrealizar-se o mundo do texto, para assim transformá-lo em análogo, ou seja, em exemplificação do mundo, para que com isso se provoque uma relação de reação quanto ao mundo (ISER, 1983, p. 406 – grifo do autor). Chamo atenção uma vez mais, portanto, para o indicador de que a relação de reação quanto ao mundo realçada pelo teórico alemão somente se dá através do efeito que tem o texto ficcional de provocar impressões, reações afetivas no sujeito receptor desse mesmo texto. Ocorre, porém, que abordar essas reações afetivas sugere de certa maneira pensar na questão como passível apenas da absorção leitora de receptores teoricamente acríticos, comuns, despreparados ou vulgos, como muitas vezes denomina a crítica científica, apuradíssima que é. Entretanto, se toquei, nos últimos parágrafos do leque aberto acerca do texto literário, no caráter das reações do como se por sobre o leitor/sujeito imaginante/receptor, é porque a abordagem iseriana toca de um modo geral na ficção não apenas do texto literário, mas de textos outros, de margens outras, de tomadas outras. Isso se aplica à questão da possibilidade de tomada da fotografia como idêntica ao real, em vez de signo que este representa ou reapresenta como de fato o faz. Em consequência, faz findar o aparte para que retornemos, o leitor desta tese e eu, ao abordado por mim a respeito da ficção de memória fotográfica na interpretação de ...y no se lo tragó la tierra e sua implicação conseguinte nos efeitos que possibilitam identificar e falar sobre a ficção que envolve e revolve o problema do menino narrador no romance de Tomás Rivera. Talvez engane aquele (não seríamos todos, mesmo que “de vez em quando”?) que se deixa levar pela “total realidade”, ou totalidade realizativa, da fotografia um dos termos usados para a lente de um instrumento fotográfico. O fato de que a lente de uma câmera de fotografar seja chamada de objetiva supõe muitas vezes, ao contrário da observação de que leva esse nome por destinar-se à captação fotográfica de objetos, uma nada evidente, porém pretensa objetividade que tende a ocultar os sujeitos (objeto, referente: subjetividade, pois, em vez da dita objetividade) envolvidos na situação captada pelo instantâneo, pelo “roubado” instante da foto. A objetiva da lente de uma câmera é, então, ao invés de algo que visa a uma apreensão objetiva, um acessório cujo fim, cujo produto final objetiva ser, ou objetiva fingir ser como o referente do qual toma, apanha de empréstimo sua imagem, antes de realmente ser o próprio referente. Quando Tomás Rivera leva para a ficção do conto-capítulo “El retrato” aspectos de seu real vivido, elementos de comprovada ligação com momentos, instantes, passagens de sua 93 vida, em especial de sua infância, sugere na relativização espaço/tempo (o do ocorrido, o do romance) uma “recuperação” de suas memórias, seus recuerdos. Tal renovação, tal realização memorialística aponta para a, supõe a habilidade de uso de uma memória fotográfica, a qual, potencializada na e pela ficção, torna-se, em verdade, uma ficção de memória fotográfica. Será este caráter a recair, a pairar por sobre a ficção de ...y no se lo tragó a meu ver responsável de ação direta em outro engano por que se deixa levar até mesmo a crítica que se debruça a analisar o romance riverano: a ficção do menino narrador. Há, contudo, mais porquês a decerto implicar em segundo plano sobre essa questão do menino-protagonista(autor)-narrador. E todas elas se desdobram a partir da memória fotográfica enquanto termo que falha em suas intenções. A concepção de memória fotográfica carrega em si um duplo aspecto, por assim dizer, decepcionante. Em primeira instância, ela se revela uma ficção mesmo para ramos da ciência que se dedicaram a estudá-la, sendo que a neurociência é, em especial, um dos campos científicos que mais pesquisaram sobre o assunto. Tomando em conta que uma memória fotográfica pressupõe sua “aferição” pelo contraste com a de outro sujeito partícipe dos ou nos eventos rememorados, resulta que dessa “acareação” nada mais poderá ser extraído que profundas considerações sobre prismas, perspectivas, pontos de vista. Por essa razão, quando revolve o assunto, a neurociência baseia seus resultados em testes objetivos, os quais, nenhum, até hoje, apontou de fato para o registro de uma verdadeira memória fotográfica, ao menos não como se a quer 51. Vem, enfim, da ciência seu primeiro teor “decepcionante”: a constatação objetiva de que a memória fotográfica, a memória como produto de registro de uma lente fotográfica humana não existe. O segundo aspecto “decepcionante” ligado à questão da memória fotográfica está, pois, justamente, intimamente ligado aos objetivos da ciência que se dedica a estudá-la. Lidos os artigos voltados a tratar do tema, observa-se a busca na verdade por uma espécie de memória perfeita, capaz de rememorar tudo, e com total precisão. Ora, certo está que tampouco a origem filosófica do termo eidético (coincidentemente mais vinculada ao conhecimento intuitivo e por consequência à relação entre aparência e perspectiva) ou mesmo a moderna e popular acepção adjetiva “fotográfica” dariam conta de uma completa apreensão e reprodução da disposição de objetos captados pela observação humana. Está então no engodo do que pode vir a ser uma fotografia o segundo aspecto decepcionante do termo “memória fotográfica”. 51 Os artigos revisados sobre o assunto constam da bibliografia desta tese. 94 É a própria fotografia decepcionante se se a quer tomada como retrato fiel do referente do qual é apanhada. A memória fotográfica é, portanto, nessa linha, uma ficção por ser também a própria fotografia uma ficção, pelo menos no desejo a ela costumeiramente transferido de total identidade com, de que seja totalmente idêntica ao objeto desde o qual apanha, capta a imagem. Assim, ao aludir, ao remeter ao processo fotográfico é a memória fotográfica uma ficção pela própria imperfeição, pela própria incompletude da fotografia em sua ficção, em seu parecer, seu fingimento de cópia total e perfeita, quando, na verdade, apenas revela um momento sujeito às mais variadas apreensões e, a partir daí, hipóteses, sugestões, interpretações. Das interpretações da ficção de memória a que nos submetemos na ficção de Tomás Rivera, uma delas é a de que o caso de “El retrato” daria conta de outro termo cunhado pela neurociência: o de síndrome hipertimésica (do grego timesis, lembrar), evento em que a perfeição fotográfica de certas memórias estaria em realidade restrita às experiências pessoais dos sujeitos que as detêm. Em todo caso, parece demandar tal apreensão mais cabível aos artifícios de que lança mão Rivera na construção de seu enredo um caso de memória fotográfica mais particular; o que não impede, por conseguinte, que seja lido “El retrato” como um desnudamento de ficção de memória fotográfica. É nesse tipo de ficção de memória que se insere o menino e o leitor (acrítico, comum, leigo, vulgo ou não) atrapado por seu narrado. É tal efeito de memória que instaura, por fim, a ficção do menino narrador. Há também um terceiro aspecto decepcionante relacionado à questão da memória fotográfica e sua ficção, sua simulação, sua noção aproximativa em ...y no se lo tragó la tierra. A evidência dessa característica, dessa possibilidade de leitura está, como vimos, tanto em um dos últimos capítulos da obra, o conto “El retrato”, quanto na última anécdota, a estampa “Bartolo pasaba por el pueblo”. A estampa de Bartolo, ao servir, como já expliquei, de epígrafe que abriria (pelos métodos descontínuos da lógica elíptica impressa ao e pelo enredo) a obra inteira, e o capítulo “El retrato” (conto disposto descontinuamente a um conto e outra estampa antes de “Bartolo...”) acabam dessa forma, (des)localizados, por “contaminar”, por espalhar sua aura, seus ares de memória fotográfica (com devidos “respaldo” e “justificativa” no registro ensaístico e epistolar de seu autor) através de todo o romance. Esse conjunto de ficções de memória se desenha do interior da narrativa (onde em “El retrato”, por exemplo, os pais do personagem Chuy, figura retratada, borrada e redesenhada, porquanto recriada e (re)inventada, deixam-se levar pela força fingida, tingida de memória que têm do filho) a seu exterior: desde os ecos que a ficção encontra nos relatos explicativos de Tomás Rivera em artigos e cartas a toda uma crítica que termina por se deixar enlevar pela 95 aparente falta de linhas limítrofes (tênues que em efeito são) entre a figura do narrador e de seu autor. Convém, portanto, tecer os porquês que me permitem tocar na incidência da ficção de memória sobre a existência da ficção do menino narrador. Julio Ramos e Gustavo Buenrostro (2012, p. 43) destacam com propriedade que ...y no se lo tragó la tierra é “una novela recorrida por las múltiples voces que proliferan en el marco de un uso muy flexible de la primera persona, el discurso indirecto libre y las conversaciones corales”. Parece ser justamente esse uso bastante flexível das várias vozes que se apresentam ou evocadas são na narrativa o artifício responsável pelo equívoco de confundir-se a figura do protagonista do romance com a pessoa de seu autor, algo que incidirá diretamente também sobre a problemática de que se assevere que o narrador a deliberar as outras vozes (da[s]) narrativa(s) é um menino que decerto alude à infância do escritor da obra. Quando toca no processo de edição da obra, pelo qual contos foram incluídos e excluídos desde a primeira versão enviada a Quinto Sol até a publicação final, é também Gustavo Buenrostro (2012, p. 193) quem afirma, mais especificamente a respeito da exclusão do conto “El Pete Fonseca”, que os editores “acaso no comprendieron bien la distancia entre el autor y su personaje”. Isto se explica pelo fato de que, ainda segundo Buenrostro (2012, p. 191), há em “El Pete Fonseca” uma “marcada distancia del narrador ante los eventos que narra”. O conto citado52 “es un relato picaresco sobre las peripecias ‘amorales’ de un protagonista pachuco” (BUENROSTRO, 2012, p. 192 – grifo do autor) que conquista, engana e foge com o carro e todo o dinheiro de uma família (mulher e filhos) chicana. Por uma parte, entende-se a eliminação do conto se compreendemos a prioridade do pensamento intelectual chicano à época de afirmar os valores de sua gente frente a estereótipos a partir dos quais eram frequentemente submetidos, julgados e menosprezados. Daí a necessidade de afastamento de uma iminente, mas também já eminente, figura no campo intelectual chicano, como propagadora talvez desses mesmos estereótipos, por mais que, na verdade, a intenção de Rivera passasse pelo desnudamento e reconhecimento da coexistência interna para que esta eliminasse a necessidade do reconhecimento e, portanto, construção externa ao seio chicano (Cf. Buenrostro, 2012, p. 202). Por outro lado, entende-se que, havendo uma distância maior entre o narrador e os eventos que conta em “El Pete”, é 52 Conforme aponta o próprio Buenrostro (Cf. 2012, 223), em nota explicativa aos anexos da edição argentina, “El Pete Fonseca” foi escrito em espanhol, mas, uma vez excluído da edição final de ...y no se lo tragó, foi publicado a primeira vez em inglês somente no ano seguinte à edição do romance, em Aztlán: an Anthology of Mexican-American Literature (1972). 96 natural pensar-se na preservação mais coesiva de uma não tão distante ubiquação no todo, ainda que ex-cêntrico, do romance do qual foi excluído tal conto. No entanto, apesar de atribuírem, mesmo quem sabe de forma justificada, essa falta de compreensão da distância autor/personagem a outrem, os próprios Ramos e Buenrostro em 2012 parecem quase recair na confusão que causam os limites tênues entre figura e pessoa, algo presente desde críticas anteriores, como em Justo S. Alarcón, quem em 1988 intitulava seu artigo, já aqui utilizado, de “El autor como narrador em ...y no se lo tragó la tierra, de Tomás Rivera”. Situado temporalmente entre ambas as mostras críticas, há de se ressaltar também o trabalho já mencionado de Ignacio J. Esteban Giner (2005). Em sua tese doutoral publicada naquele ano sobre a contextualização da obra de Tomás Rivera, Giner dedica todo um capítulo ao único romance do referido autor chicano. Assim, sua apreensão/aproximação autor/narrador passa por uma cuidadosa proposta de identificação, quando, por exemplo, ao abordar certa passagem do conto final sobre a qual me estenderei mais à frente, escreve que “se puede identificar al muchacho protagonista con el propio autor” (GINER, 2005, p. 86). Mas, ao mesmo passo, um pouco antes, esta mesma apreensão se apresenta, aqui em tom de conversão, um tanto mais próxima de um Rivera autor e narrador, quando Giner (2005, p. 81 – grifo meu), ao tocar nas variadas pessoas, nas múltiplas vozes orquestradas pela narrativa, aponta que “El rol de narrador lo asumen varias personas a lo largo de la novela, ya sea el muchacho protagonista, el muchacho ya adulto y convertido en autor de su autobiografía, en narrador omnisciente, o incluso el propio Tomás Rivera”. Porém, a cuidadosa conversão proposta por Giner parece render-se à flutuação perigosa que vida e obra do autor chegam mesmo a permitir, quando, logo após o trecho supracitado, ele afirma que El narrador omnisciente se presenta a veces también como un niño que ve el mundo con sus propios ojos (...) o como un hombre mayor, que podría ser el mismo Rivera ya convertido en escritor, pues, como sabemos, la novela está repleta de elementos autobiográficos (GINER, 2005, p.81). Vêm, enfim, desta arriscada proximidade com a autobiografia, as incursões do mesclar-se, e confundir-se, narrador e autor em ...y no se lo tragó la tierra, posição assumida de maneira mais efetiva pelo já mencionado S. Alarcón. É importante ressaltar que, mesmo bastante anterior aos posicionamentos dos outros críticos trabalhados no presente final de 97 tópico, Alarcón mencionava também a Juan Rodríguez53 como o único que até aquele então havia “asociado a la persona del autor con lo que los críticos nombran ‘narradores’, sean estos explícitos o implícitos o virtuales” (S. ALARCÓN, 1988, p. 67 – grifo do autor). Assim, mesmo expressando-se de forma metafórica, Alarcón coincide com o crítico evocado da seguinte maneira: Estoy de acuerdo con lo siguiente: que, al fin de cuentas, el autor, como prestidigitador, tira de las cuerdas o hilos de sus personajes, narradores o voces a través de su obra. Por tanto, todo lo que se haga o diga en dicha obra, al fin de cuentas, es el autor el que, escondido detrás de una o varias máscaras, manipula de una u otra forma a esa legión de narradores (S. ALARCÓN, 1988, p. 67). Embora um tanto evasivo nesse primeiro momento, S. Alarcón termina por fazer da remissão ao autor como narrador no romance de Rivera, não sendo apenas algo já explicitado no título de seu texto bem como em toda a crítica ao que chama de contradições na narrativa riverana. Tais críticas se estreitam sobre supostos problemas ontológicos os quais estariam intimamente ligados à forte presença de Tomás sobre a figura do menino narrador, vinculação fortemente defendida pelo crítico espanhol até o final de seu artigo, quando, ao citar um pensamento ligado a um livro acerca da filosofia da existência, assim escreve: “Esto es lo que le pasó también a nuestro autor/narrador en ...y no se lo tragó la tierra: ‘se aterrorizó’ y no pudo pensar. Y, sin embargo, se lanzó y se atrevió a contarnos doce cuentos o experiencias” (S. ALARCÓN, 1988, p. 74 – grifo do autor em aspa única – grifo meu em itálico). A fina ironia contida na crítica de S. Alarcón não é de todo descabida. Há também na ficção de ...y no se lo tragó la tierra, em contos como o já mencionado “El retrato”, o desfile estilístico do que Esteban Giner (2005, p. 84) chama de “un uso delicadísimo de la ironía”. E os críticos, por vezes, mesmo à revelia, terminamos por vencidos sermos por uma contaminação de estilo advinda mesmo de autores sobre os quais despejamos poderosas críticas. Não é, ainda, a crítica de S. Alarcón desmedida se aceitarmos que muitas vezes certos clássicos exigem para sua maior compreensão e aceitação como tal um afastamento crítico que demanda em conjunto maior distância no tempo e nas instâncias sócio-étnico-culturais e cognitivas desde as quais discursam seus analisadores. É ainda menos impertinente a crítica de Alarcón se não nos esquecemos de que, mesmo com tal distanciamento no tempo e de instâncias, um Giner (2005), mais preocupado com a contextualização da obra riverana como um todo (mostras contempladoras de poesia, conto e romance no autor), também se vê à mercê dos frágeis limites entre Rivera e seu “menino” narrador. Contudo, inclusive a recente, 53 Crítico chicano cujas observações sobre Rivera aparecem no artigo de 1978 “The Problematic in Tomás Rivera's ... y no se lo tragó la tierra”, reeditado em 1986 na compilação bilíngue Contemporary Chicano Fiction: A Critical Survey, da Vernon Lattin Ed. 98 e excelente, primeira edição latino-americana do romance de Tomás Rivera quase se deixa tragar, quase se deixa “cegar” pela nuvem de terra que ...y no se lo tragó levanta acerca da questão autor/narrador. Tornemos a Ramos e Buenrostro. A pesquisa materializada por Julio Ramos e Gustavo Buenrostro resulta em verdadeiro tesouro tanto para investigadores da literatura chicana quanto para quem, tomando fins dos anos de 1960 e início dos de 1970 como datas decisivas no e para o processo de (re)florescimento e estabelecimento definitivo de um novo-antigo sistema literário, encontram em Tomás Rivera uma figura chave cujo papel pioneiro nesses eventos não deve ser ignorado. A concepção final da edição de ...y no se lo tragó la tierra, abraçada pela argentina Ediciones Corregidor, que a publica em 2012, é fruto, pois, de uma profunda investigação científica de cunho também bibliográfico que demandou a obtenção de acesso a arquivos do escritor junto a sua família e, principalmente, à Biblioteca Tomás Rivera, localizada em Riverside, na Universidade da Califórnia (EUA), lugar onde Rivera ocupou seu último cargo acadêmico (tendo sido nomeado, sem que houvesse solicitado, reitor de um dos centros/uma das cadeiras daquela instituição) antes de seu falecimento. Porém, embora o caráter bastante objetivo adotado por ambos os pesquisadores se evidencie na concepção de abertura (prólogo) e fechamento (introdução aos anexos que encerram a edição argentina), um aspecto de leve tom subjetivado subjaz das reflexões que emprestam aos segmentos citados. Refiro-me aqui ao uso, já citado por mim na nota de número 41, do termo relato, em espanhol, para tocar na narrativa de Rivera. Conforme adiantei, relato em espanhol é um sinônimo para narração, e para conto; mas, encontra também, na plêiade semântica para narração, o ato, a ação de narrar, de contar um fato, ou fatos, detalhadamente (Cf. relato em Diccionario de la lengua española de la Real Academia en línea e no sítio Wordreference.com). Instaura-se desde já a ambiguidade do que seja fato (mais próximo de um real empírico) em relação ao processo criativo e (re)criador envolto no ato de repetir, contando-se (ou recontando-se) un hecho (de fato, de hecho) acontecido. Relato nos remete ainda aos antigos relatos de viagem dos “descobridores”, encarnando assim toda uma mnemônica que envolve em seu processo todo um caráter de seleção, nem sempre objetiva, e, inclusive, de recriação, porquanto é de igual modo imaginativo e, mesmo, inventivo. Ao longo das páginas dos segmentos aqui mencionados, ao se referirem ao romance de Rivera e a seus contos-capítulos componentes, Ramos e Buenrostro os tratam pelo espanhol novela (o gênero literário romance, em português), narrativa, histórias, algumas vezes cuento(s) (conto), não muitas vezes capítulo(s) e, em muitíssimas ocasiões, por relato(s). 99 Decerto um ato coesivo para evitar-se ao máximo a repetição de cuento, relato é usado como sinônimo daquele, principalmente quando Ramos e Buenrostro em seus textos críticos justapõem este mesmo termo relato, de forma repetida, a ficción (ficção) ou ficciones (ficções). A proximidade para com a ficção é ainda mais bem apreensível quando, ao comparar a obra riverana com a reunião de contos rulfianos El llano en llamas, os termos ficções e relatos são também, além de cuento(s), designados para especificar as narrativas de Rulfo na obra citada. No entanto, dois momentos em especial se aproximam da mescla comum autor/narrador. Um deles se refere a um trecho do prólogo em que Ramos e Buenrostro (2012, p. 24 – grifo meu) escrevem sobre a figura do poeta “benjaminiano” da última estampa do romance riverano. Este poeta, como já sabemos, é “Bartolo, poeta itinerante, viajero, como la misma familia de Rivera”. Adiante, outro fragmento quase leva à comparação uma completa identificação, quando os autores (2012, p. 26-7 – grifo meu) apontam que Rivera (...) se había educado en un sistema escolar angloparlante donde explícitamente se les prohibía a los niños hablar el español, sometiéndolos a un aparato pedagógico que los introduce, como a varios de los personajes de Rivera, en un mundo lingüístico violentamente escindido, diferenciado del precario espacio familiar que continuaba siendo casi exclusivamente hispanohablante. Nesses dois exemplos, há uma mostra ainda apenas aproximativa entre comparação e apreensão identificadora total. Entretanto, dizer “apenas aproximativa” implica mesmo assim em perigosa proximidade com a pessoa do autor. Nesse caso, a ausência tão-somente da partícula condicionante “se” ao lado da conjunção “como” em Buenrostro e Ramos sugere que ambos terminam por cair na malha das impressões afetivas provocadas pelo mundo outro de Rivera posto entre parênteses pelo como se, por assim dizer iseriano, de seu texto literário. Assim, mesmo substituindo por vezes o termo cuentos por ficciones para tratar do que chamam também de “as ficções de Rivera”, Ramos e Buenrostro acabam por flertar com a remissão que propõe a ficção do como se, algo que neles se explicita ainda mais em outros dois fragmentos de sua abordagem sobre o romance riverano. No início do prólogo cuja autoria dividem Buenrostro e Ramos, ao proporem – a partir de reflexão da leitura que Octavio Paz tece sobre pachuquismo54 e mexicanidade em seu El 54 E importa ressaltar que o pachuco foi figura bastante explorada por uma nascente classe intelectual chicana como símbolo de resistência e similar de aceitação e afirmação de uma realmente existente identidade chicana que se estabelecia. O termo pachuco se refere, em primeira instância, àquele que vive ou vem da cidade de Pachuca, capital do estado de Hidalgo (México). Mas, tem sua acepção estendida ao mexicano ou chicano que, em comportamento que se torna mais evidente desde os anos de 1940, encontrou maneiras de marcar suas diferenças identitárias nos Estados Unidos, tanto pelo uso de roupas extravagantes (grosso modo, ternos compridos, calças folgadas, chapéus decorados com uma pena, tudo, o mais das vezes, bem colorido) quanto 100 laberinto de la soledad (1951, 1959) – uma releitura da situação dos sujeitos migrantes à margem dos encontrazos a que estão submetidos diante das fronteiras culturais sob as quais se veem obrigados a conviver, esses pesquisadores assim escrevem: Tal vez ahora – por el impacto del capital global que domina el mundo contemporáneo – estamos listos para reconocer que la trayectoria del sujeto que (e)migra y el relato de su viaje como pérdida o proceso de desposesión abyecta es un aspecto constitutivo del patrimonio, de las ficciones de herencia y del orden simbólico nacional (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 17 – grifo dos autores entre parênteses; grifo meu em negrito). Mesmo tocando com propriedade uma vez mais em ficções, questão muito bem pontuada pelos dois investigadores, o trecho supracitado encontra par com informação já conhecida pelos estudiosos do grande escritor chicano e sua obra, a de que “Rivera se había criado en un pueblo de Texas. Viajó durante años como hijo de jornalero 55 entre las fincas del agronegocio” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 26 – grifo meu). Embora aparentemente à revelia da intencionalidade do texto, mesclam-se aí, parecendo fundirem-se de vez, as identidades de autor e seu protagonista; algo que com todo o cuidado praticamente torna a ocorrer na introdução aos anexos, escrita dessa feita apenas por Buenrostro, no final da edição argentina do romance de Rivera. Nesse segmento, quando toca em uma passagem revelada por Tomás Rivera numa entrevista, Buenrostro transcreve que, sabedor do gosto de seu filho pela leitura, o pai de Rivera o conduzia de porta em porta na vizinhança para pedir revistas usadas. Ocorre que tal busca se dava às vezes também em aterros sanitários, lixões. E é tal ação que Buenrostro vincula a um trecho do conto “Es que duele”, onde o protagonista, expulso de sua escola por haver brigado com um menino anglo que o provocava por conta de sua etnicidade, encontra refúgio para a situação na companhia da personagem Doña Cuquita, que faz o mesmo itinerário de buscas nos lixões. Classificando este processo vivido na infância como de acumulação, Buenrostro se refere a este como “niño Rivera” (2012, p. 212), sendo curioso o fato de que é ele quem melhor parece definir a personagem principal de ...y no se lo tragó reiteradamente como “niño protagonista”, mais do que a oscilação principal do discurso crítico que comumente denomina tal personagem como niño, muchacho ou joven narrador. Mais ao fim, Buenrostro (2012, p. 212 – grifo meu) insere a seguinte complementação: “juntando el fragmento de la pelo uso de um modo de falar bastante peculiar, unindo gírias variadas a um iminente espanglês. A esse conjunto de comportamentos tende desde então a denominar-se pachuquismos. Remeto o leitor, ainda, ao conto “El Pete Fonseca” (RIVERA, 1971 apud BUENROSTRO, 2012, p. 223-238), ao texto “Ficción del límite” (RAMOS e BUENROSTRO: 2012, p. 9-17), ao ensaio “El pachuco y otros extremos” (PAZ, 1950) e ao Diccionario breve de mexicanismos (DE SILVA, 2001, p. 157). 55 Trabalhador que no agronegócio exercia suas atividades laborais, e por elas recebia (pouco que fosse), por jornada diária. 101 novela y el fragmento de lo biográfico, nos damos cuenta de la importancia de esta zona de peligro tóxico para la entrada permanente a la lógica de acumulación de objetos del conocimiento”. Juntar tudo, todos os cacos de seus fragmentos, seus flashes de memória é a proposta final da estranha (re)tomada de consciência do protagonista da narrativa de Tomás Rivera. Juntar acaba sendo para a crítica tarefa das mais difíceis ante a ação mais prudente, quase óbvia de separar o menino Rivera do menino narrador, algo justificado pelos limites de gênero impostos pelo enredo do romance desse autor chicano falecido precocemente em 1984. O vínculo expressivo entre ...y no se lo tragó la tierra e a vida de Tomás Rivera faz com que sua obra chegue a flutuar entre a categorização de romance autobiográfico ao que hoje em dia se acostumou chamar de autoficção; não sendo, ao final das contas, qualquer das duas. É uma quase “(im)pura” ficção, ou ficção criada a partir da recriação da retomada de memórias, potencializadas pelo poder realizativo da ficção (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 43), através da superposição de ficções mnemônicas, memória sob memória, memória sobre memória, memória questionando memória e seu poder imaginativo. Nesse aspecto, Giner (2005) defende a ficção, mas por pouco se deixa por ela confundir-se. Enquanto isso, Ramos e Buenrostro (2012) se aproximam da total separação; mas quase-que tragados são pela escolha lexical dos relatos, que terminam por aproximar ficção aos fatos (questionáveis, selecionáveis sim, embora demasiado desejosos do atestado serem como verdade) aos relatos de viagem, ou mesmo ao gênero testemunho. E S. Alarcón (1988) borra a linha tênue, porém, exagera na provocação acirrada menino-autor-narrador. Sabemos que a ficção (o famoso lembrete de filmes e telenovelas: “Esta é uma obra de ficção...”) pode até vir a ser uma escusa do autor com vistas a evitar até mesmo eventuais, mas possíveis (e não são raros os exemplos) arengas judiciais. Por essa linha de raciocínio transita algo da questão de Rivera, estabelecida e aceita desde já a afirmação de que ele, Tomás Rivera, não é o narrador de seu romance, não sendo ele, enquanto autor, o narrador da ficção por ele orquestrada, arquitetada, construída e materializada. Tome-se como instrumento de verificação, por exemplo, o caso do conto “La mano en la bolsa”, um dos primeiros capítulos do corpo de doze que remetem a um ano migratório pelas áreas de cultivo não somente do sudoeste, mas, além disso, de partes do norte estadunidense. Pertencente a este corpo que também alude ao ano letivo do menino protagonista, “La mano en la bolsa” conta a estadia do menino com um casal chicano para que ele pudesse estudar enquanto seus pais laboravam nos campos distantes do agronegócio. Sucede que o casal, sem que o saiba sua gente, que o tem na mais alta conta como pessoas generosas, é uma dupla que desfila tal generosidade a partir de chicanas, armações e 102 furtos. Para o fim da história, um desses furtos provém de un mojadito que se deixa seduzir por Doña Bone, a mulher, sendo depois morto por ela e seu marido, Don Laíto, os quais, além de inicialmente esconderem o corpo no quarto do menino de que tomavam conta, intimidamno e obrigam-no a ajudar-lhes a enterrar o corpo do homem assassinado, mais tarde, inclusive, “presenteando” o menino com um dos anéis do mojadito morto. Ora, cabe desde ali então uma pergunta tonta, mas de caráter sugestivamente ontológico acerca da participação de um Rivera menino na ocultação de um cadáver; “fato” contado por um Rivera já adulto e, quem sabe por isso, livre de qualquer investigação na suposição de existência desse mesmo “fato” em seu passado? Esta é uma hipótese, claro está, das mais inexequíveis; no entanto, cabível para a demonstração do nível de criação que Tomás Rivera imprime a seu narrado, poder imaginativo sempre abordado por ele em seus ensaios e entrevistas, professor ele também de oficinas de criação literária, as quais desejava pudessem ajudar a gerar toda uma emancipação intelectual baseada em um projeto de invenção, símile à construção por que ainda passava a identidade da gente chicana. Não, Rivera não é o narrador de sua ficção. Porém, talvez surpreenda o feito de que tampouco o seja um menino. Reparemos o exemplo final do próprio “La mano en la bolsa”, sobre o anel do assassinado que lhe ofertam ao menino os dois chicanos enganadores: Después de unos dos meses, ya cuando parecía que se me estaba olvidando todo aquello, vinieron a visitarnos al rancho. Me traían un presente. Un anillo. Me hicieron que me lo pusiera y recordé que era el que traía el mojadito. Nomás se fueron y traté de tirarlo pero no sé por qué no pude. Se me hacía que alguien se lo hallaba. Y lo peor fue que por mucho tiempo, nomás veía a algún desconocido, me metía la mano a la bolsa. Esa maña me duró mucho tiempo (RIVERA, [1971] 2012, p. 98). Joven, muchacho, niño, entende-se, mesmo sem a precisão de sua idade, o protagonismo de um menino em idade escolar. Talvez mais menino, mais criança que adolescente, se tornamos ao episódio em que, mesmo temendo a repreensão dos pais, vagueia e se deixa guiar por lixões com a personagem Doña Cuquita em “Es que duele”; ou inclusive se se vai, de volta a “La mano en la bolsa”, ao asco do menino ao sexo praticado por Doña Bone com o mojadito, antes do momento em que o matam, ela e seu marido. Seguro que, para fins de apreensão efetiva, evidente, sim, ele é um menino narrador que é “realizado”, configurado como protagonista e narrador. Porém, enquanto menino esse protagonista é, com efeito, um projeto fingido, uma ficção de narrador. Há que se reparar, tomando como exemplo, portanto, o trecho supracitado, um discurso demasiado elaborado, de palavras que pressupõem demasiada elaboração. E aqui de nada, para nada contribui pensar em tal elaboração como fruto de sua ficção, da ficção do menino; mas, antes, em verdade, da 103 construção rememorativa a que se impõe e se nos é imposta por um sujeito amadurecido, infante ainda talvez em todo seu processo mnemônico de tomada de consciência. Essa suspeição de uma introspecção um tanto imprópria para um garoto (Cf. Giner, 2005, p. 81) encontra ainda justificativa se observarmos com atenção o trecho abaixo, quando no último capítulo do romance um menino descobre o protagonista da obra embaixo da casa onde esteve escondido reencontrando suas memórias: – Mami, mami, aquí está un viejo debajo de la casa. Mami, mami, mami, pronto, sal, aquí está un viejo. – ¿Dónde? ¿Dónde? ¡Ah!... deja traer unas tablas y tú, anda a traer el perro de doña Luz. Y vio sinnúmero de ojos y caras en lo blanco y luego se puso más oscuro debajo del piso. (…) – ¿Quién será? Tuvo que salir. Todos se sorprendieron que fuera él. Al retirarse de ellos no les digo nada y luego oyó que dijo la señora: – Pobre familia. Primero la mamá, y ahora éste. Se estará volviendo loco. Yo creo que se está yendo la mente. Está perdiendo los años (RIVERA, [1971] 2012, p. 161 – grifo meu). Indo embora sua mente ou não, importa que do limiar, da ambiguidade entre razão e loucura56, infância e idade adulta sobressai, paira a certeza, proposta do alto da criação de Rivera, de que o suposto viejo obrigado a sair debaixo da casa pode ser elevado, no máximo, a um caráter proposital, sim, de alusão ao autor, sendo, entretanto, mais correto afirmar o menino como introjecção (re)criada, rememorada, recuperada pelo adulto, pelo “velho” que faz do menino, enfim, outra ficção (uma ficção de que é o narrador um menino) dentro da ficção maior de Tomás Rivera, ou seja: fazer de sua ficção de memória uma ficção de memória fotográfica. 2.3 Imaginária e imaginários de ...Tierra: “sacralidades” em questionamento Tamanha “simbiose”, com a qual se encerra a linha argumentativa do tópico anterior, decorre de uma habilidade narratológica que em Rivera, conforme já explicitado a partir das considerações teóricas utilizadas nesse segmento anterior, vê-se orquestrada desde a justaposição, e contraposição muitas vezes, das vozes que sobre o texto interferem, que sobre o texto intervêm. Nesse sentido, é possível compreender o texto ficcional riverano, de certo modo, sob um ponto de vista polifônico. 56 Apenas mais uma das tantas similitudes com Rulfo, para além do âmbito de observações possíveis de um Regionalismo em ambos (coincidentes neste aspecto também com o brasileiro Guimarães Rosa). 104 A polifonia em literatura é, desde Bakhtin (1929, 1963) e suas considerações acerca dela e de sua implicatura e aplicação no gênero romanesco (tendo a análise do gênio Dostoiévski à cabeça), matéria que fala, grosso modo, do entrechoque de vozes sociais polêmicas, contraditórias, como constitutivo básico do gênero romance. Todavia, em ...y no se lo tragó la tierra, primeira e terceira pessoas narrativas, discurso indireto livre e diálogos que os complementam e a eles se sobrepõem, mais as vozes corais, vozes anônimas que opinam, sem sequer haverem sido anunciadas, sobre as mais diversas situações trazidas à tona pelo enredo; enfim, toda essa multiplicidade discursivo-enunciativa de vozes que confundem mais do que propriamente polemizam parece mais bem condensar-se sob os efeitos de outro tipo de polifonia, ou da observação da polifonia, partindo-se de outros termos. Mesmo a polifonia no discurso literário, da qual trata Bakhtin, origina seus termos na música, em especial da música litúrgico-clássica europeia do medievo, que alcançaria em influência grandes nomes do gênero nos séculos seguintes. Resumidamente se explica pela união em harmonia de vozes distintas, cada qual, entretanto, com sua própria melodia. Nesse aspecto, a narrativa de Rivera opera sob o que se convencionou chamar de “canto fixo” (do latinismo cantus firmus) na polifonia. Um cantus firmus em que três vozes maiores reunidas confundem pela composição algo contraditória que propõem: capítulo, conto e romance. Ocorre que na narratividade de sua obra, Rivera subverte a ritualística quase sempre previsível do romance emprestando à forma composicional romanesca capítulo tons do canto do conto. Revolvem, ainda, as entranhas desse canto maior: uma voz que seria a primeira, também previsível (por “falsa” ser, sendo, por isso mesmo, base necessária para toda a ficção desenvolvida) do “menino” narrador; a esta se justapõe em parataxe (Cf. Ramos e Buenrostro: 2012, p. 43)57 o conjunto de vozes corais e das anônimas dos diálogos interpostos que ajudam a contar a(s) história(s); e a terceira voz é a que de fato surpreende, é o viejo narrador que sai debaixo da casa no último conto-capítulo, fechando, assim, em trítono, um canto fixo migratório, porque ora a narrativa se sustenta no menino, ora em outras vozes evocadas; sendo, porém, um tenor maduro o responsável por introduzir, enfim, ao cantus firmus riverano, o tom de um real, de um verdadeiro cantus fictus. A tensão criada pela problemática, da qual se estabelece que o narrador é (simbolicamente) e não é (na “razão retomada” na figura final do velho embaixo da casa) um menino, termina por corresponder-se de certa maneira às vozes contraditórias como parte 57 Quando, ao falarem da operação narrativa levada a cabo por Rivera, os autores tocam no processo de intensificação da língua que se dá através de uma redução ou subtração paratática (falam, ainda na mesma página, de “un ensamblaje paratáctico de las voces” – grifo meu). Na ordem do gramatical, a parataxe corresponde à coordenação e justaposição de orações. 105 fundamental da constituição do gênero romance, das quais fala Bakhtin. Nessa contradição e espécie de polêmica oracional de uma voz que aparentemente não fala, quando em verdade é a responsável pelas várias vozes que falam, minha posição é a de que, reiterando, é o narrador, ao fim e ao cabo, o “velho” encontrado debaixo da casa no final do romance; mas um “velho” que, ao dar vez e voz à memória de um ano de sua infância, faz, desse menino que ele foi, o protagonista, sim, de tal mnemônica. Sendo assim, tendo para fins de consideração efetiva que é o menino rememorado o protagonista recuperado na construção mnemônica de um narrador maduro, tem-se, nesse um ano de sua infância, outra tensão, um atrito entre fronteiras, mais culturais do que propriamente a física que compartem México e Estados Unidos. Estabelecida já sua migração laboral e agrária em solo estadunidense, a família do menino protagonista traz, ainda, entretanto, raízes culturais, raízes que invocam seu pertencimento do lado mexicano dessa fronteira evocada a entrar em ...y no se lo tragó como problemática cultural. Tal problemática atravessa o menino, já seja no ano de sua vida, visto desde o aspecto de trabalho nas terras do agronegócio norte-americano, nos campos de cultivo, já seja desde o aspecto de confrontamento de suas raízes cosmogônicas, culturais, familiares e linguísticas desde um ano letivo em um novo sistema, um novo “universo” onde eram outros os atributos que vigoravam nas práticas majoritárias primeiromundistas estadunidenses (por exemplo, o inglês como única língua no ambiente, no aparato escolar, e a submissão, práticas vexatórias de menosprezo às minorias, dentre as quais as de mexicanos... e chicanos). Assim, temos que: a inserção da figura de um “velho”, e sua estranha aceitação do passado, a duras penas conseguida, apontam para um futuro em que suas antigas formas de resistência já se transformaram, solidificando-se em afirmação identitária e em uma nova forma de resistência às demandas do poder, tanto o originário do México quanto o confrontado nos Estados Unidos. No entanto, tal afirmação não se dá antes sem questionamento, sem que sejam desafiadas, sem que sejam feitas, na figura evocada e construída do menino protagonista, certas interdições sobre sacralidades, sobre “tradições”. Segundo Gustavo Buenrostro (2012, p. 193 – grifo meu), em sua busca por obter e instaurar um marco identitário coerente, a emergente intelectualidade chicana coetânea a Rivera, procura, antes, no México encontrar algo que lhe orientasse com “un sentido de historia y de identidad; una tradición”. Ainda conforme Buenrostro, o próprio Tomás Rivera aponta que nos primeiros anos desse (re)florescimento da identidade chicana “hubo un empeño en hallar nuestros valores en México, es decir, regresar allí y encontrar la piedra 106 filosofal; encontrar nuestros antepasados y obtener así la fuerza dinámica que nos ayudaría aquí” (RIVERA, 1979, s/p. apud BUENROSTRO, 2012, p. 194). Allí e aquí denotam proximidade de espaços, mas é justo esse entre-fronteiras que separa o tempo do menino protagonista do tempo do narrador maduro, o “velho” que “finda” o romance, a figura com a qual finda seu romance Tomás Rivera. E, em seu tempo, o menino protagonista defronta as questões de pertencimento que envolvem sua gente num apanhado de apreensões culturais ainda mexicanas. Ocorre que esse menino recuperado traz para a surpreendente figura “presentificadora” do velho descoberto embaixo da casa a atualização de seu passado infante de questionamento ao apego cultural de sua gente e sua família a costumes cuja validade se vê posta em xeque em solo estadunidense, onde se mostram exacerbadas problemáticas de alteridade, mesmo que aceita a sujeição das classes minoritárias diante do controle exercido pela cultura anglo dominante, algo que impõe a esse sujeito minoritário uma situação de constante, e incômoda para muitos (tal é o caso do menino e outras jovens vozes evocadas), subalternidade. Entretanto, há um desafio implícito no confrontamento de que fez parte o jovem narrador, o jovem no narrador. E tal desafio diz respeito a buscar entender de que modo se dá todo esse questionamento de espírito jovem. Veremos que ele se atém, primeiro, ao âmbito da imagem, e uma possível relação com imaginários. Possível porque, antes, o menino protagonista relativiza toda uma imaginária que trazem consigo os seus. Cabe, então, um aprofundamento desse aspecto relativo à imagem. O termo “imaginária” aparece no desenvolvimento da obra O imaginário ([1994] 2011), do filósofo francês Gilbert Durand. Nesse ensaio sobre as ciências e a filosofia da imagem, Durand lança mão do verbete “imaginária” (“imaginaire” em francês), não como adjetivo, mas, sim, como substantivo, para referir-se/ou quando se refere a uma das vias da resistência do imaginário ao iconoclasmo herdeiro do pensamento racionalista do Ocidente desde Aristóteles (IV a.C.). As querelas a que se referem Durand tornam-se mais agudas, principalmente, a partir da redescoberta dos textos aristotélicos (quase desaparecidos por praticamente treze séculos) durante o século XII d.C. Desde então, a imagem se vê entre a postura racionalista do pensamento, da experiência através do acesso aos fatos e entre a Reforma Cristã Protestante, que abole em seus dogmas, suas doutrinas aquilo que tinha como excessos imagéticos provenientes da idolatria abraçada e difundida pelo cristianismo católico. E é a essa idolatria que Durand denomina, como parte da resistência do imaginário a um profundo e amplo processo de iconoclasmo no Ocidente, de imaginária sacra. 107 Assim, fosse gótica durante certo tempo (séculos XIII e XIV), ou mesmo barroca, como é o caso da arte em que se apoia a imagética católica romana a partir da ContraReforma no século XVI, é interessante notar que o termo imaginária se difere de imaginário justo por ser aquele mais atinente a uma espécie de coletivo, de coletividade, de reunião, de uma verdadeira coleção de imagens visuais (quadros, pinturas, estátuas, santos). Mesmo assim, ao usar os dois termos, Durand chega a utilizá-los quase como sinônimos. Tocarei, mais à frente, no entanto, em como, em meu modo de ver, o imaginário se apropria disso, ou seja, apropria-se de toda uma imaginária para que ela possa fazer parte, impregnando a mente do imaginante; não sendo, contudo, o imaginário, em seu caráter difuso de surgimento, apenas isso: quer dizer, apenas uma coleção, apenas uma imaginária. Esta faz parte daquele, ajudando a compô-lo; sem, entretanto, dar conta de tudo o que é ou pode ser um imaginário. Mas, como via de acesso, como meio que pode servir de acesso à formação de um imaginário, é mister estudar o papel da imaginária sacra mexicana questionada pelo menino protagonista do romance de Tomás Rivera. A propósito de um inicial e necessário retorno às origens mexicanas, o dramaturgo chicano Luis Valdez, em carta a Tomás Rivera, escreve sobre a publicação de “El Pete Fonseca” (conto excluído da edição final de ...y no se lo tragó) em AZTLAN: An Anthology of la Raza Literature. A Rivera, Valdez informa que a publicação da qual seu texto viria a fazer parte tentava mostrar a evolução do chicano “desde sus comienzos como indígena, su sufrimiento como mestizo, su incipiente nacionalismo como mexicano y su lucha contra la colonización como revolucionario – específicamente como magonista 58 – y como chicano” (VALDEZ [1971] – Traduzido do original em inglês por BUENROSTRO – in: RIVERA, [1971] 2012, p. 273). Entendamos que faz parte desse nacionalismo, de que fala Valdez, toda uma rede de artefatos culturais construídos na composição da ideia de nação. Assim, fazem parte desse ideário nacional, construções que “ensinam” o que é ser nacional pela propagação de tradições, muitas inventadas, que intentam um objetivo mor: um sentido, um sentimento de pertencimento. Para tanto, para apreendido ser, envolvido ser o sujeito nessa rede de construções, o questionamento passa longe desses artefatos culturais tecedores, criadores, construtores de identificações pelo nacional, de identidades que se forjam pelo nacional; sem que, nem sempre, deem-se conta disso. 58 O termo remete, em especial, à figura de Ricardo Flores Magón. Líder do Partido Liberal Mexicano, Magón encabeçou um evento de cunho libertário que viria a ser denominado por historiadores como “A rebelião armada magonista de 1911 em Baja California”. De cunho libertário e anarquista, este evento toma parte do contexto de revoltas iniciado em 1910 contra o porfiriato, a ditadura de Porfirio Diaz, que durou de 1876 a 1911 (Cf. GARCÍA, 2013, s/p.) 108 Tal rede de artefatos culturais 59 é descrita brilhantemente por Benedict Anderson em seu já clássico Comunidades Imaginadas (1989). Vejo como plenamente cabível que a essa categoria se inclua a imaginária que toma parte da simbologia do sentido do que é ser nacional. Para entender a imaginária que emerge das narrativas de ...y no se lo tragó la tierra é interessante voltar no tempo, como sugere Valdez, e tomar o exemplo emblemático da usurpação espanhola de Tenochtlán. Ali, ergueu-se o lugar que viria a ser conhecido como Cidade do México a partir dos escombros da metrópole asteca destruída. Utilizando-se mesmo as ruínas, as pedras da capital indígena destroçada, dominada, ergueram-se novas construções com a arquitetura hispânica de então. Assim, casas e templos foram erguidos por sobre os destroços de casas e templos do Império autóctone vencido. Ocorre que a mesma mão indígena que serviu colonizada a esta reconstrução deixou vazar nesse seu ato obrigado (especialmente na decoração dos emergentes templos católicos) os traços de seu passado, dando margem a uma sobreposição à sobreposição já imposta pela devastação espanhola. É nesses traços que se deixa ver a herança indígena, a qual com o tempo chegará às vias do sincretismo, servindo este oportunamente ainda mais tarde (muitas vezes pelas mãos e os instrumentos de influência de que dispunham os protagonistas das batalhas pela independência e, depois, nas lutas de revolução) ao tal incipiente nacionalismo mexicano, o qual, não diferentemente do que se passou em quase toda a América católica, cria, apanha e apoia parte de seu simbolismo (tão necessário à construção e manutenção imagética do nacional) na imaginária que tomam como sacra, tradicional, as gentes do povo enredado nas malhas ilusórias do nacionalismo. É importante ressaltar, entretanto, como, apesar do constructo que é, esse nacionalismo emergente em toda a América desde as guerras de independência terminará por ser um essencial escudo diante da potência expansionista (de imposição também cultural) que se tornam os Estados Unidos da América do Norte. Sucede que o menino protagonista do romance de Tomás Rivera sugere novas questões sobre o binarismo de forças México x Inimigo Ianque: qual a pertinência de apego a valores culturais mexicanos quando se é chicano in USA? De que valem os artefatos culturais mexicanos perpetuados pelos mais velhos de sua gente quando se é um menino me(x)chicano criado, mas que ainda busca inserção social (como sujeito de direitos, como estudante cuja etnia mereceria ser respeitada), 59 O autor destaca, grosso modo, dentre tais artefatos: a associação entre uma língua única e limites geográficos definidos; o desenvolvimento do capitalismo mercantil; e o surgimento e progressão da imprensa, que permitiu uma difusão quase simultânea de conhecimentos em relação às metrópoles e entre as colônias, além de ajudar a propagar os ideais que viriam a legitimar o sentimento, a consciência da qualidade do ser nacional (ANDERSON, [1989] 2005, p. 65-75). 109 do lado anglo dessa bi-fronteira que “compartilham” México e Estados Unidos? Perguntas que coincidem com e correspondem a um “¿Nosotros qué?”, elíptica e fatídica pergunta que encerra de forma anônima a quarta estampa “introdutória” ¿Para qué van tanto a la escuela? (RIVERA, [1971] 2012, p. 92). A busca por respostas para tais questionamentos só se passa através de uma revisitação a toda imaginária sacralizada, tida como sacra, como sagrada, fruto de tradição e apego, porquanto pertencimento, pelos seus. Vejamos, pois, de que modo se dá o desfile de tal imaginária passeando pela contestação revisitada na narrativa de reminiscências do protagonista do único romance riverano. Num primeiro momento, logo na primeira estampa que abre o narrado de desenvolvimento da obra após o primeiro conto-capítulo, o menino protagonista se interpõe ao jogo de sobreposições multiculturais caros à tradição mexicana herdada, trazida por sua família. Nesse jogo, o sagrado se atém ao apego a pedidos feitos a espíritos. Assim, o questionar se posiciona entre a burla e o temor (implícito no caráter elíptico-sugestivo do narrado) às possíveis repreensões que poderiam advir do ato assim contado: Lo que nunca supo su madre fue que todas las noches se tomaba el vaso de agua que ella les ponía a los espíritus debajo de la cama. Ella siempre creyó que eran éstos los que se tomaban el agua y así seguía haciendo su deber. Él le iba a decir una vez pero luego pensó que mejor lo haría cuando ya estuviera grande (RIVERA, [1971] 2012, p. 78). Nesse primeiro instante, mesmo que com bastante cuidado, questionado é o “dever” de sua mãe, este dever “tradicional” de “todas las noches”, cuja tradição a narrativa se deixa, através da oração “Ella siempre creyó”, desvelar por não mais que uma crença a qual tem, na verdade, em seu “siempre” o estabelecimento de ato (con)sagrado de tradição. Mas, os espíritos rememorados pelo menino não se aquietam aqui. Tornam espíritos e a inquietação do protagonista, logo na estampa seguinte à anterior: Se había dormido luego, luego, y todos con mucho cuidado de no tener los brazos ni las piernas ni las manos cruzadas, la veían intensamente. Ya estaba el espíritu en su caja. – A ver ¿en qué les puedo ayudar esta noche, hermanos? – Pues, mire, no he tenido razón de m’ijo hace ya dos meses. Ayer me cayó una carta del gobierno que me manda decir que está perdido en acción. Yo quisiera saber si vive o no. Ya me estoy volviendo loca nomás a piense y piense en eso. – No tenga cuidado, hermana. Julianito está bien. Está muy bien. Ya no se preocupe por él. Pronto lo tendrá en sus brazos. Ya va a regresar el mes que entra. – Muchas gracias, muchas gracias (RIVERA, [1971] 2012, p. 81). 110 Aqui a imaginária vem ainda por força da imaginação de sua gente, representada pela imaginação da mãe do menino protagonista. Porém, a narrativa subverte tal imaginária inventiva a seus subentendidos. Algo perceptível desde a frase “Ya estaba el espíritu en su caja”, pois, se levamos em conta a dúvida metafísica de um onde seria o “Está muy bien” de que fala um espírito e como dar-se-ia a materialização de sua outra fala “Pronto lo tendrá en sus brazos”, tal caixa como corpo em que aporta o espírito que fala à mãe desesperada por notícias de seu filho dado como perdido em guerra pode metaforicamente, dubiamente, também representar outro objeto. Assim, essa caixa pode denotar, conforme apontam Ramos e Buenrostro – ao tocarem no tema da guerra também tratado pelo porto-riquenho José Luis González em seu conto “Una caja de plomo que no se podía abrir” (1973) –, “esa hermética cajita de plomo donde los representantes del ejército le ‘entregan’ a la madre los restos de su hijo desaparecido en la guerra” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 49 – grifo dos autores em aspa simples). Mas, se até aqui a relativização se atém mais à imaginação do que propriamente a uma imaginária, tal ação se intensifica mesmo na continuidade desse drama que passa pela ficção de cidadania a que se viam submetidos os sujeitos de etnia minoritária em solo estadunidense. Como se percebe, pela apresentação de dados anteriores, a dramaticidade da situação advinda dessa ficção e busca por reconhecimento de cidadania, desemboca no conto “El retrato”, o qual já abordei. No entanto, antes que se chegue a ele, imediatamente após a estampa “Se había dormido...” está o conto “Un rezo”, onde não apenas se desenvolve a passagem iniciada na primeira estampa “Lo que nunca supo...”, bem como se intensifica a apresentação e relativização da imaginária me(x)chicana. Assim, apresenta o conto uma voz em primeira pessoa referente à mãe do já referido jovem dado como desaparecido na intervenção estadunidense à Guerra da Coreia. Tal voz conta suplicar pelo terceiro domingo seguido a “Dios, Jesucristo, santo de mi corazón” (RIVERA, [1971] 2012, p. 82) para que estes lhe deem notícias de seu filho. A estes pede ainda que o protejam das balas inimigas, para “que una bala no vaya a atravesarle el corazón como al de doña Virginia, que Dios lo tenga en paz” (Ibid.); sendo, neste caso, bastante perspicaz a “coincidência” forçosa, forçada, a fina ironia de que conste a referência do ocorrido a alguma amiga cujo nome se assemelha à designação da Virgem católica, sobre quem também pesou a dor do martírio de seu filho, Jesus, de coração também atravessado pelo inimigo com uma lança romana. No entanto, as remissões à mariolatria, esse apego e culto da Virgem (Cf. DURAND, [1994] 2011, p.18), com efeito, revelam-se em pedidos mais específicos como: “Por favor, 111 Virgen María, tú también cobíjalo. Cúbrele su cuerpo, tápale la cabeza, tápale los ojos a los comunistas y a los coreanos y a los chinos para que no lo vean, para que no lo maten” (RIVERA, [1971] 2012, p. 82). E segue ainda mais agudo nas promesas feitas: “Ya le tengo prometido a la Virgen de San Juan una visita y a la Virgen de Guadalupe también. Él también trae una medallita de la Virgen de San Juan del Valle y él también le prometió algo, quiere vivir” (Ibid.). E a respeito da sobreposição de imagens própria do caráter de construção implícito na formação das tradições é interessante notar nesses pedidos a recorrência à figura da padroeira mexicana, a Virgem de Guadalupe, que retorna em: “Tráemelo bueno y sano de Corea. Tápale el corazón con tus manos. Jesucristo, Dios santo, Virgen de Guadalupe, regrésenme su vida, regrésenme su corazón” (RIVERA, [1971] 2012, p. 83). Tal justaposição de imagens santas inclui em sua invocação a sobreposição transculturadora da imagem evocada de Tonantzin, pois, conforme explicaria Carlos Fuentes em seu clássico ensaístico El espejo enterrado ([1992] 2010: p. 246), “en México, Tonantzin, la diosa de los aztecas, se convirtío en la virgen morena de Guadalupe”. Como ressaltei, esse drama de cidadania iniciado em “Se había dormido...”, e imediatamente seguido por “Un rezo”, encontra seu ápice, ou sua correspondência, em “El retrato”, penúltimo conto do corpo de doze capítulos de desenvolvimento da obra, relativos a um ano letivo e de vida laboral do menino protagonista e sua família. E é importante perceber como Rivera relativiza ainda outras questões, referentes uma vez mais à imaginária de que faz uso sua narrativa de proposições mnemônicas e sua relação com o ficcional. O personagem citado como desaparecido em guerra leva primeiramente o apelido carinhoso de Julianito, que, salvo algum engano na resposta do espírito en la caja de “Se había dormido...”, quem diz “Julianito está bien”, pode muito bem ser o filho morto de Virginia, amiga da mãe narradora do subsequente “Un rezo”. Já sobre o nome daquele que merece as rogações neste mesmo “Un rezo”, poder-se-ia até mesmo pensá-lo como Juan, quem, tal qual sua mãe, prometera algo à Virgem de San Juan del Valle, de quem traz, ainda, uma medalhinha. O interessante é que na proposição desse jogo de nomes entra em cena Chuy, nome enunciado do desaparecido na mesma Guerra da Coreia em “El retrato”. Dado a conta de que Chuy é um apelido bastante mexicano para o nome Jesús, nome tomado como o do filho da Virgem, “coincidentemente” Virginia, e está estabelecida aí uma série de possibilidades próprias do jogo ficcional, confundindo serem três, ou dois, o que talvez seja apenas um. Há, porém, ainda mais. Se nos recordamos de que o final de “El retrato” traz a reconstrução forçada do rosto prometido do filho, reconstruído a partir da observação obrigada do rosto do 112 pai, damo-nos conta da abordagem riverana correspondente à questão máxima da imagem para o cristianismo: a do homem criado à imagem e semelhança de Deus, seu Pai; assim como o seria Jesus, seu primogênito na terra, que ao terceiro dia de seu sepultamento ressuscitou, sem esquecermos que o pai de Chuy (Jesús), interpelado por um amigo sobre a situação exposta em “El retrato”, conta também que o retratista enganador finalmente “a los tres días me trajo el retrato” (RIVERA, [1971] 2012: p. 145 – grifo meu); trabalho que, ao fim e ao cabo, se vê mostrado “curiosamente”, “acabadito así como lo ve cerquita de la virgen en esa tarima” (Ibid. – grifo meu). A narratura imposta por Rivera no caso acima responde a dois planos de hipóteses viáveis. O primeiro seria de ordem editorial, aquele que encerra a dúvida de Rivera entre saber se estava por publicar um volume de contos, com as estampas entremeando tais contos, como ele mesmo informa em carta à Editorial Quinto Sol, “to give the total work a cohesiveness that I thought was needed” 60 (RIVERA, [1970] 2012: p. 249), ou um romance, como o próprio e a editora em conjunto terminam por se convencerem. Nesta dúvida, talvez esteja a explicação para a ambiguidade identificadora que percorre de maneira deslocada a estampa e os dois contos que tocam no drama de cidadania aos quais dediquei os últimos parágrafos. O segundo, e a meu ver mais plausível, plano ao qual responderiam as “coincidências” e ambiguidades impressas por Tomás Rivera no trato literário de tal drama de cidadania vem da ordem de relações entre imagem (com destaque para a imaginária católica de sua gente), mimese e ficção, em um jogo de imagens literárias amarradas propositalmente de modo a servirem a toda uma ambiguidade interpretativa, provocada pelo poder criador, criativo da imaginação na construção da ficção literária apresentada pelo autor. Observe-se que, mesmo que consideremos tais coincidências como justapostas e sobrepostas inconscientemente, é sabido desde Freud o poder de ação do inconsciente sobre o consciente dos sujeitos discursivos. Importa, ao fim e ao cabo, uma construção que pela desconstrução propõe, por um fio tênue de ironia, a posta em xeque de valores e costumes em solo onde outra cultura se mostra dominante. Tornando a “Un rezo”, poder-se-ia pensar a estratégia de dar-se vez a outra voz narrativa, a da mãe do soldado desaparecido, como fruto de uma estratégia que se afasta do subjetivo, diminuindo, assim, os tons de um provável questionamento. Algo que, em verdade, é puro fingimento ficcional, dado que o narrador em terceira pessoa retorna em outros 60 “para dar à totalidade do trabalho uma coesão que considerei necessária” (Tradução minha). 113 momentos de posta em xeque dos costumes, da tradição, da imaginária de seu povo, sua gente. Imaginária, é bem verdade, advinda de todo um poder imaginativo, mas com ares de fixidez quase tão material quanto a das imagens evocadas nos apelos católicos até aqui tratados. É quando entra em cena a figura, a figuração do diabo pelas vias do desafio, pelas vias de enfrentamento do medo que tal oposição, necessária para a afirmação do bem na imaginária católica romana, poderia provocar à mente do menino protagonista e seus jovens irmãos. No conto-capítulo “La noche estaba plateada”, nosso maduro narrador rememora um momento em que ele, na figura de menino protagonista, desafia a que aparecera o diabo, imagem que lhe havia chamado a atenção desde uma encenação pastoral em casa de uma tia sua. O desafio está no espírito impetuoso do menino, quem promove um desmascaramento desse medo ao encontrar a fantasia sob a casa de quem interpretara o personagem. A esse primeiro desmascaramento promovido por Rivera em sua narrativa ficcional sucede a materialização oral do menino, que busca invocar a presença do diabo no alto de uma colina à meia-noite de uma noite prateada. Mais uma vez, dá-se a proposição de um jogo entre fantasia, palavra e imagem; entre crenças e verdades construídas, impostas na construção do medo pelas tradições, as quais resultam relativizadas na conclusão a que chega o maduro narrador travestido na memória que tem de si quando menino: Pensó que bien decía la gente que no se jugaba con el diablo. Luego comprendió todo. Los que le llamaban al diablo y se volvían locos, no se volvían locos porque se les aparecía sino al contrario, porque no se les aparecía. Y se quedó dormido viendo cómo la luna saltaba entre las nubes y los árboles contentísima de algo (RIVERA, [1971] 2012, p. 103). Tal desafio ao medo na tradição religiosa e nas crenças de seu povo, de seus pais, de sua gente se potencializa ainda mais no conto-capítulo “...y no se lo tragó la tierra”, imediatamente seguinte ao anterior e, de modo bastante perspicaz e interessante, antecedido por uma estampa que apresenta um caso de adultério, relativizando de maneira irônica o protestantismo de um ministro evangelista que prometia a um povoado chicano que lhes viriam sua esposa como intérprete e um outro “fulano”, palavra da própria narrativa, a ensinar trabalhos de carpintaria aos homens de lá, para que esses não precisassem somente do trabalho com a terra para sobreviver, o que ao cabo termina por nunca acontecer. No conto que empresta seu título ao romance, a mensagem de desafio é clara. Nele, temos um irmão mais velho do menino protagonista maldizendo a Deus por caírem doentes de tanto trabalho ao sol seu pai e seu irmão menor, situações já recorrentes numa família em que tios e tias já se haviam ido pela tuberculose ou a sanatórios ou tragados pela terra, mortos pela mesma doença 114 de sangue cuspido em razão da fatal combinação de suor, sol, pouca hidratação e trabalho intermitente junto à terra. De tal maldição jogada a Deus, o rapaz vê abrir-se a terra como a tragá-lo, sentimento-visão resultante do medo de anos. Mas, do emblemático desafio resulta outra crença: a da cura de seu pai e seu irmão mais novo, imediatamente subsequente às maldições que havia dedicado a Deus. Na manhã seguinte, batendo firme seu pé ao solo, sentindo-se vitorioso sobre a terra, representação simbólica da vitória sobre o medo em solo até ali alheio e hostil, o jovem sentencia: “Todavía no, todavía no me puedes tragar. Algún día, sí. Pero yo ni sabré” (RIVERA, [1971] 2012, p. 111). Esta relação imagética entre “La noche estaba plateada” e “...y no se lo tragó la tierra”, a proposição imagética que levantam é tão emblemática como prova do poder sugestivo, criador de imagens pela descrição da palavra literária que viria, inclusive, a servir de ilustração para a capa de uma edição do romance datada de 1996 [2011], publicada pela texana Piñata Books, da Arte Público Press (University of Houston)61. Nesta capa, desenhados estão de um lado um menino em roupas de dormir, com o medo estampado no rosto; e, do outro, uma representação do diabo a partir da descrição narrativa da fantasia dele feita em “La noche estaba plateada”. E, entre ambas as figurações, separando ambas as figuras desenhadas o desenho de uma fenda aberta no chão, tal qual a descrição da terra se abrindo em “...y no se lo tragó la tierra”. Mas, as remissões imagéticas a céu e inferno e “seus” personagens se espalham no mais da obra, e o desfile de imagens no romance de Rivera segue ainda em capítulos como “Primera comunión”, com o medo, infundido pela religião sobreposta às heranças sincréticas e multiculturais mexicanas, sendo ironizado e desafiado: [N]o había podido dormir la noche anterior tratando de recordar los pecados que tenía y, peor, tratando de llegar a un número exacto. Además, como mamá me había puesto um cuadro del infierno en la cabecera y como el cuarto estaba empapelado de caricaturas del fantasma y como quería salvarme de todo mal, pensaba sólo en eso (RIVERA, [1971] 2012, p. 113). E se neste mesmo conto as questões impostas pela Igreja referentes ao pecado são revolvidas, na estampa “Antes de que la gente se fuera”, a qual antecede justamente o conto “El retrato”, a Igreja retorna, desta feita numa sobreposição de crenças, quando um padre espanhol consegue, através do dinheiro ganho em bendições a automóveis da gente do povoado em que congregava, reunir valor suficiente para viajar a sua terra natal. Ao retornar deixa do lado de fora da pequena igreja postais de uma igreja espanhola muito moderna, o que, ao contrário do que esperava, passa a ser alvo de adorações que começaram por “palabras en las tarjetas, 61 Uma reprodução consta dos anexos do presente trabalho. 115 luego cruces, rayas y con safos así como había passado con las bancas nuevas. El cura nunca pudo comprender el sacrilegio” (RIVERA, [1971] 2012, p. 140). Porém, mais do que polemizar, a viagem pela imaginária em ...y no se lo tragó la tierra se insere em um projeto maior de revisitação a raízes formadoras, com sua consequente reavaliação crítica para fins de formação de uma consciência nova, a do sujeito chicano. E porque, nesse processo de formação, de autoafirmação identitária essa consciência passa pelas vias do ideológico, passa também, mesmo por isso, deliberadamente pelo poder imaginativo que desse corpo à possibilidade de união de um povo. Embora, conforme explicitam Ramos e Buenrostro em seu prólogo à edição argentina do romance riverano, o chicano se encaixe na denominação de povos sem Estado, o poder criador da literatura e a emergente intelectualidade chicana entendem, abraçam e auxiliam em seu processo ideológico de que seja, mais que uma unidade, um povo com unidade, aceitando suas origens étnicas (muitas das quais também fruto de um longo processo de criação, recriação, construção e sobreposição de valores e costumes) e impondo e apresentando sua diferença em uma épica que remonta a tempos inda mais antigos de peregrinação, de nomadismo e movimento migratório. Seguro é que a ficção de ...y no se lo tragó la tierra não chega a esse tópico de origem asteca, ao tópico da origem em Aztlán, como o fazem outros coetâneos de Rivera; mas, é justo pela relativização de valores, pela ambiguidade de sentidos que atravessam sua narrativa, que ele, Tomás Rivera, através da rememoração do menino protagonista de seu romance, abraça a insurgente causa chicana inserida no contexto das mobilizações pelos direitos civis que sacudiram os Estados Unidos a partir de fins dos anos de 1960. Tanto é assim que a proposta de abraçar, entender, acolher e aceitar suas origens e sua gente só se dá após o desnudamento da validade desses artefatos culturais em um espaço de menosprezo a uma alteridade que finalmente se agiganta, afirma-se como parte desse todo caleidoscópico, um povo com uma unidade imaginada, sim (tocando-se nos termos de Benedict Anderson (1989) em sua obra já citada), mas, isso porque passa primeiro pelo necessário poder da imaginação para, só depois, afirmar-se ideologicamente. Todo este processo, toda essa busca e essa longa caminhada rumo à aceitação de si mesmo como uma só vez igual e diferente, semelhante e dessemelhante, está no final de ...y no se lo tragó quando voltam, a maioria por um texto-rio (Cf. PEREIRA, 1997, p. 105) todo em cursivas, os personagens que atravessaram a imaginária riverana. E fossem eles mexicanos ou chicanos e seus costumes antigos, fossem eles ministros anglos protestantes traídos ou professores anglos benfeitores, o que importa é que a toda essa gente o maduro 116 narrador travestido de menino rememorado quer abraçar, pois já revisou talvez o ano mais difícil de sua vida, o ano em que seus embates, suas dúvidas identitárias eram mais agudas. Agora, exposta, enfim, a importância da imaginária em Rivera, importa diferenciá-la do que é um imaginário, para que sobre o trato dele também no romance riverano, para que sobre a relação literatura e imaginários em ...y no se lo tragó eu possa fechar o raciocínio proposto neste tópico. A partir do que demonstrei, por raramente ser utilizado em português como substantivo, o termo “imaginária” encontraria correspondente no verbete “estatuaria”, este, sim, um substantivo. Porém, enquanto este se restringe a denotar uma coleção de estátuas, aquele abre seu leque semântico de modo a abarcar uma série de imagens visuais. Incluídas em sua amplidão não apenas estátuas (ícones, ídolos) bem como quadros, pinturas, gravuras, o termo é usado por Gilbert Durand quando este francês especialista do imaginário faz referência ao que ele chama de imaginária sacra cristã como parte demonstrativa de diferentes momentos de resistência do imaginário diante de uma contínua e progressiva cultura de iconoclasmo no Ocidente. Observada a pertinência do termo junto ao recorte aqui adotado na análise de ...y no se lo tragó la tierra, percebe-se que a imaginária contida nesse romance de Tomás Rivera se insere como parte de toda uma mescla cristã-indígena propriamente mexicana (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 246). Característica que atravessa a fronteira em Rivera, esse sincretismo, que é, portanto, também chicano, perturba e move questionamentos no menino protagonista do romance. Dessa maneira, embora não se aprofunde na causa indígena, Rivera e sua imaginária tocam, mesmo indiretamente, na face multicultural índia de tal sincretismo. Assim, seja na remissão narrativa à Virgem “Indígena” de Guadalupe, aos quadros de fantasmas, na consulta aos espíritos e mesmo nas (trans)figurações do diabo, o componente cultural indígena está, de certa forma, representado, e posto em dúvida, na imaginária de ...y no se lo tragó. E é assim, questionando, que a imaginária riverana questiona igualmente imaginários de valores e de costumes, imaginários culturais, por assim dizer, apontados para o chicano. Um imaginário é um conjunto de apreensões de pensamento que tendem a reduzir demasiadamente a complexidade de assuntos sobre os quais costuma dedicar, debruçar, apontar sua lente, suas imagens. As imagens de que se serve necessitam de fato desse caráter redutor, pois respondem à faculdade humana de pensar compartimentado, pensar por compartimentos, à necessidade humana de classificar e, por suas classificações, pelas compartimentações que produz, através desse ato ter a noção regozijante (e enganadora) de 117 que apreende (e entende) um todo determinado, ou determinadas totalidades. A ele, imaginário, responde o que Gilbert Durand ([1994] 2011) chama de mente imaginante, ao que poderíamos agregar mente do imaginante e, por conseguinte, sujeito imaginante. Tal aspecto lhe conferiria o caráter, ou classificação, ou, ainda, dar-nos-ia a percepção da existência do que muitos chamam de imaginário pessoal, ou imaginários pessoais. Tal classificação não é de todo incorreta, mas o mais comum é que mesmo um imaginário pessoal se apoie em um, só exista a partir de um todo maior, um universo maior, no qual se insere um imaginário plural, pluralizado pela carga de imagens que traz em si. Tal relação de coexistência de um imaginário pessoal para com um imaginário plural, ou para imaginários plurais, revela-nos o caráter de latência, de característica estática que tem o imaginário plural: como uma nuvem que paira à espera da mente imaginante que o tome de assalto, um imaginário pode mover-se mais lenta ou rapidamente, podendo a ele se agregarem outras nuvens, outros imaginários ou instâncias pessoais que sobre ele determinam a mente do sujeito imaginante. Dele, imaginário, faz parte a coleção de imagens da imaginária, ou de uma imaginária; mas ele, imaginário, não se restringe a isso. Um imaginário é um denso corpo vivo, pois seu caráter coletivo é mental, já que é sobre a faculdade mental do imaginar que ele atua. Mesmo seu caráter de estático é relativo, já que a determinados imaginários podem se agregar, de tempos em tempos, imagens novas, frutos do poder de ação e influência, de persuasão dos produtores, criadores, difusores, propagadores, veiculadores de todo e qualquer tipo de imagem que abarcada possa ser pelo amálgama maior chamado IMAGEM. Será a força, a profundidade que empresta à aparência das imagens produzidas e propagadas em cada época que ditará a “pertenência”, o pertencimento, o poder de fixação ou não dessas imagens aos imaginários pelos quais podem ser apreendidas. Há que se entender, por fim, que, dada a necessidade classificatória do imaginário, suas imagens tendem a se valerem, mormente, da produção de pré-conceitos (os quais por vezes resultam na disseminação de preconceitos), servindo-se bastante de tipos, figurações, estereótipos e da força de muitos mitos. Em alguns momentos, tal é o caso da literatura, embora esse efeito nem sempre seja intencional, dele dependendo também a capacidade de decodificação, o filtro de apreensão do leitor receptor das imagens que às vezes quer transmitir o texto literário. No tocante ao romance ...y no se lo tragó la tierra, a relação da obra para com imaginários se dá desde um ponto de vista de provocação de transtorno, de desafio. Assim, quase todo o tempo são relativizados, questionados, revolvidos, trastocados pela obra os seguintes tipos de imaginários: 118 - de costumes: abrangentes de construções, como crenças, religião, religiosidade, tradição, sincretismos, cosmogonia; - sociais: de relações em sociedade, de relações sociais, referentes, principalmente, à mobilidade, à “movedura” própria dos deslocamentos sociais. Nessa ação da narrativa riverana, entram em cena a não heroicização do sujeito migrante, a particularização do nomadismo ou do sentimento nomádico (distinto para cada sujeito), e a ficção da e na busca por cidadania, por aceitação e inclusão social; - nacionais: por um lado, ao tocar na questão chicana e, por conseguinte, das classes e das etnias minoritárias, dentro do imaginário nacional norte-americano (estadunidense). E, por outro, ao defrontar sua narrativa com o imagético envolto por trás do tido como tipicamente mexicano, com as imagens dessa cultura, algo provocado por um intencional retorno a raízes mexicanas e a um incipiente nacionalismo mexicano (relacionado principalmente com o que da Revolução restou); isto é, ao realizar tal ação a obra teoricamente termina por produzir sentidos para que pouco a pouco se fosse “criando” e estabelecendo uma identidade e autonomia de pensamento, um ideal verdadeiramente chicano. A respeito desses sentidos, não é à toa que o antropólogo jamaicano Stuart Hall (2006, p. 50-1) os relaciona com a formação de uma cultura nacional. Para ele: Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (...). As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Tal intencionalidade de construção de sentidos se faz presente, relativizada, o que a torna mais interessante porque crítica e norteadora. E essa presença intencional de construção de sentidos leva a pensar num ideário de existência do qual se aproveitariam coetâneos e vindouros no arroubo sugestivo do epíteto Raza Cósmica para o povo chicano. Ideário entre a utopia de uma “pseudonação” e a assertiva de que se toca quase, em verdade, aproveitando-se os termos de Ramos e Buenrostro quando estes falam em povos sem Estado (2012, 17-31), na existência de, quem sabe, uma nação não sem território, mas, antes, uma nação sem Estado. A respeito do termo “povos sem Estado”, a partir do qual derivei o meu “nação sem Estado”, Ramos e Buenrostro (2012) tocam também em outra questão, explícita na expressão “línguas sem Estado”. É, pois, junto a esta questão que se aprofunda, mais do que na polemização e relativização impressa na correlação com os imaginários supracitados, a relação riverana para com a formação de determinado imaginário, um imaginário outro para com o qual o romance de Rivera contribui de maneira mais efetiva. 119 Quando se pensa em um imaginário, a apreensão mais lógica, e óbvia, é a que se detém, é claro, sobre a imagem, inclusive na ligação mais rasa que tem o termo para com a palavra ideia. Isto é, um imaginário se estabelece aparentando abarcar toda uma coletividade, visando também a uma apreensão coletiva de aspectos que serão tomados como totalidade. Nesse sentido, o imaginário age através do caráter mais vago que empresta ao verbete ideia: nele, ela, ideia (muito aquém da complexidade que a faz conceito em Platão, por exemplo), é uma vaga impressão, uma impressão imprecisa, mas que, entretanto, simula, deseja dar profundidade ao que, no entanto, não passa apenas de aparência. Contudo, há que se consentir que uma imagem raramente é muda, seus sons fazem parte da completude do imaginário; ou seja, com os sons se completa o imaginário. Tal particularidade em Tomás Rivera é representada ao nível da fala, quer dizer, da representação da fala, de uma busca por ser fiel a certa oralidade como marca dos seus, como elemento marcante dele próprio e de sua gente. A este respeito, é interessante anotar o que o autor informa quando, ao referir-se, como ele mesmo diz, “al método de narrar que usaba la gente”, completa seu raciocínio da seguinte maneira: [R]ecuerdo lo que ellos recordaban y la manera en que narraban. Siempre existía una manera de comprimir y exaltar una sensibilidad con mínimas palabras (…) Esto, claro está, es lo que elabora la tradición oral. Aunque muchos de aquellos padres que andaban en los trabajos eran analfabetos, el sistema narrativo predominaba (…) De esta manera, en los campos migratorios, se desarrolló una literatura oral (…) Desde luego en los niños se desarrolló también una especie de mundo narrativo y en el tedio del trabajo de cada día se cristalizaron mundos. Las narraciones orales se formulaban también sobre México, o sobre las costumbres, sobre la revolución de 1910 (RIVERA, [1975] 1995, p. 360-1). Tradição oral, mínimas palavras, um sistema narrativo predominante mesmo com contadores em sua maioria analfabetos e narrações orais que se formulavam também sobre a Revolução Mexicana de 1910. É aqui nessa encruzilhada bifronteiriça (do norte dos Estados Unidos Mexicanos ao sudoeste dos Estados Unidos da América do Norte) que as narrativas de Tomás Rivera encontram as de El llano en llamas de Juan Rulfo, onde uma elipse encontra a outra para formar um novo conjunto de idiossincrasias linguísticas. Assim é que, sem cruzar a fronteira62, as narrativas de Rulfo refletem a crítica sobre a questão da terra pós-Revolução, traçados a partir da captação e re(a)presentação da sabedoria popular em uma oralidade a qual questiona os mais diferentes aspectos dos discursos hegemônicos vigentes. Enquanto isso, na 62 O deslocamento a que se veem obrigados a imprimir os personagens de El llano não logra êxito na busca por atravessar a fronteira com os Estados Unidos. No único conto que desse espaço mais se aproxima, o personagem principal se vê repelido por vigilantes texanos a balazos, ação que o faz retornar a sua vida sem esperanças no norte de seu país. 120 busca intelectual por uma pedra fundante no México é natural que Rivera reflita uma cuidadosa leitura da obra rulfiana. E se, conforme acrescentei, a linguagem popular usada por Rulfo não atravessa a linha bifronteiriça mexicano-estadunidense, a oratura chicana (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 23) de Rivera – tal qual um revés da concepção turneriana e expansionista estadunidense de fronteira fluida, móvel, em movimento de alargamento de terras63 – não apenas avança pelo sudoeste dos Estados Unidos, bem como se estende a caminhos mais amplos, como é o caso do norte anglo, receptivo ao, mas, também, explorador do trabalho braçal para o agronegócio. É preciso anotar que a elaboração e o tratamento literário de um discurso calcado na oralidade popular, tanto em Rulfo quanto em Rivera refletem, ademais, posicionamentos críticos diante da imposição de um espanhol estandardizado, ibérico, nos sistemas escolares. Desse modo, o imaginário age em Rulfo através da capa do tipicamente nacional, tipicamente mexicano. Isso porque, ao tornar-se um clássico (e os clássicos têm seu poder de criação de fixidez) que emprestaria seu sucesso ao grande êxito da literatura latino-americana a partir dos anos de 1960, muito pelo tom de interioridade humanista de seus personagens, camponeses como os que tão bem conheceu em sua infância na província de Jalisco, Juan Rulfo agrega ao imaginário (e sua tendência totalizadora) estrangeiro sobre o tipicamente nacional mexicano a ideia de que todo mexicano fala tal e qual os personagens de El llano en llamas (e de Pedro Páramo). Do outro lado, o aspecto de tipicamente chicano na língua popular literatizada de ...y no se lo tragó la tierra é também ato demonstrativo de resistência e posicionamento crítico64; algo demonstrativo de outro intento fundante, o de “crear por medio del bilingüismo y pachuquismos, nuestro propio caló; ir hacia nuestra propia gente y documentarnos aquí” (RIVERA, 1979, s/p). O bilinguismo desse caló próprio proposto por Rivera está, em seu romance, no uso de um sugestivo (e talvez incipiente) spanglish, tanto nos momentos narrativos em que se mesclam no mesmo discurso termos do inglês e do espanhol, quanto no uso de termos por assim dizer espanholizados do inglês, sendo o caso da utilização de 63 Remeto o leitor uma vez mais a minha dissertação ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em La frontera de cristal, de Carlos Fuentes (UFF, 2010) e, por conseguinte, à figura do historiador Frederick Jackson Turner e sua frontier thesis como braço e discurso legitimador do expansionismo estadunidense rumo às free lands do oeste e alargamento de suas linhas de fronteira até o Oceano Pacífico. 64 Nesse tocante, é emblemático um exemplo recente (experiência pinçada do real vivido) da Dra. Graciela Silva Rodríguez, co-autora do indispensável Chican@s y Mexican@s Norteñ@s: Bi-Borderlands Dialogues on Literary and Cultural Production (2012), quem, em 2013, durante sua participação no XVIII (?) Congresso de Literatura Mexicana Contemporânea, realizado na University of Texas at El Paso, abre sua fala afirmando-se, com orgulho, “Chicana porque o meu espanhol é demasiadamente popular para a Academia Mexicana de la Lengua; e o meu inglês, pouco compreensível do lado de cá nos Estados Unidos” (Tradução e grifo meus). 121 palavras como “troca” (“truck”, caminhão) “lunche” (lanche), “jamborgues” (hambúrgueres), “Crismes” (Christmas), “Iuta” (Utah), etc. E o pachuquismo a que se refere, se vê presente, com toda a crítica de uma magistral e fina ironia, por exemplo, em passagens como a que segue (cuja frase final de teor elíptico já foi alvo de citação neste tópico): – ¿Para qué van tanto a la escuela? (…) – N’ombre. Yo que ustedes ni me preocupara por eso. Que al cabo de jodido no pasa uno. Ya no puede uno estar más jodido, así que ni me preocupo. Los que sí tienen que jugársela chango son los que están arriba y tienen algo que perder. Pueden bajar a donde estamos nosotros. ¿Nosotros qué? (RIVERA, [1971] 2012, p. 92). Com o uso de bilinguismos e pachuquismos, “Rivera elabora literariamente el español de su comunidade texana” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 19) e, assim, une-se a Rulfo (cuja família de origem rica tem seus bens tomados pela Revolução e cuja infância se deu num México nortenho junto aos camponeses que tão bem descreve) como dois escritores que falam a partir da, e não sobre a, fronteira com o que poderíamos chamar de conhecimento de causa(s). Tamanho pormenor termina por conferir teor de certa veracidade linguística a seus personagens, o que implica de modo atuante no imaginário linguístico sobre o qual passam a agir, a contribuir suas obras. No que toca a Rulfo, influem no aporte de suas idiossincrasias linguístico-literárias ao imaginário do tipicamente mexicano a difusão, as traduções e o êxito comercial de suas obras, advindo também do crescente interesse lançado à literatura latinoamericana de sua época, culminando nos sucessos do boom e adjunto ao respeito e alcance cada vez maior da intelectualidade da América Latina, inclusive dentro de uma amplitude acadêmica estadunidense (embora ainda reticente e pelas vias do exame do ex-ótico) a cada dia mais interessada em debruçar-se sobre sua própria hispano-americanidade. Quanto a Rivera, sua obra é também um clássico; porém, um clássico dentro de um universo literário que não obtém por muitas vezes o devido respeito e, principalmente, alcance forâneo, haja vista que o sistema literário chicano, hoje plenamente estabelecido, é encarado, o mais das vezes, como um subsistema literário, achatado, imprensado, espremido entre dois grandes sistemas literário-comerciais: o mexicano e o estadunidense. O fato de que tenha merecido uma premiada versão cinematográfica em 1995 e toda uma produção críticoensaística que ainda hoje se inclina sobre o romance, a vida e a obra de Tomás Rivera (com destaque para a primeira edição de fato latino-americana pela argentina Ediciones Corregidor, no recente 2012), ainda assim limita a propagação de seu contributo a imaginários do tipicamente chicano a um universo quase que exclusivamente acadêmico, muitas vezes, ainda avesso à massificação de que tanto necessitam e se aproveitam as imagens de um imaginário. 122 A ligação e transcendência evidentes do romance de Rivera para com a obra de Juan Rulfo aportam, mesmo assim, para sua contribuição junto a imaginários, algo que talvez se potencializasse com traduções para além da obviedade da necessidade comercial do inglês e, quem sabe, um remake de sua versão fílmica, feito tão comum na indústria cinematográfica estadunidense atual. Por fim, vale apontar que um imaginário só existe, somente de fato se “materializa”, em seu momento de comparação, pela comparação com o real empírico, a partir do instante em que verdadeiramente, indomitamente dele se dá conta a consciência (do) imaginante, a consciência imaginativa. No que se refere ainda a Tomás Rivera, alguém que levado por dever acadêmico ou pelo prazer do conhecimento venha a interagir nesta zona bifronteiriça abrangente do norte mexicano ao sudoeste (e um pouco mais) estadunidense, verá que, mesmo passados mais de sessenta anos de temporalidade do enredo romanesco riverano e já após mais de quarenta anos da publicação de sua obra, muito do caló bilinguístico, do pachuquismo e do spanglish que elipticamente empregados formam parte da literariedade de sua obra; muito disso, ainda atravessa, preenche as conversações das gentes dessa fronteira de culturas em constante choque, troca e atualizações. Algo fruto do caráter dos clássicos, seu tom, seu dom, sua propriedade universal de permanência. 123 3 LA FRONTERA DE CRISTAL: COMPONDO (COM) IMAGINÁRIOS La frontera de cristal, de Carlos Fuentes, é um romance narrado em nove contos. Nessa obra, o autor se volta ao tema da profunda ligação entre México e Estados Unidos, já evidente em obras como Gringo Viejo, por exemplo. Entretanto, a atração mais profunda de La frontera de cristal vai ao encontro de um propósito desde há muito praticado por uma elite letrada de grande valor no México: a análise, de objetivo definidor, do sujeito mexicano; ou, pelo menos, de sua psique formadora. Assim, apesar de narrativa ficcional, esse romance de Fuentes encontra, na leitura que nos propõe a fazer, estreita correspondência com o gênero ensaio em pensadores mexicanos tais quais Samuel Ramos, em 1934, e Octavio Paz, em 1950, espécie de predecessores, pelas vias abertas do ensaio 65, da linha de pensamento desenvolvida na ficção de La frontera. Contudo, a ligação ainda mais clara de La frontera de cristal se dá de modo bastante estreito para com El espejo enterrado (1992), aclamado livro de ensaios do próprio Carlos Fuentes. Nele, o autor perfaz o mesmo caminho inquiridor dos antecessores supracitados. Estabelece, entretanto, sua tese teórica com o que chama de três hispanidades: o prolongamento da hispanidade ibérica, alastrada na América colonial espanhola até certa hispanidade contemporânea que eclode tanto do épico e não menos violento avanço do estadunidense rumo ao atual oeste quanto da política expansionista (e porque não dizer intervencionista) de um Estados Unidos já estabelecido como potência mundial voltada para uma América terceiro-mundista de frágeis bases políticas. Às resultantes desse terceiro movimento de eclosão de hispanidades, Fuentes (Cf. 1992, p. 441) chama de hispanidade norte-americana, uma terceira hispanidade, o revés cromossomático da imigração mexicana, sul (em menor escala) e centro-americana que cobra dos Estados Unidos da América do Norte seu status propagandeado de potência e de terra das oportunidades. Entendo que a partir dessa relação de dependência da ficção de La frontera para com amostras específicas do gênero ensaio, Fuentes acaba por criar caminhos viáveis para a leitura de seu romance desde um ponto de vista de conexão da obra com a criação sugestiva de imagens e a consequente perpetuação de imaginários. Tais caminhos abordo aqui através de três aspectos constitutivos de seu conjunto romanesco de contos: a) desde um prisma de estilo, a abordagem do peculiar em sua narratividade; b) de ordem talvez mais estética, a observação do principal recurso literário de imagem utilizado por essa narratividade, o qual 65 Cf. Massaud Moisés (1974, p. 174-56). 124 resultará em c) no teor identitário do conjunto de imagens criadas como parte da concepção de um imaginário de oposições bem definidas no jogo de alteridades que sobressai das relações fronteiriças evocadas pela trama do romance. Dito isto, passemos, pois, a esses caminhos. 3.1 Nas trampas de um narrador coiote, (des)caminhos para os imaginários O coiote habita terras americanas desde tempos pré-cortesianos. Afirmar tal coisa talvez por um lado surpreendesse um suposto interlocutor desavisado, não fosse, de fato, verdadeira. Com efeito, a oração que abre este tópico encontra respaldo na origem aceita para o espanholismo coyote (em português, coiote), palavra oriunda do nauatle coyotl (do substantivo singular de caso absolutivo ˈkɔ.jɔtɬ). O anterior nomadismo migratório dos nahuas, com suposta origem no hoje sudoeste estadunidense, passando pelo noroeste mexicano até se estabelecerem no México central, desde onde exerceriam forte influência sobre outras civilizações de seu tempo, dá conta da presença do animal ao qual se refere o termo coyotl por vastos territórios americanos, especialmente os do Norte. O coiote é um espécime canídeo cujo habitat se estende do Canadá até áreas que variam da Costa Rica ao Panamá. A variedade do clima e da vegetação dos locais onde é encontrada esta espécie de tamanho menor ao de um lobo aponta para uma forte característica de adaptabilidade ao terreno sobre o qual habite ou se imiscua (tal é o caso de quando se esgueira pelas cidades em busca de alimentos que vão desde restos de lixo revirado a pequenos animais domésticos). Pode reunir-se em matilhas, mas seus hábitos costumam ser em geral solitários. Outro dado relevante tem a ver com sua designação científica de canis latrans, ou seja, cão ladrador. Ocorre que os uivos e latidos emitidos pelo coiote (mais frequentes entre o fim da tarde e durante a noite) costumam ser enganosos, pois, dada a relação entre som e distância, pode parecer que o animal está em determinado lugar quando, na verdade, está em outro. No tocante a minha pesquisa e, em especial, ao presente tópico, é interessante notar como muitos dos aspectos dessa espécie canídea se veem emprestados, por aproximação, à gama semântica do significante quando este se refere a certo coiote hominídeo: o atravessador de fronteiras; ou, melhor seria, um atravessador de humanos nas fronteiras que separam centro-americanos66 e mexicanos do chamado american dream, a ser de fato conhecido 66 Mesmo no México, mas, principalmente, na fronteira mexicana com a Guatemala, os coiotes são também chamados de polleros. Curiosamente, pollero pode, além de servir de sinônimo para o termo nauatle, significar 125 apenas do lado estadunidense da extensa fronteira “compartilhada” com o México. A respeito do homem coiote, são bastante esclarecedoras as palavras do jornalista mexicano Alejandro Suverza Téllez (2010, p. 1 – grifo do autor), quem escreve que La definición académica describe que un coyote es un tipo de lobo pequeño, que sigiloso pesca a una oveja y se la traga. La palabra “coyotear” esconde a un pillo que hace de intermediario en cualquier negocio que pueda sacar ventaja. Pero la palabra coyote en México es sinónimo de abuso, de criminalidad, de un tipo que se aprovecha de migrantes que tienen la ilusión de llegar a Estados Unidos. Perceba-se que mesmo a remissão inicial de Téllez ao animal pode ser trazida, via metáfora (e a metáfora é um dos temas-chave do presente capítulo), à figura inescrupulosa do coiote homem, na maior parte das vezes um falso cão pastor de ovelhas, as quais, em realidade, só quer tragar e enganar. Ainda acerca da aproximação entre a semântica dada ao canídeo e ao exemplar humano do termo, é interessante a informação fornecida pelo antropólogo mexicano Gonzalo Camacho Díaz, estudioso, entre outros assuntos, de culturas musicais do México. No artigo “El baile del Señor del Monte”, o autor conta que, em suas pesquisas, ao ser conduzido ao seio cultural de diferentes etnias, frequentemente percebia sua presença como perturbadora “por ser un extraño, un forastero (...) o un simple coyotl (DÍAZ, 2011, p. 130 – grifo do autor)”. E ao verbete por ele grifado adere em nota o adendo de que “Se trata de un término náhuatl cuyo significado literal es coyote y se emplea para denominar al mestizo, por poseer las mismas características depredadoras de este mamífero” (Ibid. – grifo do autor). Já a mesma alusão ao mestiço, àquele que vem de fora, um estranho à pureza da etnia, aparece também no volume três, dedicado ao teatro, da interessante reunião de textos Words of true peoples/Palabras de los seres verdaderos: Anthology of contemporary mexican indigenous-language writers (2004). Nela, em nota alusiva a um dos textos trabalhados, os editores chamam atenção para a voz nauatle utilizada pelo dramaturgo Ildefonso Maya no verbete maseual correspondente a índio, indígena ou camponês, com o sentido primordial de “gente comum”, “gente do povo” ou “gente rústica”; um meio termo para este primeiro conceito seria outra voz nauatle em tlacatl, que no geral designa a todo tipo de pessoa, não necessariamente “rústica” ou “comum”. É, pois, a partir desse termo que, em contrapartida ao conceito incluído no uso de maseual, o autor estudado lança mão de outro conceito, segundo os editores, desta feita incluído na utilização do termo coyotlacatl, donde se extrai a tanto “persona que tiene por oficio criar y vender pollos”, como “lugar en que se crían pollos” (Fonte: Diccionario de la Real Academia em Línea). 126 composição “la persona (tlacatl) ladina (coyotl)”, “gente de razão” (MONTEMAYOR e FRISCHMANN, 2004, p. 247 – grifo dos editores). Será justamente esse aspecto ladino voltado para uma das acepções cabíveis ao termo coiote, esse viés de astúcia e sagacidade que permitirá a percepção da narratividade adotada em La frontera de cristal, romance também de atravessamento de fronteiras. Perceba-se que, agregada a essa mesma linha de raciocínio do astuto e do sagaz, está não somente sua capacidade de raciocínio, mas, quem sabe, principalmente, sua lábia, a capacidade de envolver, de enganar pela fala. Será assim, dessa forma, que a quem buscar posicionamentos plenamente evidentes o narrador utilizado por Carlos Fuentes muitas vezes parecerá estar em determinado lugar do discurso quando, na verdade relativa das verdades, estará em outro. A própria representação do coiote em La frontera é duvidosa. De um modo mais específico, este bem pode ser Rolando Rozas, personagem com trâmites de um lado e do outro da fronteira, amante de outra personagem, Marina Malintzin de las maquilas; dela e de muitas outras, conforme vai apontando a narrativa. A muitas de suas amantes Rolando conquista fingindo ser um homem de negócios, entrando em bancos, bares e restaurantes, simulando falar todo o tempo em um celular que na verdade não tem baterias. Talvez seja este o personagem figurado na edição brasileira de 1995, da editora Rocco, estampada pela foto de um homem em cujas costas desnudas se vê tatuada a imagem da Virgem de Guadalupe, padroeira mexicana. Reside a dúvida, entretanto, na idiotice dos atos com o falso celular por parte de Rolando e a aparente dureza maior que transmite a imagem da capa citada 67. A certeza mesma da descrição narrativa do coiote vem surgir em verdade já ao fim do romance. É ali, quando o narrador conta a espera do patrulheiro fronteiriço estadunidense Mario Islas por indocumentados que buscassem atravessar a fronteira, onde se lê algo do modo de agir dos coiotes: [L]a noche se llenaba de algo que él conocía de sobra, los trinos y silbidos de los pájaros inexistentes, que era la manera como los coyotes, los pasadores de ilegales, se comunicaban entre sí y se delataban aunque a veces todo era un engaño y los pasadores silbaban como un cazador usa un pato de madera, para engañar mientras el paso se efectuaba en otro lado, lejos de allí, sin silbido alguno (FUENTES, [1995] 2007, p. 255-6). Está, pois, nesse mesmo ato e efeito de engano, de aparentar estar “aqui”, quando se está “ali” um dos logros de mimetização coiote efetivados pela narrativa de La frontera. E o fato de que, mais do que em um personagem específico, tal mimetização se veja, por exemplo, em uma descrição de comportamento, como no trecho supracitado, sugere que para além da 67 Há, ainda, no último conto da obra, a inserção do personagem Gonzalo Romero, este, sim, um coiote que acaba morto por radicais skin heads estadunidenses em uma das incursões de atravessamento ilegal na fronteira. 127 presença de um narrador coiote está a existência de toda uma “narratividade-mimese” de engano, digna de desconfiança, sugestiva, por conseguinte, de um narrador culto, com conhecimento amplo o bastante da língua e suas variantes, de linguagens e expressividade ao ponto de burlá-las todas, inclusive pela capa do popular, visando seduzir e conquistar o leitor, “conduzindo-o”, assim, pelos (des)caminhos da fronteira que ficcionaliza. Ao tratar dessa forma a fronteira sobre a qual desfila seu fictício, La frontera de cristal se apresenta como um exemplo de uso do que nessa obra podemos chamar de “narratividade coiote”. Sobre ela age e interfere um narrador que, qual o atravessador de humanos, fingindo deixar de ser um coyote, simula ser quase um cicerone, responsável por conduzir seu leitor “turista” ao lado do “sonho americano” da fronteira. Ajudam e interferem, portanto, sobre a mente desse leitor viajero os descaminhos pelo desconhecido que o narrador quer tornar, quer fazer parecer ser, sem que em verdade seja, familiar. Interessa, então, de que maneira esse narrador e sua narratividade coiote transmitem as imagens que almejam agir pelo convencimento de que ao real empírico se coadunam, quando na verdade não passam da elevação a imaginários. Conforme adiantei anteriormente, ao trafegar, com extrema facilidade, da erudição, de um registro tido como mais comum à dita alta cultura para o registro popular da e na linguagem literária que elege para desenvolver em seu romance, Fuentes demonstra assim em La frontera de cristal amplo conhecimento e domínio dos códigos linguísticos de que lança mão e faz uso em sua mostra literária acerca da fronteira México-Estados Unidos e das conturbadas relações de alteridade que desse entorno sobressaem. Tamanho domínio de ações discursivas, de explícitas relações para com sua própria ensaística 68, Carlos Fuentes parece emprestar a seu narrador. Observemos, assim, de início, o conto-capítulo de abertura do romance. Em uma de suas últimas aparições em público, em conferência realizada na Academia Brasileira de Letras (2012), Fuentes dedicou boa parte de sua fala a observações sobre a obra do grande escritor brasileiro Machado de Assis. Um recorte especial sobre Machado voltado para uma de suas mais aclamadas obras, o romance Dom Casmurro (1899), revela-nos a relação, como em espécie de homenagem, entre o nome de uma de suas mais célebres personagens, Capitu, a Capitolina dos “olhos de ressaca” (ASSIS, 1899, cap. XXXII) e todo o esmero machadiano para com a concepção de seus capítulos, dos capítulos de suas obras. 68 Remeto o leitor uma vez mais para minha já citada dissertação de mestrado (UFF, 2010), onde demonstro de modo mais específico a correlação de posicionamentos ideológicos entre o pensamento ensaístico de Fuentes e as posições adotadas e defendidas por Samuel Ramos e Octavio Paz. Aqui, interessa-me mais a influência direta e explícita dos ensaios do próprio Fuentes em El espejo enterrado (já como também uma leitura dos dois intelectuais cujo discurso parece incidir de maneira mais enfática no de Fuentes) sobre a ficção de La frontera de cristal, ação determinante para os modos de narrar em jogo na narratividade coiote do romance em epígrafe. 128 Ocorre em La frontera de cristal algo semelhante com a descrição da personagem Michelina Laborde e Ycasa, logo no primeiro conto do romance. A primeira descrição proposta para a personagem surge após a afirmação de uma guia de que nada há para o visitante na desértica cidade nortenha de Campazas, observação esta a qual [A]rrancó una pequeña sonrisa a Michelina Laborde, quebrando fugazmente la simetría perfecta de su belleza facial – su “mascarita mexicana”, le dijo un admirador francés –, esos huesos perfectos de las beldades de México a las que el tiempo parece no afectar. Rostros perfectos para la muerte, añadió el galán, y eso ya no le gustó a Michelina (FUENTES, [1995] 2007, p. 9 – grifo do autor). A destacar nessa primeira aparição descritiva de Michelina a aceitação franca do narrador de que usa suas próprias palavras até o poético trecho “a simetria perfeita de sua beleza” para, logo em seguida, sem qualquer vacilação, a partir da introdução do “disse-lhe um admirador francês”, dar, ou fingir dar vez, à suposta reprodução da voz do galanteador estrangeiro, como quem dissesse estar apenas repetindo a “voz”, as palavras dum outro. No entanto, um pouco mais adiante e o narrador deixa uma das marcas a perpassar todo o seu modo de narrar este romance em contos. A repetição de termos nas partes descritivas aparece, pois, como uma marca estilística por meio da qual há a proposição de melhor fixação das personagens na imaginação (e ainda não no imaginário, e mais bem me explicarei nos tópicos seguintes) do leitor. Assim, tem-se que, como o seu próprio nome sugere, e como através da repetição faz questão também de enfatizar o narrador, Michelina... “Era una mujer joven de gustos sofisticados porque así la educaron, así la heredaron, así la refinaron. Pertenecía a una ‘vieja familia’, pero cien años antes, su educación no habría sido demasiado diferente” (FUENTES, [1995] 2007, p. 9 – grifo do autor). Pouco mais à frente e o mesmo narrador reforça para o leitor a imagem de Michelina, acrescentando à descrição anterior o feito de que ela “era una mujer que llenaba el espacio, dondequiera que estuviera. Coincidía con sus lugares, los hacía más bellos. Un coro de chiflidos machos la recibía en los lugares públicos” (FUENTES, [1995] 2007, p. 11). Porém, as nuances poéticas desse descrever Michelina se tornam ainda mais agudas se observamos este longo, entretanto, necessário fragmento o qual aguça ainda mais a visão sobre a personagem: Michelina Laborde e Ycasa: la capitalina. Ustedes la conocen de tanto aparecer en las páginas a colores de los periódicos. Un rostro clásico de criolla, piel blanca pero con sombra mediterránea, oliva y azúcar refinada, simetrías perfectas de los ojos largos, negros, protegidos por párpados de nube y una ligerísima borrasca de las ojeras; simetría de la nariz recta, inmóvil, y vibrante sólo en las aletas inquietas e inquietantes, como si un vampiro tratase de escapar de la noche encerrada dentro de ese cuerpo luminoso. (Ibid., p. 13-4) 129 E o narrador prossegue no desenho da imagem poeticamente metaforizada de Michelina: También los pómulos, en apariencia frágiles como una cáscara de codorniz detrás de la piel, hacia la calavera perfecta. Y por último, la luenga cabellera negra de Michelina, flotante, lustrosa, olorosa a jabón más que a laca, era, fatalmente, el anuncio estremecedor de sus demás pilosidades ocultas. Todo lo dividía, cada vez, la barba partida, la honda comilla del mentón, la separación de la piel… (FUENTES, [1995] 2007, p. 13-4). Aqui é enfim que Michelina Laborde se nos é revelada como a capitalina, epíteto emprestado também ao título do capítulo que a estampa, “La capitalina”, o conto primeiro do romance. É essa personagem membro de uma tradicional família da Cidade do México, capital do país. Dessa forma, como a Capitolina de Machado tem seu nome remetido ao esmero capitular de seu autor, a Capitalina de Fuentes (e a atenção descritiva dedicada aos olhos, ao olhar da personagem demonstra ser outra interessante associação entre ambas) faz clara e óbvia remissão ao local de onde vem, uma capital. Contudo, obliquamente faz remissão também ao capital enquanto sinônimo de obtenção de poder, enquanto sinônimo de posses e dinheiro. Sucede que sua família já não tem o mesmo prestígio e tampouco o mesmo poder do passado. É desse modo que, em uma hábil relativização narrativa entre a capital e as cidades mexicanas do norte incrustadas em meio a uma vasta região de deserto, Michelina termina por ser prometida em casamento ao filho do rico, vivido, ex-deputado federal e, no presente do enredo, um rico e influente empresário, don Leonardo Barroso, o don Leonardo do fim da citação, o mais bem sucedido, mesmo que por vias de ética duvidosas, membro da família através da qual gira boa parte do enredo da trama fronteiriça orquestrada por Fuentes. O mais interessante, porém, é que, logo após a citação sobre a qual versa o parágrafo anterior, logo em seguida a toda essa extensa e até certo ponto requintada descrição, onde o apuro no uso dos adjetivos se confunde com a mesma habilidade já demonstrada anteriormente, o mesmo narrador que se mostrou hábil com os artifícios de contar surpreende (num caso próprio de literariedade) ao interpor, imediatamente abaixo das reticências com que encerra o trecho acima citado, a informação de que “Todo esto lo pensó don Leonardo cuando la vio ya crecidita y se dijo en seguida: – La quiero para mi hijo” (Ibid., p. 14). Ou seja, uma vez mais o narrador se utiliza do artifício de dizer-se mero reprodutor do discurso alheio, embora os pensamentos, as palavras que ele diz pertencerem e apenas repetir de outrem, de outras vozes narrativas por ele convocadas (ou que ele finge convocar); embora tais palavras, tal cuidado, apuro e desenvoltura no uso das escolhas lexicais que se faz desfilar se 130 confundam com a mesma qualidade demonstrada nas frases assumidamente dele, narrador, usadas em descrições, ou em passagens das descrições anteriores. Entra-se assim em uma terceira linha de correspondências, na qual coincidem o narrador (incluindo-se aqui as vozes supostamente por ele recuperadas) e o autor, na mesma fluência poética, de sedutora prosa poética que deixa transparecer a grande fluência verbal do próprio escritor Carlos Fuentes. Não se trata aqui da mera e comum, por vezes até aceitável e compreensível (outras nem tanto, porque ingênua), dificuldade de dissociação leitora e investigativa entre autor e narrador. Não. Na verdade, o “x” dessa observação está no verbo usado linhas acima: “transparecer”. A obra em destaque está longe de aproximar-se (minimamente que seja) de uma autoficção ou autobiografia. Mas, analisado o percurso literário do autor e as linhas desde as quais buscou dar vez a suas reflexões intelectuais, a narratividade adotada em seu La frontera de cristal permite, sim, aproximar o narrador que ele utiliza como fruto de uma espécie de “autobibliografia”, ou talvez melhor ficasse dizer, como fruto de um exercício de “autobibliografia”, uma consulta, revisão e devido tratamento literário da bibliografia (em especial a ensaística) que o próprio autor compôs durante anos, através de suas publicações. Desse modo, ao recorrer a essa autobibliografia, ao dar vazão a este exercício, Fuentes deixa transparecer em seu narrador seu próprio verbo autoral. Nela, na figura de seu narrador, deixa que se manifeste (e “manifestar-se” é também sinônimo para “transparecer”) sua fluência sedutora, seu dom, sua sensibilidade pessoal para a palavra, para o trato da e com a palavra, a língua, as línguas, suas variáveis, suas vertentes, seus diferentes registros e variantes, através dos quais, dada sua capacidade de absorção e transformação de sua vasta genealogia literária e investigativa, passeiam com técnica, habilidade e domínio de normas e burlas ele e seu narrador. E é justamente tal sagacidade, tamanha astúcia que permitem aproximar (sem que teoria seja) a técnica narrativa posta em prática em sua ficção sobre a fronteira mexicano-estadunidense a uma narratividade coiote, porquanto nela se faça lembrar e se veja mimetizada uma das ações principais do coiote: a busca do convencimento, pelo fingimento, de que nele se pode ter toda confianza69 para atravessar a(s) fronteira(s) até o sonho do eldorado na União Americana. Serve ainda para atestar e ratificar os argumentos ora apresentados a voz enunciativa adotada por Fuentes na condução de ambas as versões do seu El espejo enterrado. Na série homônima feita para a televisão sobressai uma enunciativa de ordem mais narrativa, um 69 Expressão de uso bastante comum na zona fronteiriça entre El Paso e Ciudad Juárez. 131 caráter mais narrativo em que ganha importância, além, é claro, do valor das informações e conclusões prestadas e passadas ao telespectador, toda uma “performática” fuentesiana de gesticulações, de falar também com as mãos e com expressões faciais para atrapar, seduzir, convencer e manter esse espectador junto a si. Enquanto isso, a versão para a série, publicada em livro, recebe contornos mais argumentativos próprios do e para o ensaio escrito. Buscar, pois, na lembrança e/ou na consulta este Fuentes narrador de seus argumentos em El espejo enterrado é revê-lo transparecido, transluzido, manifestado no narrador que elege para a ficção de seu La frontera de cristal. Não é fortuito, portanto, que conste da sinopse de uma das primeiras edições da obra a seguinte abertura: En La frontera de cristal, Carlos Fuentes es el mismo narrador de sus mejores libros: agresivo, vital, poderoso. Encuentra todos los ángulos posibles en una historia, con una variante insospechada: la comicidad, que ahora lleva al lector a la carcajada franca con algunas de sus páginas más memorables, no por ágiles menos penetrantes y agudas (Alfaguarra, 1996). Eis assim uma das chaves dessa exposição acerca da narrativa fuentesiana: Fuentes como narrador de seus livros. Quer dizer, implica diretamente muitas vezes em suas narrativas ficcionais toda a carga de conhecimento adquirido (em suas leituras, em suas vivências), pensado, trabalhado, discutido, argumentado e difundido por suas obras de caráter mais próximo do teórico-reflexivo. Por conseguinte, implica diretamente sobre determinados narradores seus muito da linguagem adotada pelo próprio Fuentes em gêneros aos quais normalmente se atribui uma pretensa maior objetividade (ainda que, nesse aspecto, o ensaio seja um gênero por assim dizer mais “livre”, no que diz respeito ao tratamento de suas fontes e à objetividade no produto-texto empregada; sendo, nesse sentido, menos fechado que um artigo acadêmico, por exemplo). Tornando o olhar para La frontera de cristal, vale ressaltar que a comicidade desse Fuentes narrador, tocada na citação acima, já se vê de certa forma anunciada na primeira descrição dedicada à personagem Michelina Laborde. Um retorno a essa citação e se pode observar que, para o elogio a Michelina (“esos huesos perfectos de las beldades de México a las que el tiempo parece no afectar”), com a sequência imediata em “Rostros perfectos para la muerte, añadió el galán”; enfim, para o elogio contido em ambas as sentenças, o mesmo narrador que atribui tais palavras a um galanteador francês logo tece um complemento digno do que se convencionou chamar como típico de um humor inglês, comicidade repousada em leve ironia. Assim, para “Rostros perfectos para la muerte, añadió el galán” esse narrador que lembra o próprio Fuentes sentencia “y eso ya no le gustó a Michelina”. Esse humor 132 fuentesiano ganhará contornos mais ácidos e críticos em outros momentos da trama, podendo mesmo conduzir o leitor ao riso aberto. Riso solto causado de igual maneira por um Fuentes de humor mordaz e provocativo em muitas de suas conferências 70, em breves apartes conclusivos que de fato levam seus espectadores à risada franca. Convém, porém, aproximar-se um pouco mais da apresentação a uma das primeiras edições do romance aqui em destaque, citada há pouco por mim. Dela extraio agora outros predicados dedicados à observação de Fuentes como narrador de alguns de seus livros: “agressivo, vital, poderoso”. Predicados também na adjetivação de suas páginas como “penetrantes e agudas”. Ao tocar na possibilidade de leitura de Fuentes a partir da visão que toca em sua ficção como fruto algumas vezes de uma espécie de exercício de autobibliografia, de consulta ou remissão involuntária talvez (porque questionável) ou mesmo inconsciente (e aqui, pelas vias abertas pela psicanálise, questionável é a intencionalidade do ato) a sua própria bibliografia, à bibliografia que ele próprio produz; quer dizer, ao tocar nesse ponto, tenho comparado objetos que fazem uso de linguagens distintas, ou, quando muito, objetos cuja linguagem se apresenta em modalidades distintas. Tal seria o caso do livro e do vídeo, onde a palavra se apresenta respectivamente, e diferentemente, em suas modalidades escrita e oral, mais formalizada em uma e algo menos formal na outra, onde gestos, expressões e provocações ganham vez, voz e retorno quase imediato de impressões, de resposta. No tocante, entretanto, a esse narrar mais forte, agressivo, agudo e penetrante, certa passagem dedicada de novo à personagem Michelina Laborde e Ycasa em La frontera de cristal vai diretamente ao encontro de outra interessante abordagem levada a cabo na versão escrita de El espejo enterrado; sendo, por isso, tais passagens, dignas de ocuparem lugar como fechamento desse primeiro momento de aproximação que proponho entre Fuentes escritor e seu narrador coiote em La frontera. O Barroco foi um estilo artístico próprio da Europa, adjunto à Contrarreforma católica. Enquanto o excessivo puritanismo proposto pela Reforma protestante parecia encontrar na música, especialmente em Bach, uma espécie de compensação sensual, a rigidez da Contrarreforma parece encontrar no Barroco e sua expressão na arquitetura e nas artes sua concessão à sensualidade (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 239). O estilo barroco se caracteriza pelo exagero e suntuoso no uso propositadamente excessivo de elementos ornamentais. Segundo o próprio Carlos Fuentes, a arte do barroco representou “la excepción expansiva y dinámica a un sistema religioso y político que quería verse a sí mismo unificado, 70 Remeto o leitor para o vídeo de sua conferência na Cátedra Alfonso Reyes, realizada em Monterrey, México, no ano de 2001, cujo link está na bibliografia da presente tese. 133 inmóvil y eterno” (FUENTES, [1992] 2010, p. 239). Na América colonial, esse estilo ganha o aporte de marca de registro e expressividade dos vencidos. Através dele artistas negros, mulatos, pardos e indígenas inserem suas mostras de pertencimento, dando expressão a sua voz e suas origens, talhados, mesclados à ordem política e religiosa do colonizador, sincretizando sua dor e o sentimento de perda, sua submissão e o sofrimento, buscando um novo sentido de orientação, sua dúvida no presente em que pensar sobre o futuro. O corpo e o movimento aqui ganham vez e, mais até mesmo do que em Europa, entre a rigidez e a resistência ao mesmo sistema que lhe permite existir, o sensual se debate, dilacerando corpo, mente e alma de seus agentes, mergulhados em culpa, essa bandeira repressora própria dos dogmas que consigo trouxe o catolicismo da Contrarreforma. O barroco está presente no Fuentes de La frontera de cristal de modo bastante particular no primeiro capítulo do romance, o conto “La capitalina”, sobre o qual venho debruçando as principais atenções do presente tópico. Ali, em “La capitalina”, uma primeira referência a esse estilo é feita com relação a uma correspondência de comportamento. É quando igualmente começam aproximações a um grande nome da literatura barroca mexicana Michelina volvió a pensar en la moda de ayer, en la crinolina que disimulaba el cuerpo y el velo que escondía el rostro (…) Las luces antiguas eran bajas. La vela y el velo… había demasiadas monjas en su familia y pocas cosas exaltaban la imaginación de Michelina más que la vocación del encierro voluntario y, una vez dentro, amparada, la liberación de los poderes de la imaginación; a quién querer, a quién desear, a quién rezarle, de qué cosas confesarse… A los doce años, quería encerrarse en algún viejo convento colonial, rezar mucho, azotarse, darse baños de agua fría y rezar más (FUENTES, [1995] 2007, p. 15). Um dos ensaios que compõem a edição escrita de El espejo enterrado, publicado a primeira vez em 1992, portanto, anterior ao La frontera é intitulado de “El barroco del Nuevo Mundo”. Ali, muito desse comportamento de gozo e de culpa que o narrador nos diz “desejado”, sonhado por Michelina está também descrito nas linhas ensaísticas a este estilo dedicado por Fuentes. E, mais ainda, tal linha de comportamento desejado pela capitalina do romance acompanha o que o próprio Fuentes nos conta em “Mi alma está dividida”, segmento incluído no ensaio acima citado, sobre parte da história de Sor Juana Inés de la Cruz, quem para o autor foi “el más grande poeta de la América colonial” (FUENTES, [1992] 2010, p. 251). Para rememorar parte da influência já mencionada de outros dois grandes intelectuais mexicanos no pensamento fuentesiano uma ida à obra Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fe, de Octavio Paz (1982) serve para dar conta da ação de ensaio sobre ensaio incidindo, eclodindo na figura “oculta” do narrador de Fuentes, ou do narrador Fuentes, em La frontera de cristal. 134 Esta ambientação barroca, ou neobarroca, não se restringe, contudo, ao universo da imaginação e do pensamento de Michelina levantados pelo narrador do romance. A oposição entre a vida reclusa do rapaz com quem termina por ver-se obrigada a casar e a educação viajada e capitalina da moça vai opor, ainda, todo um jogo entre sombra e luz, algo que também remete a artifícios usados na arte barroca. No entanto, tal ambientação vai além: ela segue também nas linhas arquitetônicas da poderosa mansão de don Leonardo Barroso, para onde viaja a capitalina a fim de que conhecesse e desposasse o excêntrico filho do empresário, Marianito Barroso. Ali, além do exagero das formas na descrição das mansões do lugar – um verdadeiro “conjunto de mansiones amuralladas, mitad fortalezas, mitad mausoleos” (FUENTES, [1995] 2007, p. 15-6) – chamam a atenção o descrever esse mesmo conjunto de construções portentosas a partir do encerramento, de um abrir e fechar de grades que mais lembra o claustro de um convento. Uma vez mais, observe-se a repetição como artifício narrativo para a formação de uma ideia sobre o local, para a fixação da imagem que ultrapassa seu sentido (no) presente: “Ni una teja, ni un adobe, sólo mármol, cemento, piedra, yeso y más rejas, rejas detrás de las rejas, dentro de las rejas, hacia las rejas, un laberinto enrejado” (Ibid., p. 16). Porém, as correspondências entre o ensaio de Fuentes (e as consequentes leituras e releituras que traz dos clássicos de sua genealogia literária) e a voz de seu narrador coiote se tornam ainda mais evidentes se avançamos um pouco mais em um drama que dilacera a capitalina de seu romance, sua Sor Michelina. Ocorre que a capitalina, ao ser prometida, se vê dividida entre a obrigação de unir-se ao filho que será seu marido e a imediata paixão pelo pai, que será seu amante. É quando, dilacerada, dividida, então, a alma dessa jovem, ela adormece vestida de noiva, com uma roupa antiga que atravessou gerações na família, e tem um sonho de ambientação barroca similar à do real objetivo contado por Fuentes no capítulo “El barroco del Nuevo Mundo” do seu El espejo enterrado, no apartado “Mi alma está dividida” (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 251-2-3), acerca de Sor Juana. Em La frontera, é mesmo com tal ambientação que se assemelha o sonho de Michelina, que Se soñó en un convento, paseándose entre patios y arcadas, capillas y corredores, mientras las demás monjas, acorraladas, se asomaban como animales entre las rejillas de sus celdas, le gritaban obscenidades porque se iba a casar, porque prefería el amor de un hombre a los esponsales con Cristo, la injuriaban por faltar a su voto, por salirse de su orden, de su clase. (FUENTES, [1995] 2007, p. 26-7) Mas, o sonho da capitalina avança, estando justamente nesse avanço o encontro maior entre um Fuentes ensaísta e seu narrador provocador, criador de trampas pelas quais 135 quer, como um coiote, atrair, enredar e convencer o leitor de que é confiável em La frontera de cristal. Assim, tornando ao avanço do sonho da moça na Cidade do México: Entonces Michelina trataba de huir de su sueño, cuyo espacio era idéntico al del convento, pero todas las monjas, congregadas frente al altar, le impedían el paso; las criadas negras les arrancaban los hábitos a las hermanas, las desnudaban hasta las cinturas y las monjas pedían a gritos los azotes para suprimir el diablo de la carne y darle el ejemplo a sor Michelina; otras menstruaban impúdicamente sobre las losas y luego lamían su propia sangre y hacían cruces con ella sobre la piedra helada; otras más se acostaban al lado de los Cristos yacentes, llagados, heridos, espinados (FUENTES, [1995] 2007, p. 27). Há que se ressaltar aqui que a sinonímia forçada, repetida na narração impressa ao romance, é e não é um exercício de estilo. Há a marca de estilo de Fuentes, uma marca autoral que talvez não devesse existir nesse exercício de contar. Mas tal artifício literário não é mero estilo, pois tem sua intencionalidade, reitero, na busca de fixação de imagens que o autor entende como importantes de serem passadas, transmitidas à mente do imaginante, do leitor. Para tanto, reforça esse intento o uso das imagens fortes, provocadoras, na ordem mesma do abjeto. Eis aí o emprego literário de estranhamento, de tirar o leitor de seu lugar comum, num provocativo emprego de literariedades – estando outra delas nesse autor coiote que simula estar num lugar, quando está em outro, trazendo para o presente ambientações de um passado cujo conhecimento perpassa pela erudição talvez não dele, narrador; mas, antes, com efeito, de seu autor, seu criador, aquele que foi buscar nas portas autorais deixadas abertas pelo ensaio parte das situações que exprime, das palavras, frases, sentenças que usa e traslada para sua ficção posterior. Penso corroborem meus argumentos a evidência de semelhança da citação anterior para com as linhas a seguir, do apartado “La ciudad barroca”, ainda do capítulo dedicado ao barroco no Novo Mundo em El espejo enterrado (1992): En una época dominada por la triple tensión del sexo prohibido, el ideal de esposar a Cristo y el ideal de la maternidad virginal, muchas monjas mexicanas, horrorizadas ante sus propios cuerpos, se vendaron los ojos, comunicando así su deseo de ser ciegas y sordas; lamieron el piso de sus celdas hasta formar una cruz con saliva; fueron azotadas por sus propias criadas y se embarraron con la sangre de sus propias menstruaciones. (FUENTES, [1992] 2010, p. 262) Há, pois, que se ressaltar desde um aproveitamento da situação trazida à baila no ensaio até mesmo o encontro de palavras e frases descritas também em ambas as citações do romance que aqui antecederam a citação ensaística. Haveria por fim então que se indagar o destino do tema maior incutido no título do romance: onde estará a fronteira em todo esse exercício de remissão barroca, de translação do ensaio ao romance? A verdade é que a fronteira faz-se, sim, presente nesse primeiro capítulo da obra. Apresentada já no início pelo 136 epíteto metafórico que dá título ao conjunto romanesco de contos, ela é cruzada primeiro por Marianito e Michelina e, depois, mais ao fim do conto, após o casamento entre ambos, pela jovem e o pai do rapaz, sempre com a ideia chave da metáfora do cristal, seu espelhismo e fragilidade, algo sobre o que me debruçarei com maior detenção no próximo capítulo desta tese. No que toca ao sonho final de Michelina é interessante notar que ele se passa com a jovem estando ainda na Cidade do México (centro) às vésperas do casamento que termina por acontecer em Campazas (norte). Sucede ainda que em determinado momento o sonho da capitalina vai unir-se ao do jovem solitário do deserto, estratégia representativa uma vez mais da oposição e, inclusive, miscelânea entre luz e sombra, apontando distâncias denotativas da existência de fronteiras culturais dentro do próprio território mexicano. Decorrem daí equações a revelar o levantamento, em imaginário, de uma dicotomia fronteiriça (ainda no âmbito cultural) entre o centro e o norte mexicanos, entre cidade e deserto. A ironia questionadora no enredo está no fato de que, a tradição do centro (Michelina) vai buscar no desértico norte o poder e a riqueza que já lhe faltam a ele, centro, no casamento da jovem capitalina com o soturno e solitário Marianito, que não suporta as luzes da noite do lado estadunidense dessa terceira fronteira do enredo. Luzes com as quais essa dama da noite se vê afeita, principalmente no trânsito livre que lhe permitirá desfrutar seu amante, o empresário nortenho de sucesso, o self made man mexicano Leonardo Barroso, pai de seu esposo. De volta à questão do narrador, a narratividade coiote adotada por Carlos Fuentes em seu La frontera de cristal traz de empréstimo, como demonstrei, nuances poéticas e mais duras, presentes também na prosa ensaística do autor. As nuances aproximativas que se vinculam ao tom de comicidade caro a Fuentes conforme o observado em palestras, ensaios e, como defendo aqui, que recaem por empréstimo no narrador que elege para o romance em epígrafe; tais nuanças retornam em caráter menos esquemático mais ao fim do presente tópico. Antes, com vistas a reforçar a evidência das aproximações ora destacadas, trago outro fragmento em que um tom mais duro, mais agudo de narrar em La frontera, encontra-se com situações descritas em El espejo enterrado. Em seu El espejo enterrado, das páginas que dedica ao tema que chama de terceira hispanidade, sua atenção dada à marca de hispanidade dos e nos Estados Unidos, chama a atenção o questionamento levantado por Fuentes a partir da informação que presta ao contar um acontecimento de caráter linguístico e de choque de culturas bastante emblemático e significativo. Essa passagem é trazida ao leitor da seguinte maneira: 137 ¿Puede un chicano ser artista en Los Ángeles, por ejemplo, si no mantiene la memoria de Martín Ramírez, nacido en 1885, quien fue un trabajador ferrocarrilero inmigrante que llegó de México, y, en un hecho de inmensa fuerza simbólica, perdió el habla y fue por ello condenado a vivir tres décadas en un manicomio de California hasta su muerte en 1960? Pero Martín no estaba loco. Simplemente, no podía hablar. De manera que en la cárcel se convirtió en un artista y durante treinta años pintó su propio silencio. (FUENTES, [1992] 2010, p. 447) Esse silêncio pintado: parece ser tamanha de fato sua força simbólica a agir sobre as instâncias do próprio Carlos Fuentes, que tal aspecto de não ditos é por ele retomado, merecendo desta feita uma representação ficcional também com um caráter, com uma força bastante simbólica, em La frontera de cristal. De volta a esse romance, a narratividade coiote imprimida por Fuentes, ao mesmo passo que vai e vem levando consigo o leitor aos dois lados da fronteira ao longo do desenrolar da trama, no último capítulo da obra, atrai, fazendo da representação da fronteira mexicano-estadunidense uma espécie de protagonista e ímã que, em tom de chamamento, “convoca” leitor e personagens para mais próximo de suas linhas divisórias. É assim que um texto-rio71, um texto em cursivas se entremete nas “sub-histórias” que fragmentam em outras nove partes o último conto, chamado “Río Grande, río Bravo”, no todo do enredo, ao invocar de novo personagens que perpassaram a trama aqui e ali, parecendo, simulando estarem isolados em suas aparições anteriores. Esse texto-rio vai, pois, a episódios da história do México, atendo-se, principalmente, a momentos da definição de seu território, onde se aproxima novamente, ele, texto-rio artifício literário outro de uma narratividade coiote, dos ensaios de Fuentes em El espejo enterrado. Mas, como informei, retorna também a personagens chave para o imagético da trama, tal sendo o caso de Marina, do quinto conto-capítulo “Malintzin de las maquilas”. Essa personagem é clara remissão à figura histórica (e muitas vezes deturpada) da indígena Malinche, também chamada Malintzin, que teria sido ofertada como escrava ao “conquistador” Hernán Cortés. Fruto de uma visão intelectual questionável que a coloca entre traidora indígena e criadora de fato do povo mexicano72, doña Marina, como passaram a chamá-la os espanhóis da “Conquista”, era, segundo o próprio Fuentes ([1992] 2010, p. 133), “ ‘mi lengua’, pues Cortés la hizo su intérprete y amante”. Fato é que esse papel de intérprete destacado por Carlos Fuentes em El espejo enterrado termina por incidir diretamente na personagem Marina de las maquilas, quem, na 71 Termo cunhado pela Professora Maria Luiza Scher Pereira, em seu artigo “Ficção e identidade em Carlos Fuentes: La frontera de cristal” (1997, p. 105). 72 Ao ter com Cortés o filho que teria sido o primeiro nascido do choque entre o europeu que submete à força de suas armas e o índio que ainda não as conhecia. 138 ficção de La frontera de cristal, vê-se encarregada por Dinorah73, trazida pelo texto-rio, de cruzar a ponte fronteiriça que separa Ciudad Juárez, Chihuahua, de El Paso, Texas, conduzindo [u]na anciana muy pequeña (…) ilegible bajo el palimpsesto de las arrugas infinitas que cruzan su cara como el mapa de un país para siempre perdido, se la encargó la Dinorah, lleva a mi abuelita del otro lado del puente, Marina, entrégasela en el otro lado a mi tío Ricardo, él no quiere entrar otra vez a México, ya no sabe hablar español, le da pena, le da miedo también, que luego no lo dejen entrar de regreso, lleva a mi abuelita al otro lado del río grande, río bravo, para que mi tío se la lleve de vuelta a Chicago, ella sólo vino a consolarme por la muerte del niño, ella sola no se sabe valer, y no sólo porque tiene casi cien años, sino porque lleva tanto tiempo viviendo como mexicana en Chicago que desde hace tiempo se le olvidó el español pero nunca aprendió el inglés, de modo que no puede comunicarse con nadie (FUENTES, 2007, p. 278 – grifo do texto em itálico). E, ato contínuo, completa a abordagem fuentesiana sobre a questão de trauma nos não ditos, agora tripartida na projeção ficcional do caso relatado de Martín Ramírez (em El espejo enterrado) para as figuras do tio e da avó da personagem Dinorah, o adendo de que essa avozinha não tinha mais como comunicar-se com ninguém, [s]alvo con el tiempo, salvo con la noche, salvo con el olvido, salvo con los perros ixcuintles y las guacamayas, salvo con las papayas que toca en el mercado y los coyotes que la visitan cada amanecer, salvo con los sueños que no puede platicarle a nadie, salvo con la inmensa reserva de lo no dicho hoy para que pueda decirse mañana (Ibid. – grifo do texto em itálico). Rememorando a afirmação do texto de apresentação de uma das primeiras edições do romance ora estudado, a qual diz que “em La Frontera de cristal Carlos Fuentes é o mesmo narrador de seus melhores livros” (tradução minha), as comparações feitas até aqui visaram demonstrar a constatação de que, ao fim e ao cabo, Fuentes termina por projetar no narrador de sua ficção sobre a fronteira mexicano-estadunidense traços compositivos de seu próprio discurso, principalmente os que nele se sobressaem (os quais procurei destacar no desenvolvimento deste tópico) enquanto ensaísta, orador e palestrante 74. O ensaio é um gênero literário mais marcadamente autoral, ou seja, mais aberto a marcas de autoria, sendo por isso menos impessoal que outros gêneros de escrita científica e de maior rigor acadêmico. Tal impessoalidade dele, Fuentes, no ensaio, vê-se manifestada, deixa-se transparecer na figura do narrador que elege para contar a ficção de La frontera de cristal. 73 Amiga de Marina e mãe solteira que havia perdido um filho enforcado na própria corda em que a mãe lhe deixava preso para ir trabalhar nas montadoras do lado juarense (México) da fronteira com El Paso (EUA). 74 Sua produção intelectual não se limita a esses gêneros, avançando ainda sobre o teatro, a composição de roteiros para o cinema e de artigos acadêmicos e para jornais e revistas de expressiva notoriedade; além da concessão de inúmeras entrevistas, em muitas das quais deixou transparecer a mesma sedutora fluência verbal, a mesma habilidade para com o uso das palavras e desfile de seus argumentos que demonstra no material escolhido como recorte comparativo para a composição do presente tópico. 139 Assim, pode-se dizer que Fuentes não é o narrador de La frontera por conhecimento de causa. Ele é o narrador por conhecimento da causa (do tema que ficcionaliza e, ato contínuo, da causa chicana), ancorado em e respaldado pela abordagem da temática de seu romance já em uma mostra de ensaios anterior; precursora, portanto, do trato ficcional de sua posterior reunião de contos acerca das relações de alteridade que fervilham do e no entorno fronteiriço fraturado, compartido, e ainda “disputado” pelos Estados Unidos Mexicanos e pelos Estados Unidos da América. Com respeito à narratividade coiote, enfoque da argumentação por mim levantada nesse tópico, não pretendo com o uso do termo que ele dê conta de ou mesmo venha a ser considerado como um conceito ou mesmo uma teoria que abranja mostras literárias que toquem no mesmo tema levantado por Fuentes em sua ficção. Salvo o caso de leituras vindouras que porventura identifiquem a mesma possibilidade de interpretação em outras obras com temática semelhante, a narratividade coiote se apresenta aqui como uma associação bastante cabível para as interposições verificadas de um Fuentes ensaísta a um “Fuentes narrador” e, por conseguinte, para as posições falsamente veladas, assumidas por esse mesmo narrador em La frontera de cristal. A esse respeito, um retorno ao artigo “El baile del Señor del Monte”, já citado por mim na presente tese, traz-nos de volta o que contou o antropólogo mexicano Gonzalo Camacho Díaz, quem nas andanças de suas investigações era frequentemente tido como um estranho, um forasteiro, sendo, por essa razão, visto como um coiote, um simples coyotl (Cf. DÍAZ, 2011, p. 130 – grifo do autor, tradução minha). Incidindo, pois, diretamente na figura do narrador do seu La frontera, Fuentes passa a ser também a própria representação desse estranho, desse forasteiro, no melhor sentido existente desde a definição sartriana para o intelectual (Cf. SARTRE, 1972, p. 9), esse intrometido que se imiscui a tratar de assuntos que a princípio não lhe dizem respeito. Assim é que Fuentes, dispondo de meios, dispositivos e artifícios literários que toda sua bagagem intelectual lhe permite usar, insere seu narrador coiote à categoria do narrador não confiável, nada confiável. Parece ilustrar bem tal situação, a irônica passagem que seu narrador atribui a um pensamento da personagem Dionisio “Baco” Rangel, um chef de cozinha mexicano de muito sucesso nos Estados Unidos, no conto “El despojo”, terceiro capítulo de La frontera. A Dionisio o narrador atribui a seguinte “reflexão”: Había millones de trabajadores mexicanos en los Estados Unidos y treinta millones de personas, en los Estados Unidos, hablaban español. ¿Cuántos mexicanos, en cambio, hablaban correctamente el inglés? Dionisio sólo conocía a dos, Jorge Castañeda y Carlos Fuentes, y por eso estos dos sujetos le parecían sospechosos. (FUENTES, [1995] 2007, p. 65) 140 Com esse fragmento, o qual um Fuentes, aqui, nada confiável carrega de ironia, contemplo, por ora, os vieses pelos quais se estreita a narratividade coiote a respeito da qual me propus falar como caminhos, ou descaminhos, que o narrador procura criar e deles se utiliza rumo a dar vez à apresentação de imaginários. Foram estes vieses abordados: uma escrita que se encaminha para o entendimento de que seja o uso de uma prosa mais poética; uma linha narrativa mais dura, de escrita mais forte, às vezes beirando o abjeto, crua e também até mesmo aparentemente de tom mais pessimista, desalentadora; e a comicidade narradora, por enquanto, mais pelas vias da ironia. Não me detenho tanto aqui no espaço do cômico porque muito das passagens de humor questionador do livro está presente justo no capítulo “El despojo”, de onde obtive e utilizei a última citação desse tópico. A razão do momentâneo não aprofundamento maior desse viés cômico se deve ao fato de que o capítulo mencionado é, ademais, importante na análise que virá à tona logo a seguir, em tópico dedicado a levantar o que chamo de metáfora ampla. Estando dessa maneira de volta ao conto de Dionisio “Baco” Rangel, decerto retornarão, embora não venham mais a ser o foco da abordagem seguinte, questões que envolvam a comicidade que imprime a seu narrar esse narrador coiote de Carlos Fuentes no romance La frontera de cristal. 3.2 Metáfora ampla, o recurso de imagem na obra No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2004, versão eletrônica) a palavra metáfora surge como sétima opção de sinônimo para o verbete imagem. Não é muito comum, entretanto, que, em outros dicionários, fuja dessa espécie de “ranqueamento” dirigido a dar conta de todo o amálgama que envolve o termo. Está, assim dessa forma, vinculada à categoria de imagem verbal, embora, como defendo, nasça primeiro no pensamento para, depois, ser verbalizada no campo do linguístico. E do literário. Em La frontera de cristal, a metáfora, também um tropo linguístico, aparece como um recurso de imagem literária, um efeito de estranhamento, de literariedade na obra, que pode, pela mão de sua narratividade coiote já evidenciada, conduzir o leitor a tomar contato com imaginários prévios, ou pelo romance levantados, a respeito das relações de alteridade ali trabalhadas. Desvendar de que modo esse processo ocorre importa, sobremaneira, na compreensão de como este romance em contos de Carlos Fuentes contribui para o imaginário supracitado. 141 O principal princípio da metáfora em La frontera é o mesmo que comum e corretamente se atribui a este tropo: o da transferência de sentidos. Sucede que no romance de Fuentes essa transferência é sinuosa, os caminhos pelos quais ela se dá são oblíquos, sendo tênues as linhas que costumam separar as variações binárias de sentidos ao redor das quais orbitam as mais diferentes teorias que recaem sobre a metáfora, sua formação e seu emprego. Assim, o que pareceria receber a carga de subjetividade, de abstrato, de figurado, recebe em Fuentes o valor da relativização e da dúvida, confundindo-se propositadamente com o objetivo, o concreto e o literal. Essa confluência de valores ocorre pela fixação de uma ideia específica a partir da estratégia narrativa de repetição e desenvolvimento de uma metáfora base. Tal repetição visa à fixação da imagem que quer ser transmitida, quer dar-se a perceber. Desse modo, é tal ato que pode encaminhar o leitor/receptor para a aceitação de imaginários que podem, por fim, lhe parecerem mais reais (empiricamente falando) do que verdadeiramente são; dependendo o final desse processo das instâncias de recepção desse mesmo leitor, do tipo de leitor que se aventure pelas imagens da ficção de fronteira realizada por Fuentes. O passo a passo de formação da metáfora ampla em La frontera de cristal começa em seu título, ele próprio uma metáfora preposicionada. Sua equação básica sugere uma pronta assimilação da seguinte fórmula: Fronteira = Cristal = Frágil. Será essa noção de fragilidade que perpassará a obra inteira; mas, a ela subjaz, ainda, quase ao lado desse primeiro plano, uma proposição de espelhismo, do reflexo que quase iguala partes separadas e, além dele, uma terceira ideia, menos elaborada, de um cristal que enquanto pedra preciosa é revelador de uma miríade, de um mosaico despedaçado de imagens que desvelam um ambiente de relações pluriculturais e pluri-identitárias. Essas duas últimas possibilidades de leitura da metáfora principal da obra de fato não sobressaem de imediato do título do romance, como é o caso da inferência mais que provável e possível da noção atinente ao caráter do frágil. Porém, pouco a pouco, com o andar do texto podem também as duas noções subjacentes à primeira e principal serem observadas. Já no primeiro capítulo da obra, o conto “La capitalina”, a metáfora base é “plantada”, dando início a todo um amplo processo de metaforização. Observe-se, por exemplo, o pensamento atribuído pelo narrador à personagem Michelina Laborde, quando é avisada por uma aeromoça de que o avião particular de seu padrinho (e futuro amante), Leonardo Barroso, estava por pousar no aeroporto da nortenha cidade mexicana de Campazas: Ella trató de distinguir una ciudad en medio del desierto, las montañas calvas y el polvo inquieto. No vio nada. Su mirada le fue secuestrada por un espejismo: el río 142 lejano y más allá las cúpulas de oro, las torres de vidrio, los cruces de las carreteras como grandes alamares de piedra… Pero eso era del otro lado de la frontera de cristal. Acá abajo, la guía de turismo tenía razón: no había nada. (FUENTES, [1995] 2007, p. 10) O trecho nos aproxima de constatações que vão se concretizando durante o seguimento do texto. Aqui a noção primeira é a do espelhismo, que aproxima ao mesmo tempo do real e da imaginação, trazendo uma terceira equivalência, a da relativização da distância entre ambos, real e imagético, tal como pode ser visto também na introdução do próprio El espejo enterrado (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 7-13), desde o qual o autor parece coletar parte das ideias e informações que desenvolve na ficção de La frontera. Tal espelhismo (simbolicamente também representado pelo “río lejano” que une e separa dois mundos) segue, ainda, nas “torres de vidrio” do outro lado (o lado estadunidense), expressão denotativa, ela e a sequência descritiva da qual faz parte, da predileção pela imagem através da linguagem literária metafórica a ser adotada para narrar a obra, razão por que as descrições altamente metaforizadas se repetirão. A aproximação do cristal ao vidro, a representação que o aproxima de sua variedade de quartzo vítreo, aqui, ainda no fragmento citado, apenas uma pista, será também outra constante da metaforização posta em prática, eclodindo na representação máxima do sétimo conto do romance, aquele que empresta seu título à obra75. Além disso, a primeira inclusão da expressão fronteira de cristal traz consigo o artifício, o uso de claras oposições binárias (“allá” x “acá”, tudo x nada, acima/desenvolvido x “abajo”/subdesenvolvido) as quais, ainda sem o importante auxílio de outra figura de imagem, a metonímia, dão conta das primeiras aproximações da obra à totalidade, à visão de um todo, mesmo que seja de uma determinada situação, que sugerem os imaginários. Pouco adiante, ainda no primeiro capítulo, e a alusão à fronteira por metáforas, especialmente ao lado estadunidense, “o outro lado”, segue. Quando, ao fugirem de uma festa só para mulheres dada por doña Lucila, esposa de don Leonardo, em sua mansão, Michelina e seu poderoso padrinho tomam a estrada, ele, interessado em garantir que a afilhada se casasse com seu filho, promete que “para ella sería todo el dinero, todo el poder, ahora sólo veía el desierto encuerado, pero su vida podía ser como esa ciudad encantada del otro lado de la frontera, torres de oro, palacios de cristal...” (FUENTES, [1995] 2007, p. 24). Uma vez mais a oposição metafórica do lado mexicano – “el desierto encuerado” – para com o lado estadunidense da fronteira, “esa ciudad encantada”, e suas “torres de oro, 75 Ainda que não traga em si uma síntese, um resumo do enredo, o conto “La frontera de cristal” reunirá a resultante da fixação reptícia da fronteira de cristal enquanto ideia alusiva de fragilidade e espelhismo. 143 palacios de cristal”. A repetição de valores de gradação determinada para cada lado da fronteira começa, assim, a implantar imaginários opositivos, tanto pelas vias da metaforização na linguagem literária adotada quanto a partir da metáfora ampla que pouco a pouco começa a se desenvolver, com o reforço, inclusive, da repetição do verbete “cristal”. É claro que há aqui a possibilidade de leitura da imagem, ou das imagens passadas, sob outro contexto, o que configuraria a ação e criação de uma alegoria. Nesse caso, a interpretação nos levaria a um interessante jogo de remissão cronotópica, de troca cronotópica 76, onde a história toca por remissão e contraposição alegórica o ouro e o epíteto de eldorado que um dia esteve do lado mexicano da fronteira, sonho dourado que povoou tanto a mente do invasor espanhol quanto a do wetback estadunidense que ilegalmente atravessou a fronteira para um Texas ainda mexicano antes da independência que deflagraria a guerra de 1846 a 1848 com a União Americana. Tal alegoria pode, inclusive, ser encontrada no texto-rio que atravessa todo o conto final de La frontera, em novo encontro com a história da hispanidade norte-americana sobre a qual também se debruça Fuentes em El espejo enterrado (Cf.: p. 444-5-6). No entanto, há que se reparar a elaboração do pensamento, de argumentos, de raciocínio para que se chegue à alegoria, há que se notar a necessidade de transposição a novos contextos para que seja compreendida, apreendida, afora as perdas, a ruína e o luto que de fato sugere toda essa interpretação dada ao pequeno trecho que deu vazão a todo este aparte. A metáfora, entretanto, é mais direta e, mesmo no avanço inicial do enredo, começa a se configurar e ganhar vez sobre a alegoria, pela insistência na repetição das imagens que sugere. Não nego que ambas possam coexistir na leitura de um dado recorte literário, na interpretação de um mesmo fragmento, o que pode até ser o caso desse trecho ora em destaque. Porém, o imaginário se calca justo na repetição contínua das imagens e no imediato, na transferência imediata de sentidos que é dada pelo uso da metáfora. Para que imaginário seja não resistiria à elaboração da alegoria, razão pela qual necessita do simplismo imediato da transferência de sentidos proposto pela metáfora como até aqui se apresenta nessa mostra literária. É desse modo que ele, imaginário, pela imagem quase imediata da metáfora, especialmente no tangente às especifidades literárias destacadas no romance em tela, forma-se e se torna apreensível e passível de captável como imaginário ser pela mente imaginante. 76 Remeto o leitor à obra Questões de tempo e estética – a teoria do romance (BAKHTIN, 1998), que publica um esquadrinhamento do autor russo a respeito de sua teorização sobre a categoria de cronotopo no romance. Apesar do valor inestimável da obra de Bakhtin, suas observações não se veem aqui desenvolvidas em função do recorte através do qual propus atenção voltada mais para a identificação da noção de literariedade tal como empregada nos romances em epígrafe e em sua consequente relação para com o tratamento literário de imagem e imaginários nas referidas obras. 144 A alegoria, pelo contrário, demanda uma elaboração que não colabora com a noção, com a característica de todo compactado, de um todo fingido – todo, porém, com ares de real –, que sugere o imaginário, um imaginário, na falsa impressão de todo que um imaginário sugere. Enquanto o imaginário prefere o todo (ou o que ele finge ser um todo), daí sua relação estrita com a metáfora e a metonímia, não só literária bem como discursiva de um modo mais amplo; tornando ao anterior: enquanto o imaginário elege, prefere o todo – sendo, na verdade, uma apreensão desse mesmo todo sobre o qual se insere –, a alegoria esmiúça a parte, dificultando sua apreensão por imaginários. Dados os argumentos anteriores, cabe, então, o retorno à metáfora da fronteira de cristal, que, plantada, insistida, pouco a pouco desenvolvida, vai configurando-se em uma ampla metáfora, fruto de um amplo processo, por ora ainda iniciando-se, de metaforização. Ainda em “La capitalina”, esse processo tem prosseguimento quando da cerimônia do casamento de Michelina Laborde com Marianito Barroso. Ali, nosso narrador coiote traz pensamentos de doña Lucila para o evento, pensando menos em seu filho e entusiasmando-se mais com a festa e com o poder que representava seu marido, quem estendia seu influxo e autoridade por: Tierras, aduanas, fraccionamientos, la riqueza y el poder que dan control de una frontera ilusoria, de cristal, porosa, por donde circulan cada año millones de personas, ideas, mercancías, todo (en voz baja, contrabando, estupefacientes, billetes falsos…) ¿Quién no tenía que ver con, o dependía de, o aspiraba a servir a don Leonardo Barroso, zar de la frontera norte? (FUENTES, [1995] 2007, p. 30) Na citação acima, há o retorno, o reforço da metáfora do cristal para a fronteira, dessa feita apoiado na sugestão de imagem, de sensação de porosidade, algo que escapa pelos dedos feito a areia do deserto que separa ambos os lados da linha fronteiriça. No entanto, sobressai, com o adendo de que se se refere à fronteira norte, o lado mexicano, a carga sobre uma situação de pobreza de muitos, e de servidão e dependência de poucos a exploradores como don Barroso. Ou seja, ao lado da metáfora chave há toda uma descrição de teor hiponímico, quando a associação entre nomes própria da metonímia vai da substituição da parte pelo todo. E é esse uso proximal entre metáfora e metonímia pela narrativa que aproxima essa mesma narrativa da concepção ou coadunação de pré-conceitos, neste caso, bastante depreciativos, e agora já em sequência na narrativa, próprios do corpo de um imaginário. Tal relação entre ambos esses tropos do discurso, os quais às vezes também se confundem, dificultando a diferenciação entre eles, será alvo inda maior de minha abordagem com respeito à correlação dos recursos de imagem utilizados em La frontera e a formação e perpetuação de imaginários. 145 Entretanto, por agora, sigo chamando a atenção para essa primeira, e talvez principal, metáfora do enredo. Por certo a repetição da expressão “fronteira de cristal” também corresponde a um ato de justificar, de explicar por esse meio o porquê ou os porquês do título dado ao romance. Porém, é a meu ver mais que isso, como venho demonstrando, e quando se percebe na leitura que tal insistência avança, metáfora ampla adentro do texto. E, no que se refere à metáfora principal do enredo, ela prosseguirá em “La capitalina”, até o final desse primeiro conto. Nessa passagem final, contudo, uma alusão à outra metáfora se destaca, revelando o uso de uma imagem sobre outra imagem, compondo, ainda, com a imagem maior da metáfora chave, agora já amplamente repetida, porquanto enfim metáfora ampla, a metáfora principal dentro de todo o processo de metaforização impresso pela escrita literária no conto, a fim de dar passagem ao imagético em que se ancora o narrado. Quando o sonho barroco de “Sor” Michelina (desde o qual teci comentários no segmento anterior sobre a narratividade coiote na obra), na Cidade do México, encontra pelas palavras desse mesmo narrador coiote os sonhos de um agônico Marianito, em Campazas, a narrativa nos leva a um segundo sonho onde o rapaz, em sua timidez, é feito metáfora de uma lebre, “un cuadrúpedo salvaje de orejas largas y cola corta” (FUENTES, [1995] 2007, p. 28). Desse animal, diz-se também na narrativa que Sus patas son más largas que las del conejo. Corre muy rápido porque es muy tímido. No hurga como otros de su especie: anida, busca un espacio estable, tibio, respetado, donde lo dejen estar. Es mamífero. Nace de la leche, la desea de vuelta, quiere mamar en la oscuridad, ser mamado, en un nido, sin sobresaltos, sin nadie que le observe gozar… (FUENTES, [1995] 2007, p. 28) A metaforização se dá, completa-se, então – segundo a narrativa que busca aqui, mais que simples transferência, uma coincidência de sentidos –, na personalidade descrita de Marianito, para quem No había una sola mujer en el mundo que soportara su deseo. Mariano sólo quería vivir (…), físicamente, donde siempre vivió en la voluntad y vivió siempre en el espíritu. En una ranchería. (…) Solo, porque no había una sola mujer en el mundo que eclipsara todo el espacio, salvo la recámara donde el espacio y la presencia coincidían (FUENTES, [1995] 2007, p. 28) Essa metaforização que traz como eixo a figura do quadrúpede lebre é um sonho que, como visto, antecede o casamento do jovem com Michelina. E ele ainda pensa nela, indagando-se se ela seria essa mulher a respeitar enfim sua solidão. Haja vista o desfecho do capítulo, ela, sim, respeita seu desejo, quando, em passagem que marca o retorno da metáfora principal do enredo, aqui já uma metáfora ampla, na tarde seguinte à manhã da cerimônia, a 146 capitalina parte (em um intento de surpresa, de provocação de estranhamento no enredo) com o pai de Mariano, Leonardo Barroso, em um Lincoln conversível que [e]sta vez encapotado, cruzó rápidamente el desierto vespertino, frío y silencioso, llenándolo de rumor de llantas y motor, espantando a las liebres que salían saltando lejos de la carretera recta, la línea ininterrumpida hasta la frontera, a romper el ilusorio cristal de la separación, la membrana de vidrio entre México y Estados Unidos y seguir corriendo por las supercarreteras del norte hasta la ciudad encantada, la tentación del desierto, iluminada, brillante, llena de Neiman-Marcus y Saks y Cartier y Marriots donde los esperaba a los novios la suite de lujo, con champaña y canastas de frutas, salón, espacios closets, recámara con cama king size, muchos espejos donde admirar a Michelina, un baño de mármoles color de rosa donde bañarse con ella, enjabonarla, acariciarla, ruborizarla (FUENTES, [1995] 2007, p. 31-2). Mais do que a surpresa prometida e posta em prática com a consequente revelação de que um desses noivos (e aqui Fuentes joga de forma bastante perspicaz com a dubiedade da palavra “noivos” em espanhol) é don Leonardo e não seu filho; quer dizer, para além dessa tentativa de que se causara um estranhamento pela narrativa, está, primeiro, a alusão das lebres afastadas pelo carro, a imagem sobre a imagem na metáfora anteriormente exposta, como já expliquei. Porém, é ainda mais importante a busca de permanência, de fixação, do enfim estabelecimento da metáfora principal em forma de metáfora ampla. Antes parte de todo o processo de metaforização desde o qual se constrói o enredo nesse ainda principio do romance, a metáfora do cristal para a fronteira ressurge, encerrando o primeiro capítulo, reforçando a ideia de sentido de vidro para o cristal e, ainda, outra ideia, a da separação (incutida em “el ilusorio cristal de la separación, la membrana de vidrio entre México y Estados Unidos”), que será mais bem trabalhada no sétimo capítulo da obra, no conto que empresta seu título a esse amarrado romanesco de Fuentes. Antes de avançar, porém, para a sequência da metáfora do cristal para designar a fronteira no sétimo conto da obra, cabe uma última observação sobre o desenrolar dessa mesma metáfora, ainda no primeiro capítulo. Sucede que em “La capitalina” a metaforização levada a cabo se apoia no desenvolvimento de uma escrita, ou melhor, de uma espécie de ambientação barroca, deixando transparecer o barroco como alma desse conto, recuperada do capítulo dedicado ao barroco do Novo Mundo em El espejo enterrado, recuperada pela linha de comunicação que Fuentes deixa aberta ao estabelecer contato entre os gêneros ensaio, conto e romance na sua ficção sobre a fronteira mexicano-estadunidense. Parte desse modo de ambientar, de recuperar no presente um estilo artístico que muitas vezes se pensa, e creio que, erroneamente, estar preso ao passado, parte do recuperar o espírito do estilo pela ambientação barroca dada ao narrado, como visto em linhas anteriores, volta-se inclusive para Campazas, para quando a narrativa descreve essa representação 147 reduzida a imaginário espacial que congregaria todas as características do norte mexicano. Mesmo nesse caso, em que a representação do norte é carregada de tons depreciativos na imagem que a descrição narrativa vai repetidamente reforçando, mesmo ali se nota a presença e importância do barroco para as situações levantadas pelo conto. Serve para corroborar tal argumentação o exemplo abaixo, onde chama mais atenção certo posicionamento do narrador para o norte que craveja em Campazas do que propriamente a posição quase neutra que esse mesmo narrador consegue destinar a Michelina, quando de sua chegada à cidade: Viajada, guapa, sofisticada, la capitalina miró sin asombro los rasgos de la ciudad de Campazas. Su plaza central polvorienta y una iglesia humilde pero orgullosa, de paredes deshechas y portada erguida, labrada, proclamante: hasta aquí llegó el barroco, hasta el límite del desierto. Hasta aquí nada más. Mendigos y perros sueltos. Mercados mágicamente nutridos y bellos (FUENTES, [1995] 2007, p. 14 – grifo meu). Há também no capítulo, como se pôde verificar até aqui, uma exposição bastante barroca de dicotomia entre o sensual e o sagrado, entre a entrega da alma e o proibido ao corpo, entre busca de paz de espírito e a agonia de não sempre a encontrar; ao invés disso, quando muito, é a culpa que se encontra. Através de ousadias narrativas, o narrador coiote fuentesiano opõe e ao mesmo passo alia em uma mesma linha Deus e o Demônio, ambos em maiúsculas (Ibid. Cf., p. 25). Assim, há então a busca por inserção de um sentimento barroco, uma busca de incutir à narrativa o espírito do barroco, causando um efeito de sensações próprias da expressividade do estilo artístico barroco. Mas, tal efeito não é fortuito ou mera demonstração de conhecimento e de domínio de uso de artifícios literários. Responde, antes, a uma estratégia narrativo-literária, cooperando para a intenção dominante: o realce da imagem, que se dá pelas possibilidades de expressão narrativa advindas da exploração do tropo metáfora, ela mesma um sinônimo para o significante imagem. Por isso mesmo, a linguagem literária utilizada beira o barroco no exagero necessário das repetições. A linguagem barroca nessas repetições visa a dar “carne”, “alma” para os personagens, numa tentativa de dar forma e fixar suas imagens à mente do leitor imaginante. Serve de ilustração, a meu ver, bastante aproximativa do anterior exposto, o exemplo a seguir, que opõe pela primeira vez Michelina e Mariano, antes que os dois saíssem, também por primeira vez, para dançar à noite do lado estadunidense da fronteira. Na apresentação da capitalina ao herdeiro dos Barroso, o jovem, com o auxílio de um hábil uso do discurso indireto livre, suscitando a voz de seu pai, é assim descrito: Marianito, el heredero, que nunca viajaba, que salía muy poco, que ella no conocía, que ya era tiempo de que lo conociera, un muchacho muy retirado, muy serio, muy 148 formal, muy lector, muy dado a refugiarse en el rancho a leer día y noche, ya era tiempo de que saliera un poco, ya había cumplido los veintiún años, esa misma noche la capitalina y el provinciano, la ahijada y el hijo, podrían irse a bailar del otro lado de la frontera, en los Estados Unidos, a media hora de aquí, bailar, conocerse, congeniar, cómo no, no faltaba más… (FUENTES, [1995] 2007, p. 16) Contudo, se serve para de fato dar-lhe mais carne ao personagem, melhor constituirlhe, como no caso de Mariano, cuja personalidade triste é bem explorada e bastante trabalhada pela narrativa, as repetições destinadas a Michelina terminam por constituir um tipo, um personagem tipificado, quase transformado em figura, algo bem evidente na constituição do apelido que lhe dá o narrador, “la capitalina”, epíteto que traz em si características que seriam (pela enganosa impressão de todo que dão) próprias para moças ricas, ou viajadas e vividas, da capital, para todas as moças da ou de uma sociedade capitalina, dando margem, assim, à transformação da personagem em um tipo representativo, ou que sugere a representação, com tendência a ser pejorativa, de uma totalidade. Isto posto, explorada levemente essa caracterização (à qual darei mais ênfase no próximo tópico) que aproxima o tratamento das imagens levantadas, sugeridas pela obra à constituição de imaginários, e podemos, enfim, avançar para algo que tem a ver com as dimensões da metáfora ampla. A primeira característica para que se entenda a metáfora ampla, principalmente no tangente a sua existência a partir da leitura de La frontera de cristal, é a de que ela faz parte de e entremetida está em um amplo processo literário imagético no qual metaforizações várias são a preferência de transmissão desse mesmo teor, desse mesmo caráter imagético da obra. Apesar disso, pode e deve haver uma metáfora chave, uma metáfora âncora, metáfora principal que terá mais destaque, maior importância do que as demais trabalhadas, sendo essa a escolhida para ser a mais bem desenvolvida, de fato, a metáfora ampla do enredo, tornando-se, em uma obra que se apoie no imagético, a imagem principal, o principal recurso de imagem da obra artística que a enverga, nela investindo. Em La frontera de cristal, como os contos que dão forma ao romance não são capitulitos, não entrando, pois, no rol classificatório, por exemplo, dos minicontos, a ampla metaforização ali dada e a metáfora principal em seu seio desenvolvida ao longo de capítuloscontos que variam de dezenove a até quarenta e nove páginas na obra, dão margem a que se possa falar, a partir mesmo dessa questão atrelada entre forma e quantidade, da existência de metáforas amplas como resultado de todo o desenvolvimento das metáforas-chave plantadas. Sim, outras metáforas amplas ganham vez na obra, estando, porém, “restritas”, por assim dizer, aos contos determinados em que cada uma delas ocorre. Outros exemplos da metáfora ampla ocorrendo em outros contos do romance ora trabalhado serão abordados, 149 porém, no desenvolver do próximo capítulo, onde interessará abordar, no que toca ao recorte proposto, sua ligação estrita para com outro tropo de imagem, a metonímia. No tangente, porém, à metáfora que transfere significados próprios do significante cristal para o significante fronteira México-EUA, é preciso informar que as características dadas pelo enredo como caras dessa mesma fronteira ganham contornos e dimensões imagéticas as mais distintas em outros contos da obra. No entanto, é de plena compreensão que a metáfora principal explícita no título do romance merecesse da parte de Fuentes um capítulo especial a lhe proporcionar uma consequente e necessária, portanto, ampliação, amplificação ainda maior. Ao sétimo conto, então! Ao “La frontera de cristal” e o fechamento da ampla metáfora contida em seu título, plantada como pista já no primeiro capítulo da obra, tal qual demonstrei até aqui no presente tópico. É em “La frontera de cristal” que a imagem plantada no primeiro capítulo – a associação do cristal contido na ideia da fronteira como membrana ilusória de vidro a separar México e Estados Unidos (Cf. FUENTES, [1995] 2007, p. 31-2) – ganha força e status de imagem principal do enredo, acoplada, ainda, à ideia, ao sentido principal de FRAGILIDADE, conectada, por sua vez, ao frágil do que é ilusório e ao frágil que sugere o pensar em uma membrana. Trabalha também com a força e o translúcido que pode revelar-se de um cristal, como um espelho, mas é em sua fragilidade, na fragilidade de suas relações, na fragilidade possível dos sujeitos expostos a relações fronteiriças que está mais bem (re)velada a ideia que emerge da e se justapõe à imagem da metáfora no termo. No conto, um encontro pouco provável é primeiramente suscitado, para logo depois pouco a pouco ser preparado até, enfim, ser mostrado a partir da importação de trabalho braçal mexicano para limpar as vitrines, as vidraças, para deixarem limpo, translúcido, revelador o cristal das janelas de um arranha-céu estadunidense. É justamente neste trabalho que se encontram, separados por uma fronteira de cristal, Lisandro Chávez, um bracero mexicano, e uma executiva publicitária norte-americana. Esse encontro não se dá, entretanto, sem que antes a narrativa explore as variantes metafóricas e mesmo literais dos sentidos dados à fronteira. O serviço de limpeza do qual se fala foi exportado, vendido pelo poderoso empresário mexicano Leonardo Barroso para seus sócios estadunidenses. Todavia, antes Barroso teve de costurar acordos para que seus argumentos se transformassem em negócios. Assim, atravessando-a a leve ironia de seu narrador coiote, conta a narrativa que En Washington y en México, el dinámico promotor y hombre de negocios explicó que la principal exportación de México no eran productos agrícolas o industriales, ni 150 maquilas, ni siquiera capital para pagar la deuda externa (la deuda eterna), sino trabajo. Exportábamos trabajo más que cemento o jitomates. Él tenía un plan para evitar que el trabajo se convirtiera en un conflicto. Muy sencillo: evitar el paso por la frontera. Evitar la ilegalidad. (FUENTES, [1995] 2007, p. 180) Tocada aqui a questão da fronteira, ela é discutida entre o influente empresário mexicano e o personagem Robert Reich, na narrativa, Secretário de Trabalho dos Estados Unidos, que adverte ser a fronteira de fato e também um problema político, chamando a atenção para a exploração republicana de um crescente ânimo que se voltava contra os imigrantes. Mantendo, então, uma linha narrativa que aborda ficcionalmente o problema empírico da fronteira México-EUA, o narrador de Fuentes traz uma sentença de don Leonardo Barroso, que trabalha uma interessante adjetivação entre o literal e o abstrato para essa mesma fronteira: “No se puede militarizar la frontera (...). Es demasiado larga, desértica, porosa. No pueden ustedes ser laxos cuando necesitan a los trabajadores y duros cuando no los necesitan” (Ibid.). É interessante notar como nas predicações dadas à fronteira há uma gradação onde, na verdade, o literal perde força, emprestando-a para o aparentemente abstrato da insistência na porosidade, inclusive de relações, da linha fronteiriça mexicano-estadunidense. Esse efeito, lógico, serve à imagem ampliada, esticada por reforço, do cristal para significação associativa também para a fronteira, dada pela amplificação da ideia de fragilidade proposta pela e incutida na metáfora principal do enredo. Diante desse logro, mesmo um aparente posicionamento de Fuentes, levado à fala de seu personagem, perde importância, sendo mais relevante sua proposição da metáfora em destaque como praticamente um termo que por analogia, e dependendo do grau de recepção e divulgação de sua obra poderia até mesmo vir a tornar-se, tomado ser como um conceito, mais além da figura de imagem que é. No romance, entretanto, a amplificação ainda maior da metáfora chave que segue seu desenvolvimento na sua insistência de repetição passa, de volta ao conto “La frontera de cristal”, pela resposta do secretário Reich a Leonardo Barroso. À posição do mexicano, o secretário estadunidense responde com uma abertura ao final: “Yo estoy a favor de todo lo que añada valor a la economía norteamericana (...). Sólo así vamos a añadir valor a la economía del mundo – o viceversa – ¿Qué propone usted?” ((FUENTES, [1995] 2007, p. 180 – grifo meu). A resposta do personagem Reich com uma sugestiva pergunta ao fim é, na verdade, uma abertura que Fuentes concede não só ao seu don Leonardo Barroso, figura representativa 151 de uma espécie de self-made man mexicano77, mas, principalmente, a ele próprio, para que o narrador coiote de seu romance possa seguir dando margem de desenvolvimento à metáfora da separação na frágil fronteira de cristal, uma “simples” e translúcida membrana de vidro que mesmo em toda a sua fragilidade separa México e Estados Unidos, mexicanos e estadunidenses. Será, pois, a partir da abertura concedida pelo secretário do Trabalho do Governo dos Estados Unidos que o enredo de Fuentes em “La frontera de cristal” encontrará meios de inserir os dois personagens responsáveis por encarnar a imagem principal do conto e da obra, sua metáfora principal, sua metáfora ampla. O primeiro deles é Lisandro Chávez, filho de uma classe média trabalhadora e falida em um México cujas sucessivas crises econômicas levaram à bancarrota a pequena fábrica de refrigerantes de seu pai, indefesa ante os monopólios que tomaram conta do setor em vinte anos de sufoco financeiro para os fabricantes independentes. Pois é esse Lisandro que experimentara durante a adolescência as benesses de poder ir a clubes, festas, frequentar escolas particulares, ler bons livros que, agora falido como seus pais, busca aos vinte e seis anos “un trabajo honesto, un trabajo que me salve del desprecio hacia mis padres, del rencor hacia mi país, de la vergüenza de mí mismo pero también de la burla de mis amigos” (FUENTES, [1995] 2007, p. 185). É assim que, mesmo sentindo-se deslocado entre outros noventa e três compatriotas mexicanos em um avião que os leva legalmente aos Estados Unidos, Lisandro busca “ahora nueva oportunidade, ir a Nueva York como trabajador de servicios” (Ibid.). Lisandro Chávez é um dos trabalhadores mexicanos contratados legalmente como servicios pelo self-made man mexicano Leonardo Barroso, a fim de que em um final de semana custassem menos aos bolsos dos sócios gringos de don Barroso do que eventuais trabalhadores estadunidenses, porque, como conta a narrativa, para estes mexicanos [L]as cosas andaban tan mal en México, en sus casas, que no les quedaba más remedio que rendirse ante tres mil pesos mensuales por dos días de trabajo en Nueva York, una ciudad ajena, totalmente extraña, donde no era necesario intimar, correr el 77 Parte do mito de americanidade sempre vitoriosa estadunidense, o mito do sonho americano passa também pela constituição de outro mito próprio de sua cultura: o do self-made man, o homem que se faz a si próprio, que vence, ou melhor, que enriquece por si mesmo, por seu próprio esforço. Com uma ambição que nem sempre conhece limites, a própria marcha do homem anglo-americano rumo ao oeste, avanço que se solidificou na história e na cultura do país como “a conquista do oeste” termina por servir como fator primordial para o falso sentido de homogeneidade, de unidade e mesmo de univocidade historiográfica dados à formação de uma identidade nacional estadunidense ancorada em mitos evocados como o do self-made man. Ao compor e fazer assim de don Leonardo Barroso um homem vitorioso no México, desafeito a filantropias, especialmente no que se refere à família, homem cuja ambição também não conhece limites, Fuentes encarna ironicamente na figura do poderoso empresário que cria em sua ficção características próprias do mito estadunidense do self-made man, com Barroso avançando, em uma espécie de revés revanchista, as fronteiras para o outro lado, o lado de lá “anglo-americano”. 152 riesgo de la confesión, la burla, la incomprensión en el trato con los paisanos de uno. (FUENTES, [1995] 2007, p. 189) Embora aqui igualado, ou forçado a sentir-se igualado porque, conforme diz nosso narrador coiote, agora em tom bastante popular, “Todos estaban amolados y la joda iguala”; embora esse intento, o curioso é como a narrativa distingue Lisandro Chávez dos demais braceros, também mexicanos como ele. Em um primeiro momento, o narrador mesmo trata de destacá-lo, sem remeter à construção romantizada que se inicia ao pensamento ou à fala de qualquer outro personagem: “Sólo Lisandro viajaba sin sombrero y se pasaba la mano por la cabellera negra, suave, rizada, se acariciaba el bigote espeso y recortado, se restregaba de vez en cuando los párpados gruesos, aceitosos” (Ibid., p. 181). Mas, logo, pouco a pouco, a distinção proposital entre Lisandro e seus paisanos vai se consolidando como um interessante artifício narrativo, uma interessante estratégia literária, mesmo quando o narrador se volta, retorna à transmissão de sentimentos de don Leonardo, contando, por exemplo, que ele “admitió que le molestaba ver el paso por la primera clase de tanto prieto con sombrero de paja laqueada” (FUENTES, [1995] 2007, p. 182), quando do embarque de seus servicios rumo a Manhattan. E o trabalho de distinção da personagem ante seus patrícios se torna de percepção ainda mais evidente na recuperação que faz o narrador de um diálogo comandado por don Barroso e a sentença final que destaca os contornos da diferenciação dedicada a Lisandro Chávez: – ¿Por qué todos tan prietos, tan de a tiro nacos? – Son la mayoría, don Leonardo. El país no da para más. – Pues a ver si me buscan uno por lo menos con más cara de gente decente, más criollito, pues, me lleva. Es el primer viaje a Nueva York. ¿Qué clase de impresión vamos a hacer compañero? Y ahora cuando Lisandro pasó por la primera clase, don Leonardo lo miró y no se imaginó que era uno de los trabajadores contratados y deseó que todos fueran como este muchacho obrero pero con cara de gente decente, con facciones finas pero un mostachón como de mariachi bien dotado y, caray, menos moreno que el propio Leonardo Barroso. Distinto, se fijó el millonario, un muchacho distinto (Ibid., p. 185 – grifo meu). Esse olhar que don Leonardo lança para Lisandro à página 185 é uma recuperação do mesmo olhar direcionado para o trabalhador, olhar para o qual a narrativa já havia chamado atenção à página 182, antes de digressões informativas sobre a vida do filho de uma classe média falida. Naquele momento, mais à frente, como visto, recuperado, o narrador coiote da trama romanesca de Fuentes contava que, antes de deixar de olhar, como vimos, “tanto prieto con sombrero de paja laqueada” (Ibid., p. 182), don Barroso “Levantó la mirada porque vio o sintió a alguien distinto” (Ibid., p. 182 – grifo meu); algo que “le obligó a mirar y fue el paso de Lisandro Chávez, que no llevaba sombrero, que parecía de otra clase, que tenía un perfil 153 diferente y que venía preparado para el frío de diciembre en Nueva York” (FUENTES, [1995] 2007, p. 182 – grifo meu). Há aqui uma forte correlação entre a distinção que se insiste em dar ao personagem e o olhar, a observação atenta, a mirada, embora também a de um mexicano, alheia, em se tratando de don Leonardo. Algo mais adiante e o olhar que lança a narrativa nas próprias remissões ao olhar de Leonardo Barroso começa a tecer pouco a pouco algumas diferenciações também ao corpo dos outros noventa e três trabalhadores braçais que se vão legalmente a prestar seus serviços nos Estados Unidos pelas mãos de seu contratante mexicano, não obstante o fato de que a atenção descritiva maior é dada àqueles os quais, assim como Lisandro, devido a um passado menos inglório, indagam-se dos porquês de estarem ali em situação para eles tão degradante, razão pela qual se sentem igualmente deslocados. Ainda assim, ao fim e ao cabo é a Lisandro Chávez que será dedicada maior distinção. Tal diferenciação responde, entretanto, a algo que se assemelha a um chamado, uma convocação do leitor/receptor para que este lance o mesmo olhar de Leonardo Barroso para Lisandro Chávez, acompanhando-o na e prestando atenção à distinção que lhe é dada. Distinguindo-o, apartando-o também o leitor dos demais braceros, para que esteja atento à construção que é dedicada a Lisandro, personagem pinçado do avião que os carrega a todos rumo, em verdade, à metáfora do cristal para a fronteira, na cena chave da qual tomará parte com outra personagem merecedora de digressões situacionais descritivas. A cena começa a ser preparada em nova e necessária (para novo reforço) aproximação, remissão ao cristal que agora emprestará à narrativa a linha tênue que separa o literal e o figurado, o concreto e o abstrato, o objetivo e o subjetivo, numa gama que alude, na verdade, ao amálgama dos significados às vezes todos tão palpáveis no real empírico dos tantos significados dados a esse significante pela linguagem. No momento em que se preparam os mexicanos para iniciar os trabalhos de limpeza para o qual foram contratados, o narrador adota o ângulo de Lisandro a fim de, sobre o prédio onde se daria aquele ofício, falar que [P]odía verse un edificio todo de cristal, sin un solo material que no fuese transparente: una inmensa caja de música hecha de espejos, unida por su proprio vidrio cromado, niquelado; un palacio de barajas de cristal, un juguete de laberintos azogados. (FUENTES, [1995] 2007, p. 191) Com uma linguagem rica em metáforas, condizente, obediente a todo o caráter imagético de que lança mão, traços, elementos componentes da metáfora ampla, que se desenvolve dentro de um amplo processo de metaforizações, são destacáveis, dada sua 154 relevância nas repetições para a imagem que se quer transmitir. Aproximam-se, portanto: transparência e espelhismo, e o vidro e o cristal. Sobre este último, verbete mais importante para a composição imagética que se orquestra, o narrador coiote, ora popular e agora revelador de grande erudição, informa que, no prédio a ser limpo... Hasta los dos elevadores eran de cristal. Cuarenta por seis, doscientos cuarenta rostros interiores del edificio de oficinas que vivía su vida a la vez secreta y transparente alrededor de un atrio civil, un cubo excavado en el corazón del palacio de juguete, el sueño de un niño en la playa construyendo un castillo, sólo que en vez de arena, le dieron cristales… (FUENTES, [1995] 2007, p. 192) O autor usa aqui seu narrador para, através da imagem do menino na praia, colocar em posições dicotômicas a areia, não só a que está próxima ao mar bem como a do deserto, e o cristal agora usado como um símbolo para o desenvolvimento, opondo por alusão um lado de cá, o México, e o lado de lá, OS ESTADOS UNIDOS. Tal carga opositiva não se ameniza nem mesmo quando o narrador tece comparação que justaposta ao anterior descrito serve apenas como um eufemismo, no contar esse narrador que ao iniciar da subida dos trabalhadores em andaimes móveis eles estariam “Como en un Teotihuacan de vidrio” (Ibid.). A visão de estranheza, de um tão diferente do meu, de um menor dentro de algo muito maior do que aquilo a que ele jamais teria ou teve acesso em sua terra segue com a metaforizada, como não poderia deixar de ser, descrição da subida agora de Lisandro para limpar os vidros do arranha-céu nova-iorquino: “Lisandro ascendía al cielo de cristal, pero se sentía sumergido, descendiendo a un extraño mar de vidrio en un mundo desconocido, patas arriba...” (Ibid., p. 191) A linguagem metaforizada utilizada entra, então, com efeito, mais como um atenuante da carga de inflexões de inferioridade que as oposições postas em jogo deixam por fim perpassar na situação descrita. Tal jogo de inferioridades quase se ameniza, enfim, quando novas digressões, posteriores ao retorno narrativo à metáfora chave do conto e do enredo como um todo, antecedem finalmente o “encontro” de Lisandro com uma estadunidense do outro lado da fronteira de vidro. Audrey é uma executiva estadunidense do ramo de publicidade. Ao contrário de Lisandro, é uma trabalhadora de sucesso em sua carreira. As digressões descritivo-narrativas que a ela se dedicam dão conta da retomada, redescoberta de uma força interior que uma briga no casamento lhe havia despertado. A sexta à noite e o sábado matutino em que caminhava sob e sobre a neve que cobria as ruas de Nova York lhe serviram para a redescoberta desse poder interno que se desvelava do fracasso no amor e sorte no trabalho, nos negócios dessa quase self-made woman, em posição financeira completamente oposta à de Lisandro. 155 Quando já se regozijava no pensamento de que estaria sozinha em seu escritório em pleno sábado pela manhã, a executiva termina por descobrir que seu escritório, seu trabalho, su oficina, na verdade Estaba llena de trabajadores. Se olvidó. Se rió de sí misma. Había escogido para estar sola el día en que iban a limpiar los cristales interiores del edificio. Lo habían anunciado a tiempo. Se olvidó. Ascendió sonriendo al último piso, sin mirar a nadie, como un pájaro que confunde su jaula con libertad. (FUENTES, [1995] 2007, p. 195) A partir dali sucedem novas remissões ao cristal, aos cristais do edifício, ora metaforizadas, ora não, mas, sempre, no intento de que na preparação ainda da cena principal o elemento primordial da metáfora sobre a qual se debruça todo o enredo não fosse esquecido. É quando, em um dado momento, o narrador nos concede, enfim, a informação: Ella lo vio primero y no se fijó en él. Lo vio sin verlo. Lo vio con la misma actitud con que se ve o deja de ver a los pasajeros que la suerte nos deparó al tomar un elevador, abordar un autobús u ocupar una butaca en un cine. Ella sonrió. (Ibid., p. 196) Tal descrição situacional marca o início da cena chave do conto. O cristal do vidro que os separa passa então a ser objeto que pouco a pouco também os aproxima, cada qual em seu trabalho. Ela vê nele cortesia e se surpreende; ele, tão diferente da vulgaridade que encontrara ela em outros e do desrespeito a sua vontade de solidão, vê nela um objeto de desejo, distante como uma deusa, desejando “intensamente tenerla, aunque fuese a través del cristal” (FUENTES, [1995] 2007, p. 200). Porém, Audrey se levanta e sai do escritório, o que causa a Lisandro inúmeras indagações. É quando o autor usa de seu narrador para reintroduzir a imagem por trás da imagem que traz sua metáfora ampla: Ella regresó con el lápiz labial en la mano. Lo detuvo destapado, erguido, mirando fijamente a Lisandro. Pasaron varios minutos mirándose así, en silencio, separados por la frontera de cristal (Ibid., 201) A separação que o frágil do cristal opera no trecho anterior não finda, entretanto, o capítulo, pois Fuentes dá ainda mais expressividade à cena, quando da descrição do que os dois distanciados por uma frágil membrana de vidro resolvem fazer: Ella escribió su nombre en el cristal con su lápiz de labios. Lo escribió al revés, como en un espejo: yerdua. Parecía un nombre exótico, de diosa india. Él dudó en escribir el suyo, tan largo, tan poco usual en inglés. Ciegamente, sin reflexionar, estúpidamente quizás, acomplejadamente, no lo sabe hasta el día de hoy, escribió solamente su nacionalidad, nacixem. (Ibid., 201-2) No fragmento supracitado, Fuentes usa toda sua habilidade narrativa para jogar com a noção de espelhismo, trabalhando-a em dubiedades, possibilidades. Ao dizer que Audrey 156 escreve seu nome como em um espelho, seu narrador não diz propriamente se o seu nome se revela a Lisandro de fato ao contrário, ou se não há o espelhismo desejado por ela no vidro que ele limpa, sendo ele Lisandro que, com efeito, lê o nome da estadunidense como de fato ela o escreveu, sem que ela o orientasse, por não saber da ausência do espelhismo, da direção correta para a leitura. Realmente há uma espécie de pista de desconhecimento por parte de ambos de que o espelhismo no vidro que os separa não exista mesmo, por conta da escritura de “nacixem”, porque a narrativa leva a crer que esta aproximação a “nacido en” também é feita ao contrário de modo proposital. Ao cabo de tudo sobram mais dúvidas do espelhismo, sem que a separação inevitável, a união impossível que o enredo quer transmitir na fragilidade do cristal de sua metáfora chave, metáfora ampla deixe de se sobrepor em relevância. Assim será que, acossado, apressado por seus companheiros de trabalho que desconhecem o que está acontecendo, Lisandro tem de ir-se. Não sem que antes, atendendo de forma duvidosa a uma pergunta por algo mais da parte da personagem Audrey, Fuentes encerre a cena componente final de sua ampla metáfora com um fim talvez tocante, digno das melhores comédias românticas, das melhores histórias românticas do cinema, dada a força de seu teor imagético: Él acercó los labios al cristal. Ella no dudó en hacer lo mismo. Los labios se unieron a través del vidrio. Los dos cerraron los ojos. Ella no los volvió a abrir durante varios minutos. Cuando recuperó la mirada, él ya no estaba allí. (FUENTES, [1995] 2007, p. 202) Quis com o presente tópico abordar a metáfora ampla como parte de um artifício, de uma estratégia narrativa de mostras ficcionais que se apoiam sobre o forte teor imagético da maneira como decidem montar e contar e desenvolver seus enredos. Demonstrei que a construção das imagens até aqui analisadas obedece a um interesse do autor de agir, pelas imagens que transmite, de modo mais direto na mente de seu leitor imaginante. No que toca ao tamanho, o simples desenvolvimento de uma metáfora específica por todo a extensão de um conto que se agigante como um capítulo já dá vez a que a identifiquemos como metáfora ampla, recurso de imagem que prepondera em uma narrativa que se calque bastante no imagético. Em La frontera de cristal, entretanto, há uma óbvia e de plena compreensão necessidade de que se “plante” essa metáfora no princípio do romance para que, depois, ela se estenda ainda mais no conto-capítulo que empresta seu título ao todo da obra. Em relação ao enfoque das correspondências abordadas, é importante ressaltar que para compor um imaginário uma determinada imagem precisará de repetição, um caráter de permanência no “todo” do qual fará parte. Em relação à metáfora do cristal para a fronteira, desde o título da obra ela se amplifica primeiro como imagem verbal, imagem que do verbo se 157 translada à mente do imaginante em concepção gestáltica para, depois, ganhar ainda mais força de expressão em sua tomada como metáfora ampla. Mas, de modo bastante propício ela também foi transladada para o campo das imagens visuais tanto em uma mostra cinematográfica (OLMOS PRODS., 2008) quanto, e talvez com um caráter ainda mais remissivo à sua origem como imagem verbal, na capa da edição de 2007 que a Editora Alfaguara dedicou a esta obra de Carlos Fuentes (a reprodução dessa capa de La frontera de cristal constará dos anexos da presente tese). Das observações dedicadas aos contos-capítulos trabalhados até o momento, há ainda que destacar certas relações de escolhas descritivas na composição dos personagens abordados. Essas relações serão mais bem levantadas no próximo tópico, pois têm a ver com a noção de intersecções identitárias, construções para as quais chamo atenção sob o nome de “mex-(anglo)-chicanidades”; atuando, também, para a formação e identificação de que sobressaem da narrativa tais intersecções a correlação que o narrado opera entre as figuras de imagem metáfora e metonímia, decisivas para que se possa falar em imaginários a partir da leitura da obra em epígrafe. 3.3 “Mex-(anglo)-chicanidades” como resultado da equação “metáfora ampla = imagem → metonímia = imaginários” Uma obra literária, por trabalhar com a palavra escrita, terá, mormente, nesse registro da linguagem a função de por ele, através dele e dos enunciados que de sua união surgem fazer “ver”, pelo viés da imaginação provocada, vislumbrar, por sua ação no pensamento do leitor-receptor-imaginante, as imagens que quer aproximar desse leitor, buscando atraí-lo para seu enredo, para o enredo que quer conquistar o receptor, aquele que necessita da faculdade da imaginação aproximativa para agir com a e junto à história sobre a qual debruça, dedica sua atenção. Sobre o assunto, é interessante o posicionamento da, já citada anteriormente na presente tese, antropóloga brasileira Sylvia Caiuby Novaes, para quem (2008, p. 459) “Palavras (...) significam imagens mentais impressas na mente em função da nossa experiência com objetos.” A autora, contudo, não se atém apenas a esse ponto, complementando que “Uma palavra é uma imagem de uma ideia e uma ideia é a imagem de uma coisa, como numa cadeia de representações” (Ibid.). Quando toca na questão de nossa experiência com objetos, o argumento levantado por Novaes vem ao encontro da relação que defendo e já apresentei entre imagem e a psicologia 158 gestáltica do fechamento de formas. E, embora as posições na cadeia de que fala Novaes sejam de aceitação variável78, contribui para o desenvolvimento do raciocínio ao qual dou ênfase no presente trabalho a colocação de palavra e imagem junto ao campo das representações. É nesse aspecto que, em La frontera de cristal, ganha importância o papel da metáfora e da descrição, ambas categorias do discurso próprias do terreno das imagens verbais, ambas produto e produtoras de imagens verbais. No que toca a uma mostra literária de ficção, a intenção autoral na aproximação do leitor ao imagético pode se evidenciar em menor ou maior grau, sendo o segundo o caso de Carlos Fuentes em La frontera de cristal. Nesse romance, conforme procurei demonstrar até aqui, a metáfora é o caminho preferido pela palavra para transmitir imagens intencionadas, imagens intencionais que, pela fixação da repetição constante na descrição narrativa operada, potencializa-se, intensifica-se, amplifica-se na criação da metáfora ampla, sua imagem maior, também cumpridora de determinada função. Em princípio, tal função talvez seja dar o máximo de “materialidade” ao leitor, nas situações evocadas, nos personagens criados. Mas, talvez, possa ser que essa “materialidade” requerida responda, apenas, a uma terceira intenção. Vejamos. “El verdadero artista no refleja la realidad: añade algo nuevo a la realidad”, escreve o próprio Fuentes ([1992] 2010, p. 125) em seu El espejo enterrado. Uma questão, quiçá perturbadora, entretanto, surge quando esse dito “algo novo”, certas vezes à revelia do autor, termina por refletir-se na realidade. Nesse aspecto, cabe ressaltar o papel da metáfora ampla de Fuentes em La frontera, cumprindo, como apontei, função de ideia, de imagem que quer se tornar conceito, o que lhe garantiria certa perenidade, caráter de permanência e ares, efeito de realidade, atributos próprios também da constituição de um imaginário. E é com esse efeito de realidade que o imaginário termina por agir com o real, sobre o real, quando não raro, nele interferindo, ou seja, na ideia, no conceito que se tem de determinados aspectos de um real empírico o mais das vezes desconhecido pela consciência, pelo(s) sujeito(s) imaginante(s), sendo essa possibilidade de pluralizar seu alcance talvez o maior problema na ação dos imaginários. Tomar, pois, o imaginário como real é, em parte, resultante do desejo humano de apropriar-se, de tomar conhecimento do que lhe é estranho, desconhecido. Nesse tocante, na ação da literatura sobre o receptor há que se levar em conta o fato de que um leitor pode ser 78 Remeto o leitor ao segundo tópico do primeiro capítulo desta tese, onde abordo ao longo do texto a variabilidade possível nas vias de ação e relação entre palavra (especialmente quando age na linguagem a metáfora) e mente, linguagem e imagem. 159 estrangeiro mesmo que, em verdade, estrangeiro não seja, estranho sendo a determinado(s) assunto(s) ao qual se inflexiona tomando a literatura como transmissora de um real que desconhece, sem levar em conta, em muitas ocasiões, por escolha, por deliberação própria, a criação, a inventividade própria da ficção. No caso de La frontera de cristal, a capa de conceito que envolve o desenrolar da metáfora ampla pode atuar dando margem à impressão, ao efeito de que, por exemplo, todas as interações, no frágil, poroso, quebradiço da fronteira mexicano-estadunidense, dão-se assim: instavelmente, fragilmente, tornando impossível, apesar da proximidade, um encontro, um melhor entendimento entre os sujeitos diretamente envolvidos nas relações de alteridade pela obra suscitadas. Mas, se todo o efeito de real possível de ser extraído da leitura, apreensão e interpretação do romance ficasse apenas a cargo da metáfora ampla, talvez isso pouco contribuísse para que o leitor imaginante se visse envolvido, apanhado, quase sempre sem que note, por um imaginário. Para tanto, para que se observe tal ação, em La frontera há o apoio necessário da narrativa na metonímia, outro tropo de imagem, de parentesco bem próximo à metáfora. Será a metonímia, portanto, responsável por fazer com que a consciência imaginante se translade, transferida seja do campo da imaginação para o porto (in)seguro do imaginário. Já em “La capitalina”, dois momentos desse primeiro capítulo nos acercam ao uso da metonímia adotado pela narrativa. Nas últimas linhas do conto, enquanto descreve o encontro amoroso da recém-casada capitalina com o seu sogro na suíte de um motel do lado estadunidense da fronteira, o narrador procura levar o leitor à observação, com efeito, à imaginação do corpo da personagem pela contemplação que se atribui ao olhar de don Leonardo. Assim, é-nos descrito que naquela suíte de luxo havia “Muchos espejos donde admirar a Michelina, un baño de mármoles color de rosa donde (...) enjabonarla, acariciarla, ruborizarla – tenía las nalgas más grandes de lo que parecía, las piernas más flacas, la condición del tordo (FUENTES, [1995] 2007, p. 32)”. Nesse fragmento da descrição, embora o leitor possa até, de modo bastante aceitável, desconhecer que o tordo é uma ave da família dos melros, com “pernas” finas e calda extensa, a remissão metafórica ao corpo de Michelina parece fazer parte de uma ação que se restringe ao campo da imaginação leitora, da imagem em ação, que se forma, que o leitor desenha em sua mente auxiliado que é pela descrição literária. Contudo, a imagem sugerida pelo trecho ficaria restrita apenas à faculdade da imaginação acaso ela tivesse ocorrido aqui pela primeira vez, como mero recurso de apoio imaginativo à descrição. Sucede, porém, que nesse caso Michelina serve na verdade de 160 modelo para uma imagem hiperonímica aqui recuperada, inserida desde o segundo parágrafo do conto. Ali, ao tocar no apego da avó de Michelina às tradições do passado, o narrador coiote criado por Fuentes traz o pensamento da anciã relativo também às dissimulações próprias e bem propícias do vestuário feminino, quando de sua juventude. Em favor, por exemplo, dos saiões antigos, doña Zarina Ycasa de Laborde, aponta que com eles “Era más fácil disimular los defectos físicos que la moda moderna revelaba” (FUENTES, [1995] 2007, p. 9). É então que, dando vez à continuidade de fala da velha senhora, a narratividade coiote de La frontera dá vez, por conseguinte, a que se entre com uma expressão imagética de maior proximidade a imaginários: “Unos blue jeans acentúan las nalgas gruesas o las piernas flacas. “Nuestras mujeres tienen la condición del tordo”, le oyó todavía decir a su abuelo (qepd): “Pata flaca, culo gordo” (Ibid. – aspas do texto). A relação ora ressaltada dá conta de que Michelina é usada na narrativa como parte, como modelo hiponímico correspondente a um todo maior hiperonímico, uma imagem préfixada que apenas supõe esse todo ao qual pertence; mas, é justo em tal suposição que a aparência da imagem ganha ares de profundidade, pelas vias, limitadas ou não, de recepção do imaginante. A prefixação de imagem estabelecida pode, assim, dar margem à criação ou absorção de um pré-conceito, imagem com falsa, porém, nem sempre notória, aparência de totalidade, aparência de que emite, de que contém em si, na sentença que encerra, a visão de um todo. Essa relação utilizada pela narrativa em “La capitalina”, de Michelina como modelo hiponímico para uma ideia de teor hiperonímico, é operada, antecipada mesmo antes do fragmento sobre o qual discorro no momento. Já no primeiro parágrafo da obra, ao referir-se à simetria perfeita do rosto de Michelina, o narrador traz outra voz para completar o “elogio”, voz a qual diz que esse rosto perfeito da capitalina seria algo como “su ‘mascarita mexicana’, le dijo un admirador francés, esos huesos perfectos de las beldades de México a las que el tiempo parece no afectar” (FUENTES, [1995] 2007, p. 9 – grifo do autor). Aqui, no entanto, a relação hiponímica de Michelina como parte alusiva de um todo constituído, suposto, sugerido em “todas las beldades de México”, talvez se abrandasse pela atribuição de condução à imagem a um personagem estrangeiro, o admirador francês; havendo-se que forçosamente pensar, contudo, se o leitor de certa forma já não é mais conduzido a um imaginário, ou à aproximação a um imaginário de beleza, do que propriamente a imaginar e compor sua própria imagem, fixando-se apenas em Michelina. 161 Mas, a dúvida a meu ver se dissipa se tornamos à metáfora da condição do tordo. Ali veremos que ela pouco produziria de efeito chamativo no final do conto caso não se correlacionasse (antecipada que foi) à totalidade metonímica iniciada no segundo parágrafo do capítulo. Apenas pela correlação propiciada de modo proposital pela operação estilística de remissão de uma passagem ulterior a uma anterior é que se pode chegar à conclusão de tomada da personagem Michelina (“tenía las nalgas más grandes de lo que parecía, las piernas más flacas”, p. 32) como modelo hiponímico para a condição hiperonímica do tordo, operada em “Nuestras mujeres tienen la condición del tordo”, p. 9 – grifo meu em negrito). Assim, o que se poderia restringir ao campo da imaginação leitora em Michelina, eleva-se à possibilidade de imaginário em “Nuestras mujeres”, sentença metonímica hiperonímica na qual o pronome possessivo adjetivo “nossas” responde pela aparência totalizadora, cuja responsabilidade depende também das instâncias de absorção e apreensão do leitor/receptor, do imaginário de beleza sobre o qual termina por inserir-se. Tal imaginário pode trazer em si um pré-conceito de beleza fatal, excludente talvez de outros rostos, de outras tantas faces da multi-etnia mexicana79. Finalmente, cabe destacar o fato de que a metáfora da condição do tordo é não mais que uma demonstração da linguagem literária metaforizada a que se dá vez na narratividade coiote de La frontera de cristal. Essa metáfora se insere, portanto, ao amplo processo de metaforização realizado no conto “La capitalina”, do qual participa de modo relevante a metáfora ampla do cristal para a fronteira mexicano-estadunidense e as relações de alteridade levantadas pela obra, ampla metáfora iniciada nesse primeiro capítulo, retomada ora e vez nos demais e cujo ápice de desenvolvimento se dá no conto sete, o capítulo que empresta seu nome ao romance. Desse modo, apesar de certa menor relevância numa presumível comparação hierárquica com a metáfora principal do enredo, a metáfora do tordo deixa sua marca ao agregar-se ao processo de metonimização do qual toma parte, constituindo-se em um exemplo de totalidade metonímica 80 cuja aproximação à aparência de um todo homogêneo 79 Lançar mão do uso de um ou da aproximação a um imaginário não sempre é fruto de um ato intencional do escritor (ou, apenas do escritor). Com frequência, porém, é comum, sobre o que nos é alheio, termos contato nas interações cotidianas do real empírico com sentenças que deixam vazar em seu discurso muito mais a apreensão de determinados imaginários do que propriamente uma abordagem mais detida sobre o que se está falando. Nesse tocante, a ficção, apesar de limitar-se ao campo do ficcional, é, ainda hoje, pelos mais variados motivos (dentre os quais, às vezes pela relação que o autor estabelece com o real objetivo, às vezes pela separação que o receptor não consegue operar entre o real empírico e o real da obra), fruto de confusão, ao ser tomada como pertencente ou mesmo reprodutora, também, de totalidades que fazem parte da amplitude, de interpretação não raro porosa ou duvidosa, do factual. 80 Termo utilizado para a possibilidade de se construir textos com metonímias, usado pelo linguista brasileiro da Universidade de São Paulo (USP), José Luiz Fiorin (2010, p. 2). A partir de seu uso em Fiorin, utilizo aqui o 162 a torna passível de apreensão por imaginários. Configura-se, pois, tal demonstração apenas como uma das exemplificações possíveis para a equação que trago de minha observação teórica dedicada à obra, aquela em que sobressai a interação dos componentes do processo de construção narrativa “metáfora ampla = imagem → metonímia = imaginários”. Há, entretanto, ainda outros exemplos cabíveis. Vamos a eles. No conto “Las amigas”, sexto capítulo do romance, a ligação metáfora ampla/metonímia é também merecedora de destaque. A história conta a difícil convivência entre uma empregada mexicana e sua patroa estadunidense. A metáfora ampla ali tocada uma vez mais permite que, inclusive, o conto possa ser abordado a partir de seu final. O fim desse episódio, assim como o faz Fuentes em “La frontera de cristal” e alguns outros contos componentes da obra, busca ser comovente, busca conquistar o leitor pelas vias do tocante que a imagem final a encerrar o capítulo espera provocar no receptor. É dessa maneira que, nos momentos finais de “Las amigas”, após uma extensa classe dos mais variados insultos, provocações e humilhações sofridos, a criada mexicana Josefina parece dar uma lição de amor em Miss Amy, sua velha, amarga e preconceituosa patroa. E é assim que, nos diálogos que antecedem o desfecho do capítulo, Josefina faz desfilar uma série de argumentos em que explica seu amor pelo marido preso injustamente em solo estadunidense, apesar de todos os problemas com os quais sempre tiveram de conviver. Tudo isso é dito a uma senhora cujo orgulho e atitude de afastar-se de todos terminaram por impossibilitar que vivesse ao lado do grande amor de sua vida, o pai do sobrinho advogado que a ajuda em obrigações mais burocráticas de sua vida, havendo sido por ele revelada a ela a longa espera de seu pai por uma abertura pela qual Miss Amy demonstrasse que era com ele que desejava casar e, não com o tio do sobrinho, o que de fato acabou por acontecer. É então que, após as revelações que lhe assomam, uma Miss Amy mais afeita a dar e receber carinho surpreende Josefina, quem, em sua rotina noturna na casa da patroa: Le acomodó las almohadas y estaba a punto de retirarse y desearle buenas noches cuando las dos manos tensas y antiguas de Miss Amelia (…) tomaron las manos fuertes y carnosas de Josefina. Miss Amy se llevó las manos de la criada a los labios, las besó y Josefina abrazó el cuerpo casi transparente de Miss Amy, un abrazo que aunque nunca se repitiese, duraría una eternidad. (FUENTES, [1995] 2007, p. 176) Tenho insistido no presente trabalho que a repetição de uma imagem é o caminho, o artifício necessário para que essa possa tornar-se parte, possa ser absorvida, captada por um imaginário. No trecho acima, perpassam uma vez mais os sentidos em que se baseia a transferência semântica operada na metáfora ampla, na imagem principal do enredo. Inseridos termo devido a sua capacidade, verificada na leitura do corpus em destaque, de amarrar-se ao texto, costurando nele uma determinada ideia totalizadora. 163 e repetidos no primeiro capítulo, retomados e logo encaminhados a seu ápice no sétimo capítulo da obra, os sentidos envolvidos no caminho sinuoso da transferência de sentidos operada na e pela metáfora principal do enredo se apresentam nesse sexto conto, assim como em alguns outros, em forma de alusão, uma imagem da imagem. Dessa maneira, veem-se repetidos a um só tempo no fragmento acima mencionado: a transparência do cristal, representada no abraço ao corpo quase transparente de Miss Amy; e, em sentido interligado a essa transparência corpórea, a fragilidade, no frágil das relações de alteridade levantadas, eclodindo na representação do encontro impossível em “un abrazo que aunque nunca se repitiese” teria que durar uma eternidade, dada a impossibilidade de que pudesse voltar a acontecer. Até mesmo a noção de espelhismo na metáfora do cristal para a fronteira é retomada páginas antes do desfecho do conto, na utilização provocativa de um “ornamentado espejo de mano que súbitamente Miss Amy volteó para dejar de reflejarse ella y obligar a Josefina a mirarse en él” (FUENTES, [1995] 2007, p. 166). A súbita ação de Miss Amy dá início a um interessante diálogo em que se toca na cor da pele tanto das multi-etnias que compõem o povo mexicano quanto também das multi-etnias que conformam as gentes estadunidenses, em bela proposta narrativa para relativizar questões que envolvem preconceitos de cor: – ¿Te gustaría ser blanca, no es cierto? – dijo abruptamente Miss Amy. – En México hay muchos güeritos – dijo impasible Josefina, sin bajar la mirada. – ¿Muchos qué? – Gente rubia, señorita. Igual que aquí hay muchos negritos. Todos somos hijos de Dios (…). – ¿Sabes por qué estoy convencida de que Jesús me ama? (…). – Porque es usted muy buena, señorita. – No, estúpida, porque me hizo blanca, ésa es la prueba de que Dios me quiere. – Como usted mande, señorita. (FUENTES, [1995] 2007) É interessante notar que, mesmo na transmissão das imagens reveladas dos tropos que utiliza, o enredo demonstra preocupação em apresentar uma coesão que amarre de modo romanesco o imagético do narrado. Dessa forma, as noções de sentido que abraçam o frágil, o encontro impossível, a transparência e o espelhismo terminam por se juntarem a modos outros de metaforização da fronteira já utilizados pela própria narrativa. Isso pode ser observado, inclusive, em mais uma passagem que traz a estratégia de uso literário do que tenho chamado de “imagem da imagem”, uma imagem alusiva que remete a uma imagem anterior. Esse é o caso, por exemplo, da citação que trago a seguir. Nela, ao debruçar-se sobre a imagem em seu sentido de resultado de uma reprodução fotográfica, a narrativa se remete a uma caracterização anterior de explícito e proposital teor imagético da fronteira como raya fronteriza, como uma cicatriz histórica que separa e une forçosamente México e Estados 164 Unidos desde a assinatura do Tratado de Guadalupe-Hidalgo, com o fim da guerra de fronteiras entre ambas as nações, a qual durou de 1846 a 1848. A remissão se faz, não de forma direta, mas apenas por imagem alusiva, ao quarto conto da obra, o capítulo “La raya del olvido”, onde a fronteira ganha a explícita caracterização imagética de linha fronteiriça, de marca em forma de cicatriz. E parte, no posterior “Las amigas”, a partir das observações sobre uma foto: – ¿Qué te parece mi marido? – le dijo a Josefina, sacando el retrato del cajón para colocarlo en la mesita. – Muy guapo, señorita, muy distinguido. – Mientes, hipócrita. Míralo bien. Estuvo en Normandía. Mírale la cicatriz que le atraviesa la cara como un rayo parte en dos un cielo tormentoso. – ¿No tiene usted fotos de antes de que lo hirieran, señorita? – ¿Tú tienes estampas de Cristo en la cruz sin heridas, sin sangre, clavado, muerto, coronado de espinas? – Sí, cómo no, tengo estampas del Sagrado Corazón y del Niño Jesús, muy chulas. ¿Quiere verlas? – Tráemelas un día – sonrió burlona Miss Amy. – Sólo si usted me promete mostrarme a su marido cuando era joven y guapo – sonrió muy cariñosa Josefina. – Impertinente – alcanzó a murmurar Miss Amy cuando la criada salió con la charola de té. (FUENTES, [1995] 2007, p. 167-8 – grifo meu) O caráter remissivo do trecho acaba por demonstrar ter confluências para com algumas questões já abordados na análise anterior de ...y no se lo tragó la tierra, tangentes à imagem fotográfica e as linhas tênues da representação nas aproximações e meandros possíveis entre foto, retrato, pintura, escultura e seus referentes. Não obstante, tais correspondências merecerão destaque mais aprofundado no próximo e último capítulo desta tese, quando de modo mais específico darei vez à análise aproximativa e comparativa de ambas as obras. Por ora, cabe chamar a atenção para o fato de que a citação supracitada é mais um exemplo dos caminhos sinuosos existentes na transferência de sentidos da metáfora ampla, a metáfora principal que se espalha pelo texto buscando tornar familiar o que pareceria tão somente abstrações imagéticas. Tamanho processo de repetição da metáfora ampla e dos sentidos que se quer com ela fixar faz com que tais imagens nela e por ela repetidas entrem na órbita do campo de atração do imaginário, com a forte possibilidade de que sejam captadas e passem a habitar constelações semânticas81 de determinados imaginários. Mas, para que de fato possam fazer parte do universo de um imaginário, para que possam propiciar uma leitura interpretativa desde o prisma de atração, de coligação a um imaginário, as imagens literárias levantadas da(s) metáfora(s) ampla(s) em La frontera de 81 O termo aparece já na introdução de Zilá Bernd (Cf., 2007, p. 16) à obra que ela mesma organiza, o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas, por extensão à expressão “bacias semânticas”, desenvolvida por Gilbert Durand no seu Campos do Imaginário (Cf., 1996, p. 165). 165 cristal necessitam, como já informei, do apoio interativo, da relação que estabelecem com o aspecto totalizador da figura de imagem metonímia, especialmente nos casos de hiperonimização. Algo que não é diferente em “Las amigas”, conto pelo qual transcorre e perpassa a metáfora ampla e, também, a metonimização mais aproximativa à leitura da obra via imaginários. Conforme adiantei, em “Las amigas”, a personagem mexicana Josefina sofre todo tipo de estereotipia, insultos e humilhações advindos do comportamento preconceituoso de Miss Amy. A esse respeito é também interessante como o narrador coiote de Fuentes traz para o leitor a imagem da mexicana aos olhos de sua patroa, quando da primeira vez em que a viu: “La vio la primera vez y confirmó todas sus sospechas. Era una india. No entendía por qué esta gente que en nada se diferenciaba de los iroquois insistía en llamarse ‘latina’ o ‘hispana’” (FUENTES, [1995] 2007, p. 161 – grifo do texto). Do mesmo modo que faz com o olhar de don Leonardo Barroso em “La frontera de cristal”, em um primeiro momento igualando em um todo determinada classe em relação de subalternidade para, só depois, individualizar, ainda de modo preconceituoso, os sujeitos que compõem o grupo sobre o qual lança observação; desse mesmo modo também atuará o próprio Fuentes em “Las amigas”, fazendo com que, com o passar do tempo, Miss Amy busque e pense ou pareça encontrar traços mais distintivos no aspecto físico de Josefina. Essa amenização em princípio relativizadora de questões sobre o preconceito nas relações de alteridade não parece, entretanto, escapar de certo problema de Fuentes em trabalhar literariamente alguns estereótipos em sua obra ora em relevo. O estereótipo chega mesmo a ser trasladado ao “outro”, qual em “La frontera de cristal”, quando da narração do início de individualização que Leonardo Barroso passa, enfim, a dedicar aos contratados que descem do avião que os levou para limpar as vidraças de cristal de um arranha-céu nova-iorquino: “Había de todo (...), otros también en los que el empresario no se había fijado porque el estereotipo del espalda mojada, campesino con sombrero laqueado y bigote ralo se lo devoraba todo” (FUENTES, [1995] 2007, p. 187 – grifo meu). Semelhante transladação relativizada do estereótipo é também verificada antes, na primeira conversa que têm, a respeito de Josefina, Miss Amy e seu sobrinho Archibald, quem assim a informa da contratação: – Hemos contratado una señora mexicana dispuesta a trabajar con usted. – Tienen fama de holgazanes. – No es cierto. Es un estereotipo. – Te prohíbo que toques mis clichés, sobrino. Son el escudo de mis prejuicios. Y los prejuicios, como la palabra lo indica, son necesarios para tener juicios. Buen juicio, 166 Archibald, buen juicio. Mis convicciones son definidas, arraigadas e inconmovibles. Nadie me las va a cambiar a estas alturas. Se permitió un respiro hondo y un poco lúgubre. – Los mexicanos son holgazanes. – Haga una prueba. Es gente servicial, acostumbrada a obedecer. – Tú también tienes tus prejuicios, ya ves – rió [sic] un poquito Miss Amy (FUENTES, [1995] 2007, p. 159 – grifo meu). O fragmento apresenta no desenrolar do diálogo uma mostra de sentenças de metonimização, ora amenizadas ou por um “Tienen fama de” (em que ainda não se afirma, não se taxa ou se evidencia a opinião de que de fato são) ou pela contestação seguinte “Es un estereotipo”; ora relativizadas no jogo discursivo que se faz operar entre a afirmação daquela que antes modalizava seu discurso, passando de um “Tienen fama de” para a asseveração em “Los mexicanos son holgazanes”, e o preconceito explícito em “Es gente servicial” daquele que antes contestava a estereotipia. E é justo no jogo dialógico proposto (“eu disse isso, mas você também”) que parece perder-se, nesse primeiro momento, uma tendência mais carregada a encaminhar o leitor para a proximidade equalitiva entre os termos da seguinte equação: estereótipo (preconceito) → metonímia (hiperonímia) → imaginário (imaginários). É esse êxito, porém, que a meu ver começa, ou amaina ora e vez (se se atém a observações já feitas desde a abordagem analítica de “La capitalina”), a se mostrar menos consistente quando, por exemplo, adianta-se à retomada das questões sobre estereótipos de volta à baila no momento em que Miss Amy volta a questionar seu sobrinho, curiosa, dessa vez, em saber da ornamentação do quarto de sua empregada Josefina: – ¿Qué tiene en la recámara? (…) ¿Cómo la adorna? – Como todas las mexicanas, tía. Estampas de los santos, imágenes de Cristo y la Virgen, un viejo exvoto dando gracias, qué sé yo. – La idolatría. El papismo sacrílego. – Así es y nada lo va a cambiar – dijo Archibald, tratando de contagiarle un poco de resignación a Miss Amy (FUENTES, [1995] 2007, p. 167 – grifo meu). No diálogo acima, o que antes era mostra aproximativa suavizada nas trocas de posicionamento no discurso passa, então, a evidenciar-se de forma mais clara como sentença metonímica em que a parte Josefina serve de modelo, ao igual ao que fora feito com Michelina, hiperonimizado de um todo presumível e suposto: o imaginário de que, em que todas as mexicanas são religiosamente idólatras, algo que recai sobre o imaginário maior acerca da religiosidade dos mexicanos: o México, todo o México é católico, e idólatra. Dessa maneira, tomada a parte como um todo, a totalidade hiperonímica da ideia levantada encontra seu complemento, seu fechamento taxativo no feito de que, na voz de Archibald, “nada lo va a cambiar”. 167 Entrementes, logo a seguir, a narratividade coiote de La frontera tenta retomar ou demonstrar a uma só vez controle e afastamento objetivo da situação evocada, buscando nova relativização de posicionamentos. Desse modo, Miss Amy segue seu diálogo com o sobrinho externando sua opinião sobre a idolatria da mexicana: – ¿No te parece repugnante? – A ellas les parecen repugnantes nuestras iglesias vacías, sin decorado, puritanas – dijo Archibald relamiéndose por dentro de la excitación que le causaba acostarse en Pilsen con una muchacha mexicana que cubría con un pañuelo la imagen de la Virgen para que no los viera coger. Pero dejaba prendidas las veladoras, el cuerpo canela de la chica reverberaba precioso… Era inútil pedirle tolerancia a Miss Amy. (FUENTES, [1995] 2007, p. 167) O estereótipo aqui retorna contrapondo-se à figura inserida da Virgem como marca, uma vez mais, da religiosidade, dessa feita, adjunta a certa fetichização do corpo feminino, do corpo da mulher mexicana. Não fosse a mesma ambientação e caracterização descritiva dedicada também ao corpo de outra personagem, a também mexicana Michelina, e tal ato talvez passasse por isolado, apenas quem sabe como mais uma das vacilações de Archibald, entre a compreensão, a tolerância e os seus próprios preconceitos, apenas como mais uma das construções ou perpetuações imagéticas que lhe são atribuídas pela narrativa. Um fato minimamente curioso chama atenção, porém, no idioma majoritário de “Las amigas”, conto que traz uma estadunidense austera que, teoricamente, não se rebaixaria ao trato em espanhol com uma mexicana que somente se sujeita a esse trabalho porque também fala inglês; além de que também por certo não precisaria Miss Amy dialogar com seu sobrinho também estadunidense, ainda que esse conhecesse sim a língua hispânica por suas andanças no bairro mexicano de Chicago, em espanhol, como de fato se transcreve. É claro que o uso do espanhol como língua em momentos em que deveria aparecer como inglês 82 responde a uma lógica de mercado, já que por razões óbvias a obra é produzida muito mais para um público hispano-falante do que para o público de língua inglesa nos Estados Unidos, para quem o romance termina por contar com uma tradução ao inglês. Está justamente na ação do traduzir, contudo, a questão a que me busco referir ao abordar a língua utilizada em “Las amigas”. Embora decerto esse seja apenas um questionamento de fundo mais hipotético, essa aparente preocupação menor levanta outra questão que sugere pensarmos o narrador coiote fuentesiano agindo no conto em epígrafe como também um tradutor, bom conhecedor, além de todas as habilidades e domínio de 82 Língua que de fato aparecerá mais como marca de anglicismos, anglo-americanismos, ou como forma de dar vez a chicanismos, ao spanglish chicano, principalmente na subparte dedicada a um personagem chicano de nome José Francisco, no último conto do romance, o capítulo “Río Grande, río Bravo”. 168 artimanhas que já demonstrou possuir, da língua inglesa o suficiente para poder traduzi-la ao receptor das histórias que conta. Tamanho exercício de ficção pode, por conseguinte, reconduzir-nos a uma ironia lançada, e já citada no primeiro tópico dessa seção, pelo personagem Dionisio, em “El despojo”, terceiro conto da obra. Ali, ufanando-se do avanço da língua espanhola nos Estados Unidos, o chef mexicano indaga também: “¿Cuántos mexicanos, en cambio, hablaban correctamente el inglés? Dionisio sólo conocía a dos, Jorge Castañeda y Carlos Fuentes, y por eso estos dos sujetos le parecían sospechosos” (FUENTES, [1995] 2007, p. 65). É, pois, essa mesma suspeita irônica que recai sobre os posicionamentos atribuídos aos personagens de “Las amigas”. Não seriam certas imagens que podem compor com imaginários através do enredo de La frontera um transparecer de posicionamentos intelectuais do próprio Carlos Fuentes sobre as relações de alteridade suscitadas no romance? Tais posicionamentos parecem responder pela utilização, pela transposição e interposição literária de intersecções identitárias, às quais denomino, dada a observação de seu uso em La frontera de cristal, de “mex-(anglo)-chicanidades”. No romance de Carlos Fuentes ora trabalhado sobressaem certas ações na escolha de personagens que terminam por encarnar tipos ou tipificados são. Dentre tais ações vinculados estão, como tenho demonstrado até aqui, o desenvolvimento de situações narrativas por meio do tropo amplificado ao qual chamo de metáfora ampla e sua consequente interligação com a caracterização de personagens específicos através de metonimizações o mais das vezes hiperonímicas, verdadeiras sentenças e totalidades metonímicas que, por intermédio de outras ações de escolha narrativa, (re)desenham moldes identitários. São essas ações que interagem junto e com a metonímia em La frontera as que seguem: a descrição (recurso suscitador de imagem também fundamental no desenrolar e estabelecimento da metáfora ampla); o pinçar personagens para destaque; e a devida distinção que se opera na definição literária de seus traços, tanto físicos quanto comportamentais. Tudo indica, entretanto, que a busca por trabalhar literariamente a distinção de traços característicos, apesar da ficção em que se insere no romance aqui em evidência, obedece a uma continuidade, no texto ficcional, de todo um projeto intelectual de buscar respostas para entender, explicar a formação e ação da psique e da identidade do sujeito mexicano. Ocorre que esse fruto de um projeto de toda uma geração de intelectuais se dá, principalmente, via ensaio, esse gênero em que a habilidade de convencimento, de apanhamento nas redes de argumentos que cria e desenvolve o bom escritor se evidencia, deixando escapar, em contrapartida, a objetividade, o afastamento de seu objeto de estudo requerido para 169 observações de metodologia mais científica, de maior rigor científico e, portanto, menos subjetiva ou em que a subjetivação do autor, do pesquisador, veja-se minimamente marcada. Como já pude expor em pesquisa anterior, interferem, agem de modo mais incisivo sobre a ficção de La frontera de cristal as ideias, observações e posicionamentos ideológicos da ensaística dos intelectuais mexicanos Samuel Ramos [1934] (1963, 1984) e Octavio Paz [1950] (1959)83. Os ensaios do próprio Carlos Fuentes em seu El espejo enterrado [1992] (2010) completam a tríade que acaba por incidir na caracterização de imagens que na ficção de La frontera representam literariamente pretensos traços distintivos, já sejam do mexicano, do chicano ou do estadunidense. A tal incidência corresponde a criação de traços comportamentais e identitários potencializados na linguagem literária do romance, compondo verdadeiros conjuntos identitários que se entrechocam e se atravessam em intersecções de identidades. Esses delineamentos de distinção, ecos também dos posicionamentos ideológicos em que se baseiam, destacam-se no romance de Fuentes como conjuntos de marcas de identidade, podendo ser entendidos como mexicanidades e chicanidades que giram em torno do elemento anglo, e talvez o que possamos chamar de anglo-americanidades, como alteridade inimiga, em “guerra” aguçada nas relações fronteiriças que ultrapassam o entorno da região de fronteira que “co(m)partem” México e Estados Unidos, chegando a um nível de entendimento em que se tem a fronteira também, ou mais bem, como um problema cultural. Com o termo hifenizado “mex-(anglo)-chicanidades” quero, por fim, demonstrar que, na obra de Carlos Fuentes sobre a que debruço este estudo, tais conjuntos identitários são intersecções porque não se completam, não chegam a se completar porque entre um e outro está o elemento anglo, o evocado inimigo ianque, na voz que invoca um passado, também revolucionário 84, de exacerbada aversão ao estrangeiro. Mas, cabe pensar como eclodem, como tratadas são essas intersecções, essas “mex-(anglo)-chicanidades” e de que maneira criam, interferem ou se coadunam a imaginários prévios através e na literatura da obra em tela? Alguns pares contrastivos se apresentam como importantes pontos de observação para elucidação da maneira em que ocorrem, a disposição em que se dão as intersecções 83 Remeto o leitor ao segundo capítulo de minha Dissertação de Mestrado ¿Quién soy yo? A fragmentação do sujeito mexicano em La frontera de cristal (Universidade Federal Fluminense – UFF, 2010), onde discorro de modo mais abrangente sobre as correspondências que aqui não serão desenvolvidas em razão de que, na presente tese, a ênfase do recorte escolhido é voltada diretamente para o trato literário das correlações já verificadas e sua conseguinte influência e interferência sobre a formação e perpetuação de imaginários. 84 Remeto o leitor ao ensaio “De la independencia a la revolución”, de Octavio Paz, do seu El laberinto de la soledad (1950) [1959]. 170 abordadas. Tomemos por base dois interessantes personagens femininos da obra. São elas: a mexicana Michelina Laborde e Ycaza (depois, Michelina Laborde de Barroso) e a estadunidense Audrey. Em princípio, Michelina tem, ganha, merece maior destaque por parte da narrativa: só perde em protagonismo para a metáfora ampla que se desenha no conto que lhe concede o epíteto de “La capitalina”; e reaparece mais adiante no oitavo capítulo “La apuesta” 85 em descrição que encaminha o leitor para o olhar de um motorista recém-contratado por Leonardo Barroso, assim narrada em discurso indireto livre: “Esa mujer se imponía al señor Barroso, lueguito se notaba. Lo traía enculado, que ni qué” (FUENTES, (1995) [2007], p. 216). Porém, no último capítulo da obra, o conto “Río Grande, río Bravo”, pouco antes da morte de seu sogro-amante, em uma cena cuja imagem remete ao dramático episódio da morte de John F. Kennedy, a própria Michelina é já um sopro do esplendor que a narrativa tentou insistentemente conferir-lhe, estando agora, mesmo ao lado de don Barroso, “como si un ave largamente acariciada y consolada hubiese terminado por asfixiarse, muerta de tanta caricia, hastiada de tanta atención...” (Ibid., p. 276); mas é justo em “La frontera de cristal” – capítulo imediatamente anterior a “La apuesta”, onde ela aparece ainda com certo fulgor, e, repare-se, à visão de outro personagem – que Michelina é mostrada ainda mais apagada, mera acompanhante de luxo de seu poderoso amante, ela, agora, mero troféu em forma de gente. E no capítulo no qual sua luz se mostra menos acesa, a narrativa coiote de Fuentes parece ali opor-lhe um par contrastivo que, sem atravessar outros contos da trama romanesca como o faz Michelina, ganha em destaque e, talvez, um maior cuidado na representação. A personagem responde pelo nome de Audrey, a estadunidense executiva publicitária que fechará a metáfora ampla do cristal para a fronteira com Lisandro Chávez (outro ao qual tornarei). Em um primeiro momento, o topos físico de Audrey – quem vive em um “apartamento pequeno pero bien arreglado, hasta lujoso en muchos detalles” (FUENTES, (1995) [2007], p. 193) – é mostrado ao leitor como mais limitado do que o mundo que dá a conhecer a Michelina seu sogro e amante Leonardo Barroso. Porém, o universo interior da estadunidense se mostra mais firme e amplo para o leitor do que toda a agonia interna da alegorização barroca dos sonhos de Michelina. Assim, se em Michelina temos uma mulher casada por conveniência, debatendo-se, primeiro, entre a agonia e o desejo para, depois, 85 Outro conto da obra que fixa em uma imagem (o choque violentíssimo entre dois automóveis em um túnel na Espanha) o sentido do encontro impossível marcado em sua metáfora ampla, dessa vez a título de um encontrazo triádico (México, Espanha e Estados Unidos) traduzido na figura dos anseios de viagem e na nacionalidade dos personagens que morrem no acidente (Cf. FUENTES, (1995) [2007], p. 227). 171 apresentada ser como resignada, apagada, ensimesmada; em Audrey, tem-se uma mulher segura de si, uma mulher que toma posse de si após o fim de seu casamento: “Una mujer que se sentía libre (...). Había resistido al mundo externo. A su marido, ahora exterior a ella, expulsado de la interioridad, física y emocional, de ella” (FUENTES, (1995) [2007], 194). Enquanto isso, mesmo ao seguir sua participação, já no último capítulo da trama, a capitalina é não mais do que caricatura da imagem fetichizante com a qual foi composta. Ali, mortos a tiros o chofer e o seu amante, no mesmo carro está Michelina milagrosamente viva, gritando histéricamente, llevándose las uñas a la garganta, como si quisiera ahogar sus gritos, recordando sus lágrimas enseguida, quitándoselas con el codo, manchando de rimmel la manga del modelo de Moschino (Ibid., p. 277). Mas, não é com o trecho acima que a narrativa encerra a participação de Michelina. O narrador coiote, ao convocar (ele e a fronteira evocada) a falarem os personagens principais do romance no texto-rio que findará o texto, em um contraste interessante com a liberdade sentida pela convicta estadunidense Audrey ao separar-se do marido, dá conta à mexicana Michelina de algo talvez punitivo que lhe acontecera, convocando-lhe e aconselhando-a da seguinte maneira: “habla Michelina Laborde, deja de gritar, piensa en tu marido el muchacho abandonado, el heredero de don Leonardo Barroso” (FUENTES, (1995) [2007], p. 279 – grifo do texto). A citação acima termina por trazer de volta outro personagem que encarna algumas das mexicanidades atribuídas ao mexicano na busca de definições identitárias, inclusive, incitadas a serem superadas pelo pensamento intelectual ao qual se integra a linha ensaística de Fuentes. Se retornamos ao primeiro capítulo pela força indutora que produz a remissão a Michelina, podemos recordar que Mariano Barroso, ainda futuro marido da capitalina, era um jovem solitário, triste, afeito às sombras e que, conforme aponta em certo momento a narrativa, [S]in más compañía que esos indios naturales e indiferentes a las perversiones de la naturaleza, que algunos llamaban pacuaches y otros “indios borrados”, como él, indios invisibles, seres miméticos de ese gran lienzo de imitaciones y metamorfosis que es el desierto (Ibid., p. 27) Parece claro haver um jogo de relativização levado a cabo no trecho anterior entre mimese, representação literária e real empírico como base para a burla descrita em forma de ficção. Porém, a meu ver, sobressaem as impressões dedicadas a descrever o indígena mexicano e sua aproximação para com o comportamento de identidade mexicana. Essa mesma proximidade é proposta também com a empregada mexicana Josefina de “Las amigas”. Nesse conto já aqui abordado, a estadunidense senhorita Amy tem em telão de fundo 172 a seus mais diversos preconceitos toda uma austeridade a qual em prática a narrativa dá mais a compreender como atitudes dignas e mesmo próprias (e porque não dizer até mesmo compreensíveis) de uma mulher de sua classe, sua idade, suas ideias, e de sua nacionalidade; sobrepondo-se a seu vasto repertório de estereótipos o que, ao fim, cai-lhe como carga: sua solidão forçada. Em contrapartida, destaca-se, ainda, a oposição da aparente “vitória” altiva da mexicana diante da amargura de sua patroa. Há que se reparar, contudo, que tal “superioridade mexicana” se dá pela subserviência, pela doçura, pelo calar e resignar-se, falando pouco, embora às vezes de modo desconcertante (nunca ofensivo), somente na hora certa, em uma mimese de comportamento que nos remete, também se estendemos tal observação ao fragmento anteriormente citado, ao mito do bom selvagem (Cf. ROUSSEAU, 1963), com o adendo curioso da visão, do olhar estrangeiro ao outro, o selvagem, que a orquestração desse mito nos transmite. Há que se reparar, inclusive, que sucede, ao mesmo trecho onde a narratividade usada em “Las amigas” aponta que a primeira vez que Miss Amy a observa a vê e a descreve como uma índia, outro em que a estadunidense, conforme descreve a narrativa, teria pensado que Josefina tinha algo a se destacar: “Tenía una virtud. Era silenciosa. Entraba y salía de la recámara de la señora como un fantasma, como si no tuviera pies” (FUENTES, (1995) [2007], p. 161). No já referido penúltimo conto, o oitavo capítulo “La apuesta”, Fuentes deixa entrar em seu narrado uma crítica que relativiza algo dos caracteres que aproxima de modo mais depreciativo do que propriamente sem juízo de valor traços do elemento indígena à constituição da identidade nacional mexicana. Ali, a personagem Encarnación, uma turista espanhola de férias no México, indaga ao personagem Leandro, um taxista mexicano, se os espanhóis haviam de fato sido assim tão maus quanto demonstrava a observação em um museu que visitavam de alguns murais de Diego Rivera. A resposta dá princípio a um interessante diálogo, cujo fragmento exponho abaixo: – Eran muy valientes – dijo Leandro –. Tenían una gran civilización y los españoles la destruyeron. – Pues entonces si tanto los quieren, a tratarlos bien hoy mismo – dijo con su tono duro y realista Encarna –, que yo los veo más maltratados que nunca (Ibid., p. 211). Relativizados, sim. Em tom de crítica, sim. Ocorre que os posicionamentos do intelectual Fuentes ora se apresentam, surgem, insurgem-se em sua ficção em tom de debate, nela debatendo-se. Ainda assim, a visão da necessidade de superação de traços do indígena em características tidas como constituintes e definidoras de marcas do sujeito mexicano é algo 173 que se lê de modo explícito em nomes como Samuel Ramos e Octavio Paz e, talvez, de forma mais matizada em Carlos Fuentes, espécie de herdeiro das posições ideológicas desses que bem podem ser entendidos como seus antecessores. E não é apenas isso. Mesmo as características que dedicadas são a personagens femininas como aquelas aqui destacadas, fetichização do corpo, exagerada idolatria, servidão, apego a crendices se inserem no lugar comum de um imaginário sobre as mexicanas que as relega, desde a figura de Malinche86 à Virgem de Guadalupe, à mera dicotomia dos extremos binários: Virgem ou vadia, Santa ou prostituta (Cf. TROINA, 2005, p. 93). Ainda outros atributos fossilizados, cristalizados como próprios de uma pretensa identidade mexicana, difundidos e discutidos também por toda uma geração de intelectuais da qual Fuentes faz parte, acabam por encontrar eco nas representações de La frontera. É dessa maneira que, ao longo do romance, personagens encarnam comportamentos, ações, sentimentos e estados de ânimo durante um largo tempo (e mesmo ainda hoje) atribuídos como marca do mexicano, já sejam eles: cortesia, mescla de alegria (o gosto exagerado pela festa) e tristeza (herança de sua formação no passado e de sua condição e condução histórica sob a mão de maus governos), circunspecção, isolamento, complexo de inferioridade, fuga, sombra, solidão. Muitos desses aspectos já puderam ser observados a partir do contato com um bom número dos personagens trazidos à luz em várias das citações aqui trabalhadas. Porém, mesmo nas relações de escolha em que a ação narrativa proposta é a de distinção do sujeito mexicano, ela se dá em tom de separação desse sujeito que se quer apresentar diferenciado de uma suposta totalidade mexicana representada em linhas comumente depreciativas e, quando muito, em tom de equiparação a um outro estrangeiro. De volta ao conto “La frontera de cristal”, lá encontramos um Lisandro Chávez cuja única marca de um aparente aspecto físico “tipicamente” mexicano seria seu “bigote espeso y recortado” (FUENTES, [1995] 2007, p. 181 – grifo meu), oposto ao estereótipo que a narrativa informa que a don Barroso o devorava todo por dentro: “campesino con sombrero laqueado y bigote ralo” (Ibid., p. 186 – grifo meu). É por isso que em mais um momento de destaque transferido pela narrativa a Lisandro através dos olhos de seu empregador, informa86 Vale, porém, ressaltar que a figura da Malinche em La frontera de cristal, traz na figura da personagem Marina, do quinto conto “Malintzin de las maquilas”, um misto de tristeza, de sonhadora ingênua, ao mesmo passo, preservando o caráter de mediadora atrelado ao sentido de intérprete da Malinche histórica. Fuentes chega mesmo a subverter certa visão tradicional a respeito de La Malinche. Assim é que, no quinto capítulo de seu romance, Marina é a traída, em vez de ocupar o papel de traidora que comumente é transferido àquela que foi intérprete de Cortés. Ocorre, porém, que, ainda assim, esse caráter de traição, conforme o observado, termina por ser transposto a outros personagens femininos da obra. 174 se que don Leonardo em mais uma de suas máximas “deseó que todos fueran como este muchacho obrero pero con cara de gente decente, con facciones finas pero un mostachón como de mariachi bien dotado y, caray, menos moreno que el propio Leonardo Barroso” (FUENTES, [1995] 2007, p. 185 – grifo meu). Será este mexicano cuidadosamente pinçado, distinguido que a narrativa levará para diante da executiva estadunidense Audrey. Será Lisandro e, não, nenhum dos outros mexicanos contratados pelo senhor Barroso, esses “todos tan prietos, tan de a tiro nacos” (Ibíd.); afinal, era aquele “el primer viaje a Nueva York. ¿Qué clase de impresión vamos a hacer, compañero?” (Ibid., p. 181). E é exatamente essa classe de boa imagem que a narrativa coiote parece delegar a Lisandro, enxergando ser somente ele capaz de causar tamanha boa impressão aos olhos do estrangeiro hiponimizado em Audrey, cujo olhar refletido na narrativa nos transmite que El trabajador era guapo (…), tenía esa actitud de caballerosidad insólita y casi insultante, fuera de lugar, como si abusara de su inferioridad, pero también tenía ojos brillantes en los que los momentos de tristeza y alegría se proyectaban con igual intensidad, tenía una piel mate, oliva, sensual, una nariz corta y afilada, con aletas temblorosas, pelo negro, rizado, joven, un bigote espeso. (FUENTES, [1995] 2007, p. 199) Mas, acima, enfim, enquanto a distinção física da descrição o destaca, características outras voltam a cair no lugar comum relegado a imaginários sobre a identidade mexicana: primeiro, o sentimento de inferioridade que se manifesta perpetuado ou se lhe atribui, repetido ainda no final do conto, quando, em resposta ao nome de Audrey escrito ao contrário, o narrador informa que Lisandro, em vez de ter feito o mesmo, teria escrito sua nacionalidade “Ciegamente, sin reflexionar, estupidamente quizás, acomplejadamente, no lo sabe hasta el día de hoy” (Ibid., p. 202 – grifo meu); depois, tristeza e alegria mescladas com igual intensidade, a mesma mescla que já se mostrara “enxergada” pela própria Audrey momentos antes da descrição narrativa de sua observação anterior, quando ela ainda buscava “una palabra que describiera la actitud, el rostro, del trabajador que limpiaba las ventanas de la oficina” (Ibid., 198). Encontrando ela esta palavra [C]on un relampagazo mental. Cortesía. Lo que había en este hombre, en su actitud, en su distancia, en su manera de inclinar la cabeza, en la extraña mezcla de tristeza y alegría de su mirada, era cortesía, una ausencia increíble de vulgaridad (Ibid., p. 198 – grifo meu) A incrível ausência de vulgaridade descrita traz à lembrança nova remissão à uma espécie de novo olhar estrangeiro que desde, através do mito eufemístico do bom selvagem, tenta mudar, suavizar, tornar mais terna, compreensível sua visão acerca dos sujeitos 175 colonizados, dominados, subjugados. Porém, o lugar-comum da subserviência, da cabeça baixa e da cortesia que eufemisticamente faz parte de um imaginário social que recai sobre o México ainda se faz presente, imagem que se repete, na qual se insiste na narrativa, inclusive, quando a estadunidense (seguindo a trilha de traduções do inglês ao espanhol deixada pelo narrador coiote e tradutor fuentesiano) compara Lisandro com o marido de quem acabara de separar-se: “Dios mío, ¿con quién he estado casada?, ¿cómo es posible?, ¿con quién he estado viviendo?, y luego lo encontró a él y le atribuyó todo lo contrario de lo que odiaba en su marido, la cortesía, la melancolía” (FUENTES, [1995] 2007, p. 201 – grifo meu). E incluída no trecho acima a melancolia é importante chamar a atenção para o fato de que, no tocante aos traços que costumam ser outorgados como caros a, indissociáveis da personalidade ampla e geral do mexicano, cabem ou nela, melancolia, explicam-se características outras, quais seriam a mescla entre tristeza e alegria, a própria cortesia, a resignação e o gosto pela solidão. Antes, porém, que me detenha algo mais sobre o apelo desse caráter melancólico conferido pelo olhar intelectual (e volto a citar aqui a conexão que se opera entre partes da linha de estudo adotada por Ramos, Paz e Fuentes) dedicado a buscar desvendar, dissecar uma espécie de “ethos” mexicano; antes disso, parece-me valer a pena observar como a narrativa distingue, separa esse mesmo sentido de melancolia do estadunidense, como quando da descrição de um pensamento de Lisandro sobre o olhar de Audrey: No esperaba encontrar melancolía en los ojos de una gringa. Le decían que todas eran muy fuertes, muy seguras de sí mismas, muy profesionales, muy puntuales, no que todas las mexicanas fueran débiles, inseguras, improvisadas y tardonas, no, para nada. Lo que pasaba era que una mujer que venía a trabajar los sábados tenía que serlo todo menos melancólica, quizás tierna, amorosa. Eso lo vio claramente Lisandro en la mirada de la mujer. Tenía una pena, tenía un anhelo. Anhelaba. Eso le decía la mirada: – Quiero algo que me falta. (Ibid., p. 198) A falta com a qual se encerra o pensamento de Lisandro é transferível para a metonimização que se dá no início do discurso que lhe confere a narrativa. Note-se que ao colocar-se na parte Audrey atributos de um todo em “Le decían que todas eran muy fuertes, muy seguras de sí, etc.”, o narrado afasta de modo metonímico, pela figura de Lisandro, a melancolia não apenas de Audrey, mas, por conseguinte, de um todo feminino estadunidense teoricamente homogêneo em não ser melancólico, o qual se opõe ao mesmo processo metonímico que se volta para as mexicanas; nesse caso, mesmo a frouxa tentativa de amenização inserida em “no que todas las mexicanas fueran débiles, inseguras, improvisadas y tardonas” não dá conta de tirar o peso que recai minimamente sobre uma amplidão da qual é fácil inferir que, se não todas, várias assim o são, num encaminhamento a um imaginário 176 reforçado pelo peso negativo dos substantivos da parte mexicana do período gramatical supostamente dedicado a dizer que “no que todas (...) para nada”. Eis, assim, mais um exemplo, na obra de Fuentes em destaque, da relação de troca entre hiponímia e hiperonímia como características de especificidades literárias de ênfase e potencialização de elementos colhidos e re(a)presentados a partir do real vivido, os quais podem coparticipar e contribuir com a constituição de imaginários. Toca também em parte dessa contribuição literária e intelectual para a formação de imaginários sociais o sociólogo e antropólogo social mexicano Roger Bartra. É assim que começa a compor sua análise sobre o que chama de mito da identidade do mexicano com a publicação de sua obra La jaula de la melancolía (1987), cujo sugestivo título se apresenta desde já como um contraponto que sugere, ainda assim, uma ponte de diálogo e questionamentos levantados para a visão, entendida por muitos estudiosos contemporâneos como fatalista em certos pontos, esquadrinhada por Octavio Paz em seu El laberinto de la soledad, de Octavio Paz (1950, 1959). Mas, é em um interessante e posterior artigo seu, “El método en la jaula: ¿cómo escapar del círculo hermenéutico?” (2000) que Roger Bartra direciona a possibilidade de compreensão de mitos, aos quais se une também o da identidade do mexicano, a buscar entendê-los desde “los cambios que sufre este conglomerado de figuras, ideas, metáforas, fábulas y leyendas a lo largo de la historia occidental” (BARTRA, 2000, p. 74). Ainda sobre o mito da identidade do mexicano, Bartra informa que da espécie de mapa (de formas não totalmente definidas em La jaula de la melancolía) da evolução que ele traçou de tal mito, pode-se concluir que [L]as peculiaridades de este mapa no proceden de un código estructural impreso en la mente de los mexicanos; los hitos, los meandros, los caminos, las fronteras y las conexiones se han ido formando gracias a una especie de selección cultural; no en un proceso determinado por instrucciones preestablecidas en un sistema simbólico de mensajes. No hay una sustancia fundamental de la identidad. (BARTRA, 2000, p. 76) Ao mesmo passo que volta a tocar na vinculação entre figuras da intelectualidade mexicana como Samuel Ramos e Octavio Paz e em sua ação de incidência sobre a reverberação e propagação do mito da identidade do mexicano (Cf. BARTRA, 2000, p. 75), no artigo para o qual chamo a atenção Bartra abre também através de seus argumentos vias para uma melhor compreensão do processo cultural do qual tomaram parte autores como os citados. É dessa maneira que o autor recomenda interessante caminho ao dizer que “podemos optar por escaparnos del círculo hermenéutico, para intentar comprender las identidades como parte de um sistema inconsciente que actúa en los escritores mexicanos sin que ellos se hayan 177 percatado” (BARTRA, 2000, p. 77). Tal argumentação dá margem para algumas observações que encerrarão o presente tópico. Contudo, dão margem, ainda, para que a partir da ambivalência irônica desse “sem dar-se conta”, eu possa, enfim, voltar meus argumentos para as intersecções identitárias tratadas nesse segmento, razão pela qual, expostos os apontamentos da ficção de Fuentes em confluência com a re(a)presentação de mexicanidades, volto agora o olhar para o extremo da hifenização de identidades que proponho poderem ser resgatadas desde a leitura de seu romance. Toco agora desse modo nos traços de chicanidade ficcionalizados em La frontera de cristal. Os caracteres que em La frontera apontam para uma aproximação ficcional às linhas definidoras de uma pretensa identidade chicana respondem pelo nome de José Francisco, um personagem chicano, apresentado na sétima das subseções narrativas em que está dividido o último conto “Río Grande, río Bravo”. É interessante, no entanto, como em José Francisco a tinta principal que lhe é concedida se mostra mais pelo viés do que parece ser, da parte de Fuentes, mais um domínio maior de (re)conhecimento do valor e força de uma identidade cultural chicana do que propriamente um amplo conhecimento de identidades chicanas, do sujeito chicano. Assim, explico que é pela cultura e pela pesquisa e conhecimento literário de que dispõe Fuentes que ele compõe seu personagem, encarnador de uma, em realidade, homenagem ao universo chicano. Já em El espejo enterrado, quando se debruça a tratar do que chama de terceira hispanidade, Carlos Fuentes afirma que ela é, sobretudo, um fato cultural. E enfoca ainda o fato de que toda uma civilização foi criada nos EUA com um pulso hispânico (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 445-6). O autor, então, complementa seu conhecimento cultural tocando, da seguinte maneira, na literatura que emerge dessa mescla: “Aquí ha nacido una literatura que subraya los elementos autobiográficos, la narrativa personal, la memoria de la infancia, el álbum de fotos familiares” (FUENTES, [1992] 2010, p. 446). De fato, o José Francisco de La frontera condensa em si uma cisão com a tentativa de encaixe da diferença chicana de um lado ou outro das pontas mexicana ou estadunidense de nacionalidade. Forçando destacar a diferença que o personagem representa, o narrador sugere que a presença desse chicano costumava causar incômodo porque “Traía algo que no podía darse sólo en uno u outro lado de la frontera, sino en ambos lados” (FUENTES, [1995] 2007, p. 264). E da cisão com o pensamento de que teria que identificar-se com um aqui ou um lá é que José Francisco chega a uma certeza bem representativa das convicções ideológicas de toda uma classe intelectual chicana: “Yo no soy mexicano. Yo no soy gringo. Yo soy chicano. No soy gringo en USA y 178 mexicano en México. Soy chicano en todas partes. No tengo que asimilarme a nada. Tengo mi propia historia” (FUENTES, [1995] 2007, p. 264). Mas, estabelecidos os traços identitários de aparente representação da postura de um todo na parte José Francisco, ele ganha, na descrição narrativa de seus caracteres e seus atos, ares que se voltam uma vez mais para a homenagem à cultura; em especial, para a literatura chicana, pois esse personagem chicano do último capítulo é no romance de Fuentes um escritor que, montado em uma moto Harley-Davidson, levava aos dois lados da fronteira, além de seus próprios manuscritos, “literatura de los dos lados, para que todos se conocieran mejor (...), para que todos se quisieran un poquito más, para que hubiera “un nosotros” de los dos lados de la frontera...” (FUENTES, [1995] 2007, p. 266-7 – grifo do texto). Assim é que em uma dessas suas jornadas, diante de uma manifestação ativista do lado mexicano da fronteira, José Francisco se vê interpelado por agentes fronteiriços de ambos os lados. É quando, procurando por algo que incriminasse ou ligasse o chicano à manifestação, os policiais vasculham suas mochilas e atiram ao ar todos os seus papéis, os quais [S]e iban volando nomás del puente al cielo gringo, del puente al cielo mexicano, el poema de Ríos, el cuento de Cisneros, el ensayo de Nericio, las páginas de Siller, el manuscrito de Cortazar, las notas de Garay, el diario de Aguilar Melantzón, los desiertos de Gardea, las mariposas de Alurista, los zorzales de Denise Chávez, los gorriones de Carlos Nicolás Flores, las abejas de Rogelio Gómez, los milenios de Cornejo (Ibid., p. 267 – grifo meu). Dessa extensa e interessante lista que salta dos papéis dispersados do personagem de Fuentes, o nome que destaquei se refere ao professor universitário, promotor cultural e escritor chicano Ricardo Aguilar Melantzón (1947-2004). Aparentemente apenas mais um dos nomes citados das literaturas de ambos os lados, a figura de Melantzón é, na verdade, homenageada e retomada para dar vez à representação do chicano na ficção de La frontera. Ou seja, José Francisco representa a busca fuentesiana por compor um personagem que encarnasse o espírito de atitude chicana pelo autor encontrado na relevante figura de Ricardo Aguilar. Tal observação encontra respaldo em importantes nomes da cena literária da região de fronteira México-EUA. O premiado escritor e fomentador de oficinas literárias Joaquín Bestar Vásquez (2001, p. 92) afirma inclusive que “El cuento ‘Puente negro’, incluido en Aurelia, inspiró a Fuentes para escribir parte de La frontera de cristal”, opinião compartilhada também pelo Doutor chihuahense José Manuel García-García (Cf.: 2004, p. 10)87, Professor Associado 87 Aurelia (1990) é um livro de Ricardo Aguilar no qual oito contos estão interligados para narrar histórias de angústia, morte e paixões desiludidas desenroladas ao redor da fronteira e dos bosques e desertos de Chihuahua (México) (Cf. GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 10). “Puente Negro” é um dos contos da obra e nele o narrador 179 da Universidade do Estado do Novo México (EUA), quem, em ensaio dedicado à memória de Ricardo Aguilar, aclara ainda que Ricardo vivía en Ciudad Juárez, y tenía que cruzar todos los días a El Paso (…). Por 13 años cumplió su rutinario viaje, su vuelo en moto, mitificado por Carlos Fuentes en la novela La frontera de cristal, donde Ricardo es un personaje que cruza el puente y va dispersando libros, folletos e posters por la ciudad, anunciando eventos culturales y propuestas de acercamiento entre los escritores chicanos y los escritores del lado mexicano (GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 4). As propostas de aproximação tocadas por García-García abrangem um momento de seu discurso no qual o autor toca em Ricardo Aguilar já mitificado, conforme seus termos, no personagem fuentesiano José Francisco. Mas, o reflexo anterior se deixa transparecer mais ainda quando o mesmo autor agradece os feitos da pessoa cujas ações de fato parecem ter incidido sobre o romance de Fuentes: Por Ricardo, los aquellos chavos de la Generación de Nod juarense, conocimos a Elena Poniatowska, Carlos Monsiváis, Carlos Fuentes, Los Taibo, José Agustín y otros más. Los chicanos fueron a juaritos a leer sus poemas, y los juarenses fueron a El Paso o Albuquerque a leer los suyos, apoyados siempre por RAM 88 promotor cultural. (GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 6 – grifo meu) O fato de que conste o nome de Carlos Fuentes à lista das literaturas que eram conduzidas aos dois lados da fronteira por Ricardo Aguilar é indicador de uma reciprocidade de gratidão que em Fuentes se vê transfigurada na representação ficcional da pessoa Melantzón na personagem José Francisco. É assim que José Francisco, mais do que trazer em sua representação uma aproximação a chicanidades, ao multifacetado prisma de identidades chicanas ao longo das muitas fronteiras que separam e unem México e EUA, condensa em verdade algo que mais se aproxima de representar uma identidade literária chicana, ou aspectos das linhas de pensamento (e comportamento) que ainda hoje a conformam, sempre com novas adequações, contribuições e discussões. O personagem José Francisco em La frontera de cristal condensa, assim, mais uma ideologia intelectual do que um sentimento popular homogêneo. As posições dele para com as ações de empurre “indireto” do lado mexicano e de contenção entre franca, aberta, mas também dissimulada, do lado estadunidense, podem ser enxergadas de modo mais agudo quando, diante da manifestação por trabalho que assistia e ante ao voo de seus escritos provocado por agentes de ambos os lados que o posicionam como um sujeito entre-lugares, a recorda sua juventude em Ciudad Juárez (México) enquanto espera seu turno na ponte que se usa para cruzar-se a El Paso (EUA) (Cf. GARCÍA-GARCÍA, 2004, p. 11). A julgar pela recuperação e ambientação ficcional em La frontera de cristal tanto da figura do motoqueiro-escritor Ricardo Aguilar quanto da ponte que separa México e EUA entre Juárez e El Paso, ambos os autores parecem ter razão em buscar e encontrar raízes de inspiração de parte de La frontera na obra e na pessoa de Melantzón. 88 Ricardo Aguilar Melantzón. 180 narrativa conta que “José Francisco lanzó un grito de victoria que rompió para siempre el cristal de la frontera...” (FUENTES, [1995] 2007, p. 268). Nesse ato de escrita simbólica retorna o cristal, dessa vez como metáfora representativa de algo demasiado frágil a separar as relações de alteridade tripartidas pela fronteira, deixando-se subjazer a representação de um ideário chicano de união contraposto à política de separação de ambos Estados-nação, os Estados Unidos Mexicanos e os Estados Unidos da América do Norte. A mesma “linha de pensamento” ficcionalizada pela linguagem literária de Fuentes se vê refletida na leitura anterior de Ricardo Aguilar Melantzón em seu primeiro livro de contos Madreselvas em flor (1987), onde se extrai a opinião de seu autor quando sobre a fronteira Mex-USA ele se posiciona da seguinte maneira: “la realidad de esta frontera no es la separación artificial sino la unión a pesar de los gobiernos” (AGUILAR MELANTZÓN, 1987, s/p.). No entanto, se a chicanidade da ponta de intersecções identitárias de La frontera de cristal está mais próxima de sua manifestação como pensamento e atitude de uma intelectualidade literária chicana aflorada na recuperação mimética do personagem José Franciso de “Río Grande, río Bravo”, o mesmo não se dá de forma tão patente em “El despojo”, terceiro capítulo da obra. É ali que “mexicanidades” e “chicanidades” se diluem, atravessam-se e interpõem-se diante do que seriam caracteres representativos de angloamericanidades, sendo, com efeito, ao redor do prefixo “anglo” que girarão, no conto, os conjuntos de pretensa identificação hispano-americana, em tom recuperado de rivalidade histórica. O verbete “anglo” empresta suas definições ao e aos que provêm da Inglaterra, ao natural ou habitante da Inglaterra, por remeter-se à parte da origem de suas gentes junto aos povos anglo-germânicos. Por conseguinte, tendo sido os Estados Unidos colonizados por essa mesma Inglaterra, cujas origens étnicas remontam a povos que difundiam e defendiam um pretenso purismo essencialista branco de suas ascendências e procedência, é comum que ainda hoje se refira ao estadunidense norte-americano branco como anglo, anglo-americano ou anglo-saxão. Bastante generalizador, entretanto, o termo é comumente utilizado no discurso para referir-se a uma suposta totalidade branca, mesmo àqueles que passam longe de reclamar para si qualquer purismo racial branco (inclusive descendentes de outras migrações europeias que não a colonizadora inglesa), em oposição ao questionável título de minorias para grupos étnicos outros cuja nacionalidade estadunidense recai o mais das vezes sob os epítetos normalmente hifenizados, e não menos generalizadores, de afro-americanos, hispano- 181 americanos (também: latinos, hispanos, hispânicos, nuyoricans, chicanos etc.)89, asiáticoamericanos (asian americans) etc. Em La frontera de cristal, o elemento composicional “anglo” quando não assim referido aparecerá sob os sinônimos “ianque”, “gringo” ou mesmo “anglo-saxão”; mas, à guisa de toda uma rivalidade que remontará aos tempos da grande perda de territórios mexicanos para os EUA em meados do século XIX, evocando em sua ficção uma visão recuperada do exacerbado nacionalismo mexicano pós-Revolução de 1910 que engloba esse “anglo” como uma totalidade inimiga em solo invadido, roubado e tomado à força. E é em “El despojo” que essa aversão fundada em ranço e num passado de disputas territoriais e consequentes choques culturais se vê problematizada, produzindo uma grande imagem para o conto a partir do uso de mais uma metáfora ampla e aproximando-se a imaginários através da metonímia. Em princípio, com humor o narrador coiote de Fuentes toca na rivalidade histórica retomada pelo divagar de Dionisio “Baco” Rangel, um chef de cozinha mexicano de bastante sucesso nos Estados Unidos, êxito, porém, que o remordia porque, conforme nos apresenta a narrativa: Dionisio alegaba que él no era anti-yanqui (…), por más que no hubiese niño nacido en México que no supiera que los gringos, en el siglo XIX, nos despojaron de la mitad de nuestro territorio, California, Utah, Nevada, Colorado, Arizona, Nuevo México y Texas. La generosidad de México, acostumbraba decir Dionisio, es que no guardaba rencor por este terrible despojo, aunque sí memoria. En cambio, los gringos ni se acordaban de esa guerra, ni sabían que era injusta. Dionisio los llamaba "los Estados Unidos de Amnesia". Con humor, pensaba a veces en la ironía histórica en virtud de la cual México perdió todos esos territorios en 1848 por culpa del abandono, el desinterés y la poca población. Ahora (sonreía pícaramente el elegante, bien vestido, distinguido y plateado crítico) estábamos en el trance de recuperar la patria perdida gracias a lo que podría llamarse el imperialismo cromosomático de México. (FUENTES, [1995] 2007, p. 64-5) Entretanto, a ironia narrada de Dionisio começa a ganhar tons mais dramáticos quando o chef mexicano leva seu divagar à contemplação, iniciando a narrativa a plantar sua metáfora ampla ao metonimizar a ideia base dessa metáfora em um trecho no qual se refere ao modo de vida estadunidense da seguinte maneira: Abundancia. Sociedad de la abundancia. Dionisio Rangel quiere ser muy franco y admitir ante ustedes que él no es un asceta ni un moralista. (…) Pero su pendiente culinaria, tan exquisita, tiene otra ladera grosera, posesiva, de la cual el pobre crítico de la gastronomía no se siente culpable, pues es apena – les ruega que lo comprendan – víctima pasiva de la sociedad de consumo norteamericana. (Ibid., p. 69 – grifo meu) 89 Para um maior aprofundamento da questão, remeto o leitor para a obra de referência Nosotros in USA, da Professora Doutora Sonia Torres (2001). 182 O fragmento acima, no entanto, não seria por si só, apesar de conter sentenças hiperonímicas que supõem partes representadas como se um todo fossem, suficiente para se aproximar de imaginários caso a verdadeira parte, a imagem à qual se destina a metonímia nele contida não fosse, após variadas digressões, enfim revelada em teor representativo de metáfora. Dessa maneira, o narrador conta que curiosidades próprias do tédio (embora todas as atividades que o trabalho lhe proporcionava) vivido por ele como homem de meia-idade [C]ondujeron a Dionisio “Baco” Rangel a su más reciente manera de entretenimiento en California. Pasó semanas sentado frente a esos lugares que ponían a prueba su paciencia y su buen gusto – los MacDonalds, Kentucky Fried Chicken, Pizza Hut y, abominación de abominaciones, Taco Bell – con el propósito de contar a los gordos (y a las gordas) que entraban y salían de esas catedrales del mal comer. Llegó armado de estadísticas. Hay cuarenta millones de personas obesas en los EEUU, más que en cualquier otro país del mundo. Gordos, pero en serio: masas de color de rosa, almas perdidas detrás de rollos y más rollos de carne, hasta hacer perdedizas, también, características como los ojos, la nariz, la boca, el sexo mismo. Dionisio veía pasar a una gorda de trescientos cincuenta libras de peso y se preguntaba dónde quedaría la veta de su placer, cómo se llegaría, entre las múltiples lonjas de sus muslos y sus nalgas, al santoyo de su libido. (FUENTES, [1995] 2007, p. 74) Se antes, a metonimização proposta por Fuentes necessitava de uma parte mais específica, ela encontra na figura representativa dos gordos e gordas que entravam e saíam das catedrais do mal comer a completude, da imagem proposta, em uma metáfora que, de igual maneira, só se completa ligando sua parte destacada à generalização anterior contida em “Sociedade da abundância”. Contudo, a mexicanidade suposta na aversão, no ranço e em um rancor histórico e a hipotética chicanidade de haver-se integrado e assimilado em “solo gringo” são problematizadas de maneira bastante peculiar e inteligente na continuidade de desenvolvimento da metáfora ampla que atravessa e toma conta do capítulo, quando o narrador conta que, após tanta observação: [S]in embargo, perversa, inexplicablemente, Dionisio "Baco" Rangel, al ver el paso multitudinario de las gordas, empezó a sentir una comezón sexual comparable a la de la primera excitación, dulce, imprevisible, alarmante, inexplicable, de los trece años. No, no la primera masturbación, hecho ya volitivo y racional, sino el florecer primero del sexo, asombroso, impensable antes de que sucediera... El primer semen derramado por el joven que en ese momento era siempre el primer hombre, Adán, nada, nadando en semen. Esta intuición perturbó profundamente al solitario e itinerante gourmet. (Ibid., p. 75) Esse incômodo que lhe causa o súbito desejo, a súbita atração pelo que antes lhe era alvo de escárnio e rechaço faz com que se revelem em Dionisio outras supostas mexicanidades, outras supostas características distintivas da identidade do mexicano: o medo, e a fuga. Para não se entregar e integrar à sociedade da abundância, Dionisio troca seu inesperado desejo sexual pelo alheio pelo desejo de comer em um bom restaurante, e ali 183 sucede a representação de situações imaginárias que eclodem na imaginação furtiva da figura de um gênio que lhe concederia o desejo de uma mulher para cada prato pedido pelo chef mexicano. Ocorre que as mulheres imaginárias que surgem servem para colocar uma série de convicções, entre elas algumas identitárias, e pré-conceitos de “Baco” Rangel em xeque, sendo a última delas, outra mulher descrita como imensamente gorda (a imagem repetida, ainda que aparentemente contestada pela ironia da situação criada pela ficção), a qual provoca nova fuga do chef, que decide ir embora do restaurante. É essa fuga a qual outra sucederá, quando, desesperado, Dionisio vê seu México estereotipado em supostas roupas típicas colocadas em um mexicano dentro da vitrine de uma loja da American Express. A visão então desencadeia uma série de eventos que culminam com a condução à força do “mexicano típico” até a fronteira de volta ao México, onde Dionisio le dijo a su compañero, todo, despójate de todo, despójate de tu ropa, como lo hago yo, ve regándole todo por el desierto, vamos de regreso a México, no nos llevamos ni una sola cosa gringa, ni una sola, mi hermano, mi semejante, vamos encuerados de vuelta a la patria, ya se divisa la frontera, abre bien los ojos, ¿ves, sientes, hueles, saboreas? Desde la frontera entraba un fuerte olor de comida mexicana, imparable. (FUENTES, [1995] 2007, p. 95 – grifo meu) Dessa forma, veem-se tratadas, ficcionalizadas e problematizadas no conto comportamentos, atitudes que buscam recuperar pela ficção supostas mexicanidades e hipotéticas ações denotativas, demonstrativas de, para além do prisma de identidade literária representada no José Francisco de “Río grande, río Bravo”, chicanidades, potencializadas na repetição da metáfora para a grandiosidade sedutora dos EUA na figura metonímica das personagens descritas como gordas imensas e que seriam típicas personificações da sociedade de abundância estadunidense. O típico retorna também na figura do mexicano que, junto com Dionisio, precisa ser orientado de volta ao seu México pela fronteira, despojando-se ambos de tudo o que lhes fora gringo, incluindo aí seus desejos. Às “mex-(anglo)-chicanidades” assim as expressei porque em La frontera mexicanidades e chicanidades são definidas na representação da obra, mas não se diluem totalmente, nem por isso se completando, haja vista que no romance de Carlos Fuentes orbitam em forma de imagens literárias ao redor de imagens literárias outras de angloamericanidades, num imaginário que supõe o elemento anglo generalizado, sobretudo em “El despojo”, como alteridade inimiga gringa, ianque. 184 4 APROXIMAÇÕES FRONTEIRIÇAS: SIMILARIDADES E DIFERENÇAS O presente capítulo tem por objetivo dar passo à análise crítica em conjunto dos romances trabalhados em separado nos dois capítulos que o antecederam. Tomo por aproximação o entendimento de que duas obras podem avizinhar-se, por assim dizer, no processo de comparação que se decida fazer entre elas, podendo resultar desse procedimento do comparatista a evidência tanto de similaridades quanto de diferenças. Por haver sido o primeiro capítulo da presente tese um segmento todo voltado para apresentar as linhas gerais teóricas que viriam a ser desenvolvidas no corpo do trabalho, pude, naquele momento, relacionar o raciocínio teórico em que me pauto com ambos os romances em tela. Depois, dadas às particularidades de cada obra, cada qual mereceu um determinado encadeamento teórico específico, algo que, contudo, não afasta a possibilidade de que o direcionamento justaposto no capítulo inicial retorne aqui de forma mais direta e compactada. Ao contrário do que sucedeu no primeiro capítulo, entretanto, a comparação retomada se verá ilustrada por exemplificações as quais, também em justaposição, visam tornar mais evidentes as aproximações até aqui apenas vislumbradas. 4.1 Da literariedade em ambas Literaturnost (em português, literaturidade ou literariedade) é um termo cunhado pelo formalista russo Roman Jakobson para contemplar em sua explicação “aquilo que torna determinada obra uma obra literária” (JAKOBSON, [1919] 1921, p.11), dentro da concepção formalista de estabelecer a tese a partir da qual no campo dos estudos literários deveria ser dada maior atenção ao estudo dos traços distintivos da obra de literatura (Cf. EIKHENBAUM, [1920] 1973, p.15). Não obstante, a literariedade não é um aspecto isolado na abordagem desses então jovens estudiosos russos sobre a importância de um olhar mais atento para as especificidades do texto literário. A noção de literariedade se adere a uma série de outras noções às quais se vê de algum modo atrelada. Dentre elas, está a noção de forma, que terminaria por emprestar parte de sua terminologia para a maneira como o movimento “formalismo russo” passaria a ser denominado, muitas das vezes de modo depreciativo90. Literariedade e forma podem já se ver interligadas desde as primeiras concepções formalistas, donde sobressai toda uma busca por enfatizar um olhar não necessariamente mais 90 Remeto o leitor para o tópico 1.1 da presente tese, onde procurei dar maior ênfase à história de formação do grupo. 185 voltado para os elementos constituintes da obra de literatura, mas, principalmente, para a utilização particular que deles se faz (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13), sendo essa de fato a ação específica da literaturnost, ou, ainda melhor, o ato que possibilitará que se perceba a literaturidade da obra. Nesse aspecto, torna-se bastante interessante a noção de forma que sobressai dos pressupostos formalistas, os quais chamam a atenção para que seja ela, a forma, vista não mais como mero invólucro para seu conteúdo; mas, antes, como uma noção que traz em si uma integridade dinâmica. Dessa maneira, tem-se que dito caráter dinâmico não permitiria o “engessamento” da forma, permitindo, sim, o seu próprio desenvolvimento, o qual se dá pela ligação de seus elementos constituintes através de um movimento dinâmico de correlação e integração internas (Cf. EIKHENBAUM, [1925] 1973, p.13). Essa possibilidade de dinamismo interior concede à forma um caráter de literariedade, porquanto uma das características próprias da literatura. Tal é o caso das obras em destaque no presente trabalho, nas quais o elemento constitutivo conto mantém a correlação e a integração características do gênero que representa, ao mesmo passo que, pela percepção de elos narrativos introduzidos e pouco a pouco repetidos, empresta, assim, sutilmente, a mesma correlação e integração que o segmento romanesco capítulo concede à trama e ao drama preservados e próprios da forma, do gênero romance. Ocorrida assim de maneira tão peculiar a relação forma/fundo (conteúdo, elementos constituintes) nos romances aqui em evidência, a ação compositiva se verifica como um caráter de literariedade que, em verdade, só se completa em seu resultado: a ação provocada de estranhamento, um efeito de estranheza. A noção de estranhamento deriva do neologismo ostranenie, introduzido à língua russa por Viktor Chklovski com vistas a dar conta da característica de desautomatização, de singularização a qual, segundo o formalista, é própria do objeto literário e da linguagem literária que implementa, provocando no leitor um efeito receptivo de estranheza, saindo do lugar comumente dedicado à percepção usual dos objetos para uma esfera de percepção inabitual, diferente, surpreendente. Nesse sentido, o estranhamento levado ao nível de caráter estético “é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54). O estranhamento assim intimamente ligado à noção de literariedade revela poder operar ao nível do estético. Desse modo, podemos dizer que em ambas as obras ora em verificação sua literariedade é percebida na ação de seus estranhamentos, de seu efeito de estranheza por sobre o leitor, surtindo desse efeito a condução possível do receptor (sem que talvez disso ele se dê conta) ao contato com imaginários. É mister, pois, tocar no exame 186 desses estranhamentos em ação em cada um dos romances colhidos para corpus do presente trabalho de doutoramento. O primeiro efeito de estranheza verificado se relaciona com o já realçado dinamismo que ambas as obras empreendem à forma romance ao interligarem contos que podem ser mesmo lidos e compreendidos de maneira independente, mas que, por caminhos semelhantes em cada um dos romances, veem-se unidos como capítulos de uma trama cujo elo dramático encontra sua explicação em algum ou alguns momentos da narrativa, concedendo-lhes um todo romanesco. Em ...y no se lo tragó la tierra (1971) o elo romanesco concedido à obra não surge de uma intenção clara e imediata de seu autor Tomás Rivera, ou ao menos não é algo do qual ele se aperceba tão facilmente. De fato, em carta enviada a um dos editores do Prêmio Quinto Sol, do qual se sagraria vencedor com a subsequente publicação de sua obra pela editorial de mesmo nome, Tomás Rivera assim escreve: “Estimado Sr. Romano: Adjunto encuentre mi manuscrito de cuentos, Debajo de la casa y otros cuentos” (RIVERA, [1970] 2012, p. 250 – tradução de Gustavo Buenrostro). Um pouco mais adiante e, na mesma correspondência, Rivera acrescenta: Hay un total de 13 historias. Entre cada una hay un diálogo o situación que debería aparecer en cursivas. Estos son cuadros que incluí entre las historias para darle a la totalidad del trabajo una cohesión que consideré necesaria. Sin embargo, pudiese excluirlas. (Ibid.) As treze histórias referidas terminariam tornando-se catorze até a publicação da obra, mas, perceba-se que mesmo evidenciando ter enviado ao concurso de Quinto Sol primeiramente um amarrado de contos, Rivera demonstra ter também certa noção de que havia elos narrativos entre suas histórias, com a presença de pequenas estampas de abertura que, conforme o autor já percebia, apontavam para a existência de uma espécie de todo coesivo em seus escritos enviados. Ao contrário do que sugere Tomás Rivera, seus quadros coesivos não são excluídos pela editora, perdendo suas estampas apenas a grafia em itálico, emprestada para uma espécie de texto-rio que se destaca, mescla-se e avança sobre a narrativa de “Debajo de la casa”, aquele que passaria a ser o último conto do romance, revelando-se tal trecho como mais um elemento coesivo o qual aponta ser o seu narrador a mesma presença narrativa que protagoniza e convoca outras vozes narrativas a falar no drama de rememoração excêntrica que recupera doze meses de um ano de migração familiar pelas terras do agronegócio em solo estadunidense, durante parte da infância do protagonista. 187 Nesse trecho rio que avança o último conto adentro retornam à narrativa, como partes componentes de uma trama principal, personagens, nomes e situações colocadas nos contos e estampas anteriores de uma maneira que se fazia vê-los como elementos composicionais apenas das tramas menores em que estavam inseridos nos pequenos contos onde cada um se fez presente. Assim, em ...y no se lo tragó la tierra, apesar da conexão de temas que de algum modo interligam alguns contos por espécies de eixes temáticos, é somente com a recuperação narrativa (levada a cabo na última história) de situações e personagens dispostos anteriormente na obra que contos deixam de ser apenas contos para serem também capítulos de um romance que obedece a uma trama, a um drama fronteiriço maior, porquanto identitário e cultural, representativo da força e da luta do povo chicano in USA refletido no drama excêntrico de seu protagonista. Em El espejo enterrado ([1992] 2010), de Carlos Fuentes, o nome do chicano Tomás Rivera e de seu romance ...y no se lo tragó la tierra são tocados em meio a uma série de outros autores citados como parte representante de toda uma literatura de origem hispanoamericana nascida nos Estados Unidos da América do Norte (Cf. FUENTES, [1992] 2010, p. 446). Esse feito, junto com o projeto pessoal fuentesiano de abordagem intelectual a respeito do que ele chama de três hispanidades (dentre as quais a terceira seria a norte-americana), chama a atenção para o interesse de Fuentes também na literatura chicana e, por conseguinte, na leitura de seus autores e estudiosos mais destacados (muitos conhecidos em conferências ali mesmo nos EUA). Esse conhecimento e reconhecimento em forma de citação pressupõe uma leitura que, no caso de Tomás Rivera e seu ...y no se lo tragó la tierra, parece agir sobre o dinamismo que, desta feita, Carlos Fuentes imprime à forma romance em seu La frontera de cristal (1995), obra romanesca composta em nove contos. Se em ...y no se lo tragó la tierra o termo cuentos, por decisão conjunta de autor e editores, desaparece da versão final que chega ao público em 1971, em La frontera de cristal o estranhamento que pode causar o atrelamento conto/romance, quiçá também por outra decisão conjunta, parece querer saltar aos olhos do receptor através do sugestivo e chamativo subtítulo que acompanhou as primeiras edições da obra: una novela en nueve cuentos. Imiscuindo-se sobre uma temática fronteiriça semelhante, a das relações de alteridade que se levantam no entorno fronteiriço que compartem México e EUA, a integridade dinâmica que Fuentes concede à forma romance em sua obra, porém, ocorre de maneira um pouco distinta à orquestrada por Tomás Rivera. De fato, os contos de La frontera de cristal também podem ser lidos e apreendidos em uma primeira totalidade própria de aparente total independência, podendo mesmo serem compreendidos de modo independente. Porém, se em 188 ...y no se lo tragó a coesão romanesca com efeito se dá na recuperação de situações e personagens principais no último conto da obra, em La frontera, mesmo na suposta autonomia que finge dar aos contos, o romance vai pouco a pouco, aqui e ali, trazendo de volta situações, espacializações e personagens que importarão sobremaneira ao drama principal que percorre a vida de diferentes componentes de uma família mexicana, os Barroso. As histórias dos componentes dessa família apresentam sempre alguma interligação com seu membro em maior evidência, don Leonardo Barroso, um poderoso empresário mexicano com influentes relações também nos EUA. Ao redor de Leonardo Barroso também terminam por estarem coligadas as histórias de alguns outros personagens, entrelaçadas pela narrativa ao longo de diferentes contos do romance, em uma interligação cujo ápice se dá no último capítulo da trama, o conto “Río Grande, río Bravo”. Ali, o ponto culminante é o fim trágico destinado à figura de Leonardo Barroso. Merece destaque, ainda, o atravessamento promovido nesse último capítulo de um texto-rio também escrito em cursivas, qual no romance de Tomás Rivera de 1971. Entretanto, enquanto em Rivera o texto-rio cruza o último conto interligando-o estritamente aos personagens e situações da trama engendrada no romance, em Fuentes o texto-rio, como parte da atmosfera de ranço histórico que perpassa o enredo, traz primeiro uma espécie de ensaio histórico que recupera para o leitor nomes, lugares e momentos integrantes da história do México, antes, durante e depois de seu encontrazo com Espanha e Estados Unidos. Apenas depois, esse trecho rio fuentesiano trará de volta os personagens que já haviam merecido realce pela narrativa, reunindo-os em novas situações as quais, tendo o final dramático do senhor Leonardo Barroso como eixo giratório, encaminham a trama para seu fim. Verificado esse primeiro ponto de estranhamento (quase) em comum entre as obras, há a observação de que tal dinamismo incide, por consequência, em outro aspecto que empresta seu caráter à literariedade desses romances: o princípio de construção. Destacado pelo formalista Yuri Tynianov (1894-1943), o princípio de construção, coincidindo com o dinamismo para a forma, também chamado por ele de princípio de formação, traz como uma de suas características marcantes o processo de deformação através do qual certos fatores formadores da obra literária são promovidos em detrimento de outros. Desse modo, faria parte da interação dinâmica da forma a evolução (desconsiderando o tempo) e consequente renovação dos liames entre um fator subordinante de construção e os fatores a ele subordinados. Tal evolução da relação de subordinação não ocorre sem o conflito próprio que responde pela interação dinâmica da forma, sendo preponderante para a sobrevivência do fato artístico, para que o receptor possa experimentar a arte que, pela renovação do conflito entre 189 suas partes integrantes, desautomatiza a percepção acostumada ao real vivido (Cf. TYNIANOV, [1923] 1973, p. 101-2-3). Isto posto, tem-se que em ...y no se lo tragó la tierra e em La frontera de cristal o elemento subordinante é a forma romance, a qual estabelece, na dúvida de relação de dependência dos contos que a compõem, conflituosa interação com os elementos a ela subordinados, seus capítulos. Passa a existir a promoção de um fator no elemento subordinante, sendo tal fator a concepção de romances entrecortados, fragmentados, os quais deformam o elemento subordinado mais evidente, o fator construtivo tido como principal em um romance: o capítulo. Assim, os contos que dão forma às duas obras em relevo, deformados na desestabilização da certeza de diferença entre o gênero conto e o segmento romanesco capítulo, surgem como pontos integrantes de uma interação que, da maneira como é disposta, concede ao leitor/receptor, pelo estranhamento que causa, pela surpresa de uma maneira não habitual de se contar um romance, uma experimentação distinta para a arte literária, sendo esta mais uma das características que aproxima a literariedade nos e dos romances ora abordados. Um terceiro estranhamento a evidenciar a literariedade em ambas as obras tem a ver com a linguagem literária que implementam. Sobre a linguagem na literatura, Viktor Chklovski, em seu artigo de 1917 “A arte como procedimento”, retorna a Aristóteles ao relembrar que, segundo o filósofo grego, a língua literária deve trazer em si um caráter de estranho, algo que venha a surpreender seu leitor. E completa seu argumento dizendo que essa língua91 “na prática, é frequentemente uma língua estrangeira” (CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 54). Para continuar sua argumentação, Chklovski cita exemplos que vão desde a inclusão surpreendente de linguagem popular no estilo literário de Pushkin até a influência da língua búlgara antigo sobre a língua literária russa de seu tempo, com a subsequente e interessante ação dessa de volta à linguagem popular, reintroduzindo a esta muito dos dialetos recuperados anteriormente pela própria ação da literatura russa. 91 Língua e linguagem poética aqui e em Aristóteles englobam também a prosa. Um pouco mais adiante, porém, mais próximo ao fim de seu artigo, Chklovski busca diferenciá-las algo mais, especialmente no que diz respeito ao caráter de surpreendente. Nesse momento, o formalista, ao tocar na linguagem prosaica das conversações, aborda seu ritmo como fator “automatizante”. O ritmo poético, entretanto, compreenderia um ritmo estético no qual o ritmo prosaico é constantemente violado. No entanto, ao referir-se a esse ritmo prosaico “automatizante”, Chklovski está fazendo menção à prosa conversacional quotidiana, suscitando separá-la da arte, onde englobada estaria a linguagem literária tanto escrita em prosa quanto em poesia. Há que se tocar, ainda, no adendo para o qual chama atenção o autor quando ele observa que se a violação a que se refere vir a tornar-se regra constante ela perderá força como procedimento artístico (Cf. CHKLOVSKI, [1917] 1973, p. 56), algo que, no tocante ao tema de minha tese, remete-nos a pensar na perda de ação e influência de obras (que nesse círculo de tornaremse regra venham a cair) sobre a participação em (e na formação de) imaginários. 190 Aquilo que indica correspondência com o acima exposto é o fato de que em ...y no se lo tragó e La frontera a linguagem popular que seus autores levam a suas obras literárias é essa língua “estrangeira” e surpreendente a conceder caráter de estranho, a causar estranhamento e emprestar seu tom de literariedade aos romances doa quais aqui se trata. E se temos em Boris Eikhenbaum ([1925] 1973, p. 13 – grifo do texto) a atenção voltada para o feito de que muito dos preceitos formalistas levantavam em seus estudos que “os fatos artísticos testemunhavam que a differentia specifica da arte não se exprimia através dos elementos que constituem a obra, mas através da utilização particular que se faz deles”, destaco que em Tomás Rivera e Carlos Fuentes o surpreendente não está no simples uso de linguagem popular em seus romances; mas, antes sim, na maneira como o fazem; ou seja, no uso literário, na potencialização literária que a essa captação concedem. O trato que em Fuentes se dá ao elemento constituinte linguagem popular tem a ver com a narratividade imposta em seu romance. Em La frontera de cristal, o narrador eleito por Fuentes empreende uma espécie de narratividade coiote, com destaque para a busca de convencimento, de apanhamento do leitor; demonstrando para tanto, inclusive, fluência nos mais variados registros linguísticos, dentre os quais está o popular. O que surpreende, pois, é que a verbosidade desse narrador fuentesiano não é repetitiva ou mesmo enfadonha, concretizando-se em um hábil uso de justaposição de registros sem que se perca fluidez narrativa. Assim é que mesmo toda uma linguagem de rebuscado teor poético e de evocação barroca usada, por exemplo, no primeiro capítulo da obra, o conto “La capitalina”, não serve de impeditivo para que se possa fazer uso de termos e frases de caráter tão popular como: “decir ni mú”, para expressar silêncio; “nomás”, para apenas; “vieja”, para parceira; “de a tiro nacas”, para expressar aparência de provincianismo nas maneiras das mulheres nortenhas do México; “chorcha de las cuatitas”, para amigas de uma mesma origem reunidas em conversa; “ni caso”, para atenção não dada; “chueco”, para defeito; “cabrón”, para safado. Justapõe-se, ainda, a outros tons da narração, a inserção de mexicanismos linguísticos como: “chilango(a), para os originários da capital Cidade do México; “nacos”, para designar o estereótipo do mexicano que, por seu comportamento e modos de vestir se aproxima da visão depreciativa do indígena enquanto sujeito iletrado e ignorante92; “ni que la chingada”, para enfatizar contrariedade; “pinche”, para pessoa que não agrada; “güeritos”, para crianças loiras; “güevón”, para buscar imitar na grafia uma pronúncia para “huevón”; etc. Há também a 92 Deriva de alusão pejorativa ao povo indígena totonaco, que viveu nos arredores da Cidade do México no início do século XIX. 191 necessária inclusão de “mechicanismos” representados pelo “espanglês” próprio das relações de alteridade fronteiriças mexicano-estadunidenses, presente em interposições oracionais como “en el high school”, “Te irá mejor, boy” ou mesmo “You’re one tough hombre”. O fato é que esse aspecto mais popular da linguagem se vê potencializado pela estratégia narrativoliterária de justaposição desses registros a outros de aparência mais padrão, emprestando ao todo narrativo toda uma fluidez que tende a atrair o leitor pelo desautomatismo do ritmo orquestrado por meio de verdadeiros fraseos envolvedores. Já em Tomás Rivera, o uso de linguagem popular demanda de um projeto ainda maior desse autor ligado às demandas dos movimentos político-ideológicos dos quais fizeram parte também os chicanos dentro da luta pelos direitos civis que arrebatou os EUA entre o final dos anos de 1960 e o início dos de 1970. A adesão a esse projeto maior por parte do autor é, inclusive, tocada por Gustavo Buenrostro em sua introdução para os anexos da edição argentina de ...y no se lo tragó la tierra. Segundo Buenrostro (2012, p. 192 – grifo do texto), “Para el mismo Rivera, el éxito del movimiento chicano sería medido de acuerdo al nivel de emancipación cultural logrado”. Buenrostro completa seu raciocínio, citando o próprio Rivera, que como alcance possível para sua obra propunha através de ...y no se lo tragó la tierra “destruir los estereotipos que nos habían adjudicado; también había otro propósito: crear por medio del bilingüismo y pachuquismos, nuestro propio caló; ir hacia nuestra propia gente y documentarnos aquí” (RIVERA [1979, s/p] apud BUENROSTRO, 2012, p. 192). A “documentação” a que se propõe Rivera adentra seu romance como uma linguagem literária elaborada a partir da noção de pertencimento que lhe produzia a língua que mais lhe era familiar. Isso pode mesmo ser evidenciado de maneira franca, como em carta de 1976, na qual responde ao amigo Dr. Jesús Chavarría, então professor do Departamento de História da University of California. Nessa correspondência, Tomás Rivera explica ao amigo porque havia escrito ...y no se lo tragó la tierra em espanhol: Realmente me hubiera sido imposible escribir Tierra en inglés. Lo que escribo en esa obra se manifiesta, se evoluciona y lo invento totalmente dentro del idioma español. Esto fue/es así porque el ambiente, las personas, todo se basan en lo que ocurre dentro del mundo chicano – idioma español normalmente del trabajador migrante chicano. (RIVERA, [1976] 2012, p. 263 – grifo do autor) O trabalho literário, pois, do registro popular dessa língua que lhe era tão próxima entra na atitude política-ideológica de afirmação do caló de sua gente, não tão bem visto dentro do sistema universitário de ambos os lados do entorno fronteiriço mexicanoestadunidense. Tendo tomado contato com as regras desse sistema educacional do lado chicano da fronteira, por assim dizer, é emblemática e contundente a elaboração da língua 192 literária de ...y no se lo tragó a partir do espanhol com o qual convivia o autor em sua comunidade texana (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 19). Mas, adjunto ao valor ideológico de seus feitos literários está também o valor estético e de estilo da linguagem literária que desenvolve, correspondendo a tal qualidade outra questão da literariedade em sua obra: o modo como elabora e leva à ficção o registro dos bilinguismos e pachuquismo caros ao caló chicano. Em ensaio no qual comenta sobre os procedimentos levados a cabo em sua obra, Rivera ([1975] 1992, p. 360) faz referência ao método de narrar que usava sua gente: “recuerdo lo que ellos recordaban y la manera en que narraban. Siempre existía una manera de comprimir y exaltar una sensibilidad con mínimas palabras”. É, pois, essa mesma maneira de exaltar uma sensibilidade com mínimas palavras o efeito de literariedade que Tomás Rivera alcança em seu romance através da apropriada utilização da elipse, do corte abrupto do que se conta, do dizer muito com pouco, do menos que é mais pelo rumor deixado por situações extremas descritas de modo sucinto, porém certeiro em tirar o leitor de seu lugar de conforto enquanto mero receptor. Nesse sentido, parece-me um bom exemplo o trecho final do primeiro conto do conjunto de doze do corpo de desenvolvimento do romance. Ali, uma das conversações anônimas que o narrador insere em suas recordações traz um breve diálogo sobre a situação de um velho empregador rural que havia matado sem querer a um menino que para ele trabalhava e em quem o senhor queria dar apenas um susto com sua arma, para que a criança não mais buscasse escapar em horário de serviço da sede que o forte calor lhe impunha: – Dicen que el viejo casi se volvió loco. – ¿Usted cree? – Sí, ya perdió el rancho. Le entró muy duro a la bebida. Y luego cuando lo juzgaron y que salió libre dicen que se dejó caer de un árbol porque quería matarse. – Pero no se mató, ¿verdad? – Pos no. – Ahí está. – No crea compadre, a mí se me hace que sí se volvió loco. Usted lo ha visto como anda ahora. Parece limosnero. – Sí, pero es que ya no tiene dinero. – Pos sí. (RIVERA, [1971] 2012, p. 80) 4.2 Rivera: do implícito ao imagético. Fuentes e sua imagética explícita Neste tópico que se inicia, a primeira aproximação à imagem na obra de ambos os autores terá talvez menos a ver com a imagem verbal que trazem à luz os dois por intermédio da linguagem literária empreendida em seus romances, do que com certa imagem que eles 193 deixam transparecer na configuração de seus narradores. Desse modo, destaco interessar-me nesse primeiro momento no quanto incide, quanto se deixa transluzir e em que medida se manifesta na figura dos narradores criados a presença de seus criadores. A imagem da criação de Adão, concebida por Michelangelo em um dos quadros componentes da magistral série de pinturas que o artista florentino concebeu em afresco para o teto da Capela Sistina no Vaticano, no início do século XVI, serve de breve ilustração para o que aqui se busca demonstrar. A distância que separa o toque de Deus do toque de Adão, obra do acaso de uma restauração ou não, pode, dependendo da distância que se a observe, sequer ser notada. Entretanto, o olhar mais atento dedicado à obra, tanto por especialistas como pelo observador leigo, há muito cobra atenção para esse espaço entre ínfimo e imenso ao mesmo tempo, entre pequeno afastamento e relevante separação, dada a gama de interpretações que tão sugestiva proximidade provoca. Tal não seria o caso correspondente da incidência das figuras dos autores aqui estudados sobre a figura dos elementos escolhidos para narrar seus romances? Comecemos por Tomás Rivera. A obra ...y no se lo tragó la tierra, em sua trajetória que conta já com quarenta e quatro anos de leituras desde seu lançamento em 1971, tornou-se em pouco tempo um clássico dentro do cânon literário chicano, obtendo aos poucos determinado alcance fora do papel de subsistema que lhe é relegado ao universo da literatura chicana, forçosamente imprensado entre dois sistemas literários de reconhecimento plenamente estabelecido: o mexicano e o estadunidense. Na longa estrada do romance, que tem permitido, inclusive, uma maior abrangência de recepção por outros sistemas que não o seu próprio, um ponto de abordagem nos estudos que se voltam a estudar a obra parece ser pacífico: a vinculação entre autor e o narrador que ele compôs para seu livro, a comparação de sua história de vida para com a ficção que ele apresenta ao leitor. O estilo narrativo que privilegia a elipse como método de contar usado por Rivera no desenvolvimento de sua obra poderia até mesmo sugerir uma tentativa de ocultamento de seu eu escritor e dos fatos e passagens que por certo lhe inspiraram a escrever seu romance. No entanto, se há algo a marcar o percurso de sua escrita, esse “detalhe” a se destacar é o caráter de invenção concedido ao corpo de sua narrativa literária. Assim, na relação prospectiva que se estabelece com os ensaios e artigos do autor, percebe-se sempre o destaque para o aspecto inventivo de seu Tierra, como o próprio Rivera manifesta seja na correspondência enviada ao amigo Jesús Chavarría, como pôde ser visto pouco acima, seja ao recordar o modo de narrar dos seus, conforme o verificado em trecho citado há pouco. É, ainda, interessante notar que esse mesmo fragmento que volto a mencionar é extraído de um ensaio crítico riverano, cujo 194 título é, creio, não por acaso, “Recuerdo, Descubrimiento y Voluntad en el Proceso Imaginativo Literario”, de 1975. Ali, ainda quando se remete à influência da recordação da maneira de narrar de sua gente na concepção de seu romance, Rivera ([1975] 1992, p. 360) complementa que, sobre as histórias contadas “También existía constantemente el inventarle nuevas ocurrencias”. Esse inventar novas ocorrências ao que se conta parece mesmo inspirar Rivera na construção de um narrador que traz de suas recordações de menino outras vozes que o ajudam a rememorar algo que talvez esteja dando-se em um momento crítico, dramático e excêntrico que provoca a reminiscência muito provavelmente em um “sujeito recordante” já maduro. Tal complicação de estabelecerem-se limites na fase do tempo de vida em que se encontra o eu narrador se configura, a meu ver, como efeito proposital e provocativo a que se propõe a ficção criada pelo autor Rivera. É, em meu modo ver, um convite provocativo à imaginação também do leitor, fator percebido e intensificado nas escolhas editoriais para o romance. A esse respeito, parece ser precisamente editorial a decisão de exclusão de contos como “El Pete Fonseca” do corpo final da obra, que formava parte de um intento em Rivera de, conforme nos mostram Ramos e Buenrostro (2012, p. 192), “elaborar personajes deliberadamente ‘amorales’ para oferecer uma representación amplia de las vidas chicanas”. Ramos e Buenrostro (2012, p. 193) escrevem, ademais, que os editores de Quinto Sol, ainda sobre o caso de exclusão de “El Pete Fonseca”, “acaso no comprendieron bien la distancia entre el autor y su personaje”. Mas, creio que em verdade há que se pensar se valia a pena de fato em termos editoriais a inclusão e/ou manutenção de um conto em que se percebe “la marcada distancia del narrador ante los eventos que narra” (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 191), em meio a tantas histórias nas quais o método narrativo adotado sugere ao menos um suposto conhecimento prévio, quiçá vivido, do que ali se conta. Nesse caso, a meu parecer, o implícito no método adotado para narrar a obra termina por servir também à visão editorial de que poderia esse implícito auxiliar, além das pretensões ideológicas palpáveis em seu feito, como fomentador de uma curiosidade a ser discutida e passada adiante (em números de vendas) por e para um público leitor chicano já à época em boa fase de consolidação, inclusive nas universidades a que pouco a pouco passavam a ter mais acesso e alcance. Contudo, ao fim e ao cabo, parece-me prevalecer outro valor, quem sabe mais estético, do trabalho do implícito por intermédio do uso da elipse narrativa em Rivera: o da intensificação da linguagem literária que elabora, com a consequente potencialização do poder de fixação dos quadros vívidos que oferece ao leitor; realçando, desse modo, a imagética resgatada, (re)inventada e inventiva de sua obra, seu jogo de mimeses 195 memorialísticas das muitas faces e limites possíveis entre o que é e pode ser ou ter sido fruto de apreensão, recuperação e re(a)presentação de um real vivido. Enquanto em T. Rivera alguma coisa do caminho que leva o leitor do implícito ao imagético em sua obra se vê em parte explicada na relação prospectiva que o autor estabelece com seus ensaios, em C. Fuentes, ao contrário, parte da imagética explícita de seu La frontera de cristal se explica de maneira retrospectiva em mostras de sua ensaística. De modo bastante especial ligado ao seu “antecessor” ensaístico El espejo enterrado (1992), o romance La frontera de cristal (1995) se correlaciona ao ensaio de seu mesmo autor ainda e principalmente nos traços distintivos da linguagem adotada em ambos como principal responsável pela construção de imagens que as obras querem transmitir ao leitor: o tropo de imagem verbal, a figura de imagem verbal metáfora. Nesse sentido, todo o trabalho por mim desenvolvido ao longo do capítulo especificamente dedicado à abordagem de La frontera creio traga em seu cerne exemplificações o suficiente para demonstrar a importância que tem a metáfora na construção narrativa do romance. Mas, um exemplo encontrado em El espejo enterrado traz uma figura histórica para o México, retomada no capítulo cinco do conjunto romanesco de contos fuentesianos sobre a fronteira México-EUA enquanto frágil cristal delimitador para as relações de alteridade ali existentes. Assim, se no romance de 1995, a personagem Marina Malintzin de las maquilas é figura alusiva a seu correspondente histórico, em seu ensaio de 1992 é através também da imagem em forma de metáfora que Fuentes encerra uma passagem sobre a Malinche, informando que ela, após sua oferta como escrava ao invasor espanhol Hernán Cortés: Se convirtió en “mi lengua”, pues Cortés la hizo su intérprete y amante, la lengua que habría de guiarle a lo largo y alto del Imperio azteca, demostrando que algo estaba podrido en el reino de Moctezuma, que en efecto existía gran descontento y que el Imperio tenía pies de barro. (FUENTES, [1992] 2010, p. 133 – grifo do autor entre aspas – grifo meu em negrito) Além da intertextualidade shakespeariana em “algo estaba podrido en el reino de Moctezuma”, o final do fragmento repete uma eleição de linguagem metaforizada que atravessa não apenas o texto ensaístico de Fuentes, mas que também demonstra ser uma predileção de estilo passível de ser observada mesmo em antecessores da linha ideológica trabalhada por ele em El espejo enterrado, reunião de ensaios que acaba por funcionar, em uma linha retrospectiva de raciocínio, como uma espécie de laboratório para a ficção posterior de La frontera. De autores como Samuel Ramos e Octavio Paz, Carlos Fuentes parece herdar (além do apoiar-se bastante na construção verbal de imagens seja pela metáfora ou pela 196 comparação) muito do pensamento de ambos no que se refere à existência ou formação de uma identidade mexicana e os contrapontos encontrados em seus posicionamentos revelados sobre a questão do indígena em seu país, em sua abordagem sobre o gênero feminino e, ainda, acerca das relações de atrito e de rivalidade para com os EUA, a quem Samuel Ramos ([1934] 1963, p. 148) chama de “raza del hombre rapaz”. Os argumentos acima servem, assim, de retorno para a questão de proximidade com a qual abri o presente tópico. Em Rivera, a proximidade do autor com os eventos que conta seu narrador acaba por confundir a função do implícito em seu romance, que é potencializar o valor das imagens levantadas pela linguagem literária que elabora. Em contrapartida, em Fuentes a eleição da metáfora parece demonstrar um conhecimento maior sobre parte dos assuntos sobre os quais se apropria ou se propõe a abordar. Essa ausência de maior propriedade sobre alguns dos temas eleitos permite que deixe transparecer em certos momentos mais uma determinada opinião do que propriamente um mais aprofundado conhecimento de causa. Desse modo, a metáfora deixa transluzir em seu uso apenas o conhecimento da causa, baseado em sua manifestação na expressão em forma de ensaio que nas ideias e posicionamentos ideológicos expostos em outros ensaios se baseia. Ela, a metáfora, não é literal, mas quer fazer-se literal, razão pela qual dessa maneira revela o fundo de intenção (ainda que inconsciente) de seu autor. Sendo possível, desse modo, retornar ao tema da imagem e semelhança que faz parte do afresco “A criação de Adão”, o espaço entre os dedos de criador e criatura, a partir do qual pautei essa primeira seção do presente tópico, leva-nos, no tangente a Rivera e Fuentes, à perspectiva de que a imagem do autor em ...y no se lo tragó la tierra é “apenas” semelhança. Entrementes, pode-se dizer que a imagem do autor em La frontera de cristal não é mera coincidência, ou, mera semelhança. Outra imagem que se destaca em ambos os romances, como não poderia deixar de ser, é a da extensa fronteira que se estende pelos mais de 3.000 km que separam México e EUA. Essa fronteira em ...y no se lo tragó, conforme atestam Ramos e Buenrostro (2012, p. 11 – grifo dos autores), “una novela escrita al norte del Río Grande”, não se limita a estar apenas no entorno fronteiriço entre as bordas do norte mexicano e do sudoeste estadunidense. Não, ela avança por sobre o que os mesmos Ramos e Buenrostro (2012, p. 30-1 – grifo dos autores entre aspas e em itálico) chamam de “la amplia región ‘transamericana’ que la crítica 197 reciente93 ha denominado, tal vez con un nuevo gesto reterritorializador, el Gran México”. Essa classificação, embora questionada por ambos os autores, dá conta de que, ainda que se volte para o entorno fronteiriço ao qual chamei atenção, em seu romance Tomás Rivera transcende limites geográficos para expor uma fronteira também como problema cultural e identitário, ele [E]xplora los recorridos todavía más extensos, profundamente dislocados, de los trabajadores migrantes entre las fincas industriales donde sirven como peones. Los sujetos que pueblan la ficción de Rivera se desplazan hasta lugares tan remotos como Iowa y Minnesota. Sus recurridos exceden así cualquier mapa o demarcación geopolítica territorializante. (RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 31) De modo quase complementar, em La frontera de cristal, tal como aponta o título do romance, a fronteira é um espaço imagético privilegiado, o qual ganha contornos de protagonismo, em um sentido de ato de atração para o qual convergem demais personagens e o teor de dramaticidade da trama. Um tanto mais agudo do que no romance de Rivera, todavia, é o fato de que na obra de Fuentes a fronteira é palco aberto para conflitos, desencontros e encontros quase possíveis. Pontos distintos da extensa zona de fronteira mexicano-estadunidense são tocados através da contraposição de topônimos tão próprios da língua espanhola que podem mesmo suscitar a pesquisa àqueles que não saibam com exatidão de que lado se fala. É o caso do atravessamento que buscam ao fim do romance o chefe de cozinha Dionisio Rangel e o mexicano que ele arrasta pelo braço, havendo lhe despojado de roupas típicas colocadas no homem em uma loja norte-americana. Ambos nus, os dois procuram atravessar uma das pontes para o lado mexicano alegando que não os deixaram “salir por San Diego y entrar por Tijuana, ni salir por Caléxico y entrar por Mexicali, ni salir por Nogales Arizona y entrar por Nogales Sonora” (FUENTES, [1995] 2007, p. 278). Mas, a fronteira em Fuentes é também imagética, ao mesmo tempo em que contorna caminhos reais e divisórios, algo que sugere obedecer a estrutura de ficção adotada, como o atesta a intelectual brasileira Maria Scher Pereira, quem observa que: A estrutura do romance em contos expressa de modo adequado os muitos acontecimentos que têm como cenário pontos variados da região da fronteira, lugares reais ou metafóricos, como as cidades vizinhas El Paso, no Texas, e Juárez, no México, em "Malintzin de las maquilas", ou como a colorida raia fosforescente que separa norte e sul em "La raya del olvido". (PEREIRA, 2009, p. 4 – grifo da autora) Há um terceiro ponto do tratamento literário que ambos os autores outorgam para a questão da imagem, concedendo-lhe relevância. No capítulo dois desta tese de doutoramento, 93 Os autores evocam aqui as vozes de trabalhos recentes dos críticos Héctor Calderón, Ramón Saldívar e José David Saldívar e a retomada da discussão da categoria Greater México, inspirada na obra do grande intelectual e escritor chicano Américo Paredes (1915-1999) (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 31). 198 busquei dar relevo para o que Gilbert Durand chama de imaginária, não como um adjetivo, mas, sim, como um substantivo poderoso para verdadeiras coleções de imagens que podem fazer parte da historicidade de grandes dogmas religiosos que se apoiam em cultos a ídolos, como é o caso da igreja católica, a quem Durand destina o termo de imaginária sacra cristã. A mostra escolhida por mim para abordar tal assunto em ...y no se lo tragó la tierra foi o conto “El retrato”, um apurado questionamento literário dos limites da mimese e da representação, em uma inteligente imbricação de dúvidas de liame entre foto, retrato, pintura, escultura e a repetição, em um ambiente até certo ponto hostil, de valores e costumes herdados. Em La frontera de cristal, tal jogo contrastivo México-Estados Unidos ocorre de maneira talvez menos contundente e questionadora. Ali, no conto “Las amigas”, sexto capítulo do romance, propostas semelhantes são apresentadas, porém de um modo algo diferente. Um retrato faz parte dos eventos que percorrem a história do capítulo. Nesse caso, entretanto, o retrato pertence a uma senhora estadunidense, sendo a reprodução fotográfica do rosto de seu falecido marido, cuja cicatriz na face gera um interessante diálogo que visa fazer da marca no rosto do homem na foto uma metáfora para a linha que separatória que atravessa passado e presente de México e EUA, conforme abordei no trecho a esse fragmento dedicado por mim no terceiro capítulo do presente estudo. À guisa de continuidade das questões levantadas há ainda um jogo de espelhismo proposto pela narrativa no conto, fator que também ressaltei na abordagem à qual me referi acima. No entanto, um terceiro momento da atenção dada a aspectos da representação corresponde à fixação do imaginário preponderante no capítulo: o da adoração idolátrica como traço distintivo supostamente de todas as mexicanas. No terceiro capítulo da presente tese, apresentei como esse feito aproximativo de apreensão por imaginários se dá pela orquestração de uso literário da proximidade entre metáfora e metonímia. O trecho abaixo encerra o tópico atual com outra mostra da aproximação de uma ideia a um imaginário. Nele, porém, ganha também relevo a chamada para as estampas católicas e certa relativização (mais ao estilo coiote de convencimento uma vez mais poético do narrador fuentesiano) da representação, embora ainda se destaque a adoração como valor de desejos improváveis, como busca “impossível” de realização Para Josefina, había una relación muy misteriosa pero creíble entre la vida de las imágenes y la vida de las flores. (…) Pues las imágenes de Nuestro Señor en la Cruz, del Sagrado Corazón, de la Virgen de Guadalupe, eran como las flores, aunque no hablasen, vivían, respiraban, y a diferencia de las flores, no se marchitaban. La vida de las flores, la vida de las imágenes. Para Josefina eran dos cosas inseparables y en nombre de su fe le daba a las flores la vida táctil, perfumada, sensual, que le hubiese gustado darle, también, a las estampas. (FUENTES, [1995] 2007, p. 163-4) 199 4.3 Os imaginários de dois romances em contos A relação de ...y no se lo tragó la tierra com imaginários se dá quase todo o tempo em posição de questionamento, de posta em xeque de imaginários estabelecidos. Nesse aspecto, conforme pude detalhar algo mais no capítulo voltado para a análise crítica desse romance, o autor, através das situações criadas e das ações narradas relativiza a validade de imaginários de costumes, imaginários sociais e imaginários nacionais. A maneira como ocorrem e a posição que ocupam tais questionamentos diante desses referidos imaginários, de acordo com o que expliquei, pode ser vista de mais detalhado no segundo capítulo da presente tese. No entanto, cabe aqui breve retorno a um imaginário com o qual o romance de Tomás Rivera se correlaciona de modo mais direto. Ele se inicia a partir do contato da obra riverana em epígrafe com um imaginário precedente, aquele que busca, em parte, nas raízes de um nacionalismo mexicano pós-revolucionário, as bases para definição, em caráter de resistência, de traços distintivos chicanos, os quais podem se vir agregados a imaginários proto-nacionais chicanos, por assim dizer a partir do momento em que nos permitamos pensar em chicanidades assumidas como marca de uma proto-nação sem estado ou território (oficial) definido pela classe, povo, estado ou cultura aos quais se opõe como alteridade ou sujeitada está. Sendo assim, ainda em tom de relativização, há na ficção de ...y no se lo tragó ecos de toda uma construção de sentidos própria daqueles que assumiram a bandeira de uma identidade chicana de resistência. Um dos marcos dessa construção de sentidos se atém ao âmbito de instauração de afirmação linguística, de afirmação de identidades também pela língua e pela linguagem. Conforme já pude descrever, a potencialização literária do caló de sua gente pode, de acordo com fatores variáveis de alcance, sucesso editorial da obra e nas relações estabelecidas com as instâncias de conhecimento que traz ou não consigo o leitor/receptor, agregar-se ao imaginário que se assoma sobre uma marca supostamente “nacional”: a de que todo chicano, fala pelo viés de bilinguismos do espanglês e do registro popular presente nos pachuquismos adotados na linguagem literária elaborada por Rivera; ou, minimamente, a ideia de que todo (me)chicano fala assim. A orquestração da palavra levada às páginas da literatura cumpre assim em Rivera um duplo papel. Por um lado, esse registro popular surge como estranhamento, desautomatização não tanto pela sua simples inserção na narrativa, mas, principalmente, por sua aplicação singular junto ao uso da categoria gramatical elipse. Por outro, há o feito de que, ao unir o trabalho de elaboração literária de um registro linguístico também seu por ser-lhe tão próximo a traços universais do humano, Rivera termina criando uma espécie de simbiose 200 familiarizadora que traz o receptor de sua obra para o nível de aproximação de que fala Wofgang Iser, por exemplo, em sua argumentação sobre a importância do como se para as relações que se estabelecem entre o texto ficcional e o leitor. E é por fim tal processo de familiarização que leva, atrai a consciência (do) imaginante rumo à apreensão por parte de imaginários. Ali onde o popular da e na linguagem é estranhamento em Rivera também o é em Carlos Fuentes. Porém, se naquele a elipse é a principal responsável por esse efeito de estranheza, neste tal efeito se nota por seu entremeamento nos registros vários de toda a fluência e verbosidade demonstrada pelo narrador coiote fuentesiano. Por conseguinte, a familiarização em Fuentes se dá não por proximidade propriamente dita, mas, sim, por domínio; não por uma proximidade propriamente dita do autor para com todos os registros de que lança mão e, antes sim, pela capacidade de envolvimento demonstrada pela narratividade coiote empreendida em seu romance, a qual familiariza pelos muitos vieses possíveis de sedução na fala, da arte de convencimento pelo falar, em seu falar. Para além desse imaginário ligado a um caráter de registro oral mais popular, a um caráter de oralidade(s), em meu entendimento há em La frontera de cristal um questionamento menos contundente se comparado ao voltado para alguns dos imaginários cuja validade é posta em xeque no ...y no se lo tragó la tierra de Tomás Rivera. No romance de Fuentes, contrariamente, em conformidade com o que procurei apontar no terceiro capítulo deste estudo, as estratégias literário-discursivas adotadas tendem a criar maior fixação de ideias quanto a costumes, religiosidade, gêneros/sexos, complexos, etnias (em especial no que toca à marca indígena), tipos e estereótipos (ainda quando se veem como um intento de crítica) e, portanto, a outros afins próprios da busca de esquadrinhamento de uma pretensa identidade cultural (e nacional) mexicana. Dos posicionamentos postos em prática ante os imaginários com os quais de alguma maneira se correlaciona o romance ...y no se lo tragó la tierra parecem resultar intersecções identitárias às quais poderíamos denominar como me(x)chicanidades. A colocação do x mexicano entre parênteses advém do fato de que, mais que uma abrupta hifenização, a manobra de cunho léxico propõe um lugar entre na relativização de convivência, permanência e validade dos valores que podem vir a representar a ação de mexicanidades ou de chicanidades. Fato interessante é que um movimento inverso – no qual os posicionamentos ideológicos perceptíveis na leitura extraídos a partir da leitura da obra resultassem de me(x)chicanidades já existentes, ao invés de que tivéssemos essas me(x)chicanidades como resultantes de tais posicionamentos adotados – agregaria ainda um valor cíclico em que a 201 narrativa contribuiria com imaginários sobre essas intersecções a contar da devolução do trabalho literário de relações de alteridade apreendidos desde o real empírico. Não obstante, em La frontera de cristal a observação de existência das intersecções identitárias mex-(anglo)-chicanidades visa a dar conta da maneira como o enredo opõe alteridades em um encontro quase sempre impossível, na recuperação ficcional de uma rivalidade histórica que transfere uma imagem de inimigo ianque à ideia de um todo anglo, um todo de anglicanidades supostamente heterogêneo em suas raízes e suas ações de rechaço ao ex-ótico mexicano e chicano. É interessante notar como, entretanto, ao contrário do imaginário de mexicanidades abraçado pela narrativa, as intersecções supracitadas surgem na forma de um questionamento mais aberto. Assim, enquanto em ...y no se lo tragó la tierra os conflitos advindos das me(x)chicanidades soltas pela e na mnemônica do protagonista redundam na recuperação ex-cêntrica da consciência desse mesmo narrador que ao fim termina por externar “Quisiera ver a toda esa gente junta. Y luego si tuviera unos brazos bien grandes los podría abrazar a todos. Quisiera poder platicar con todos otra vez, pero que todos estuvieran juntos” (RIVERA, [1971] 2012, p. 160); enquanto isso, temos no personagem chicano José Francisco de La frontera de cristal o desejo voltado “para que todos se concieran mejor (…), para que todos si quiseran un poquito más, para que hubiera ‘un nosostros’ de los dos lados de la frontera…” (FUENTES, [1995] 2007, p. 266-7 – grifo do autor). A aproximação acima não representa uma igualdade total de pensamento, de e nas soluções transpostas ao final dos romances de e por ambos os autores. Contudo, aponta para uma a meu ver interessante observação a ser feita sobre alguns paradigmas levantados durante o presente trabalho acadêmico, principalmente alguns que mais têm a ver com o olhar crítico dedicado à análise literária do romance de Carlos Fuentes. Em conferência proferida em University of Texas at El Paso, por ocasião do XVIII Congreso de Literatura Mexicana Contemporánea (2013), dedicado a Carlos Fuentes, o renomado professor e crítico literário peruano Julio Ortega afirma que em um dado momento da história intelectual que compartilharam teria havido uma ruptura de linhas de pensamento entre Fuentes e Octavio Paz. Tal afirmação me obriga a retomar uma constatação à qual me vi tomado durante os estudos bibliográficos para a materialização desta pesquisa de doutoramento. Conforme pude verificar, bem como até mesmo expor para o fim do terceiro capítulo, no qual me debruçava especificamente a trabalhar a obra de Fuentes em tela, há outra correspondência narrativa que parece incidir por sobre o romance fuentesiano. Os elos comparativos encontrados entre as duas obras aqui trabalhadas são fortes. Contando inclusive com a citação do nome de Tomás Rivera na mostra ensaística El espejo enterrado, de Fuentes, 202 o que por si só não é demarcativo nem denotador da apreensão de pronta influência. Como pude demonstrar há, entretanto, certa aproximação de eixos temáticos e um forte vínculo estético que inclui até a derradeira confluência de repetição de um texto-rio, um texto em cursivas que, vinte e quatro anos após a primeira edição de ...y no se lo tragó, atravessa também o capítulo final de La frontera. Porém, forma parte dos dados evidenciados desta pesquisa a reconhecida homenagem prestada a outro autor chicano de grande valor, posterior a Tomás Rivera: Ricardo Aguilar Melantzón, reconhecidamente transportado à figura do personagem chicano José Francisco do romance de Carlos Fuentes. Há, entretanto, outro dado interessante a ser extraído da investigação bibliográfica que mostra a igual leitura de Aguilar Melantzón por Fuentes. Sobre a obra Madreselvas en flor (1987), o intelectual mexicano José Lozano Franco (1990, p. 215) escreveu em artigo que: [a] pesar de estar dividida en cuentos, se puede considerar una novela en episodios, la ambivalencia de la frontera se multiplica y aparece en todos los aspectos importantes de la vida del narrador, demasiado parecido a Ricardo Aguilar Melantzón, su autor. Observam-se desse modo correspondências estéticas que parecem responder literariamente à apreensão de fragmentação dos sujeitos envoltos nas relações de alteridade do entorno fronteiriço que há muito divide (e une) México e Estados Unidos. Dado o fato de que a historicidade dessas relações revela uma história de contato e conflito já praticamente bicentenária, há como verificar a incidência nas obras e suas influências, reletida no modo de narrar/contar suas histórias, de um eixo comum, o movimento migratório no entorno fronteiriço sobre o qual debruçam suas ficções, o qual aproxima as abordagens narratológicas à re(a)presentação, e discussão, de um evento histórico de longa duração, aos moldes das teorizações do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985) sobre os tempos históricos de curta, média e longa duração 94. A ambivalência fronteiriça para a qual cobra atenção Lozano Franco, essa bi valência nas histórias e nos sujeitos fronteiriços que trazem a suas ficções escritores chicanos como Tomás Rivera e Ricardo Aguilar recebe hoje um olhar crítico ainda mais atento, como é o 94 Nome fundador da escola historiográfica que seria conhecida como Nova História, o francês Fernand Braudel (1902-1985), em seu Meditarranee, LA: L' espace et L' histoire (1949, 1958), teoriza sobre a dialética das durações do tempo histórico, dividindo-as em: tempo curto, médio e de longa duração. O autor identifica o tempo curto com o tempo individual dos acontecimentos e dos personagens históricos. Já o tempo de duração média estaria ligado ao campo da economia, cujas durações influenciariam os caminhos da história social. Por fim, o tempo de longa duração estaria vinculado a estruturas mais duradouras, a movimentos seculares (ou mais que isso; e, neste caso, pode-se equivaler o tempo à noção de estrutura) de longa duração. Tal durabilidade dos tempos históricos importa para a análise do caráter de permanência dos imaginários trazidos à tona em ambas as narrativas ora em destaque. 203 caso da crítica bi-borderlands que amplia os horizontes da anterior crítica borderlands procurando aquela girar, como afirma a intelectual chicana Dra. Graciela Silva Rodríguez (2012, p. 19), “en torno a la visión sociocultural, literaria y lingüística de la frontera entre México y Estados Unidos, así como sus extensiones geográficas a unas 600 millas al norte y al sur”. Tal crítica responde por uma perspectiva que vá algo mais além da noção de linha fronteiriça para o entorno entre o norte mexicano e o sudoeste estadunidense, contemplando, dessa maneira, um verdadeiro caleidoscópio de imagens, personalidades e identidades na ampla extensão pela qual se dão as relações sociais, de alteridade e a produção cultural e literária de sujeitos de ambos os lados dessa fronteira, em verdade, bem maior do que supõe a visão de seus já longos limites geopolíticos. Rivera e Melantzón e suas construções literárias de eventos e sujeitos fragmentados entram na captação de uma análise crítica de bifronteiridade cultural e literária. Carlos Fuentes não é um sujeito desse extenso entorno, mas seu interesse de leitura e apreensão do que ali se passa deixa com que capture ao menos parte desse espírito, dessa mystique bi-fronteiriça na fragmentação extrema de seu La frontera de cristal, aproximando-se por interesse à temática, embora deixando transparecer suas heranças mais arraigadas. A aproximação verificada leva Fuentes a um contexto maior de apreensões e observações em seus estudos e abordagens sobre o que chama de as três hispanidades. Há, portanto, a representação não de um ponto de cisão, mas, acredito, de uma linha continuadora e mais avançada em relação aos interesses de sua corrente intelectual sobre o que se escreve e se pensa a respeito e a despeito das gentes de seu país. A intenção maior de um intelectual é ao fim e ao cabo a de contribuir de alguma maneira com as áreas do conhecimento sobre as quais se imiscui e se propõe a dialogar e, muitas das vezes, confrontar. Parece-me inegável, contudo, que, por ainda reverberar ecos de pensamento ideológico de uma mesma linha de parte da intelectualidade mexicana, em La frontera de cristal Carlos Fuentes termina por contribuir para a composição de imaginários a partir de uma visão até certo ponto pessimista do sujeito mexicano, numa linha de pensamento muito próxima à de toda uma geração de intelectuais de países em posição de minoritariedade com relação ao “mundo desenvolvido”. É importante notar também que, no que se refere a posicionamentos intelectuais e ideológicos materializados em obras escritas, há que se levar em consideração que tudo demanda de questões de escolha, de seleção, de situação e contexto social e político em que se está envolvido, ou seja, o contexto de sua época, da época em que compuseram seus argumentos os pensadores aqui elencados e sua formação intelectual. Há que se ressaltar, por fim, que a agregação, a transformação de pré-conceitos estabelecidos a preconceitos se dá por 204 conta também do receptor. Fuentes, Ramos e Paz trabalham com conceitos que desenvolveram durante anos, apontando a visão de parte da intelectualidade do seu tempo, interferindo sobre ela suas instâncias de formação rumo à leitura de um tempo, diferente daquela que outros dedicariam em tempos de um mundo já em outros contornos, com um contexto de época, de tendências e teorias distintas. Fuentes e seus antecessores trabalham com o que tinham à época à mão, com os meios de estudo, com a forma e metodologia de estudar de que dispunham, e com as ideias e teorizações cabíveis, talvez, ao seu tempo. A ação mais direta da literatura sobre e com imaginários nacionais já foi mais evidente na formação de identidades nacionais, na ação de tentar instituir e chamar importância para o destaque da chamada cor local. Tal intencionalidade é atualmente, a meu ver, mais discutível, ainda que, conforme procurei demonstrar, possa equivaler-se ao demarcamento de pensamentos de resistência, ideologias de teor libertário caras ao intelectual que quase sempre se propõe, como parte de uma coletividade, também um porta-voz dessa mesma coletividade. No que toca às influências intelectuais de e em Fuentes, acerca de Octavio Paz é importante observar que o impacto de seus argumentos não recai apenas sobre seus conterrâneos mexicanos. Por isso, procurei destacar também a busca inicial de uma intelectualidade chicana por encontrar suas raízes no México e na leitura de seus intelectuais como uma espécie de pedra fundante desde a qual dariam vez ao poder dinâmico e de resistência chicana in USA. A leitura de, e admiração intelectual chicana por autores clássicos como Paz pode ser mesmo observada, por exemplo, no texto de uma carta de Tomás Rivera endereçada ao intelectual mexicano, pouco tempo após a publicação de seu ...y no se lo tragó. Nela, Rivera comunica que envia adjunta sua obra que vai “como testimonio de admiración y también como testimonio de uma consciencia despertada desde aquel momento en que leí El laberinto de la soledad.” (RIVERA, [1972] 2012, p. 262 – grifo de datilografia do autor). A admiração a que se refere Tomás Rivera pode ainda ser atestada se trazemos, a duas pontas de medida, o ensaio paziano “El pachuco y otros extremos”, componente de El laberinto, e o conto riverano “El Pete Fonseca”. O conto de Rivera, excluído da composição final de seu único romance por razões mais bem temáticas que estruturais, tem por protagonista um sujeito “chicano” burlesco e enganador que se aproveita de uma mãe solteira e seus filhos, desaparecendo ao fim da história com o carro e todo o dinheiro da família. Podese, assim, questionar se o pachuco criado por Rivera não acaba por re(a)presentar talvez os mesmos extremos de que fala Paz em seu ensaio. A resposta talvez esteja no fato de que em um primeiro momento, na tentativa de afirmação de uma identidade chicana, a figura do pachuco abordada por Paz foi explorada por um emergente discurso chicano politizado entre 205 os anos de 1960 e 70 como marca de diferença, até, enfim, ser tomado como estereótipo (Cf. RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 16). Nesse aspecto, são tão passíveis de relatividade e suscetíveis a discussões as situações evocadas, que um conselho mordaz de Roger Bartra (2000, p. 77) pode também servir de interessante aviso ao leitor/receptor: [E]s necesario un proceso de decodificación-recodificación en el que los signos de identidad cultural descifrados deben ser enmascarados de nuevo con nuestros propios signos (el proceso que va del desenmascaramiento de inferioridades, hipocresías y soledades mexicanas a la reconstrucción del canon del axolote). Tal aconselhamento, segundo minha visão, pode esbarrar ainda, como venho buscando atrair a atenção, nas instâncias receptivas do leitor/receptor e em sua responsabilidade para com as muitas tramas das quais se aproveitam as teias de um imaginário. A literatura, a ficção é responsável por sua realidade interna; mas, nunca é demais atentar-se para a identificação possível com o mundo irrealizado, o qual pode, porém, ser tomado como real por um receptor enredado pela ficção do como se. De minha parte, posso dizer que aquele que se aventure a estar presente, por exemplo, entre os dois (e mesmos) lados bi-fronteiriços que são El Paso (EUA) e Juárez (México) poderá receber um abraço que o traga junto à frase “En el México dominado toma acá un abrazo mexicano”; e ouvir em congressos afirmações intelectuais de assumida identidade chicana por rechaço, mesmo linguístico, ao discurso hegemônico de ambos os lados; ou ainda ouvir sentenças como “Acá no les gusta eso de ser chicano, gente que reniega sus propias raíces”; ou mesmo ver um ativista chicano, de marcado sotaque inglês estadunidense em seu espanhol, chamando a gringos “eses anglo-americanos”, esses “pinche gringos”, qual talvez diria, embarcada quem sabe em uma ficção de cidadania, uma professora mexicana US citzen radicada em uma universidade de Pittsburgh, Pensilvânia (EUA). Todos aqui anônimos, entretanto, como as vozes corais que adentram as narrativas de Rivera em ...y no se lo tragó la tierra. Reitero, por fim, que a configuração e a existência, resistência e caráter de permanência de um imaginário só se dá em comparação com o real vivido. Caberia ao leitor, então, à guisa de uma proposta platônica ir de hipótese em hipótese até chegar ao ponto que não admite hipóteses. Mas, não raro, o receptor o que faz é ir de imagens em imagens até que tome como princípio de tudo o imaginário. Nesse tocante, o valor de envolvimento de uma obra literária toma o leitor como fosse um atalho para esse tão difícil princípio de tudo, deixando-o, no espaço ao mesmo tempo ínfimo e infinito do toque do Deus e do Adão de Michelângelo, nos liames (im)possíveis da complicada fronteira entre o real e o imagético. 206 CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente trabalho de doutoramento, abordei a relação literariedade, imagem e imaginários como tema. Através de uma leitura atenta do corpus ...y no se lo tragó la tierra de Tomás Rivera e La frontera de cristal de Carlos Fuentes pude comprovar da vinculação em destaque o encadeamento possível entre literatura e fomentação de imaginários. Ao longo da presente tese, o objetivo foi traçar uma linha que, desde a análise crítica dos romances em tela, atestasse o valor da literariedade em ambos, o forte teor imagético das narrativas, ou seja, de produção de imagens pela linguagem literária e, por conseguinte, sua capacidade para se atrelarem a imaginários. A razão da escolha de ambas as obras vai ao encontro da identificação de pontos comuns entre as temáticas em que se ancoram as ficções orquestradas, mas, também, pelo encontro de aproximações em sua estética e construção narrativa fragmentada. Os dois romances ficcionalizam sobre a fronteira México-Estados Unidos e as consequentes conturbadas relações de alteridade que ali se dão. A estruturação das narrativas em forma de fragmentação corresponde a uma mimetização estética particular da igual fragmentação dos sujeitos envolvidos em tais relações de identidade. Mas, essa estruturação fragmentária no romance de Carlos Fuentes indica ser fruto de leitura e apreensão de um estilo caro a certos autores chicanos de abordagem bi-fronteiriça. No primeiro capítulo do presente trabalho de doutoramento dei margem a apresentar os traços teóricos definidores do estudo. Ali pude explicar os porquês da eleição de visão literária desde a noção de literariedade, evidenciando que as duas obras em tela trazem dentro de seu estilo características marcantes de singularização, de efeito de desautomatização e estranheza, compondo, dessa maneira, ainda com o dinamismo que empreendem à forma romance, um conjunto de noções vinculadas à noção que o formalismo russo cunhou como literariedade. É, aliás, ao formalismo russo que se atêm as principais correspondências teóricas verificadas como viáveis a partir da leitura crítica extraída dos dois romances. Ainda no primeiro capítulo, voltei atenções para a filosofia clássica de Platão no que tange aos momentos em que o filósofo grego dedica sua dialética para deslindar sua conceituação sobre a questão da imagem em comparação ao conceito de ideia. A seguir, dei passo à retomada da argumentação platônica para a imagem pelo filósofo francês do imaginário Gilbert Durand. A aproximação do conceito de imagem aos de imitação e semelhança e a categoria de imaginária para o que se pode entender como colecionário de imagens por parte de religiões (especialmente a católica, que é aquela a partir da qual Durand 207 mais se detém) que tenham por parte de seus dogmas a adoração e o culto a ídolos foram os pontos a se destacar do material pesquisado. Fechou o primeiro capítulo meu olhar mais detido para uma teorização que não visse ou apresentasse o imaginário como, menos que um conceito, uma palavra dada, quase um senso comum. Nesse aspecto, destaco a contribuição dos estudos do crítico literário alemão Wofgang Iser ao desenvolver suas incisivas opiniões sobre a ficção do como se. A única ressalva, porém, adere-se ao fato de que o teórico alemão termina por não dar tanta atenção ao entendimento do imaginário como faculdade mental, fator que busquei pautar ao longo de minhas explanações. No segundo capítulo, as teorias dispostas em separado no segmento anterior passam a encabeçar a análise crítica do corpus da presente tese, com destaque, nesse segundo apartado, para o romance de Tomás Rivera. Passei, então, a ressaltar a narratividade da obra, a imaginária que atravessa suas linhas em tom de questionamento de sua validade em solo estadunidense e a relação da obra para com imaginários, observando que tal correspondência se dá a maior parte do tempo num teor de posta em xeque, havendo, ainda assim, uma ligação mais estreita com imaginários sobre a “oratura” chicana. Nesse capítulo, aos teóricos já mencionados agreguei o trabalho com a preciosa contribuição dos professores da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA) Julio Ramos e Gustavo Buenrostro e uma comparação com a visão de Aristóteles para a imagem, a partir de preceitos desenvolvidos pela antropóloga brasileira Sylvia Caiuby Novaes sobre as linhas de contato entre a imagem verbal própria de um texto escrito e a imagem visual filmográfica e fotográfica, argumentação de suma importância para a análise de imaginária e relativização de limites entre mimese, quadro, foto, retrato e escultura que Tomás Rivera leva a cabo no conto/capítulo “El retrato”, de seu ...y no se lo tragó. No terceiro capítulo, direcionei argumentos para tratar da análise crítica de La frontera de cristal, de Carlos Fuentes. Nesse segmento também dei passo ao trato da narratividade a partir do que em Fuentes percebi como fruto de uma narratividade coiote de um narrador que, com grande fluência, pelos mais diversos registros linguísticos tenta por sua lábia atrair e convencer o leitor a acompanhar sua inserção sobre a fronteira. Nesse sentido, aspectos culturais e informativos relativos à semantização que envolve o verbete coyote (de canídeo selvagem que engana sua localização pelo uivo ao estranho que se mete em terra e assuntos alheios) foram importantes para abrir esse primeiro tópico capitular que, assim como os dois tópicos seguintes, contaria com a abordagem comparativa à fluência sedutora do próprio Fuentes em El espejo enterrado. 208 No segundo tópico do capítulo 3 busquei destacar o trabalho literário de Carlos Fuentes com a figura de imagem verbal metáfora. Em referência a sua importância para a composição com imaginários, pereceu-me fundamental ressaltar a metáfora em Fuentes em ação de distanciamento para com a alegoria (existente, sim, na obra; mas, fora da possibilidade de agregação por imaginários) e de proximidade para com a metonímia. E é desse trabalho orquestrado em conjunto e da presença do que chamo de metáfora ampla (extensas metaforizações que atravessam contos e até mesmo a metáfora principal do enredo, a de cristal para a fronteira e as relações frágeis e porosas que ali se dão) que resulta a aproximação maior da obra ao contato com imaginários. O quarto capítulo é o responsável nesta tese de doutoramento por dar vez à realização da análise comparativa conjunta das obras que compõem este estudo. Tal capítulo funcionou mais como uma recuperação em conjunto dos termos apresentados anteriormente de forma separada, razão pela qual realizei nele a consecução final de uma seção menor em número de páginas que as anteriores. Recuperada em um primeiro momento a questão da literariedade em ambos, evidenciei que em Rivera ela se dá principalmente pela potencialização que o uso literário da elipse proporciona à ficção de seu romance. Enquanto isso, em Fuentes a literariedade está, principalmente, em justapor e mesclar registros linguísticos que revelam conhecimentos de áreas as mais distintas por parte do narrador, sem perda da fluência de fraseos do e no que se conta. Em seguida, o passo comparativo é do que há de implícito na linguagem literária de Tomás Rivera ao que há de explícito na de Carlos Fuentes. Contribui abordar o papel inverso da imagem transluzida dos autores em seus narradores. Assim, ao contrário do que levaria a crer, a ligação que uma pesquisa mais atenta aponta para o forte vínculo entre a vida de Rivera e os eventos que conta em seu romance não se deixa transparecer tanto na figura do narrador criado por ele, quem traz os seus implícitos para o campo da invenção, da ficção, revelados de modo prospectivo nas “respostas” dadas pelo mesmo Rivera em ensaios seus posteriores. Na outra ponta da linha comparativa que estabeleço, temos um Fuentes cuja linguagem literária de explícita construção de imagens verbais acaba por revelar facilmente uma incrível proximidade da verbosidade e conseguintes “posicionamentos” de seu narrador para com seu criador fuentesiano. Tal correlação se mostra em Carlos Fuentes de maneira retrospectiva, em análise voltada com seus argumentos expressados no anterior (em relação à ficção de La frontera) conjunto de ensaios El espejo enterrado. 209 Ainda nesse segundo tópico do último capítulo, trato sobre a imagem da fronteira alargando-se em ambos: um problema cultural na ficção de Rivera, para além da conceituação geopolítica; e, em Fuentes, para além de problema cultural também evidenciado em sua obra, a fronteira metaforizada, protagonista e espaço-ímã para onde a narrativa converge os demais personagens da obra. Logo após, retornei ao termo “imaginária” para contrapor seu uso literário nos dois romances. Analisados em conjunto, trechos de “El retrato” em ...y no se lo tragó la tierra e de “Las amigas” em La frontera de cristal apontaram para a conclusão de que a imaginária em Rivera se vê sempre em posição de questionamento da validade de costumes em uma cultura hostil a tais aspectos; enquanto que, em Fuentes, a abordagem literária de apego mexicano à imaginária tende a ser o mais das vezes fomentadora de préconceitos totalizadores. No terceiro tópico desse último capítulo, encerro minha abordagem voltada para imaginários, em consonância com sua possibilidade de composição com a literatura, minha atenção principal no presente estudo. Nesse sentido, volto para a subversão narradora em relação a determinados imaginários no romance de Tomás Rivera, não deixando, entretanto, de reiterar a posição adotada de potencialização, de realce de uma espécie de caló chicano, advindo da oralidade e do registro de chicanismos na escrita. Nesse ínterim, Fuentes está em lugar entre a herança de uma visão intelectual mais pessimista para o sujeito mexicano e uma visão algo mais atenta para a miríade de imagens advindas dos encontrazos de alteridades fronteiriças entre mexicanos, estadunidenses e chicanos. Assim, realço que Fuentes se aproxima de uma linha de temas bi-fronteiriços, trabalhando sua ficção de maneira semelhante à qual trabalharam autores chicanos como Tomás Rivera e Ricardo Aguilar Melantzón. As instâncias de formação intelectual de Fuentes, entretanto, parecem não deixar que seus posicionamentos se afastem tanto, ao fim e ao cabo, de autores a ele precedentes como Samuel Ramos e Octavio Paz. Na relatividade de posicionamentos tomados, chama atenção que Tomás Rivera e toda uma intelectualidade chicana também tenham, em dado momento, demonstrado grande admiração por Paz e muito de suas argumentações, com destaque para a tomada de pachuquismos como marca assumida de diferença. Penso que, com um processo de formação de uma identidade chicana ainda em andamento à época do lançamento do romance riverano, é natural pensar em sua posta em xeque a imaginários precedentes sobre me(x)chicanidades como parte da postura compreensível de um autor com conhecimento de causa, o qual, assim como Aguilar Melantzón, fala desde a fronteira; enquanto as mex-(anglo)-chicanidades extraídas da leitura de La frontera de cristal mostram um intelectual interessado em 210 contribuir, por meio de seu ensaio e também de sua ficção, para que se pense a causa chicana, demonstrando conhecimento da causa, falando, entretanto, sobre a fronteira. Com a materialização do longo estudo que ora se encerra, espero estar contribuindo para a característica que ainda detém a literatura de compor com imaginários. Nas obras em relevo, destacam-se a literariedade e a construção de imagens e o forte teor imagético dos romances estudados como seu caminho de aproximação, de leitura aproximativa a imaginários. É sabido que em um passado nada remoto a literatura já buscou compor com a formação de identidades nacionais. A questão da intencionalidade aqui subjaz a uma questão a meu ver maior: a de releituras feitas (inclusive as de um autor clássico em um sistema estabelecido, destinado a ler autores clássicos de um subsistema ainda imprensado entre dois outros de grandes proporções). Tais releituras pressupõem um anseio de contribuição com questões do real empírico levadas às raias da ficção. É nesse lugar entre que jogam papel sumamente importante as instâncias de recepção do leitor para que não “caia” em imaginários que se lhe achegam tão próximo quanto um real vivido. 211 BIBLIOGRAFIA ACUÑA, Rudolfo. Occupied America: A History of Chicanos. 3ª ed. New York: Harper Collins, 1988. 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Anexo 2: Escaneamento das capas das edições de 2011 (à esquerda), da Piñata Books, e da preciosa edição argentina (de fato, a primeira edição latino-americana da obra) de 2012 (à direita). Na capa de Piñata Books, a imagem é alusiva tanto ao conto que dá título ao livro quanto ao conto “La noche estaba plateada”, quando há um desafio à figura do diabo. 222 Capas de La frontera de cristal Anexo 3: Capa de edição brasileira de 1999, publicada pela Editora Rocco. Imagem com destaque para a figura da Virgem de Guadalupe, santa “indígeno-católica”, padroeira do México, tatuada, em foto alusiva, provavelmente, à figura de um coiote. Anexo 4: Capa de edição de 1997, publicada por Alfaguarra. Imagem alusiva ao conto “La raya del olvido” e, por conseguinte, à figura do cadeirante de sugestivo nome Emiliano Barroso, irmão pobre do poderoso Leonardo Barroso. O personagem Emiliano, velho e doente é levado por seus delírios a uma imaginária linha fronteiriça 223 mexicano-estadunidense fosforescente. Ali, após esquecer-se de quem é, termina por recobrar consciência sobre seu passado. Anexo 5: Capa de edição de 2007, publicada por Alfaguarra. Imagem alusiva à cena final do conto que empresta seu título ao romance. Esta edição transfere o subtítulo una novela en nueve cuentos para o interior do livro. Anexo 6: foto de um bar do lado mexicano da fronteira Juárez (México)-El Paso (EUA). Anexo 7: Outdoor do lado estadunidense da fronteira El Paso (Texas)-Ciudad Juárez (Chihuahua). 224 Anexo 8: capa de revista mexicana antes de partida decisiva entre as seleções de México e Estados Unidos, durante as eliminatórias para a Copa do Mundo de Futebol 2014. Anexo 9: Fotografia das bandeiras dos Estados Unidos Mexicanos e dos Estados Unidos da América do Norte, lado a lado na ponte que separa El Paso (Texas) de Juárez (México).