Uma perspectiva da aprendizagem do Aikido Introdução O Aikidô abraça princípios universais, que não são particulares ao Aikidô, podendo levar um praticante (munido de bases sólidas), à escuta desta característica fundamental, a progredir com inspiração. Defendemos um ensino tradicional, aberto ao mundo e à nossa época, que tenta preservar aquilo que deve ser preservado, sem dogmas religiosos, científicos ou outros, incluindo atitudes artificialmente rígidas, mas antes movido por um conhecimento que se quer tendencialmente desinteressado. ____________________________________________________________________ Uma perspectiva da aprendizagem do Aikidô Fundamentalmente, o Aikidô funciona como a arte, partindo do menos manifesto para o mais manifesto. Na aprendizagem, em vez de se limitar a acumular muita informação, é útil favorecer o estabelecimento da noção de percepção, de abertura, de disponibilidade, isto é, um saber com tendência a regenerar-se e a abrir horizontes. O corpo deve ser conjugado e integrado com a noção de conhecimento (um corpo que liberta – no imediato é difícil dar conta plenamente deste facto), e com movimentos que deverão ser naturalmente relacionais e interiorizados. Devemos evitar um corpo refém do efeito de "leitura", mas dar hipóteses a uma compreensão, a uma assimilação, interiorizando aquilo que está a ser transmitido, para tentar devolver a vida a um escrito, ou a um gesto no nosso caso. A harmonia que os praticantes procuram no Aikidô é experimentada por actos sentidos do interior e expressados eficazmente e naturalmente por fora. Não podemos construir a harmonia do exterior (um exterior indefinidamente absoluto), mas é a própria harmonia que edifica gestos e que a revela como tal. A execução da técnica em forma de astúcia (truque) expedita (na maior parte das vezes, com uma redução repetitiva a uma estrutura binária: acção - reacção), que adopta uma determinada estratégia para "resolver", faz lembrar que a hipótese da falta de plena integração connosco mesmo, pode limitar a inteligência duma constante e saudável adaptação, tal como é sugerido nalguns aspectos aleatórios da realidade. Em tom de brincadeira: não amamos a omoplata da nossa apaixonada, mas conhecemos a nossa companheira como "um ser vertical" onde as partes, mental, física e espiritual adquirem todo o seu sentido quando não estão artificialmente separadas por uma visão imediatista e empobrecida, e onde a singularidade das nossas preferências só vem confirmar (mas não explicar) a nossa relação. No corpo (em repouso ou em movimento) a noção de linguagem é no mínimo potencialmente subjacente. Podemos no entanto, com determinados objectivos, "congelar" artificialmente, compartimentar, separar algo do seu meio natural para estudar alguns aspectos da realidade. No entanto, mesmo com precauções e respeitando uma metodologia adequada, não conseguimos impedir a fuga de factores fundamentais (que nem sempre são evidentes à primeira vista), importantes para este "ecossistema à escala humana", e que parecem tomar conta duma certa poesia de vida, participando indirectamente na acção de se conhecer (e se reconhecer) com uma certa profundidade. Esta maneira integrada de aprender/conhecer e de fazer progressos "em espiral" implica, a prazo, tomadas de consciência regularmente actualizadas que podem ajudar no futuro, sem criar obstáculos fictícios ligados a "patamares de aprendizagem" mal concebidos. Na aprendizagem do Aikidô o problema não é tanto saber o que se deve fazer, mas com estudo, interiorização, desempenho e alguma sabedoria, saber o que se deve evitar fazer, para não destruir a sensibilidade e capacidades latentes (às vezes demonstradas) dos nossos alunos. Às vezes, aquilo que chamamos pomposamente cultura (ou a constatação da sua ausência total) cria mais seres esquizofrénicos e violentos, que indivíduos autónomos, conscientes, capazes de agir naturalmente com o sentido da harmonia, da proporcionalidade e da oportunidade (não confundir com o defeito que representa a forma de ser oportunista). É quase escusado dizer que as qualidades encaradas pressupõem não estar sob o constrangimento dum discurso duma pseudo moral, duma filosofia barata, ou da obsessão do politicamente correcto. Relativamente à abordagem do corpo, o Aikidô e o seu ensino devem criar uma prática com um clima que desperte indirectamente a implicação dos indivíduos. A exigência que esta decisão comporta deve ser aclarada com a preocupação de conduzir este processo duma maneira cuidada, de acordo com o nível de cada um. "Esticar a corda", pode ser convertido numa intensidade justa que funciona em variadíssimas áreas: esforço em vários domínios, concentração, percepção do espaço / tempo. A concordância do conjunto "alinhamentos, ligações, centragem e intenção", permite um contacto mais íntimo consigo próprio e aquilo que nos rodeia, e favorece o despoletar progressivo da interiorização. A capacidade de automatizar gestos ou estruturas gestuais com características plásticas deverá prioritariamente passar pelo seu sentido ou seu significado, respeitando naturalmente os constrangimentos estruturais postos em jogo. É por isso que no início, o trabalho da intenção ligado a técnicas e ataques é tão importante e representa um efeito diferido que inicia e mostra toda a sua utilidade a partir do momento que a técnica começa a ser substituída por ter cumprido o seu papel, em proveito da consciência ou das decisões que libertam uma resposta motora ou outra. Por exemplo, quando a sede se impõe na nossa consciência, interiorizamos "tenho sede", e esta constatação desencadeia, dirigir-se à cozinha, abrir o armário, e talvez ainda, evitar o pacote de cereais posto inadvertidamente à frente dos copos, pegar o copo sem o derrubar, deslocar-se perto da torneira, deixar o copo encher-se na quantidade certa, trazer o copo à boca, tudo isso, feito a pensar no problema que temos de resolver com o filho. O "movimento natural" é de facto um verdadeiro milagre de engenho e de talento… A um nível mais somático (ou "visto do exterior"), a tomada de consciência dos alinhamentos vai permitir limpar tensões desnecessárias, ajudando o indivíduo a colocar-se na acção com firmeza e com maior conforto. Em várias circunstâncias (e com significados diversos) há músculos que se contraem como "por simpatia", por mimetismo, em relação a um músculo vizinho. Até pode parecer que uma zona do corpo é dotada de um só músculo! Na maior parte dos casos, porém, mesmo que os próprios tomem consciência do sucedido, não podem corrigir no imediato estas reacções nefastas, elas não desaparecem tão facilmente, sendo necessárias intervenções apropriadas por parte dum professor competente e da colaboração estreita e permanente do aluno. O reconhecimento da noção de verticalidade acordado com a relaxação do corpo vai permitir sentir o peso (o seu ajustamento) sobre os apoios, e assim poder, numa sensação de sentido inverso, encarregar-se, entre outras coisas, de ajustar subtilmente essa verticalidade. Este exercício é utilizado para respeitar uma certa naturalidade gestual, e numa escala de realização mais avançada, criar "movimentos mais densos". Alguns agentes de ensino têm por hábito apresentar as técnicas colocando em evidência aquilo que elas partilham. Os apoios e a chegada duma técnica ou dum ataque, passando pela "origem" são indicadores que permitem aos praticantes evidenciar a importância do trajecto, da localização do todo e das partes articuladas, dos apoios e da conjugação que fazemos com a sensação devolvida pelos eixos: céu/terra, direito/esquerdo, frente/trás. Ao abordarmos procedimentos, as técnicas apresentam qualquer coisa de "memória estática". Por exemplo, beber um copo de água, respeita factores quase permanentes, como o facto de trazer sempre o copo à boca (e não ao olho [para falar de "conteúdo" ou sentido da acção e não se limitar ao descritivo duma simples trajectória], controlando o movimento do líquido). À volta de alguns factos que fazem sentido, o movimento adapta-se e regula-se. Quando o corpo parece tornar-se aparentemente um impeditivo, o agente de ensino deve evitar, quando for possível, o corrigir de fora. Uma correcção deve colocar o movimento numa relação estrutural, na tentativa de suscitar uma resposta que produza efeitos perceptíveis cujo sentido seja compreendido. Se fosse possível encontrar alguém que nunca tivesse cumprimentado outra pessoa, o interessado deveria ser iniciado com alguma delicadeza, por forma a afastar uma concretização gestual ponto por ponto (como um robot) que não deixa espaço à individualidade ou à personalidade. Os procedimentos ou técnica podem ser o "resultado" aparente do que uma conduta revela. O importante é preservar a chama que faz mover o gesto. Não é através de encadeamentos de técnicas coladas ponta a ponta que podemos construir artificialmente uma vida. Simplificando, podemos dizer que a nossa vida é um encadeamento natural. Até à nossa morte, as nossas acções são encandeadas (em sucessão) duma forma significativa, seguindo a personalidade de cada um, vulgarmente atenta às circunstâncias exteriores e interiores. Por outro lado, quando o passado deixou marcas, o comportamento encontra-se às vezes incomodado ou inibido. O medo é igualmente um outro travão. A ignorância duma saudável reacção ou dum procedimento pode também ser fatal. As técnicas de Aikidô devem ser aprendidas e apreendidas como um tema, e não como uma "técnica obrigatória". Cada técnica tem o seu leque de alinhamentos que a diferencia das outras. É procurando realizar aquilo que é dado como modelo, que um aluno desenvolverá mais facilmente a sensação concreta daquilo que ainda lhe escapa, e enfim, um dia, realizar aquilo que lhe foi pedido. Para um agente de ensino experimentado, é bastante fácil ver o aluno tentar libertar-se da situação onde ele se encontra, e seguir os seus progressos. Na execução duma técnica ou dum ataque, existem algumas maneiras, consciente ou não, de a tornar instável, irregular. Para permitir a aprendizagem, temos que tomar consciência destas formas irregulares. Para os alunos mais graduados, a prática orienta-se mais no seu sentido (intenção limpa, sem interferências) do que na sua manifestação mecânica. Se estas formas irregulares são o resultado duma anomalia qualquer, ela deverá ser abordada e corrigida ao seu nível. Ao tentar resolver um problema de matemática, se alguém altera o seu enunciado antes de ser finalizado, nunca será possível resolver ou ressentir aquilo que não funciona. Para os principiantes é preciso estabelecer uma ligação entre aquilo que é pedido e aquilo que se faz. Quando os princípios estão suficientemente assimilados (ligação), pode-se então alterar alguns elementos do enunciado, desde que no mesmo instante, ele consiga tomar conta do que foi modificado, rectificando, no mesmo instante, o que não está ajustado, sem perder a marcha do trabalho (na realidade, no tempo, não há regresso possível). Recordamos que este tipo de aprendizagem é realizado para se conhecer a si mesmo e não para alimentar o ego de qualquer um dos protagonistas. Abordar a relaxação e a respiração é também muito importante para acalmar a agitação mental. Para aqueles que procuram praticar um Aikidô duma maneira integrada e tradicional, esta abordagem é indispensável. Jean-Marc Duclos 16/10/2005 ____________________________________________________________________ Algumas notas Este artigo, não tem a pretensão de dar uma explicação do Aikidô. Da mesma maneira, a palavra kimusubi não foi utilizada por duas razões: a primeira liga-se ao facto de ter a percepção de que não tenho o nível para o fazer, e a segunda, dado que nenhum programa poderá algum dia ensinar ou explicar este fenómeno. O Aikidô ou kimusubi passam pela exigência dum ensino tradicional ou da transmissão viva de "professor a aluno". Por isso a relevância deste artigo é limitada, ficando, em sentido figurativo, no limiar da porta que dá acesso ao Aikidô. Qual o porquê deste artigo? Na Europa, os governos obrigam os agentes de ensino a seguir uma formação organizada pela Secretaria de Estado do Desporto. Para além disso, alguns grandes clubes multi-desportivos, exigem igualmente a apresentação dum programa de ensino trimestral ou anual, segundo uma grelha de critérios estabelecidos pelo modelo desportivo. Neste contexto, e simplificando, o resultado previsível é o de um programa de graduação associativo ser "cortado em bocados", fazendo corresponder um certo número de técnicas com datas estabelecidas, e tudo isso servido numa bandeja e salpicado da teoria da fisiologia do esforço. Por outro lado, nos cursos de formação organizados pelo estado português, é muitas vezes afirmado com razão, a necessidade de prever as nossas acções para atingir os objectivos que sustentamos, caso contrário podemos obter resultados não desejados e por vezes não desejáveis. A abordagem do Aikidô é como a de um céu estrelado. Vê-lo, parece fácil, mas dizer algo que seja parecido a um céu estrelado, é já um problema verdadeiramente delicado. Procurando conhecer algo, o modo de proceder utilizado, participa de uma certa maneira no acto de conhecer. O importante é compreender a relatividade das abordagens e de as utilizar no seu domínio próprio de uma maneira adequada, sem rejeitar nenhuma à partida. É necessário também questionar se a concepção dos programas não é às vezes um pouco contraditória com o essencial que o Aikidô pretende veicular, principalmente em algumas das suas aplicações programáticas (ligadas quase exclusivamente à biologia, que é casada envergonhadamente neste caso, com duas primas de terceiro grau, a psicologia e a filosofia). A incorporação de elementos que não são originalmente pertença do Aikidô é às vezes necessária, mas quais são os critérios que intervieram nesta decisão? Será que este tipo de enxerto toma verdadeiramente conta da sobrevivência da planta? Ou será que inconscientemente brincamos aos aprendizes de feiticeiros, transformando completamente o Aikidô que tínhamos à partida em "outra coisa", garantindo aparentemente o seu aspecto e o facto de se "vender correctamente", mas de qualidade duvidosa em relação a uma herança que provavelmente não compreendemos em toda a sua extensão? É preciso acompanhar os tempos, mas mudar por mudar não está de acordo com um estudo que se respeita, sobretudo se for realizado sob a pressão de cumprir cegamente regulamentos ou normas legislativas (para estar naturalmente na legalidade) geralmente bastante generalistas, e em alguns casos, com um efeito nivelador que se pode revelar discutível. Foi neste contexto, que produzi indirectamente um esboço dum programa de aprendizagem de alcance médio, partindo do geral até alguns detalhes e que corresponde ao acto de ensinar aos menos graduados, acautelando à partida não excluir (in loco) os princípios que me foram ensinados. Tomando em conta os objectivos de cada um (ou da representação que temos do Aikidô), seria interessante começar a conceber um quadro que pretendesse desenvolver uma lógica destinada a negociar a intervenção do desporto na formação dos agentes de ensino do Aikidô.