UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LITERATURAS ROMÂNICAS
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Estudo da significação narrativo-dramática nos romances orais
tradicionais
Ana Maria Fraústo Diogo Correia Paiva Morão
Tese de Doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura,
especialidade de Literatura Oral e Tradicional, sob orientação do
Professor Doutor João David Pinto-Correia
2011
“a tarefa que empreendo é ilimitada
e há-de acompanhar-me até ao fim,
não menos misteriosa do que o universo
e do que eu, o aprendiz.”
Jorge Luís Borges, Elogio da Sombra
“Escrever sempre em estado de sonho.
Reescrever sempre em estado de vigília.”
David Mourão Ferreira (9º e 10º pontos do decálogo
dos processos de escrita, enunciado em entrevista no
Diário Popular de 6 de Junho de 1968)
“Quantas vezes a memória
Para fingir que inda é gente
Nos conta uma grande história
Em que ninguém está presente.”
Fernando Pessoa, Quadras ao Gosto Popular
“ - Then you should say what you mean, the March Hare went on.
- I do, Alice hastily replied; at least - at least I mean what I say that’s the same thing, you know.
- Not the same thing a bit! said the Hatter, why, you might just as
well say that ‘I see what I eat’ is the same thing as ‘I eat what I
see’!….”
Lewis Carroll, Alice’s Adventures in Wonderland
i
NOTAS PRÉVIAS
Quando, na minha infância, minha bisavó e avó me contavam que ”os olhos de D.
Martinho são de mulher, de homem não” ou que “Vindo o lavrador da arada, encontrou
um pobrezinho” … e tantos, tantos mais …, não sabia, nessa altura, que tais “versos”
eram romances orais tradicionais, bastando-me então o prazer de ouvi-los, e nem
imaginava, sequer, que haveria mais tarde de querer tentar analisar o que neles, não
dizendo, se dizia. Para as vozes do passado, de Castelo Branco, na Beira Baixa e de
Montalvão, no Alto Alentejo, raízes mais fundas deste trabalho, a minha primeira
lembrança.
Verificaria, mais tarde, que tal gosto não tinha incompatibilidade com o rigor do
tratamento científico que encontrei nos seminários de Mestrado de Literatura Oral
Tradicional, ministrados pelo Prof. Doutor João David Pinto-Correia. Por isso, ao meu
Professor e orientador, pelo incentivo para que ampliasse o trabalho e empreendesse a
presente tese e por ter acedido a orientá-la com a segurança do seu saber, pela confiança
e gentileza constantes, o meu bem-haja, tradicional e sentido.
Ao Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas
Guerreiro’ e a todos quantos nele laboram, agradeço o acolhimento; lembro, sobretudo,
a amizade da Teresa Amaral, da Lina Mendonça, do Francisco Melo Ferreira, da Beatriz
Lúcio e da Profª Doutora Maria de Lurdes Cidraes e o interesse que a Profª Doutora
Maria Aliete Galhoz sempre me dispensou e ao meu trabalho. Agradeço, também, à
Profª Doutora Berta Beça por me ter permitido consultar a sua Tese de Doutoramento,
não publicada. Ao Centro, os meus agradecimentos pela disponibilização da excelente
biblioteca e pela consulta do seu riquíssimo acervo.
iii
Nem sempre me foi fácil obter as versões que constituem o corpus deste trabalho,
dispersas por tantas publicações. Assim, aqui renovo os meus agradecimentos a quantos
tiveram a amabilidade de me enviar as obras ou artigos que lhes solicitei, como foi o
caso do Prof. Doutor Pere Ferré, do Dr. Domingos Raposo, do Dr. José Alberto
Sardinha, do Dr. Daniel Café, das Câmaras Municipais de Ovar e de Paredes, da
Biblioteca de Tarouca e do Prof. Doutor Manuel da Costa Fontes, a quem, muito em
especial, manifesto o meu profundo reconhecimento.
Este trabalho é devedor de meu Pai, mestre do “dizer não dizendo”. A ele devo,
entre tantas outras coisas, o prazer de ler, tanto Eça ou Camilo como também, de igual
forma, os folhetos dos ceguinhos, que lhes ia comprando.
A minha Mãe, aos meus irmãos, aos meus amigos e, mais do que a todos, aos
meus filhos António, Célia, Maria e Pedro, bem hajam pela paciência deste longo tempo
em que, por vezes, os descurei. Depois, porque tradição é transmitir, este trabalho há-de
ser legado do Simão, do Tomás e da Leonor.
E sem mais palavras, que precisas não são, este trabalho é de e para o António.
iv
RESUMO
Os romances orais tradicionais são composições poéticas de natureza narrativodramática, cujos textos são constituídos por múltiplas versões, sendo dotados de
conteúdos complexos e altamente estruturados. Embora as suas manifestações se
caracterizem por uma expressão elíptica, o seu sentido revela-se sempre numa
significação económica e fortemente condensada.
Para empreender este estudo, quisemos delimitar um corpus justificado e
representativo, formado pelas versões registadas, em BRTPOM, dos romances Bernal
Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha e Gerinaldo, dos quais se traçam
breves histórias externas e internas.
A pesquisa para uma revelação do sentido inicia-se com a análise das
características dos romances e respectivas versões e pela compreensão e influência no
sentido, de factores como o que é explícito e implícito, romance e versão, invariância e
variação. Abordam-se questões relativas à organização da narrativa, à divisão em
sequências, à natureza e posicionamento destas na estrutura narrativa e examinam-se
tipos de estrutura e decorrentes problemas de classificação. Contendo os romances, de
modo implícito, determinados modelos sócio-culturais, faz-se uma interpretação
ideológico-axiológica, propõe-se uma tipologia dos espaços físico, social e familiar e
definem-se as relações de Poder. Nesta perspectiva, apontam-se e analisam-se as acções
cometidas pelas personagens, entendidas como de transgressão.
Com base no exposto, encontram-se, nos suportes significantes directos da
narrativa lógico-temporal invariante e organizada em sequências de cada romance, os
elementos que permitem aceder ao implícito, o que possibilitará a reconstituição de uma
v
narrativa mais vasta e complexa. Esta conduz a um esquema ou “modelo-virtual”,
construção artificial que visa reproduzir a estrutura invariante do romance e,
simultaneamente, registar a anotação de variantes. O sentido assim revelado completase através da significação dos motivos, indexados e não-indexados. Analisam-se as
variações resultantes da produtransmissão, apontando-se casos de transformação da
narrativa e do sentido do romance que as versões revelam, através de elipses,
aditamentos ou contaminações.
PALAVRAS-CHAVE: Sentido, explícito, implícito, invariância, variação.
vi
ABSTRACT
Oral traditional “romances” are poetic compositions of dramatic-narrative nature
whose texts are composed by multiple versions and are endowed with complex and
highly structured contents. Although an elliptic form characterizes their manifestations,
their meaning reveals always on an economic and highly condensed signification.
In order to undertake this study we delimitate a justified and representative corpus
formed by the versions registered on BRTPOM of the romances Bernal Francês,
Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha and Gerinaldo, of which short external and
internal histories are done.
The research of meaning’s revelation begins with the analysis of romances and
versions’ characteristics and by the perception of influence on it of factors such as
explicit and implicit, romance and version, invariance and variation.
Issues concerning the organization of the narrative, the division into sequences,
their nature and location within the narrative structure, types of structure and romances
classification problems are examined. As romances contain implicit certain socialcultural models, an ideological-axiological
interpretation is done, a typology of
physical, social and family spaces is proposed, and Power relationships are defined. On
this point of view, the actions perpetrated by the characters are highlighted and analyzed
as transgressions.
Based on the above, the elements allowing the access to implicit meaning are
searched on direct significant supports of the logical-temporal invariant narrative
organized in sequences of each romance enabling the reconstruction of a wider and
complex narrative. This leads to a scheme or “virtual-model”, an artificial construction
vii
targeting the invariance structure of romance reproduction together with the notation of
variants.
The so revealed meaning completes through the use of indexed and non-indexed
motifs significance. Variations due to production-transmission are analyzed and cases of
narrative and romance’s meaning transformation through ellipsis, additions or
contaminations revealed by versions are pointed out.
KEY WORDS: Meaning, explicit, implicit, invariation, variation.
viii
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
1. O sentido nos romances orais tradicionais ……………………………...
1
2. Objectivos e metodologia …………………………………………….....
4
3. Delimitação de um corpus ………………………………………………
18
PARTE I - A PROCURA DO SENTIDO
Capítulo I – Os romances do corpus ……………………………………...
29
1. Apresentação dos romances do corpus ………………………………….
29
1.1. Bernal Francês …………………………………………………….
30
1.2. Veneno de Moriana ………………………………………………..
36
1.3. Silvana e Delgadinha ………………………………………………
39
1.4. Gerinaldo …………………………………………………………..
42
2. Identificação de outros romances relacionados com os do corpus ……..
48
Capítulo II - Para uma procura do sentido ………………………………
51
1. Características dos romances ……………………………………………
51
2. Explícito e implícito ……………………………………………………
64
3. Romance e versões ……………………………………………………...
67
4. Invariância e variação …………………………………………………...
69
Capítulo III - A organização da narrativa ……………………………….
85
1. Organização narrativa e sequências …………………………………….
85
2. Os romances do corpus ………………………………………………...
91
2.1. Bernal Francês …………………………………………………….
92
2.2. Veneno de Moriana ………………………………………………..
93
2.3. Silvana, Delgadinha e as versões compósitas ……………………..
98
2.4. Gerinaldo …………………………………………………………..
107
ix
3.O posicionamento das sequências na narrativa ………………………….
108
4.Sequências narrativas e sequências dramatizadas ……………………….
110
5.As “falas” das personagens ……………………………………………...
117
Capítulo IV – Para uma perspectiva axiológica nos romances ………….
131
1. Delimitação de âmbitos …………………………………………………
131
2. A construção do espaço físico e social ………………………………….
147
3. A rede familiar – actividades, estatutos e relacionamentos ……………..
153
4. As relações de Poder …………………………………………………….
169
5. Os actos de transgressão ………………………………………………...
185
5.1. Adultério - Bernal Francês ………………………………………..
185
5.2. Incesto – Silvana e Delgadinha …………………………………….
189
5.3. Actos contra a honra ……………………………………………….
195
5.4. Actos contra a hierarquia - Gerinaldo ……………………………..
207
5.5. Feitiçaria – Veneno de Moriana ……………………………………
209
5.6. O Quinto Mandamento ……………………………………………..
212
PARTE II - A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Capítulo I – Os suportes significantes do sentido ………………………..
217
1. Suportes significantes directos e indirectos ……………………………..
217
1.1. Bernal Francês …………………………………………………….
219
1.2. Veneno de Moriana ………………………………………………...
237
1.3. Silvana e Delgadinha ………………………………………………
252
1.4. Gerinaldo …………………………………………………………..
279
2. A elaboração de um “modelo-virtual” dos romances …………………...
294
3. “Modelo-virtual” dos romances do corpus ……………………………..
298
3.1. Bernal Francês …………………………………………………….
298
3.2. Veneno de Moriana ………………………………………………...
303
3.3. Silvana ……………………………………………………………..
307
3.4. Delgadinha ………………………………………………………...
308
x
3.5.Gerinaldo …………………………………………………………
312
Capítulo II – Os motivos na revelação do sentido ………………………..
317
1. Os motivos ………………………………………………………………
317
2. Os motivos indexados em Motif-Index of Folk Narratives in the PanHispanic Romancero …………………………………………………...
319
3. Os motivos não-indexados ………………………………………………
336
3.1. Bernal Francês …………………………………………………….
344
3.2. Veneno de Moriana ………………………………………………..
368
3.3. Silvana e Delgadinha ……………………………………………..
385
3.4. Delgadinha ………………………………………………………...
395
3.5. Gerinaldo …………………………………………………………..
404
Capítulo III – As intervenções na enunciação e no enunciado ………….
419
1. As intervenções e o sentido …………………………………………….
419
2. Apartes e explicações; prosificações parciais e totais ………………….
421
3. As intervenções no enunciado…………………………………………..
455
3.1. Bernal Francês……………………………………………………..
460
3.2.Veneno de Moriana …………………………………………………
479
3.1. Silvana …………………………………………………………….
520
3.2. Delgadinha ………………………………………………………..
543
3.3. Gerinaldo ………………………………………………………….
576
CONCLUSÕES …………………………………………………………..
615
BIBLIOGRAFIA …………………………………………………………
633
Siglas e abreviaturas ………………………………………….....................
633
Bibliografia Activa …………………………………………………………
635
Bibliografia Passiva ………………………………………………………..
651
Bibliografia de versões do corpus publicadas posteriormente a 2000 …….
700
Discografia …………………………………………………………………
703
xi
ANEXOS
GRUPO A – Corpus
Notas à edição do corpus …………………………………………………..
3
Bernal Francês ……………………………………………………………..
9
Veneno de Moriana ………………………………………………………...
111
Silvana ……………………………………………………………………..
249
Delgadinha …………………………………………………………………
273
Versões compósitas de Silvana e Delgadinha ……………………………..
481
Gerinaldo …………………………………………………………………..
532
GRUPO B
B1. Número de versões por editor, por ordem alfabética, de 1828 a 2000...
3
B2. Distribuição cronológica da edição das versões ………………………
6
B3. Distribuição geográfica das versões …………………………………..
10
B.4. Bernal Francês - Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação …………
52
B5. Delgadinha – Versões do “namorado” ………………………………..
57
B.6. Gerinaldo – Versões do sonho do rei ………………………………...
67
B7. Exemplificação da divisão das versões em sequências ……………….
71
xii
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
INTRODUÇÃO
1. O sentido nos romances orais tradicionais
Os romances orais tradicionais1 fazem parte do conjunto de práticas linguístico-literárias designado por Literatura Oral Tradicional 2 , que tem, como características
comuns de base aos textos que nela se integram e que incluem contos, lendas,
provérbios, cantigas, adivinhas e outros, a fixação pela memória e a transmissão oral.
Estas manifestações, que acusam as marcas das culturas predominantemente
orais3, demarcam-se da fixidez dos textos escritos da literatura institucional, pois não se
manifestam num texto único. De facto, o texto do romance é, como o texto literário
conceptualizado por Aguiar e Silva, uma entidade dotada de uma “organização interna
que o configura como um todo estrutural” e partilha com este das propriedades de
“expressividade, delimitação e estruturalidade” 4, mas, ao contrário deste, manifesta-se em
1
Seguimos a definição de romance oral tradicional de João David Pinto-Correia, que, no seu Romanceiro
Oral da Tradição Portuguesa, referencia vários conceitos de outros estudiosos. Segundo este autor, um
romance tradicional será “uma prática significante de manifestação linguístico-discursiva oral de curta
extensão, com natureza e significação poética (em verso longo com dois hemistíquios e acompanhada de
música), de organização predominantemente narrativo-dramática, embora por vezes muito contaminada
pela componente lírica, altamente variável (versões e variantes) em cada uma das componentes textuais
(expressão e no conteúdo) e que, situada na literatura oral tradicional, se insere no extracontexto da vida
social quotidiana de uma comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de lazer)”. Cf. João David
Pinto-Correia [2003], Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, Lisboa, Edições Duarte Reis, 2003, pp.
21-25 (Sigla ROTP). A partir daqui, para nos referirmos aos romances orais tradicionais, utilizaremos
igualmente a expressão “romances”.
2
Sobre o conceito e metalinguagem teórica de “texto da Literatura Popular Tradicional”, remetemos para
João David Pinto-Correia, que esboça uma tipologia mais geral sobre textos (“Não Literários,
Contraliterários, Literários, Paraliterários e Sinliterários”), no último dos quais situa a “abrangente”
designação de Literatura Popular. Dentro desta distingue os “textos populares de êxito efémero”, “os
textos populares tradicionalistas”, “os textos populares tradicionais”, estes abrangendo os “textos” da
Literatura Tradicional Oral, e entre os quais se encontram os romances e os textos da Literatura
Tradicional Escrita, referindo ainda “os textos popularizantes”. Cf. João David Pinto-Correia [1992],
”Para uma Teoria do Texto da Literatura Popular Tradicional”, em Manuel Viegas Guerreiro, coord. de,
Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 101-128.
3
Para a compreensão da maneira como o poeta oral organiza a sua produção e de como o pensamento das
culturas orais se reflecte nos processos narrativos utilizados no romanceiro tradicional, serão
fundamentais estudos como os de Paul Zumthor [1983], Introduction a la Poésie Orale, Paris, Seuil, 1983
e de Walter Ong [1998], Oralidade e Cultura Escrita: A tecnologização da palavra, S. Paulo, Papirus,
1998.
4
Ver conceito de texto literário de Aguiar e Silva: “O texto literário constitui uma unidade semântica,
dotada de uma certa intencionalidade pragmática, que um emissor/autor realiza através de um acto de
1
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
múltiplas versões5 que, realizadas e transmitidas oralmente em espaços diversos e num
grande alongamento temporal, sofrem um processo dinâmico de transformação. O texto
do romance existe, pois, em estado virtual, invariante, sendo concretizado nas versões.
Os romances orais tradicionais, segundo Menéndez Pidal, têm raízes na Idade
Média, constituindo o resultado hispânico do desdobramento dos poemas épicos em
pequenos cantos épico-líricos, por acção dos jograis, que seleccionavam os episódios
mais marcantes, os quais, por sua vez, sofreram ainda um processo de fragmentação e
tradicionalização 6 , processo esse que lhes veio a imprimir um modo particular de
significar. De facto, a tradição oral tende a oscilar entre dar prioridade a uma economia
narrativa ou a uma enfatização da mensagem, pelo que o “não-falante natural do
romanceiro” 7 pode sentir uma certa falta de lógica na estrutura geral da narração, se não
estiver familiarizado com as estratégias narrativas que lhe são próprias. Faltar-lhe-á,
assim, a necessária competência textual, visto que esta, como refere Aguiar e Silva, é a
capacidade não só de um emissor produzir textos como de um receptor decodificá-los, o
enunciação regulado pelas normas e convenções do sistema semiórico literário e que os seus
receptores/leitores decodificam, utilizando códigos apropriados”. Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva
[2002], Teoria da Literatura, 8ª ed., 13ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 574-576.
5
João David Pinto-Correia designa as versões como “fanerotextos”, realizações integradas num texto
global e “sempre virtual” a que chama “apotexto”, cujo conjunto se completará com “todo o
extracontexto social e cultural que o envolve” e que contribui para o que chama a sua “significância”. Cf.
Pinto-Correia [1992], pp. 101-128.
6
Cf. Ramón Menéndez Pidal [1968], Romancero Hispánico (Hispano Portugués, Americano Y Sefardi) Teoria e História, 2 Tomos, 2ª ed., Madrid, Espasa-Calpe, 1968. (Cf. Tomo I, Capítulo V – Los Orígenes
en General, pp. 151-172). (Sigla RoH). Não são concordantes as teses sobre a origem do romanceiro em
geral e a datação dos romances e não nos deteremos aqui sobre este problema, remetendo para o acima
citado estudo de Pidal, bem como para o Capítulo 6. Visão Diacrónica do Romanceiro, em ROTP, pp. 5572 e, ainda, para o Capítulo 2. Origens e Datações do Romanceiro no Vol. I de Pere Ferré [2000, 2001,
2003, 2004], Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna, Versões Publicadas entre 1828-2000, 4
Vols., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, (I) 2000; (II) 2001; (III) 2003; (IV) 2004 (Sigla RPTOM).
7
A expressão é de Diego Catalán, para quem a “cadeia de transmissão” do romanceiro é constituída pelos
seus “falantes naturais”. Diz o autor ser objectivo do IGR “reproducir, simular, la actividad
recognoscitiva, descodificadora, de los consumidores-productores del romancero, com una clara
conciencia de que estamos aprendiendo un ‘linguage’ ajeno, que sus ‘hablantes’ usan (pasiva y
activamente, escuchándolo y hablándono) como parte de un saber adquirido naturalmente”. Cf. IGR, sigla
para Diego Catalán et alii [1984, 1982, 1983], El Romancero Pan-Hispânico - Catálogo General
Descriptivo/The pan-Hispanic Ballad – General Descriptive Catalogue, 3 vols., Seminario Menendez
Pidal, Madrid: IGR/CGR 1a - “Teoria General”, 1984; IGR/CGR 2, 1982; IGR/CGR 3, 1983.
2
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que, além da competência linguística de ambos, “requer outros saberes ou competências
que se situam num âmbito translinguístico, desde o conhecimento das pressuposições
pragmáticas ao conhecimento das regras de argumentação e das normas e convenções de um
8
género literário, por exemplo” . Essas estratégias, no romanceiro, passam pela adopção de
uma forma de representação elíptica, com raras descrições e forte predominância do
diálogo, escassez de didascálias de tempo, espaço ou identificação de personagens e uso
frequente de expressões formulísticas e motivos. A intriga, nestas composições de
extensão relativamente pequena, de cariz narrativo-dramático e que se centram,
preferencialmente, num único episódio marcante, começando e acabando de forma
abrupta, apresenta saltos narrativos, sem ligação aparente entre as sequências. Perante
esta condensação e elementaridade, o ouvinte/leitor é obrigado a pressupor antecedentes
e a antever implicações, de modo a que uma narrativa mais vasta se possa completar e o
sentido pleno do romance se revele.
As características de que estes poemas narrativos se revestem não impedem que
neles se encontrem universos de significação densos e altamente estruturados e que são,
sobretudo, de natureza implícita. A interpretação destes universos não é, porém,
aleatória, devendo basear-se nos elementos explícitos que o texto manifesta
discursivamente, pelo que uma revelação do sentido se obterá pela análise destes, o que
coloca algumas questões fundamentais. A primeira, sobre a qual desde já insistiremos, é
a de estarmos a tratar de textos constituídos por uma multiplicidade de versões, que
raramente apresentam uma coincidência discursiva dos versos que as compõem. Esta
circunstância levanta outras questões, nomeadamente a que se refere à escolha dos
elementos a serem apresentados como a “face explícita” dos elementos implícitos, uma
vez que não analisamos apenas uma qualquer versão de cada um dos romances
constituídos em corpus, mas todas.
8
Cf. Silva [2002], p. 567.
3
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Neste estudo, intentámos resolver aquela e outras questões inerentes às próprias
características do objecto estudado e que aqui apresentámos brevemente, deixando, por
ora, a noção de que o sentido dos romances se revela através da análise de elementos
explícitos e implícitos. É, pois, sobre os meios de o fazer que, sobretudo, nos
debruçamos.
2. Objectivos e metodologia
O objectivo deste estudo é a análise da significação narrativo-dramática nos
romances orais tradicionais, de modo a demonstrar que estas composições, na sua forma
de expressão elíptica e condensada, são dotados de elementos que permitem a revelação
mais completa, se bem que não totalmente disponível, do seu sentido. Pretendemos,
pois, identificar os mecanismos formais de que se serve a langue do romanceiro para
produzir uma parole 9 , que é realizada nas versões dos romances, para, de seguida,
procurar os meios de lhes fazer revelar o sentido. Servindo-nos de um corpus
previamente delimitado, de acordo com as directivas que adiante explicitaremos,
procurámos que este fosse exemplificativo da metodologia utilizada e que a mesma
pudesse a ser aplicada a outros corpora e, de forma geral, ao romanceiro.
Os processos de revelação do sentido são vários e a sua procura far-se-á, em
primeiro lugar, sobre a narrativa manifestada discursivamente, a que chamaremos
“narrativa explícita”. Esta, porém, completa-se com a procura dos implícitos, o que
deverá ser objecto de algumas considerações prévias. De facto, embora os romances
9
Servimo-nos, aqui, da terminologia de Saussure, considerando langue como o conjunto de códigos que
estruturam o romance oral tradicional enquanto género e parole como a sua realização particular (cf.
Ferdinand de Saussure [1995], Curso de Linguística Geral, 7ª ed., Publicações D. Quixote, Lisboa, 1995)
e também da analogia estabelecida por Jakobson: “Dans le folklore, la relation entre l’œuvre d’art et son
objectivation, c’est-à-dire les variantes de cette œuvre d’art interpretée par différentes personnes, este n
tous points analogue à la relation entre langue et parole”. Cf. Roman Jakobson [1973], Questions de
poétique, Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 63.
4
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
possuam uma componente lírica, são, essencialmente, poemas narrativos 10 de grande
diversidade de conteúdos11. Como tal, contam histórias ou episódios em intrigas mais
ou menos elaboradas e protagonizados por personagens cujos comportamentos, ainda
que sob uma perspectiva ficcional, são uma mimese do “mundo empírico”,
distinguindo-se, portanto, do grande conjunto das baladas europeias pelo seu “realismo”
e quase ausência do “maravilhoso”12. Ao representarem o comportamento humano, os
romances, logicamente, integrarão um quadro social e é por esta razão que a revelação
do sentido implica que se considerem os diversos factores de ordem sócio-cultural que
subjazem à sua produção/transmissão.
Deste modo, os romances representam, com frequência, relações de conflito
pessoais, nas quais se insinuam outros conflitos, de ordem social e moral e, sendo
10
Os romances orais tradicionais integram-se no modo narrativo e remetemos para João David PintoCorreia, que propõe a classificação das composições da Literatura Oral Tradicional em macroconjuntos
(composições de carácter lírico, composições de carácter narrativo-dramático e composições
dramáticas), subdivididos em subconjuntos e considerando as vertentes religiosa e profana. Os romances
são inseridos no subconjunto designado como composições registadoras-elementares, no macroconjunto
das narrativo-dramáticas. Cf. João David Pinto-Correia [1993a], “Os Géneros da Literatura Oral
Tradicional: Contributo para a sua Classificação”, Revista de Língua Portuguesa, nº 9, Julho de 1993, pp.
63-69. Posteriormente, essa proposta sofreria alterações e o autor acrescentou ao modo lírico, narrativo e
dramático o das práticas que, nas suas palavras, é “a descrição ou mesmo narração respeitante a uma
prática quotidiana, como o da medicina popular, costumes agrícolas, etc.” Salienta, ainda, que, “nas
práticas, não é a descrição ou a narração por parte do colector que interessa, mas a que é a dita, descrita
ou relatada por parte do informante”. Cf. João David Pinto-Correia [2009], Património Imaterial
Português: notícia das NR / LOT-CTPP (recolhas de Literatura Oral Tradicional) de 2002 a 2007,
Comunicação apresentada no dia 12 de Outubro de 2009, no Colóquio Internacional Literatura Culta e
Popular em Portugal e no Brasil, organizado pelo Departamento de Estudos Portugueses e Estudos
Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no âmbito da jubilação do Professor Doutor
Arnaldo Saraiva.
11
“Segundo o conteúdo” é um dos determinantes para a distinção dos romances, que Pinto-Correia
sumariza, chamando a atenção, tal como Michelle Débax, que cita, para a complexidade da tarefa de uma
definição dos romances “quanto ao referente”. Cf. Vol. I, pp. 19-29 de João David Pinto-Correia [1993,
1994], Os Romances Carolíngios da Tradição Oral Portuguesa, 2 Vols., Lisboa, INIC (1º Vol. 1993, 2º
Vol. 1994) (Sigla RCTOP).
12
Cf. ROTP, p. 18. Ao contrário dos contos tradicionais, o “maravilhoso” pouco intervém no romanceiro,
embora surjam alguns casos, de que damos, como exemplo, e de entre outros, o cavalo de D. Beltrão, que
fala ao pai deste defendendo-se da culpa da morte do cavaleiro (ex: “O cavalo, por Deus querer, ainda
veio a falar”, A Morte de D. Beltrão, em RPTOM, Vol. I, pp. 212-213), as fadas que fadam a Infantina
(ex: “-Sete fadas me fadaram nos braços de minha madrinha”, em RPTOM, Vol. IV, p. 52) ou a erva que
faz pejar quem a toca (ex: “À porta de dona Alvórea nasceu uma erva mui’má // dona Alvórea buliu nela,
logo se sentiu pejada”, A Infanta pejada, em RPTOM, Vol. IV, p. 11-12).
5
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
maioritariamente dialogados13, neles se encontrará uma similitude com os diálogos que
se desenrolam entre locutores reais. Segundo Fernando Belo, “qualquer conversa é um
conflito”14, conceito que se adequa especialmente à forma dramatizada dos romances15,
permitindo que sejam aplicáveis ao diálogo entre as personagens as teorias da
pragmática da conversa e as regras de implicitação conversacional de que fala Adriano
Duarte Rodrigues16. Porém, tal como em situação real, ainda que acções e intenções das
personagens possam ser dadas a conhecer pelos seus actos de fala, o que elas dizem e
fazem não se esgota no seu sentido explícito e mais imediato, remetendo para outros
sentidos, pressupostos e implicados, cuja compreensão poderá depender do
conhecimento do contexto que lhes subjaz.
Assim sendo, a procura de sentidos implícitos não é da ordem de uma
interpretação subjectiva pessoal, mas a que provém de uma análise conjugada da forma
de expressão e da forma de conteúdo, de modo a que a primeira, com o uso que faz de
elipses, redundâncias, expressões formulísticas, motivos ou elementos simbólicos,
desvende as chaves para a revelação do sentido da segunda.
Adoptámos, neste estudo, uma perspectiva literária, orientada para a
analítico-narratológica, mas igualmente comparativa (em certos aspectos da variação) e
13
Referimo-nos, em especial, à tradição portuguesa. Sob a direcção de Catalán, foi realizado um estudo
sobre as tendências estilísticas do romanceiro oral, que concluiu haver na tradição portuguesa uma
proporção de diálogo de 80%. Cf. Diego Catalán [1997], Arte Poética del Romancero Oral, Parte 1ª: Los
textos abiertos de creación colectiva, Madrid, Fundación Menendez Pidal, 1997, p. 76.
14
Cf. Fernando Belo [1991], A Conversa, Linguagem do Quotidiano – Ensaio de Filosofia e Pragmática,
Lisboa, Presença, 1991, p. 44.
15
Sobre este assunto, consultar Pedro Alfonso Ferré da Ponte [1987], Estratégias Dramatizadoras do
Romanceiro Tradicional Português, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1987 (texto mimeografado).
16
Os processos de inferência levados a cabo pelos interlocutores para a produção de sentido devem-se ao
respeito ou à violação do “princípio de cooperação conversacional” postulado por Grice, 1975, 54-70
(máximas de quantidade e qualidade de informação, de relevância e de modo de desenrolar a conversa).
São expressão da violação dessas máximas os sentidos figurados (ironias, metáforas), que servem
objectivos de comunicação diversos. Cf. Adriano Duarte Rodrigues [2001], A Partitura Invisível. Para
uma Abordagem Interactiva da Língua, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 141-155.
6
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
interpretativa17, tendo recorrido, para isso, aos estudos sobre o romanceiro a que nos foi
possível aceder, bem como a teorias de literatura, a obras sobre simbologia e de
informação histórica, sociológica e antropológica, quer em suporte escrito quer na
Internet. Devemos acrescentar que os romances que constituem o nosso corpus de
trabalho, não tendo sido seleccionados por um critério de raridade, que não o são, foram
objecto de vários estudos, de cujos autores nos constituímos devedora; entendemos,
mesmo assim, que o presente trabalho constituirá uma perspectiva diferente e
inovadora, uma vez que o objectivo não é apenas a análise de um único romance ou de
um certo número de versões, mas, encarando embora cada um deles como um texto
único, analisá-los sob denominadores comuns, de modo a permitir conclusões sobre o
seu sentido e, também, sobre os meios de revelação deste.
Reconhecemos a necessidade de não descurar uma perspectiva linguística num
estudo que utiliza a análise do explícito para aceder ao implícito, uma vez que nos
propúnhamos efectuar uma análise da linguagem do romanceiro, enquanto modo
condensado de revelar sentidos mais vastos do que os apresentados pela sua forma
habitual de expressão. Deparámo-nos, porém, com alguns problemas, não só por não ser
aquela a nossa formação de base, mas, principalmente, devido à própria especificidade
do objecto estudado uma vez que, como já havíamos adiantado, não se trata de lidarmos
com uma manifestação única, imutável, ou de um somatório fixo de composições, mas
sim de textos constituídos pela multiplicidade das suas ocorrências (as versões), que
vivem pela oralidade, num espaço temporal e geográfico alargado
17
18
e numa
João David Pinto-Correia aponta quatro grandes perspectivas seguidas por alguns estudiosos do
Romanceiro: a histórico-geográfico-filológica, com as orientações geográfico-histórico-cultural e
genético-histórico-filológica, a analítica, com as orientações linguística, poético-retórica ou estilística e
narratológico-semiótica, a interpretativa, comportando a etno-antropológica, psicanalítica e ideológica e,
ainda a perspectiva musicológica, indicando, para cada uma delas, um vasto número de trabalhos que
considera importantes. Cf. RCTOP, Vol. I, pp. 42-44.
18
O corpus de que nos ocuparemos constitui uma amostragem significativa, pois consta de versões
publicadas desde o ano de 1828 ao de 2000, com uma distribuição geográfica que cobre o território
7
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
diversificada produtransmissão 19 , o que equivale a dizer que cada romance é, na
realidade, o conjunto das suas versões, já existentes ou vindouras, em todo o universo
pan-hispânico. Deste modo, dado que os estudos do domínio das ciências da linguagem,
se orientam, sobretudo, para o funcionamento da língua ou para os textos escritos e os
conceitos metodológicos descritivos apresentados pelos seus vários campos não
apresentam uma terminologia fixa 20 , intentámos adaptar terminologias e definições
conceptuais a este estudo específico.
Pela mesma razão e para o objectivo que tínhamos em mente, procurámos
consultar o maior número de versões dos romances que previamente delimitáramos
como base de trabalho a que nos foi possível aceder21, o que nos permitiu comprovar
diversos aspectos que abordámos e estabelecer uma metodologia. Não esquecemos que
as versões-ocorrência são os suportes de uma virtualidade do texto/romance, sendo,
como dissemos, sustentadas por determinada forma de expressão22, passíveis de análise
por si próprias e susceptíveis de apresentar variações de sentido. No entanto, a presente
análise visa a revelação do sentido do romance e não apenas o de umas quantas versões.
Foi no conjunto das versões de cada um daqueles romances que encontrámos um
esse denominador comum 23 e, igualmente, uma certa constância da organização
nacional, continental e insular. Essas versões são cantadas ou recitadas por membros de comunidades
díspares, de ambos os géneros e de diversas faixas etárias.
19
O conceito de “produtransmissão” é de João David Pinto-Correia, referindo-se ao processo de
recepção, aceitação e reprodução pela comunidade das composições da “literatura oral tradicional”, na
qual o autor situa os “romances tradicionais”. Cf. ROTP, pp. 15-18.
20
Assim o afirmam Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov [2001], Dicionário Enciclopédico das Ciências da
Linguagem, 3ª ed., 2ª reimp., São Paulo, Editora Perspectivas, 2001, p. 11.
21
Referimo-nos a versões dos romances que constituímos como corpus, tanto portuguesas como de
Espanha e América hispano-falante, do Brasil e sefarditas, em obras e locais na Internet, que indicamos
na Bibliografia.
22
É também adiante que, com mais detalhe, referiremos as características da forma de expressão dos
romances.
23
Adiantamos que, embora não fosse nosso objectivo principal a comparação sistemática da tradição
portuguesa com as outras, a leitura global das versões permitiu constatar que o seu sentido é assaz
concordante com o do conjunto pan-hispânico.
8
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
narrativa. À possibilidade de criar uma versão factícia 24 dos romances em causa,
preferimos elaborar um seu “modelo-virtual”, que, neste trabalho, se reporta à tradição
oral portuguesa e que permite dar conta daquela organização nas sequências em que se
estrutura, bem como das suas variantes. Para exemplificar determinados pontos, no
decorrer do trabalho, recorreremos a casos concretos encontrados nas versões,
procurando não privilegiar qualquer delas.
Definimos, desde já, a aplicação de certos termos25 ao estudo dos romances orais
tradicionais.
Ao falar de sentido, reconhecemos as dificuldades da sua definição e dele dirão
Greimas e Courtès que “[A]ntes de su manifestación bajo forma de significación, nada podría
decirse del sentido, a menos que se hicieran intervenir presupuestos metafísicos de graves
consecuencias” 26 . A submetermos a presente análise a um ou outro domínio das
disciplinas da linguagem
27
, considerámos haver uma maior produtividade se
procurássemos uma definição particularizada de sentido do romance; por isso, entendêlo-emos, em primeiro lugar, como o sentido da “fábula”, querendo com isto dizer que
24
Fosse ela na modalidade “artística” ou “científica”, segundo a distinção de Maria Aliete Galhoz, que
lembra, para a primeira, o caso de Ramón Menéndez Pidal com Flor Nueva de Romances Viejos, e, para
a segunda, estudos específicos como os de Samuel G. Armistead, Diego Catalán ou Manuel da Costa
Fontes, em cujo “’construto’ a que se chega é dado sem alteração textual alguma dos versos
contribuintes e indicando sempre e exactamente a fonte contribuidora”. Cf. Maria Aliete Galhoz [2000],
“Breve Reflexão a ‘Algumas reflexões de Garrett sobre o Romanceiro’”, em Comissão Executiva dos
“Seminários Garrett” [2000], coordenação de, Garrett às Portas do Milénio, Lisboa, Colibri, 2000, pp.
107-116. Na “Advertencia” aos critérios editoriais de Gerineldo. El Page y la Infanta, Diego Catalán e
Jesús António Cid referem-se ao”romance de Gerineldo” como “arquetipo”, que não é um “prototipo”
nem imutável, dizendo que, para o conhecer, não basta a recitação de uma qualquer versão nem
seleccionar uma que pareça especialmente representativa, que sempre dará mostras da sua singularidade,
nem, sequer, elaborar uma versão factícia, o que privaria o romance se “una de sus características
fundamentales, la variabilidad”. Daí a publicação de cerca de 850 versões de Gerinaldo. Cf. Diego
Catalán, Jesús António Cid [1975, 1976], ed. de, Gerineldo. El Page y la Infanta, *Vol. VI (1975), **VII
(1975), ***VIII (1976) de Romancero Tradicional de las Lenguas Hispánicas (Español-PortuguésCatalán-Sefardita), Madrid, Editorial Gredos, 1975, 1976.
25
A definição de outros conceitos será feita à medida que forem sendo introduzidos.
26
Cf. A. J. Greimas, J. Courtés [1990], versão espanhola de Enrique Ballón Aguirre e Hermis
Campodónico Carrión, Semiótica. Diccionario Razonado de la Teoría del Lenguage, Vol. I, Madrid,
Editorial Gredos, 1990, pp. 372-374.
27
Remetemos para Ducrot, Todorov [2001], que apresentam uma visão de conjunto das ciências da
linguagem, organizando o Dicionário Enciclopédico em secções (As Escolas, Os Domínios, Descrição –
Os Conceitos Metodológicos e Descritivos).
9
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
nos referimos ao conjunto da “intriga” efectivamente actualizada, explícita, e ao que
nela se encontra de implícito, mediante um “discurso” específico, adoptando os
conceitos do IGR, segundo o qual os relatos romancísticos se encontram articulados em
três níveis de organização poética. A intriga, construção e montagem da narrativa,
exposição da fábula, mediante um discurso (primeiro nível de articulação, elementos
linguísticos, estilísticos e métricos), será “la narración artisticamente organizada”, “el
significante, la expresión particularizada que adopta la fábula”, sendo esta a “série causal de
sucesos cardinales que se sucedem encadenadamente apoyándose en el discurrir natural del
tiempo”. As fábulas são as manifestações dos modelos actanciais ou funcionais que
“organizam sintagmáticamente contenidos ‘míticos’ atemporales” 28.
Retomando as palavras de Greimas que, sobre o que chama “littérature ethnique”,
acentua que “le récit n’est pas un message-occurance autonome mais qu’il est l’ensemble des
corrélations entre toutes ses variantes”29, diremos ainda que também o sentido do romance
é constituído pela correlação do sentido das suas versões, ainda que estas apresentem
variantes, por vezes tendentes a modificá-lo.
Nos romances, o sentido radica também num certo quadro axiológico, uma vez
que as situações narradas, dentro dos temas e sub-temas que os enformam, bem como as
atitudes e os actos das personagens, estão inseridas em determinadas estruturas
socioculturais. Visto que a sua produtransmissão se realiza em uma voz, não única ou
personalizada, mas colectiva, o romance, enquanto texto fazendo parte de um sistema
literário, entender-se-á como plurissignificativo 30 e polifónico, parecendo-nos ser o
28
Cf. IGR, pp. 24-25.
Cf. A. J. Greimas [1976], Sémiotique et Sciences Sociales, Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 194.
30
Segundo Aguiar e Silva, “ [A] plurissignificação pode verificar-se tanto num fragmento como na
totalidade de um texto literário” e “… enraíza-se nas relações metonímicas e analógicas que o símbolo
[literário] mantém quer com as estruturas socioculturais, quer com as estruturas psíquicas profundas e
inconscientes…”. Cf. Silva [2002], p. 662.
29
10
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
conceito de polifonia31 particularmente adequado ao romanceiro. Com efeito, as versões
são produto de transmissão colectiva e o papel dos produtransmissores poderá ser
associado ao dos actores que narram e dão voz a personagens múltiplas, introduzindo,
por vezes, as suas marcas de “autor”, nas variações. Por sua vez, as personagens sem
referente histórico (caso dos romances novelescos) representam, sobretudo, tipos sociais
estereotipados e, consequentemente, de voz colectiva (a adúltera, a assassina, a vítima, a
sedutora).
Por outro lado, os romances têm um carácter fragmentário 32 , pelo que nem a
lógica narrativa é sempre totalmente explícita pelo registo nem apresenta um conjunto
exaustivo de elementos explícitos informativos. Pelo contrário, há neles uma economia
narrativa que se traduz numa condensação significante e em elipses diversas. A elipse é
a ausência de uma unidade da camada profunda na camada de superfície, que pode
reconstruir-se com a ajuda dos elementos presentes nesta
33
. A informação
aparentemente elidida deixa, pois, indícios que permitem a sua recuperação, processada
por anaforização, “uno de los principales procedimientos que permitem al enunciador
establecer y mantener la isotopía discursiva (las relaciones interfrásicas) ”, dando-se a anáfora
[semântica] quando um termo recupera uma expansão sintagmática anterior. Quando o
termo recuperado precede, no discurso, o termo em expansão, a relação denomina-se
catáfora34.
Na perspectiva em que o fazemos, a revelação do sentido do romance dependerá,
repetimos, na análise conjunta dos seus elementos, explícitos e implícitos. O explícito
31
O conceito de “polifonia” de Bakthine, que reconhece que nos textos literários várias vozes falam
simultaneamente, serve a Ducrot para esboçar uma teoria polifónica da enunciação. Desta, reteremos aqui
que o “locutor” é responsável pelo enunciado e, por meio deste, dá existência a “enunciadores”, dos quais
organiza pontos de vista e atitudes. Ducrot recorre à comparação com o teatro, fazendo o paralelo do par
locutor/enunciador com o par autor+actor/personagem, para sublinhar a multiplicidade de vozes
intervenientes nos processos de fala e comunicação (oral e escrita). Cf. Oswald Ducrot [1984], Le Dire et
le Dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233.
32
Esta e outras características do romance serão abordadas no Capítulo II da Parte I.
33
Greimas, Courtés [1990], p. 140.
34
Greimas, Courtés [1990], p. 33.
11
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
constitui a parte manifestada na superfície, do que é dito e declarado expressamente,
enquanto o implícito é o não-dito, aquilo que, não manifestado no discurso, se
subentende, pressupõe ou implica, revelando-se por um procedimento a que Greimas e
Courtés chamaram encatalyser [traduzido em português como encatalisação] 35 .
Retomando o termo, encatalisar é, então, interpretar e descodificar os elementos
implícitos, mediante o apelo ao que Umberto Eco entende como
“competência
enciclopédica” 36 do receptor, que se socorre do seu conhecimento de elementos
contextuais e extratextuais. Aplicamos, aqui, o termo contexto ao nível interno do texto,
enquanto designamos o que lhe é exterior (social ou espacialmente) por extracontexto.
Entende-se, pois, que o receptor procede a uma encatalisação porque o conhecimento
das características dos romances fará parte da sua competência enciclopédica e,
“sabendo” que o texto com o qual se confronta é fragmentário e não se limita ao
discursivamente
presente,
“completa-o”,
recorrendo
a
outras
competências,
multidisciplinares. A encatalisação consta de procedimentos de pressuposição e
implicação. Fazendo a pressuposição 37 parte dos conteúdos implícitos, definir-se-á
como condição antecedente, de que depende a actualização de uma situação posterior. A
implicação, por sua vez, é uma relação de consequência, do tipo “se X, então Y”, que
permite passar das premissas à conclusão38. Quanto ao sub-entendido, é tributário das
35
Tomamos, para estes conceitos, a definição proposta por Greimas e Courtés: “Implícito, adj., s.m., fr:
Implicite; ing. Implicit: 1. Considerando-se que o explícito constitui a parte manifestada do enunciado
(frase ou discurso), o implícito corresponde à parte não manifestada, mas directamente ou indirectamente
implicada pelo enunciado produzido.”, p. 229 e “Catalisar – verbo, fr. Encatalyser; ing. To encatalyze:
Catalisar é tornar explícitos, através de procedimentos apropriados, os elementos de uma frase ou os
segmentos de uma sequência discursiva que estavam implícitos”, p. 43. Cf. A. J. Greimas, J. Courtés
[s.d.], Dicionário de Semiótica, S. Paulo, Ed. Cultrix, s.d. Adoptamos o termo “encatalisar”, de
preferência a “catalisar”, de acordo com João David Pinto-Correia. Cf. RCTOP, Vol. I, p. 379, nota 83).
36
Umberto Eco define a “competência enciclopédica” como o complexo sistema de códigos e subcódigos
que o leitor, para actualizar as estruturas discursivas, confronta com a manifestação linear. Cf. Umberto
Eco [1993], A Leitura do Texto Literário, Lector in Fabula, 2ª ed., Lisboa, Editorial Presença, 1993, p.
81.
37
Greimas, Courtés [s.d], pp. 347-348.
38
Gilbert Hottois [2004], Pensar a Lógica, Lisboa, Instituto Piaget, 2004, p. 223.
12
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
circunstâncias da enunciação e engloba valores cuja decifração exige um “cálculo
interpretativo” sobre as razões (ou intenções) pelas quais o locutor disse o que disse39.
Nesta análise considerar-se-ão dois modos de entender o implícito. O primeiro, de
ordem estrutural, advém da característica de fragmentismo 40 dos romances e nele se
manifestam as sequências não presentes no discurso, mas fazendo parte da fábula, bem
como a informação e sentido presentes na plurissignificação dos motivos e das
simbologias. O segundo tem a ver com as ideologias do Homem, enquanto ser social,
que atravessam o sentido do texto, pois as personagens do romance, que comunicam
entre si na forma mimética da vida real, actuam igualmente em conformidade (ou em
conflito) com um programa condicionado pelas estruturas socioculturais (éticas, morais,
religiosas). Também certos efeitos da acção dos produtransmissores, que afectam o
contexto enunciativo (eufemismos, elipse, junção e/ou alteração de sequências), revelam
outros implícitos, tais como determinadas atitudes culturais em relação ao conteúdo.
Embora reconheçamos a sua relevância, e tanto mais que o suporte de que
dispomos não contém habitualmente os necessários registos e, mesmo, porque não é
essa a nossa formação nem tal magnitude de trabalho aqui caberia, ficarão ausentes
desta análise os elementos extraverbais do domínio da paralinguística quinésica e
proxémica 41 , ainda que entoação, expressão do olhar ou gestos sejam também uma
maneira de, em situação de performance42, conferir sentido43.
39
Cf. Catherine Kerbrat-Orecchioni [1982], Comprendre l’implicite, Documents de Travail, nr. 110-111,
Série A, Janeiro-Fevereiro 1982, Università di Urbino, Centro Internazionale di Semiotica e di
Linguística, 1982, p. 5 e Ducrot [1984], p. 93.
40
Este conceito será desenvolvido no Capítulo II da Parte I.
41
A quinésica, estudo dos comportamentos motores associados à linguagem e a proxémica, que se ocupa
do uso que o homem faz da relação do espaço com o corpo, seriam relevantes no estudo do sentido das
manifestações da literatura oral, dada a relação que se estabelece entre intérprete e auditório em situação
de performance, durante a qual aquele “modifica o discurso, a entoação, o tom, o timbre de voz e os
gestos, de acordo com a recepção que percebe no auditório”. Cf. Carlos Nogueira [2000], “Cancioneiro
Tradicional: Questões de recolha e de classificação”, Revista ELO, 6, Faro, Centro de Estudos Ataíde de
Oliveira, Universidade do Algarve, 2000, pp. 97-116.
42
Retomamos, de Zumthor, a definição de performance (“La performance, c’est l’action complexe par
laquelle un message poétique est simultanément transmis et perçu, ici et maintenant”). Cf. Zumthor
[1983], p. 32 e, em especial, o Capítulo 8. Un discours circonstancial, pp. 147-157.
13
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
De igual forma, não será também aqui abordada a componente musical dos
romances 44 , que são (ou eram) cantados, embora refiramos que as funcionalidades
destes cantos45 poderão constituir um elemento a considerar na revelação do sentido46.
Citamos Anne Caufriez, que diz:
“Selon le rôle que la ballade remplit dans le calendrier de la vie paysanne, elle revêt un
cadre formel différent. Sa musique épouse les circonstances, si bien qu’on peut parler d’une
incidence privilégiée de la fonction sociale sur la forme musicale. On distingue bien les
mélodies qui s’inscrivent dans la courte période de récolte du seigle et celles qui sont choisies
pour le divertissement, au sens large du terme”47.
43
Refira-se que, em presença de determinado auditório, o produtransmissor de romances pode optar por
eliminar ou modificar determinadas partes ou eufemizar sentidos. Assim acontece, por exemplo, em
certas versões do romance de incesto Delgadinha, nas quais a personagem “pai que assedia a filha” é
substituída por um pretendente desta. Entendemos, aqui, que se trata da concretização de um “acordo
colectivo”, na medida em que estas versões camuflariam uma situação moralmente delicada à
sensibilidade dos presentes, em dada altura, vindo depois a espalhar-se. O facto é que, das duzentas e
sessenta versões do corpus, cinquenta e sete (21,92 %) utilizam este eufemismo por substituição, o que
permite considerá-las, entendemos, uma variante do romance. Ver Grupo B de Anexos, B.5.
DELGADINHA – Versões do “namorado”, onde transcrevemos os versos que executam a referida
substituição e referenciamos a sua distribuição geográfica.
44
Para esta componente, referimos os estudos de Anne Caufriez, musicóloga e estudiosa do romanceiro
(Cf Bibliografia Activa e Passiva). Sobre a etnomusicologia em Portugal, Caufriez enumera os trabalhos
incluindo notações musicais e refere aqueles que, a partir dos anos 40-50, começam a fazer recolhas com
gravação sonora. Cf. Anne Caufriez [1989] “L’ethnomusicologie au Portugal des origines à nos jours”,
Recherches en Anthropologie au Portugal, I, Paris, Centre d’Études Portugaises de l’École des Hautes
Études en Sciences Sociales, 1989, pp. 14-23.
45
Sobre este assunto, Maximiano Trapero adverte sobre o “grave vacío que afecta de forma sustancial a
la comprensión general y totalizadora del Romancero” e acrescenta que “una Poética del Romancero
deberá contemplar ineludiblemente el comportamiento lingüístico y literario de sus textos pero también el
comportamiento y funcionalidad de sus elementos musicales.”. Cf. Maximiano Trapero [1982], “El
romancero y su musica”, Revista de Folklore, nr. 15, Tomo 02a, pp. 80-84, disponível na Internet em
http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=133, arquivo acedido em 20 de Março de 2011.
Remetemos também para o estudo de José Alberto Sardinha sobre as tradições musicais da Estremadura,
que dedica o Capítulo 9 aos cantos de trabalho, nos quais inclui o Romanceiro, e no qual faz notar uma
diferenciação de funcionalidades no canto de romances: “Esta diferenciação de funcionalidades ditou uma
distinção marcada na própria estrutura musical dos romances: quando preenchem uma função de lazer ou
mesmo de acompanhamento de trabalhos domésticos, como acontece nas seroadas, afectam um género
musical muito característico, alguns certamente descendentes ainda dos cantos trovadorescos medievais,
possuindo cada romance a sua melodia própria; os que se destinavam a ser cantados no campo,
nomeadamente durante as segadas do centeio, assumem o carácter de cantos de ar livre, todos com o
mesmo desenho melódico, arrastado e melismático”. O autor cita, entre outras ocasiões em que se
cantavam romances, os intervalos dos bailes e a audição dos romances pelos cantadores ambulantes,
muitos deles cegos. Cf. José Alberto Sardinha [2000], Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde,
Tradisom, 2000.
46
É o caso, como adiante referiremos, de Veneno de Moriana, cantado à hora da merenda pelos segadores
e no texto do qual, justamente, o convite “para merendar” feito pela protagonista ao “cavaleiro”
desempenha uma função crucial no sentido do romance.
47
Cf. Anne Caufriez [1998], Le Chant du Pain. Trás-os-Montes. Recherches sur le Romanceiro, Paris,
Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1998, p. 215.
14
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Não deixaremos, também, de mencionar Miguel Manzano Alonso, que,
detectando quatro estilos musicais no género narrativo (“narrativo severo”, “narrativo
melódico”, “narrativo lírico” e o estilo de “tonadilla reciente”), o encontra como ”uno de los
más aptos para percibir la forma en que la melodia tiene el poder de influir sobre el texto y cargarlo de
matices y contenidos emotivos muy diversos”.
Diz o autor que, enquanto os estilos “narrativo
lírico” e de “tonadilla reciente” têm um carácter sentimental, que faz corresponder a
melodia aos sentimentos dos protagonistas da narração, com intenção de contagiar o
ouvinte, pelo que são próprios das cantigas de cegos, os dois outros estilos, “narrativo
severo” e “narrativo melódico”, costumam dar-se nos romances mais antigos, que se
cantam:
“com fórmulas arcaicas semirecitativas cuyas melodias son como asépticas, por así decirlo,
respecto de los hechos y los estados de ánimo de los personages que van aparaciendo en la narración. En
este tipo de fórmulas, ni hay acuerdo ni desacuerdo entre el carácter del texto y la música. Es el oyente el
que pone de su parte el sentimiento y el estado de ánimo que le causa la narración cuando escucha una
história cantada en la que la melodia es un mero suporte para una dicción clara y declamada, pero no
dramatizada por la música”
48
.
Todas as obras são relacionadas na Bibliografia, precedida esta de um sistema das
siglas ou abreviaturas utilizadas. Uma vez que colhemos os dados para a elaboração do
corpus de trabalho da obra Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral
Moderna49, que utiliza um sistema de siglas próprio, optámos por anotá-las igualmente,
em cada entrada da Bibliografia Activa, incluindo e assinalando com asterisco as
reedições das versões referenciadas. As referências bibliográficas em notas de rodapé
serão devidamente identificadas na primeira utilização e, posteriormente, referidas pelo
último nome do autor e data da edição consultada ou pela sua sigla. Para os artigos
colhidos da Internet, indica-se a data ou, se não a houver, a da sua consulta.
48
Cf. Miguel Manzano Alonso [2003], “Texto y Melodía en la Canción Popular Tradicional”, em AAVV,
Literatura de Tradición Oral, León, Fundación Vasco-Leonesa, 2003, pp. 127-146.
49
Pere Ferré, Cristina Carinhas [2000], Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral
Moderna (1828-2000), Madrid, Instituto Universitario Seminario Menéndez Pidal, Universidad
Complutense de Madrid, 2000 (sigla BRPTOM).
15
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Estruturámos o trabalho em duas partes. Na primeira, de carácter mais geral,
focamos os elementos que entendemos determinarem as condições da procura do
sentido nos romances orais tradicionais; na segunda, de carácter mais analítico,
analisaremos o modo como o sentido se revela, recorrendo mais directamente ao corpus
delimitado como instrumento de demonstração, exemplificando ou ilustrando
determinados pontos com casos concretos.
PARTE I. A PROCURA DO SENTIDO - No Capítulo I. Os romances do corpus,
apresentamos os romances seleccionados como corpus de trabalho, com a sua
identificação nos principais índices e catálogos, traçando uma sua breve História
Externa e resumindo-os numa História Interna; identificamos, também,
outros
romances relacionados com estes. No Capítulo II. Para uma procura do sentido,
partiremos do geral para o particular, revendo os elementos necessários para uma
procura do sentido nos romances, explícito e implícito. Focaremos as principais
características dos romances, relacionando-os com a tipologia do pensamento e da
expressão nas culturas orais, e abordaremos os recursos formais como a repetição e a
enumeração, as expressões formulísticas, bem como conceitos e noções como abertura e
fragmentismo, romance e versões, invariância e variação. No Capítulo III. A
organização da narrativa, ocupamo-nos das questões da estrutura interna dos romances,
da divisão em sequências segundo as quais se organiza e se estrutura a lógica da
narrativa e, ainda, da influência da natureza e do posicionamento das sequências no
sentido do romance. Já mais particularmente, traçaremos de cada um dos romances do
corpus, a respectiva organização da narrativa explícita, antepondo-lhes algumas
questões relativas ao tipo de estrutura que apresentam ou a problemas da sua
classificação. No Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances e com
base no critério subjacente à delimitação do corpus, analisamos as linhas de sentido que,
16
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
no texto dos romances, sustentam os valores sócio-culturais neles implícitos,
debruçando-nos particularmente sobre o modo como é traçado o espaço social, as
relações de poder que se estabelecem entre as personagens, para que possa ser
perspectivada a maneira como são valoradas, positiva ou negativamente, as infracções
por elas cometidas.
PARTE II.
A REVELAÇÃO DO SENTIDO - No Capítulo I. Os suportes
significantes do sentido, com base no exposto na Parte I, começamos por apontar e
analisar, para cada um dos romances do corpus, os suportes significantes directos que
remetem para respectivos suportes significantes indirectos. A partir das situações da
organização narrativa explicíta e das pressupostas e implicadas, elaboramos um
“modelo-virtual” de cada um dos romances do corpus. O Capítulo II. Os motivos na
revelação do sentido é dedicado inteiramente aos motivos, indexados ou não, pelo peso
que estes têm na produção de sentido. Sendo os romances, afinal, constituídos pelas
suas versões e estas transmitidas/produzidas por agentes humanos, dedicamos o
Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado às possíveis causas e aos
efeitos que a intervenção daqueles produz no sentido.
Procuramos, assim, demonstrar que os romances orais tradicionais são
composições linguístico-literárias dotadas de características elípticas e condensadas na
forma de expressão, que, não obstante, deixam no texto discursivamente manifestado as
marcas através das quais se podem reconstituir programas narrativos mais vastos e mais
completos e complexos que os efectivamente actualizados; que a história narrada,
explícita, não esgota a significação dos romances, sendo possível a identificação de
diversas linhas de sentido que os atravessam, sustentadas por um conjunto de valores
sociais, culturais e religiosos; que os romances, enquanto manifestações culturais, são a
representação de uma certa visão do mundo e que a narrativa é, essencialmente, realista,
17
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
focando assuntos dentro dos parâmetros de uma sociedade organizada; que a intriga é
narrada com uma certa neutralidade – conta-se o que se passou –, mas que não se
conforma necessariamente com os valores veiculados pelo Poder, o que se revela
através das “transgressões” neles cometidas.
Procuraremos, ainda, demonstrar que,
para além do sistema de valores implícito, revela-se, um outro sentido, o da reacção,
naturalmente dentro de cada sub-tema, àqueles mesmos valores; que, nas versões,
encaradas como intervenção dos produtransmissores, através de uma manipulação
criativa da forma de expressão, revelam-se apreciações avaliativas, eufóricas ou
disfóricas, às personagens e aos actos que praticam, que podem conformar-se com o
sentido do romance ou modificá-lo.
Em anexo (Anexos – Grupo A), apresentamos a transcrição das versões do
corpus, precedida de notas sobre a edição e, em outro grupo (Anexos – Grupo B),
apresentamos elementos referentes às versões e às sequências (ver Índice).
3. Delimitação de um corpus
Neste estudo da significação narrativo-dramática dos romances orais tradicionais,
sendo nosso objectivo analisar a produção de sentido e os procedimentos para a sua
revelação, e tendo aquela a ver simultaneamente com as formas de expressão e de
conteúdo e com a conjunção dos elementos explícitos e implícitos, procurámos
encontrar um ponto comum que relacionasse todos estes aspectos. Seleccionar um
corpus que permitisse demonstrar esses processos e que, simultaneamente, pudesse ser
exemplificativo da metodologia utilizada, de maneira a que esta pudesse vir a ser
generalizada ao romanceiro, face à vastidão da produção romancística da tradição oral
portuguesa50, verificável em BRPTOM, constituiu a primeira dificuldade.
50
Além da aturada listagem sobre a recolha romancística levada a cabo em Portugal na Introdução Geral
do GRPP, contamos ainda com a importante recensão de Maria Aliete Galhoz sobre a actividade editorial,
que cita outros estudos e colecções de romances até essa data, uns agrupados por determinadas áreas
18
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
geográficas, outros mais gerais. Ver Maria Aliete Galhoz [1987], organização, introdução, notas e
bibliografia de, Romanceiro Popular Português, I, Lisboa, INIC, 1987 (Sigla GRPP I), Maria Aliete
Galhoz [1988], organização, introdução, notas e bibliografia de, Romanceiro Popular Português, II,
Lisboa, INIC, 1988 (Sigla GRPP II) e Maria Aliete Galhoz [1987a], “Resenha Sobre a Actividade
Editorial Romancística em Portugal nos Últimos Anos”, Revista Lusitana. Nova Série, 8, Lisboa, INIC,
1987, pp. 177-184.
Em Portugal, a publicação dos 3 volumes do Romanceiro de Almeida Garrett, entre 1843 e 1851, marca o
início da redescoberta do romanceiro que, a nível internacional era objecto de interesse de estudiosos
como Jakob Grimm (Silva de Romances Viejos, 1815), Agustin Durán (Romancero General, 1849) e de
Wolf e Hofmann (Primavera y Flor de Romances, 1856). No séc. XIX desenvolver-se-á, no nosso país,
uma actividade romancística de que se destaca Soares de Sousa, que enviará o material recolhido a
Teófilo Braga, que dele se serve para o seu trabalho. Braga reúne as versões até então publicadas e outras
inéditas no Romanceiro Geral Português, entre 1906 e 1909 e o seu labor, ainda que passível de críticas,
torna o romanceiro em objecto de estudo científico.
Lugar de destaque ocupa Leite de Vasconcellos, pela recolha de romances, postumamente organizados no
Romanceiro Português (1958-1960) e na fundação da Revista Lusitana (1887) que publicará numerosos
romances e estudos, entre os quais os “Estudos sobre o romanceiro peninsular: Romances velhos em
Portugal”de Carolina Michäelis, que se notabilizará no campo teórico desta matéria. A Revista Lusitana
está
hoje
disponível
on-line
em
http://cvc.institutocamoes.pt/bdc/etnologia/revistalusitana/02/lusitana02.html.
Depois de 1900, surgem numerosos trabalhos de recolha, sobretudo regionais, destacando apenas os
nomes de Giacometti (Arquivos Sonoros Portugueses, reeditados em CD, estando outra parte no Museu
de Etnografia de Lisboa) e de Lindley Cintra, pelo incentivo dado à inclusão de romances em teses de
dialectologia, parcialmente publicados por Maria Aliete Galhoz em Romanceiro Popular Português, 2
vols., 1987-1988.
Recolhas do romanceiro português serão feitas por estudiosos como Joanne Purcell, Manuel da Costa
Fontes (no Canadá, EUA, S. Jorge e Trás-os-Montes), também responsável por O Romanceiro Português
e Brasileiro: Índice Temático e Bibliográfico, 1997, Pere Ferré (nos distritos de Castelo Branco, Guarda,
Beja, este com Ana Maria Martins), Vanda Anastácio, (Faro) ou Anne Caufriez, esta mais centrada numa
perspectiva musicologica (Romances du Trás-os Montes, 1997), entre outros. Mais recentemente, foram
publicados, por Idália Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz e Isabel Cardigos, Romances.
Património do Concelho de Loulé, 2006 e outros trabalhos que, se incluindo os romances do nosso
corpus, procurámos reunir e indicamos na Bibliografia.
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, alunos de Licenciatura e mestrandos em Literatura
Oral e Tradicional produziram trabalhos de recolha, cujo tratamento de sistematização e classificação tem
vindo a ser efectuado por investigadores do Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor
Manuel Viegas Guerreiro’.
Quanto a estudos sobre o romanceiro, além dos prefácios e introduções a colectâneas (ver Bibliografia),
de que destacamos o Estudo Introdutório de Pere Ferré em Romanceiro Português da Tradição Oral
Moderna. Versões publicadas entre 1828 e 1960, 4 volumes e de artigos em publicações como Revista
Lusitana. Nova Série e E.L.O., menciona-se Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, de João David
Pinto-Correia, 2003. Dispersas por várias publicações, encontram-se artigos sobre romances, alguns dos
quais, sobretudo aqueles que versam sobre os do nosso corpus, indicamos na Bibliografia. Das teses sobre
o romanceiro da tradição portuguesa, damos notícia das seguintes: de Licenciatura, por Teresa Amado, O
Estilo do Romanceiro Português – alguns aspectos, 1966; de Mestrado, por Joanne Purcell, Portuguese
Traditional Ballads from Califórnia, 1968, por Vanda Anastácio, Os textos de Romances no Romanceiro
e Cancioneiro do Algarve de Athaíde Oliveira: uma tentativa de Edição Crítica, 1985, por Lina do Carmo
Godinho dos Santos, A Variação no Romance Oral Tradicional Perseguição de Búcar Pelo Cid, 2006; de
Doutoramento, por Anne Caufriez, La Perennité du Romanceiro dans la Musique Paysanne du Tras-osMontes (Portugal), 1980-1981, por João David Pinto-Correia, Os Romances Carolíngios da Tradição
Oral Portuguesa, 1987 (publicada em 2 vols. em 1993), por José P da Cruz, Estudos sobre o Romanceiro
Tradicional. Tradição Oral da Beira Baixa, 1988 (publicada com alterações em 1993), por Ferré da
Ponte, Estratégias Dramatizadoras do Romanceiro Tradicional Português, 1987, por Berta Beça,
Romanceiro de Bragance. Sa Specificité et son Insertion dans le Romancero General, 1998, por Teresa
Araújo, Teófilo Braga e o Romanceiro de Tradição Oral Moderna Portuguesa. Questões de História e
Teorização, 2000 e por J.J. Dias Marques, A Génese do Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga,
2002, estas não publicadas.
Uma completa bibliografia das versões editadas entre 1828 e 2000 pode consultar-se em Bibliografia do
Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2000), publicada em 2000, em Madrid, por
19
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Começámos, em primeiro lugar, e aplicando o pressuposto que os romances
longos tenderiam a conter maiores possibilidades de informação e, logo, a ser mais
explícitos do que os curtos, por procurar romances que fossem “explícitos” pelo critério
da sua extensão. Mas o conceito de “romance longo” aplica-se, sobretudo, ao que
apresenta vários episódios, alongando-se espacial e temporalmente e o de “romance
curto” àquele que se centra num ou poucos incidentes, embora, logicamente, tal se
repercuta na sua extensão. Na verdade, um maior número de versos pode dever-se à
inclusão em romances considerados curtos de repetições, de sequências adicionais, de
prolongamentos ou de contaminações de outros. De igual forma, podem os romances
“longos” apresentar versões reduzidas ou sofrer elipse de sequências. Então, partindo do
princípio de que este tipo de composições é de natureza fragmentária e que o sentido se
revela menos pela extensão do que pela condensação significante, abandonámos o
critério de escolha baseado na suposição de “romance longo = romance mais explícito”.
Afastámos da escolha, também, o critério por classificação temática 51 , visto
crermos que a estruturação da narrativa não depende tanto do assunto tratado como das
características intrínsecas do género. Por esse motivo e para uma maior eficácia na
demonstração da metodologia utilizada, a uma amostragem aleatória dos diversos
grupos de romances, preferimos organizar um corpus em torno de uma mesma linha de
orientação. Esta partiu do pressuposto de que as sociedades se organizam em torno de
ideologias que se projectam nas suas práticas significantes e da constatação de que o
conteúdo narrativo dos romances, enquanto manifestações culturais de uma
Pere Ferré e Cristina Carinhas. Do panorama do romanceiro pan-hispânico lembram-se, mais em
particular, os nomes de estudiosos como Menéndez Pidal, Benichou, Di Stefano, Alvar, Catalán,
Armistead, Debáx, Diaz Roig, Diaz-Mas, González Peréz, Forneiro, Valenciano, Peterson, de entre
outros. Na Internet, o Proyecto del Romancero pan-hispánico (Pan-hispanic ballad Project) disponibiliza
uma importante base de dados.
51
Os critérios de classificação dos romances são diversos, apresentando complexidades observáveis nas
diversas propostas disponíveis, algumas das quais citadas por João David Pinto-Correia, em ROTP, pp.
41-50.
20
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
comunidade, não versa apenas sobre acções individuais, mas reproduz valores sociais e
reflecte atitudes perante estes.
No romanceiro, encontra-se um vasto conjunto de temas que tratam de
comportamentos humanos e por ele perpassam dois grandes temas – o Amor e a Morte que configuram diversos tipos de Poder nas relações humanas. Entendemos, então, que
centrar estes temas, nos seus diversos aspectos e em uma só representação, poderia
constituir a linha condutora para a constituição de um corpus significativo, tendo então
optado pela representação, ainda que genérica, da Mulher.
Muitos são os vultos femininos no romanceiro, mas, pela dificuldade de a todos
abranger, decidimo-nos pela sua composição figurativa nos Romances Novelescos, nos
quais a mulher assume um protagonismo consideravelmente maior do que nos outros52,
o que é visível pelas designações das subsecções em que esses romances são
divididos 53 , tendo, assim, deixado de lado as mulheres dos Romances de Contexto
Histórico Peninsular, dos Romances Carolíngios e dos Romances Religiosos, bem como
figuras como as da Donzela Guerreira (RPI X5; IGR 0231) ou da Infantina (RPI X2;
IGR 0164), nos Romances de Assuntos Vários54.
Visto que pretendíamos demonstrar que nos romances se encontram implícitas as
estruturas sócio-culturais que enformam as comunidades e as relações de Poder que
nelas se
criam, e considerando ainda que estas se revelam no próprio modo de
52
A análise dos protagonistas romancísticos efectuada por Ruth Weber revela que há uma evolução a
favor de relatos nos quais a mulher desempenha um papel mais importante do que o que tinha nos
romances velhos. O mesmo estudo indica que o herói é mais um homem do que uma mulher, com
excepção dos romances portugueses e sefardis e que as mulheres/herói pertencem a unicamente quatro
classes: as vítimas, as enamoradas, as virtuosas ou fiéis e as adúlteras, estas junto com outras “malvadas”.
Cf. Ruth House Webber [1989], “Hacia un análisis de los personajes romancísticos”, em Pedro M. Piñero
et alii, edición al cuidado de, El Romancero. Tradición y Pervivencia a fines del Siglo XX, Actas del IV
Coloquio Internacional del Romancero, Cádiz, Fundación Machado, Universidad de Cádiz, 1989, pp. 5764.
53
Em ROTP, João David Pinto-Correia adopta a arrumação dos romances que é proposta por Samuel G.
Armistead e seus colaboradores e por outros como Costa Fontes em RPI e faz a seguinte subdivisão dos
Romances Novelescos: “Presos e Cativos”, “Regresso do Marido”, “Amor Fiel”, “Amor Desgraçado”,
“Esposa Desgraçada”, “Adúltera”, “Mulheres Matadoras”, “Raptos e Violações”, “Incesto”, “Mulheres
Sedutoras”, “Mulheres Seduzidas”.
54
Adoptamos o critério de organização dos romances tradicionais de Pinto-Correia, em ROTP, p. 49.
21
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
representação, procurámos, dentro dos Romances Novelescos, alguns tipos femininos
que desempenhassem papéis em conflito com um certo modelo estabelecido pelo poder
social e moral55; escolhemos então romances centrados no protagonismo de uma única
mulher, excluindo aqueles nos quais ressalta um conflito entre duas, como o de
mãe/filha em O Conde da Alemanha (RPI M9; IGR 0095), o de rivais
(princesa/condessa) em O Conde Alarcos (RPI L1; IGR 0503) ou o de sogra/nora em A
má sogra (RPI L3; IGR 0153). Dos romances nos quais se encontram essas mulheres
protagonistas, seleccionámos aqueles nos quais encontrámos “adúlteras”, “matadoras” e
“sedutoras”, enquanto agentes em situação de conflito com um Poder; para seu
contraponto, quisemos outras mulheres que encarnassem as “vítimas” e, visto a
revelação do sentido ser nosso objectivo, entendemos comparar, neste caso, dois modos
55
Por esse motivo excluímos figuras como a da Bela Infanta (RPI I1, I2, I3, I4, I5; IGR 0113), óbvia
representante de um moralizante “amor fiel” ao marido ausente na guerra e, talvez por isso, difundido
pelos manuais escolares. Põe-se, a propósito, a hipótese de maior divulgação de alguns romances ou da
fixação de determinadas versões, como veiculadoras de ideologias dos poderes políticos em vigência.
Esta circunstância manifestou-se, particularmente, no regime salazarista, durante o qual a “cultura
popular” foi orientada para a valorização de uma ruralidade alicerçada no nacionalismo e na moralidade
(cf. Daniel Melo [2001], Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958), Lisboa, Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa, 2001). Assim, no âmbito da Campanha Nacional de Educação de
Adultos, publicam-se obras como o Romanceiro Português, em cujo Intróito se pode ler: “Se de várias
lições nos servimos, para estabelecer os presentes textos, foi no intuito de os apresentar, sem
desvirtuação, na sua forma mais acessível e menos crua” (nosso sublinhado). Cf. Plano de Educação
Popular [1953/1973], Romanceiro Português, Colecção Educativa, série G, nr. 10, (1ª ed. 1953),
Ministério da Educação Nacional, Direcção da Educação Permanente, 1973. Versões de “A Nau
Catrineta” e “A Bela Infanta” encabeçam esta selecção, a qual, efectivamente, se encontra depurada de
tais detalhes mais crus, nos outros romances que integra. Nela não se encontram representados Bernal
Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha ou Gerinaldo.
Ao propor-se realizar um estudo sobre a presença do que denomina “Literatura de Expressão Oral” nos
manuais escolares do Ensino Primário, de 1901 a 1975, Maria Augusta Seabra Diniz refere não ter
encontrado nenhum texto do Romanceiro Tradicional Português nos manuais que seleccionou como
representativos desse período. Informa, todavia, que, noutros manuais consultados, existem versões de “A
Bela Infanta”, “A Nau Catrineta” ou “O Lavrador da Arada”. Cf. Maria Augusta Seabra Diniz [2001], As
fadas não foram à escola, 3ª edição, Porto, Edições Asa, 2001, Nota 37, p. 62. Para o estudo das
ideologias e sistemas de valores que os diversos regimes políticos em Portugal procuraram transmitir às
camadas mais jovens através dos manuais escolares de História, cf. Sérgio Campos Matos [1990],
História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros
Horizonte, 1990; para o estudo das tendências didácticas e moralizantes através da literatura infantojuvenil, cf., entre outros, Glória Bastos [1997], A Escrita para Crianças em Portugal no Século XIX,
Lisboa, Caminho, 1997 e Francesca Blockeel [2001], Literatura Juvenil Portuguesa Contemporânea:
Identidade e Alteridade, Lisboa, Caminho, 2001.
22
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de representação de um mesmo tema, o incesto56. Como representativos, seleccionámos
então os seguintes romances, que apresentamos pelo seu número de ordem em O
Romanceiro Português e Brasileiro: Índice Temático e Bibliográfico57 (Sigla RPI) e, à
frente, a identificação numérica IGR58:
-
M5; 0222. BERNAL FRANCÊS – (Adúlteras)
-
N1; 0172. VENENO DE MORIANA – (Matadoras)
-
P1; 0005. SILVANA - (Vítimas)
-
P2; 0075. DELGADINHA – (Vítimas)
-
Q1; 0023. GERINALDO – (Sedutoras)
Constituímos em corpus e analisámos59 todas as versões destes romances editadas
até ao ano 200060, de acordo com os dados de BRPTOM (cf. abaixo Quadro 1) e que ali
56
Deste mesmo tema, há outros romances de violência incestuosa contra mulheres, como o Bíblico
Tamar (RPI E3; IGR 0140) e o Clássico Florbela e Brancaflor (RPI F1; IGR 0184), o primeiro entre
irmãos e o segundo entre cunhados, mas optámos pelos romances Novelescos que focam o incesto
pai/filha.
57
Manuel da Costa Fontes [1997], O Romanceiro Português e Brasileiro: Índice Temático e
Bibliográfico, / Portuguese and Brazilian Balladry: a Thematic and Bibliographic Index, Selecção e
Comentário das Transcrições Musicais de Israel J. Katz e Correlação Pan-Europeia de Samuel G.
Armistead, 2 vols, Madison, 1997.
58
O IGR dá a cada romance um número arbitrário, seguido do nome (Ver IGR, p. 54), o que os identifica
como um código, estando estes disponíveis, em sistema de referências cruzadas com outros, na base de
dados Pan-Hispanic Catalog/Index Numbers (Cross References). Cf. Pan-Hispanic Ballad Project.
International Online Archive of the Pan-Hispanic Ballad. A Database of Ancient and Modern Oral
Versions of Ballads, disponível na Internet em http://depts.washington.edu/hisprom/ballads/index/php,
arquivo acedido em datas várias.
59
Para não sobrecarregar o texto, dado que o número das versões é elevado, não referiremos sempre todos
os casos ao exemplificar os pontos focados, preferindo seleccionar os que considerámos suficientemente
ilustrativos para esse efeito.
60
São também objecto de atenção as versões destes romances publicadas em obras de que fomos tendo
conhecimento, posteriores à data que estabelecemos como limite para a formação do corpus. Embora sem
carácter de exaustividade, indicamo-las, a seguir à Bibliografia Passiva, por ordem cronológica de edição,
tal como assinalamos alguma discografia nacional que contém versões destes romances.
Temos também notícia (abaixo transcrita) da gravação, que não pudemos consultar, de Veneno de
Moriana cantado como fado, em António M. Nunes, A canção de Coimbra no Século XIX (1840-1900).
(Ele há teorias... e teorias...), em http://guitarradecoimbra.blogspot.com, arquivo acedido na Internet em
25 de Março de 2008:
“- Jorge e Juliana (Minha mãe, lá vem o Jorge): fado menor, possivelmente muito próximo dos
primitivos fados narrativos de finais do século XVIII e primeiros anos de oitocentos. A letra como
que se confunde com os velhos romances populares de tipo cordel e ceguinho ambulante. Tema
recolhido pelo Grupo Folclórico de Coimbra, gravado em 1999 no CD Cantares de Coimbra. Era
cantado por operárias de uma antiga fábrica textil de Coimbra. A letra é constituída por seis
quadras de teor narrativo. Jorge e Juliana conta a história da vingança de uma donzela desonrada,
do cortejamento encetado à janela e do vinho envenenado que foi dado a beber ao sedutor. Em
23
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
foram criteriosamente bibliografadas por ordem alfabética dos primeiros editores,
indicando as reedições, que reproduzimos no Anexo Grupo A - Corpus. Neste,
apresentamos as versões arrumadas cronologicamente, uma vez que nos interessou,
também, facilitar um futuro apuramento de transformações no romance causadas pelo
passar do tempo.
Quadro 1: Número de versões de cada romance em BRPTOM
ROMANCE
Nr. de versões
registadas em
BRPTOM
Corpus61
Bernal Francês
116
116
Veneno de Moriana
259
259
45
33
286
260
-
39
205
207
Silvana
Delgadinha
Silvana + Delgadinha
Gerinaldo
Para comparação das versões portuguesas destes romances com as suas
congéneres pan-hispânicas, consultámos colectâneas e antologias de outras tradições,
que indicamos na Bibliografia, bem como as versões disponíveis na base de dados do
Pan-Hispanic Ballad Project.
Deparámo-nos com alguns problemas relativamente à classificação das versões
que apresentam material narrativo de outros romances, visto que nem sempre há
coincidência de critérios entre editores e entre estes e BRPTOM62, o que assinalamos no
corpus. Intentámos resolver esta questão, pelo que, embora respeitemos e sigamos a
algumas regiões tinha a designação de “Veneno da Moriana”. Figura nas recolhas de José Alberto
Sardinha para a Estremadura.”
61
As divergências quanto ao número das versões do corpus são apontadas nas notas à edição do corpus,
que precede Grupo A de Anexos, e a classificação dos romances como Silvana, Delgadinha e versões
compósitas Silvana + Delgadinha é justificada no Capítulo III - A organização da narrativa, na Parte I.
62
É o caso, por exemplo, da n/S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193, que está classificada como
Silvana (nr. 7) em BRPTOM e como Queixas de Dona Urraca (0004) em RPTOM (Vol. I, pp. 131-132).
24
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
arrumação de BRPTOM, estabelecemos o nosso próprio critério, nomeadamente no que
diz respeito a Silvana, Delgadinha e às suas versões compósitas63.
No decorrer do processo de constituição do corpus, e a partir dos dados colhidos
em BRPTOM, elaborámos alguns Quadros que considerámos pertinentes para o
presente e para futuros estudos, que apresentamos igualmente em anexo64. O primeiro
(B1. Número de versões por editor, por ordem alfabética, de 1828 a 2000) oferecerá
uma visão de conjunto do tipo de actividade editorial, que nos permite apurar que o
número total de editores de Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha e
Gerinaldo foi de noventa e seis, a maioria com apenas uma ou duas versões e outros
atingindo um número considerável, como é o caso de Ana Martins/Ferré, Anastácio,
Armistead/Fontes, Carvalho Rodrigues, Cruz, Ferré, Fontes, Galhoz, Leite, Marques e
Xarabanda65, por vezes em vários anos. Outro Quadro (B2. Distribuição cronológica da
edição das versões), do qual eliminámos os detalhes bibliográficos para maior facilidade
de leitura, é complementar e dar-nos-á a percepção da actividade editorial por décadas e
de quantas versões de cada romance estavam publicadas até ao ano 2000.
Apresentamos, igualmente, um Quadro que mostra onde cada versão foi recolhida (B3.
Distribuição geográfica das versões), o que possibilita, ao agrupá-las geograficamente,
comparar as suas respectivas características e, ademais, apurar quais as regiões mais e
menos exploradas.
Cada uma das versões do corpus será identificada e referida no corpo do trabalho
pelas iniciais do nome do romance e por um número de ordem, com a identificação do
primeiro editor, segundo a sigla em BRPTOM, como no Quadro 2.
63
No Capítulo III – A organização da narrativa.
Ver Anexos, Grupo B.
65
Cf. Bibliografia.
64
25
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Quadro 2: Identificação das versões do corpus
Bernal Francês
BF/1 Garrett (1828) XXVI-XXXII; BF/2 Braga (1867) 34-
36 …
Veneno de Moriana
VM/1 Braga (1883) 197; VM/2 Leite (1883a) VII ….
Silvana
S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193; S/2 Leça (1922) 65
…
D/1 Braga (1867) 181-183; D/2 Azevedo (1873) 767 …
Delgadinha
Silvana+Delgadinha
S+D/1 Garrett (1828) 107-113; S+D/2 Braga (1869)/Braga
(1982) 193-196 …
G/1 Garrett II (1851) 158-167; G/2 Braga (1867) 18-20 …
Gerinaldo
26
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
PARTE I
A PROCURA DO SENTIDO
27
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO I
OS ROMANCES DO CORPUS
1. Apresentação dos romances do corpus
Colocar os romances tradicionais “na sua época verdadeira ou ainda aproximada”,
como já constatava Almeida Garrett66, é tarefa que apresenta dificuldades inerentes à
sua condição de oralidade e à falta de registos escritos sistemáticos; origens ou datações
hipotéticas dos romances têm sido objecto de polémicas até à data não resolvidas 67,
tendo Pidal dito:
“La fecha en que por primera vez se pone por escrito un canto tradicional o se alude a él,
no fija el mínimo de antigüedad de tal canción. La dificuldad está en que, tratándose de una
poesía de transmisión oral, la antigüedad máxima debe de estar bastante más atrás en la mayoría
de los casos, pues es poco común que una canción popular desperte la curiosidad y sea
registrada por escrito a raíz de su primera divulgación”.
Essas dificuldades são acrescidas no caso dos chamados romances novelescos,
que não possuem os referentes históricos dos de assunto épico nacional e dos noticiosos.
Menéndez Pidal diz que alguns deles são de antiguidade igual ou maior que os
noticiosos e que são “hijos de outra escuela romancística más ligada a las tradiciones
literárias, escuela dependiente en gran parte de las baladas extrangeras”68. Faz também notar
que muitos temas novelescos vieram de fora do romanceiro, embora haja fortes indícios
de que também o inverso seja possível, como no caso de Bernal Francês, e atribui a
66
João Baptista de Almeida Garrett [1983], Org. fixação de textos, pref. e notas de Maria Helena da
Costa Dias, Helena Carvalhão Buescu, Luis Augusto Costa Dias e João Carlos Faria, Romanceiro, 3
vols., Lisboa, Editorial Estampa, 1983. Cf. Garrett [1983], Vol. II, p. 245.
67
Cf. RoH I, p. 157.
68
RoH I, p. 160.
29
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Espanha a capacidade inventiva de não só dar forma romancística a muitos deles, como
de imbuí-los de características notoriamente espanholas69.
Sem aqui entrar no campo da polémica sobre a génese de cada um dos romances
do corpus, indicam-se alguns dados sobre o que deles se conhece, em breve História
Externa, após a sua identificação nos principais índices e catálogos, a partir do indicado
no Pan-Hispanic Ballad Project70 e a que acrescentamos os GRPP, VRP71 e RPTOM72.
Em RPI II faz-se a distribuição pan-hispânica dos romances, referenciando-os na
Galiza, Castela, Catalunha, tradição sefardita e Hispano-América, nesta última com
excepção de Veneno de Moriana, não assinalada nesta última; para a sua distribuição
luso-brasileira 73 , o RPI considera Trás-os-Montes, Algarve, Açores, Madeira e o
Brasil 74 . Fornece, igualmente, as respectivas correspondências europeias, que abaixo
reproduzimos. De seguida, esboça-se um pequeno resumo do romance, na História
Interna, não atendendo aqui a particularidades das versões.
1.1. BERNAL FRANCÊS
Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica)
(-) não presente na publicação
Índices e catálogos
1849 - Romancero General, Durán
Localização na publicação
(-)
69
RoH I, Capítulos IX e X.
Neste pode ser consultada a bibliografia completa das publicações que referencia.
71
José Leite de Vasconcellos [1958, 1960], Romanceiro Português, I, II, Acta Universitatis
Conimbrigensis, (I) 1958, (II) 1960.
72
Pere Ferré [2000], estudo introdutório, organização e fixação de, com a colaboração de Cristina
Carinhas, Ramon dos Santos de Jesus e Eva Parrano [2000], Romanceiro Português da Tradição Oral
Moderna, Versões Publicadas entre 1828-1960, Vol. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
73
Sobre as primeiras versões de romances recolhidas no Brasil, cf. Teresa Araújo [2001], “Uma das
primeiras notícias sobre o romanceiro na América Latina”, Actas do IV Congresso Internacional da
Associação Portuguesa de Literatura Comparada, Maio de 2001 na Universidade de Évora, Vol. II,
disponível
na
Internet
em
http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/UMA%20DAS%20PRIMEIRAS%20NOTICIAS%2
0SOBRE%20O%20ROMANCEIRO.pdf, arquivo acedido em 20 de Março de 2011.
74
Apresentamos no Grupo B de Anexos, para o nosso corpus, o quadro B3. Distribuição geográfica das
versões de cada romance.
70
30
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1856 - Primav.75
(-)
1899 - ASW76
(-)
1906 - Catálogo del romancero judío-
Nr. 83
español , Menéndez Pidal
1978 - CMP77
M9 “Bernal Francés”
1953-1968 - RoH
II, 407 “- Quien es ese caballero / que a mi puerta
dixo: Abrid!”
1958-1960 - VRP (I e II)
XXV - BERNAL FRANCÊS
I - Versões 354-371; II - Versões 1007-1009
1982-1988 - IGR
0222. Bernal Francés
1987-1988 – GRPP (I e II)
I, M. Adúltera, versões 235-246
1997 - RPI
M5. BERNAL FRANCÊS (Í)
2000/2001/2002 - RPTOM
III - BERNAL FRANCÊS, versões 893-942
2000 - BRPTOM
LVIII.BERNAL FRANCÊS, pp. 65-71
Correspondências Pan-Europeias, segundo RPI:
Francesa: Assassin - (Beauquier, pp. 256-258; Millien, I, 266: Puymaigre, Messin,
I, 127-130). Italiana: Marito giustiziere – (Bronzini, II, 275-317; Nigra 30; Graves
10)78.
75
F. J Wolf e C. Hofmann [1856, 1943], Primavera y flor de romances, 2 vols., Berlim, 1856. (Sigla
Primav.)
76
A sigla ASW identifica o “Apéndice y suplemento a la Primavera y flor de romances”, Vol. IX, pp.
11-148, 151-334, 347-385, 387-439, 441-445, 447-456, 462-465 de Marcelino Menéndez Pelayo [1945],
Antología de poetas líricos castellanos, Edición Nacional de la Obras Completas de Menéndez Pelayo,
Santander, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1945. Desta obra, os vols. VI e VII
constituem o “Tratado de los Romances Viejos”, Partes I e II. Os vols. VIII e IX constituem “Los
romances viejos”, Partes III e IV, sendo o VIII dedicado à reedição de Primavera y flor de romances de
Wolf e Hofmann, de 1856, e o IX os “Apêndices y suplemento”.
77
Samuel G. Armistead [1978], El Romancero Judeo-español en el Archivo Menéndez Pidal (Catálogoíndice de romances y canciones), Madrid, Cátedra Seminario Menéndez Pidal, F.E.R.S., 3 vols., 1978
(Sigla CMP).
78
Cf. RPI, II, que aponta que “the relationship is genetic and close”. A bibliografia apontada é:
Correspondências francesas: Beauquier, Charles, Chansons populaires recuillies en Franche-Comté,
Paris, Emile Lechevalier – Ernest Leroux, 1894; Millien, Achille, Chants et Chansons (populaires), 3
vols., Paris: Ernest Leroux, 1906-1910; Puymaigre, Comte de (Théodore Joseph Boudet), Chants
populaires recueillis dans le pays messin, 2d ed., 2 vols., Paris, Honoré Champion, 1881. Bibliografia
indicada para as correspondências italianas: Bronzini, Giovanni B., La canzone epico-lirica nell’Italia
centro-meridionale, 2 vols., Roma: Angelo Signorelli, 1956-1961.
31
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
História Externa
Almeida Garrett, em 1843, chamava a este romance “preciosa relíquia da nossa poesia
popular”,
atribuindo-lhe origem portuguesa, por não aparecer nos romanceiros
castelhanos nem na colecção de Ochoa79. Em 1909, põe Carolina Michaëlis a hipótese
de ser Bernal Francês “obra portuguesa”, tal como outros, entre os quais, do nosso
corpus, Gerineldos e Silvaninha80.
Tal não pensava Teófilo Braga, que o afirmou vindo de Espanha e que, a partir do
título das versões encontradas na ilha de S. Jorge (Dom Pedro de França e Dom Pedro
Françoilo), insinua-lhe uma correlação provençal, citando também a existência de uma
balada dinamarquesa, uma sueca e uma escocesa sobre o mesmo assunto 81 . No
Romanceiro Geral Português82, Braga insere este romance nos Romances de Aventuras
– Cyclo da Esposa infiel e inclui uma versão do Brasil e outra da Galiza.
Em 1888, Constantino Nigra contestará também a afirmação de Garrett,
afirmando a semelhança do romance com outras canções (do Piemonte, de Metz, de
Veneza e da Catalunha) e baseia-se no nome “Bernal” para lhe situar a origem no
Languedoque e o fundamento histórico nos amores do duque Bernardo de Septimania
com a imperatriz Judit, no séc. IX83.
Juan Bautista Avalle-Arce, que situa a génese deste romance na Andaluzia por
volta de 1487-1488, atribui-lhe uma feição de “burla disimulada al desenfadado capitán”
79
Cf. Garrett [1983], I, p. 119.
Cf. Carolina Michäelis de Vasconcelos [1980], Estudos sobre o Romanceiro Peninsular - Romances
Velhos em Portugal (publicados na revista Cultura Española – Madrid, 1907-1909), Porto, Lello &
Irmão, 1980, §178.
81
Teófilo Braga [1869-1982], Cantos Populares do Archipelago Açoriano, Porto, Livraria Nacional,
1869. Reedição Facsimilada, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1982, p. 408-409.
82
Teófilo Braga [1982], Romanceiro Geral Português, 3 vols., Lisboa, Vega, 1982. Edição facsimilada:
Vol. I - Theophilo Braga [1906], Romanceiro Geral Portuguez. Romances heroicos, novellescos e de
aventuras, segunda edição ampliada, Lisboa, Manuel Gomes, 1906 (sigla RGP I); Vol. II - Romanceiro
Geral Portuguez. Romances de aventuras, históricos, lendários e sacros, segunda edição ampliada,
Lisboa, Manuel Gomes, 1907 (sigla RGP II); Vol. III - Romanceiro Geral Portuguez. Romances com
forma litteraria do século XV a XVIII, segunda edição ampliada, Lisboa, Manuel Gomes, 1909 (sigla
RGP III). Cf. Vol. II, pp. 35-78.
83
Cf. RoH, I, p. 362.
80
32
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que terá sido a figura histórica Bernal Francês, o descendente de conversos cruel,
avarento e detestado, que serviu os Reis Católicos e lutou contra os portugueses, os
mouros de Granada, de Marrocos e de Almería e, ainda, contra os franceses no
Rossilhão84. Esta opinião vem ao encontro da de Menéndez Pidal, que chama às canções
francesas e italianas com correspondência com este romance “el proletário indocumentado
frente al hidalgo de ejecutoria y de solar conocido”, considerando este, irrefutavelmente,
nascido em solo castelhano85 e atribuindo o facto de não aparecer em recolecções até
meados do século XVI à preferência dos editores pelos romances fragmentários e
consequente menosprezo pelos “romances-conto”. Bernal Francês, contudo, era bem
conhecido e Pidal encontra como prova disso o facto de Góngora, Calderón e Lope de
Vega darem, em obras suas 86 , uma utilização burlesca ou humorística a alguns dos
84
Juan Baptista Avalle-Arce [2004], Bernal Francés y su romance, Madrid, Gredos, 1974, disponível em
www.depts.washington.edu/hisprom/espanol, arquivo acedido na Internet em 17 de Junho de 2004,
originalmente em Annuario de Estúdios Medievales, nr. 3, 1966, pp. 327-392.
Parece-nos pouco clara esta associação e não se nos afigura que o romance oral tenha como sentido
preponderante a citada “burla disimulada” a Bernal Francês. O que parece, isso sim, é ter-se efectuado
uma certa transposição dos pouco simpáticos traços de personalidade do capitão dos Reis Católicos para a
figura do marido, que é quem, de facto, se encontra a combater os mouros, o que é explícito em algumas
versões. No romance, é este que se revela ardiloso e até cruel na sua vingança. Em contrapartida, embora
ausente de cena, o amante/Bernal Francês é apresentado implicitamente como paradigma do amante
caloroso, contrastando com a “crueldade” do marido. A ideia é reforçada quando, com a contaminação
deste romance com A Aparição, frequente na tradição português, nos deparamos com um “Bernal
Francês” que procura a amante e, desgostoso ao saber da sua morte, quer juntar-se-lhe na tumba.
85
Cf. RoH, I, pp. 361-364.
86
- Em Góngora: “- Quién es esse caballero // Que a mi puerta dijo: abrid? // - Caballero soy, señora, //
Caballero de Moclin…”. Cf. Luís de Góngora [1597], Letrillas burlescas, em Antonio Chacón y Ponce de
León (rec.), Obras de D. Luis de Góngora, Tomo II, 1597, edição digital disponível na Internet em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12695074335603728765657/ima0194.htm, arquivo
acedido em 3 de Janeiro de 2010.
- Em Calderón: “¿Qué me mandais? – Advertid // Que solo saber espero // Quién es esse caballero // Que
a mis puertas dijo: Abrid.” . Cf. Calderón de la Barca [s.d., séc. XVII], Céfalo y Proicis (Fiesta que se
representó a Sus Majestades día de carnestolendas, en el Salón Real de Palacio), edição digital a partir de
Francisco Sanz, Novena parte de Comedias de Don Pedro Calderón de la Barca que nuevamente
corregidas, publica Don Juan de Vera Tassis y Villarroel, Madrid, 1691, disponível na Internet em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12260401999002628532624/p0000001.htm#I_1_,
arquivo acedido em 3 de Janeiro de 2010.
- Em Lope de Vega: “Las três de la noche han dado, // Corazón y no dormis; // O vos no tenéis dineros
// O alguien dice mal de mí”. Cf. Lope de Vega [1624], Amor secreto hasta zelos, em Iuan Gonçalez, a
costa de Alonso Perez, Parte decinueue y la meior parte de las comedias de Lope de Vega Carpio...,
Madrid,
1624,
h.
23
v.-44,
edição
digital
disponível
na
Internet
em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/57915286805574273000080/032594_0001.pdf,
arquivo acedido em 3 de Janeiro de 2010.
33
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
versos do romance, o que implica que os seus leitores ou espectadores também estariam
familiarizados com ele87.
Em 1828, Almeida Garrett, ao publicar Adozinda, em Londres, junta-lhe Bernal
Francês e na carta a Duarte Lessa que lhe serve de Prefácio e ficou servindo de
testemunho da sua reflexão estética, justifica a recriação literária a que procedeu, ao
“arranjar e [a] vestir” alguns romances com os quais mais “engraçara”88. Deste modo, os
romances Bernal Francês e Silvaninha (este último de que Garrett se serve como
fundamento para a Adozinda) aparecem “reconstruídos e ornados com os enfeites singelos
porém mais simétricos da moderna poesia romântica” na primeira parte do Romanceiro,
sendo os “originais” da tradição oral incluídos na segunda parte89. Ainda que Garrett fale
no “texto original” de Bernal Francês, ele próprio faz notar que este vai “muito mais correcto
e melhorado agora pela colação das diversas versões que tenho obtido ”.
O romance, como os outros do nosso corpus e como pode ser apreciado pelos
quadros acima, facultados pelo RPI, apresenta-se distribuído pelo universo pan-hispânico, cantado ou recitado em contextos diversos. Joanne Purcell aponta, como
“caso curioso”, tê-lo ouvido cantar em Ponta Delgada das Flores, com o nome de “Nicolae
Françoilo”, pelos “foliões que acompanhavam os carros de bois enfeitados que distribuíam carne de
casa em casa durante a Festa do Senhor Espírito Santo ”,
87
que o entoavam na toada característica
Cf. RoH, I, p.160 e RoH II, pp. 407-409.
Cf. Garrett [1983], I, p. 61.
89
Cf. Garrett [1983], II, p.137. Para o estudo da metodologia utilizada por Garrett para o tratamento que
faz das versões orais, cf. Luís Augusto Costa Dias [1988], Fontes Inéditas do Romanceiro Português. Os
Papelinhos de Garrett, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1988.
88
34
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
dessas Festas, sem perceber o que cantavam90. Um deles, o único que lhe conhecia a
letra, referiu que os antigos o cantavam nessa ocasião, “mas nunca em presença da coroa”91.
História Interna
Durante a noite, uma mulher ouve alguém bater à sua porta e diz que só a abrirá a
um tal Bernal Francês 92 . Um homem identifica-se assim e a mulher vai abrir, mas
apaga-se-lhe a luz da candeia. Ao deitar-se com ele, a mulher estranha a atitude passiva
do homem e diz-lhe, sucessivamente, que não tema os vários membros da família ou o
marido. O homem vai-lhe respondendo que não teme a nenhum dos citados, revelando-se como o próprio marido e anuncia que a vai matar.
Muitas versões continuam com o romance Aparição93 e esta contaminação94, com
maior ou menor número de versos, aparenta tornar este romance parte integrante de
Bernal Francês, dando-lhe continuidade. No episódio assim introduzido, Bernal
Francês procura a amante, sendo informado que ela morreu. Demonstra o desejo de se
lhe juntar na sepultura e a amada aparece-lhe, incorpórea, dizendo-lhe que viva ele, mas
que a recorde, dando o seu nome à mulher com quem casar. Aconselha-o, ainda, a
guardar as filhas que vier a ter, para que estas não tenham o seu destino.
90
Joanne B. Purcell [2002], recolha e estudo preliminar de, organização de Samuel G. Armistead,
Cristina Carinhas, Pere Ferré e Manuel da Costa Fontes, transcrições musicais de Israel J. Katz, com a
colaboração de Karen L. Olson, Romanceiro Tradicional das Ilhas dos Açores. I. Corvo e Flores, Angra
do Heroísmo e Lisboa, Governo Regional dos Açores e Universidade Nova de Lisboa, 2002, p. 26.
91
Esta é a Coroa do Espírito Santo, “forma consagrada da representação da divindade”, nas palavras do
antropólogo João Leal. Sobre estas festas e os rituais que as estruturam, cf., entre outros estudos, o de
João Leal [1994], As Festas do Espírito Santo nos Açores. Um Estudo de Antropologia Social, Lisboa, D.
Quixote, 1994.
92
Nas versões deste e dos outros romances, a onomástica varia bastante, pelo que os seus protagonistas
serão aqui referidos sempre com o nome dos próprios romances, segundo identificação no RPI (Bernal
Francês/Bernal Francês, Moriana/Veneno de Moriana, Silvana/Silvana, Delgadinha/Delgadinha e
Gerinaldo/Gerinaldo), sejam quais forem os que lhes são dados nas versões.
93 O romance A Aparição está identificado em Durán, Romancero General, nr. 292; em ASW nas pp. 47,
96, 300; no RPI J2; no IGR 0168 (Aparición de la enamorada muerta) e no CMP J2.
94
A junção dos dois romances é frequente na tradição portuguesa. Teófilo Braga, devido à sua grande
difusão, supunha ter havido uma “desmembração” do Bernal Francês em duas partes distintas, que havia
“observado” no Romancero General de Durán: a primeira até à degolação da adúltera e a segunda quando
o amante visita a amada na sepultura. Cf. RGP III, pp. 509-517.
35
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1.2. VENENO DE MORIANA
Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica)
(-) não presente na publicação
Índices e catálogos
Localização na publicação
1849- Romancero General, Durán
(-)
1856 – Primav.
(-)
1899 - ASW
pp. 224-225
1906 - Catálogo del romancero
Nr. 86
judío-español , Menéndez Pidal
1978 - CMP
NI.”El Veneno de Moriana”
1958-1960 – VRP (I e II)
II- XL “Veneno de Moriana” - Versões 533-548
1982-1988 - IGR
0172: Veneno de Moriana
1987-1988 – GRPP (I e II)
I – N. Mulheres Matadoras - Versões 262-275
1997 - RPI
N1. VENENO DE MORIANA (ESTRÓF.)
2000/2001/2002 - RPTOM
III: O VENENO DE MORIANA, versões 9991021
2000 - BRPTOM
LXV: O VENENO DE MORIANA, pp. 75-77
Outros: Pl de Praga
I, 4
Correspondências Pan-Europeias
Segundo o RPI, II, este romance não tem correspondência pan-europeia. Carolina
Michaëlis, pelo contrário, havia-lhe encontrado um fundo comum compreendendo
quase toda a Europa, “- nacionalidades arianas e turanianas” e cita os ”nomes com que os eruditos
costumam designá-lo, atendendo aos typos mais famosos, conhecidos de longa data ”,
referindo a
balada escocesa Edward, em Reliques of the Ancient English Poetry, por Percy, a sueca
Der Knab im Rosenhain (“germanizada por Mohnicke em Volkslieder der Schweden, Berlin,
1830”), a alemã Die Schlangenköchin (Wunderhorn, 16) e as “representantes turanianas”,
de entre as quais a “finnica, admiravelmente imitada pelo poeta inglez Swinburne no seu The Bloody
36
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Son (Poems and Ballads. Lond., 1885; o original publicou-se em Finnica Velyusmaaja, trad. por Schott.
A. A. L. V. iV, 134)” e as da Transilvania (“dos Székler de Siebenbürgen… ”)
95
.
História Externa
Menéndez Pidal apresenta este romance como exemplo do facto de as colecções
antigas não tomarem em consideração as composições cuja métrica não era a de
“octossílabos” monórrimos. Dele há notícia através de um folheto de cordel que se
encontra na Universidade de Praga, provavelmente impresso por volta de 1560,
contendo a Ensalada de muchos romances viejos96. Estas “ensaladas” compunham-se de
versos soltos de vários romances e, numa delas, encontravam-se os versos “Qué me
distes, Moriana, // qué me distes en el vino”.
O romance é registado na tradição oral moderna em diversas assonâncias, segundo
as regiões, o que Pidal atribui à supressão de uma ou outra das assonâncias da repetição
primitiva paralelística, conhecida através da inclusão de alguns versos numa comédia
espanhola de cerca de 1620-3097. A comédia, La morica garrida, é de Juan Bautista de
Villegas e, nela, um cavaleiro embriagado diz:
“Moriana, Moriana, qué me diste en este vino?
que por las riendas le tengo y no veo al mi rocino!
Moriana, en el cercado, qué me diste en este trago?,
que por las riendas le tengo y no veo al mi cavallo!...”
95
Referimo-nos, aqui, ao comentário de D. Carolina, a pp. 216-218, sobre o romance VII, D. Ausenia, do
Romanceiro Portuguez, em estudo no qual faz a crítica de dois romanceiros então publicados, um deles
por A. W. Munthe, Folkpoesi fran Asturien, 1. Ur SpraKvetenskapliga Sällskapets i Upsala
förhandlinger, Upsala, Universitets Arsskrift, 1888 e, o outro, de Leite de Vasconcellos, Romanceiro
Portuguez, Nr. 121 da Bibliotheca do Povo, Lisboa, 1886. Cf. Carolina Michäelis de Vasconcelos [18901892], “Estudos sobre o Romanceiro Peninsular”, Revista Lusitana, II, Livraria Portuense, pp. 156-179,
193-240.
96
RoH II, Cap. XIII: 17.
97
Cf. RoH II, Cap. XIII:17.
37
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em Portugal, a sua antiguidade é atestada pela menção “... e Muliana Muliana” pela
Ama à Feiticeira, que solicitara aquela a dizer o que iria cantar a Cismena, na comédia
Rubena de Gil Vicente (1521) 98.
O romance terá sido cedo transportado para o Brasil, tendo sido recolhida uma
versão (Juliana e D. Jorge), que Celso de Magalhães publica em 1873. Em 1883, nos
Cantos Populares de Sílvio Romero99, Teófilo Braga inclui uma versão cearense e outra
da Ilha de São Miguel, a primeira versão portuguesa, portanto, a ser divulgada. Leite de
Vasconcellos, em 1886 100 , dá a conhecer um fragmento do romance – D. Ausênia.
Teófilo Braga, que, em 1887, dera o romance como inexistente em Portugal 101 aquando
da sua colheita no Ceará e em Pernambuco, só mais tarde vindo a ser encontrado por
Arruda Furtado na Ilha de S. Miguel, publica estas versões no Romanceiro Geral
Portuguez (RGP I).
98
Ver José Camões [2002], direcção científica de, As Obras de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa Nacional,
Casa da Moeda, 2002 (Rubena, Vol. I, , pp. 367-418). Tão breve referência, por si só, não prova que se
trate de Veneno de Moriana. No Vol. V desta obra, a páginas 35, o teor da nota à linha 626 indica duas
hipóteses possíveis para a procedência de referência “... e Muliana Muliana”: “Romance do ciclo de
Moriana y el moro Gálván que começa A pie de una verde haya \ estava el moro Gálvan, ou romance de
Veneno de Moriana”. Cf. Camões [2002], Vol. V, otas aos textos textos complementares s notas
ndice de iguras hist ricas e mitol gicas ndice de personagens gloss rio e i liogra ia de il icente.
É o contexto de Rubena que torna possível a associação com Veneno de Moriana, cujo referente temático
é a vingança motivada pela traição e ela própria é considerada feiticeira, enquanto o outro romance,
Moriana y Galván (IGR 0312), trata do amor fiel da protagonista aprisionada pelo mouro e se comove
vendo ao longe o seu amado. Teresa Araújo, considera que os outros romances a que a Ama alude (“em
Paris estaa Don’Alda”, vamonos dixo mi tio”, “levantey me hum dia/ lunes de manhana”) representam em
Rubena uma “cadeia de significados”, na qual “a interferência de ‘Muliana’ surge como expressão
burlesca de uma mulher que manifesta a sua opinião frente à solução encontrada por Rubena e a crítica
àquele que não tinha, ainda, sido atingido satiricamente na sua acção, o jovem clérigo. ‘Muliana’
funciona, assim, como acusação da personagem masculina através da alusão indirecta e irónica ao amante
traidor de Muliana, o qual, embora não seja fiel ao amor da vingadora, não assume a atitude do par de
Rubena, ‘hallo de preñada, el moço ahuyo’. Mas também não é possível deixar de reconhecer, na
evocação, um paralelo, em imagem invertida, entre a reacção de cada uma das figuras traídas. Enquanto
uma deseja a sua própria morte, a outra castiga mortalmente o amante”. Cf. Teresa Araújo [2004], “O
sentido de algumas evocações vicentinas a romances velhos”, em Portugal e Espanha: Diálogos e
Reflexos Literários, s.l., Centro de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade do Algarve, Instituto
de Estudos sobre o Romanceiro Velho e Tradicional, 2004, pp. 11-65.
99
Sylvio Romero [1883], Cantos Populares do Brazil, acompanhados de Introducção e Notas
Comparativas por Theophilo Braga, II, Lisboa, Nova Livraria Internacional-Editora, 1883.
100
Leite de Vasconcellos [1886], Romanceiro Portuguez, Biblioteca do Povo e das Escolas, nº 121,
Lisboa, David Corazzi, 1886.
101
Cf. Teófilo Braga [1887], “Ampliações ao romanceiro das ilhas dos Açores”, Revista Lusitana, Vol. I,
Porto, Livraria Portuense, 1888-1889, 1887, pp. 99-116.
38
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
História interna
Este romance apresenta dois tipos de estrutura, ambos versando o mesmo
incidente básico, com algumas diferenças102. Moriana oferece um copo de vinho a um
cavaleiro que dela se acerca (após confirmar que ele vai casar com outra). O cavaleiro,
ao bebê-lo, deixa de ver claro e Moriana informa-o (ou não) que foi envenenado.
1.3. SILVANA e DELGADINHA
Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica)
(-) não presente na publicação
Índices e catálogos
1849- Rom. General,
Localização na publicação
Localização na publicação
SILVANA
DELGADINHA
(-)
(-)
1856 – Primav.
(-)
(-)
1899 - ASW
(-)
pp. 247-250; 280-287
1978 - CMP
P1. “Silvana”;
P2. “Delgadina”;
Durán
Vide CMP, II, 132 e CRHH Vide CMP, II, 137:
51: “Paseábase Silvana / [por “Estábase la Delgadita;
un corral que tenía]”
1958-1960 – VRP (I e II)
Delgadina, Delgadina”;
Vide também CRHH, 33 ab;
II – XXXVII. DELGADINHA - versões 479-514
(não é feita a separação de Silvana e Delgadinha)
1982-1988 - IGR
0005 Silvana
0075 Delgadina
1987-1988 – GRPP (I e II) I - P. Incesto. XXXV. DELGADINHA - Versões 310-344
(não é feita a separação de Silvana e Delgadinha)
1997 - RPI
P1. SILVANA (Í-A)
2000/2001/2002 -
III:
RPTOM
1124-1134
102
SILVANA,
P2. DELGADINHA (Á-A)
versões III:
DELGADINHA,
versões 1135-1200
Desenvolver-se-á esta questão no Capítulo III. A organização da narrativa.
39
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2000 - BRPTOM
LXXIII.SILVANA, p. 84
LXXIV. DELGADINHA,
pp. 84-87
Correspondências Pan-Europeias
Segundo o RPI, II, estes dois romances não têm correspondência pan-europeia.
História Externa
Os romances que tratam de incestos não foram da preferência dos editores
antigos, presumivelmente por uma questão de moralidade. É na tradição sefardita
oriental que se pode encontrar a mais antiga referência a Delgadinha, em um himnário
hebreu de 1555, no qual aparece o incipit “Estábase la Delgadita” e a Silvana em um
outro, de 1587, que inclui a melodia para cantar “Paseábase Silvana”103.
Diz Carolina Michaëlis104 que o romance Silvaninha já estava divulgado em 1640
e que se lhe não encontra nenhuma redacção castelhana antiga. Encontra-lhe, isso sim,
menção no Auto do Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de Melo, pelo verso
inicial, “à portuguesa”, “Passeava-se Silvana
por um corredor um dia”, refutando a
afirmação de Menéndez y Pelayo quanto à possibilidade de aquele autor estar a citar um
texto castelhano e sublinhando que já Almeida Garrett havia elucidado este ponto.
“Da Silvana nasceu a Adozinda”, declara Garrett, que escolheu “esta xácara para
provar nela a mão”, irritado pelas dificuldades de “traduzir” tais antiguidades “para língua
e poesia de hoje”105. Quando posteriormente, em 1851, o Romanceiro é editado, Garrett
103
Paloma Díaz-Mas [2001], edição de, Romancero, s.l., Editorial Crítica, 2001, pp. 281-285.
Vasconcelos [1980], pp. 193-195.
105
Cf. Garrett [1983], II, pp. 125-132. Sobre os procedimentos de “reconstrução” e “restauro” por Garrett,
cf. Dias [1988] e também João David Pinto-Correia [2000], “Almeida Garrett e a literatura tradicional
portuguesa”, em José da Costa Miranda [2000], org. de, Almeida Garrett. Um Breve Encontro, Caldas da
Rainha, Livraria Nova Galáxia, 2000, pp. 37- 53. Sobre a recriação por Garrett, fará Gianluca Miraglia
um estudo segundo o qual a memória literária daquele “desempenha um papel, sem dúvida decisivo e
importante”. O autor refere a conhecida carta a Duarte Lessa, na qual Garrett compara a protagonista do
romance com Mirra, que alimenta uma paixão incestuosa pelo pai. Garrett teria sido influenciado pela
história narrada por Ovídio no Liber Decimus e, também, pela figura de Mirra, cujo segredo é a paixão
pelo pai que a leva à morte, na tragédia de Vittorio Alfieri, escrita em 1786. Cf. Gianluca Miraglia [2000],
104
40
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
inclui versão diferente da que acompanhara a Adozinda, em 1828, agora, ainda nas suas
palavras, “melhor restituído o texto com o auxílio de outras cópias que me mandaram da Beira
e do Ribatejo”.
Teófilo Braga inclui Silvana nos Romances de Aventura – Cyclo da Mulher
Perseguida (Vol. I) e, nas notas sobre o romance (Vol. III, pp. 453-465), não chegando
claramente a contradizer a opinião de Garrett quanto às suas origens portuguesas, diz
que se encontra “porém” nas Astúrias, com o título de Delgadina. Encontra-lhe também
similitudes com o conto de Pérrault, Peau d’Âne, e com a lenda de Mathilde, filha
perseguida pelo contranatural amor do pai, assim como o foi santa Difna106.
História interna
Nestes dois romances a situação inicial, a de um pai que se enamora da filha e lhe
propõe uma relação incestuosa, é, em ambos, muito semelhante, pelo que facilmente se
contaminam, o que é muito frequente na tradição portuguesa107.
“A Silvaninha torna-se Adozinda: modelos literários da personagem criada por Garrett”, em José da Costa
Miranda, organização de, Almeida Garrett. Um Breve Encontro, Caldas da Rainha, Livraria Nova
Galáxia, 2000, pp. 55-64.
106
O encerramento numa torre por um pai antinaturalmente cioso da filha é sofrido também por Santa
Bárbara, pelo que a torre é atributo desta santa. Assim figura no brasão da freguesia do mesmo nome, na
Lourinhã. (cf. http://www.lourinha.oestedigital.pt, arquivo acedido na Internet em 23 de Fevereiro de
2007). Outras santas sofreram dos pais os mais terríveis tormentos, como Santa Catarina, metida numa
roda de navalhas, no romance devoto tradicional Santa Catarina, IGR 0126. Vejam-se, igualmente, as
vidas das Santas Engrácia, Quitéria, Olaia, Apolónia e Susana, em Maria Clara de Almeida Lucas [1988],
Ho Flos Sanctorum em Lingoage: Os Santos Extravagantes, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação
Científica, 1988. O castigo, nesses casos, é infligido às jovens por se negarem à idolatria, mas liga-se
também, implicitamente, à defesa da sua virgindade, na resistência que oferecem ao casamento; nestes
casos, note-se, não há uma perseguição de cariz incestuoso, como ocorre em certos contos tradicionais, a
que adiante nos referiremos, mas o casamento com um pagão é a razão explícita da resistência das
mártires. Também em Delgadinha há uma versão em que a informante declara que o pai quer que a filha
case com um mouro (e que é uma variação importante ao sentido do romance, anulando-lhe o cariz
incestuoso); não se sabe se a resistência da jovem se deve ao facto de o noivo que lhe é imposto ser um
“pagão”, mas o facto é que tal a torna “santa”, na indicação didascálica da informante que precede os
versos do castigo imposto (“Estava Santa Albina”…..). Cf. versão D/86 Fontes (1980) 69-70, em Anexos.
Grupo A.
107
A questão da distinção entre os dois romances será aprofundada no Capítulo III - A organização da
narrativa, da Parte I.
41
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Silvana
Em Silvana, à proposta incestuosa do pai, a filha começa por dizer que aceitaria se
não temesse o castigo divino, para logo se queixar à mãe dos avanços daquele. A mãe
manda a filha trocar de cama consigo. O pai censura a mulher que julga ser a sua filha
por não a encontrar virgem e a mãe revela a sua identidade. O pai ora amaldiçoa a filha
por o ter descoberto ora a bendiz (ou à mulher) por o ter livrado de tamanho pecado.
Delgadinha
Em Delgadinha, um pai de várias filhas propõe a uma delas uma relação
incestuosa. A filha recusa terminantemente e é encerrada, sofrendo o tormento da sede.
A jovem vai pedindo água aos diversos familiares que vai avistando das janelas, mas
todos lha negam. Por fim, pede água ao pai, prometendo ceder-lhe e este manda levá-la
imediatamente, mas, quando chegam, já Delgadinha está morta.
1.4. GERINALDO
Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica)
Índices e catálogos
- 1537 - Pl. s.
Desesperaciones de amor …
Localização na publicação
4º, 4 folhas, letra gótica, R2254, Madrid, Biblioteca
Incipit dos
folhetos
“Leuanto se
Girineldos quel rey
dexaua dormido”
Nacional
- 1551 – Tercera parte de la Silva Fol. lxxxxvj
de vários romances108
- 1849, reed. do Pl. S. de 1537
“Leuantose
Girineldos, el rey
dexaua dormido”
- I, BAE X, pp. 175-176
“Levantóse
Gerineldo que el
Rey dejara d.”
- II, pp. 96-97, Nr. 161
(as modificações
de Durán passam
à Primav.)
em Romancero General,
Durán
- 1856, reed. do Rom. General
em Primav.
108
Pidal crê que a Silva teria copiado o folheto de outra edição melhor que a de 1537. Cf. Ramón
Menéndez Pidal [1973], Estudios Sobre el Romancero, Vol. XI de Obras Completas, Madrid, Espasa
Calpe, 1973, pp. 224-256.
42
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
s.a., s.l. Pl. s.
Paradeiro desconhecido
(séc. XVI, segundo Durán)
- 1849, descrito e reed. em
Romancero General, Durán
- I, BAE X, pp. 176-177
- 1856, tomado de Durán em
- II, pp. 97-101, nr. 161a
“- Gerineldo,
Gerineldo, el mi
page más querido”
Primav.
1899 - ASW
p.: 63;122;170-173;275-278
1978 - CMP
Q1
1958-1960 -VRP
XVIII “Gerinaldo”
I - Versões 257-274; II - 1004
1982-1988 - IGR
0023: Gerineldo
1987-1988 - GRPP
I – Q. Mulheres Sedutoras,
versões 345-364
1997 - RPI
Q1 : GERINALDO (Í-0)
2000/2001/2002 - RPTOM
III: GERINALDO, versões
1203-1249
2000 - BRPTOM
LXXV. GERINALDO, pp. 8890
Correspondências Pan-Europeias, segundo RPI:
Em Nota, diz o RPI que “The similarities to Gerineldo are very striking, but, even so,
are probably coincidental; the problem certainly deserves further study”, indicando as
seguintes correspondências: Alemã: Spielmannsohn: DVM 62; Hozapfel D 28109.
História Externa
Gerinaldo foi publicado em cordel, estando o folheto mais antigo, que finaliza
com a descoberta pelos dois amantes da espada do rei metida entre eles, datado de
109
Bibliografia indicada: DVM: John Meyer, Erich Seeman, Walter Wiora, H. Siuts, Jürgen Dittman,
Otto Holzapfel, et alii, Deutshe Volkslieder mit ihren Melodien. Deutsche Volkslieder: Balladen, 9 vols.,
Berlin – Leipzig/Freiburg im Breisgau: Walter de Gruyter/Deutshes Volksliederarchiev, 1935-1992; Otto
Holzapfel, “Balladeninindex,” in DVM, X (“a publicar”).
43
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1537110. O segundo111, cujo paradeiro se desconhece, é colocado no século XVI por
Agustín Durán, que o descreve no seu Romancero General, I, BAE X, p. lxxiv, em
1849, versão que conta a fuga dos dois amantes para a Tartária.
Diz Garrett estar convicto que o romance veio de França, por não se encontrar nas
colecções castelhanas (“Estou que nos veio de França este romance: não se encontra nas
colecções castelhanas”) e acrescenta “e entre nós é dos que andam mais desfigurados e
corruptos. Eu tive de reunir vários fragmentos para o restituir”112. A reconstituição que faz, e
que menciona a região de onde provêem os “fragmentos”, finaliza com o encerramento
do pajem numa torre, o perdão pelo seu belo cantar e a promessa de casamento com a
infanta113. Garrett considera que o romance apresenta “diferenças de acção nas variantes”,
mas se aproxima da tradição114, de acordo com o extracto do Chronicon Laurishamense
110
Desesperaciones de amor que hizo vn penado galán y vna glosa que dize salgan las palabras mias y
vna quexa contra el amor y vnas exclamaciones hechas por vn Cauallero filosofo de Cupido; y las coplas
de dama hermosa ques cos y cosa. Foi objecto, como se vê no quadro acima, de reedições, com algumas
modificações em Durán, que passam a Primav. e a ASW. A versão com ”Desecha” acrescentada ao final
é reproduzida na Tercera parte de la Silva de 1551. Cf. Catalán, Cid [1975, 1976], pp. 25-27 de *.
111
Este es vn romance de Gerineldos, el page del Rey, nueuamente compuesto, também reeditado em
Durán, em Primav., em ASW e outros, com variações e refundições. Cf. Catalán, Cid [1975, 1976], pp.
28-43 de *.
112
Garrett [1983], I, p. 152.
113
Trata-se da contaminação com outros romances, assunto que abordaremos na Parte II, Capítulo III. As
intervenções na enunciação e no enunciado.
114
Diz a lenda que o jovem secretário de Carlos Magno e a filha deste se apaixonaram e se encontravam
em segredo no quarto da princesa, castamente, trocando palavras de amor. Uma noite, quando Eginhard
se preparava para sair, um manto de neve cobria o pátio e, para que a marca dos seus pés não fosse
descoberta, a princesa carregou-o às costas. Infelizmente, Carlos Magno não conseguia dormir e
encontrava-se à janela, descobrindo o estratagema, com admiração e fúria, que consegue conter. Na
manhã seguinte, reunindo os conselheiros, pergunta que destino se há-de dar ao ofensor da honra real.
Entre aqueles encontra-se Eginhard, que responde que o castigo para tal crime deve ser a morte.
Espantado, e face às súplicas da filha, Carlos Magno decide expulsar os dois do palácio. Alguns anos
mais tarde, o imperador, que se perdera na floresta durante uma caçada, vai ter a uma pequena cabana,
onde encontra um casal com uma filha, chamada Emma. Reconhecem-se mutuamente e Carlos Magno
perdoa e abençoa Eginhard e a filha amada. Cf. Wilhelm Ruland, Legends of the Rhine, Cologne, Hoursch
& Bechstedt, Publishers [ca. 1906], em www.Kellscraft.com/LegensRhine/legendsrhine054.html, arquivo
acedido na Internet em 24 de Novembro de 2004.
Na verdade, Eginhard, ou Einhard, nascido c. 770 e falecido em 840, gozou do favor de Carlos Magno e
de Luis I, sendo tutor do filho deste, Lotário. Encarregou-se da construção dos palácios de Aachen e
Ingelheim, bem como de diversas negociações com os Saxões e junto do papa. O seu mais importante
trabalho como historiador foi a Vita Karoli Magni, que baseou nos vinte e três anos que passou ao serviço
do imperador. Após a morte da sua mulher Emma, irmã do bispo Bernhar de Worms, passou o resto da
vida como abade beneditino. O túmulo dos dois encontra-se na pequena igreja de Ingelheim.
(Dados sobre Einhard ou Eginhard retirados da Catholic Encyclopedia e da Columbia Encyclopedia,
respectivamente
em
www.knight.org/advent/cathen/05366b.htm
e
em
www.encyclopedia.com/thm/E/Einhard.asp, ambos os arquivos acedidos em 22 de Novembro de 2004).
44
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de Jacob Grimm115. Nas Notas a Reginaldo, refere Garrett diversas correspondências em
baladas e lendas do tema dos amores de uma mulher de condição social superior ao do
amante e, especificamente, o motivo da espada colocada entre os dois, a que nos
referiremos na Parte II, no Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido.
No Romanceiro Geral Português, Teófilo Braga inclui-o no Cyclo Carolíngio
(Matéria de França) 116 , referindo que, “na Beira, segundo descobriu primeiro Garrett,
chamam-lhe Eginaldo, que é a tradução mais próxima de Eginhart” 117 . Como de origem
carolíngia o considerou igualmente Menéndez Pelayo, no Capítulo XXXIX. Romances
Caballerescos del Ciclo Carolingio, do “Tratado de los Romances Viejos, II”, dizendo:
“La leyenda que el poeta castellano desarrolló tan ingeniosamente es, sin duda, de origen
carolingio, y Depping fué el primero en señalarle. Trátase de los supuestos amores entre Emma,
hija de Carlomagno, y Eginhardo, futuro cronista de aquel emperador: historia fabulosa referida
en algunas crónicas alemanas, y atribuída por Guillermo de Malmesbury al secretario y a la
hermana del emperador Enrique V. Muy conocido es, gracias a Jacobo Grimm, el relato de la
Crónica del monasterio de Lauresheim (Chronicon Laurishamense), que al parecer es la más
antigua que consigna este hecho.” 118
Também segundo Menéndez Pidal, Gerinaldo poderá ter fundamento nos
pretensos amores de Eginardo, secretário e camareiro de Carlos Magno, com a filha
deste, Emma119. Pidal divide as versões da tradição oral moderna de Gerinaldo em dois
tipos, relacionados com o detalhe do despertar do rei, - com sonho pressagiador ou
Sobre a Vita Karoli Magni e outros documentos que, segundo João David Pinto-Correia, são responsáveis
pela elaboração da “história literária” de Carlos Magno, cf. o Capítulo I. A “História Poética de Carlos
Magno”: da História à Lenda e à Literatura, de RCTOP, Vol. I.
115
Segundo Teófilo Braga (RGP III, p. 387), o episódio relatado “aproxima-se o mais possível da
tradição”, exceptuando algumas circunstâncias como o episódio da neve, talvez por esta ser menos
comum em terras hispânicas do que nas renanas. Já em relação à lenda, haverá menor correspondência,
pois os amores de Gerinaldo e da infanta, no romance tradicional, não são tão inocentes como os
apresentados em Legends of the Rhine. Manuel Alvar aproxima Gerinaldo da história de Amis et Amiles,
através dos motivos do enamoramento da princesa, dos protestos do camareiro e do temor provocado pelo
rei. Cf. Manuel Alvar [1968], introd. e selecção, El Romancero, Madrid, Editorial Magisterio Español,
1968, pp. 23-24.
116
Cf. RGP I, Notas, pp.177-206.
117
Cf. RGP III, pp. 386-395.
118
Cf. Pelayo [1945].
119
Cf. Ramón Menéndez Pidal [2002], Flor Nueva de Romances Viejos, 48ª ed., Madrid, Espasa Calpe,
2002.
45
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
natural - correspondendo a duas grandes regiões e aos romances da tradição antiga e
sublinhando que a variante que domina modernamente na região na qual se inclui
Portugal seria, provavelmente, mais arcaica que a do folheto a que corresponde.
Despertar do Rei:
Despertar com sonho pressagiador
Despertar natural
(P. s. de 1537 e terceira parte da Silva de
romances, Saragoça, 1551)
(Pl. s. s.a., s.l.)
- Portugal (com Madeira e Açores) e Norte - Sul, Sudeste e Centro da Península
de Espanha
Das duzentas e sete versões do nosso corpus, em setenta e oito (37,68%) o rei tem
um sonho de presságio, sendo a esmagadora maioria (sessenta e uma) do distrito de
Bragança, uma com indicação “Trás-os-Montes e Alto Douro”, uma do distrito de Vila
Real, uma do Porto, quatro do distrito de Viseu, quatro do distrito da Guarda, duas da
Madeira e quatro de origem desconhecida120.
O romance foi objecto de uma edição organizada por Diego Catalán, com as
versões ordenadas segundo critérios de tempo e espaço, incluindo os três folhetos (de
1537, da Silva e s.a.), as variações conhecidas deste último (Canción nueva del
Gerineldo) e as suas refundições em folhetos, no séc. XIX121. Na obra, são editados
separadamente os romances Gerineldo e Gerineldo y la condesita e distinguidos seis
tipos principais do romance autónomo Gerineldo segundo as regiões em que se radicam
(tipo do Noroeste, tipo Português, no qual se incluem subtipos distintos, tipos
120
Ver Anexos, Grupo B. B.6. Gerinaldo – Versões do sonho do rei.
Ver, sobre um deles, Jerineldos, o artigo de Luis Suárez Ávila, que lhe analisa a estrutura narrativa
(começa com Conde Niño, segue com La Condesita e, depois, com Gerineldo, com a particularidade de
inverter a ordem do chamado “romance doble”, que começa com Gerineldo e segue com La condesita e,
em particular, o facto de, pela primeira vez no âmbito de um folheto de cordel, surgir o desenlace
meridional, tomado da tradição, do juramento de não casar, feito à Virgen de la Estrella. Cf. Luis Suárez
Ávila [2006], “Pliegos de cordel, Bernardo Núñez, impresor popular y su Gerineldo de El Puerto de Santa
María”, Culturas Populares. Revista Electrónica 3 (septiembre-diciembre 2006), 39 pp., disponível na
Internet em http://www.culturaspopulares.org/textos3/articulos/suarez.pdf, arquivo acedido em 17 de
Maio de 2011.
121
46
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Asturiano, Cantábrico, Castelhano velho e Catalão e, no Sudeste, o tipo Meridional),
desligando desta divisão as versões judeo-espanholas do Oriente e Marrocos, as das
Canárias e as americanas122.
No Brasil, a primeira notícia deste romance deve-se a Celso de Magalhães, em
1873 123 , conforme Doralice Alcoforado, que anota que a edição foi organizada por
Domingos Vieira Silva “a partir da recolha de artigos publicados em jornais”:
“[N]o Brasil, a primeira referência a esse romance que se tem conhecimento é a de
Celso Magalhães no seu livro A Poesia Popular Brasileira, editado em 1966, com uma versão
fragmentária de apenas 04 versos, recolhida no Maranhão”.
A autora destaca ainda as sequências temáticas de uma versão baiana, que
compara com outras versões, brasileiras e ibéricas, e compara os respectivos “esquemas
narrativos”, dizendo que “detectaremos as permanências e as prováveis recriações do
romance Gerinaldo no Brasil.”
História Interna
A infanta pergunta a Gerinaldo se quer dormir com ela. Este exprime as suas
dúvidas quanto à seriedade da proposta, dada a sua condição social inferior, mas acaba
por aceitar e vai ter ao quarto da infanta. Durante a noite, o rei desperta e procura
Gerinaldo, que encontra deitado com a filha. Não se decide a matar o seu pajem, que
criou desde pequeno, nem a infanta, por falta de outro herdeiro, optando por sair,
deixando a espada entre os amantes adormecidos. Estes, ao acordar, vêem a espada e
deliberam sobre a atitude a tomar. Gerinaldo sai e, ao encontrar o rei, que lhe pergunta
de onde vem, tenta enganá-lo. O rei não se deixa ludibriar, mas decide casar o pajem
com a infanta.
122
Catalán, Cid [1975, 1976].
Cf. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado [1992], “O Romance Ibérico no Brasil: Tradição e
recriação” em Manuel Viegas Guerreiro, org., Literatura Popular Portuguesa, s.l., ACARTE, 1992, pp.
43-64.
123
47
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2. Identificação de outros romances relacionados com os do corpus
No decorrer do trabalho referir-nos-emos a outros romances que se relacionam
com os do corpus, seja por analogia temática, seja porque ocorre contaminação, ou por
outras razões. Deles fazemos, desde já, a identificação que lhes é atribuída pelo RPI e
pelo IGR124:
- A Aparição (Aparición de la enamorada muerta) - RPI J1; IGR 0168
- A Filha Desterrada (Nave guiada por la Virgen) - RPI J7; IGR 0108.
- A Morte do Rei D. Fernando (Muerte del rey Fernando) - RPI A7; IGR 0009.
- Afuera, afuera Rodrigo - RPI A10, A11; IGR 0021.
- Bodas de sangue (Bodas de sangre) - RPI 09; IGR 0440.
- Claralinda (Albaniña) - RPI M1; IGR 023.
- Conde Claros em hábito de frade (Conde Claros en hábito de fraile) - RPI B4; IGR
0159 (correspondência pan-europeia: Szégyenbe esett lány).
- Conde Claros preso (Conde Claros preso) – RPI B2; B3; IGR 0366.
- Conde da Alemanha (Conde Alemán)- RPI M9; IGR 0095.
- Conde Sol (La Condesita) - RPI I8; IGR 0110.
- Floresvento - RPI B10; IGR 0343.
- Frei João (Ronda a una mujer malcasada) - RPI M3; IGR 0167.
- Não me enterrem em sagrado - RPI K5; IGR 0101.
- O Conde Alarcos (Conde Alarcos) - RPI L1; IGR 0503.
- O Conde Ninho (Conde Niño) - RPI J1; IGR: 0049 (correspondência pan-europeia:
Fior di tomba, Kate Kádár).
- O Orfão (Canción del Huérfano) - RPI H8; IGR 0092.
124
Entre as bases de dados do Proyecto del Romancero pan-hispánico, encontra-se a disponibilização
dos números de referência utilizados nos principais catálogos e índices dos séc. XIX-XX (Primavera,
Goyri, Moñino, Cat.-Índice del Rº Judeo-Esp. de Armistead, Costa Fontes, González, etc.). Ver Proyecto
del Romancero pan-hispánico.
48
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- O Prisioneiro (El prisionero) - RPI H7; IGR: 0078 (correspondência pan-europeia:
Mois de mai, Voici le temps et la saison).
- O Quintado (El Quintado) - RPI J4 ; IGR 0176 (correspondência pan-europeia:
Pierre de reno le et s’amie).
- Queixas de D. Urraca (Morir vos queredes, padre) - RPI A8; IGR 0004.
- Quem dever a honra alheia - RPI K6; IGR 2863.
- Santa Iria - RPI U32; IGR 0173.
49
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO II
PARA UMA PROCURA DO SENTIDO
Apresentados os romances que nos servirão de corpus de trabalho e considerando
que um estudo da significação narrativo-dramática dos romances orais tradicionais que
tem como objectivo central uma revelação do sentido implicará, logicamente, que uma
“procura” prévia seja efectuada e devendo esta ser empreendida em diversos níveis de
actuação, revemos, neste segundo capítulo, os factores mais gerais que enformam essa
procura.
1. Características dos romances orais tradicionais
O primeiro destes factores a considerar prende-se com a compreensão da tipologia
do pensamento e da expressão nas culturas orais, uma vez que os romances têm vindo a
ser conservados e transmitidos, em especial, nas comunidades rurais menos
alfabetizadas e mais afastadas dos centros urbanos125.
Segundo
Walter
Ong,
o
pensamento
e
a
expressão,
nas
culturas
predominantemente orais, são de base mnemónica e formular e tendem a ser “mais
aditivos do que subordinativos, mais agregativos do que analíticos, redundantes ou ‘copiosos’,
conservadores ou tradicionalistas, próximos ao cotidiano da vida humana, de tom agonístico,
mais empáticos e participativos do que objectivamente distanciados, homeostáticos, mais
situacionais do que abstratos”126.
125
Há que distinguir entre o que se entende geralmente por “culturas orais”, que desconhecem a escrita, e
culturas em que esta se conhece, mas há uma fraca alfabetização. Os efeitos e as implicações da
oralidade e da literacia sobre pensamento e sociedade têm vindo a ser estudados por numerosos autores,
em diversas perspectivas, de que destacamos, apenas, a análise de dezasseis conceituados estudiosos
sobre cultura, cognição e formas de discurso. Ver David R. Olson, Nancy Torrance [1991], editores,
Literacy and Orality, Cambridge-New York-Melbourne, Cambridge University Press, 1991.
126
Ong [1998], pp. 47-62.
51
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Já Paulo Raposo, que cita os estudos de Ong e de outros, como J. Goody, sobre os
géneros artísticos orais, diz não ser “revelável e contrastável” a linha de demarcação entre
“as técnicas oratórias dos grupos tradicionais e o mundo da ‘arte erudita’” pela ausência de
características como “o distanciamento ou a referencialidade, a abstracção ou a
contextualização, a descontinuidade ou as ‘quebras de raciocínios’, a criação ou o mimetismo, a
inventabilidade ou a conservação, ou ainda pelas diferenças de ritmos e de cadências
mnenónicas, etc”, rejeitando, deste modo, a polarização oralidade/cultura escrita ou
letrada e postulando que os géneros orais “convidam à interpretação e à reflexão, fixam
locuções ou ideias, revelam metáforas e ambiguidades, atributos usualmente imputados à lógica
da escrita ou à razão gráfica…”127.
Parece-nos, também, de repensar extremismos quanto a uma rigidez de fronteiras
entre oralidade e escrita e as características atribuídas a cada uma. No entanto,
reconhecemos que as características da expressão nas culturas orais apontadas por
aqueles autores se encontram também nos romances, enquanto prática linguísticodiscursiva das culturas em que a oralidade predomina.
Os romances englobam-se no conjunto da literatura oral tradicional, que, segundo
Menéndez Pidal, possui duas componentes, a tradicionalidade e a oralidade, que lhe dão
um carácter específico.
Quanto à tradicionalidade, Pidal distingue 1) a essencialidade, intensidade; 2) a
naturalidade; 3) a intuição, liricidade, dramatismo; 4) a impessoalidade.
O primeiro destes factores imprime às composições uma brevidade concentrada,
enquanto o segundo que lhes retira artifícios, vindo o terceiro, que igualmente suprime o
que não é essencial, a introduzir tonalidades emotivas, reiterações, enumerações
127
Cf. Paulo Raposo [1997], “Artes Verbais e Expressões Performativas: Repensar a Oralidade numa
Perspectiva Antropológica”, em Jorge Freitas Branco e Paulo Lima, org., Artes da Fala, Oeiras, Celta
Editora, 1997, pp. 22-46.
52
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
simétricas e exclamações. O quarto factor, por sua vez, substitui marcas individuais de
autoria pela reelaboração colectiva128.
Quanto à “oralidade”, melhor dizendo à sua natureza oral, também os romances
partilham das características do que Zumthor chama uma especificidade linguística da
poesia oral: “le texte oral, la plupart du temps, est multiple, cumulatif, bariolé, parfois divers
jusqu’au contradictoire”. Referindo-se aos poemas breves, diz também Zumthor que
“[L]’éspace du discours, …. [N]e laisse place qu’aux élements nucléaires de la phrase, à quoi
l’ellipse, la suspension confèrent une ambiguité, sinon une apparente vacance sémantique…”129.
De facto, os romances socorrem-se de processos de significação altamente
condensados, dos quais os motivos e mesmo as expressões formulísticas são bons
exemplos, e empregam metáforas ou simbolismos cujo sentido há que decifrar, sendo
frequente o uso de repetições e de enumerações que sublinham a lógica da narrativa.
Quanto à proximidade com o quotidiano de que fala Ong, entende-se que os romances,
dentro do género narrativo que não da esfera do maravilhoso, e em particular os
novelescos, representam lógicas comportamentais humanas inseridas num quadro social
dotado de valores. Deste modo, os episódios narrados são identificáveis com situações
reconhecíveis pelas comunidades (um adultério em Bernal Francês, traição e vingança
em Veneno de Moriana, um assédio incestuoso em Silvana e em Delgadinha, a
leviandade em Gerinaldo); a enunciação, por sua vez, poderá revelar sentidos de
128
O estilo dos romances de base épica, que tende a prescindir de preliminares, incidentes e desenlaces e
a que M. Pidal chamou “épico-intuitivo”, foi posteriormente alargado a outros romances. Cf. RoH I, Cap.
III, pp. 58-80.
129
Zumthor refere-se especificamente aos poemas muito breves, mas também àqueles que constituem
vestígios de composições mais longas (pp. 132-133) e é neste sentido que entendemos estas citações
aplicadas ao romanceiro. Noutro local (p. 56), Zumthor refere-se à performance poética oral como uma
descontinuidade no contínuo, “fragmentation ‘historique’ d’un ensemble mémoriel cohérant dans la
conscience collective”. O autor referir-se-á diversas vezes ao Romancero, como forma dos cantos épicos
(pp. 06-107), demonstrando que o género partilha de noções operatórias aplicáveis à poesia transmitida
pela voz e memória, referindo-se também ao uso das expressões formulárias (pp. 116-119). Cf. Zumthor
[1983].
53
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
empatia ou rejeição, não só relativamente aos actos das personagens como também aos
valores morais e sociais implícitos nos romances.
Se bem que os romances partilhem das características gerais das outras
composições produzidas pelas culturas de transmissão oral, eles têm, dentro da literatura
oral tradicional, outras que lhes são próprias e cujo conhecimento importa à
metodologia da procura do sentido. Uma vez que esta passa, em boa parte, pela análise
dos procedimentos segundo os quais o dito revela o não-dito ou, como atrás afirmámos,
pela análise dos elementos explícitos que contêm os implícitos, começaremos por
transcrever, previamente à descrição das características mais particulares dos romances,
a seguinte observação feita por uma informante130:
“Dantes traziam as quadras das canções, mas a gente como no sabia ler, cada
uma compreendia os pontos de sua maneira ...”
A afirmação, mesmo que de forma não intencional ou consciente por parte de
quem a produziu, presta-se a introduzir noções que de seguida abordaremos, como as de
tradicionalização, forma de expressão e propriedade de abertura das estruturas
tradicionais. Assim:
-
“Dantes” – remete-se para uma localização temporal indeterminada, que pressupõe
um tempo passado, longínquo e impreciso. De facto, Menéndez Pidal chama a
atenção para as dificuldades de datação de um romance, dado tratar-se de uma
poesia de transmisão oral, por certo já largamente retransmitida antes da sua fixação
por escrito131.
130
Trata-se de Catarina Sargenta ou Catarina Chitas, que fez o citado comentário após a sua versão
cantada de Conde Alarcos, no dia 18/8/1986, em Penha Garcia, c. Idanha-a-Nova. Cf. José P. Cruz
[1995], Romanceiro Tradicional da Beira Baixa, 1995, pp. 127-128. Devemos, aqui, esclarecer que as
designações de “informante” ou “produtransmissor” não se equivalem necessariamente, sendo o primeiro,
logicamente, um produtransmissor, mas, mais especificamente, entendido como aquele junto do qual o
recolector colhe uma versão. A intervenção dos produtransmissores na produção do sentido será abordada
mais detalhadamente na Parte II, Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado.
131
Cf. RoH I, pp.151-172.
54
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
-
“traziam” – a utilização do sintagma “traziam”, de sujeito indeterminado, evidencia
a impossibilidade de identificação do agente da acção “transportar” e, também, o
pressuposto de que se tratava de algo que vinha de fora para dentro da comunidade.
-
“as quadras das canções” - sendo o verso tipo do romance constituído por dois
hemistíquios heptassilábicos (octossilábicos na métrica castelhana) 132, que abarcam
uma unidade sintáctica, com rima assonante nos versos pares, a designação da
informante pode ser entendida pelo facto de o romance, ao ser cantado, acentuar a
cesura dos hemistíquios, assemelhando-o, assim, à estrutura da quadra lírica. Esta
analogia, aliás, foi feita por José Joaquim Nunes, que chama aos romances “quadras
132
Lembramos que esta não é a única forma do romance e que a própria designação deste é objecto de
critérios diversos. Além da própria definição de “romance” que tomámos de ROTP e já citámos,
remetemos, da mesma obra, para os pontos 3.1. Forma de expressão, 3.3. Componentes discursivas. Sobre
o assunto, reproduzimos também alguns excertos estudo de Luis Díaz Viana: “Resulta evidente que un
"romance" no lo es únicamente por su forma estrófica (de octosílabos asonatados o, según la descripción
de Menéndez Pidal, dieciseisílabos en hemistiquios de ocho); hay versiones muy arcaicas de algunos
temas romancísticos de métrica hexa y heptasilábica y aún en la tradición oral de nuestros días podemos
encontrar muestras de esas características. De otro lado, llamamos "romance" a las coplas - generalmente
cuartetas asonatadas - de la literatura de cordel y catalogamos como tales a ciertas "canciones seriadas" de
larga extensión. Ejemplos de esta práctica los hallamos en vários romanceros.” [……………..] “¿Qué
criterio adoptaremos, pues, para definir el romance? ¿Consideraremos sólo como tal a una de las clases o
formas que el romance presentó en su proceso evolutivo? ¿Consideraremos sólo como tal a ese romance
renacentista fijado literariamente del que aún perviven interesantes huellas en la tradición oral de nuestros
días? ¿A aquel romance, que para Menéndez Pidal era el "más excelente" y perfecto? Enfoquemos el
problema desde una perspectiva contemporánea. ¿Distinguen los informantes de hoy las categorías de
romances que comentamos? Dado que ciertos investigadores parecen pensar esto he dedicado especial
interés a tal punto, en mis últimas encuestas, y he podido comprobar en mi recopilación romancística por
tierras sorianas, que únicamente el 3 por 100 de mis informantes era capaz de hallar diferencias -más por
el modo de transmisión y la antigüedad que por estilo o contenido- entre unos y otros poemas
narrativos.”[……………..]“El proyecto en el que actualmente trabajo dentro del Departamento de
Antropología de la Universidad de Berkeley sobre las diversas formas de balada en la tradición oral que
exige, por ejemplo, la comparación de las distintas clases de romance con los corridos y las baladas
anglosajonas me obligó a elaborar un cuadro que tuviera en cuenta tanto lo folklórico como lo literario y
que pudiera aplicarse en cada caso para determinar lo que una composición tradicional tiene de específico
y particular. De manera muy resumida el cuadro comparativo responde al siguiente esquema:
Criterios folklóricos:
Cauce de transmisión (Tipo de informantes, relación emisores-receptores, rasgos de la comunidad).
Función (Cuándo y para qué se interpretan las composiciones. Repercusión social).
Cronología (Origen y proceso de la transmisión. Transformaciones diacrónicas).
Criterios literarios:
Temática (Asuntos generales y particulares. Posibles "grupos temáticos". Arquetipos).
Forma y estilo (Métrica, fórmulas, recursos).
Estructura (Partes y relación entre ellas. Formas de desarrollo de una estructura general).”
Cf. Luis Díaz Viana [1983], “La tradición oral, hoy. (El ejemplo del Romancero)”, Revista de Folklore,
nr. 31, Tomo 03b, 1983, pp. 9-16, disponível na Internet em
http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=277, arquivo acedido em 28 de Março de 2011.
55
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de redondilha maior” 133 e, do mesmo modo, por Fernando Wolf e outros 134 .
Segundo José Monteiro, o termo quadras é aplicado aos romances na região da
informante, a Beira, sendo noutras terras chamados “versos, histórias em verso, trobos,
romances, jacras (xácaras) ou aravias”135.
-
“como a gente no sabia ler” – intui-se nesta expressão o conhecimento de uma via
escrita, com a recepção e transmissão por via oral e colectiva. Esta apropriação,
reformulação e transmissão por uma comunidade (“a gente”) é, afinal, o processo de
tradicionalização de que fala Menéndez Pidal136 e que é agora necessário explicar a
alguém “de fora”. A causal “como” parece, por um lado, reconhecer à escrita um
carácter normativo137 e, por outro, validar o direito de proceder ao que está contido
na afirmação seguinte.
-
“cada uma compreendia os pontos 138 de sua maneira” – o emprego do
feminino na expressão “cada uma”, sugere que o interesse, conservação e
transmissão da tradição passaria, sobretudo, pelas mulheres139. Constata-se, ainda,
133
apud ROTP, p. 22.
Cf. RoH, I, pp.121-123.
135
Cf. José Monteiro [1990], “Introdução ao Cancioneiro da Beira Baixa”, em Ao Redor do Fundão,
Edição Comemorativa do Centenário de José Monteiro, Fundão, Câmara Municipal do Fundão, 1990, pp.
117-165. Pere Ferré assinala a “enorme vacilação na designação deste género” por parte de Garrett em
Romanceiro II, que este tenta definir, acabando por cingir-se a três – romances, xácaras e solaus. Cf. Pere
Ferré [2000], “Algumas reflexões de Garrett sobre o Romanceiro”, em Comissão Executiva dos
“Seminários Garrett” [2000], coordenação de, Garrett às Portas do Milénio, Lisboa, Colibri, 2000, pp.
95-106.
136
O processo de assimilação, reelaboração e retransmissão por um “autor-legião” é descrito no Capítulo
II de RoH, I.
137
Não deixa de ser de notar que as próprias composições orais referirão a escrita, como se esta
sancionasse o que nelas é narrado. Por exemplo, no nosso corpus, em versões de Veneno de Moriana, o
“jornal” ou o “tabelião” registarão o mal feito pelos homens ou mulheres, em Delgadinha a vítima de
incesto tem uma carta na mão quando morre e, em Gerinaldo, a infanta escreve ao pai. No entanto, tratase aqui de variantes, introduzidas por aquilo a que chamamos “intervenções” na produtransmissão, a que
dedicamos o último capítulo da Parte II.
138
Os pontos são a denominação dos versos em Penha Garcia, região da informante, tal como o são em
outros locais, entre eles Alcongosta, Castelejo, Fundão, Idanha, Lavacolhos ou Silvares. Cf. Monteiro
[1990], pp. 117-165.
139
Aceita-se, geralmente, que as mulheres têm tido um papel preponderante na transmissão do
romanceiro, que Catalán atribui ao carácter “matriarcal” da cultura popular oral (IGR, p. 21), referindo-se,
supomos, ao meio rural no qual se processa o circuito da sua tradicionalização (RoH, I, pp. 11-57). Por
isso, os romances seriam, em boa parte, a expressão de uma perspectiva feminina, opinião corroborada
por Virtudes Atero e Nieves Vasquez [1998], “Espacios y formas rituales de lo feminino en el romancero
tradicional”, Revista ELO, 4, Faro, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1998,
134
56
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que é executada uma interpretação individual de uma situação-padrão colectiva,
com a consequente produção de diversas versões. Esta observação vai ao encontro
do que declara Diego Catalán, a propósito da “abertura” 140 dos significados como
propriedade das estruturas tradicionais:
“Los transmisores de un romance lo han aprendido siempre palabra por palabra, verso a
verso, escena tras escena y, al memorizarlo, lo han descodificado según su particular
entender...”. [……………] “La tradición oral... conserva y propaga modos colectivos
(regionales, temporales, comunitarios, clasistas, etc.) de descodificar esos elementos en que
se articula al romance y de reaccionar (ética, estética, social o políticamente) ante el
141
mensaje”
.
Uma das características mais marcantes dos romances é o fragmentismo, noção
introduzida por Pidal
142
, constituindo um procedimento estilístico que visa a
concentração num ponto culminante, prescindindo de informações acessórias. Torna-se,
assim, técnica expressiva que não só condensa a informação e o sentido como,
simultaneamente, acentua o efeito dramático.
Os elementos descritivos e narrativos são sumários 143 e apresentam-se muitas
vezes como forma de introdução ou ligação aos diálogos, o que se traduz numa forma
pp. 9-22. Por outro lado, Díaz Roig atribui o maior número registado de versões cantadas ou recitadas por
mulheres a uma certa predisposição dos investigadores para procurarem informantes com uma
determinada tipologia – mulheres idosas, não letradas, residentes nos meios rurais, as quais tenderiam a
preservar os valores mais conservadores, mesmo os que punem ou desvalorizam as mulheres. Cf.
Mercedes Díaz Roig [1997], El Romancero Viejo, 18ª ed., Madrid, Ediciones Cátedra, 1997, p. 32-33.
140
A “abertura” será, segundo Diego Catalán, uma propriedade básica da “literatura artesanal”, na qual,
citamos, “un modelo puede producir un sin fin de poemas-objecto más o menos diferenciados según tipos
temporal y espacialmente delimitados (esto es, historicamente condicionados), dependientes de la
interpretación de los modelos por la serie de transmissores-recreadores (artesanos) que en el curso del
tiempo, en espacios sociológicos variables, lo han ido utilizando”. Cf. IGR, pp. 21-22.
141
Cf. Catalán [1997], p. 177.
142
A noção de fragmentismo dos romances prende-se, antes de mais, com o serem o resultado da selecção
dos episódios mais marcantes dos poemas épicos efectuada pelos jograis, segundo RoH I, pp. 151-172.
143
Ainda que sumários, estes elementos são portadores de sentido. Em artigo dedicado à linguagem dos
contos maravilhosos, Bengt Holbek expõe um método de interpretação dos elementos narrativos, a fim de
elucidar o seu sentido. Holbek lista sete regras de transformação, segundo as quais as impressões
afectivas se transformam em expressões simbólicas, entre as quais a contracção (“les évolutions dans le
temps e dans l’espace sont contractés de manière à apparaître comme des changements instantanés,
souvent en trois étapes”). As outras regras são a dissociação (bom/, mau, masculino/feminino), a
particularização (um aspecto particular de uma personagem toma a forma de um elemento simbólico), a
projecção (os sentimentos e as reações dos protagonistas são da responsabilidade do mundo exterior), a
externalização (as qualidades morais exprimem-se pelos atributos físicos), a hipérbole (a intensidade dos
57
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de expressão que se aproxima do texto dramático. Pere Ferré faz notar que já Pidal, ao
distinguir romances-conto de romances-cena e romances-diálogo, utilizara “uma
conceptualização e uma terminologia que nos remetem para o teatro” 144 . A tradição oral
portuguesa, em particular, parece ter uma predilecção pelo modo maioritariamente
dialogado e com escassez daqueles elementos145.
Também são característicos os começos abruptos, quase sempre in media res, os
saltos narrativos e os finais truncados146, o que empresta um carácter fragmentário à
narrativa manifestada. Uma relação de sucessos é, muitas vezes, desarticulada com
transições bruscas, sem referências a antecedentes, finalizando no momento em que a
tensão dramática atinge o auge147. Por outro lado, não é rara, na tradição oral moderna, a
adição de finais moralizantes ou valorativos, ou a extensão da intriga, que por vezes se
traduz pela contaminação de outros romances.
O conceito de fragmentismo pode alargar-se, visto que o romance, de acordo com
a teoria dos três níveis de organização de Catalán, constitui um fragmento de um
sentimentos exprime-se pelo seu exagero) e a multiplicação (uma qualidade exprime-se pela quantidade).
Cf. Bengt Holbek [1990], “Le Langage des Contes Merveilleux”, Cahiers de Littérature Orale, nº 28,
Paris, Institut national des langues et civilisations orientales, 1990, pp. 127-162. Consideramos que
também os elementos narrativos do romanceiro adquirem sentido através destas regras, que destacaremos,
quando aplicáveis.
144
Cf. Ponte [1987], p. 110.
145
Estas características são decorrentes do que Pidal chama “estilo tradicional” e cujos procedimentos
descreve em RoH, Tomo I, Cap. III, pp. 58-80. Voltaremos a este assunto no Capítulo III. A Organização
da narrativa, ao tratarmos mais em particular das “falas das personagens”, que preferimos tratar nesse
local, visto que a narrativa se organiza, muitas vezes, na forma dialogada.
146
Estes provêem do gosto fragmentista difundido pelos editores, na passagem do século XV para o
século XVI. Diz Pidal que a principal diferença entre a exposição épica e a épico-intuitiva consiste neste
fragmentismo, que elimina preliminares e desenlaces, fixando-se numa única situação, sendo mais
frequentes, no romanceiro, os começos abruptos do que os finais. Este truncamento, que Pidal
exemplifica com o folheto de 1537 de Gerinaldo, seria intencional, como efeito da grande difusão dos
romances épico-nacionais e carolíngios, que destacavam uma cena de entre o vasto conjunto épico,
tornando-se, assim, num procedimento estilístico, que distingue o romanceiro velho das canções épico-líricas dos outros países. A exaltação de um ponto culminante do argumento predisporia o público a
preferir o destaque dado a uma cena particular, mesmo em romances de outros temas. Cf. RoH I, pp.7175.
147
No caso das transições bruscas de um sucesso para outro, sem narrativa do que se passa entretanto,
uma das regras de B. Holbek, a contracção, é aplicável: “Les évolutions dans le temps et dans l’éspace
sont contractées de maniére à apparaître comme des changements instantanés, souvent en trois étapes.
[…] les progressions lentes, les voyages longs et fastidieux, les travaux monotones et les transitions
progressives ne sont jamais décrits”. Cf. Holbek [1990], pp. 126-162.
58
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
programa narrativo mais vasto do que o actualizado discursivamente. São esses níveis o
discurso, organização linguística variável de um conteúdo, a intriga, narração
organizada da fábula, sendo esta o nível mais profundo da história que se narra e o
modelo-actancial, organização dos conteúdos míticos atemporais, que se traduzem na
fábula e se actualizam na intriga, através do discurso148.
Este autor encontra, no conjunto das versões de qualquer romance, a prova de que
a intriga manifestada nas versões-objecto é uma representação particularizada de entre
as possíveis da fábula do romance. Nas versões, com efeito, podem (ou não, se muito
fragmentadas), estar incorporados os dados que permitem a reconstrução das sequências
lógico-temporais da fábula e o enredo pode ser complicado com incidentes secundários;
outros poderão ser ignorados, deixando indícios em outras sequências.
A noção de fragmentismo é, igualmente, aplicável às versões que não se
apresentam completas, quer em relação à isotopia de base do “apotexto” 149 quer ao seu
esquema narrativo, podendo, igualmente, sê-lo no caso de romances pertencendo ao
mesmo ciclo150.
148
Cf. IGR, pp. 24-25.
Termo tomado de J. D. Pinto-Correia, que sugere que se considerem as versões que sofrem
fragmentação do esquema narrativo do “apotexto”, mas mantêm a isotopia de base, como “VFI, versões
fragmentárias idênticas” e as que sofrem cortes no esquema narrativo e mudança da isotopia como “VRF,
versões fragmentárias reinterpretadas”. As outras serão as “VCI, versões completas idênticas”
(fidelidade ao esquema narrativo e à isotopia de base), as “VCI, versões derivadas idênticas”
(manutenção da isotopia mas contaminação da sintaxe narrativa de outro texto), as “VCR, versões
completas reinterpretadas” (esquema narrativo completo sem fidelidade à isotopia dominante no
apotexto) e as “VDR, versões derivadas reinterpretadas” (mudança da isotopia dominante e
contaminação do esquema narrativo por outro romance). Cf. Pinto-Correia [1992], pp. 121-122.
150
Caso do “ciclo” de Conde Claros, “texto-mosaico”, na expressão de Bráulio do Nascimento (p. 140 de
Bráulio do Nascimento, “Conde Claros na tradição Portuguesa”, Quaderni Portoghesi, nºs 11-12,
Primavera/Outono, Pisa, Giardini Editori e Stampatori 1982, pp. 139-187). Sobre este ciclo, diz João
David Pinto-Correia, para cujo completo e aprofundado estudo sobre os romances carolíngios remetemos,
que “[N]a tradição portuguesa, tem-se aceitado que este ciclo é constituído principalmente por três
romances: Conde Claros insone, Conde Claros e a infanta acusada e Conde Claros em hábito de frade –
romances que, só raríssimas vezes, se manifestaram autonomamente, antes circulando em versões
contaminadas dos mencionados romances entre si, como também por alguns outros romances, …”, mas o
autor considera, para o ciclo, os seguintes: Conde Claros insone, Conde Claros condenado, Conde Claros
enamorado, Conde Claros gabarola, Conde Claros apostador e Conde Claros- D. Ausenda e a água/erva
fecundante. Cf. RCTOP, Vol. I, particularmente as pp. 291-303, 331-359, 389-412. Ver, igualmente, o
seu estudo, no qual propõe uma sistematização de Conde Claros; nele, o autor cita, além dos estudos de
M. Menéndez Pelayo, Milá y Fontanals, R. Menéndez Pidal, Teófilo Braga e Carolina Michaëlis de
149
59
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sendo composições narrativas, os romances são também dotados de elementos
líricos151 e simbolismos e utilizam diversos recursos formais152, como a redundância e
as expressões formulísticas, que são aqui entendidos como processos de significação a
analisar para uma procura do sentido.
Walter Ong considera que a redundância é uma das características do pensamento
da cultura oral, uma vez que assegura a atenção e compreensão do ouvinte153. É assim
que o estilo poético tradicional 154 se socorre de recursos formais como a repetição
(sintáctica, semântica, fónica, textual) e a enumeração (exaustiva, distributiva,
representativa ou em variação de séries), que não adiantam ao desenvolvimento da
intriga, mas lhe intensificam a tensão dramática.
O romanceiro é pródigo em redundâncias. No caso do nosso corpus, entre muitos
outros casos que cumprem a mesma função de manifestar o desejo de tornar mais
explícita uma acção ou uma ideia155, são redundâncias os apelos da adúltera ao suposto
amante para que não tema os parentes, em Bernal Francês, as lamentações do cavaleiro,
Vasconcelos sobre estes romances, o de Bráulio do Nascimento, que identifica vinte e nove episódios,
num corpus de oitenta e sete versões portuguesas e quarenta brasileiras, que constituem uma espécie de
narrativa-tipo. Cf. João David Pinto-Correia [1987], “Le cycle des romances du Conde Claros:
proposition de systematisation”, em AAVV, Litterature Orale Traditionelle Populaire, Actes du
Colloque, Parte II – “Romanceiro” Traditionnel, Paris, 20-22 Novembre 1986, Fondation Calouste
Gulbenkian, Paris, 1987, pp. 301-314.
Em BRPTOM registam-se duzentas e duas versões de Conde Claros vestido de frade (pp. 26-30) e vinte
e uma ( pp. 32-33) de Conde Claros preso (IGR 0366). Em RPTOM, a designação é Conde Claros em
hábito de frade (pp. 241- 365) e O Conde Claros preso (pp. 390-409).
151
Zumthor, ao tratar as formas e géneros da poesia oral, diz que “le ‘narratif’ implique une concaténation
linéaire d´’unités interdependentes, le ‘lyrique’ comporte une addition circulaire ou non ordonnée d’unités
plus au moins autonomes”. Cf. Zumthor [1983], p. 100. A “intromissão” do lírico na narrativa do
romance destaca-se especialmente nos romances novelescos, de que em particular aqui nos ocupamos e
dá a estes uma dimensão de sentido mais abrangente, pela sua dimensão plurissignificativa. Veja-se, por
exemplo, como a simples informação da introdução do suposto amante no jardim, no Bernal Francês, se
expande em simbolismos poéticos. Cf. Parte II, Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido, Ponto 3.
Os motivos não-indexados nos romances do corpus.
152
Ana Paula Guimarães faz notar que certos recursos formais ultrapassam a simples ornamentação: “os
ritmos, as simetrias, as antíteses, as aliterações (no Romanceiro português) funcionam como pilares de
transmissão e não como ornamento ou enfeites de qualquer ordem”. Cf. Ana Paula Guimarães [1985],
“Memórias dos nossos romances”, Jornal de Letras, ano IV, nr. 138, Lisboa, 1985.
153
Cf. Ong [1998], pp. 50-52.
154
Cf. RoH I, p. 78.
155
Cf. Roig [1997], pp. 44-48.
60
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
em Veneno de Moriana, os pedidos de água à família, em Delgadinha156 e as perguntas
do rei ao pajem, em Gerinaldo.
Outro tipo de redundância muito frequente nos romances é a iteração. Segundo Di
Stefano, “…[A]unque coincide a veces con fórmulas, la iteración verbal no es en si una
fórmula” e, diz ainda, “… la simetria verbal afecta a la zona de exordio y a la de cierre del
texto, com un efecto de marco que enriquece el realce del sentido”157. Assim, a iteração
simétrica das designações dos protagonistas, que realça e enriquece a eficácia emotiva
do discurso, surge no habitual incipit de Gerinaldo e em certos começos de Delgadinha:
1.“- Gerinaldo, Gerinaldo, pajem dél rei mais querido”, G/12 Pires (1885l) [X]XL
1.“- Ó Silvana, ó Silvaninha, ó Silvana, ó filha minha”, D/38 Leite (1960) 51-52
Este tipo de redundância ocorre também no meio (a) ou no fecho (b), com as
mesmas funções das ocorrências inicias:
(a): 17.- “Francisquinha, Francisquinha, [triste hora em que nasceste]”, BF/32 Leite
(1958) 398-399
(b): 7.- “Juliana, Juliana, [que deitaste no teu vinho]”, VM/14 Leite (1960) 106
A iteração manifesta-se igualmente nos verbos, para que a mesma ideia, o mesmo
conceito e a mesma ordem ou pedido sejam emotivamente reforçados e se tornem
denotativos de determinadas acções. Estas poderão expressar-se no imperativo que
apressa o envio da água a Delgadinha:
28. “- Correi, Barcelos, correi …”, D/13 Basto (1914) 59-60
28. “ - Vai, Barcelas, vai, Barcelas…”, D/36 Leite (1960) 49
Repetir é, também, um meio de melhor induzir o interlocutor a realizar qualquer
acção ou a persuadi-lo de algo:
156
Veja-se, igualmente, neste romance a enfatização do desejo de que o pai seja castigado através do
prefixo re-, com sentido enfático pela repetição, em “a [alma] do pai fica requémada” (G/D 25, v. 59).
157
Cf. Giuseppe di Stefano [2000], “Simetrias e iteraciones verbales com función de marco en Romances
Viejos”, Revista ELO, 6, Faro, Centro de Estudos Ataíde de Oliveira, Universidade do Algarve, 2000, pp.
7-17.
61
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
10.“- Toma, toma, Leonardo, este copo de licor”, VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115
19.“- Não te agonies, Gerinaldo, não t'estejas a agoniar,”, G/161 Fontes I (1987) 512
Notem-se, também, os casos em que o mesmo verbo (no exemplo seguinte
“mangar”) utilizado por uma das personagens (Gerinaldo) pode ser retomado na fala
seguinte, mas na negativa, pela sua interlocutora (a infanta), para convencer o pajem da
veracidade da proposta que lhe havia feito (2.“Eu te peço, Gerinaldo, durmas 'ma noite
comigo.”), pelo que se trata da reiteração da mesma idéia:
3.“- Isso não, Senhora, ‘standens mangando comigo!
4. - Não mang', Gerinaldo, não mango, que eu bem deveras to digo:”
G/179 Carvalho Rodrigues (1990) 203
Os métodos orais de composição poética favorecem uma economia narrativa que
gera expressões que, sendo adaptáveis a diferentes temas e contextos158, não são meros
lugar-comuns. Estão neste caso as fórmulas que, segundo Michelle Débax:
"[Las fórmulas] son el lenguaje figurativo del Romancero, se caracterizan por su
repetibilidad y su adaptación a contextos e historias diversas. Sirven para situar en un espaciotiempo, para caracterizar a un personaje, para describir una acción, para servir de transición
entre dos momentos. Más allá del significado literal o denotativo funcionan como un lenguaje
connotativo, remitiendo a un significado segundo conocido y reconocido por los transmisores y
los oyentes"159.
João David Pinto-Correia prefere a designação de Albert B. Lord e Ruth Webber,
“expressões formulísticas”, que consistem, segundo aquele autor, em “pequenos
segmentos linguístico-discursivos que se repetem nas múltiplas versões dos diferentes
romances…” e têm uma dupla função. A primeira é marca da distanciação
(“desembraiagem”) do transmissor em relação à composição e, ocorrendo no início desta,
158
Cf. Ong [1998], pp. 25-40.
apud Bárbara Salas Garcia que cita, de Michelle Débax, "Lo maravilloso en el Romancero
Tradicional", Draco, nº 3-4, 1991-1992, p. 158. Cf. Bárbara Salas Garcia [2004], Un Análisis del
Romancero Erótico-Burlesco de la Província de Cádiz, disponível na Internet em
www.parnaseo.uv.es/Lemir/Revista/Revista6/salas_cadiz.htm., arquivo acedido em 11 Dezembro 2004.
159
62
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
serve à identificação do enunciado enquanto género; a segunda função é mnemónica e,
simultaneamente, estratégia narrativa servindo à actualização repentina de um
sucesso160:
8.“As falas não eram ditas, Silvana era fugida.”, S/8+QdU Purcell (1976a) 159-160
16.“Viagem de quinze dias, em três dias quero ‘dar”, BF/66 Ferré (1982) 164
Deste modo, em qualquer das funções, as expressões formulísticas possuem um
significado literal informativo, mas são, igualmente, expressões lexicalizadas de um
conteúdo, que valem pela sua significação mais profunda:
1.“Bem se passeia Silvana pelo corredor acima”, S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
7. “Levanta-se Boliana à pressa não devagar”, VM/54 Ferré (1982) 181-182
7.“Inda não eram nas dez Gerinaldo ao postigo”, G/31 Leite (1958) 302
Os exemplos apresentados representam, com efeito, acções explícitas que se
destinam a dar informações sobre o espaço e o tempo em que decorrem, mas o seu
significado amplia-se, transmitindo informação essencial para a dramatização da intriga.
No primeiro exemplo, remete-se para a possibilidade de o passeio da rapariga ter como
objectivo atrair a atenção do pai e, consequentemente, a dar-lhe um sentido de
“provocação”; no segundo, a pressa de Moriana implica a dúbia questão de o
envenenamento ser premeditado ou de ser efeito de um impulso de momento, como
parece ser o caso na expressão formulística utilizado nesta versão (“à pressa não
devagar”). O terceiro exemplo, por sua vez, ao referir que o pajem se dirige ao quarto da
infanta antes da hora marcada, indicia uma pressa amorosa que desmente a sua
relutância inicial161.
Desde modo, a análise das expressões formulísticas presentes nos romances revela
que estas mantêm uma relação estreita entre o explícito e o implícito.
160
161
Cf. ROTP, p. 31.
A estes assuntos voltaremos oportunamente.
63
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2. Explícito e implícito
Roland Barthes, segundo quem “o sentido não está ‘no final da narrativa’, ele
atravessa-a”, diz que:
“compreender uma narrativa não é apenas seguir o esvaziar da história, é, também,
reconhecer nela ‘planos’, projectar os encadeamentos horizontais do ‘fio’ narrativo sobre um
eixo implicitamente vertical”, é “passar de um nível [de sentido] a outro”
162
.
Os romances são estruturas narrativas, que o IGR assim define:
“segmentos de discurso estructurado, que imitan la vida real para representar,
fragmentária e simplificadamente, los sistemas sociales, económicos e ideológicos del referente
y someterlos así, indirectamente a reflexión crítica. Esa simulación, esa representación,
constituye la fábula que todo romance encierra”163.
Ainda aí, diz-se que a complexidade significativa da fábula é devida às duas
forças complementares – herança e inovação – que se exercem sobre a transmissão e
transformação de todas as estruturas sociais e expressões artísticas colectivas164.
Catalán dirá, também:
“Dada la importância, en la creación de um romance, del proceso de transformación que
permite generar una intriga a partir de una fábula y de la incorporación al relato de ‘indicios’
superpuestos a la cadena de unidades del hacer, la posibilidad de reducir a un inventario
limitado de reglas esse proceso generativo y de establecer un código capaz de dar cuenta de esas
unidades no encadenadas constituye un objectivo fundamental de la trans-lingüística aplicada al
Romancero”. 165
Considerando o que atrás fica e, ainda, os já citados níveis de organização poética
postulados em IGR, a procura do sentido processa-se através da análise dos elementos
explícitos e implícitos. O que entendemos como “explícito” manifesta-se, então, no
nível de superfície, sendo composto pelo conjunto dos elementos discursivamente
162
Cf. Roland Barthes [1987], A Aventura Semiológica, Edições 70, Lisboa, 1987, p. 101.
Cf. IGR, p. 19.
164
Cf. IGR, pp. 19.
165
Cf. Diego Catalán [1997], Arte Poética del Romancero Oral, Parte 1ª: Los textos abiertos de creación
colectiva, Madrid, Fundación Menendez Pidal, 1997 ( pp. 152-153).
163
64
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
manifestados (descritivos, narrativos ou dramáticos) que dão corpo à intriga, aí se
encontrando o sentido mais imediato e literal do romance, não se esgotando, nesse
processo, os meios disponíveis para que o sentido se revele na sua plenitude166.
Por um lado, a fábula não é constituída apenas por tais elementos, sendo estes
indiciadores de uma “narrativa” mais vasta, a nível profundo. Há a considerar que as
comunidades que produzem e transmitem os romances são regidas por ideologias que
condicionam comportamentos sociais e que aqueles, enquanto textos ficcionais 167 ,
reflectem essa visão do mundo, a qual, por sua vez, se manifesta nos comportamentos
das personagens e nos subentendidos e implicados dos seus actos de fala. É deste modo
que o sentido do romance radica também naquele que lhe é conferido pelas estruturas
sociais, ideológicas ou míticas, que sustentam implicitamente a intriga. Por outro lado,
saber o que constitui o explícito e o implícito no romanceiro tem também a ver com
uma das suas características mais marcantes e que atrás conceptualizámos, o
fragmentismo. Os acontecimentos lógicos e cronológicos organizam-se em sequências,
como veremos, mas a elipse 168 de uma destas unidades narrativas significantes não
altera necessariamente a unidade da fábula. O que haverá, muitas vezes, é que pressupor
outras sequências preexistentes à intriga explícita, colmatar saltos narrativos entre
sequências, em anáforas ou catáforas e até mesmo prever o desfecho implicado pelo
encadeamento lógico narrativo, que pode não ser actualizado. Por vezes, a intriga
166
Segundo a teoria medieval da interpretação, “um enunciado tem sempre e apenas quatro sentidos:
literal, alegórico, tropológico (ou moral) e anagógico”, que coexistem, conservando embora a sua
autonomia. apud O. Ducrot, T. Todorov [2001], Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem, 3ª
ed., S. Paulo, Perspectiva, 2001, p. 237.
167
O texto ficcional, entendido como texto narrativo literário, relata uma sequência de eventos ficcionais,
cujas “conexões, semânticas e pragmáticas, reenviam a uma visão do mundo, a sistemas de crenças e
valores no quadro dos quais os eventos adquirem significado e coerência”. Cf. Silva [2002] (9.7.2. O
texto narrativo, pp. 596-604 e 9.10. Ficcionalidade e semântica do texto literário, pp. 639-654). Os
romances orais tradicionais partilham desta característica, visto serem uma modelização do mundo
empírico e real, no qual o comportamento humano é condicionado por esses sistemas, quer por aceitação
quer por rejeição.
168
“A elipse designa primordialmente uma amputação de elementos discursivos susceptíveis de serem
recuperados pelo contexto”. Cf. Carlos Reis e Ana C. Lopes [2002], Dicionário de Narratologia, 7ª ed.,
Coimbra, Almedina, 2002, pág. 119.
65
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
actualiza-se apenas através de diálogos, caso em que as relações entre as personagens só
são conhecidas do ouvinte/leitor pelos vocativos169 (como “minha filha!”, “meu pai!”,
em Silvana/Delgadinha ou “pajem do rei!”, “senhora!” em Gerinaldo). Espaço e tempo
são igualmente condensados, por vezes em expressões formulísticas, originando saltos
narrativos entre cenas, que se sucedem como realizadas de imediato. Assim acontece,
por exemplo, em Silvana: num momento, a mãe está a engendrar o estratagema da troca
de camas para evitar o incesto e, imediatamente, o pai está a censurar a filha por não ser
virgem.
O sentido “implícito” procurar-se-á em indícios, seja no relato da intriga170 seja na
informação
contida
em
quaisquer
outros
elementos;
é
recuperável
por
“encatalisação”171, levada a cabo pelo ouvinte/leitor, e necessária, em maior ou menor
grau, de acordo com a estratégia narrativa adoptada por cada romance; os
procedimentos de pressuposição e implicação172 tornam-se particularmente necessários
no caso dos começos in media res. Também o que é dito pelas personagens ou narrador
tem frequentemente, além do literal, um sentido implícito, como se demonstrará no
decorrer desta análise.
Outras informações necessárias para que o sentido se complete, estão, muitas
vezes, implícitas nos motivos, como acontece nas situações que antecedem a proposta
incestuosa do pai, em Silvana e Delgadinha 173 e, deste domínio, são também os
169
Segundo Ferré da Ponte, a função dos vocativos “será a de nos indicar dramaticamente a quem se
dirigem as palavras pronunciadas por uma personagem”. Cf. Ponte [1987], p. 101.
170
Devido à propriedade de abertura, contudo, o relato da intriga pode sofrer modificações nas versões,
por reestruturação das sequências. O IGR dedica o Capítulo II à estrutura sequencial do relato e às
diversas possibilidades que a afectam.
171
Retomamos de novo a expressão de Greimas e Coutès, para quem a elipse dos elementos informativos
faz parte do processo de implicitação. Cf. Greimas, Courtés [1990], p. 138.
172
Na semiótica narrativa, a ordem lógica de pressuposição faz-se inversamente ao encadeamento linear
da acção. É porque se deu ‘x’ que aconteceu ‘y’, pois “[a] presença do termo pressuponente não é
condição necessária da presença do termo pressuposto e a relação de implicação pressupõe a relação de
pressuposição que lhe é anterior”. Cf. Greimas, Courtés [s.d.], p. 347-348. Cf., igualmente, Nicole
Everaert-Desmadt [1984], Semiótica da Narrativa, Coimbra, Almedina, 1984.
173
Cf. Analisar-se-á esta questão na Parte II, Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido.
66
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
elementos simbólicos de que o romanceiro faz uso. Tal como acontece nas
contaminações e mesmo nas prosificações, a variação, no que diz respeito aos efeitos da
intervenção dos produtransmissores, é um fenómeno afecta a produção de sentido; os
comentários destes, sendo por vezes uma explicitação do que narram, são não apenas a
sua interpretação como também revelam a sua apreciação positiva ou negativa. Pelo seu
peso na revelação do sentido, estes temas serão tratados adiante, em lugar próprio.
Acrescentamos ainda que o sentido global de um romance se procurará na
globalidade das versões, o que implica o conjunto das várias tradições e sub-tradições,
tanto mais que cada uma destas poderá preferir uma ou mais variantes que integrem,
elidam ou modifiquem determinados episódios ou detalhes de uma narrativa e
acontecerá, com frequência, que a análise de outras tradições venha a lançar luz sobre
algum ponto do sentido das versões que analisamos.
3. Romance e versões
Já mencionámos a distinção entre “romance” e “versão” e voltamos ao assunto,
uma vez que o consideramos um factor fundamental no processo de uma procura de
sentido.
O romance oral tradicional não possui uma única e imutável manifestação, mas,
ao ser transmitido oralmente, durante longos períodos de tempo e através de diversas
áreas geográficas, ocorre em performances singulares de emissores únicos, em versões-objecto. Dir-se-á, então, que cada romance é o conjunto das suas múltiplas versões, que
constitui o “romance-tipo”174, funcionando como um programa-virtual que assegura a
174
Julgamos pertinente retomar aqui o conceito de “tipo” (type) de Stith Thompson: “…. a complete tale
(the type) is made up of a number of motifs in a relatively fixed order and combination” e “A type is a
traditional tale that has an independent existence. It may be told as a complete narrative and does not
depend for its meaning on any other tale”. Cf. Stith Thompson [1977], The Folktale, University of
Califórnia Press, Berkeley, London, 1977, p. 415. Nesta perspectiva, também cada romance constituiria
um “tipo”, composto pela ordenação combinada de determinados “motivos”. Assim o entende João David
Pinto-Correia, que tem em conta a noção de tipo para chegar à de motivo, ao fazer o levantamento dos
67
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
coerência textual, de sentido invariante, que faz reconhecer cada versão (ou parte dela,
no caso dos fragmentos ou das contaminações) como fazendo parte de determinado
romance e não de outro. Deste modo, porque singulares, as versões são estruturas
fechadas dentro do texto que é o romance, dotado este de uma estrutura aberta e
dinâmica, visto que passível de novas realizações. Porém, se bem que esta permita a
variabilidade nas ocorrências e gerar algumas alterações de sentido 175 , as versões
ajustam-se ao modelo consabido pela comunidade, tomando, segundo Pidal, uma
direcção fixa, “determinada por el sentido general de la ficción própria de cada romance y por
tendencias y gustos colectivos” e raramente se perpetuarão “invenções” individuais 176 .
Assim, as versões constituem, cada uma delas, a interpretação do modelo aceite pelo
espaço cultural no qual os transmissores estão inseridos e a sua aceitação, preservação e
transmissão ligar-se-ão intimamente aos factores culturais, históricos e geográficos que
exercem a sua acção sobre a cosmovisão das comunidades177.
motivos nos romances de Alcácer Quibir compilados por Kelly Basílio, entendendo oportuno falar de
“romance-tipo”. Cf. João David Pinto-Correia [2007], “Temas e motivos dos romances de Alcácer
Quibir”, em Kelly Benoudis Basílio, organização de, Romances de Alcácer Quibir, Lisboa, Colibri, 2007,
pp. 207-230 (p. 217). Harriet Goldberg, que toma o Motif-Index de Stith Thompsom (Stith Thompson
[1955-1958], Motif Index of Folk Literature, 6 vols., Copenhagen, Rosenkilde and Bagger, 1955-1958)
como modelo para classificar os “motivos narrativos” no romanceiro, questiona a razão de Diego Catalán
não usar o termo “motivo” ao formular uma gramática da narrativa, sendo a “sequência”, para este autor,
a unidade mínima que satisfaz as mesmas condições de um motivo (Cf. p. XXIV de Harriett Goldberg
[2000], Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero, Temple, Arizona, Arizona
Center for Medieval and Renaissance Studies, 2000). Bráulio do Nascimento, por sua vez, refere as
designações atribuídas por diversos estudiosos do romanceiro relativamente às “unidades operacionais”
da estrutura temática do romance, que ele próprio denomina “episódios”. Cf. Bráulio do Nascimento
[2004], “Conde Claros na tradição portuguesa”, em Estudos sobre o Romanceiro Tradicional, Paraíba,
Editora Universitária/UFPB, 2004. Aos motivos dedicaremos o Capítulo II da Parte II. Posto isto,
esclarecemos que usámos a expressão “romance-tipo” para designar a ordenação combinada de
determinadas situações, que podem envolver um ou mais incidentes singulares, sendo esta combinação
que faz reconhecer cada romance como distinto dos outros. “Romance-tipo” não é, pois, um conceito
normativo, mas o modelo representativo, fixado na tradição, ressalvando sempre a existência de variantes.
Mais adiante, elaborar-se-á, com base nas linhas narrativas encontradas em cada romance do corpus, um
seu “modelo-virtual”.
175
No caso das contaminações de um romance (ou parte dele) em outro, o romance (ou parte dele)
importado ou se ajusta ao sentido do romance importador ou o modifica – não deixa, em qualquer dos
casos, de poder ser identificado como um outro romance, o que prova a existência de uma invariância em
cada um deles e, ao mesmo tempo, a propriedade de abertura destas estruturas narrativas tradicionais.
176
Cf. RoH I, pp. 43-44
177
Diz Aguiar e Silva que “a produção e difusão dos textos da literatura oral são primordialmente
condicionados pelas crenças, pelos padrões éticos, pelos usos e costumes desses mesmos grupos sociais,
pois a literatura oral está sujeita a uma ‘censura preventiva da comunidade’ que não permite a difusão de
68
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
4. Invariância e variação
Ao considerar um romance como um texto uno, constituído pela multiplicidade
das suas versões, torna-se perceptível a existência de uma narrativa própria, que, nessa
acepção, é invariante, mas também de um considerável número de desvios, quer a nível
do discurso quer a nível da estrutura narrativa, e que são comummente englobados no
fenómeno da variação, vindo alguns deles a constituir variantes daquele texto.
Por um processo lógico, uma qualquer “variante” só se estabelece relativamente a
uma “invariante”; se uma certa invariância-base não existisse, as reelaborações mais
profundas viriam a subverter o romance de tal forma que este se tornaria irreconhecível.
De facto, reconhece-se no conjunto das versões disponíveis de qualquer romance178 uma
constância lógica, organizada segundo certas linhas narrativas179 que corresponderão, de
certo modo, ao desenvolvimento do tema, podendo então definir-se a invariância como
equivalente à “narrativa fundamental” que identifica claramente determinado
romance180
Referindo-se à semântica do corpus de GRPP, faz Maria Aliete Galhoz notar que
este se assemelha a outros corpora, dando a explicação:
“[…] não representará surpresa em relação à tradição colhida nas vertentes portuguesas
dos romances tradicionais a partir da recolecta de José Leite de Vasconcellos….” [………] “Os
romances de maior difusão por todas as áreas do país […] mantêm uma canonicidade
textos refractários ou hostis às normas axiológico-pragmáticas prevalecentes nessa comunidade”. Cf.
Silva [2002], p. 143 e a nota 227, na qual o autor elucida que “[A] relevância da ‘censura preventiva da
comunidade’ na produção e na difusão dos textos da literatura oral foi assinalada por Roman Jakobson e
Petr Bogatyrev […)” (o autor, na nota 218, cita Roman Jakobson e Petr Bogatyrev “Le folklore, forme
spécifique de création”, in Questions de Poétique, Paris, Éditions du Seuil, 1973, pp. 63-64).
178
Referimo-nos, logicamente, às versões, publicadas ou não, a que o investigador possa aceder, não
esquecendo que outras possam vir a surgir. Esse corpus deverá ser suficientemente amplo e abrangente,
no espaço e no tempo, para permitir uma eficaz confrontação das versões, o que, no nosso caso,
procurámos fazer, tal como descrito na Introdução, no ponto 3. Delimitação de um corpus.
179
A identificação das linhas narrativas dos romances do corpus, enquanto procedimentos a ter na procura
do sentido, será feita adiante.
180
É o próprio conceito de invariância, enquanto definidor de determinado esquema, fabular ou
discursivo, que permite que se possam ainda identificar fragmentos de romances “perdidos” ou, até, que
se continue a classificar como Delgadinha as versões nas quais já não há um pai incestuoso, mas um
namorado indesejado.
69
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
representativa da estrutura arquétipo-potencial do romance que são, e as sequências definidoras
do seu desenvolvimento tal como se estabilizaram, ou fixaram, na tradição portuguesa”181.
Note-se que aquela colectânea e a de José Leite de Vasconcellos, Romanceiro
Português, incluem um número significativo de versões que, recolhidas em espaços
geográficos diversos e cronologicamente afastadas, corroboram o afirmado pela
investigadora. A canonicidade de que fala Galhoz será, pois, o factor que faz reconhecer
um romance como distinto dos outros; porque cada um deles constitui uma estrutura
narrativa própria, o seu sentido procurar-se-á, primeiro, na narrativa invariante.
Para a encontrar, para além das que constituímos em corpus, analisámos o maior
número que nos foi possível de versões publicadas posteriormente ao ano 2000, de
versões de outras tradições, em suporte escrito, discográfico ou na Internet, bem como
as que se encontram depositadas, e ainda inéditas, no Centro de Tradições Populares
Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas Guerreiro”182.
Assim, nos romances do nosso corpus, poder-se-ão postular as seguintes
invariâncias, desafectadas dos elementos de variação que afectam a estrutura narrativa
mais completa:
Romance
Bernal Francês
Invariância-base
Uma mulher recebe em casa o homem que julga ser o
amante; na realidade, trata-se do marido, que desvenda a
identidade e a mata.
Veneno de Moriana
Uma jovem vinga-se do cavaleiro com quem esperava
casar, fazendo-o ingerir vinho envenenado.
Silvana
Uma jovem solicitada ao incesto pelo pai é ajudada pela
181
Cf. GRPP, p. LI.
Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas Guerreiro”, unidade
investigação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
182
70
de
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
mãe, que toma o seu lugar no leito e confronta o marido
com a sua identidade.
Delgadinha
Uma jovem recusa o incesto proposto pelo pai, é
encarcerada sem água; morre.
Gerinaldo
Uma infanta seduz o pajem, são descobertos pelo rei;
casam.
Falamos, então, de invariância também no sentido em que o faz o IGR, ao realçar
o dinamismo e a propriedade de abertura do romanceiro, assinalando no Campo RESU,
com códigos distintos, as sequências alheias à intriga, as extra-fabulísticas, as extranarrativas e as diversas variantes de cada romance:
“En su transmisión, el poema varia, se adapta continuamente al médio en que se reproduce;
pero toda variación presupone una ‘identidad’ entre las variantes a outro nível estructural, una
183
‘invariante’”
.
Sabe-se que a propriedade de “abertura” e o dinamismo das estruturas tradicionais
permitem o fenómeno da variação, através da actividade criadora184 e transformadora
dos seus produtransmissores, tanto na estrutura verbal como na estrutura temática,
produzindo um extenso leque de variações; as versões-ocorrência, que são afectadas por
183
Cf. IGR, p. 22.
Segundo Paul Bénichou, “criação” é a capacidade renovadora dos transmissores que “conservaron el
secreto inconsciente de los procedimientos creadores proprios de la poesía oral y los supieran usar com
felicidade en más de un caso”. Cf. Paul Bénichou [1968], Creación Poética en el Romancero Tradicional,
Madrid, Gredos, 1968, pp.7-9. Diego Catalán refere vários estudos dedicados a este aspecto do
romanceiro tradicional, entre os quais os ensaios de Bráulio do Nascimento, “Processos de variação do
romance” (1964) e “As sequências temáticas no romance tradicional (1966), os livros de Di Stefano,
Sincronia e diacronia nel Romanzero (1967), e de Paul Bénichou, citado na nota acima, além do seu
próprio trabalho, Por campos del Romancero. Estúdios sobre la tradición oral moderna. Em relação ao
conceito de “criação”, Catalán insiste em que as possibilidades de invenção de um “sujeito folclórico”
estão condicionadas pela tradição local, ainda que aceite as observações de Di Stefano sobre a variedade
de sentidos introduzidos ou descobertos pelos cantores no texto de cada romance. Cf. Catalán [1997],
Parte 1ª (em especial os pontos 3 e 4 de II, “Nuevos Estúdios Acerca de la Creación Poética Tradicional”
e “El Romance como Tradición Estructurada y como Estructura Tradicional”, pp. 46-53).
Entendemos, aqui, a “criação poética” como a acção, mais ou menos alteradora, exercida nas versões
pelos produtransmissores. Sobre algumas causas e consequências das variações na produção de sentido,
debruçar-nos-emos mais detalhadamente na Parte II - A Revelação do Sentido.
184
71
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
toda uma complexidade de factores, “optam” por vezes por seleccionar, eliminar,
expandir ou reajustar determinados episódios, sendo os desfechos os mais sujeitos a
modificações, numa reelaboração susceptível de afectar a estrutura narrativa e o sentido
do romance, como nota Suzanne Petersen:
“… notamos una tendência muy marcada y general en el Romancero moderno havia la
elaboración del desenlace: o bien a base de la sustituición del final heredado por outro desenlace
más de acuerdo com la moralidad del público cantor, o bien mediante la adición de nuevos
motivos o de escenas enteras (unas veces inventadas y otras debidas a un préstamo o a una
contaminación) que responden mejor a las exigências del gusto y de los valores humanos del
cantor moderno y su público”
185
.
Os estudos de Bráulio do Nascimento são de particular importância para o estudo
da variação no romanceiro, estando dez ensaios reunidos em Estudos sobre o
Romanceiro Tradicional186 e outros dispersos por várias publicações. Ao caracterizar os
processos de variação dos romances, em 1964, Nascimento concluira que “[A] variação
do romance obedece a processos que, embora alterando profundamente sua estrutura verbal, não
atingem fundamentalmente sua estrutura temática”
187
. Em 1974, em Romanceiro
Tradicional, diz que “existe uma certa autonomia entre as estruturas temática e verbal”,
podendo um romance apresentar versões com uma estrutura verbal diversificada, mas
mantendo a mesma estrutura temática ou a variação de uma originar a variação da outra.
Pode, ainda, haver uma modificação da estrutura temática por contaminação de outro
romance e, mesmo, “abandono ou anexação de trechos” 188 . Noutro estudo, em 1994,
declara que as variantes derivadas da criação poética “por mais longas e criativas que
185
Cf. Suzanne Petersen [1972], “Cambios estructurales en el Romancero tradicional”, em Diego Catalán,
Samuel G. Armistead, edición a cargo de, El Romancero en la Tradición Oral Moderna, 1º Colóquio
Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal y Rectorado de la Universidad de Madrid, 1972, pp.
167-179.
186
Bráulio do Nascimento [2004], Estudos sobre o Romanceiro Tradicional, Paraíba, Editora
Universitária/UFPB, 2004. Ver outros, na Bibliografia.
187
Cf. p. 120 em “Processos de variação do romance”, em Nascimento [2004], pp. 31-124, anteriormente
em Revista Brasileira de Folclore, Ano IV, ns. 8/10, Janeiro/Dezembro de 1964, p. 59-124.
188
Cf. Bráulio do Nascimento [1974], Romanceiro Tradicional, “Cadernos de Folclore”, Rio de Janeiro,
Ministério da Educação e Cultura, 1974.
72
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sejam, constituem formas diferentes de dizer o mesmo”, pelo que a análise da poesia
tradicional deverá focalizar as invariantes, “estudando as variações também como formas
criativas de permanência”, uma vez que “as variantes operam laboriosamente para a
permanência da invariante no espaço e no tempo” 189 . Este estudioso reconhecerá a
“supremacia da invariante, da fábula, em relação à variante”, sugerindo uma “imperiosidade
do estudo global do binómio invariante/variante” e diz ainda, que “[A] estrutura fabular,
através das suas sequências, transmite um significado. Em torno desse significado é que deve
ser estudada a variância, que venha a modificar a mensagem”190.
Os catorze processos de variação que o autor encontra, a partir da análise de
quatro versões brasileiras de Veneno de Moriana (Juliana e D. Jorge) são “a participação
psicológica, a anástrofe, a supressão, a justaposição, a analogia, o eufemismo, a generalização, a
sinonímia, a repetição, a substituição, a contaminação, a actualização e a adaptação”. Alguns
destes processos, afectam, sobretudo, a estrutura verbal. Outros, como a supressão e a
contaminação, alteram a estrutura temática, enquanto a sinonímia procura preservá-la; já
o eufemismo e a generalização implicam a intrusão de factores de ordem psicológica,
social e pessoal191.
Maria de Fátima Pessoa Viana Silva e Andrea Ciacchi irão reduzir este número a
dez e debruçar-se-ão sobre o equilíbrio entre estruturas superficiais e estruturas textuais
profundas, caracterizando os processos de variação como paradigmáticos ou
189
Cf. Bráulio do Nascimento [1994], Literatura Oral: Limites da Variação – Comunicação apresentada
no IX Encontro Nacional da ANPOLL, em Caxambu, Minas Gerais – 12 a 16 de Junho de 1994, Rio de
Janeiro, Sociedade Editorial de Sergipe, 1994. No mesmo estudo, sobre os limites da variação, o autor
cita Paul Bénichou, que diz: ”A palavra variante abarca realidades distintas, desde a variante pequena (...)
até à variante que modifica vários versos, ou introduz episódios inteiros, cria novas transições, muda o
desenlace e, com isto, sugere outro sentido e outra moral do romance”.
190
Citações, respectivamente, das páginas 343, 344 e 346 do estudo “Invariantes, Paráfrases e Variantes
na Literatura Oral”, pp. 341-357 em Nascimento [2004], anteriormente em versão espanhola nos Anales
de Literatura Hispanoamericana, nº 30, Madrid, Universidad Complutense, 2001, 37-51 e republicado na
versão original, em português, no Correio do IBECC/UNESCO, Rio de Janeiro, 2003, 69-89.
191
Cf. “As sequências temáticas no romance tradicional”, em Nascimento [1974], pp. 125-166,
anteriormente em Revista Portuguesa de Folclore, Ano VI, nº 15, Rio de Janeiro, Maio/Agosto de 1966,
pp. 150-190.
73
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sintagmáticos, conforme se exercem sobre o “aspecto verbal” ou sobre o “tecido
temático” 192.
Outros estudos193 abordam a variação em diversas perspectivas. A utilização de
métodos computacionais no estudo do romanceiro194 veio introduzir alguns dados sobre
a variação e, consequentemente, sobre a questão da invariância. Suzanne Petersen
desenvolveu um método que lhe permitiu analisar sincrónica e diacronicamente as
estruturas verbais e temáticas de um certo corpus de romances195, concluindo que as
secções básicas que distingue (“comienzos, escenas principales y secundarias, enlaces y finales”),
manifestaram “evidentes tendencias evolutivas de carácter estructural”. No estudo em causa, e
como atrás referido, Petersen debruça-se sobre os processos de variação que alteram os
desenlaces (como supressão, substituição ou adição de motivos, versos ou cenas e
remates formulários moralizantes) e exemplifica com o caso de Bernal Francês, cuja
estrutura, na tradição portuguesa e segunda a autora, se altera radicalmente com a
junção de “duas cenas” de A Aparição196. Os estudos quantitativos da variação, no que
192
Cf. Maria de Fátima Pessoa Viana Silva e Andrea Ciacchi [1987], “Les processus de variation dans le
Romanceiro de tradition orale: une étude des axes syntagmatique et paradigmatique”, em AAVV,
Litterature Orale Traditionelle Populaire, Actes du Colloque, Paris, 20-22 Novembre 1986, Fondation
Calouste Gulbenkian, Paris, 1987, pp. 231-245.
193
Referimos em particular os estudos de Diego Catalán reunidos em dois volumes, da maior importância
para o conhecimento dos processos de reelaboração do romanceiro oral. São eles o já referido Catalán
[1997] e Diego Catalán [1998], Parte 2ª: Memória, invención, artifício, Madrid, Fundación Menendez
Pidal, 1998.
194
Já em 1971, algumas comunicações do Primer Coloquio Internacional sobre el Romancero, sobretudo
na 3ª sessão de trabalho, posteriormente revistas pelos autores para a versão impressa, davam conta das
metodologias computacionais que então vieram abrir novas perspectivas ao estudo do romanceiro. Cf.
Diego Catalán, Samuel G. Armistead [1972], edición a cargo de El Romancero en la Tradición Oral
Moderna, 1º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal y Rectorado de la Universidad
de Madrid, 1972.
195
Do corpus seleccionado pela investigadora faziam parte Bernal Francês e Veneno de Moriana, bem
como outros a que nos reportamos neste trabalho (La aparición e El prisionero). Cf. Petersen [1972], pp.
167-179.
196
Segundo Suzanne Petersen, estas cenas sentimentalizam o romance de adultério. O estudo quantitativo
da evolução do diálogo no romanceiro levado a cabo pela autora demonstrou a tendência “exagerada” da
tradição portuguesa para dramatizar e sentimentalizar o relato. op. cit. O estudo contempla apenas as 32
versões de VRP, mas podemos confirmar a tendência maioritária da presença de A Aparição em Bernal
Francês no nosso corpus de 116 versões deste último, se bem que em número variável de versos do
primeiro.
74
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
diz respeito ao fenómeno da contaminação197, foram contestados por autores como Pere
Ferré, que entende “a necessidade de critérios qualitativos para a determinação do tema primordial
nas versões híbridas”
198
. Jesús Antonio Cid fará notar que os romances, por razões várias,
mas justificadas pela capacidade de abertura do sistema tradicional, estão
continuamente a ser sujeitos a transformações, no que chama uma “adaptação ao meio”
e que as alterações radicais afectarão tanto a mensagem como a organização do próprio
relato. No entanto, sublinha que a variação tem fortes restrições, entre as quais o
carácter conservador da tradição oral. A ritualização, a divinização ou a conversão em
jogos infantis serão, igualmente, factores que restringem e chegam a anular a
possibilidade de transformação da mensagem, actuando a um nível externo ao conteúdo
do romance; a nível interno, e porque este conteúdo é constituído por uma reflexão
ideológica sobre questões que afectam a colectividade, a restrição à mudança dever-seá, precisamente, à escassez e lentidão das próprias mudanças ideológicas sociais199.
É geralmente aceite ser no momento da aprendizagem que a memória individual
fixa determinado modelo; logo, será esse que se irá transmitir, embora o modo de
transmissão do romanceiro proporcione, em qualquer altura, uma contínua
reinterpretação. Nem sempre é seguro determinar com exactidão as causas concretas
que levam à produção de determinadas variações, visto que estas, além do próprio
processo de tradicionalização, têm origem em factores diversos, que aliam
197
No âmbito do presente trabalho, o fenómeno da contaminação interessar-nos-á sobretudo pelo efeito
da sua presença no sentido do romance contaminado; assim, pela importância que nele adquirem, as
contaminações, tal como as variações, serão tratadas em sítio próprio, na Parte II, Capítulo III - As
intervenções na enunciação e no enunciado.
198
Cf. Pere Ferré [1983], “Os Romances da ‘Infantina’, ‘Cavaleiro Enganado’ e ‘A Irmã Cativa’ à Luz da
Tradição
Madeirense”,
disponível
na
Internet
em
http://cvc.institutocamoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/28/boletim28_pag143-178.pdf, arquivo acedido em 8 de
Novembro de 2009.
199
Cf. Jesús Antonio Cid [1979], “Recolección moderna y teoria de la transmission oral: El traidor
Marquillos, cuatro siglos de vida latente”, em Diego Catalán, Samuel G. Armistead, Antonio Sánchez
Romeralo, edición a cargo de, El Romancero hoy: Poética, 2º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario
Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos, 1979, pp. 281-359.
75
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
condicionantes colectivas e individuais 200 . Estas últimas podem residir no foro
psicológico ou na já referida criação poética, que, por sua vez, terá as suas próprias
condicionantes individuais201, pelo que salvaguardaremos o risco de tentar apontar essas
causas, sobretudo quando não dispomos de um aparato que nos informe das
circunstâncias ou contexto de enunciação das composições. Relembramos, por outro
lado, que o objecto de que se trata é múltiplo (as versões) e, simultaneamente, uno (o
texto de cada romance) e que essa paridade terá de estar sempre presente num estudo
como o que empreendemos, pois que toda a variação o é relativamente a uma
invariância.
A interpretação de certas “intervenções” nem sempre é fácil a um leitor ou a um
ouvinte que não em presença 202 , porque estes se encontram “fora” do contexto da
enunciação e só conhecem as condições da performance na medida em que o colector as
regista e edita203, o que não era o caso em colecções mais antigas204.
200
Pere Ferré relaciona o romanceiro com a memória, frisando ser na “memorização selectiva, feita na
aprendizagem de um texto tradicional, que se introduz a variante” e diz que “[E]ssa introdução não é feita
por um acto consciente e voluntário de modificar o texto herdado mas pela competência desse novo
falante do romanceiro, profundo conhecedor do léxico e da gramática do género”, notando, ainda, que a
“memória prega partidas”. Cf. Pere Ferré [2011], “Romanceiro e Memória”, em José Pedro Serra, Helena
Carvalhão Buescu, Ariadne Nunes, Rui Carlos Fonseca, Memória & Sabedoria, Centro de Estudos
Clássicos, Centro de Estudos Comparatistas, Edições Húmus, 2011, pp. 435-458.
201
Relembramos, a propósito, o atrás citado comentário de uma informante: “Dantes traziam as quadras
das canções, mas a gente como no sabia ler, cada uma compreendia os pontos de sua maneira...”
202
É o caso das gravações comercializadas que, geralmente, editam as recolhas mais “perfeitas”, sem as
hesitações, repetições ou comentários dos informantes.
203
Veja-se a nota à versão G/54 Catalán/Cid (1975) 61-62, que diz expressamente terem as explicações
sido omitidas: “La colectora advierte que en la versión se intercalaban explicaciones en prosa que aqui
se han omitido”. Outros optam por incluir um aparato minucioso das variantes nas versões recolhidas,
como é o caso de Costa Fontes, Pere Ferré e Dias Marques.
204
Para a problemática das complexidades da edição, devemos remeter para os estudos da especialidade.
Com o objectivo de reflectir sobre esta questão, o Instituto Universitário Menéndez Pidal, em finais de
2002, organizou um Seminário Internacional subordinado ao tema Problemas de transcripción y edición
de textos orales y escritos, cujos estudos foram publicados em obra que dedica o capítulo I ao romanceiro
(Transcripción y edición des romancero: problemas y propuestas). Dos vários problemas abordados,
destacamos os que dizem respeito aos critérios de tratamento editorial de versões prosificadas, total ou
parcialmente, de fragmentos, das várias recitações por um mesmo emissor, de variantes e dos comentários
que acompanham a recitação ou canto, cuja edição terá a ver com os seus objectivos finais. Cf. Ramón
Santiago, Ana Valenciano, Sílvia Iglesias [2006], editores, Tradiciones Discursivas. Edición de textos
orales y escritos, Madrid, Editorial Complutense, 2006.
76
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em estudo visando rever terminologias, conceitos e métodos de recolha de
literatura “oral, popular e tradicional”, Díaz Viana critica a desatenção que, por vezes, é
dada ao agente humano, referindo-se às causas ou condicionantes que fazem com que as
versões sejam “precisamente como son y no de outra manera” e diz:
“el ‘informante’ o ‘transmisor’ es considerado generalmente a manera de ‘pieza neutra’
que reproduce, pero no influye en nada sobre lo transmitido” 205.
Nesta perspectiva, e porque se trata de textos produzidos/transmitidos por agentes
humanos, entendemos haver também, numa análise dos processos de significação dos
romances, que considerar a acção exercida no sentido por esses agentes, tendo em conta
que o fazem em diversos graus e de diversas maneiras206, matéria a que dedicamos o
capítulo III da Parte II. Segundo Diáz Roig, aquele para quem o que importa é aquilo
que diz, procurará manter a coerência do texto207. Aqueloutro, para quem é o aspecto
fónico o essencial, não se importará de deformar as palavras se não compreender
cabalmente o seu significado, produzindo então corruptelas de certos termos, como
acontece em Bernal Francês ([vestidos] “cramezim”, por carmesim), ainda que estas
possam manter alguma ligação com o seu sentido, como em Gerinaldo (“Bela Infance”
e “infância” 208, por infanta). Tais variações podem até ser algo insólitas, como acontece
205
O autor começara por referir a importância, para o estudo do “folclore”, do contributo interdisciplinar
da Antropologia, Linguística e Literatura. Na obra, fala-se em “folclore” na acepção do estudo de uma
estética colectiva, em oposição à anterior atitude ética, que tende a apresentar o “folk como una
alternativa global de sociedad opuesta a la moderna, urbana y deshumanizada”. Cf. Luís Diáz Viana
[1997], Literatura Oral, Popular y Tradicional. Una revisión de términos, conceptos y métodos de
recopilación, Valladolid, Castilla Ediciones, 1997.
206
Note-se que os romances são cantados, embora os informantes possam preferir recitá-los a um
colector, pelo que o aspecto linguístico está ligado ao aspecto musical, podendo, na performance, um
deles ser valorizado em relação ao outro. Segundo Arnaldo Saraiva, em estudo sobre a canção de Sérgio
Godinho, os dois aspectos “podem manter, em parte ou no geral, relações de dominante e de dominado
(música mais importante do que a letra: canto poetizado – ou letra mais importante que a música: poema
cantado, e até recitado); podem estabelecer entre si um jogo complexo de certo equilíbrio e desequilíbrio,
de coincidências e incoincidências, de repetição, paralelismo, paródia ou de crítica, complementaridade,
alternância…”. Cf. Arnaldo Saraiva [1980], Literatura Marginal izada – Novos Ensaios, Porto, Edições
Árvore, 1980, p. 130.
207
Cf. Roig [1997], pp. 49-50.
208
O termo “infanta” designa, em Portugal e Espanha, a filha de reis não herdeira do trono, mas também,
como feminino de “infante”, é relativo à infância. Cf. ambas as entradas em Houaiss [2003], Tomo IV, p.
2090. O uso da expressão “infância” por “infanta”, que pode dever-se ao desconhecimento pelo
77
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
em uma versão de Gerinaldo, sem que a função das respostas do pajem ao rei, e que é a
tentativa de o enganar depois de ter sido encontrado deitado com a infanta, se altere:
16.“- Eu venho de 'penar perus das bandas d'além do rio”, G/153 Fontes I (1987) 506-507
A coerência de sentido poderá manter-se caso haja esquecimento genuíno da
forma versificada e esta seja substituída por uma prosificação, como veremos adiante ao
tratar este fenómeno. Por outro lado e porque a estrutura tradicional é dinâmica, o texto
poderá ser reformulado em versões que manterão, ainda assim, o sentido original, parte
dele ou que, pelo contrário, modificarão o romance em variantes com outros sentidos.
Estas reformulações, porém, não dependem apenas de um indivíduo, pois as
inovações só se fixam e retransmitem se houver aceitação pela comunidade, razão pela
qual serão factores ditados pelos códigos sociais vigentes, até mais que os individuais, a
afectar o sentido, nas versões209. Bráulio do Nascimento assim o entende:
“[S]ão numerosíssimos os exemplos em que o texto tradicional, ao recriar-se, adapta-se
ao contexto cultural, transmitindo uma particular visão da sociedade em que ocorre”210.
Deste modo, uma vez que o contexto cultural em que os produtores/transmissores
se inserem é diversificado, também as causas e os efeitos da variação serão diversos,
como dissemos, o que é corroborado por Beatriz Mariscal de Rhett:
“Participants in the chain of transmission of oral texts decodify the narratives in terms of
their own social structures. The types of relationships they establish between the actions and
situations narrated and the world as they perceive it will not only determine their comprehension
produtransmissor do seu significado, além da semelhança fónica, retém-lhe o sentido de “filha de reis”.
Certos termos, por mais desusados, podem sofrer transformações que as modernizam e é assim que, em
versões de Gerinaldo, a “infanta” torna-se “princesa”, observando-se a “adaptação”, um dos fenómenos
de variação encontrados por Nascimento [1974].
209
Daí, o interesse de conhecer o contexto da enunciação de cada versão-objecto, o que nem sempre é
possível, visto que na sua grande maioria não se encontra anotado pelos editores, embora possamos, ainda
assim, analisar nelas os elementos que revelam variações relativamente ao sentido/protótipo do romance.
210
Cf. Bráulio do Nascimento [2005], “Cultura Popular e Mudança Social”, arquivo acedido na Internet
na Internet, em 2 de Junho de 2005, www.tropicologia.org.br/conferencia/1986cultura popular.html.
78
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
and memorization of the text, but in addition it will necessarily play a part in their restructuring
of the narrative when the information is retrieved in a future oral performance of the text.”211.
O tipo de comunidade em que o romance é transmitido pode, na verdade, ter os
seus efeitos no sentido e é por isso que Aurélio Pérez refere o “ambiente machista” das
comunidades transmissoras de versões centro-americanas e mexicanas do romance de
incesto Delgadinha, que faz com que estas abram com uma sequência na qual a
protagonista se passeia com um vestido transparente e explica esta introdução como
uma tentativa de justificar o comportamento de um pai que assedia sexualmente a filha e
atribuir as culpas a esta, por se exibir despudoradamente, tentando-o:
“Delgadina se paseaba de la sala a la cocina
com vestido transparente que a su cuerpo lo ilumina”212.
Este tipo de visão social, na verdade, altera o sentido de Delgadinha, pois não há
no “modelo canónico” do romance a mínima sugestão de que a filha aja desse modo213.
O facto é que um romance, na sua globalidade textual, apresenta grande número
de variações, devido a factores como os que apontámos, embora se observe certa
estabilidade no sentido mais profundo. É assim que, em Bernal Francês, não se altera o
tema do adultério nem o “castigo” da morte para a adúltera, o mais tradicional. Neste
caso, trata-se de manter o sentido de uma morte sangrenta, seja qual for o meio
utilizado, quer por degolação quer, como em versão do Novo México, com uma pistola:
”En una cama de flores, allí fué donde murió,
Com três tiros de pistola que su marido le dió…”214.
211
Cf. Beatriz Mariscal de Rhett [1987], “The Structure and Changing Functions of Oral Traditions”,
Oral
Tradition,
2/2-3
(1987),
pp.
645-666,
disponível
em
journal.oraltradition.org/files/articles/2ii/12_rhett.pdf, arquivo acedido na Internet em 27 de Janeiro de
2010.
212
Cf. Pérez [2003], p. 130.
213
Note-se que as versões de Delgadinha que abrem com a protagonista passeando-se dever-se-ão à
intromissão neste romance do motivo da provocação de Silvana, que mais tarde abordaremos, havendo,
no exemplo acima, como que uma sua exacerbação, na descrição da transparência das suas vestes; de
facto, no caso citado, observa-se a rima em í-a deste último tal como nas versões portuguesas em que a
mesma contaminação acontece.
79
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Que o sentido é este – a inevitabilidade de uma morte sangrenta – prova-o o facto
de a própria protagonista o pressupor, tanto que chega a pedir outra modalidade de
morte 215 : 14.“mata-me com a toalha ‘longueira’ que eu tenho ao pé de mim.”, BF/112
M.A.Vilhena (1995) 121. A devolução à casa paterna que se dá em algumas versões, com
o ónus da punição a recair sobre o pai, parece uma variante mais suave, mas este tipo de
castigo não deixa de ser uma “morte social” para a adúltera.
É nessa perspectiva que entendemos que nem todas as variações afectam o sentido
mais profundo dos romances, devendo-se mais a uma adaptação cultural do que a uma
verdadeira transformação. É o caso de uma versão brasileira de Veneno de Moriana, por
exemplo, na qual o “primo Jorge” chega de bicicleta. Trata-se de uma variação a nível
cultural que moderniza/urbaniza o clássico cavalo do romance, mas não afecta o sentido
deste, visto que a posse de uma bicicleta, num determinado meio sócio-cultural,
equivaleria à daquele animal, fazendo-se corresponder o estatuto social dos
proprietários de ambos os meios de transporte216.
Verdade é que o transmissor, que muitas vezes o reconhece e aponta, pode ter
falhas de memória que ocasionam elipses de sequências ou hemistíquios, aparecendo
versões fragmentadas217, mas essas falhas nem sempre significam um esquecimento da
intriga, mas sim dos versos, pois casos há em que os hiatos são preenchidos com relatos
prosificados que respeitam o sentido geral do romance. Por outro lado, nem sempre
214
Versão publicada por León Campa Arthur, Spanish Folk Poetry in New México, pp. 40-41 apud Luís
Santullano [1955], Romances y Canciones de España y América, Argentina, Librería Hachette, 1955, pp.
199-200.
215
Também em versões de O Conde Alarcos, romance em que o conde deve matar a mulher para casar
com a infanta, aquela pede ao marido que não a mate de forma sangrenta, sendo o uso de “uma toalha”
uma das alternativas sugeridas:
“Não me mates com adagas nem ferros que façam f’ridas,
Mata-me com uma toalha ao uso da fidalguia.”
(versão de Poiares, c. Freixo de Espada-à-Cinta, d. de Bragança, reeditada em RPTOM, Vol. II, p. 343,
com o nr. 667).
216
Versão 1.19.14 – Primo Jorge/EBR 37.3 (EBR VII/B) em Alcoforado, Albán [1996], p. 163.
217
Distinguimos a fragmentação, que consiste na supressão de elementos narrativos próprios do romance
e se exerce nas versões, do fragmentismo, este abordado atrás.
80
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
serão devidas à falta de memória certas elipses ou reelaborações de sequências mas a
fenómenos de outra natureza. Tomamos como exemplo o estudo de Dias Marques sobre
uma versão de Delgadinha que substitui a proposta incestuosa pelo namoro da jovem
com um criado, na qual a informante comunica, logo de início, algumas dúvidas sobre o
que vai narrar (“[…], não sei como era…”). Nas diversas recitações que faz, a informante
irá oscilar entre um final em que Delgadinha não morre e casa com o criado, ou com a
mais tradicional morte da rapariga e Dias Marques conclui haver um esquecimento
propositado ou inconsciente do desfecho trágico, substituído este por um final feliz, pela
informante, que o terá achado mais a seu gosto218.
Certas “intervenções” nas circunstâncias do romance são desencadeadas por
tabus, que levam ao atenuar de palavras ou ideias reprovadas pelos grupos sociais,
gerando eufemismos cuja produção, diz Bráulio do Nascimento, “é determinada antes de
tudo pela pressão social”. O autor esquematiza os diversos tipos de elaboração
eufemística que ocorrem no romanceiro tradicional: por elipse parcial ou total, por
substituição sinonímica ou inventiva e por criação poética 219 . Os eufemismos são
também uma forma de implícito e têm grande representação no romanceiro, sendo os
temas de natureza sexual dos mais afectados220. Encontram-se muitos exemplos para
designar o acto sexual como dormir com, deitar com, como marido e mulher e
expressões do tipo “[sem te] virares para mim”, em Bernal Francês ou “[encontrou-os]
218
Cf. J. J. Dias Marques [1996], “E acabou tudo em bem”. Sobre uma versão algarvia do romance de
Delgadinha”, Revista ELO, 2, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1996, pp.
157-175. Ver versão D/243 Marques (1996) 164-166, 167-168 e 170-171.
219
Cf. Bráulio do Nascimento [1972], “Eufemismo e Criação Poética no Romanceiro Tradicional” em
Diego Catalán y Samuel Armistead, edição a cargo de, El Romancero en la Tradición Oral Moderna, 1er
Coloquio Internacional, Madrid, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal Y Rectorado de la Universidad de
Madrid, 1972, pp. 233-275.
220
Diz Heinz Kröll que “a noção das relações sexuais está sujeita a uma forte interdição linguística” e que
se actualiza em expressões de sentido mais vasto, por perífrases e metáforas. Cf. Heinz Kröll [1984], O
Eufemismo e o Disfemismo no Português Moderno, Vol. 84, Biblioteca Breve, Lisboa, ICLP, 1984, pp.
108-111.
81
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de braça com braça como mulher e marido” ou “está a vencer uma batalha” 221 em
Gerinaldo. Já os os disfemismos obscenos aparecerão sobretudo em certos romances
vulgares ou nas cantigas narrativas.
O que pode deduzir-se de alguns casos de variação é o desejo de moralizar
determinadas situações narradas nos romances, que eram cantados em ocasiões e
circunstâncias diversas, nomeadamente nos serões familiares, durante o desempenho
dos trabalhos agrícolas ou até em bailes. Não se torna difícil acreditar que a presença de
jovens e crianças nesses eventos fosse mais propícia a certas alterações de carácter
eufemístico e até à sua utilização moralizante. Refere José Alberto Sardinha as palavras
de uma sua informante, que corroboram esta hipótese e que transcrevemos:
“A minha avó chamava a atenção à gente e cantava isto (romances, canções narrativas)
como exemplos para a nossa vida. Era nos serões. A minha avó, coitadinha, fazia renda,
222
obrigava-nos a rezar toda a noite e cantava estas histórias de exemplos”
.
Percebe-se, então, como a presença de certo tipo de público pode gerar alterações
de sentido. Se certas alterações podem ser consideradas da responsabilidade individual
dos informantes, como acima referimos para a versão de Delgadinha analisada por Dias
Marques, o certo é que em várias outras versões há também a substituição do pai por um
namorado, na primeira parte do romance. Não será, pois, um simples “esquecimento” a
troca de identidade de um dos protagonistas de Delgadinha, sobretudo nas versões
cantadas pelas crianças 223 , mas uma deliberada intenção, por parte da fonte da
aprendizagem, de lhes esconder tema tão pouco edificante. Nessas versões, já não é o
221
G/117, v. 17 e G/159, v. 17.
Sardinha [2000], p. 102.
223
Segundo Ana Pelegrín, “varios temas de los romances se cantan en corro de niñas incorporados y
adaptados de la tradición adulta con temas ‘poco apropiados a la edad de los cantores’ pero donde se
percibe en aquellos espíritus infantiles el sentimiento trágico de la vida». A citação que a autora faz é de
Roh, II, p. 385. Cf. Ana Pelegrín, Romances del repertorio infantil en América –
www.ucm.esBUCMrevistas.pdf, arquivo acedido na Internet em 26 de Maio de 2009. Numa das versões
“do pretendente” no nosso corpus, a D/215 Ventura (1994) 55, indica-se o seguinte contexto: “Utilizado
como cantiga de roda nos anos 30”.
222
82
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
pai que assedia sexualmente a filha, mas um pretendente desta que lhe faz propostas
amorosas. Este caso é um tanto diferente do da versão algarvia acima citada, na qual há
um interdito implícito referente à condição social, sendo o tabu interno à intriga; o
namorado é indesejado, sim, mas é-o pela sua condição inferior – é um criado – e parece
ser por isso que Delgadinha é castigada.
A substituição do pai por um “namorado” assenta num tabu, o incesto, mais forte
que o da desigualdade social. É o tipo de variação que é portador virtual de uma
modificação e, a divulgar-se o modelo, desapareceria Delgadinha enquanto romance de
incesto para surgir um romance diferente, agora com o tema de amores fatais e tirania
de um pai.
Outro tipo de eufemismos verifica-se, por exemplo, na versão abaixo, de
Gerinaldo. A informante, no v. 2, emprega o habitual “passar a noite” e também, no v.
12, parece querer acentuar uma certa inocência na situação (“entraram nos dois p'rò
quarto, foram os dois a dormir…”, G/132 Fontes I (1987) 490-491). Além disso, faz
Gerinaldo pedir a infanta em casamento ao rei; este, por sua vez, dará ao pajem o
infantilizado epíteto de “meu menino”:
19.“- Bom dia, ó senhor rei, bom dia le venho dar;
20. venho-le pedir a sua filha para com ela casar.
21. - Donde vens, ó Gerinaldo, donde vens, ó meu menino?...” .
É graças à nota prévia do colector que podemos inferir que a razão desta
atenuação da carga sexual e, também, da presteza do pedido de casamento (que na
maioria das versões não ocorre) estará na presença de duas crianças, uma delas filha da
informante:
“Recitado por Olívia Afonso Esteves, de 35 anos de idade. Ofereceu muita resistência,
mas acabou por ditá-lo ante os rogos da filha e de outra miúda”.
83
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Quaisquer que sejam as causas, é nos seus efeitos (as versões) que se revela o
sentido produzido pelas variações e a importância deste assunto leva-nos a dedicar-lhe
um capítulo próprio224.
224
Na Parte II, Capítulo III – As intervenções na enunciação e no enunciado.
84
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO III
A ORGANIZAÇÃO DA NARRATIVA
Os romances são, já o dissemos, poemas narrativos que contam/relatam um ou
vários acontecimentos ou episódios de um acontecimento. Essa narrativa, enquanto
modo de representação literária 225 , corresponde a uma determinada conjunção dos
factores personagens, tempo e espaço, articulando uma intriga. Entender os modos
como essa narrativa se organiza será um dos procedimentos a ter na procura do sentido
e o objecto deste Capítulo.
1. Organização narrativa e sequências
Conhecer a estrutura interna dos romances é de não somenos importância para a
procura do sentido. Compreende-se que uma narrativa organizada de forma lógica e
cronológica, com um encadeamento coeso dos factos narrados, contendo um maior
número de elementos informativos e serem estes explícitos, revelará com mais presteza
o seu sentido. Porém, nem sempre os romances obedecem a este modelo 226 e diversos
investigadores debruçaram-se sobre a questão da estrutura interna dos romances. Entre
eles, Menéndez Pidal, que distingue os “romances-conto”, que relatam uma acção
extensa com vários incidentes, compreendendo antecedentes, núcleo e desenlace, dos
“romances-diálogo”, que suprimem a narração e desenvolvem a cena ou situação em
forma de diálogo, sem versos de união que informem quem fala e responde227. Pidal fala
225
Não nos cabe, aqui, a intenção de rever a multiplicidade de estudos sobre narratologia, para o que
reenviamos para estudos sobre a matéria, como o de Carlos Reis, Ana Cristina M. Lopes [2002],
Dicionário de Narratologia, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2002, de entre os indicados na Bibliografia,
parecendo-nos legítimo falar de “narrativa literária” em relação aos romances orais tradicionais.
226
O que não impedirá, cremos, o acesso à revelação do seu sentido, pois é possível encontrar, mesmo em
estruturas menos simples, os elementos-chave que permitem a reconstrução de uma organização
sequencial da narrativa, como adiante intentaremos comprovar.
227
RoH I, pp. 63-65.
85
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
ainda de “romances-cena”. Já Di Stefano, para quem há que aprofundar estas
classificações, observa que o “romance-diálogo” não é senão uma forma de organizar o
“romance-cena”, que se concentra num único episódio e representa a estrutura narrativa
que caracteriza o romanceiro228 preferindo distinguir as formas de organização do relato
segundo duas estruturas, a “al a” e a “ mega”. Na alfa, coincidem a estrutura
superficial com a estrutura profunda, o que não acontece na ómega, na qual os factos
narrados não correspondem à ordem lógica e cronológica 229.
Outros investigadores encontraram diversos tipos de estruturas no romanceiro,
como Diego Catalán que prefere, à classificação dos romances segundo a sua estrutura
interna, postular três níveis de organização poética230, como já referimos. Por seu lado,
Díaz Roig refere a existência de estruturas minoritárias, como é o caso da estrutura
concêntrica de romances como Delgadinha, com uma parte introdutória e um final e que
são baseados na repetição enumerativa do núcleo da história. A autora considera ainda
não ser aplicável aos romances a teoria de Propp sobre o conto tradicional, por não ser
possível reduzi-los a uma série fixa das funções, mesmo nos “romances-conto”, visto
que as funções dos actantes podem mudar nas várias versões de um mesmo romance,
pela acção dos “recriadores”231.
Por nossa parte, adoptamos o conceito de níveis de organização poética de
Catalán, que consideramos operacional para um estudo da revelação do sentido, vindo a
adaptá-lo à nossa metodologia232. Nesta perspectiva, entendemos que a estrutura interna
do romance se procurará na narrativa, que, por sua vez, se organiza em sequências.
228
Cf. Giuseppe Di Stefano [s.d.], El Romancero, 4º ed., Madrid, Narcea, s.d., pp. 24-47.
apud Roig [1997], pp. 41-44.
230
Cf. IGR, pp. 19-25.
231
Cf. Roig [1997], pp. 41-44.
232
Cf. Introdução.
229
86
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Nos romances, a narrativa tende a apresentar-se como uma cadeia cujos elos são
constituídos por eventos sucessivos, que se distinguem dos anteriores e dos posteriores
por uma disjunção de espaço, tempo e actores, correspondendo cada evento, de certo
modo, a uma cena na peça teatral233. No entanto, nem todos os romances apresentam a
mesma estrutura interna, podendo os factos discursivamente narrados não corresponder
à ordem lógica e cronológica da estrutura profunda, como atrás ficou dito. Assim sendo,
o acesso ao conhecimento do programa narrativo completo de um romance é facilitado
pela segmentação prévia do texto em unidades narrativas, cada uma delas constituindo
uma sequência, que é objecto de diversas definições.
O IGR especifica o seguinte:
“[D]enominamos secuencia a la unidad articulatoria mínima al nível de organización del
relato en que la intriga es expresión de un contenido fabulístico. La secuencia puede definirse
como la representación de un suceso que, al cumplirse, modifica sustancialmente la interrelacion de las dramatis personae, dando lugar a una situación de relato nueva”234.
Para João David Pinto-Correia as “sequências” serão as “grandezas” referidas na
definição de “segmentação” do Dicionário de Semiótica de A. J. Greimas e J. Courtès
(“…um primeiro encaminhamento empírico, com vista a decompor provisoriamente o texto em
grandezas mais fáceis de serem manejadas”). O autor apresenta uma proposta de “divisão
sequencial” como “etapa primeira na análise da significação narrativa” dos romances que
233
Catalán entende haver mudança de cena quando a acção se desenrola num novo cenário, podendo a
transição ser explícita ou estar implícita no diálogo que se segue. Cf. Catalán [1997], nota 14, p.118.
Note-se, também, que nos romances são respeitadas as características da narrativa popular, na qual
raramente surgem em cenas mais do que dois personagens ao mesmo tempo, de acordo com uma das suas
leis épicas, a “Lei de Dois em Cena”, segundo Axel Olrik: “Among others, the so called Law of Two to a
Scene is a manifestation of the clarity of the narrative: the narrative only reluctantly brings more than two
characters on stage at the same time; under particular circumstances a third (subordinate) character may
be added for a short performance. The narrative prefers one of the performing characters to disappear
from the stage, or at least to step outside of the action before a new appears.” Cf. o Capítulo 3. The
Structure of the Narrative, p. 43 em Axel Olrik [1992], Principles for Oral Narrative Research,
Bloomington, Indiana, 1992.
234
IGR, p. 67.
87
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
analisa, os carolíngios, identificando “uma nova sequência, desde que haja uma disjunção ou
mudança de espaço, tempo, actor, etc.”235.
Para Bráulio do Nascimento, trata-se de “segmentos temáticos” que, reunidos,
“reconstituem o romance”, dispondo de certa autonomia e com a seguinte extensão:
“[O] segmento temático é constituído de quatro versos heptassílabos, correspondentes aos
quatro hemistíquios do dístico de quinze sílabas”.236
O autor distingue ainda “seqüência temática” como “segmentos temáticos que
representam o desdobramento de uma mesma ideia”, portanto semelhantes à forma
paralelística e que ocorrem em determinados romances, ao contrário dos exemplos que
dá de outros (do nosso corpus são Veneno de Moriana [Juliana e D. Jorge] e
Gerinaldo), constituídos por “segmentos perfeitamente individualizados” 237.
Considerando estas definições, verifica-se na leitura/audição das versões de um
romance que a forma predominantemente dialogada, com a sua escassez de elementos
descritivos238 e mesmo da própria identificação dos intervenientes, produz uma falta de
informação explícita que dificultará também a percepção imediata das fronteiras de
delimitação das sequências. Nestes casos, as localizações de espaço, tempo e actor
poderão apenas ser perceptíveis por indícios a nível do discurso, através de deícticos,
marcadores espaciais e temporais como “aqui” e “agora”, no uso de expressões
formulísticas (ex: ”estando nestas razões”) ou nas próprias “falas” dos protagonistas,
através de expressões anaforizantes, como a de exprimir intenção de cometer acções:
235
Cf. RCTOP, Vol. I, pp. 307-359.
Nascimento [2004], p. 41.
237
Cf. Bráulio do Nascimento, “As sequências temáticas no Romance Tradicional” em Nascimento
[2004], pp. 125-166.
238
Ferré da Ponte diz que o romanceiro adopta as características dos antecessores (cantares de gesta e
baladas europeias), ao associar a dramaticidade que neles se verifica à situação de performance pelo
jogral, com os ouvintes como espectadores, indo mais longe nas suas “estratégias dramatizadoras”. Cf.
Ponte [1987], Capítulo II. A dramaticidade no Romanceiro.
236
88
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“dar-te-hei [gargantilha colorada]”, em Bernal Francês, ou “vou buscar [um copo de
vinho]”, em Veneno de Moriana.
Devido à condensação narrativa própria do romanceiro, pode também acontecer
que se verifique no mesmo dístico a presença de mais do que um verbo de acção, o que
daria lugar às disjunções atrás citadas e, consequentemente, ao assinalar de uma
sequência que correspondesse a cada uma delas. Assim aconteceria em Delgadinha,
cuja protagonista, encerrada, suplica aos membros da família que lhe dêem a água de
que está privada pelo pai incestuoso; em cada um dos seus pedidos, há disjunções
temporais e espaciais239, actualizadas por verbos que assinalam os seus movimentos na
torre (voltou, subiu, viu), bem como disjunções dos actores que com ela falam (os
irmãos, as irmãs, a mãe, outros); contudo, todos estes pedidos desempenham a mesma
função – explicitar a negação do auxílio pela família e reforçar a angústia crescente de
Delgadinha – pelo que constituem uma única sequência, seja qual for o número de
pedidos que ocorre, visto que a intriga não evolui. Já o mesmo pedido de água que é
feito ao pai, pela aplicação do critério exposto, constitui outra sequência. De facto,
repetem-se os passos da anterior sequência, agora em relação ao pai (1 - Delgadinha
avista um membro da família, 2 - pede-lhe água, 3 - a água é recusada) mas, desta vez, é
introduzido um novo elemento: 4) – Delgadinha diz ao pai que lhe cederá em troca de
água. É esta resolução de vir a ceder, declarada por Delgadinha pela forma verbal futura
estarei [resolvida a ser sua namorada], que indica uma evidente evolução da intriga,
pois dá origem à sequência seguinte, com o pai a ordenar o envio da água.
Nesta perspectiva, alargaremos o conceito de sequência, definindo-a como uma
unidade que expressa a representação global de uma determinada situação, pelo que
poderá ser constituída por mais do que um dístico. Ao cumprir-se aquela, surge uma
239
Aplica-se, aqui, a regra de contracção de Holbek, o que também sucede na passagem do tempo entre a
declaração do castigo e a primeira aparição de Delgadinha encerrada na torre e, de maneira geral, em
todos os saltos temporais.
89
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
nova situação de narração, ligada à anterior e à subsequente por disjunções
significativas de espaço, tempo ou actores, fazendo evoluir o desenrolar da intriga.
Note-se que, nas versões, as sequências podem sofrer uma elipse, serem prolongadas,
modificadas ou substituídas por apartes explicativos ou narrativos do informante. Pode,
também, haver introdução de sequências ou segmentos sequenciais complementares ou
anómalos, bem como contaminações com outros romances que, na versão, funcionarão
como sequências do romance importador240. Cada situação de narração, por sua vez,
pode conter uma sucessão de vários momentos, de extensão variável mas abrangendo,
geralmente, dois versos longos; estes momentos serão denominados segmentos
sequenciais. Note-se que acontece, nas versões, serem as sequências “deslocadas” da
sua ordem normal na narrativa, o que se deverá a confusão do informante, mas, noutros
casos, serem como que “adaptadas” a uma circunstância diferente da habitual. Veja-se o
caso abaixo, em uma versão de Bernal Francês, romance no qual há uma sequência em
que a adúltera, ao receber o amante em casa, o lava com água perfumada; nesta versão,
exactamente o mesmo é prometido ao marido, depois de este revelar a sua identidade,
transpondo, assim, aquela sequência para uma outra:
14.”- Se tu és o meu marido, quero-te mais do que a mim;
1 5 . D e i x a v i r a m a d r u g a d a , i r e mo s par a o j ar di m,
16. Eu te lavarei os pés com perfume de alecrim.”
BF/115 Alves Ferreira (1999) 116-117
Cada uma das sequências do romance, agrupando os segmentos sequenciais que
as constituem, corresponde, pois, a uma evolução na narrativa, sendo possível descrever
o seu conteúdo através de frases ou palavras-chave identificadoras do núcleo de sentido
que o sustenta. As sequências, que organizam a intriga de forma encadeada, podem ser
constituídas por:
240
Estas situações, que podem ou não alterar o sentido do romance, são relacionadas no IGR, Capítulo II.
La Estructura Sequencial del Relato, pp. 67-157.
90
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- Uma situação descritivo-narrativa, por um narrador, na primeira ou na terceira
pessoa.
- Um diálogo, curto ou alongado, entre personagens.
- Um monólogo de uma delas.
- Um conceito ou afirmação valorativo-moralizante.
Contudo, dividir um romance em sequências não consiste apenas na enumeração
daquelas que são discursivamente actualizadas e a que chamaremos “explícitas”. Há,
também, que identificar situações que, não estando presentes a nível discursivo, são
indiciadas por aquelas, de modo a garantir uma linha de organização lógica e coerente.
Assim, uma sequência pode igualmente ser constituída por:
- Uma situação implícita ou implicada (assinala-se com #).
Desta forma, será o conjunto de sequências explícitas e implícitas que constituirá
a fábula do romance, cujo sentido se pretende revelado. Em Anexos, exemplificamos o
procedimento para a divisão das sequências, de acordo com o modelo-virtual que
proporemos, com algumas versões de cada romance do corpus (B7. Exemplificação da
divisão das versões em sequências), onde é observável que nem todas as versões
apresentam todas as sequências do romance.
2. Os romances do corpus
Uma vez estabelecido que cada romance é dotado de uma narrativa invariante e
que esta se estrutura em sequências, começaremos por descrever e identificar as linhas
gerais que sumarizam cada um dos romances do corpus e que correspondem às
sequências “explícitas” em que foram divididos. Fá-lo-emos agora de maneira muito
sucinta, importando-nos identificar claramente as situações-chave, pelo que não teremos
a preocupação de listar todas as variantes presentes em todas as suas versões
disponíveis, não especificando, por exemplo, se o rei, em Gerinaldo, deixa entre os dois
91
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
amantes uma “espada” ou um “punhal” ou se, em Veneno de Moriana, o vinho
envenenado é dado ao cavaleiro num “copo” ou num “cálice”. A identificação das
sequências implícitas, nas quais o sentido mais completo se revela, será efectuada na
Parte II, após o que proporemos a elaboração do seu “modelo-virtual” 241.
Quando necessário e porque romances como Veneno de Moriana apresentam dois
tipos de estrutura narrativa e outros, como Silvana e Delgadinha, se encontram
frequentemente contaminados entre si, faremos preceder esta parte da análise de
algumas questões.
2.1. Bernal Francês
Este romance abre, geralmente, com um diálogo sem prévia identificação dos
intervenientes ou das circunstâncias que os rodeiam 242 . Deste modo, a revelação do
sentido de Bernal Francês basear-se-á, quase integralmente, na interpretação de
elementos implícitos na narrativa que vão sendo disseminados à medida que esta
avança, residindo o seu interesse, exactamente, nesse jogo de “enganos”. Esta é a razão
pela qual a organização da narrativa explícita do romance se apresenta num modelo
também ele enganadoramente elementar.
Sequência I – A mistificação: Alguém bate a uma porta, pedindo que lha abram;
quem está dentro de casa diz que só abrirá a Bernal Francês.
Sequência II – O encontro nocturno: Essa pessoa vai abrir a porta, caindo-lhe
entretanto um sapato e apagando-se-lhe a candeia; introduz Bernal Francês no jardim e,
depois, deita-se com ele.
241
Tal como será proposto, o “modelo-virtual” que elaboraremos de cada romance do corpus, além de
descrever as situações invariantes, permite, em qualquer altura, a adição de variantes e de possíveis
contaminações que vierem a ser encontradas em versões.
242
Adiante se verá que nem sempre é assim e que, nas versões, podem ocorrer introduções narrativas que,
em maior ou menor grau, pretendem colmatar este tipo de “falta de informação”.
92
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência III – O cair da máscara: A protagonista exprime estranheza pela
passividade amorosa de Bernal Francês; diz-lhe que não tema os parentes nem o marido,
que está longe; o protagonista revela ser o marido.
Sequência IV –
A punição: O marido diz à mulher que quando chegar a
madrugada lhe dará vestuário e adornos de cor vermelha.
2.2. Veneno de Moriana
Sobre este romance incidem diversos critérios de distinção, relativamente às suas
versões e à estrutura que apresentam.
Bráulio do Nascimento divide o corpus de Veneno de Moriana, do qual, com
Teresa Catarela, se ocupa para a série Romancero Tradicional de las Lenguas
Hispânicas, em “duas grandes famílias: as versões em que se descreve o veneno adicionado ao
vinho por Moriana e oferecido a D. Jorge” e “[E] a segunda família, sem referência ao
veneno”243.
Na sua tese de Doutoramento, Ferré da Ponte analisa as 191 versões de Veneno de
Moriana recolhidas até então 244 e divide o romance em dois grupos independentes,
chamando a um “modelo transmontano”, com assonância quase exclusivamente em á,
com uma parcela em í-o e, ao outro, “modelo nacional”. Refere que “extremamente raro é
encontrarmos no romance mais longo a descrição do veneno utilizado pela mulher
vingadora”245 e, também, que “a versão pura do romance se inicia com o diálogo entre a
243
Cf. Nascimento [2004], pp.17-29 (pp. 21-22). Anteriormente “O Romanceiro no Brasil”, Comunicação
apresentada na II Jornada Sergipana de Estudos Medievais: Romanceiro tradicional, Aracaju, 9-11 de
Janeiro de 1977. In: Anais. Aracaju, Secretaria de Estado da Cultura, 1998:115-27. Noutro artigo,
“Processos de variação do romance”, e baseado em quarenta e sete versões deste romance recolhidas no
Brasil (Juliana e d. Jorge), o autor faz o levantamento de doze “segmentos temáticos”, a partir dos quais
elabora um estudo da variação temática e verbal, concluindo que, no geral, se mantém o sentido do
romance, enquanto a estrutura verbal sofre diversas mutações. Cf. Nascimento [2004], pp. 31-123.
Anteriormente em Revista Brasileira de Folclore, ano IV, ns. 8/10, Janeiro/Dezembro de 1964, p. 59-124.
244
Cf., em especial, o Capítulo V. A Tradição Oral Moderna em Confronto, pp. 518-710, de Ponte
[1987].
245
Cf. Ponte [1987], p. 564.
93
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
envenenadora e o amante”, como se passa nas versões do Arquipélago da Madeira 246 .
Uma sequência em que Moriana fala com a mãe teria sido, então, introduzida
posteriormente para explicitar as causas do envenenamento247.
Berta Beça, também em Tese de Doutoramento 248 , entende que se trata de
romances diferentes e diz:
“[S]ous le titre de Veneno de Moriana, dans VRP (533-548) on trouve deux romances
différents – Juliana et Eugénia. Nous les séparons car, bien que de thème général identique ‘une
femme empoisonne un homme’, ils présentent des différences notables: dans Juliana le héros a
un nom – D. Jorge ou D. João; il est célibataire; il invite Juliana à assister à son mariage; et le
romance comporte 3 scènes. Dans Eugénia, le héros n’a pas de nom, il est marié et le romance
se limite à une scène. Les rimes différencient aussi ces deux romances.”
Segundo Vanda Anastácio249, há duas vias de transmissão de Veneno de Moriana,
que geram dois modelos estruturais diversos. A autora faz corresponder as versões com
o diálogo de Moriana e a mãe à linha de difusão “familiar”, do repertório das mulheres
em ambiente doméstico e comuns a todo o território português, e as versões, muito mais
concisas e com o incipit “Apeia-te, ó cavaleiro, que são horas de merendar” ou similar,
à de “trabalho”, mais especificamente às cantadas por homens e mulheres nas segadas
transmontanas250. Nesta situação, a notação temporal expressa no incipit – “ser horas de
merendar” - determina que se cante pela hora canónica de noa.
246
Cf. Ponte [1987], p. 566.
Voltaremos a este assunto na Parte II, Capítulo I. Ponto 3. O sentido e a organização das sequências.
248
Cf. Berta do Rosário Madureira Beça [1988], Romanceiro de Bragance. Sa Specificité et son Insertion
dans le Romanceiro General, Tomo I, Tese de Doutoramento apresentada à Universidade Michel de
Montaigne, Bordeaux III (texto policopiado), 1988, p. 239.
249
Cf. Vanda Anastácio [1989], “O Livro de Horas da segada”, em Pedro M. Piñero et alii, edición al
cuidado de, El Romancero. Tradición y Pervivencia a fines del Siglo XX, Actas del IV Coloquio
Internacional del Romancero, Cádiz, Fundación Machado, Universidad de Cádiz, 1989, pp. 343-353.
250
Lembramos, a propósito, o estudo de Maria Aliete Galhoz sobre os trabalhos efectuados de prospecção
dos cantos de trabalho em Trás-os-Montes, no qual analisa, em particular, o romance “A Condessa
traidora”, o paralelismo nas “cantigas das malhas” e as “cantigas das trilhas”. Cf. Maria Aliete Galhoz
[1995], “Mais algumas nótulas em torno aos cantos de trabalho de Trás-os-Montes”, em Mishael M.
Caspi, edição de, Oral Tradition and Hispanic Literature – Essays in Honor of Samuel Armistead, New
York and London, Garland Publishing, 1995, pp. 231-255.
247
94
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Para Dias Marques, a funcionalidade não serve “como carácter distintivo entre dois
romances, não só porque varia de região para região, como, sobretudo, porque não pode vencer
um critério estrutural, baseado na análise das fábulas”, nem a opinião dos informantes deve
“ser tomada como critério classificativo”, o que levaria a considerar dois romances
distintos, Juliana e Jorge e Apeia-te, ó cavaleiro251.
Quanto a Manuel da Costa Fontes, em RPI, apresenta duas versões deste romance,
de diferentes estruturas252.
Com a análise de oitenta e quatro versões brasileiras, Fátima Batista, na sua tese
de Doutoramento, identifica vinte e sete segmentos e distribui as versões por oito
grupos, “distintos quanto ao facto de apresentarem ou não certos momentos da narrativa”253.
Por nossa parte, independentemente da extensão da versão, da sua proveniência
geográfica ou do contexto em que ocorre254, consideraremos que Veneno de Moriana
apresenta a mesma narrativa básica – uma jovem envenena o seu presumível sedutor -,
mas em dois tipos de organização estrutural, que designaremos do seguinte modo255:
- Tipo A: versões geralmente mais longas, constituídas por cinco sequências,
sendo fulcral, para determinar o tipo, o episódio da confirmação pedida a ”D.
Jorge”256 de que se vai casar e a não explicitação dos ingredientes do veneno.
251
Cf. J. J. Dias Marques [1988], “Recensão a Manuel da Costa Fontes, Romanceiro da Província de
Trás-os-Montes (Distrito de Bragança)”, Revista Lusitana. Nova Série, nr. 9, Lisboa, INIC, 1988, pp.
162-171.
252
Correspondendo uma delas ao que chamaremos Tipo A e a outra ao que chamaremos Tipo B,
respectivamente a [a) (Can 150)], nossa VM/36 Fontes (1979) 121-122 e a [b) (VRP 539), nossa VM/16
Leite (1960) 107. Cf. RPI [1997], pp. 188-189.
253
Cf. Maria de Fátima B. de M. Batista [1999], O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma
abordagem semiótica, Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-graduação em Linguística da
USP, Tomos I e II, São Paulo, 1999.
254
O Tipo B ocorre em Trás-os-Montes, mas também pode surgir noutras áreas, como no distrito de
Aveiro, caso da VM/19 Leite (1960) 110, versão esta, contudo, igualmente de contexto de
“trabalho”(“cantado nos malhas”).
255
Ver, mais à frente, o “modelo-virtual” deste romance. Note-se que há versões que não apresentam
todas a sequências e outras que são apenas fragmentos, de poucos versos, o que dificulta a sua atribuição
a um ou outro tipo. Neste caso, limitar-nos-emos a indicá-lo. Ver Anexos. Grupo A – Corpus.
256
Neste Tipo, o cavaleiro é identificado por um nome, objecto de certa variação, mas que designaremos
sempre por “D. Jorge”, seja qual for o nome que lhe é dado nas versões, pela frequência com que se
encontra.
95
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- Tipo B: versões mais curtas, geralmente com o incipit “Apeia-te, ó cavaleiro”
(ou similar, como “cavalheiro”) 257 e constituídas por três sequências. Nestas
versões, Moriana não pede a confirmação do casamento e o diálogo entre os dois
limita-se à oferta do vinho por ela, à pergunta dele sobre o que lhe deitou e à
resposta que aquela lhe dá, explicitando os ingredientes do veneno, que é decisiva
para a determinação do tipo.
É de notar que há versões que incluem características de ambos os Tipos, com
a confirmação do casamento e a menção ao veneno 258 , com ou sem detalhe dos
ingredientes, quer na resposta de Moriana, ou, em verso narrativo a dizer que esta o vai
buscar. Estão no primeiro caso algumas versões açoreanas259, mas também dos distritos
de Castelo Branco e Bragança260 e, no segundo, certas versões madeirenses e do distrito
da Guarda
261
. Referenciamos estas versões como Tipo A+B, embora não
consideremos que se trata de um tipo diferente, mas de uma junção, do mesmo modo
que acontece com as contaminações entre romances.
257
Nestas versões, o nome do “cavaleiro” não é mencionado.
Por exemplo, a VM/148 Fontes I (1987) 385-386, transmontana, apresenta o diálogo mãe/filha (vv. 14), o pedido e a confirmação do casamento de “D. Jorge”, com o respectivo convite (vv. 6-9), o que a
colocaria no Tipo A, mas também apresenta a explicitação dos ingredientes do veneno (vv. 17 e 18),
próprios do Tipo B. Outras, como a VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115, açoreana e também ela
“longa” (23 versos), não tem o diálogo mãe/filha, mas explicita o veneno (vv. 13-14).
259
Ver as VM/40 Fontes (1979) 124, v. 8. “Foi um copo de veneno para te tirar a vida”; VM/78 Fontes
(1983a) 100, v. 7.”- Uma dosa de veneno p'ra t'acabar de matar.”; VM/79 Fontes (1983a) 99, v. 10. “Veneno estanquenim deitei-te no copo de vinho”; VM/81 Fontes (1983b) 89-90, v. 9.”- Foi um copo de
licor prometido em veneno”; VM/94 Silveira (1986a) 34, v. 16. “- O que eu deitei nesse vinho foi os
pós de rosalgar”; VM/95 Cortes-Rodrigues (1987) 259-260, v. 13. “- Tu bebeste, Leonardo, um copo
de rosalgar”; VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263, v. 10. “- Foi um copo de veneno para te matar
assim”; VM/195 Fontes (1989-1990) 58, v. 12. “- Um bocado de veneno para te tirar a vida”.
260
VM/100 Ferré (1987) 68, v. 10.” - Deitei-lhe pó de joana daqueles que eram mais fininhos. A versão é
de Penha Garcia, c. de Idanha-a-Nova, d. de Castelo Branco. A versão transmontana é a VM/134 Fontes I
(1987) 376-377 (de Moás, c. de Vinhais, d. de Bragança) e tem a variante de ser o cavaleiro quem declara
que se trata de veneno: v. 8.”- Que me deste, ó Juliana? Foi veneno, não foi vinho. 9. Já tenho a vista
escura, já não enxergo o caminho”.
261
Tornaremos a referir-nos às versões madeirenses que apresentam esta característica, deixando aqui,
como exemplo, a VM/53 Ferré (1982) 181, v. 6. “foi logo ‘ó jardim do pai um resalgar apanhar”. A
versão do distrito da Guarda é de Junça, c. de Almeida, a VM/258 Terreiro (1999) 80-81 (v.13.” Foi
escolher uma rosa do mais fino rosalgar”).
258
96
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Ao elaborar o “modelo-virtual” de Veneno de Moriana, optámos por considerar
que a primeira sequência, no Tipo A, é o diálogo mãe/filha, de elevada ocorrência nas
versões, e a segunda o anúncio da chegada de D. Jorge, mesmo que ocorra dentro
daquele diálogo, uma vez que este representa um desenvolvimento na narrativa. A
terceira sequência será o diálogo entre Moriana e o cavaleiro, versando o próximo
casamento deste com outra mulher. Neste Tipo os eventos são mais detalhados e as
sequências podem alongar-se em pormenores como D. Jorge a convidar Moriana para
madrinha. Segue-se, na quarta sequência, o episódio da oferta do vinho e, finalmente, a
quinta sequência, com D. Jorge a anunciar a turvação dos sentidos.
No Tipo B, a primeira sequência é constituída pela interpelação de Moriana ao
cavaleiro para que se apeie e merende; o diálogo efectivo entre os dois passa-se já na
sequência seguinte, que inclui a oferta do vinho. É na terceira e última sequência que o
cavaleiro se sente mal e pergunta o que Moriana lhe terá misturado no vinho; porém, ao
contrário do que acontece no Tipo A, a protagonista informa-o, com certo detalhe, dos
ingredientes venenosos, considerando-se então que, no Tipo B, a narrativa foca-se
sobretudo no instante do envenenamento. Em ambos os tipos o cavaleiro morrerá, o que
se deduz, mas quase nunca é explícito262.
Tipo A
Sequência I – O Diálogo mãe/filha:
Tipo B
Sequência I – O Convite:
A mãe pergunta a Moriana porque chora Alguém convida um cavaleiro a apear-se e
e esta responde que “D. Jorge” vai casar. merendar.
Sequência II – A aproximação do
cavaleiro
Sequência II – A Oferta do vinho:
O cavaleiro pergunta a Moriana o que tem
262
As versões de ambos os tipos podem apresentar um acréscimo de versos ao desfecho, com
lamentações do cavaleiro e respectivas réplicas de Moriana, ou/e versos de teor sentencioso ou moralista
que não fazem, em rigor, evoluir a intriga, pelo que não os consideraremos como uma sequência no seu
sentido mais estrito, mas como Prolongamento e Post scriptum. A este assunto voltaremos adiante, ao
tratar a elaboração de um “modelo-virtual” dos romances.
97
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
D. Jorge, a cavalo, aproxima-se de para lhe dar, esta diz-lhe que tem vinho de
Moriana
há sete anos e o cavaleiro pede para o
Sequência III – A Confirmação do provar.
casamento:
Sequência III: A morte do cavaleiro
Moriana pergunta a D. Jorge se é verdade O cavaleiro pergunta a Moriana o que deitou
que vai casar; ele confirma.
no vinho, pois sente-se desmaiar; Moriana
Sequência IV – A Oferta do vinho:
descreve os ingredientes que deitou no
Moriana diz a D. Jorge que lhe vai vinho.
buscar um copo de vinho.
Sequência V- A morte do cavaleiro:
D. Jorge pergunta a Moriana o que deitou
no vinho, pois sente-se desmaiar.
2.3. Silvana, Delgadinha e as versões compósitas
Ao apresentarmos a História Interna de Silvana e de Delgadinha, dissemos já que
a situação inicial de ambos, a de um pai que se enamora da filha e lhe propõe uma
relação incestuosa, é semelhante263. Pese embora esta semelhança, o primeiro elemento
de distinção entre os dois romances é a rima, (í-a) em Silvana e (a-á) em Delgadinha e
as respectivas intrigas desenvolvem-se de maneira bastante diferente. Começamos por
colocar em paralelo os esquemas das sequências explícitas de Silvana e de Delgadinha,
para a distinção estrutural entre os dois romances.
Silvana (í-a)
Delgadinha (á-a)
Sequência narrativa introdutória:
Sequência narrativa introdutória:
Silvana passeia-se e o pai repara nela.
Um pai enamora-se de uma das filhas.
Sequência I – A Proposta:
Sequência I – A Imposição Incestuosa:
O pai faz uma proposta de incesto à filha;
O pai diz à filha que quer ter com ela uma
263
Berta Beça considera haver um terceiro romance de perseguição incestuosa, denominado Solivana, no
qual a filha que se recusa a ceder ao pai seria violada por ele, vindo a ter um filho deste. Cf. Beça [1988],
p. 287. A ele nos referiremos na Parte II, no Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado.
98
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
esta diz que aceitaria, mas receia as penas relação
incestuosa;
do Inferno.
terminantemente.
Sequência II – A Intervenção da Mãe:
Sequência II – O Castigo
esta
recusa
A filha retira-se e queixa-se à mãe do O pai manda encerrar a filha, devendo
assédio do pai; a mãe manda-a trocar de receber pouca ou nenhuma água
cama consigo.
Sequência
e
alimentos escassos e insalubres.
III
–
O
Estratagema Sequência III – O Apelo à família:
Salvador:
A filha avista os diversos membros da
O pai censura a filha por não ser virgem;
família; pede-lhes água; a água é recusada.
a mãe revela a sua identidade; o pai Sequência IV – A Cedência:
exprime
os
estratagema.
seus
sentimentos
pelo A filha avista o pai; pede-lhe água; o pai
recusa; a filha compromete-se a ceder em
troca de água.
Sequência V – O Envio da Água:
O pai, a toda a pressa, manda levar água à
filha.
Sequência VI – O Desfecho
Delgadinha está morta.
Este cotejo das sequências mostra claramente que, embora haja um ponto de
partida em comum, os dois romances são distintos, mas há na tradição portuguesa um
bom número de versões264 que integram elementos constitutivos da trama narrativa de
ambos os romances 265 e nas quais se dá, frequentemente, a absorção das respectivas
rimas. É notável a persistência desta junção, que seria já frequente quando Garrett se
serve de “Silvana” para compor a Adozinda 266 , pois nesta obra são evidentes as
sequências da intriga própria de Silvana, seguindo-se-lhes as sequências de Delgadinha,
264
Segundo Pere Ferré, estes romances não surgem simultaneamente nas mesmas zonas geográficas ou,
então, contaminam-se, o que atribui às limitações individuais ou colectivas da memória que provocam a
exclusão de “dois temas que quase se sobrepõem” . Cf. Ferré [2011].
265
Nas versões do Arquipélago da Madeira, Silvana não sofre esta contaminação, mas sim, em algumas
versões, a de Queixas de D. Urraca (IGR 0004/RPI: A8). Cf. Pere Ferré [1982], com a colaboração de
Vanda Anastácio, José Joaquim Dias Marques e Ana Maria Martins, Romances Tradicionais, Funchal,
Câmara Municipal do Funchal, 1982, pp. 203-211.
266
Garrett [1983], I, pp. 73-1163.
99
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
tal como acontece na versão que se encontra transcrita no estudo de Costa Dias sobre as
fontes de Garrett 267 e na versão final de Silvaninha, que Garrett declara conter “as
variantes mais notáveis”268.
A existência destas versões, que parece conduzir à formação de um romance único
e a algumas discrepâncias na classificação observadas em alguns editores, leva a que
nos alonguemos sobre estas questões. Dá-se o caso de os dois romances terem sido
algumas vezes confundidos, tanto mais que a protagonista de Delgadinha toma, em
versões deste romance, o nome da outra jovem (Silvana/Silvaninha) 269 . D. Carolina
Michaëlis, ao falar do romance de Silvaninha, descreve-o como “o amor incestuoso de um
pai brutal e tirano, e o cruel martírio da filha, presa numa torre, e morta a fome e sede, sem que
nenhum dos irmãos, nem a própria mãe lhe possa valer.” 270 , referindo-se, certamente, a
Delgadinha.
Vários e importantes factores os distinguem, além da rima, quer do domínio do
explícito, quer do domínio do implícito, havendo autores que apresentam critérios de
distinção baseados nas circunstâncias que antecedem a proposta do pai e no tipo de
reacção da filha, o que, entrando mais no domínio do implícito, tornaremos a referir na
Parte II271. Referimos, a propósito, a opinião de vários autores272.
267
Cf. Dias [1988], p. 135-139.
Garrett [1983], II, pp. 125-1322.
269
Nem sempre são diferenciados os nomes dos dois romances. Em artigo na Internet, a respeito do livro
de Ariano Suassuna Romance d’a pedra do reino e o pr ncipe do sangue do vai-e-volta, diz o seu autor
que “ no capítulo ‘A filha noiva do pai’ há um tema de incesto, originário do romance Dona Silvana,
conhecido como A delgadinha”. Cf. Roberto Benjamin, Os Romances da Tradição Ibérica na Obra
Midiática de António Carlos Nóbrega, (trabalho apresentado no Núcleo de Folkcomunicação, XXVI
Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de Setembro de 2003), em
www.intercom.org.br/papers/congressos2003, arquivo acedido na Internet em 12 de Outubro de 2005.
270
Cf. Vasconcelos [1980], p. 193.
271
Parte II – Capítulo I - Os suportes significantes das sequências.
272
Reproduzimos, a apoiar a afirmação, os resumos dos dois romances em Juan Busto Cortina [1989],
Catálogo Índice de Romances Asturianos, Astúrias, Servicio Central de Publicaciones, Principado de
Astúrias, 1989, pp. 86 e 88:
“Silvana:
RES: Silvana sufre el acoso de su padre, que pretende acostarse com ella. Va a contárselo todo a su
madre, y esta decide cambiarse por la hija. En el lecho descubre su verdadera identidad ante el marido,
que a punto estuvo de cometer gran pecado.”
“Delgadina:
268
100
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em “Nota Pontual” a Silvana, no GRPP, ao comentar as versões que edita e que
são “geminadas com Delgadinha”, Maria Aliete Galhoz torna evidente que o
encerramento faz parte deste último273:
“Silvana troca de vestidos com sua mãe e é verberado o comportamento do Rei pela sua
própria esposa; segue com ‘Delgadinha’” (nosso sublinhado).
Também Dias Marques especifica que o episódio da intervenção da mãe é próprio
de Silvana, no qual o pai, “ao dar pelo logro, cai em si e bendiz a inteligência da mulher (e/ou
a de Silvana)”, sendo o castigo do encerramento exclusivo de Delgadinha
274
,
contradizendo José P. da Cruz, que o atribui a ambos os romances 275. Sobre a versão
Silvana + Delgadinha, que transcreve em Romanceiro Tradicional da Beira Baixa, diz
Cruz:
“Em ambos, o pai enamora-se da filha e porque ela não acede aos seus desejos
cupidinosos manda-a castigar, metendo-a, isolada, numa torre com escassez de alimento e
bebida. Cada romance assenta numa rima diferente apesar do assunto ser igual, pelo menos a
partir dos versos iniciais. O romance de A Silvana é assonantado em í-a, enquanto o da
Delgadinha apresenta a assoante á-a….”.
RES: El rey requiere de amores a su hija. Al negarse esta, el rey la castiga encerrándola sin comer ni
beber. Delgadina pide consecutivamente un poco de agua (a su madre, a sus hermanas…). Al fin, cuando
se la van a dar, Delgadina expira y va al cielo mientras su padre se condena en los infiernos.”
Este Catálogo Índice reporta-se apenas aos romances asturianos, mas a consulta das versões dos dois
romances em outros catálogos e colectâneas prova a constância da sua estrutura narrativa e,
consequentemente, das suas diferenças. Cf., por exemplo, Susanne H. Petersen [1982], edição a cargo de,
Voces Nuevas del Romancero Castellano-Leonés, I, Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial
Gredos, 1982 (sigla AIER), pp. 218-221 para Silvana e 221-236 para Delgadina e, também, Diego
Catalán y Mariano de la Campa [1991], preparada por, com a colaboração de Debora Catalán, Paloma
Esteban, Angeles Ferrer e Maite Manzanera, composição a cargo de Suzanne Petersen, Romancero
General de Leon, Antologia 1899-1989, II, Madrid, Seminario Menendez Pidal y Diputacion Provincial
de Leon, 1991, pp. 75-83 para Silvana e pp. 83- 98 para Delgadina.
Qualquer destas versões, note-se igualmente, é sem contaminação, tal como acontece na maioria das
versões espanholas consultadas (ver Bibliografia), concluindo-se que as versões compósitas dos dois
romances aparecem, preferencialmente, na tradição portuguesa.
273
Galhoz, em GRPP, pp. LVIX, LVX, indica como sem contaminação, a versão Silvana publicada por
Firmino Martins [1939], Folclore do Concelho de Vinhais, 2º vol., Lisboa, Imprensa Nacional, 1939, pp.
37-38. Também refere que o romance aparece “como contaminação no incipit de “O Conde Alarcos’ e
como contaminação do incipit ou na primeira sequência de Delgadinha”, além de, na Madeira, aparecer
com um final de Queixas de D. Urraca.
274
Cf. J. J. Dias Marques [1996 a], “Algo de Novo na Frente Oriental”, Revista ELO, 2 (1996), Centro de
Estudos Ataíde Oliveira, 1996, pp. 254-256.
275
Cf. Cruz [1995], pp. 207-208. Quanto à apresentação que faz de Delgadinha, Cruz reitera o atrás dito,
acrescentando: “É de notar que neste romance não há a interferência da mãe que salva a filha do atentado
do pai. É ela que defende a sua honra não acedendo aos desejos do pai” (cf. idem, p. 210).
101
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Mais adiante, no esquema narrativo de Silvana que identifica, Cruz especifica que
o castigo se segue ao estratagema da mãe:
“Ao dar pelo logro, castiga a filha metendo-a numa torre e manda-a alimentar com apenas
um pouco de pão e água. A partir daqui o assunto desenvolva-se como o da Delgadinha”.
Manuel da Costa Fontes, por sua vez, distingue os dois romances da seguinte
forma276:
- Silvana (“í-a”): “romance em que o pai, que também é frequentemente o rei, pede à
filha para ela se deitar com ele. A moça queixa-se à mãe, que toma o seu lugar junto ao marido,
fingindo ser Silvana”.
- Delgadinha (“á-a”): “romance de tema semelhante cuja protagonista é encerrada
numa torre. Em Delgadinha o pai faz encerrar a filha por ter rejeitado a sua proposta
incestuosa”.
Note-se que Costa Fontes, no RPI, apresenta como exemplo de Silvana uma
versão que contém a intervenção da mãe seguido do episódio do seu encerramento277,
anotando, após a sua transcrição, que “(c)omo geralmente ocorre na tradição portuguesa,
esta versão prossegue com Delgadinha (P2)”
278
, o que levaria a crer que o castigo ocorre
ainda naquele romance.
Na sua tese de Doutoramento, Manuel Gutiérrez Estévez279 descreve Delgadinha,
do qual analisa 450 versões280, como:
276
Cf. Manuel da Costa Fontes “Uma nova versão do Romance A Morte do Rei D. Fernando”, Revista
ELO, 2, Faro, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1996, pp. 115-123.
277
A versão é Silvana, de Velhas Canções, pp. 12-13.
278
Cf. RPI, p. 200-201. Quanto à versão da Delgadinha editada pelo RPI, pp. 201-202, trata-se da nr. 493
de VRP e é a nossa D/44 Leite (1960) 56-57.
279
A tese constitui um ensaio de análise estrutural aplicado aos romances de incesto que têm maior
vigência actual na tradição, segundo o autor, e que são Delgadina, Silvana, Tamar e Blancaflor. Cf.
Manuel Gutiérrez Estévez [1981], El Incesto en el Romancero Popular Hispânico – Un Ensayo de
Analisis Estructural, 4 Tomos, Tese de Doutoramento apresentada à Universidad Complutense de
Madrid, 1981.
280
A maioria das versões provém do corpus do Arquivo Menéndez Pidal. Das quatrocentas e cinquenta
versões de Delgadinha, trinta e oito são portuguesas, sendo trinta do Romanceiro Português de Leite de
Vasconcellos, uma publicada na Revista Lusitana, duas do Romanceiro Minhoto de Pires de Lima, três do
Romanceiro Geral Português de Teófilo Braga e duas que se indicam serem do Arquivo Menéndez Pidal.
Não há nenhuma versão portuguesa de Silvana sem aditamento de Delgadinha no corpus daquela tese.
102
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“la historia de una joven que pretendida por su padre, es encerrada para padecer de sed
hasta que consienta en la relación incestuosa”.
De Silvana, com 97 versões analisadas, diz o mesmo investigador que a
protagonista:
”no rechaza la relación amorosa con su padre de una forma tan directa a como lo hace
Delgadina. Inicialmente acepta esa relación, aunque después acuerda con su madre el
intercambio de sus respectivos vestidos y atuendos con el fin de engañar al padre. Cosa que, en
efecto, consigue. El romance termina generalmente, con parabienes y felicitaciones porque se
han eludido, con ingenio, las penas morales que hubiera acarreado la realización del incesto”.
Por nossa parte, entendemos que os pontos fulcrais de ambos os romances
divergem por causa do que lhes está implícito, o que fará com que também a
organização narrativa explícita de cada um seja diferente. As respostas evasivas, que
implicam certa condescendência com a proposta e o protelamento astucioso por parte da
protagonista de Silvana levam a que o ponto fulcral deste romance seja o episódio da
intervenção da mãe, uma vez que o desfecho constitui um anti-clímax, com o pai a
oscilar entre bendizer ou maldizer mulher e filha. O repúdio indignado da outra jovem,
em Delgadinha, induz o momento mais dramático deste romance que é o seu
encerramento, durante o qual a família se nega a dar-lhe água. O episódio prepara a
tensão narrativa da sequência antes do desfecho; enfraquecida e prestes a ceder, a jovem
morre para que o incesto seja evitado. A intervenção da mãe e o encerramento são, pois,
os elementos narrativos chave da distinção entre os dois romances.
Sendo estes os elementos que distinguem os dois romances, não deixa de ser de
notar que Harriet Golberg atribua o motivo Q260.1, que destaca bem a punição, a
Silvana: “Father punishes daughter for denouncing his incestuous demands. Her mother takes
her place in husband’s bed. He locks daughter in tower with little food and water”. Em
103
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Delgadina, Golberg inclui o motivo T411.1.4., que não menciona o castigo: “Father
desires daughter sexually; her mother takes her place in his bed” 281 (nossos sublinhados).
Esta questão leva a outra, a da sua identificação/classificação, uma vez que a
tradição portuguesa associa de tal modo os dois romances que há versões, geralmente
iniciadas com Silvana e continuando com Delgadinha, que podem apresentar uma
conjugação das situações iniciais de ambos (de provocação/não provocação e de recusa
terminante/complacência) conjugadas ou não com a intervenção da mãe, a que se segue
o castigo e demais sequências de Delgadinha.
Os editores mais antigos não faziam a separação entre os dois romances e/ou a
distinção das versões contaminadas de ambos 282 , mas Costa Fontes, entre outros, já
distingue os dois romances e indica ainda, a composição das versões (como Silvana [ía] + Delgadinha [á-a] e Delgadinha [á-a] + Silvana [í-a] 283 . Outros editores tomam
outras opções, que nas mais recentes usam ser apostas introdutoriamente 284 e dá-se
281
Cf., para o motivo Q260.1, Harriett Golberg [2000], Motif-Index of Folk Narratives in the PanHispanic Romancero, Temple, Arizona, Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies, 2000. Cf.,
para o motivo T411.1.4, o Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero, no Proyecto
del
Romancero
pan-hispánico,
disponível
na
Internet
em
http://depts.washington.edu/hisprom/espanol/router.htm, arquivo acedido em várias datas. Note-se,
igualmente que Golberg, que segue a definição de Thompson para “motivo”, por vezes inclui, nos
motivos indexados aos romances, vários incidentes em um único motivo.
282
Assim acontece em VRP, com todas as versões classificadas como Delgadinha, e também em GRPP,
embora a Introdução Geral desta colectânea, como já referido, esclareça o assunto e aí se sublinhe ser
incontaminada a versão nº 327, que, segundo indicado na p. LVIX, é remanescente do espólio de Leite de
Vasconcellos e tem, no nosso corpus, o número S/7 Soromenho (1963) 55 [Galhoz (1987) 375]. Indicase, em GRPP I, C. Nota pontual a dois romances mais raros. 1. Silvana, p. LVIX e LX.que são
“geminadas a Delgadinha” as nrs. 319 (n/nr. S+D/11 Reinas (1957) 423-425 [Galhoz (1987) 364-366),
335 (n/nr. S+D/25 Galhoz (1987) 385), 338 (n/nr. S+D/27 Galhoz (1987) 387-389), 340 (n/nr S+D
S+D/28 Galhoz (1987) 390-392) e 343 (n/nr. S+D/29 Galhoz (1987) 394-395), não referindo como
estando neste caso a versão nr. 336 (n/nr. S+D 26 Galhoz (1987) 386-387), que integra a intervenção da
mãe e o castigo do encerramento.
283
Cf., por exemplo, Manuel da Costa Fontes [1987], Romanceiro da Província de Trás-os-Montes
(Distrito de Bragança), I, Acta Universitatis Coninbrigensis, 1987.
284
Referimos, como exemplo, a Nota Introdutória à nova compilação de romances recolhidos na Madeira,
de Pere Ferré, Sandra Boto [2008], Novo Romanceiro do Arquipélago da Madeira, Funchal, Funchal 500
Anos, 2008.
104
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
também o caso de, por vezes, não haver coincidência de critérios entre editores ou entre
estes e RPTOM/BRPTOM285.
Entendendo que as versões de Silvana + Delgadinha constituem um corpus
especial na tradição portuguesa, optámos por analisá-las como um grupo específico, na
perspectiva que nos move - a revelação do sentido. Assim, embora com base nos dados
colhidos em BRPTOM, preferimos agrupá-las separadamente
286
em “Versões
Compósitas de Silvana e Delgadinha”287, de acordo com o seguinte critério:
Ocorrência, nessas versões, dos episódios fulcrais para a distinção de ambos os
romances, i.e., a intervenção da mãe (Sequência II de Silvana) e o castigo do
encerramento (Sequência II de Delgadinha).
Estas versões compósitas, quase sempre, começam com Silvana (proposta do pai,
queixas do assédio pela filha à mãe e enunciação por esta do estratagema de mandar a
filha trocar de cama consigo - sequências I e II), mas pode omitir-se a concretização do
estratagema (sequência III), seguindo-se o encerramento da filha e demais episódios de
Delgadinha. Há, no entanto, uma certa diversidade de combinações que pode originar
variações de sentido, a que nos tornaremos a referir, exemplificando aqui as seguintes
hipóteses:
- Integração total dos dois episódios. Ex: S+D/16 Leite (1960) 86-87.
- Inclusão de parte da sequência III de Silvana, com omissão da enumeração da
descendência, pela mãe. Ex: S+D/4 Azevedo (1880) 112-115.
- O encontro do pai com a mãe é laconicamente narrado. Ex: “Lá pela noite adiante
a traição a acometia”, S+D/5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V.
285
Por exemplo, um fragmento de quatro versos longos que, em GRPP, aparece como Conde Alarcos
(com o número 27, na página 196) é, em RPTOM, classificado como Silvana (n/nr. S/27 Galhoz (1987)
196) e, em RPTOM, a versão nr. 7 de Silvana (n/nr. S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193) aparece em
como Queixas de dona Urraca e Fontes classifica como Silvana uma versão que, em BRPTOM é
Delgadinha, nr. 130 (a n/S+D/19 Fontes (1983a) 119-120).
286
Indicaremos, igualmente, a opção do editor e a de BRPTOM.
287
Trinta e nove versões, identificadas como S+D. Ver Anexos - Grupo A. Corpus.
105
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- Dá-se o pedido de ajuda da jovem à mãe, mas omite-se a enunciação pela mãe
do estratagema. Ex: S+D/17 Fontes (1979) 143-144.
- Começam com a introdução narrativa de Delgadinha (tipo “Um rei tinha três
filhas”), continuam com Silvana (episódio da mãe) e finalizam com Delgadinha.
Ex: S+D/19 Fontes (1983a) 119-120.
As versões com o incipit de Silvana, (o pai propõe e a filha dá uma resposta
condicional), mas sem qualquer segmento da intervenção da mãe, seguindo com
Delgadinha, como a D/174 Galhoz (1987) 363, são agrupadas em Delgadinha, visto que
contêm uma maioria de versos deste romance. Não tomaremos a assonância de apenas
uns poucos versos como critério determinate da classificação, pelo que não serão
separadas do grupo de Delgadinha as versões com o incipit próprio deste romance e em
que a filha responda como em Silvana, seguindo os episódios do primeiro288. Também
em Delgadinha se inclui o caso da versão D/6 Nunes (1900-1901) 171-173, na qual a
filha se queixa à mãe, visto que a intervenção desta, que se segue, não é a de Silvana;
aqui, a mãe não a ajuda, mas ordena a prisão da filha. Caso diferente é o da versão
abaixo, que inclui as queixas, mas não a explicitação da intervenção da mãe. A elipse
não deixa explicitar o estratagema e o pai encerrará a filha só porque a ouviu queixar-se,
mas, ainda assim, considerámos mais lógico incluir a versão nas Compósitas, dado o
sentido implícito correspondente a estas, nos vv. 8 a 12:
8.“Foi-se ter com sua mãe, nos braços dela caía;
9. tudo o que o pai lhe dissera logo à mãe tudo dizia.
10. O pai que ali perto estava todas as queixas ouvia.
11. Mal haja a filha maldita, que ao próprio pai descobria!
12. Encerrou-a numa torre muito alta em demasia;”
S+D/10 Serrano (1921) 39-41
288
Ver, a propósito, a recensão de Dias Marques ao Romanceiro da Província de Trás-os-Montes
(Distrito de Bragança) de Costa Fontes, na qual, referindo-se à classificação das versões de Silvana e
Delgadinha observa que “ [O] autor baseia a sua opinião, segundo julgamos depreender, na presença, nos
textos de Delgadinha, de alguns versos em í-a, os quais proviriam de Silvana (romance que, como é
sabido, apresenta este tipo de assonância)”. Cf. Marques [1988].
106
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Noutros casos, não se poderá falar, propriamente, de “versões compósitas” na
acepção em que o temos vindo a fazer, mas de versões muito fragmentadas ou
inacabadas289, que contêm versos dos dois romances, mas que considerámos pertinente
manter no grupo de Silvana, apenas por começarem com este e o número de versos de
Delgadinha que seguem não justificar, em nosso entender, que o segundo se sobreponha
ao primeiro, na classificação290.
Outras contaminações (ou que contenham versos de outros romances e tal como
para os outros romances do corpus) não originam um grupo separado, como é o caso de
Silvana seguindo com Queixas de D. Urraca, como, por exemplo, a S/29 Marques
(1989) 388-390. Tampouco, por serem casos isolados, se separam de Delgadinha as
versões deste romance iniciadas com Santa Iria ou com O Quintado, embora se
assinalem respectivamente, como na D/128 Marques/Silva (1984-1985) 115-116 (Santa
Iria + Delgadinha ) e na D/25 Delgado II (1955) 133 (Quintado + Delgadinha).
2.4.Gerinaldo
Gerinaldo é, de todos os romances do corpus, o que tem um esquema
composicional narrativo mais alongado e o maior número de sequências, não
necessitando, neste momento, de quaisquer anotações prévias.
Sequência I – A Sedução - A infanta propõe ao pajem Gerinaldo que passe a
noite com ela. Ele duvida da seriedade da proposta, mas aceita e combinam a hora
do encontro.
289
Como é o caso, por exemplo, da S/5 Leite (1960) 47-48 , da S/6 Leite (1960) 55 ou da S/26 Fontes
(1983b) 101.
290
Para a divisão em sequências das versões compósitas de Silvana + Delgadinha adoptamos uma
metodologia diferente da dos outros romances, uma vez que, neste caso, não elaboramos um modelovirtual nos mesmos moldes daqueles, mas pretendemos demonstrar que estas versões integram as
sequências Silvana e de Delgadinha que as tornam em um grupo específico – a intervenção da mãe, de
Silvana e o tormento imposto a Delgadinha, de Delgadinha. É de notar como as sequências de ambos os
romances, em algumas versões compósitas, se entrelaçam. Ver Anexos-Grupo B, em B7. Exemplificação
da divisão das versões em sequências.
107
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência II – O Encontro Amoroso – Gerinaldo dirige-se ao quarto da infanta.
Sequência III – O Delito - Os dois passam a noite juntos.
Sequência IV – O Despertar do Rei - O rei acorda e procura o pajem, que
encontra no quarto da filha, vendo os dois adormecidos lado a lado.
Sequência V – O Dilema – O rei pondera as consequências de matar a filha ou o
pajem e decide deixar a espada entre os dois.
Sequência VI – A Descoberta da Espada – Os amantes acordam e descobrem a
espada. Decidem o que fazer.
Sequência VII - O encontro do Pajem e do Rei – Gerinaldo sai do quarto e
encontra o rei, que lhe pergunta de onde vem. O pajem dá-lhe respostas evasivas a
que o rei responde, não se deixando enganar. O rei ordena o casamento de
Gerinaldo com a infanta.
3. O posicionamento das sequências na narrativa
O posicionamento das sequências na estrutura da narrativa (inicial, intermédio ou
final) determina, em boa medida, a maior ou menor facilidade na procura do sentido do
romance.
Geralmente, a encatalisação torna-se mais premente nas sequências iniciais, pois a
intriga começa muitas vezes in media res, entra bruscamente no assunto ou inicia-se
com um diálogo. Logo, estas sequências conterão escassa ou nenhuma informação
explícita das circunstâncias que antecedem o que se vai contar. A sequência inicial pode
ser constituída por um segmento narrativo-descritivo ou por um diálogo, não havendo,
neste caso, uma informação prévia sobre as circunstâncias em que se dá o diálogo, nem
se conhecendo, tão pouco, as questões fulcrais que desencadeiam a intriga, em
108
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
particular se o romance começar in media res. Casos há em que o diálogo inicial é
precedido de um pequeno e sucinto prólogo introdutório291.
Se as situações iniciais, condicionadas pelas pressupostas, despoletam a acção,
esta desenvolver-se-á nas sequências intermédias, ressalvando, obviamente, os
romances que, como Bernal Francês, adoptam uma certa estratégia de suspense,
deixando para o final a revelação explícita das circunstâncias. É nas sequências
intermédias que se encontra o máximo de tensão narrativa, prenunciando um Desfecho
que é implicado pelas próprias circunstâncias e é nelas que geralmente se desenvolve o
assunto focado e se centra o clímax, se o final for trunco. Seria, pois, expectável que
fossem mais elucidativas que as primeiras, mas acontece que não deixam de apresentar
saltos narrativos, o que implica que estes terão de ser preenchidos por pressupostos
lógicos de ligação.
As sequências finais dos romances são a implicação das anteriores, resultando da
acção desenvolvida nestas e tendem a encerrar o episódio narrado com um desfecho
lógico, o que não obsta a que este possa, ainda, remeter para outros sentidos implícitos.
Diz Catalán292 que “es bien sabido, en efecto, que los desenlaces de los romances están
más sujetos al cambio que el resto de la narración”, devido às atitudes culturais que
condicionam a reacção dos receptores-emissores à história contada. No entanto,
julgamos ser de distinguir entre os desfechos “tradicionais”, próprios da intriga, e aquilo
a que chamámos “Prolongamentos”, os quais se tornam o espaço no qual se manifestam
tais reacções, chegando a subverter a fábula tradicional. Com efeito, os primeiros são,
geralmente, a consequência “lógica” dos actos das personagens, na medida em que uma
“lógica de acções” implica, necessária ou eventualmente, a realização doutras acções
291
Acontece, nas versões, ser a sequência ser substituída, em todo ou em parte, por uma prosificação dos
versos provavelmente esquecidos ou por explicação dada pelo informante, assunto a que voltaremos.
292
Cf. Catalán [1997], p. 178. No IGR, p. 96, diz-se que a tradição oral moderna prefere uma elaboração
maior dos desenlaces, ainda que haja finais truncados em versões que não são consideradas incompletas
pelos “portadores de folklore” mas sim pelos editores e leitores.
109
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que lhe estão ligadas. Trata-se, então, de uma relação de causa/consequência que se
estabelece entre a situação posta (ou pressuposta) inicialmente e a final. A relação
propriamente dita pertence ao modo implícito e é descodificada recorrendo a
informações extra-enunciativas do foro das competências enciclopédicas293, pois sabese que as infracções ao social e moralmente correcto implicam uma sanção. Como
castigo da acção inicial, morrem a adúltera de Bernal Francês e o perjuro de Veneno de
Moriana, mas morre também a vítima de Delgadinha, visto que esta é a única solução
de salvação de um mal maior, o incesto (Silvana “salva-se” pela força da esperteza da
mãe); já o casamento é o desfecho desejável (e viável) para remediar relações ilícitas
entre dois jovens e a sanção transforma-se em casamento, em Gerinaldo.
4. Sequências narrativas e sequências dramatizadas
Mencionámos já a tendência para uma feição maioritariamente dramatizada nos
romances orais da tradição portuguesa. De facto, ao dividir um romance em sequências,
observa-se frequentemente que as suas versões dispensam a presença de sequências
narrativo-descritivas 294 . Estas, pelo seu poder informativo literal, fazem com que as
versões que as contêm tendam a ser mais explícitas do que as versões mais
dramatizadas. Assim, a natureza das sequências (narrativas ou dramáticas) tem também
um considerável peso na procura do sentido.
Na verdade, as “sequências narrativas” são assim designadas por contraste com as
“sequências dramatizadas”, estas totalmente dialogadas. Em rigor, há que salientar que
293
Segundo Kerbrat-Orecchioni, interpretar um enunciado, quer se trate do seu conteúdo explícito ou
implícito, é aplicar diversas “competências” aos diversos significantes nele inscritos, para dele extrair
significados. Delas distingue, ainda que sob reserva, as competências “linguística”, “lógica” “retóricopragmática” e “enciclopédica”, apresentado-se esta como “un vaste réservoir d’informations extraénonciatives portant sur le contexte; ensemble de savoirs et de croyances, système de representations,
interprétations et évaluations de l’univers référentiel…”. Cf. Catherine Kerbrat-Orecchioni [1986],
L’implicite, Paris, Armand Colin, 1986, pp. 161-162.
294
Segundo Pere Ferré, “o processo dramatizador assentou na transplantação de versos narrativos para
falas de personagens”. Cf. Ponte [1987], p. 660.
110
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
as “sequências narrativas” podem ser de dois tipos: “extradiegéticas”, i.e., enunciadas
por um narrador extradiegético, por vezes no pretérito, ou as personagens podem
assumir essa função narrativa e o narrador ser intradiegético, produzindo-se uma
“sequência narrativa intradiegética”.
Muitas vezes, as “sequências narrativas extradiegéticas” apresentam-se como uma
espécie de prólogo ou introdução às falas das personagens, o que é dispensado em
outras versões do mesmo romance. Também podem relatar, total ou parcialmente, o
conteúdo narrativo do segmento que dá continuidade à trama, sendo este tipo de
sequência intercambiável com a forma dialógica do mesmo. Acontece, por outro lado,
que haja uma intervenção do informante, que narra o que se vai passar, diz quem vai
falar ou dá explicações, por vezes prosificando a sequência inteira ou parte dela.
Assim, a mesma sequência do romance pode ser enunciada, nas versões, de
distintas formas. Damos, como exemplo, a Sequência II em Bernal Francês:
A) - Sequência enunciada por narrador extradiegético:
4.“Pois se erguera donde estava, descalça lhe fora abrir
5. lhe pegara pela mão, o levara ao seu jardim.
6. Lhe lavara pés e mãos, com bela água de alecrim;
7.uma gota que ficara, lavara também a si.
8. Vestira-lhe uma camisa, como quem vestira a si,
9. fizera cama de rosas, o deitara a par de si ”
BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208
B) - Sequência enunciada por narrador intradiegético:
(o narrador pode ser qualquer das personagens)
- a mulher é o narrador295:
6.“Ao abrir a minha porta se apagou o meu candil!
7. Ao subir a minha escada me caiu o meu chapim.
295
Veja-se a incongruência de ser a mulher, que se sabe ter sido morta no final, a narrar a cena.
111
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
8. Peguei nele nos meus braços levei-o pelo jardim
9. Mandei lavar pés e mãos em aguinha de alecrim:
10. vestir camisa lavada, deitá-lo ao par de mim.”
BF/2 Braga (1867) 34-36
- o marido é o narrador:
3.“Ao abrir da minha porta se apagou o meu candil
4. ela me pegou na mão, me levou ao seu jardim,
5. e lá me lavou os pés em água de alecrim;
6. levou-me para o seu quarto, me deitou ao pé de si”296
BF/11 Pires (1899)/Pires (1982) 183
Em certas versões, a sequência monologada do narrador intradiegético/mulher
pode apresentar-se não com o sentido de narrar o que se passou, mas como que
exprimindo uma fantasia amorosa, enunciada como um aparte da personagem, assunto
que será abordado mais à frente:
3.“- S'eu soubesse a ser D. Francisco, a porta lhe ia abrir,
4.lavava-lo em água de rosas, perfumado em alecrim,
5.dava-lhe camisas alvas, deitava-o a par de mim.”
297
BF/61 Ferré (1982) 160
Neste caso, o sentido de fantasia amorosa está implícito na expressão traduzível
por “se eu soubesse ser [D. Francisco/Bernal Francês] que está à minha porta, então eu
faria as seguintes coisas”, que descreve. Apenas o conhecimento de que a narrativa se
estrutura em determinadas sequências impede que estes versos sejam integrados na
Sequência I, uma vez que se actualizam na modalidade reflexiva; um desejo que se
exprime não implica a sua realização efectiva e, consequentemente, não é certo que haja
a disjunção de acções que separa as sequências. Nestas versões, de facto, não se sabe de
296
Nesta versão há a variante de ser o homem o portador da luz que se apaga.
São do mesmo teor as versões, todas da Madeira, B/F 62 Ferré (1982) 160-161, BF/63 Ferré (1982)
162-163, BF/65 Ferré (1982) 163-164, BF/67 Ferré (1982) 165, BF/68 Ferré (1982) 165-166 e
BF/71 Ferré (1982) 168. Já a BF/69 Ferré (1982) 166-167, também da mesma área geográfica, segue
o modelo da narrativa intradiegética não reflexiva (peguei nele, levei-o, lavei-o, vesti-lhe, deitei-o).
297
112
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
imediato se a mulher concretiza estas intenções (abrir a porta, lavar [o homem] em água
de rosas, perfumar com alecrim, dar[-lhe] alvas camisas ou se estas não passam de um
devaneio. Apenas se sabe que a última intenção, deitar-se com ele, se realiza, visto que
está implicada na sequência seguinte, uma vez que, nesta, ela pergunta: 6.“Que tendes,
D. Francisco, que não te viras p'ra mim? ”
Numa outra versão dá-se a mesma interacção das duas sequências, mas ainda
noutros moldes: é o suposto amante que “sugere” a cena do jardim, com a forma verbal
imperativa a assumir, aqui, um valor de pedido, que se pressupõe ela aceite, visto que a
Sequência III é a “normal”:
5.“D. Bernardo Francês, saiba a senhora que é,
6. Levai-o p'rà sua casa que vai p'ró jardim em pé.
7.Que vai p'ró jardim em pé, com um ramo de alecrim,
8. Levai-o p'rà sua cama, deitai-o em par de si. ”
BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38
C) - Sequência enunciada nas duas formas:
A sequência, ou até um só verso, pode começar com um narrador extradiegético e
acabar na voz de um narrador intradiegético, o que será atribuível a confusão do produ-transmissor:
- no 2º hemistíquio do v. 10, passa à 1ª pessoa:
10.“agarrara-o pela mão e deitara-o ao pé de mim”
BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 428-429
- narrador extradiegético no v. 3 e 1ª pessoa nos restantes versos:
3.“Ao subir da minha escada lhe caiu seu chapim;”
4.ao abrir da minha porta me apagou o meu candim.
5. Levei-o p'r'à minha sala, da sala para o jardim;”
BF/21 Gomes Pereira (1911) 131-132
- 1ª pessoa nos vv. 5 e 6 e 3ª pessoa no v. 7:
5.“Ò decer da mnha cama se me rasgou o frandile,
113
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
6.Ò abrir da mnha porta, se m'apagou o candile.”;
7.“Foram scadas acima e dêtéram-s'a drumir.”
BF/51 Buescu (1961) 209
- alternância:
3.“Ao descer a sua escada descalçou-se o meu chapil”
BF/97 Galhoz (1987) 282
D) - Sequência enunciada em prosificação298:
A mesma sequência é objecto de uma explicação do informante, numa forma
narrativa por vezes muito sucinta, que elide pormenores das circunstâncias do engano,
bem como toda a cena do jardim:
“Ela abriu a porta, e levava a luz”; “Ela apagou e oi-se deitar, e ele voltou-lhe as
costas” - BF/45 Leite (1958) 416-418
“Foi o homem que l'apagou o candile.” - BF/92 Fontes I (1987) 351
Estes exemplos das formas que a mesma sequência pode tomar em versões do
mesmo romance demonstram que tal versatilidade não afecta a estrutura narrativa. De
facto, seja de que maneira for, é sempre relatado o mesmo incidente: uma mulher faz
um homem entrar na sua casa e, às escuras, deita-se com ele.
Estas sequências narrativas, quer se inscrevam no enunciado quer na enunciação e
qualquer que seja a sua extensão e posição na estrutura do romance, apresentam-se
como “embraiadores de ficcionalidade”, em contraste com o modo dialogado, também
obviamente ficcional, mas que se institui como “efeito do real” 299 . A sua ausência
298
Cf. na Parte II, o Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado.
Kerbrat-Orecchioni refere-se às fórmulas liminares dos contos, “era uma vez”, como indícios ou
“embraiadores” de ficcionalidade. Cf. Kerbrat-Orecchioni [1986], p. 125-129. A embraiagem (fr.
embrayage, ing. engagement, esp. embrague) é, segundo Greimas e Courtés, o efeito de retorno á
enunciação, “exigido por la suspensión de la oposición entre ciertos términos de las categorias de persona
y/o espacio y/o tiempo, así como por la denegación de la instancia del enunciado. Todo embrague
presupone, pues, uma operación de desembrague que le es logicamente anterior” e “Contrariamente a lo
que sucede el momento del desembrague (cuyo efecto es referencializar la instancia desde la cual es
operado) el embrague produce una des-referencialización del enunciado al que afecta”. A desembraiagem
(fr. débrayage, ing. disengagement, esp. desembrague) será “la operación por cual la instancia de la
enunciación … disjunta y proyecta fuera de ella ciertos términos vinculados a su estrutura de base, a fin
299
114
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
obrigará o ouvinte-leitor a um maior exercício de localização situacional, que, nesse
caso, se efectuará através de indicações que vão sendo dadas pelos diálogos das
personagens, no desenrolar da intriga.
Ainda que versões do mesmo romance possam apresentar, para as mesmas
sequências, quer a forma narrativa quer a dialogada, notamos algumas tendências300.
Em Veneno de Moriana, as sequências são, regra geral, dialogadas, embora por
vezes a Sequência III do Tipo B seja precedida de um verso narrativo, como no seguinte
exemplo:
5.“Cavaleiro bebeu vinho, começou a desmaiar”
VM/15 Leite (1960) 106-107
Este é substituído, em versões do Tipo A, pelas próprias palavras do cavaleiro (a
negrito):
8.“[… que fizeste ao teu vinho?]
9. Inda agora o bebi, já não enxergo o caminho”
VM/17 Leite (1960) 108-109
Também a Sequência II do Tipo A, que informa da aproximação de um cavaleiro
pode considerar-se como narrativa, se abrir a versão:
1.”Já lá baixo bem o Jorge montado no seu cabalo.”
VM/92 Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 119
No entanto, a mesma pode estar incluída no diálogo com a mãe, como no caso
abaixo, no qual uma das protagonistas (não se sabendo qual delas) seria o enunciador:
1.“- Tu que tens, Juliana? Passas a vida a chorar.
2. - Eu nada, ó minha mãe, o D. Jorge vai casar.
3. - Já 'li vem o D. Jorge no seu cavalo assentado.”
VM/17 Leite (1960) 108-109
de constituir así los elementos fundadores del enunciado-discurso”. A desembraiagem actancial consiste
em disjuntar um “não-eu” do sujeito da enunciação e projectá-lo no enunciado, a desembraiagem
temporal postula um “não-agora” distinto do tempo da enunciação e a desembraiagem espacial opõe um
“não-aqui” ao lugar da enunciação. Cf. Greimas, Courtés [1990] - (embraiagem, pp. 138-141;
desembraiagem, pp. 113-116).
300
Estas tendências, ressalvamos, carecem de estudo percentual comprobatório.
115
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
As versões de Silvana apresentam, no geral, um prólogo narrativo curto, seguido
do diálogo pai/filha, e as de Delgadinha apresentam, basicamente, três tipos de começo:
introdução narrativa/descritiva da situação “um pai enamorou-se da filha”, o mesmo
tipo de introdução seguida do diálogo entre pai e filha, ou apenas a proposta directa do
pai, sem prévia explicação. Quanto à Sequência II, pode ser enunciada por um narrador
ou pela voz do pai, havendo também casos em que se funde com a Sequência I,
condensando ambas em versos narrativos:
1. “Um conde tinha sete filhas, todas sete mandou chamari,
2. Dilgadinha era a mais fina, ele pensou em enganari.
3. Ele a mandou fechari sete meses e alguns dias,
4. Ela era insultada com palavras de tiranias.
5. Dava-le pão por onça e água de peixe salgado,
6. Ele a mandou fechari na torre mais alta que tinha.”
D/223 Cruz (1995) 216
A Sequência III pode ser precedida de versos, em número variável, que narram os
movimentos da jovem dentro do local onde está fechada, bem como cada um dos seus
pedidos de água:
7.”Assubiu a uma janela mais alta que ali havia,
8. avistou a sua mãe na varanda de a cozinha.”
[……………]
13.“Assomou a outra janela, a mais alta que havia,
14.avistou suas irmãs na varanda de a cozinha.”
[……………]
19.”Assomou a outra janela, a mais alta que ali estava,
20.avistou o seu pai assubindo uma escada.”
D/244 Sardinha VI (1997)
Visto que o Desfecho é, normalmente, narrativo, poder-se-á considerar que este é
o romance do corpus com maior incidência de versos narrativos.
Também as versões de Gerinaldo são maioritariamente dramatizadas e a presença
de versos narrativos dá-se, sobretudo, precedendo a Sequência II, com um narrador a
116
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
especificar a hora do encontro marcado pela infanta ao pajem, enquanto a Sequência III
é, geralmente, manifestada num único verso longo, como abaixo:
10.“Deitaram-se ambos na cama, como mulher e marido”, G/37 Leite (1958) 307-308
A Sequência IV é, regra geral, narrativa e, nela, um narrador omnisciente descreve
o sonho do rei e a procura/descoberta dos dois amantes.
5.
As “falas” das personagens
Uma vez que, muitas vezes, a intriga é quase integralmente dramatizada, dir-se-á
que a narrativa se organiza através das “falas” das personagens 301. O modo dialogado,
por si próprio, torna simultâneo o tempo da enunciação com o tempo da acção e o
ouvinte/leitor terá a impressão de estar assistindo ao desenrolar dos eventos, tal como
em teatro. Há neste paralelo, no entanto, algumas questões a considerar.
Aguiar e Silva distingue o texto dramático, integrado no modo literário do drama,
do texto teatral, que, nas suas palavras é “um específico texto espectacular”. Segundo o
autor, o texto dramático é “constituído por um texto principal, isto é, pelas réplicas, pelos
actos linguísticos
realizados pelas personagens que comunicam entre si …. e por um texto
secundário, formado pelas didascálias ou indicações cénicas”.302
María del Carmen Naves considera o “texto literário” e o “texto espectacular”
como aspectos (e não partes) do texto dramático e faz as seguintes definições,
distinguindo claramente “acotaciones” (que traduzimos por “anotações” e equivalerão a
indicações cénicas) de “didascalias”303:
“… llamaremos diálogo al habla de los personajes, escrita en el texto y realizada
verbalmente en la escena; acotaciones, al habla del autor, que se incluye como anotaciones al
301
Preferimos esta designação a réplicas, termo mais conotado com o texto teatral, precisamente para
distinguir duas manifestações literárias, que, embora com semelhanças, diferem entre si.
302
Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva [2002], Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 604624.
303
Adoptamos esta distinção, que nem sempre é feita em outras obras consultadas, por nos parecer melhor
conformar-se às características de um objecto de estudo sem suporte escrito, os romances orais.
117
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
diálogo en el texto escrito, y que no pasa verbalmente a la escena, pues se sustituye por sus
referencias, y didascalias a las indicaciones que, sobre hechos escénicos, puedan encontrar-se
en el diálogo, y que pasan a la representación en forma verbal, como parte del diálogo, y en sus
referencias, como las acotaciones”.304
De certo modo, poderemos considerar uma aproximação do texto romancístico ao
texto teatral, com as instâncias de comunicação a serem levadas a cabo, no primeiro
caso, entre o produtransmissor e o seu ouvinte, e no segundo, entre actor e espectador,
que assim são correspondentes.
A situação de representação ou performance do texto teatral é que não
corresponde à situação do texto romancístico, que não implica, necessária e
exclusivamente, a representação para um público; o romance poderá ser cantado para
fruição própria ou em contexto laboral, como cantiga de trabalho (lembremo-nos dos
romances como “cantigas de segada”). Mesmo se cantados para outrem, os signos
proxémicos (distância e movimentos das personagens), os signos do actor (penteado,
roupas, pinturas) e outros signos como o cenário, os adereços, a luz, a música ou outros
sons)305 não ocorrem, como em teatro; Nos romances, aqueles signos submetem-se à
oralidade e, em termos de performance, teriam mais importância, embora possam ou
não ocorrer, os signos quinésicos (mímica de rosto e gestos de mãos e corpo). Não se
trata, pois, na verdade, de teatro, mas de um poema narrativo que adopta algumas
estratégias comunicativas daquele306.
Se a acção dramática, segundo Carlos Reis, “dispensa as intervenções descritivas
levadas a cabo na narrativa pelo narrador […]. Quando muito, é no texto segundo […] da obra
304
Cf. María del Carmen Bobes Naves [1997], Semiología de la Obra Dramática, Madrid,
ARCO/LIBROS, 1997.
305
María del Carmen Naves relaciona estes signos que, juntamente com a palavra e os signos paraverbais
(tom, timbre, ritmo e, talvez, intensidade), acompanham a acção no cenário teatral. Cf. María del Carmen
Bobes Naves, op. cit.
306
Para este assunto, remetemos para Ponte [1987].
118
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
dramática que se exerce essa função descritiva …” 307 , nos romances a palavra, melhor
dizendo, uma única voz, fisicamente enunciada pelo produtransmissor, deverá integrar,
com eficácia, indicações cénicas, informativas de espaço, lugar e tempo, bem como
didascálias referentes a qualquer situação ou incidente não passível de ser visto/ouvido,
fazendo-os conhecidos do ouvinte/leitor, como se um único actor desempenhasse todos
os papéis.
Assim, a mesma voz, assumindo todas as personagens que nele intervêm, instituise como narrador, tanto extra como intradiegético. Um único sujeito de enunciação
reproduz as estruturas dialógicas que se dão entre os sujeitos enunciadores das “falas” e
que são as personagens dos romances.
20.“E pôs seu punhal entr' ambos, e foi falando baixinho.
21. Ao despois acordam eles, do seu sono bem dormido.”
G/5 Azevedo (1880) 63-65
O mesmo sujeito encarrega-se das funções narrativas/descritivas, pois os
romances, sendo de natureza narrativa, contam com alguns apontamentos a funcionarem
como indicações cénicas:
1.“Era meia-noite em ponto, a uma porta batiam.”
BF/8 Pires (1885g) XXI
1.“Lá vai subindo D. Jorge no seu cavalo montado,
2. Lá estava a D. Julieta no seu sofá encostada.”
VM/101 Ferré (1987a) 48
1.“Estando dona Silvana no seu quarto bordando,
2. seu pai que lhe aparecia, d' amores a acometia.”
D/6 Nunes (1900-1901) 171-173
307
Cf. Carlos Reis [1995], O Conhecimento da Literatura, Coimbra, Almedina, 1995.
119
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
No quadro abaixo, listamosas personagens principais e imprescindíveis à intriga
dos romances do corpus (no sentido da sua canonicidade no romance) e outros que
enunciam “falas” 308.
Romance
Actores principais
Outros
Bernal Francês
Marido e Mulher
Veneno de Moriana
Rapariga e Cavaleiro
Silvana
Pai, Filha, Mãe
Delgadinha
Pai e Filha, Mãe, Irmãos
Outros familiares, criados
Gerinaldo
Infanta, Pajem, Rei
Conselheiros, outro pajem
Mãe (Tipo A)
As “falas” integram didascálias, pois com elas as personagens, enquanto
instâncias da enunciação, contam o que se está a passar (a), o que passou anteriormente
(b) ou anunciam o que vão fazer (c):
(a): 8.“Trago a minha vista turva, já não vejo bem o caminho.”, VM/29 Garcia (1965)
196-197
(b): 1.”Estando eu na minha cama, estando no melhor dormir
2. Espadas ouvi bater, espadas ouvi tenir”, BF/ 113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38
(c): “Enquanto eu ponho a mesa, um copo vou deitar”, VM 15 Leite (1960) 106-107
Também as atitudes tomadas pelas personagens são comunicadas pelas “falas” de
outras personagens:
1.“- O que tens, ó Juliana, qu'estás tão triste, a chorar?” , VM/36 Fontes (1979) 121-122
Não havendo representação cénica, portanto, é assim que as “falas” comunicam o
que, em cena, implicaria audição ou visão:
8.“- Que passadinhas são estas qu'ê sinto à minha ilharga?”, S/20 Ferré (1982) 210-211
308
Não tivemos aqui preocupações onomásticas e excluímos os “figurantes”, para recorrer à terminologia
teatral, que não enunciam “falas”; em Outros, incluímos personagens que aparecem ou não nas versões,
sem prejuízo para o romance. Em Delgadinha, note-se, embora mãe, irmão, irmãs, tias, criados (e outros
que surjam nas versões) sejam, cada um deles, um actor, a “família” actua como “a personagem que nega
a água”, pelo que a tomamos, aqui, em conjunto. Não considerámos, neste quadro, outras personagens
introduzidas aquando de contaminações com outros romances.
120
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
5.“- Já lá vem o seu D. Jorge, em seu cavalo montado.”, VM/20 Leite (1960) 110
6.“- O que tendes vós, Silvana, que assim vens agoniada?”, S+D 5 Pires (1885a) e Pires
(1885b) V
Os enunciados actualizados nas “falas” das personagens são, com frequência,
enunciados explícitos, com uma função informativa, referencial, de acordo com o que
diz Fernanda Fonseca: “É a tentativa de captar e representar as implicações temporais do agir
humano que determina a diversidade de formas assumidas pelo verbo – os tempos verbais”309.
Os tempos verbais, a revelar as intenções de quem os usa, abrem, pois, vastas tramas de
significação.
Segundo Kerbrat-Orecchioni, “les comportements langagiers peuvent refléter certaines
relations de pouvoir existant entre les interactants, mais aussi les confirmer, les contester, et
même les constituer”
310
. De facto, os enunciados verbais reflectem as relações de poder
que lhes são exteriores, embora a situação comunicativa condicione a sua formulação,
pelo que existem diversas formas de dar uma ordem. Se, em Gerinaldo, a categoria
“rei” permite o valor imperativo explícito da ordem “casarás”, já nos romances de
incesto, é a categoria “pai” que transforma o pedido que surge em versões de
Delgadinha (“Queres ser [minha namorada?])”, que indicaria um contexto amoroso,
numa ordem, visto que a categoria corresponde a alguém com estatuto dominante e
poder para retaliar, em caso de não satisfação do pedido, o que se vem a verificar na
intriga do romance. Veja-se, abaixo, a diferença aparente entre os dois primeiros
exemplos e o terceiro, o a) em tom de “convite” e o b) de “sugestão”, mas com o
mesmo valor da ordem explícita do imperativo em c):
a): 1.”- Queres tu, filha Faustina, ser a minha namorada?”, D/1 Braga (1867) 181-183
b): 4.”bem podias tu, Aldina, seres minha namorada.”, D/89 Ferré (1982) 211-212
309
Cf. Fernanda Irene Fonseca [1992], Deixis, Tempo e Narração, s.l., Fundação Eng. António de
Almeida, 1992, p. 165.
310
Cf. Kerbrat-Orecchioni [1986], p. 250.
121
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
c): 3.”- Aldina, minha Aldina, vais ser minha namorada.”, D/105 Ferré (1982) 223-224
Para que estes enunciados sejam interpretados como uma ordem, é necessário que
haja uma ligação institucional entre os interlocutores e que o ouvinte saiba que quem os
emite é seu superior hierárquico311, sendo a relação, neste caso, familiar. A resposta de
Delgadinha pode ser directa (5.”- Isso não, ó meu papá, isso não, não pode ser”, D/26 Frias
(1956) 570-571), mas mesmo que não o seja (5.”- Deus do céu nã quer isso nem a hóstia
consagrada.”, D/235 Xarabanda (1995) 32-33) será
interpretada como uma recusa à
obediência, o que lhe vale um cruel castigo. Em Silvana, onde o pai sugere ou pede,
mais que ordena, a resposta da rapariga à proposta deste, articulada no condicional (“lá
passar, passaria [a noite com o pai]), subentende uma aquiescência que só não se
concretiza por receio das penas do Inferno (equivalendo a “satisfazer os desejos do pai
de boa vontade se não fosse o medo do castigo divino”).
Já os desfechos “morte da adúltera”, em Bernal Francês e “casamento”, em
Gerinaldo, se não são discursivamente actualizados, são realizados pelos actos de fala
dos seus mandantes: no primeiro, metaforicamente, o marido diz “dar-te-hei
[gargantilha/vestuário vermelho]” e, no segundo, o rei ordena ao pajem “casarás [com a
minha filha]”.
Tais relações de poder não só são constituídas e confirmadas pelos
comportamentos linguísticos, como ainda estes podem contestá-las, como acontece em
Gerinaldo. Confrontado com a proposta da infanta para que passe a noite com ela, o
pajem, geralmente, exprime as suas dúvidas quanto à veracidade de tal intenção e fá-lo
pela alegação de ser um simples criado: “- Vós como sois ama minha, senhora, zombais
comigo?”, G/2 Braga (1867) 18-20. Note-se que, na maioria das versões, a infanta faz a
pergunta de maneira directa (2.”queres tu, ó Gerinaldo, à noite dormir comigo?”, G/105
311
Cf. José Pinto de Lima [2007], Pragmática Linguística, Lisboa, Caminho, 2077, pp. 31-32.
122
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Fontes I (1987) 471-472), como se efectivamente estivesse a perguntar ao pajem o que ele
quer (à semelhança do que se passa em Silvana, cuja fórmula usada pelo pai propondo
incesto à filha é, aliás, a mesma [“queres”]). Em alternativa, a infanta faz a proposta
(2.”bem podias, Gerinaldo, passar a noite comigo.”, G/7 Fontes I (1987) 472) através de
expressões que atenuam o implícito acto directivo, como “bem podias”, embora lho
possa “pedir” explicitamente (2.“eu te peço, ó Gerinaldo, que durmas uma noite comigo”,
G/101 Ferré (1987) 80-81). No entanto, a “fala” da infanta, habitualmente com valor de
sugestão/ordem, é transformada, noutra versão, numa espécie de provocação irónica,
transpondo para o pajem as suas próprias intenções (2.“quem te dera, Gerinaldo, à noite
dormir comigo”, G/111 Fontes I (1987) 475) , o que leva este a proferir uma resposta bem
mais brusca e desrespeitosa (3.“Eu como sou criado, não esteja a zombar comigo”) que o
habitualmente humilde “Senhora, zombais comigo”. Se, também, é a posição
hierárquica do rei que permite a este perguntar directamente a Gerinaldo de onde vem,
após o ter visto adormecido ao lado da filha (15.”- Donde vens, ó Gerinaldo, donde vens tão
espalvorido?”, G/112 Fontes I (1987) 476), sem qualquer das fórmulas de delicadeza
usadas para evitar a indiscrição 312 , o acto de perguntar deixa ainda ao pajem uma
hipótese de escapar ao castigo, pois o rei evita a acusação directa de um facto que
conhece; o locutor-rei atenua o implícito “acto ameaçador” para com o
alocutário-pajem, evitando acusá-lo explicitamente. Este, por sua vez, tenta “salvar a
face” respondendo com evasivas, mas a réplica irónica do rei informa-o de que sabe o
que se passou e dá-lhe a ordem explícita de casar com a filha.
Verificam-se, nestes diversos tipos de ordem, oscilações e variações formais e
estilísticas que modulam a força ilocutória do que se diz, reflectindo diferenças
312
Cf. Maria Helena Carreira [1995], “A Delicadeza em Português: para o estudo das suas manifestações
linguísticas”, em Maria Emília Ricardo Marques, Sociolinguística, Lisboa, Universidade Aberta, 1995,
pp. 207-218.
123
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
resultantes das atitudes dos sujeitos enunciadores 313 . É deste modo que outras
“perguntas” feitas pelas personagens destes romances surgem como formas de fazer
saber ao interlocutor que quem as faz tem o direito de as fazer. Estão neste caso a
pergunta da mulher ao suposto amante, em Bernal Francês (9.”Que tens, Bernal Francês,
que não te viras para mim?”, BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 ) a qual, aludindo a um
comportamento anterior não passivo, é uma forma de reafirmar os seus direitos e
expectativas de amante. O mesmo se passa com a pergunta que Moriana faz ao
cavaleiro, num tom quase casual (7.”- É verdade, ó seu D. Jorge, que você se vai casar?”,
VM/20 Leite (1960) 110), mas que subentende o direito de a fazer, que se pressupõe ter
sido ganho anteriormente.
As “falas” das personagens assumem, pois, a dupla função de comunicação
interna, relativamente a elas próprias, e externa, dirigida ao ouvinte/leitor. Com
frequência, também se encarregam das funções laudatórias ou condenatórias usualmente
executadas em post scriptum; em Delgadinha, cuja protagonista é alvo de aprovação
devido à resistência ao pai, o qual, por sua vez, é condenado, as diversas personagens
assumem-se como porta-voz destes sentimentos e as suas “falas” invocam a
solidariedade divina para a filha e o diabo para o pai:
a) - Delgadinha:
36.“- Eu não sou a sua amada nem também a sua filha,
37.Sete diabos o levem p'ra um tanque d'água fria,
38.Que eu fico acompanhada de sete anjos e da Virgem Maria.”
D/54 Leite (1960) 73-74
b) - a mãe:
32. “....................... sua mãe l'alumiava :
313
“…se as modalidades ilocutórias surgem dependentes da relação EU -»OUTREM e do grau de
implicação, de responsabilização no discurso estabelecido por EU, também elas deixam transparecer, ou
manifestam explicitamente, tipos específicos de coordenadas e de relações, que, pelo enunciado, o sujeito
enunciativo estabelece com o mundo”. Cf. Maria Emília Ricardo Marques [1995], Sociolinguística,
Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 227.
124
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
33.- Morreste, Faustina, morreste, minha filha tão honrada,
34.Tu' alminha está no Céu, d'anjinhos arrodeada;
35.A de teu pai no Inferno, de tanto que a clamava!”
D/34 Leite (1960) 46-47
c) - o próprio pai:
21.”- Morrestes, filha, morrestes po seres ua mulher honrada,
22.A tua alma stá santa e a minha stá exquemungada.
23.Ó que berdade tão certa, dita plo Padre Eterno:
24.A tua alma stá santa, a minha'arde no Inferno.”
D/71 Pereira (1970) 246-247
Na Sequência III de Bernal Francês, e não sendo de crer que um “amante” não se
certificasse previamente da ausência do marido, o último item da fala da mulher (estar o
marido longe – 11.”Tu não temas o meu marido, que ele está para o Brasil”, BF/39 Leite
(1958) 408-409) na série “não temas a”, serve simultaneamente a tranquilizar o
interlocutor e a fazê-lo mudar de atitude e, externamente, a fazer saber ao ouvinte /leitor
de que existe um marido, o que até então não fora explicitado. A distância e o tempo de
ausência são referidos, mas ressalta o contraste entre a informação quase sempre vaga314
do local onde o marido se encontraria (“longes terras” ou “largas léguas”) e a
enunciação quase minuciosa das variadas pragas que lhe roga. Estas podem considerarse um aparte da personagem, dentro das suas “falas”.
De facto, além do que as personagens se comunicam mutuamente, também se
manifestam em apartes, tornando-se estas estratégias de uma explicitação do seu ponto
de vista em intenção de terceiros, substituindo-se a um narrador omnisciente. Segundo
Ferré, as funções dos apartes das personagens são:
314
Por vezes identifica-se mais explicitamente o local onde o marido se encontra: o Brasil, o Maranhão,
uma romaria, a Serra do Marão, todos tendentes referidos a uma considerável distância.
125
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“sublinhar um momento capital da acção, tornar explícito um desejo que o espectador
(neste caso, o ouvinte do romance) poderia não perceber, e ainda a de estabelecer o contraste
315
entre as palavras pronunciadas e o que vai no íntimo da personagem que as pronuncia”
.
Pragas ou maldições são fórmulas de aspecto mágicos que se destinam a atrair
qualquer mal ou infelicidade sobre aqueles a quem se destinam. São, muito
frequentemente, emotivas e relacionadas com o binómio amor/ódio, recorrendo a
imagens fortes e hiperbólicas316 e é assim que, na referida sequência de Bernal Francês,
as pragas que a mulher profere têm a função de comunicar os seus sentimentos em
relação ao marido. Consistem elas em diversas expressões explícitas do modo como lhe
deseja a morte, tal como de que “o matem/cativem/detenham os mouros; os peixes do
mar o comam; as ondas do mar o levem; a peste o mate; o trespassem/o passem; maus
lobos/bichos o comam; mau bicho (ou corvos) lhe coma os olhos, a serpente o
coração….”. A violência dos sentimentos faz especificar que a morte há-de ser devida a
“adagadas”, “estocadas”, “facadas” (estas seriam tão fundas “que o sangue lhe chegue
aqui”) e também a armas de fogo, com “balas”, sejam “uma”, “sete”, “ mil”, “cinco mil”
ou “sete mil”, especificando-se que lhe “bazassem” o coração e, mesmo, a uma
misteriosa “entre coladas” (BF/24 Landolt (1917) 81-82 ). Elas servem, sobretudo, para
frisar que os sentimento que nutre pelo marido são negativos (12. ”Sete facadas o matem,
que o sãigue le chegue aqui!”, BF/39 Leite (1958) 408-409) e implicam sempre o desejo de
que ele não regresse, contrastando com o lirismo muitas vezes presente na sequência II,
ao descrever os cuidados que gostaria de prestar ao amante (3.- S'eu soubesse a ser D.
315
Cf. Ponte [1987], p. 123. O autor dá como exemplo a fala da mulher, em Bernal Francês, na qual esta
parece dirigir-se a um público, dizendo: “S’eu soubesse de ser D. Francisco, a porta l’eu ia abrir…”. A
versão tem o nr. 186, em Ferré [1982], p. 165 e é, no nosso corpus, a BF/68 Ferré (1982) 165-166.
316
Pragas ou maldições são fórmulas de aspecto mágicos que se destinam a atrair qualquer mal ou
infelicidade sobre aqueles a quem se destinam. São, muito frequentemente, emotivas e relacionadas com
o binómio amor/ódio, recorrendo a imagens fortes e hiperbólicas. Cf. Olaf Deutschmann, “Formules de
malediction
en
espagnol
et
en
portugais”,
disponível
em
www.cvc.institutocamoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/10/pag215_272.pdf, arquivo acedido na Internet em 27 de Janeiro
de 2010.
126
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Francisco, a porta lhe ia abrir, // 4.lavava-lo em água de rosas, perfumado em alecrim, //
5.dava-lhe camisas alvas, deitava-o a par de mim.”, BF/61 Ferré (1982) 160).
Outro bom exemplo de aparte de personagem encontra-se em uma versão de
Veneno de Moriana. Dentro da sequência em que Moriana diz ao cavaleiro que vai
buscar-lhe um copo de vinho, o verso 7 diz, figuradamente, que está grávida (estar com
a “barriga redonda”):
5. “- Assentai-te aqui, ó Jorge, enquanto bou ó sobrado,
6. Buscar um copo de binho que te tenho lá guardado.
7. Assim te bás e me deixes com a barriga redonda...
8. Ou hades casar comigo ou m' hades pagar a honra.”
VM/92 Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 119
Trata-se de uma variação que preferimos registar neste momento, não comum,
pois, regra geral, as versões do romance apenas aludem (e quando o fazem) a um
compromisso matrimonial não cumprido; este verso pode ser, então, considerado um
aparte da personagem com as múltiplas funções de que fala Ferré, como atrás citado,
tanto mais que o interlocutor parece não tomar conhecimento da ameaça explícita do
verso 8, vindo a beber o vinho oferecido.
Os apartes emitidos pelas personagens dão conta dos sentimentos presentes, mas
também podem ter uma função anaforizante, como é o caso de versão de Gerinaldo
contaminada com D. Pedro Pequenino; a mãe, ao ver o filho preso manda-o cantar, mas
emite o seguinte comentário (a negrito):
32.“- Vosso pai, quando morreu, pediu (m'estou alembrando;
33. as lágrimas dos meus olhos o rosto m'estão lavando)
34. qu'eu vos desse criação e entregasse a bom senhor.”
G/52 Pestana (1965) 93-94
Noutra perspectiva, também o Dilema do Rei, em Gerinaldo, sendo um monólogo
(as outras duas personagens estão a dormir, portanto não o ouvem), é um aparte da
127
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
personagem, visto que se destina a informar o ouvinte/leitor das alternativas que se lhe
apresentam (matar o pajem ou a filha), bem como, ao ponderar sobre as consequências,
a justificar a implícita decisão de os poupar, o que implicará o desfecho do casamento.
A ironia é outro dos recursos com que as falas das personagens transmitem
significações que ultrapassam o que é dito e cujo sentido se dirige tanto ao interlocutor
como ao ouvinte/leitor. Vejam-se os casos seguintes.
Em Bernal Francês a morte é o fim inevitável da adúltera, que não é expressa
literalmente, mas anunciada pelo marido como uma oferta (de vestuário/adornos de cor
vermelha) que, na maioria das versões, está envolta em grande dramatismo,
entendendo-se imediatamente (ouvinte/leitor e personagem-mulher) o sentido trágico da
metáfora. Porém, não deixa de conter uma componente pesadamente irónica, como se
tal roupagem se tratasse de um presente trazido pelo marido, ao regressar de longe, para
a sua mulher. A naturalidade de tal gesto está presente na pergunta explícita da adúltera
ao marido, em certas versões317, vindo a ironia da situação a tomar, no diálogo, uma
feição um tanto burlesca:
17.”que me trazes, mê marido, o que me trazes dos Brasis?
18. Gargantinhas encarnadas ….”,
BF/71 Ferré (1982) 168
A ironia agrava-se ainda, tornando-se sarcasmo e o marido dirá:
13.“- Deixa-te vir a manhã, qu’ele te será perdoado!”, BF/35 Leite (1958) 403-404
O sarcasmo da resposta reside no facto de o perdão não vir a ocorrer e disso não
há dúvidas, como o confirma a imediata didascália do informante: “E matou a mulher”.
317
Ver Anexos. Grupo B - B.4. BERNAL FRANCÊS - Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação.
128
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Como um sarcasmo, igualmente, deve ser entendida a resposta do pai de
Delgadinha ao pedido de água, pelo subentendido de ser a honradez da filha (nosso
sublinhado) a causa do tormento que ele próprio lhe inflige:
23.“- Como te hei-de dar auga, minha filha tão honrada?”, D/37 Leite (1960) 50
Também Moriana sabe como ser irónica, usando a expressão “tenho vinho
guardadinho” (VM/19 Leite (1960) 110) para dar ao cavaleiro, bem como no próprio
convite para a “merenda” (Tipo B), uma actividade aprazível mas que, afinal, se revela
ser composta por um “presente envenenado” – o vinho oferecido.
Em Gerinaldo, igualmente, o rei brinca ironicamente com o pajem que tenta
ludibriá-lo com o argumento de vir de “caçar a rola”, ao retomar-lhe as palavras e
retorquindo que a tal “rola” foi “criada no seu trigo”.
Diz Roger Wright, em artigo que questiona se a presença do humor no
romanceiro não teria contribuído para a sua pervivência:
“Humour is not the same thing as frivolity; serious themes can be developed with a sense
of humour, and where that happens, it is usually to their advantage”318.
Por nosso lado, entendemos que a perspectiva irónica, afinal uma forma de
humor, quer se destine ou não a fazer sorrir a audiência, empresta ao romance um
sentido que, sendo ambíguo, certamente o aprofunda.
318
Roger Wright [2009], “Humour in the oral Romancero: how would we know?”, The Bulletin of
Hispanic
Studies,
Vol.
86,
Nr
1,
2009,
disponível
na
Internet
em
http://muse.jhu.edu/journals/bulletin_of_hispanic_studies/v086/86.1.wright.html, arquivo acedido em 18
de Janeiro de 2010.
129
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO IV
PARA UMA PERSPECTIVA AXIOLÓGICA NOS ROMANCES
1. Delimitação de âmbitos
Neste estudo da significação narrativo-dramática nos romances orais tradicionais,
temos vindo a sustentar que estes são dotados de elementos implícitos que lhes
organizam o sentido. Entre estes, e visto que as composições de transmissão oral, tal
como as escritas, se inserem nas práticas sociais, encontram-se os modelos sócioculturais das comunidades transmissoras, entendidas, no seu sentido mais amplo, como
os valores, sociais, familiares e religiosos, que as regem. Trata-se, então, de procurar a
mundividência implícita nos romances, enquanto percepção e concepção do mundo.
A primeira questão que se levanta é a de estabelecer um nexo significativo entre
os textos estudados e um modelo de ideologias e valores, surgindo então o problema de
delimitar estes conceitos relativamente ao romanceiro, dado que haveria que conhecer
previamente os contextos sociais em que se inserem.
Em relação a estes, as perspectivas dos críticos incidiram, com frequência, na
relação entre o mundo retratado nos romances e a interpretação da sua função social.
Para Teófilo Braga, era “evidente que as situações sociais e morais que aparecem
nestes romances, quer sejam portugueses, espanhóis, franceses ou italianos, representam um
estado de atraso bárbaro, e inferior ao que pela história se sabe dos povos helénicos, itálicos e
célticos”. E acrescenta: “pela monstruosidade das situações morais os romances correspondem
a uma sociedade bárbara, inferior ao que se conhece da mais antiga constituição de todos os
ramos áricos”.
Teófilo exemplifica o seu ponto de vista com os romances, entre outros, de
Silvaninha e Bernal Francês, nos quais, diz, “há um estado de consciência compatível com
131
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
uma civilização extremamente rudimentar, e as catástrofes excedem as emoções de uma
sensibilidade delicada”. De acordo com esta concepção, os romances não teriam sido
entendidos, mas “abandonados ao automatismo popular, adaptando as situações violentas aos
novos costumes”
319
.
A. do Prado Coelho notará que os românticos se entusiasmariam com o
romanceiro pelo que nele havia de “senso humano” o qual, “com uma intuição clara e
robusta de primitivo, vê e expõe no homem, ainda que só de perfil” a heterogeneidade dos
homens e o império dos “instintos brutais”, capaz das maiores violências. O povo, esse,
não se poderia rever nas personagens demasiado “grandes” dos romances, mas, sendo
“bom apreciador e bom julgador do humano”, teria amado o romanceiro pelo “abundante
pasto para a vida dos sentidos”, tanto quanto pelas “formas específicas” da composição e
ritmo320.
Uma orgânica social do romanceiro é desenhada por Paulo Caratão Soromenho
que, baseando-se no Romanceiro Português de Leite de Vasconcellos, faz o
levantamento das “exigências basilares”, “actividades económicas”, “vida política e cultural”,
para concluir sobre o “tipo de orgânica social” nos romances. A lista é longa (“1200
vocábulos, verbetados do romanceiro leitiano”) e, segundo o autor, reflecte a visão de uma
“sociedade rural, pobre, ‘antiga’” sobre a vida das classes elevadas e retrata uma sociedade
“cientificamente paupérrima, tecnicamente rudimentar, literariamente deficiente”. Soromenho
começa por relacionar a origem popular dos “autores anónimos medievais e modernos”
com a concepção que estes têm da “vida dos grandes”, aos quais são atribuídas
“características singulares, com estranhos costumes, insensatos conceitos morais, sentimentos
319
Cf. Teófilo Braga [1994], O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, Vol. II, Lisboa,
D. Quixote, 1994, pp. 290-294. Importa notar que, embora haja em Teófilo Braga a assunção implícita do
atraso “bárbaro” do povo que, conservando os romances, se comprazia com tais situações, o autor observa
e refere, já, o fenómeno da variação, embora se lhe refira como uma adaptação aos “novos costumes”.
320
A. do Prado Coelho [1943], introdução, selecção de textos e notas de, O “Romanceiro” de Garrett,
Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1943, pp. 25-48, “(III – Notícia sobre o romance popular português)”.
132
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
destrambelhados e ideologias extravagantes”. Esta visão de sociedade teria por base “o
regime monárquico (real ou imperial) absolutista, frequentemente degenerado na tirania ou
despotismo – dado que a vontade do chefe é caprichosa”, assente em uma hierarquia de
características medievais, em que a “força se sobrepõe ao direito” e na qual se encontra
uma organização familiar na qual o incesto é frequente, acreditando que “por defeituosa
visão que os autores populares teriam da sociedade elevada, por um lado, e por certo realismo,
por outro”
321
.
Quanto às ideologias, na perspectiva mais geral de Teun van Djik, são definidas
como “sistemas básicos de cognições sociais fundamentais e como princípios organizadores
das atitudes e das representações sociais comuns a membros de grupos particulares”322.
No que diz respeito ao romanceiro tradicional, diz Diego Catalán que este “no
recoge el ideário de las classes dominantes” e que a propriedade de abertura “[…] permite la
adecuación de las narraciones romancísticas a la ideologia del ‘pueblo’ cantor que las transmite
y re-crea” 323 . Ao empregar o termo “adecuación”, Catalán estabelece uma implícita
diferenciação de ideologias de grupos; para o autor, a ideologia do povo que canta,
transmite e recria o romanceiro, “(aunque no carezca de contradicciones) incluye siempre, de
una u otra forma, aspiraciones a una reorganización mas justa de la realidad social y a una
profunda revisión del sistema de valores en que se sustenta el orden, injusto, establecido”.
Já Lorenzo Velez 324 discorda de uma visão de mera impugnação, visto que o
romanceiro “integra una pluralidad de contenidos que abarcan pautas y comportamentos de la
cultura dominante, al lado de uma especial cosmovisión de los sectores que lo usan” , mas
321
Cf. Paulo Caratão Soromenho [1982], “A Organização da Sociedade no Romanceiro Português”,
Biblos, Vol. LVIII (1982), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1982, pp. 199-206.
322
Adoptamos esta definição visto que o que aqui nos interessa não é levantar questões de ideologias do
foro filosófico, mas encontrar uma sua formulação num enquadramento de análise do discurso, fazendo
notar que, citando ainda o autor, as ideologias “controlam indirectamente as representações mentais
(modelos) que formam a base interpretativa e a ‘inserção’ contextual do discurso e respectivas estruturas”
Cf. Teun van Djik [1997], “Semântica do discurso e ideologia”, em Emília Ribeiro Pedro, organização de,
Análise Crítica do Discurso, Lisboa, Caminho, 1997, pp. 105-168.
323
Cf. IGR 1.A, 1984, p. 21.
324
Cf. Velez [1989], pp. 93-100.
133
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
reconhece-lhe uma consciência reivindicativa embora, simultaneamente, uma aceitação
de valores, aspirações de prestígio social e desejo de melhoria de nível económico.
Por sua vez, João David Pinto-Correia, que sublinha que o objecto do seu
estudo 325 se situa no domínio da literatura dita popular tradicional, que “liberta” as
figuras de Carlos Magno e dos Doze Partes de França dos referentes “históricos e
“literários”326, confere aos termos “axiologia” e “ideologia” os sentidos propostos por
A. J. Greimas e J. Courtés, verificando que, na identificação dos “valores básicos” dos
romances carolíngios, uma ideologia predominante é a “/aristocrática-guerreira/”, a qual,
diz, “vai actualizar sintacticamente valores seleccionados de entre os disponíveis num universo
axiológico colectivo (digamos o da mundividência medieval com seus prolongamentos na
actualidade” 327. Noutra obra328, o autor relaciona axiologicamente as linhas fundamentais
de sentido329 com valores do “estrato nobre-cavaleiresco” e religiosos, não encontrando
outros que “se liguem mais estritamente a estratos considerados mais ‘baixos’ da comunidade”
e sugere, como hipótese para que as comunidades rurais tenham “feito suas as histórias de
que esses valores constituem alicerces axiológicos e ideológicos”, um certo fascínio pelo
“outro”, “com classes, costumes, personagens diferentes, mas, apesar disso tudo, também
humanos, dotados das mesmas condutas e sentimentos…”330.
Para António Lorenzo Vélez, “[A]nalizar ideologicamente el romancero en general es
tarea imposible”, pelo que prefere centrar a análise ideológica em âmbitos ou domínios
325
Referimo-nos a RCTOP.
Cf. RCTOP, Vol. 1, pp. 10-15.
327
Os sentidos propostos pelos autores que cita são: “designa-se pelo nome axiologia o modo de
existência paradigmática dos valores, por oposição à ideologia que toma a forma do arranjo sintagmático
e actancial deles”. Cf. RCTOP, Vol. 1, pp. 459-460.
328
Referimo-nos a ROTP.
329
O autor refere, ainda, que os grandes núcleos temáticos Amor/Ódio, Fidelidade/Traição, Vida/Morte se
inscrevem nos valores das classes predominantes do esquema encontrado por George Dumézil como
próprio dos Indo-Europeus (a “estrutura das três funções). Cf. ROTP. As funções que regulam a
organização da sociedade nas civilizações indo-europeias são, segundo Dumézil, a soberana e religiosa
(espiritual), a marcial (força física) e a económica (fecundidade). Cf. Eric Maulin [2006], The IndoEuropean
Tales
of
George
Dumézil,
www.diplomatie.gouv.fr/label_france/English/LETTRES/DUMEZIL/dumez.html, arquivo acedido na
Internet na Internet em 20 de Abril de 2006.
330
Cf. ROTP, p. 40.
326
134
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
concretos, entendendo que “un análisis ideológico del romancero debe delimitar com claridad
un campo narrativo coherente y relativamente homogéneo, esto es um âmbito concreto…”331.
Posto isto, acrescentamos que ao falar da mundividência nos romances, ou de
“valores” e “ideologias”, há que ter em conta que se trata de textos que partilham das
condicionantes das estruturas tradicionais - transmissão oral, num grande alargamento
temporal e geográfico e multiplicidade das versões - e que a atribuição de determinadas
ideologias a contextos concretos poderá ser dificilmente perspectivada, se
considerarmos que as comunidades transmissoras sofrem mutações na forma de viver e
pensar a realidade e elas mesmas são heterogéneas. De facto, as contradições a que
Catalán se refere têm a ver com a diversidade cultural do “povo”332, o qual, segundo
António Gramsci, não é “uma unidade culturalmente homogénea”333, pelo que tais valores,
dentro da mesma comunidade, podem ser manifestados de uma forma aparentemente
paradoxal 334 . Há, ainda, a considerar a falta de referentes históricos, no caso dos
romances novelescos 335 , circunstância que dificulta a sua inserção nos chamados
331
Cf. António Lorenzo Velez [1989], “Ideologia y visión del mundo en el romancero tradicional” em
Pedro M. Piñero et alii, edición al cuidado de, El Romancero. Tradición y Pervivencia a fines del Siglo
XX, Actas del IV Coloquio Internacional del Romancero, Cádiz, Fundación Machado, Universidad de
Cádiz, 1989, pp. 93-100.
332
Não aprofundaremos a conceptualização de “cultura popular” e “cultura erudita”, nem procuraremos
definir o conceito de “povo”, essa “entidade pouco concreta”, nas palavras de João David Pinto-Correia,
em Prefácio (“Uma escrita acerca do povo ou da possibilidade de um discurso etnográfico”) a Alves
Redol [2004], Glória. Uma aldeia do Ribatejo, Lisboa, Editorial Caminho, 2004, preferindo entendê-lo
no âmbito deste trabalho, como comunidade na qual se processa o circuito de transmissão-reprodução do
romanceiro tradicional e que é principalmente rural e não-letrada (adoptamos a definição de João David
Pinto-Correia, em ROTP, p. 15-18).
333
apud Raposo [1997], pp. 22-46.
334
Segundo Teun van Djik, as ideologias são sistemas de cognição social essencialmente avaliativos e
organizam núcleos de esquemas de opinião partilhados por determinados grupos, vindo estes a instanciar
modelos padronizados que formam a base mental dos seus discursos. Os membros de grupos específicos
tendem a expor as ideologias próprias do grupo, no seu discurso oral e escrito; não obstante, este pode
revelar opiniões e atitudes contraditórias, devido a transformações provocadas por factores pessoais ou
pela identificação com outros modelos contextuais. Cf. Djik [1997], pp. 116-121. A troça pode ser um
meio de exprimir opiniões sem que os actos sociais convencionais deixem de ser cumpridos. Veja-se, a
este propósito, o estudo de Paulo Correia de Melo [2005], Anedotas e Outras Expressões de
Anticlericalismo na Etnografia Portuguesa, Lisboa, Roma Editora, 2005.
335
Não retomando aqui a questão das designações e classificações dos romances, lembramos que Pere
Ferré diz que “grande parte dos romances velhos deriva de baladas europeias. A este numeroso grupo de
textos dá-se-lhe também o impreciso nome de novelescos”. Cf. RPTOM, Vol. I, p. 38.
135
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“documentos sociais”336. Os assuntos neles abordados não têm uma natureza histórica
ou noticiosa, mas estão subordinados aos temas mais vastos Amor/Ódio-Vida/Morte,
pelo que, nesta perspectiva, se consideram intemporais. Assim, aos episódios concretos,
focados nessas narrativas, subjaz a universalidade daqueles grandes núcleos temáticos, o
que suscita a Susana Weich-Shahak o seguinte comentário:
“Como en otros muchos casos en el romancero de tradición oral, cabría referirse aquí a
las preguntas formuladas por Jesus Antonio Cid respecto a la fidelidad del romance al relato
histórico, pero también observar qué relevancia tendría una historia de los reyes de España para
una señora sefardí mondando sus habas en la judería de Tetuán. Lo que es evidente es que para
los usuarios del romancero serfadí es más importante lo universal del tema que su exacta
historicidad, de la cual ni siquiera tienen una exacta noción.”.
Referindo-se aos comentários das informantes sobre os desenlaces diferentes de
Gerinaldo (ou seja, se a infanta deveria ou não casar com o pajem, dado o acentuado
declive social entre os dois), a autora demonstra que, para elas, os referentes sociais ou
morais se impõem ao referente histórico e conclui:
“Es decir, que de toda la trama de intriga amorosa y escándalo paleciego, algo sí apuntaba
a un problema diario y vivido tambien en la sociedad de las informantes: el peso del estrato
socio-económico como criterio para la relación amorosa y el matrimonio.”
337
(nosso
sublinhado).
336
Relativizamos o conceito de “documento social” aplicado aos romances, se entendido como retrato de
uma dada época, tal como o entende Rómulo de Carvalho, que encontra registos dos mais diversos temas
de significado social em textos poéticos, desde os cancioneiros galaico-portugueses até ao limiar do 25 de
Abril. Nas palavras do autor, o texto poético será um “documento social” quando portador de “sinais
definidores de uma sociedade determinada”, pelo “assunto de que trata, os termos em que é redigido, a
escolha dos vocábulos que utiliza, a sua ordenação formal, o seu ritmo ou falta dele, a sua
intencionalidade…”. Cf. Rómulo de Carvalho [1995], O Texto Poético como Documento Social, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. Numa perspectiva mais restrita, a categoria de “documento” seria,
quando muito, aplicável aos romances nos quais subsistem referentes históricos (Romances Históricos de
Contexto Peninsular, classificação em ROTP). Esses referentes diluem-se nos Romances Carolíngios e
nos que, mesmo assentando em factos reais, exploram sobretudo o factor sentimental (como os de tema
lendário) e religioso, pelo que os romances serão “documentos sociais” não no sentido de retratarem
concretamente uma determinada sociedade, mas pela sua vertente implícita, que reproduz modelos de
conduta social e moral das comunidades transmissoras, ainda que o possam fazer através das infracções
cometidas.
337
Cf. Susana Weich-Shahak, “Observaciones sobre el romancero sefardí de tradición oral - Motivos
míticos y foco temático”, em http//: parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, arquivo acedido na Internet em 22 de
Novembro de 2006.
136
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Percebe-se, então, que as narrativas tradicionais reproduzem e reflectem o
imaginário colectivo (sagrado ou profano), os valores, as ideologias, os tabus e as
normas sociais e regras de conduta dos grupos que as contam338. Sabe-se, também, que
as comunidades nas quais vivem os romances orais tradicionais se inserem no espaço
cultural ocidental 339 , caracterizado por um tecido social revestido de uma acentuada
hierarquização 340 social e de género e imbuído de uma ideologia judaico-cristã 341 ,
determinando esta uma mundividência que rege os códigos de comportamento sociais e
pessoais. No caso português, estas circunstâncias são observáveis em textos que
revelam os esforços para criar modelos de conduta normativos, em particular no que
respeita ao estrato social não dominante342. A partir do Concílio de Trento, o poder
338
Cf. Holbek, p. 131.
Andrés-Gallego define por “ocidental aquilo que é próprio da cultura formada sobre o classicismo
greco-romano filtrado pelo cristianismo”. Cf. José Andrés-Gallego [1993], História da Gente Pouco
Importante. América e Europa até 1789, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 247. O autor declara
pretender, com esta obra, “traçar a hist ria antropologica das gentes culturalmente ‘ocidentais’ no inal
do Antigo Regime” e nela alude à “antropologia do poder” e à “sociedade como sistema”, fazendo uma
síntese do modo de viver do Antigo Regime, de que ressaltam, muitas vezes, as tensões entre grupos
sociais. Indica uma vasta bibliografia comentada, com leque variado de estudos sobre diversas matérias e
campos culturais nos quais se apoia.
340
Indicam-se, a título de exemplo, duas obras sobre a evolução da cultura portuguesa no tempo, nas
quais se verifica a continuidade de uma dicotomia opositiva entre os estratos mais e menos poderosos na
sociedade portuguesa: António José Saraiva [1950], História da Cultura em Portugal, 3 vols., Lisboa,
Jornal do Foro, 1950 e Maria José Ferro Tavares [1990], coord., Sociedade e Cultura Portuguesas, 2
Vols., Lisboa, Universidade Aberta, 1990.
341
Referimo-nos, em geral, ao carácter pan-hispânico do romanceiro e, em particular, ao caso da tradição
portuguesa. A este respeito, citaremos Miguel Real, que, após apresentar um quadro comparativo das
características básicas dos portugueses em Teixeira de Pascoais, Jorge Dias, Eduado Lourenço e A. José
Saraiva, conclui que “São milhões de pequenos sinais que compõem o corpo religioso da nação e que, em
última análise, espelham a cristalização duradoura de uma mentalidade judaico-cristã entre nós”, embora
dissocie esta dos actos institucionais eclesiásticos. Cf. Miguel Real [1995], Portugal, Ser e
Representação, Lisboa, Difel, 1995, pp.179-187.
342
A intenção por parte do poder hegemónico de instituir um modelo orientador da religiosidade popular
alonga-se no tempo. Refira-se, como exemplo, o propósito corrector de S. Martinho de Braga no século
VI (cf. Aires A. do Nascimento [1997], edição, tradução e comentários de, Instrução Pastoral sobre
Superstições Populares. De correctione rusticorum, Lisboa, Cosmos, 1997) e, recentemente, o seguinte
Directório, que se cita, cujos termos por nós sublinhados subentendem uma oposição mal/bem entre o
popular e o institucional: “Por vezes, as expressões de religiosidade popular aparecem inquinadas de
elementos que não se coadunam com a doutrina católica. Nesses casos, devem ser purificadas com
prudência, por contactos com os responsáveis e com uma catequese atenta e respeitosa, a não ser que
incongruências radicais exijam medidas claras e imediatas”. Cf. Congregação para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos [2003], Directório sobre a Piedade Popular e a Liturgia. Princípios e
Orientações, Lisboa, Paulinas, 2003, p. 9. Os termos por nós sublinhados subentendem a existência de
uma oposição entre o mal, que corresponde aos ”elementos que não se coadunam com a doutrina
católica” e o bem, representado pela ”doutrina católica”, entendendo-se que aqueles (o mal) devem ser
339
137
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
hegemónico socorrer-se-á das visitas pastorais, que constavam de “um levantamento
paróquia a paróquia dos pecadores públicos (concubinários, incestuosos, pais e maridos
consentidores, prostitutas, cônjuges separados, maridos que maltratam as suas mulheres,
blasfemos, não-pascalizantes, ébrios, usurários, curandeiros, feiticeiras, etc.) através da
denúncia dos seus vizinhos”. Elas visavam, sobretudo, os estratos mais baixos, pelo que
era “raro ver um nobre acusado em devassa, e quando tal acontece os visitadores informam
pessoalmente o bispo que, aí sim, procede ‘paternalmente’”343.
O relato destas visitas demonstra que não só o poder hegemónico sancionava as
infracções como actuava em especial sobre os estratos menos favorecidas. Revela,
sobretudo, a natureza dos “pecados” e que estes abrangiam um leque variado de
comportamentos desviantes à norma, incluindo as próprias relações familiares
(“concubinários, incestuosos, pais e maridos consentidores…”). Ultrapassada há muito esta
letra e forma conciliar, é no entanto sabido que os desvios comportamentais aos códigos
morais instituídos continuam a ser, recorrentemente, objecto da atenção das instâncias
do Poder, políticas344 ou religiosas345.
expurgados da religiosidade popular, mesmo sob coacção das autoridades religiosas (que detêm o poder
de o fazer).
343
Cf. Joaquim Ramos de Carvalho [2006], A jurisdição episcopal sobre leigos em matéria de pecados
públicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das populações portuguesas de Antigo Regime.
(Revista Portuguesa de História, Tomo XXIV, Coimbra, 1990, pp.121-163), arquivo acedido na Internet
em 2 de Abril de 2006, www.uc.pt/bahp/bahp90.ft1523.html. O autor faz notar a diferenciação entre as
visitas pastorais portuguesas e as europeias, que “eram normalmente uma inspecção do estado das igrejas,
dos livros e alfaias do culto, da competência e zelo do clero local”. A vida familiar era vigiada pela igreja
e pelo estado, sendo do interesse de certos grupos sociais (nomeadamente as elites) controlar o
comportamento sexual de outros.
344
Atente-se, como caso exemplar, na investigação de Daniel Melo sobre a perspectiva do Estado Novo
português em relação à cultura popular. Segundo o autor, a política cultural salazarista integrava uma
ideologia tendente a configurar e uniformizar a cultura cultural do povo, recriada “num sentido
nacionalista, ruralista e tradicionalista” (p. 378) e cujos conteúdos desejáveis incluiriam, basicamente, o
amor da pátria, “a noção da autoridade, da sociedade e da família” (p. 99). A cultura popular transparece
então como “uma cópia do modelo da cultura dominante” (p. 101). Cf. Daniel Melo [2001], Salazarismo
e Cultura Popular (1933-1958), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2001.
345
Embora noutra perspectiva, as infracções sociais e morais são hoje também objecto da atenção de
outras instâncias, como as mediáticas, o que referimos por associação com a representação ficcional, nos
romances, de casos bem conhecidos das comunidades. Referimo-nos à analogia entre Silvana e
Delgadinha e os numerosos casos de incesto divulgados através da comunicação social, sobretudo
aqueles que são acompanhados pela violência de manter as vítimas longamente sequestradas. Em um
deles, uma jovem austríaca encerrada na cave durante vários pelo pai, viveu com ele maritalmente, tendo
138
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Mesmo não afectando os romances a uma determinada época ou área geográfica,
reconhece-se neles uma tessitura social que mimetiza a real e na qual se movem as
personagens; na sua condição de práticas significantes, encontram-se nos romances os
modelos e sistemas de valores que regem qualquer comunidade e se sabe serem
veiculados pelo poder hegemónico. Há, pois, nos romances, toda uma rede de sentidos
sociais e morais que, no entanto, não se constrói explicitamente na narrativa, antes
estando-lhe implícita, razão pela qual sustentamos que valores comportamentais e
sentidos revelar-se-ão sobretudo pela natureza dos actos cometidos346. De facto, a razão
primeira de os actos cometidos nos romances serem narrados é, precisamente, o facto de
nunca serem banais, sendo apresentados “como se deram” e sem que cumpram uma
intenção moralista ou pedagógica explícita, que apenas se evidencia nas versões com
prolongamento desse tipo. A narrativa é, de certo modo, “neutral”, no sentido em que se
limita a relatar determinado episódio ou incidente. Lembremos, a propósito, o que
mencionámos na Introdução sobre o carácter “asséptico” das “fórmulas arcaicas
semirecitativas” e também a observação de Garrett na carta-prefácio a Adozinda, “Ao sr.
tido diversos filhos, o que fez dela “madrasta” dos próprios irmãos. Veja-se o que diz a protagonista de
Delgadinha, também ela encerrada durante anos, por se negar ao incesto:
5. “- Não queira Deus do Céu, nem a Virgem Sagrada,
6. Que seja de meu pai mulher, de minhas irmãs madrasta.”
D/42 Leite (1960) 54-55
A expressão usada na versão do romance acaba, afinal, por provar que estas composições são, muitas
vezes, “mecanismos de um saber”, simultaneamente tradicional e actual.
Para as notícias sobre casos reais de incesto, cf. Correio da Manhã, edição on-line, disponível na Internet
em http://www.cmjornal.xl.pt/pesquisa.aspx?pesquisa=Fritzl&source=tags&contentid=F132FD7F-E5764D31, arquivo acedido em 26 de Março de 2010.
Em Silvana encontramos outra analogia, desta feita com o incesto consensual, abaixo noticiado, que no
caso do romance só não se concretiza por receio das penas do Inferno, o que afinal representa uma
condicionante religiosa judaico-cristão:
“O assunto voltou a estar na ordem do dia quando, há algumas semanas, a actriz Mackensie Philips, de
49 anos, lançou uma biografia em que assume ter tido relações sexuais consentidas com o seu pai
durante cerca de dez anos. Mackensie é filha de John Philips, um dos fundadores do conjunto Mamas
and Papas, celebrizado na década de 60 com as músicas 'California Dreaming' ou 'Monday, Monday'.”
Cf. Revista Única, edição on-line do Expresso de 17 de Outubro de 2009, disponível na Internet em
http://aeiou.expresso.pt/incesto-amores-proibidos=f543000, arquivo acedido em 26 de Março de 2010.
346
Por outro lado, a sua apreciação, positiva ou negativa, tende a ser comunicada no modo implícito.
139
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Duarte Lessa”, sobre os sentimentos nele provocados pela recitação meio cantada, meio
rezada, das “xácaras e romances populares”, referindo a “monotonia do canto”347 . Estas
observações vêem corroborar a nossa afirmação sobre um certo distanciamento posto na
enunciação (cantada ou não) dos romances, que denuncia o propósito de “neutralidade”
do género, que nem sempre dos seus transmissores/produtores348. Basta ver, neste caso,
nos versos da versão de Delgadinha a seguir transcritos, a ênfase posta na adjectivação,
que denuncia a opinião do enunciador349 acerca da crueldade paterna, assim associada
ao Demónio:
5. “O pai algoz cruel com ira endemonhada
6. mandou levar a Delgadinha a alta torre fechada;”
D/17 Martins (1928)/Martins (1987) 221-222
Na verdade, as normas impostas pelo poder hegemónico e o efectivo viver das
comunidades nem sempre são coincidentes. Alguns dos pecados arrolados como tal
pelas visitas pastorais pós-tridentinas não eram senão modos de viver decorrentes das
raízes culturais vigentes no Antigo Regime350; em muitos casos, as populações, embora
347
Cf. Garrett [1983], Vol. I., p. 59.
A este propósito, citamos Abel Barros Baptista que, em artigo sobre o romance Frei João, assevera “ a
disponibilidade do romance para funcionar como exemplum, mas um exemplum sempre diferente:
diferença que pode passar, inclusivamente, pela oposição frontal. Assim, a mesma fábula, não existindo
senão através de versões diferentes, corre permanentemente o risco de dizer aqui uma coisa e além o seu
contrário”, referindo a “tensão entre sentido literal e sentido figurado que não chega a resolver-se”. O
autor conclui também que o “aspecto utilitário da narrativa tradicional, a sabedoria que transmite ou a
‘moral da história’ que apresenta se estruturam através da escolha de um desenvolvimento narrativo em
prejuízo de outros possíveis, e que só se cumprem enquanto efeito se o auditor puder dissolver a sua
experiência vivencial particular transformada em história na história da narrativa tradicional, isto é, se
puder encarar a situação em que se encontra como um exemplo da situação narrada”. Cf. Abel Barros
Baptista [1989], “A Experiência da Morena nos braços de Frei João. Retórica da alegoria no romanceiro
Tradicional (‘Frei João’)”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nr. 4, Lisboa, FCSH da
Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 11-67.
349
A avaliação do narrado nem sempre é tão clara, sendo a aprovação ou a rejeição a determinados actos
mais marcadamente expressas nos prolongamentos, a modo de post-scriptum.
350
Os pecados começaram a ser vistos enquanto tal (pecados ou transgressões individuais) como
resultado de uma acção conjunta dos poderes civis e religiosos para a regulamentação dos
comportamentos sociais, tendo mudado a forma de olhar (mas não de erradicar) condutas que eram lícitas
anteriormente; ainda nos finais do século XVI a sociedade admitia a forma de casamento sem a bênção
eclesiástica, o que deixou de suceder posteriormente. Cf. Federico Palomo, A Contra-Reforma em
Portugal. 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, pp. 114-125.
348
140
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
viessem a moldar ao seu quotidiano as normas assim impostas, persistiam em certas
condutas condenadas, o que pode gerar paradoxos nas suas manifestações culturais.
Entendendo então os actos cometidos (ou sofridos) nos romances como formas de
representação da realidade 351, se bem que dentro de um quadro ficcional, eles serão
“infracções” ao modelo institucional e será a análise destas que revelará as normas que
351
Se os romances são uma forma de representação da realidade, eles serão também, literalmente,
representados. Referimo-nos, concretamente, à adaptação a representação teatral de alguns deles,
nomeadamente a Veneno de Moriana, o que demonstra, por um lado, o próprio dinamismo do
romanceiro, cuja morte se tem repetidas vezes augurado, e, por outro, que os assuntos e temas nele
tratados são ainda compreensíveis no mundo contemporâneo. Mencionamos, os casos seguintes:
Em 2005, nas comemorações dos 454 anos da cidade de Vitória, Brasil, estreou-se o musical, “grande
bailado de congo, samba e candomblé”, intitulado “Farsa de Juliana e D. Jorge”, do dramaturgo César
Huapaya e inspirado naquele romance. O texto integra vários personagens populares, como Otinho (poeta
de rua dos anos 1960 e 1970), Maria Saraiva (negra vendedeira de doces em seu tabuleiro) e Maria
Tomba-Homem (famosa prostituta) e históricos, como o escravocrata Barão de Itapemirim. Do blog que
noticia o evento, transcrevemos o seguinte excerto:
“O espetáculo é um musical atemporal, passando do século XVI ao século XX. Os cantantes, em
depoimentos históricos, narram a origem da colonização em nossa capitania. Dom Jorge é um fanfarão
que vivia prometendo em casamento todas as moças de Vitória. Na peça, ele é um descendente de Dom
Jorge de Menezes, fidalgo degredado, que veio com Vasco Fernandes Coutinho colonizar a capitania do
Espírito Santo. Dom Jorge é um fazendeiro escravocrata e traficante de escravos. Sem escrúpulos, ele
segue os mesmos princípios criminosos de Dom Jorge de Menezes. Entretanto, acaba esbarrando em
poder maior que o dele e é obrigado a se casar. Juliana é uma descendente de um rei africano do Congo
(Kambinda) que veio como escravo para o Brasil, e se tornou um líder de quilombo. Ela e sua mãe
ajudavam os famintos da Vila de Vitória. […….] Juliana havia recebido a promessa de se casar com Dom
Jorge, mas descobre que ele acabara de casar-se com Mariazinha, filha do Barão-coronel Messias. Para se
vingar de Dom Jorge, Juliana oferece-lhe um cálice de vinho com veneno. Assim, todas as mulheres da
Vila de Vitória são vingadas e o povo festeja sua morte aos sons dos atabaques de Candomblé e dos
tambores
de
Congo”.
Cf.
"Musical
resgata
cultura
popular”,
em
www.seculodiario.com.br/arquivo/2005/setembro/09/cadernoatracoes/cultura/04.asp, arquivo acedido na
Internet em 3 de Abril de 2008.
O outro caso é o de L BENENO DE MORIANA, quelóquio an un ato, por Francisco Niebro, para ser
representado pelos alunos da Escola Secundária de Mogadouro (o que não chegou a acontecer) por alturas
da assembleia geral da Associação Micológica A PANTORRA, em 2005, a qual havia anteriormente
publicado na sua revista, em 2004, uma palestra daquele autor, com o título “La amanita muscaria i ls
remanses ‘veneno de moriana’: notas para ua perpuosta de nuoba lheitura”. O “quelóquio” baseia-se nas
versões mais comuns “an que la mulhier mata l home cun beneno scundido nun copo de bino” e também
nas de “final madeirense”, a que nos havemos de tornar a referir adiante, que parecem “dar a antender
que l home nun se muorre, mas que haberá ‘rucecitado’ apuis de star alguns dies anterrado ne l huorto de
la matadora.” Trata-se, nas palavras do autor, de buscar “[…] ua nuoba lheitura daquel remanse popular”
e continua: “Inda que se agarre la cuonta que stá por trás de l remanse tradecional, reproduzindo-la eiqui
an buona parte, l quelóquio trata essa cuonta cumo la cristalizaçon dua rialidade aterna: l amor. Deste
tema central sálen outros mui bariados: l ódio; la bingança; l çprézio de ls fuortes puls fracos; la
rejisténcia de ls fracos an relaçon als fuortes; la lhibartaçon de la mulhier; la tentatiba de domínio de
fuortes fuorças scundidas para apoiar ls deseios houmanos; la berdade i la mintira nas relaçones
houmanas, etc. Lhigado cun aquel tema central, hai un outro que atrabessa todo l remanse: la lhibardade i
ls lhemites de la decison andebidual. Assi, anque la cuonta cuntada ne l remanse se passe nua sociadade
mediabal, eilha tem ua dimenson antemporal que le dá ua grande atualidade. Ye por esto modo de ber las
cousas que passa la ourdidura de l quelóquio i zdende mais bien puoden ser antendidas i anquadradas las
refréncias, a la purmeira bista sien sentido, que neilha éntran.”
O texto completo, que aqui não reproduzimos pela sua extensão, pode ser consultado em Francisco
Niebro, L BENENO DE MORIANA, quelóquio an un ato, em www.quelquios.blogspot.com, arquivo
acedido na Internet em 3 de Abril de 2008.
141
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
lhes estão implícitas. Deste modo, se nos havemos de debruçar sobre o processo
narrativo em si, que “conta” determinados incidentes, não poderíamos descurar a
procura dos elementos que suportam os seus modos de representação e que carregam a
narrativa de significações mais abrangentes, de modo a que haja lugar à revelação do
sentido.
Será pertinente, agora, retomar o critério de selecção do presente corpus de
trabalho, no qual se pressupôs que as histórias de mulheres “adúlteras”, “matadoras”,
“vítimas”
e
“sedutoras”
narram
episódios
reconhecíveis
pelas
comunidades
transmissoras352. Nesta perspectiva, os romances que seleccionámos são romances de
352
Entendemos como reconhecíveis pela comunidade aquelas situações passíveis de se darem no seu seio,
tal como o são adultérios, traições, incestos ou casamentos desiguais. Outras composições, que não os
romances tradicionais, contemplam também estes e muitos outros acontecimentos, como é o caso dos
romances vulgares e das cantigas narrativas. Estas, porém, tendem a situar as histórias que contam num
determinado espaço geográfico-temporal e a identificar concretamente as personagens, pelo que são
sentidas como ocorrências singulares, a registar como exemplares. Delas dirá Maria Aliete Galhoz que
“[A] sua função, das cantigas narrativas, no que de função se pode considerar, é semelhante à do
Romanceiro: noticiar ou entreter como objectivo primeiro….” e que “[O] evento torna-se caso, ergue-se a
exemplo”. Cf. Maria Aliete Galhoz [1988], “Literatura Popular – Cantigas Narrativas”, Revista Lusitana.
Nova Série, 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 151-172. Carlos Nogueira, que faz a distinção entre romance
vulgar e cantiga narrativa e define ambos, postula que“[N]um cotejo genérico com o Romanceiro velho, o
Romanceiro vulgar (de origem tardia, como dissemos) apresenta temas mais populares, vinculados ao
quotidiano do povo das cidades e dos campos, como insucessos amorosos, crimes diversos, suicídios,
desastres, acções de bandidos”, acentuando que a cantiga narrativa compartilha as características do gosto
pelo trágico, enquanto ”[T]raço típico de toda a estética de massas … revelado em pormenores realística
ou hiperbolicamente macabros, sinistros…”. Cf. Carlos Nogueira [2002], O Essencial sobre o
Cancioneiro Narrativo Tradicional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. Sobre os
romances vulgares (também chamados em Espanha “de ciego”) na literatura de cordel faz Júlio Caro
Baroja um estudo e antologia de que ressaltam, grosso modo, aqueles mesmos traços. Cf.,
respectivamente, Julio Caro Baroja [1990], Ensayo sobre la Literatura de Cordel, Madrid, Ediciones
Istmo, 1990 e Julio Caro Baroja [1980], Romances de Ciego, Madrid, Taurus Ediciones, 1980. Além,
logicamente, do critério distintivo da estrutura sintáctico-estrófica (a cantiga narrativa ocorre geralmente
em quadras, mas também quintilhas ou sextilhas), será este hiperbolismo ou insistência predominante nos
pormenores mais trágicos, acentuados pela identificação realista e alongada dos elementos narrativos
espaço/tempo/personagens, que diferencia romances vulgares e cantigas narrativas dos romances
tradicionais. Estes, embora neles se encontrem situações de grande dramatismo, fixam-se sobretudo num
único ou poucos episódios, depurados de elementos circunstanciais, sendo os factores
espaço/tempo/personagens facilmente intercambiáveis, como se comprova pela variada onomástica das
versões, pelo que os episódios narrados nestes romances funcionam como situações-tipo. Sem aqueles
constrangimentos, os romances adquirem uma dimensão mais intemporal e universal que lhes permite,
juntamente com a propriedade de abertura, serem produ-transmitidos em comunidades díspares como o
serão as transmontanas, as insulares, as galegas, as bascas, as sefarditas, as brasileiras e todas as outras
que fazem parte do universo pan-hispânico. A fortuna da cantiga narrativa, embora se possa
tradicionalizar, será mais limitada em termos de propagação. Note-se, ainda, que, nesse processo, os
elementos que a fixam a um lugar/um tempo/personagens perderão a rigidez documental. Exemplificamos
brevemente com um caso verídico de duplo suicídio por amor, passado em 1914 numa pequena
localidade beirã do distrito de Castelo Branco, que originou uma cantiga narrativa sobre a qual existe um
estudo, com sete versões publicadas. Cinco destas, recolhidas no próprio local, registam a data exacta do
142
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“transgressão”, na medida em que, em todos, há personagens que infringem convenções
sociais e morais, nas quais se incluem o adultério (Bernal Francês), a quebra de
compromissos (Veneno de Moriana), o incesto (Silvana e Delgadinha) e o sexo prématrimonial (Gerinaldo). No cerne destes conflitos encontra-se a representação da
mulher, em relação ao modelo social institucionalizado, uma vez que tem havido, ao
longo dos tempos, uma presunção repetida da mulher como “sujeito subalterno” 353 ,
documentada em textos religiosos, filosóficos e científicos de várias culturas 354 e,
acontecimento, atestada em documentos oficiais, enquanto as outras, recolhidas noutro concelho, a
alteram (a uma delas junta-se quadra admonitória a todos os pais). Cf. Maria Adelaide Salvado [2001],
Em nome do Amor… Mari ela e José Pina – Um caso de Amor e Morte em Sarnadas de Ródão no início
do século XX, Castelo Branco, Centro Municipal e Desenvolvimento de Vila Velha de Ródão, 2001. Essa
versão é também publicada em outra obra e nela classificada como “romance novelesco da literatura de
cordel” (Cf. Natália Maria Lopes Nunes da Graça [2000], Formas do Sagrado e do Profano na Tradição
Popular. Literatura de transmissão oral em Margem (Concelho de Gavião), Lisboa, Colibri, 2000). A
data é igualmente alterada em mais duas versões publicadas em GRPP, pp.1163-1164 e 1164-1165,
recolhidas respectivamente no distrito da Guarda e no de Santarém, esta última alterando ligeiramente o
apelido do suicida.
O que temos vindo a dizer não obsta, contudo, a que o inverso se produza, isto é, a que a versões dos
romances tradicionais sejam adicionados elementos identificatórios que as particularizam. É o caso, por
exemplo, que se encontra em versões compósitas de Bernal Francês + A Aparição nas quais, na parte
final, são nomeadas diversas localidades onde será enterrada a mulher. É, também, um destes casos o
final da versão BF/88 Fontes I (1987) 346-347, que diz: “… João de França, se te casares, casa-te em
Vila d'Oím, // com a filha do Pratèro, que se chama Beatriz”. A particularização dos nomes (“Vila
d'Oím”, “a filha do Pratèro”, “Beatriz”) fixa e aproxima os acontecimentos de determinada comunidade
(que pode ser, ainda assim, ser ficccional).
353
Em 1982, Ranajit Guha, por influência de Michel Foucault, refere-se aos “sujeitos subalternos” a
propósito das margens silenciadas dos camponeses, analfabetos, mulheres e castas inferiores (“On Some
aspects of the Historiography of Colonial India”). Apud Peonia Viana Guedes [2006], “’Can the su altern
speak?’: Vozes Femininas Contemporâneas da África Ocidental”, em www.amulhernaliteratura.ufsc.br.,
arquivo acedido na Internet na Internet em 28 de Abril de 2006.
354
Diz o Talmud que “é preferível queimar a Torah do que confiá-la a uma mulher. No Corão, os homens
têm autoridade sobre as mulheres por causa das despesas a que se sujeitam para as manter”. Buda,
interrogado por Ananda sobre a sua opinião sobre as mulheres, diz: “Evitai a sua visão ... não lhe dirijais a
palavra...” e o confucionismo chinês anota que “Um rapaz nasceu; cubramo-lo de ouro e de jade. Uma
rapariga nasceu; que ela se divirta com pedaços de tijolo”. O cristianismo multiplica as acusações contra
as mulheres como, no séc. XV, o faz o dominicano Antonino com todas as letras do alfabeto, de A
(avidum animal – animal ávido) a Z (zelus zelotypus – inveja invejosa). Filósofos como Comte e
Rousseau (“Toda a educação da mulher deve fazer-se em função dos homens”) e escritores como Balzac
(“Emancipar as mulheres é corrompê-las”) partilham deste desprezo. Em 1893, Auguste Strindberg
escrevia “A mulher é inferior ao homem... O cérebro da mulher apresenta menos circunvoluções que o do
homem... pelo contrário os nervos são mais fortes, como se observa na criança. Daí a sua faculdade de
poder suportar mais facilmente certas dores físicas, no que se assemelha ao selvagem.... Alguns
antropólogos acharam – o que foi confirmado por exploradores africanos – que o crânio da mulher branca
se aproxima do do negro e que o crânio de uma negra é inferior ao de um negro; a conclusão será que o
crânio da mulher branca se aproxima de um tipo de crânio que lembra uma raça inferior.” Esta e as
anteriores citações encontram-se em Guy Bechtel [s.d.], As Quatro Mulheres de Deus, A Puta, a Bruxa, a
Santa & a Imbecil, Lisboa, Multinova, s.d. Os títulos dos capítulos designam as maneiras de a sociedade,
nomeadamente a Igreja Católica, estereotipar a mulher, ao longo dos tempos.
143
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
aparentemente, perpetuada na literatura oral tradicional
355
, vindo outros a ser
interpretados como a expressão de protesto e ruptura contra a ordem dominante356.
Nem sempre estas e outras avaliações são explícitas ou evidentes nos romances,
como já referimos. As personagens agem de acordo com um modelo-padrão social
empírico, quer o façam de forma negativa quer positiva, mas a apreciação dos seus
comportamentos pode apenas permanecer implícita, modalidade em que se pode revelar,
com toda a impunidade, a adesão ou rejeição às regras impostas pelo poder
hegemónico357. Diz Fraga de Azevedo o seguinte:
“em termos de interacção social, a opção por este modo de expressão [implícito] é
funcionalmente muito produtiva, uma vez que possibilita ao falante beneficiar da cumplicidade
355
Veja-se, por exemplo, esta forma breve: - Mãe, o que é casar? - Filha, é fiar, parir e chorar, cujo
discurso determinista, que implicitamente atribui ao casamento um valor negativo, não é senão uma
projecção dos problemas específicos das mulheres “contadoras de histórias”. Elas são-no, em primeiro
lugar, porque foram ouvintes pois, segundo Susan Arndt, “what a listener hears and understands is closely
tied to the concrete situation, her current mood and state of mind, her personality, her individual
experiences, her age as well as her gender-specific, social, religious and familial background”. Cf. Susan
Arndt [1998] A rican Women’s Literature: Orature and Intertextuality, Bayreuth, Eckhard Breiyinger,
Bayreuth University, 1998.
356
Cf. Ponto 1. Não postulamos estes romances como textos do feminino, mesmo sendo maioritariamente
transmitidos por mulheres, mas sublinhamos que eles revelam uma teia complexa de determinações
culturais, cujos valores implícitos advêm de um modelo homocêntrico, apreciado positiva ou
negativamente, o que vai ao encontro do que diz Isabel Allegro de Magalhães, em O Sexo dos Textos. A
autora, que caracteriza as correntes anglo-saxónicas e francesas da crítica literária feitas por mulheres
como ocupando-se de textos literários de autoria feminina nos quais “se viabiliza um protesto ou uma
ruptura formal com a ordem social e simbólica dominante”, observa não existirem “pólos distintos
definidos pelo sexo de quem escreve” e prefere falar de um “sexo dos textos”. Cf. Isabel Allegro de
Magalhães [1995], O Sexo dos Textos, Lisboa, Caminho, 1995, p. 15-20. Embora trate de textos de autor,
escritos e não anónimos e orais como os romances, citamos a obra por, precisamente, destacar a
existência de um “sistema patriarcal e ditatorial” associado ao masculino e, ao mesmo tempo, a percepção
do real (corporal, social e cultural) que se institui nos textos, independente do género masculino ou
feminino, em relação ao modelo hegemónico.
357
Mais uma vez, referimo-nos às sociedades baseadas nas tradições judaico-cristãs e clássicas, nas quais
se espera das mulheres um comportamento conforme às regras morais e sociais vigentes. Em 2003, um
congresso realizado na Universidade Fernando Pessoa, promoveu o tema da representação da “maldade”
das mulheres, como transgressoras de tais regras. Os trabalhos desenvolvidos reúnem-se numa trilogia
cujo primeiro volume, já publicado, inclui comunicações em diversas áreas, de que destacamos as que se
referem ao romanceiro. São elas a de Maria do Carmo Cardoso da Costa [2004], “A maldita serrana no
imaginário popular ibérico”, pp. 43-56 e a de Teresa Araújo [2004], “Em torno de algumas mulheres do
Romanceiro Pan-hispânico: transgressoras e configuradoras de medos arquetípicos”, pp. 141-158; sobre
as características sócio-comportamentais desviantes das mulheres, nomeadamente das “bruxas”, debruçase Francisco M. V. Reimão Queiroga [2004], “As mulheres e as representações do mal em meio rural”,
pp. 33-42, todos em Ana Maria da Costa Toscano, Shelley Godsland [2004], orgs., Mulheres Más.
Percepção e Representação da Mulher Transgressora no Mundo Luso-Hispânico, Vol. I, Porto,
Universidade Fernando Pessoa, 2004.
144
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
inerente ao dizer, desresponsabilizando-o, concomitantemente, dos riscos ligados à
explicitação”358.
Os romances fazem largo uso desta opção, deixando no modo explícito a história
ou episódio que se narra e confiando os valores que lhes sustentam a razão de ser ao
modo implícito. É frequentemente também neste modo que são plasmados sentimentos
pró ou contra certos actos das personagens, sejam eles conformes ou entrem em conflito
com as normas culturais vigentes. No entanto, há uma notável complexidade neste
processo. É ver, por exemplo, como certos princípios parecem ser declarados, pondo-os
na boca das personagens (a negrito), neste caso, em Bernal Francês, falando o marido à
mulher: 17. “- Mulheres todas são falsas, eu experimentava-te a ti”, BF/102 Ana
Martins/Ferré (1988) 71-72. Dá-se o caso de o informante da versão ser do sexo feminino,
não sendo de crer que esteja verdadeiramente a exprimir a opinião de que as mulheres
são falsas, considerando que a observação do marido não se dirige apenas às adúlteras,
mas a “todas as mulheres”. Porém, a versão acaba da seguinte maneira:
38.“Na campa da Francisquinha há um grande pinheiral.
39. quem engana o seu marido morre em pecado mortal.”
Como não é possível interrogar a informante a esse respeito, ficará por esclarecer
se a introdução destes versos não tradicionais se deve a motivações do foro moralizante
(pessoal, social ou até religioso) que prevaleceriam sobre o género do indivíduo.
Vistos os romances como apresentando os factos “como sucederam”, os desfechos
– castigo ou recompensa – serão a implicação “lógica” do acto cometido e a que é
esperada ou promovida por um certo envolvimento sócio-cultural. Ainda no que diz
respeito aos comportamentos femininos, diz Oro Anahory-Librowicz, embora
ressalvando que se refere especialmente à tradição judeo-marroquina, que “El desenlace
358
Cf. Fernando José Fraga de Azevedo, “O Implícito e o Não-dito. A sua Relevância na Construção do
Sentido”, em Linguística e Didáctica das Línguas. Actas do Fórum Linguística e Didáctica das Línguas,
26-28/04/1995, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, pp. 303-308.
145
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
nos proporciona la clave para averiguar el grado de tolerância o severidad com que se trata a la
mujer”
359
. No caso de Gerinaldo, o habitual casamento implica uma certa tolerância
para com a jovem “desonrada”, indicando que esta pode realizar o seu desejo sensual
sem castigo, ao contrário dos desfechos trágicos para as adúlteras (o que ocorre em
Bernal Francês), que indicam um maior rigorismo. Contudo, certos comportamentos
que implicariam uma sanção em sociedade nem sempre a sofrem explicitamente no
conteúdo narrativo do romance (caso de Veneno de Moriana, cuja protagonista, que
mata um homem, não sofre castigo), podendo só ser expressa apenas nas mensagens
moralizantes dos remates finais (tal como para o pai/família, em Delgadinha), o que
leva a que um dos paradoxos mais evidentes nos romances seja a maneira como certos
valores parecem sobrepor-se a outros.
Para que o sentido dos suportes significantes indirectos que adiante se proporá se
revele360, há que lhe procurar os elementos que o sustentam. Tendo-se já traçado um
esboço generalizado do padrão dominante de valores que rege o espaço sócio-cultural
em que vive o romanceiro, identificar-se-ão os espaços em que se movem as
personagens dos romances do corpus e definir-se-ão, também, as várias relações de
Poder que entre elas se estabelecem, considerando que a representação dos modelos
sociais é executada de através dos núcleos temáticos Amor/Ódio, Vida/Morte,
Fidelidade/Traição, que se interpenetram; a sua esfera de acção é a Família e a
Sociedade, que, igualmente, não se podem desligar, uma vez que mesmo o que se
desenrola no foro mais íntimo da primeira irá repercutir-se na segunda. É por essa razão
que, nos actos cometidos, por vezes aparentemente de cariz apenas familiar, se
encontram oposições e relações de poder complexas.
359
Cf. Oro Anahory-Librowicz [2005], La honra femenina en el romancero sefardí,
www.ucm.es/BUCM/revistas/fll/02122952/articulos/DICE9090110031A.PDF, arquivo
Internet na Internet, em 2 de Junho de 2005.
360
Na Parte II.
146
acedido
na
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Núcleos temáticos interligados
Amor/Ódio, Vida/Morte, Fidelidade/Traição
Esfera de acção - Família:
Esfera de acção - Sociedade:
Fidelidade no matrimónio:
Honra:


Infracção feminina:
- adultério (Bernal Francês)
Infracção masculina:
- sedução e abandono (Veneno de
Moriana)
Laços entre pais e filhos:

-
leis
cavalaria
(Veneno
de
Moriana)
Infracção parental:
- incesto (Silvana e Delgadinha)
da

Infracção feminina:
- sedução pela mulher (Gerinaldo)
Hierarquia:

Infracção:
- quebra da ordem social (Gerinaldo)
Justiça:

Infracção:
- a morte (Bernal Francês, Delgadinha,
Veneno de Moriana, Gerinaldo)
2. A construção do espaço físico e social
Os romances, dada a sua característica de condensação significante, dispensam
descrições longas ou detalhadas, pelo que o sentido da componente do espaço, físico ou
social, por sua vez interligados, procurar-se-á nos escassos elementos apresentados.
Nestes, os elementos não humanos têm uma função complementar à dos humanos (ou
proporcionam-na) pelo que a sua caracterização faz parte da análise do modo como o
sentido se revelará361.
361
A interacção entre os espaços (físico, temporal e humano) nos romances (no caso os leitianos) é
objecto de um estudo de Andreia Cavaleiro que, entre outros, cita, dos romances do nosso corpus, Bernal
147
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Quanto ao espaço físico, poder-se-á, basicamente, distinguir entre o exterior e o
interior. Este é representado pelo espaço humanizado e engloba a habitação e as
divisões que dela fazem parte (quarto, sala, cozinha, corredores), podendo ser
particularizada (torre, castelo, palácio) e abrangendo ainda o jardim, ou, ainda, a própria
aldeia. O espaço exterior é o bosque, o campo (vales, serras, rios, mar) quer em estado
selvagem quer já domesticado/controlado pelo homem (a segada, a feira, a romaria) ou,
ainda, o local de conflito (a guerra). Igrejas e cemitérios são um espaço intermédio,
semi-humanizado, semi-divino362. Os caminhos são o espaço que une ou separa todos os
outros espaços.
Todos estes elementos, com os outros a eles ligados, não são meros adornos da
narrativa nem a sua escolha aleatória em situação de variação, que tenderá, sobretudo, a
substituí-los por outros com o mesmo valor operacional, semântico ou simbólico, sob
pena de uma completa modificação desvirtuar o sentido do romance.
Nos romances de que nos ocupamos em particular, a mulher desenvolve a sua
acção no espaço interior da casa363 e o homem no exterior364. O ambiente é o da família
nuclear (marido/mulher, pai/mãe/filhos), acontecendo a intervenção de outros parentes e
mesmo de criados, que são sobretudo coadjuvantes, função igualmente desempenhada
Francês, Delgadinha e Gerinaldo. Cf. Andreia Cavaleiro [2004], “Romanceiro: O Humano no Espaço e
no Tempo”, em Ana Paula Guimarães et alii, organização de, Falas da Terra. Natureza e Ambiente na
Tradição Popular Portuguesa, Lisboa, Colibri, 2004, pp. 167-176
362
Assim também o “convento”, onde a protagonista de Delgadinha pode, em algumas versões, ser
encerrada. Este espaço, divino porque aí se acolhiam as “virgens de Deus”, adquire o significado
adicional de local de encerramento com sentido de castigo, para onde se enviavam as filhas rebeldes à
vontade dos pais; lembramos o paradigmático caso de A freira no subterrâneo, em tradução de um autor
que tantas vezes relatou casos de amores punidos com o convento. Cf. Camilo Castelo Branco, A freira
no subterrâneo [s.d.], Porto, Lello & Irmão, s.d.
363
Virtudes Atero e Nieves Vasquez, baseando-se num corpus de romances de Cádiz, Espanha, delimitam
dois tipos de cenários nos quais se movem as mulheres do romanceiro – o espaço da civilização, no
interior da casa, no qual situam a maioria das representações do feminino e o exterior, para o qual as
mulheres apenas no desempenho de funções domésticas; o outro espaço é o do selvagem, considerado
excepcional, no qual domina o tema de La serrana de la Vera (IGR 0456), a Serrana na tradição
portuguesa, que inverte o modelo feminino, pela sua ferocidade. Cf. Atero, Vasquez [1998]. Não estão
contempladas, neste estudo, figuras como a da Donzela Guerreira e outras, como a Infantina, que
igualmente fogem ao estereótipo do espaço fechado da casa.
364
Assim no dito português: “Mulher em casa, homem na praça”.
148
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
por entidades celestiais que possam aparecer (como as que rodeiam Delgadinha na sua
morte).
A caracterização física das personagens é, geralmente, sumária. Quando existe,
foca-se na qualidade genérica dos atributos (ser gentil, ser bonita) e raramente há uma
descrição física concreta (altura, cor dos olhos ou da pele, etc.)365.
Em Bernal Francês, pouco ou nada se sabe do aspecto da protagonista, se não que
há-de ser, di-lo o “amante”, de corpo bem feito:
1. “- Francisquinha diligente, vosso corpo bem gintil,
2. Abri essas vossas portas a quem costumais abrir.”
BF/52 Lemos (1961-1962) 171-173
Do aspecto físico de Moriana, também pouco se sabe; havia de ser bonita, a crer
nas palavras de “D. Jorge”, que lhe refere o “corpo apertado” e a trata por “minha rosa”:
6. “- Deus te salve, ó Juliana, com teu corpinho apertado.”
[…………..]
8. - É verdade, ó minha rosa; eu te venho convidar. “
VM/20 Leite (1960) 110
365
Em ensaio que reúne algumas das conclusões gerais da Tese de Doutoramento intitulada Formas y
funciones del personaje mujer en el romancero tradicional (sobre el ejemplo del romancero de Gran
Canaria), apresentada à Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, 2001, Juana Robaina esboça uma
tipologia da representação física e moral feminina no romanceiro, e diz:
“En efecto, dominan en los textos los primerísimos planos que apenas sobrepasan el busto de la mujer
pero que se ofrecen uniformemente idealizados, si bien, verdaderamente camaleónicos a los oídos del
auditorio. Éste, tan pronto se hallará ante metáforas femeninas terrenales (flores como la rosa, el clavel, el
jazmín...; metales preciosos como el oro y la plata) como verá alzar el vuelo a ligeras aves (sobre todo
palomas) y, más arriba aún, a deslumbrantes astros y toda suerte de luceros, a ángeles o a enigmáticas
deidades (sol, luna, estrella, Venus, Minerva...). El resultado, que casi todos los que miran pierden la
cabeza: ¿galantes? amantes (La venganza de Don Juan de Lara, La casada abandonada, El novio que
mató a su novia, Proposición amorosa, Carmela y Rogelio...) hermanos (Tamar, El hermano incestuoso),
cuñados (Blancaflor y Filomena, La doctora peregrina) padres (Sildana, Delgadina, El pescador Pedro
Marcial...). La mujer es, también, víctima de su belleza y a piropear la misma dedica el Romancero
innumerables elogios. Los piropos más frecuentes se expresan con los adjetivos pertenecientes al campo
semántico de la belleza y hermosura en general: bella, hermosa, bonita, guapa, linda, preciosa, fina,
pulida, compuesta y pueden referir el entusiasmo hacia el conjunto de la figura femenina”.
Cf. Juana Rosa Suárez Robaina [2010], “Protagonismo de la mujer en el Romancero”, disponível na
Internet em
http://literaturamedievalipa.blogspot.com/search/label/Protagonismo%20de%20la%20mujer%20en%20el
%20Romancero, arquivo acedido em 28 de Março de 2011.
149
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
As protagonistas de Silvana e de Delgadinha serão, certamente, bonitas, mas as
versões, de modo geral, não se alongam em pormenores sobre as características físicas
concretas de cada uma. De Silvana, percebe-se que é a atitude desenvolta que atrai o pai
e as versões simples do romance pouco mais dizem que é “bela” e que, ao pai, mesmo
vestida de roupa simples, lhe agrada mais que a mãe:
1. “Andava a bela Silvana pelo corredor acima”, S/16 Ferré (1982) 207-208
3. “- Melhor me pareceis, D. Silvana, com vestido de cada dia,
4. do que vossa mãe, rainha, com quanto ouro havia.”
S/24 Fontes (1983a) 121
De Delgadinha diz-se um pouco mais, visto que não ser só a juventude (quando
nas versões é a mais nova das filhas), mas, sobretudo, a sua beleza que há-de atrair o
pai; por isso, a afirmação de que a jovem é bonita (é a mais bonita das irmãs, com as
quais é comparada) é recorrente no romance:
1. “Era um homem tinha três filhas, todas três mais lindas que a prata,
2. a mais nova delas todas Valdevina se chamava.”
D/19 Nunes (1928) 231-232
O próprio nome, Delgadinha, sugere a elegância da protagonista, que se torna
explícita nalgumas versões:
1. - “Dilgada, ó Dilgadinha, da cintura delicada”, D/112 Marques (1982) 210-211
Por vezes, a descrição torna-se mais detalhada e saberemos que traz “ouro” no
cabelo (cabelo louro) e tem olhos azuis:
3. “o ouro qu’ela trazia a seu pai le namorava”, D/42 Leite (1960) 54-55
1. “Silvana de olhos azuis a toda a gente encantava”, S+D/12 Leite (1960) 64-66
150
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Também em Gerinaldo não se fornece a descrição física das personagens, pois o
que mais interessa, para os caracterizar, é a sua condição social, embora as próprias
designações, “infanta” e “pajem”366, tragam implícita a juventude de ambos.
Dada a enorme variação onomástica nas versões, a questão dos nomes das
personagens aparenta ser de somenos importância. Geralmente, só as principais são
identificadas com um nome e nem sempre, nem todas elas. Em Bernal Francês, nunca
saberemos o nome do marido, mas conhece-se sempre o do amante, e, por vezes, o da
mulher; se, nas versões do tipo A de Veneno de Moriana, o protagonista masculino tem
nome (tal como a jovem), nas do Tipo B é, apenas, o “cavaleiro”; em Silvana sabe-se o
nome da filha, mas não o dos pais, ambos personagens principais, embora se conheçam
os dos irmãos, que a mãe enuncia, mas nem intervêm na intriga; também de Delgadinha
se sabe o nome e por vezes o do pai, mas não os da restante família. A infanta e o rei,
em Gerinaldo, não têm nome.
Deste modo, parece trata-se de dar primazia a categorias, mais do que a pessoas
concretas. Não importa saber o nome do “marido” e da “mulher” em Bernal Francês,
mas sim que o primeiro é “um marido enganado” e a segunda “uma adúltera”, em
importa quem é o pai de Silvana ou de Delgadinha ou qualquer título que tenha367, mas
366
Infante: do lat. infans, antis ‘que não fala, que tem pouca idade, criança’. Cf. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa [2003], 6 vols., Círculo de Leitores, 2003, Tomo IV, p. 2090. As diversas acepções
para a entrada “pajem”, também no mesmo dicionário, Tomo V, pp. 2727-2728, indicam que se trata de
um jovem.
367
Muitas versões referem ao pai como “o rei” (1.”O rei tinha três filhas todas três afidalgadas”, D/201
Carvalho Rodrigues (1990) 89-90), “um rei” ou, mais concretamente, “o nosso rei” (1.”O nosso rei tinha
três filhas, brancas nem de prata fina”, D/198 Fontes (1989-1990) 61). Outras, como as seguintes,
identificam-no como “conde” ou “conde de”: O conde da Vila-Flor, nas D/1 Braga (1867) 181-183, D/88
Miguel de Oliveira (1981) 212-213, D/186 Ana Martins/Ferré (1988) 83-84, D/187 Ana Martins/Ferré
(1988) 84-85; O conde das três Marias, D/13 Basto (1914) 59-60, D/32 Leite (1960) 44-45, D/33 Leite
(1960) 45-46, D/34 Leite (1960) 46-47, D/36 Leite (1960) 49 e D/37 Leite (1960) 50; O conde
Margarida, D/23 Carneiro (1945) 167-168; O Conde de la Flor, D/52 Leite (1960) 69-70; O conde d'Ila
Flor, D/53 Leite (1960) 71-73; Rei Branco, D/139 Cortes-Rodrigues (1987) 335-336; O conde D. José,
D/185 Ana Martins/Ferré (1988) 82-83; Conde São José, D/190 Ana Martins/Ferré (1988) 87-89; O
conde José Albino, D/191 Ana Martins/Ferré (1988) 89-90.
151
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
o facto de “ser pai”; em Gerinaldo, as duas categorias, “rei” e pai” estão interligadas,
sendo a primeira, porém, imprescindível ao sentido do romance.
No entanto, verifica-se que os nomes, quando os há, não são aleatórios, antes
ajudando à caracterização dos seus portadores. Os diminutivos, e muitos são eles
além de Delgadinha (como Delgadita, Aldidinha, Teresinha, Alvininha, Alvarinha,
Balbeninha, Galdoninha) ou nomes terminados em -ina (como Adelina, Faustina,
Gualdina, Claudina, Deladina) ou em –eta (como Malgaveta) no romance de
incesto Delgadinha são muito utilizados, de modo a frizar a pouca idade mas
também a inocência e a fragilidade da protagonista 368 . Também a personagem
feminina de Bernal Francês, por vezes, se chama “Francisquinha”, o que sugere
juventude, que não inocência, pois sabe-se que esta mulher se prepara para cometer
adultério; porém, quem assim lhe chama é o “amante”/marido, o que implica um
sentido amorável, se bem que simulado:
1.“[……………….] - Francisquinha, Francisquinha,
2. abre-me a tua porta, ò a tua janelinha.”
BF/78 Fontes (1983 b) 79-80
Quando este romance continua com A Aparição, o nome da protagonista torna-se,
com certa frequência, “Ana”, o que parece dar-lhe uma feição mais grave, visto que se
trata já de uma defunta369. Nomes com esta sonoridade ocorrem também em Veneno
368
Ou sentidos como “fidalgados”, como é o caso de “Faustina”:
1.
2.
3.
4.
“O conde da Vila-Flor, por ser o conde maior,
de três filhas que ele tinha, clarinhas como o sol,
uma se chamava amada, outra se chamava querida;
outra se chamava Faustina por ser a mais fidalgada.”
D/1 Braga (1867) 181-183
369
Cf. Isto segundo, por exemplo, o que deste nome disse Luis Chaves: “’Ana’” é nome de maior
categoria [comparativamente ao nome ‘Maria’], semi-aristocrático: se todas as mulheres são ‘marias’,
poucas são as ‘Anas’”. Cf. Luís Chaves [1963], “Perfil de Mulher no Folclore Português”, em Actas do 1º
Congresso de Etnografia e Folclore. Promovido pela Câmara Municipal de Braga (De 22 a 25 de Junho
de 1956), Vol. III, Lisboa, Plano de Formação Social e Corporativa, 1963, pp. 59-69.
152
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de Moriana (Juliana, Laureana, Moliana 370 ) e em Silvana (Selivana), cujas
protagonistas, se bem que jovens, serão menos inocentes que Delgadinha. Por sua
vez, o nome da personagem masculina de Bernal Francês aponta para a sua condição de
estrangeiro, até mesmo quando se lhe chama “Françoilo” (ex. BF/3 Braga
(1869)/Braga(1982) 202-204) ou “D. Francesco” (BF/6 Azevedo (1880) 145-150).
Outro nome sugestivo é o que o marido chama à adúltera, como “falsa Nera”(BF/9
Braga (1887-1889) 105-107), clara referência à maldade geralmente associada ao
imperador romano Nero.
3.A rede familiar – actividades, estatutos e relacionamentos
A construção do espaço social nos romances é também traçada através das
funções que as personagens desempenham, pelas actividades a que se dedicam e pelos
lugares nos quais se movem, bem como pelas formas de tratamento utilizadas entre si.
Bernal Francês
O estatuto social das personagens marido e mulher não é explicitamente
mencionado 371 havendo, no entanto, uma implicação de poder, social e familiar, em
vários indícios.
A mulher, ao tentar afastar os temores do suposto amante, refere-se a “criados” e
mesmo a “vassalos”, que só famílias de um certo estatuto social possuiriam:
10. “Meus criados e vassalos, por altas torres a dormir.”
BF/34 Leite (1958) 401-402
Há, por outro lado, uma sugestão da actividade militar do marido, presente nas
pragas que a mulher roga lhe roga (ex: 9. “Anda matando os Mouros…”, BF/46 Leite
370
Mas também ocorre o nome “Eugénia” e semelhantes, precedidos pelo honorífico “Dona”, que lhes
confere a mesma gravidade. Quanto ao nome do protagonista e às implicações do seu nome e título,
referir-nos-emos noutros locais.
371
Por vezes, o estatuto do marido é especificado, como na BF 20 Dias (1911) 49-51, v. 19, na qual a
mulher se dirige ao marido por: “ó meu bom conde”, pedindo-lhe perdão.
153
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(1958) 418-419), bem como na resposta que aquele dá à observação (“Se tens medo
àquelas armas, eu as vou tirar dali”, v. 13) feita por ela:
16. “Não tenho medo àquelas armas, que eu mesmo as ali prantí”
BF/20 Dias (1911) 49-51
As armas, mas sobretudo as espadas, armas brancas conotadas com um certo
estatuto social372, estão presentes logo no início de certas versões:
1. “Estando eu na minha cama, estando no melhor dormir,
2. Espadas ouvi bater, espadas ouvi tenir.”
BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38
Noutras versões, ele declara expressamente não temer a justiça (v. 17: “não me
temo da justiça, que a justiça é por mim, BF/2 Braga (1867) 34-36), podendo a
afirmação ser interpretada como achando ele que esta está do seu lado, como parte
ofendida que é, ou porque, muito simplesmente, o seu estatuto o colocaria acima da
comum “justiça”, enquanto qualquer patrulha que andasse pelas ruas.
Também a cor vermelha das diversas peças mencionadas pelo marido como
oferta, além da evidente metáfora da morte sangrenta373, revela, na sua ironia, o espaço
social das personagens, pois o uso desta cor no vestuário, segundo Oliveira Marques374,
está associado à nobreza. Certos adereços “prometidos”, como uma “gargantilha
[colorada]” ou “contas de coral”, remetem mais directamente para a degolação (ou
decapitação)375, mas este tipo de morte, tendo neste romance um sentido de castigo376,
372
Ver, na Parte II, o Capítulo II, dedicado aos motivos.
Ver, na Parte II, o Capítulo II, dedicado aos motivos.
374
O autor refere que a camisa ou o gibão se trabalhavam em seda ou veludo, citando João Afonso de
Aveiro, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – “Meu gibão de seda rasa de mui fino carmesim”.
Refere, igualmente, a pragmática de 1340, que reservava aos nobres o uso da escarlata, tecido tingido em
tons de vermelho carmesim, tal como a “camisa degolada/decotada” usada por uma senhora nobre, no
painel do Infante e, ainda, a “gargantilha”, como “pequenos véus transparentes para disfarçar o decote da
camisa”, usados no século XV. Cita, entre outras, os colares de contas de âmbar e coral usados pelas
senhoras. Cf. A. H. Oliveira Marques [1971], A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa,
1971 (Capítulo II, O Traje, pp. 23-62).
375
Degolar e decapitar são sinónimos. Cf. Dicionário Houaiss de sinónimos e antónimos [2007], Rio de
Janeiro, Lisboa, Instituto António Houaiss, Círculo de Leitores, 2007, p. 173.
373
154
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
indicia o estatuto social elevado377 daquela que o vai sofrer que apenas se aventa pela
sua persistência na maioria das versões de Bernal Francês378.
Veneno de Moriana
Se há uma infracção de Moriana, que mata, parece também havê-la por parte do
cavaleiro, que não cumpre com a promessa de casamento. Importa pois procurar neste
romance se existe uma diferenciação explícita de classe de ambas as personagens, dado
que uma condição social assimétrica agravaria a infracção cometida pelo protagonista
masculino.
O homem que Moriana mata é um cavaleiro, condição explícita no epíteto das
versões com o incipit “Apeia-te, ó cavaleiro” (Tipo B) ou implícita no honorífico
associado ao nome (D. Jorge), nas versões do Tipo A. Mesmo quando não existe essa
informação e o protagonista é referido apenas pelo nome, percebe-se que é pessoa de
“representação”, ou seja, de classe alta:
5. “- Lá vem o Jorge a cavalo, muito bem arrepresentado.”, VM/41 Fontes (1979) 124-125
Quanto à condição social de Moriana, não explicitada nas versões do Tipo B, é
indiciada nas do tipo A, pela menção às actividades em que se ocupa. Estas são
376
No romanceiro há referência a outras decapitações como a (não concretizada) em Conde Alarcos, mas,
neste caso, sem o sentido de castigo, mas de prova (o conde deve matar a mulher e levar a cabeça ao rei,
para o comprovar). Através da expressão “cão estoque”, corrupção evidente de “com um estoque”,
presente nos versos de versão deste romance (“Não me mates cão estoque que é muito à tirania, //Afogame com uma toalha que é mais à fidalguia.” - versão de Felgar, c. Torre de Moncorvo, d. de Bragança,
reeditada em RPTOM, Vol. II, p. 348, com o nr. 671), constatamos que o uso desta arma branca,
pontiaguda mas sem o fio cortante necessário à decapitação, dá a entender que esta só se realizaria depois
da morte da condessa, mas sobretudo que a execução com o estoque, ao invés de uma espada, mais
própria para alguém de alta jerarquia, como o é a condessa, para mais inocente, seria então sentida como
infamante. Por isso, o uso da toalha, aqui considerado “mais à fidalguia”, é preferido por ela.
377
A decapitação era, em países como a Inglaterra, reservada aos nobres; em Portugal, em 1759, foi
decapitada a Marquesa de Távora, condenada com a família por crime de alta traição (Cf. Dicionário
Enciclopédico da História de Portugal [1985], II, Publicações Alfa, 1985, pp. 268-269). Até à abolição
da pena de morte em 1867, no nosso país, o método oficial de execução dos criminosos vulgares era o
garrote. Cf. Richard Clark [2004], The garrotte, www.richard.clark32.btinternet.co.uk/garrotte.html,
arquivo acedido na Internet na Internet, em 23 de Dezembro de 2004.
378
Referimo-nos à generalidade das versões da tradição portuguesa, sendo de notar que em versões
leonesas o marido mata imediatamente a mulher, com três punhaladas. Cf. Catalán, Campa [1991], pp.
57-59. A variação faz, também, com que surjam outras soluções, ao que adiante nos referiremos.
155
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
variáveis, pelo que Moriana tanto pode ser apresentada como de estatuto elevado ou
baixo. Por vezes, acontece que é o próprio “estado” que, mais explicitamente, indica
uma classe social alta:
1.“- Salve Deus, ó Moliana, no vosso estado real!”, VM/21 Leite (1960) 111
Os estatutos de ambos os protagonistas parecem, neste caso, ser equivalentes:
1.“- Bom dia, ó Boliana, senhora do vosso estado.
2. - Bom dia, ó D. Abrunho, senhor do vosso cavalo.”
VM/73 Ferré (1982) 193
O próprio local onde Moriana se encontra indicia um certo nível social:
1.“- Deus te salve, Brobiana, nesta varanda reale.”, VM/42 Fontes (1979) 125
1.“- Deus te salve, Laureana, nas tuas altas varandas”, VM/40 Fontes (1979) 124
2.“ - Viva também, Juliana, no seu palácio assentado”, VM/97 Ferré (1987) 66
Frequentemente, encontra-se simplesmente “sentada” ou “encostada”, o que
indicaria possuir uma certa posição social que lhe permitisse não ter de trabalhar:
5.“Deixa-t'estar, Juliana, no teu camarim sentada”, VM/18 Leite (1960) 109
2. “lá estava a D. Julieta no seu sofá encostada”, VM/101 Ferré (1987a) 48
Alguma vez está desempenhando tarefas de índole doméstica:
1.“ - Deus te salve, Laureana, na tua linda varanda,
2. Sacudindo os teus lençóis, cobertores da tua cama.”
VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263
Acontece que esteja a bordar, actividade considerada senhoril, mas que pode
também ser entendido como tendo a profissão de bordadeira:
1.“- Deus te salve, Laureana, costurando teu bordado.”, VM/5 Mendonça Dias (1922)
Outras ocupações de Moriana entender-se-ão mais claramente como o
desempenhar de um ofício, no caso seguinte o de tecedeira:
4.“Deus te salve, Juliana no teu tear a trabalhar”, VM/17 Leite (1960) 108-109
156
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Ora como se disse acima, o homem que a engana é um cavaleiro e diz O Livro da
ordem de cavalaria379que “… se o cavaleiro não cumpre com o ofício de cavalaria…. tal
cavaleiro é mais vil que o tecelão e o trompeteiro que seguem com o seu ofício” (nosso
sublinhado). Diz o Livro, ainda, que o cavaleiro não podia ser “homem vil de linhagem”
além de que “É mandamento de lei que o homem não seja perjuro” e que não deve “enganar
e forçar as viúvas e outras fêmeas”, pois “roubar honra é dar vileza e má fama”. Deste modo,
havendo uma marcada diferenciação social entre os dois protagonistas, subentende-se
haver mais honra em ser tecelã do que em ser mau cavaleiro, o que justifica, no
romance, a ausência de castigo judicial para esta mulher que mata aquele que não
cumpriu com o seu dever.
É de notar que, no Tipo A, raramente a protagonista feminina é tratada pelo
honorífico “D. ou Dona”, enquanto, no Tipo B, muitas vezes, este lhe precede o nome
(D. Eugénia, ou corruptelas), com a situação inversa no que diz respeito ao protagonista
masculino. No entanto, não é concludente, no conjunto de todas as versões, que
Moriana tenha um estatuto social mais baixo do que o do seu sedutor, embora, a
sustentar a ideia de um desnível social, estão certos locais onde Moriana vai buscar o
vinho, como sejam o lagar ou a taberna, aonde, fosse ela de classe alta, não seria tão
natural que se deslocasse. Também a facilidade com que o cavaleiro desrespeita o
379
Cf. Costa [2005]. O “cavaleiro” é uma figura a que determinados modelos comportamentais, virtudes e
valores, nomeadamente a honra, ficaram associados. A respeito da Crónica de D. João I, de Fernão
Lopes, refere António José Saraiva a memória deixada por cavaleiros como o Cid Campeador, o conde
Fernão Gonçalves e outros referidos na Crónica Geral de Espanha de 1344, como modelos de
comportamento que se implantaram, fazendo menção à “penetração na vida pela literatura”, em particular
da influência do romance arturiano, no episódio em que D. João, cercando Coria, deseja ter a seu lado os
cavaleiros da Távola Redonda. Cf. António José Saraiva [1993], O Crepúsculo da Idade Média em
Portugal, 3ª ed., Lisboa. Gradiva, 1993, pp. 202-205. Para a evolução da qualidade de cavaleiro em
Portugal e dos seus deveres e atribuições, cf. José Mattoso [1982], Ricos-Homens, Infanções e
Cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII, Lisboa, Guimarães & C.ª Editores,
1982.
157
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
compromisso matrimonial assim o indicia, conhecendo-se, sociologicamente, que o
Poder também se exercia, nesse aspecto, pelos mais fortes sobre os mais fracos380.
Quanto à rede familiar, note-se que entre mãe e filha há uma conversa inicial que
revela partilharem confidências e que o pai ou outros parentes não intervêm na intriga,
embora a invocação final dos respectivos familiares, por ambos os protagonistas, venha
a revelar a importância da família 381 . É de notar que, ao contrários das versões
portuguesas de Veneno de Moriana, existe em várias versões brasileiras, a possibilidade
de parentesco entre os próprios protagonistas, como nesta que reproduzimos
parcialmente e na qual Juliana e D. Jorge são primos382, razão que é invocada para que
entre eles não haja “falsidade”383:
“Eu lhe peço, Juliana, que não haja falsidade;
Olhe que somos parentes, prima minha de minha alma”384.
Silvana
Em Silvana, a posição social da família não é explicitada no incipit, contrastando
com a sequência narrativa inicial Delgadinha, do tipo “Um rei/ o conde de tal tinha x
filhas…”; o protagonista de desejos incestuosos é muitas vezes referido, simplesmente,
380
Há versões nas quais, com todo o desplante, D. Jorge anuncia a Moriana que vai casar, explicitamente,
com “a filha da rainha”. Ver, por exemplo, a VM/99 Ferré (1987) 67: 11.” É verdade, Juliana, com a filha
da rainha.”.
381
Moriana refera as esperanças goradas de um casamento, por parte da família, e D. Jorge lamenta a sua,
que o vai perder.
382
Lembramos o sentido íntimo que se dá às relações entre primos, um tanto pícaro no adágio português
“Quanto mais prima, mais se lhe arrima”, ou mais adoçado, em quadras como esta: “Ó priminha, ó
priminha, // Ó priminha da varanda! // és um relógio fechado // Onde o meu coração anda”. Cf. José da
Silva Vieira [1917], Cancioneiro Minhoto, Espozende, Livraria Espozendense, 1917, p. 28.
383
Note-se que, o pedido para que “ não haja falsidade” expresso antes de beber o vinho e sem que seja
justificado, implica que existe uma desconfiança por parte do homem.
384
Versões de Pernambuco e do Ceará. Cf. “Romance de Juliana e Dom Jorge”, pp. 32-58, em Guilherme
Santos Neves [1983], Romanceiro Capixaba, Espírito Santo, Fundação Nacional de Arte, Fundação
Ceciliano Abel de Almeida, 1983. Maria de Fatima Batista, na sua tese de doutoramento, na distribuição
em oito grupos que faz das versões brasileiras do romance, refere que o terceiro grupo “inocenta Dom
Jorge, retirando a sedução e a promessa de casamento. É Juliana que está apaixonado por ele, enquanto
ele não demonstra nenhum interesse por ela, a não ser a amizade de primo”. Cf. Maria de Fátima Barbosa
de Mesquita Batista [1999], O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica,
Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-graduação em Linguística da USP, Tomos I e II, São
Paulo, 1999, p. 35.
158
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
como “o pai”. Todavia, as marcas de um estatuto social elevado estão presentes ao
longo do romance e são explícitos ou procurar-se-ão em certos indícios.
Quanto aos primeiros, o pai é identificado como “rei”:
- 12. “Irei aonde o rei estava, pois muito bem no sabia”, S/1 Braga (1869)/Braga (1982)
191-193)
- 11.“Lá pelo meio da noite o rei à porta batia”, S/7 Soromenho (1963) 55
- 9. “- Ó senhora, é el-rei, mê pai, que por sua esposa me queria.”, S/33 Fontes (1996)
120-121
- nos apartes do informante:
“E nisto a mãe vestiu os fatos dela e vai c'o rei, c' o pai. Chega ao quarto do rei; e o
rei diz-lhe:”, S/13 Purcell (1976b) 66-67
- em versões compósitas de Silvana e Delgadinha, nas quais, por influência deste,
o estatuto real é declarado logo no início:
1.“Um rei tinha três filhas, alvas como prata fina,”, S+D/2 Braga (1869)/Braga (1982)
193-196
1. “Um rei tinha três filhas, todas três com'as flores belas;”, S+D/19 Fontes (1983a)
119-120
- em didascálias, segundo nota do editor na S+D/4 Azevedo (1880) 112-115:
(”Omitimos as seguintes didascálias: entre 11 e 12 El-rei nã reconheceu la rainha e disse;
entre 13 e 14 Deu-se la rainha a conhecer e respondeu; entre 15 e 16: Então, cramou elrei; entre 16 e 17 E la rainha respondeu; entre 29 e 30 E disse; depois de 31: E recolheuse a um mosteiro, onde se meteu a monge e acabou lá arrependido”).
A mãe é rainha, o que se sabe das seguintes maneiras explícitas:
- di-lo o pai:
6.“- Bem me pareces, Silvana, em véstias de cada dia,
7. do que tua mãe, rainha, com quanto ouro havia.”
S+D/3 Braga (1869)/Braga (1982) 197-200
3.“- Melhor me pareceis, D. Silvana, com vestido de cada dia,
4. do que vossa mãe, rainha, com quanto ouro havia.”
S/24 Fontes (1983a) 121
159
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
13.“ - Mal pensa a rainha de Hungria que Silvana está perdida.”
385
S+D/6 Pires (1902)/Pires (1982) 14-15
- é ela que o diz:
13. “ - Aqui nu stá i a Silvana st' à paixão da rainha.”, S+D/11 Reinas (1957) 423-425386
Outras vezes, a identificação faz-se por indícios:
a) - Silvana toca guitarra/viola de ouro/de prata (o que não seria habitual em classe
menos favorecida, com os metais preciosos a denotar o seu valor);
b) - Silvana é nomeada com o honorífico “Dona”;
c) - Silvana passeia-se “por corredores” (presume-se que os corredores onde é
possível passear serão longos, o que não acontecerá em habitações modestas, onde
estes serão curtos ou inexistentes);
d) - o pai é tratado pela mulher pelo honorífico “D.” ou “Dom:
21.“enquanto falei contigo, ó D. Pedro de Castila,” S+D/3 Braga (1869)/Braga (1982)
197-200
17.“E q'anto t'eu queria bem, D. Pedro da Eucaristia;” S+D/18 Fontes (1983a) 118-119
16.“Pois quando estive D. Silvana de D. Pedro de Castilha”, S/25 Fontes (1983a) 125
e) - nas versões com a contaminação de Queixas de D. Urraca, pelo assunto deste387,
fica implicada a condição real do pai, por vezes explícita:
18. “Deus vos salve, D. Pai rei, baixo a coroa real”, S/22 Ferré (1982) 209-210
f) - a mãe invoca implicitamente um estatuto superior:
f.1) - ao jurar por sangue real388:
385
Versão classificada como Delgadinha em BRPTOM (2000), nr. 261.
Versão classificada como Delgadinha em BRPTOM (2000), nr. 266.
387
Este será abordado posteriormente, mas adiantamos que se trata de um rei moribundo, que esqueceu a
filha da distribuição dos bens.
388
As versões em que a mãe jura pelo sangue real (“Pelo sangue d' Aragão e da rainha da Castela”) são do
mesmo concelho da Madeira, Santa Cruz, de informantes diferentes:
S+D/20 Fontes (1983a) 121-123 - Versão da Achada de Cima, Gaula, recitada por Júlia de Sá Vieira,
61 anos e Virgínia de Sá Vieira, 55 anos.
S/31 Xarabanda (1995) 27-28 – Versão do Pico Norte, Gaula, cantado por Maria Júlia Quental, no dia
18/03/90.
386
160
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
11. “Pelo sangue d'Aragão e da rainha da Castela,”, S/20 Ferré (1982) 210-211
15. “Pelo sangue d' Aragão e da rainha da Castela”, S/32 Xarabanda (1995) 28
f.2) - ao anunciar a nobreza dos outros filhos que teve:
18.“Foi D. João de Castelo, foi D. Pedro de Castilha,” S/14 Ferré (1982) 204
19. “Um foi Dom Pedro de Castro, outro Dom João de Castilhas”, S/11 Purcell
(1976b) 39-41
13.“Um foi D. Carlos, senhor, e outro D. Pedro seria,”, S/29 Marques (1989) 388390
19.“também pariu D. Alardo, senhor da cavaleria,
20. também pariu a D. Pedro, senhor da infanteria,”, S+D/1 Garrett (1828) 107-113
11.”Sou a mãe de D. José e também de D. Maria,”
389
, S+D/30 Ana Martins/Ferré
(1988) 80
Esta enunciação dos títulos dos filhos denuncia um orgulho heráldico, que pode
levar à presunção de que esta mulher poderia ter uma condição social tão ou mais
elevada do que a do marido, ressalvando embora a incongruência de uma “rainha” poder
casar com um seu inferior, o que é de somenos importância para o tipo de comunidade
que produz/transmite o romanceiro. Seria esta circunstância que lhe permitiria não
temer mais represálias do que as maldições daquele, ao urdir um estratagema, que é,
afinal, uma aliança com a filha contra o pai.
É certo que a alusão aos filhos pode ser apenas um meio de realçar a sua condição
de mãe, que, obviamente, nunca poderia ser a virgem que o marido esperava encontrar.
Assim, basta-lhe citar-lhes o nome sem qualquer honorífico ou apenas o número, como
nas versões seguintes, respectivamente:
16.“Tenho um filho Manuel, tenho outra qu'é Maria,
17. Tenho outra qu'é Silvania, filha a quem eu mais queria.”
S+D/37 Cruz (1995) 208-209
S/32 Xarabanda (1995) 28 – Versão de Achada de Cima, Gaula, recitado por Maria Vieira Poita no
dia 1/04/90.
389
Refere-se também a ela própria como “D. Maria” e a Silvana como “D. Silvana”.
161
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
10.“- Como pode ‘tar honrada quem cinco filhos teria?”
S/20 Ferré (1982) 210-211
Quanto à constituição em si da família, note-se que os irmãos referidos variam em
número e não têm qualquer intervenção na intriga, ao contrário dos de Delgadinha,
sendo de crer que já não habitarão na casa paterna ou que Silvana sentiria não poder (ou
não dever) recorrer a eles, pela própria natureza da sua possível provocação ao pai. O
que ela lamenta, isso sim, é não ter irmãs a quem se confiar, numa alusão à rede de
alianças que se estabelece entre membros da família:
14. s'ê tivesse outras manas, segredos lhes contaria.” , S/20 Ferré (1982) 210-211
7. S' eu tivesse outra mana segredos me encobriria.”, S/30 Xarabanda (1995) 27
O lamento de ser filha única é também feito pelo próprio pai, mas aqui a rede de
alianças não seria a fraterna, mas outra, indiciando uma natureza também ela incestuosa:
8.”- Oh! maus raios partam a filha, segredo do pai descobriria,
9. s'eu tivesse outra filha, segredos m'encobriria.”
390
S/19 Ferré (1982) 210
Note-se que, no caso do pai de Delgadinha, sabe-se logo de início que, tendo
várias filhas, é desta que se agrada, implicitando que qualquer uma das outras poderia
ter sido escolhida para sua “namorada”. Já o pai de Silvana só a ela requesta, em certos
casos, provavelmente por, dos filhos, só uma ser rapariga, segundo declaração da
mãe391:
15. “Não tive senão dois filhos, Dom Pedro e a Sylvaninha!”
S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193
390
Nesta versão não há a enumeração dos filhos pela mãe.
Na maioria dos casos, quando os filhos são três, dois são homens e a filha é Silvana (ver, além dos
exemplos dados, a S/9 Purcell (1976a) 166-167, vv.18-19; a S/12 Purcell (1976b) 57-59, vv. 15-17, a
S/18 Ferré (1982) 208-209, vv. 15-17 ou a S/23 Ferré (1982) 211, vv-5-6).
A mãe, na sua enumeração, refere por vezes outras filhas; ver a S+D/37 Cruz (1995) 208-209, no
exemplo acima dado (16.“Tenho um filho Manuel, tenho outra qu'é Maria, // 17.Tenho outra qu'é
Silvania, …”). Na S/16 Ferré (1982) 207-208 fala da descendência no feminino, mas como “reis”: “Como te posso eu trazer honra se já três filhas eu tinha? // Uma foi rei de Castela e outra foi rei de
Castilha, // outra foi bela Silvana, filha tua e anja minha.”
391
162
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
19. “- Eu como hei de estar virgem se três vezes hei parido?
20. Uma do rei de Castela, outra do rei de Sevilha
21. e outra da nossa Silvana, da nossa filha mais querida.”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
15.“- Como eu hei-de estar honrada sendo três vezes parida,
16. Parida de rei Ingrama, parida de rei Ingria,
17. Parida da nossa Silvana a quem tanto eu queria.”
S/7 Soromenho (1963) 55
Delgadinha
Neste romance, a família é alargada, com o pai, a mãe, a filha, os irmãos e, por
vezes, outros parentes. A condição social familiar é elevada e, ao contrário de Silvana, o
estatuto do pai (rei ou conde), de que decorre, logicamente, o da família, sublinha-se
logo na sequência inicial, se esta for narrativa. Quando não explícita, subentende-se,
mesmo assim, que a família é poderosa, por determinados indícios, um dos quais é o
facto de aparecerem os criados a encerrar Delgadinha e, depois, a levar-lhe água.
O encerramento de Delgadinha quase sempre é numa torre/palácio e os jarros em
que o pai lhe envia a água são de ouro, prata ou vidro, embora se note que a
preciosidade dos materiais possa ser simbólica do valor da própria água392. A mãe e as
irmãs da Delgadinha encontram-se no espaço doméstico (sala, cozinha, jardim)
ocupadas em actividades que, na sua generalidade, não sugerem um trabalho servil
(passear/estar recostada, encostada à varanda, a coser numa almofada, à janela, a lavar
num jarro de ouro, “a andar”com bolas de ouro, a bordar em ouro e prata). Já os
homens, pai e irmãos, se encontram no exterior, mas igualmente em actividades
392
Mesmo o vidro em copos ou jarros, hoje em dia banal, representaria um artigo não usado
quotidianamente em meios rurais. Ressalve-se, por outro lado, o simbolismo do vidro associado à água,
pela sua transparência e limpidez.
163
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“nobres” (como no jogo da bola, da barra, da espada, da “imbocada”, das canas393, a
tocar na guitarra, a caçar, a estudar na livraria, ou simplesmente “assentados”), embora,
por vezes, se denuncie um menor estatuto social - estão, por exemplo, numa “roçada”
(corte do mato), numa “segada” (ceifa) ou a coser uma “cabeçada” (componente dos
arreios do gado equino ou muar), que são trabalhos braçais que reis ou fidalgos não
desempenhariam.
Gerinaldo
Este romance é, no conjunto do corpus, aquele cujo espaço social é bem explícito
e que nunca oferece dúvidas sobre o estatuto das personagens, sendo deste que decorre a
razão de ser da intriga. Tudo se passa num ambiente real e as personagens são referidas
pela categoria – a Infanta, o Pajem, o Rei.
A infanta, que não se ocupa em coisa nenhuma senão em reparar em Gerinaldo,
estabelece logo de início entre ele e si própria uma clara marcação da diferença
hierárquica, ao referir-lhe explicitamente a categoria quando o chama para dormir com
ela. “Pajem”, “vassalo”, “criado” ou mesmo sendo “conde” 394, a sua condição social é
entendida como inferior à dela e, nas versões, como plebeia (é filho de “moleiro”, na
G/160 Fontes I (1987) 511-512, v. 27, ou de “porqueiro”, na G/40 Leite (1958) 312313, v. 29), embora noutras se declare nobre, equivalendo o seu estatuto ao da infanta
(27. “Sou filho do rei de Espanha e neto do rei d’Hungria”, G/41 Leite (1958) 313-315), mas
isto numa variação de sentido a que nos referiremos posteriormente. Ver-se-á, no
393
Este, que ocorre em uma versão de Mértola (“por la que vió a sus hermanos jugando un juego de
canas”, D/5 Pires (1885d) XII), era jogo simulando torneios, habitual nas cavalhadas de S. João, segundo
Veiga de Oliveira, que cita diploma do século XV descrevendo tal usança em Santiago do Cacém: “o
peticionário … ‘chegara ao Ressio do dito logo, honde se os cavallos corem e jogam as canas’”. Cf.
Ernesto Veiga de Oliveira [1984], Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984, p.
160. O jogo das canas, como próprio de cavaleiros ou nobres, é descrito em José Deleito y Piñuela
[1988], …Tam ien se divierte el pue lo, Madrid, Alianza Editorial, 1988, p. 84-86.
394
“Vassalo”: 1.“- Gerinaldo, ó Gerinaldo, d'el-rei vassalo querido”, na G/9 Leite (1881) 62-64;
“criado”: 1.” Gerinaldo, Gerinaldo, criado do rei mais querido”, G/27 Frias (1956) 567-568; “conde”: 1.”Gerinaldo, Gerinaldo, lindo conde meu tão querido”, G/6 Azevedo (1880) 66-68.
164
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
capítulo dedicado aos motivos (Parte II, Capítulo II), como as informações dadas por
Gerinaldo ao rei, sendo conotativas das suas relações amorosas com a infanta, são
igualmente denotativas das actividades próprias de um pajem ao serviço de uma casa
real. Bluteau indica que o termo “pajem” designava também “o servo ou doméstico do
Príncipe”; Cunha Soares, que o cita, esclarece que o serviço no Paço era “predicado
especial de fidalgos”, embora tenham ocorrido diferentes formas de “filhamento” por
diversos reis, ou tomada ao serviço real, de filhos de gente de linhagem e plebeus e
note-se que Gerinaldo, nobre ou plebeu, foi criado pelo rei “de pequenino” (28.”- Para
matar o Girinaldo... Criei-o de pequenino!”, G/90 Afonso (1985) 30-31 e 142), o que
corresponde àquelas circunstâncias; diz também Cunha Soares que os moços fidalgos, a
partir dos quatorze anos, “não podiam servir entre as mulheres” 395 , pelo que, embora
sendo ainda novinho (1.”- Gerinaldo, Gerinaldo, Gerinaldo, meu menino;”, G/160, Fontes I
(1987) 511-512), a idade do pajem já não lhe permitiria aproximar-se muito da infanta e,
na verdade, é sempre ela que o chama; por isso, ele responsabilizá-la-á pelo acontecido
(8.”- Mas s'ê dormi co'a bela infância, sua honra nã le devia, // 19.qu'um menino de quinze anos
bem pouco ou nada entendia.”, G/73 Ferré (1982) 238-240). De qualquer forma, o estatuto
do pajem é inferior ao da infanta e o desnível é tão evidente que desperta a
incredulidade do rapaz à sugestão que lhe é feita (3.“- Eu, como sou seu criado, senhora,
mangais comigo.”, G/47 Leite (1960) 506-507), o que pode igualmente revelar uma certa
crítica (moral e social) de um homem de condição social “inferior” a uma mulher de
condição social “superior”. O rei, por sua vez, desempenha cabalmente as funções que
lhe competem: vela pela segurança do castelo (reino) e também da filha. Na dúvida,
consulta os conselheiros, mas tem capacidade de decisão - é, indubitavelmente, o
395
Cf. Sérgio Cunha Soares [1997], “Nobreza e Arquétipo Fidalgo. A propósito de um Livro de
Matrículas de Filhamentos (1641-1724)”, A Cultura da Nobreza, Revista de História das Ideias, Vol. 19,
Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
1997, pp. 403-455.
165
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
detentor do Poder. De todos os romances do corpus, Gerinaldo é o que menos realce
confere à problemática das redes familiares, embora o rei a invoque para não matar a
filha ou o pajem, privilegiando a questão da hierarquia.
O relacionamento entre as personagens condiciona o modo como se tratam entre
si, uma vez que as formas de tratamento são actos de linguagem que indiciam actos
sociais; a sociolinguística faz o estudo do uso das expressões linguísticas que denotam
os diferentes graus de deferência entre interlocutores, de acordo com diversos factores,
de situação, estatuto e sexo, abordando o padrão das variantes em termos de “poderautoridade vs. solidariedade-camaradagem”. O registo simétrico ou assimétrico, salvo
idiosincrassias individuais, será escolhido de acordo com determinados códigos que
regulam as relações de estatuto pessoais e sociais 396 . Deste modo, as formas de
tratamento usadas pelas personagens dos romances entre si tornam-se, também, um dos
processos de procurar a, por vezes, intricada teia de relações que os unem ou separam,
sobretudo naqueles maioritariamente dialogados, nos quais não são imediatamente
explícitados os laços de parentesco e os seus estratos sociais397.
Encontra-se o tratamento simétrico por tu entre personagens do mesmo grupo
etário e familiar (irmãos: Delgadinha; marido e mulher: Bernal Francês e Silvana) ou
entre amantes (Bernal Francês) e o tratamento assimétrico (tu/vós 398 ) nos estatutos
diferentes, quer familiares (pais/filhos: tanto em Silvana, Delgadinha como no Tipo A
396
Sobre níveis de deferência, registos, uso simétrico e assimétrico de níveis de fala, formas honoríficas e
de delicadeza e outras questões tratadas em sociolinguística, cf. Marques [1995].
397
Sobre a complexidade das formas de tratamento em português e evolução deste sistema, cf. Luís F.
Lindley Cintra [1986], So re “Formas de Tratamento” na L ngua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte,
1986. Embora o estudo aborde as “formas de tratamento” principalmente numa perspectiva histórica,
Lindley Cintra, que aponta já um “sistema em crise, em que não é difícil descortinar os sinais de uma
transformação em marcha”, refere que o sistema português “parece ligar-se intimamente, por um lado, a
uma sociedade fortemente hierarquizada; …”.
398
Usamos aqui o pronome “vós” apenas para marcar o contraste com a familiaridade do “tu”, pois o
tratamento de cortesia ficou, de há muito e citando Lindley Cintra, “entregue ao domínio das formas
nominais e da 3ª pessoa verbal”. Cf. Cintra [1986], p. 30.
166
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de Veneno de Moriana) quer sociais (amantes: Veneno de Moriana e Gerinaldo)399 .
Enquanto em Delgadinha tais usos não suscitam reparos, por tidos como correntes400, já
em Bernal Francês e Veneno de Moriana surgirão algumas diferenciações. Ainda que
aqui não tenha sido efectuado o estudo percentual de tais formas de tratamentos, parecenos, pela leitura das versões, ser observável a tendência para o registo simétrico
(“tu”/”tu”) entre a mulher e o presumível amante, que continua quando este se revela
como o marido, em Bernal Francês, e uma oscilação, com tendência para o tratamento
assimétrico, em Veneno de Moriana (“tu” do cavaleiro para Moriana e “vós”, de
Moriana para o cavaleiro); o cavaleiro usualmente trata Moriana deste modo, enquanto
esta se lhe dirige por “D. Jorge”401 embora o tratamento que muitas vezes lhe dá, na 2ª
pessoa, implicite a intimidade entre os dois:
1. “- Deus te salve, Juliana, sentada no teu estrado,
2. - Deus te salve a ti, D. Jorge, em cima do teu cavalo.”
VM/1 Braga (1883) 197
Há, evidentemente, casos em que há tratamento mútuo por “vós” e alternância do
tratamento por “tu” ou serem usados os honoríficos D. (D. ou Dona) mas haver o
tratamento por tu. A versão a seguir, assim o demonstra – o cavaleiro usa o honorífico
399
Diz Kerbrat-Orecchini, reportando-se a Maingueneau, 1981, p. 19, que cita (“Avant toute chose le
vouvoiement et le tutoiement sont des actes): “le tutoiement … connote, confirme ou institue un ‘lien’
particulier (familiarité, intimité…) entre les interactants”. Cf. Kerbrat-Orecchini [1986], p. 62.
400
Delgadinha pede água às irmãs, tratando-as às vezes por tu (“- Se tu és minha irmã, dá-me uma pinga
d'água”, D/45 Leite (1960) 57-58), mas outras por vós. Na versão abaixo, é assim que trata a irmã e esta
dirige-se-lhe por tu:
14. “- Deu'la salve, minha mana, Deu'le salve a minha alma!
15. Peço-le por amor de Deus que me dê um copo de água.
16. - Como t'hei-de dá'la água, ó Faustina desgraçada ?
17. A primeira que desse a água era a que o pai degolava!”
D/33 Leite (1960) 45-46
Como, nesta versão, Delgadinha/Faustina é a mais velha (“O conde das três Marias, por ser o conde
maor, // Tinha tres filhas solteiras, todas lindas coma o sol. // Faustina, por ser mais velha, de todas
mais engraçada, …”) e havendo, em certos meios rurais, o hábito de tratar os irmãos muito mais velhos
por vós, dá-se uma inversão de estatutos assumida pela jovem, quer porque queira comover a irmã, quer
porque reconhece que a sua situação a inferioriza.
401
Note-se, contudo, que nas versões do Tipo B o tratamento é mais familiar “- Apeia-te”, ainda que o
vocativo “ó cavaleiro” lhe indicie a categoria social.
167
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“D. Ausênia” mas trata-a por tu, e ela, que mantém a forma usual de tratamento no
incipit deste tipo, na 2ª pessoa, passa depois, no terceiro verso, a dizer lhe (“para lhe
dar”), que corresponde ao uso corrente de tratamento de deferência na 3ª pessoa, por
vós:
1. “- Apeia-te, ó cavaleiro, vamos daí merendar.
2. - Tu que tens, ó D. Ausênia, guardado para me dar?
3. - Tenho vinho d'há sete anos guardado para lhe dar.”
VM/2 Leite (1883a) VII
Estas variações poderão originar interpretações paradoxais. Rodrigues Lapa
observa que, em certas regiões nortenhas, o tratamento entre rapazes e raparigas mudava
do tu para o vós, quando o namoro estava “pegado”, para “dar a entender aos outros que
não havia entre si familiaridades comprometedoras”402. Parece-nos, pois, que, no romance,
estas assimetrias subentendem simultaneamente as relações íntimas e a diferença social
dos dois.
Quanto a Gerinaldo, logo de início, a infanta trata o pajem por tu, acentuando
implicitamente a condição subalterna do rapaz (“pajem del-rei”), enquanto Gerinaldo
lhe dá o tratamento deferente de vós, a ela se dirigindo como “minha senhora” ou
expressão equivalente, mesmo após a intimidade das relações403. Em raras ocasiões o
não faz e, nessas, a mudança na atitude de Gerinaldo, que fora anteriormente respeitosa
mas passa do vós para o tu logo que a infanta confirma a veracidade do convite404,
torna-se uma implicitude subtil de que este retira à infanta o direito de se considerar
402
Cf. M. Rodrigues Lapa [1984], Estilística da Língua Portuguesa, 11ª edição, Coimbra Editora, 1984,
p. 154-155.
403
Ver, como exemplo, na versão G/143 Fontes I (1987) 499-500:
16.“- Acorda, acorda, ó Gerinaldo, que meu pai já o é sabido.
17.- Que será de mim, minha senhora, de mim, que já estou perdido?”
404
Veja-se a G/150 Fontes I (1987) 504-505:
3. “- S'eu não fosse seu criado, não estava a brincar comigo.
4. - Erinaldo, Erinaldo, eu bem ao sério to digo.
5. - S'isso me dizes ao sério, diz-me à hora que hei-de vire.”
168
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
superior, como se o pajem sentisse um nivelamento que lhe permite tratá-la de forma
mais ligeira. Já no diálogo final entre o rei e o pajem, a forma de tratamento é sempre
assimétrica – o rei trata o pajem por tu e este ao rei por vós.
4.As relações de Poder
Vimos como a questão do parentesco é complexa, dado que a família tece entre si
toda uma rede de alianças, de confrontos e de influências, a que não são alheias certas
condicionantes sociais. Citamos, a propósito, o que diz Ignacio Ceballos Viro:
“También se establece dentro de todo grupo doméstico, como complemento de lo anterior
y al margen de todas las posibles predisposiciones cooperativas, una jerarquía de poderes (que
no siempre es la misma en cada una de las esferas de la vida doméstica) que ejercen su fuerza
coercitivamente por los más diversos medios: peso de la tradición, violencia verbal, violencia
física, restricciones a la libertad o a la independencia económica, etc. Y derivadas de esa
jerarquía, son necesarias también unas lealtades de poder: el establecimiento o la conquista de
aliados en el grupo doméstico puede llegar a ser una buena estrategia para hacer prevalecer la
voluntad de uno sobre la de los demás.”
405
Nos romances do corpus, insinuam-se, pois, relações de poder que configuram
hierarquias familiares e sociais, mas também a oposição masculino/feminino, pelo tema
comum que neles se encontra - o Amor, nas suas diversas manifestações - numa
bipolarização que não se exclui mutuamente, antes se completa. O poder que é exercido
pelo mais forte sobre o mais fraco, cruzando o nível social e o familiar 406 , pode,
contudo, inverter-se.
405
Ignacio Ceballos Viro [2009], El romancero tradicional y las relaciones de parentesco: la suegra
malvada, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Filologia da Universidade Complutense de
Madrid, 2009, disponível na Internet em http://eprints.ucm.es/10606/1/T31862.pdf, arquivo acedido em
28 de Março de 2011.
406
Ambos os níveis são indissociáveis, visto que a família tem uma natureza eminentemente social e a
instituição do casamento, “… é um paradigma de sociedade que existe e se desenvolve no âmbito de uma
sociedade maior…”. Cf. Almeida Langhans [1970], Antropologia Luso-Atlântica. Estudo das “Maneiras
de iver” do Homem Português, Lisboa, A. M. Pereira, 1970, p. 49.
169
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Oposição
Poder
Desenlace
Homem/Mulher/Hierarquia
Familiar
Bernal Francês – amor adúltero
Do marido sobre a mulher
Morte da adúltera
Silvana – amor incestuoso
Do pai sobre a filha
Logro do pai
Delgadinha – amor incestuoso +
Do pai sobre a filha
Morte da vítima
Do homem sobre a mulher
Morte do perjuro
Da mulher sobre o homem
Casamento
perseguição
Social e de género
Veneno de Moriana – amor
vingador
Gerinaldo – amor atrevido
Bernal Francês
Neste romance, a oposição homem/mulher traduz-se pelo poder que o marido
exerce sobre a mulher e sobre a família e que é sancionado pela sociedade. Ele tem,
mesmo ausente durante longo tempo, o direito de manter a sua autoridade inalterada
sobre a estrutura familiar, o que inclui a mulher, os familiares, os criados e até os
vizinhos, como se comprova:
15.“- Eu não temo a teu pai que ele sogro é de mim”, BF/2 Braga (1867) 34-36
18. “nem tenho medo a teus irmãos, que cunhados são de mim,” BF/8 Pires (1885g) XXI
14.“- Eu nã tenho medo dos teus filhos, porque os teus filhos são meus;”, BF/113
Custódio/Galhoz (1996) 37-38
15.“Não tenho medo de seus criados, que eles criados são de mim.”, BF/7 Dâmaso
(1882) 155-156
15.“- No me temo dos vezinhos, qu’eles vezinhos são de mim
16. No me temo da familha, q’i-elas familha é de mim”.
BF/51 Buescu (1961) 209
Mesmo a morte da adúltera não traz consequências para o matador, o que implica
o seu Poder; ele, aliás, como já dissemos, declara explicitamente não temer a Justiça,
sugerindo ter o direito de não cair sob a sua alçada:
170
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
13.“nem tenho medo à justiça, que a justiça é por mim”, BF/94 Fontes I (1987) 352-353
Veneno de Moriana
O que à primeira vista ressalta, neste romance, é o poder da mulher sobre o
homem, visto que é este que sofre a morte. Há, contudo, uma forte implicação de que a
verdadeira oposição é devida a que o cavaleiro/D. Jorge se tenha servido da sua
condição de mais forte (social e de género) para “enganar” a rapariga e à posterior
quebra das promessas de casamento. Em estudo sobre uma sociedade rural alentejana
nos anos sessenta, José Cutileiro anota que os homens das classes mais abastadas
sempre encontraram amantes entre as mulheres das famílias pobres, iniciando-se estas
relações, em certos casos, quando as raparigas eram ainda solteiras e trabalhavam para
eles como criadas, situação devida, na maioria dos casos observados, à necessidade de
estas colherem benefícios materiais 407 . O que interessa aqui ressaltar é a relação de
poder exercida, a lembrar a conduta desses outros fidalgos do Cruzeiro, em Os Fidalgos
da Casa Mourisca, que andavam “pondo em confusão as lavadeiras moças que ensaboavam
nas presas, abraçando à força na estrada as raparigas” e que, nas palavras do Tomé da
Póvoa, “andam por aí zunir aos ouvidos das raparigas e a fazê-las doidas”408. Se as raparigas
tinham poucas probabilidades de vir a casar, caso abandonadas pelo namorado e
havendo suspeita de terem mantido com este relações sexuais, tal não se aplicava aos
rapazes, cujas opções eram mais alargadas409.
A morte do presumível sedutor é, então, a consequência do poder que o cavaleiro
havia primeiramente exercido sobre Moriana e este desenlace exprime, da parte da
407
Cf. José Cutileiro [2004], Ricos e Pobres no Alentejo (uma Sociedade Rural Portuguesa), Lisboa,
Livros Horizonte, 2004, p. 125-131.
408
Cf. Júlio Dinis [1979], Os Fidalgos da Casa Mourisca, Lisboa, Círculo de Leitores, 1979, p. 135 e
141.
409
Cf. Cutileiro [2004], p. 83-87.
171
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
abandonada, uma atitude de não conformismo, pelo que o romance apresenta, em última
instância, uma inversão dos termos “naturais” do poder.
Silvana e Delgadinha
Em ambos os romances, o poder exercido tem a ver com a hierarquia familiar e
não social, pois o estatuto socioeconómico dos intervenientes não afecta a intriga
propriamente dita. Verdade é que, em Delgadinha, o castigo da filha consta do
encerramento numa torre ou em locais por vezes mandados fazer expressamente para o
efeito pelo pai (castelo ou palácio), o que estaria somente ao alcance de alguém
poderoso como um rei (“Ma nd o u faz er u m c as te lo p o sto na mara v il h a, / / para meter a
Silvana dez anos e um dia.”, D/146 Fontes I (1987) 445-446, vv. 7-8
ou “Mandou fazer um
palácio dos mais altos que havia; // E Faustina dentro dele sete anos e um dia”, D/36 Leite
(1960) 49, vv. 6-7); porém, noutras versões, um mais modesto “quarto” (10. “Mandou-a
fechar num quarto, sem comer, nem beber nada.”, D/178 Galhoz (1987) 373-374), no qual a
jovem é confinada pelo pai, cumpre as mesmas funções da “torre”, o que demonstra que
o poder de que é detentor no seio familiar sobreleva-se à relevância do estatuto social.
Em Silvana, como adiante se verá, o pai o poder do pai é limitado, uma vez que
apenas sugere o incesto e não há castigos para a filha recalcitrante ou para a sua mãe; é
esta, aliás, que parece deter o Poder nesta família.
Em Delgadinha, pelo contrário, o pai é o todo-poderoso chefe da família, que não
só tem o direito de castigar a filha que se lhe opõe, como de escolher de entre as que
tem (a negrito):
1.“O conde das três Marias, por sê'lo conde maior,
2. Ele qu'ria outras meninas, todas lindas como o sol.
3. A sua filha Faustina, por sê'la mais afidalgada,
4. Foi a que seu pai escolheu para sua namorada.”
D/34 Leite (1960) 46-47
172
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O poder de dispor de todas elas torna-se também muito claro no momento em que
envia a água a Delgadinha, pois a recompensa prometida ao mais célere em lhe
obedecer é uma das filhas, como nos seguintes exemplos:
24. “o que lá chegar primeiro casará com filha minha!”, D/16 Landolt (1917) 83-84
12. “O primeiro que lá chegar casará com uma filha minha”, D/171 Galhoz (1987) 360
Note-se que, por vezes, o prémio oferecido é a própria Delgadinha:
27.“o primeiro que chegar Silvaninha tem ganhada,” D/18 Nunes (1928) 229-230
26.“O que cá chegar primeiro tem Silvaninha ganhada.” , D/55 Leite (1960) 76-77
Quanto à recusa da água por parte da família, o episódio pode ser analisado à luz
das relações de Poder no seio da família e do tipo de adesão que cada um dos seus
membros demonstra quanto à hierarquia e ao seu peso relativo nos laços familiares.
A mãe acusa frequentemente a filha de a fazer “malcasada”, chegando a insultá-la:
23.“- Vai-te dai, pérola negra, pérola negra encantada
24. Há sete anos que aqui andas, fazes-me andar mal casada”
D/178 Galhoz (1987) 373-374
A acusação alude implicitamente ao desinteresse conjugal do marido, o que
representa uma ameaça ao seu próprio estatuto dentro da hierarquia familiar; epítetos
como “perra traidora”410 e semelhantes denunciam afinal o receio de ser substituída pela
filha no lugar que lhe pertence, o que fica subentendido pela presença do condicional,
no exemplo abaixo, em que a mãe demonstra alguma vontade de ajudar, não fosse isso
provocar, uma inversão dos respectivos papéis dentro da família:
12. “- Sim, ta dava, Delgadinha, se não me fizesses mal casada”, D/43 Leite (1960) 56
A hierarquia de poderes dentro da família está bem patente na versão abaixo, a
S+D/23 Cortes-Rodrigues (1987) 346-348, na qual a irmã a quem Delgadinha pede água
lamenta não lha poder dar, mas sugere que peça a quem o poderá fazer, o irmão:
410
D/132 Mourinho (1984) 154-155, v. 13.
173
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
22.“Chega-te à outra varanda onde nosso irmão está;
23. Se tu água lhe pedires, pode-te a mandar.”
Este faz exactamente o mesmo e diz a Delgadinha que peça à mãe:
26.“Chega-te à outra varanda onde nossa mãe está;
27.Se tu água lhe pedires pode-te a mandar.”
Esta, por sua vez, manda a filha pedir ao pai, único que tem, na verdade, o poder
de a salvar:
34. “Chega-te à outra varanda onde teu pai está;
35. Se tu água lhe pedires pode-te a mandar.”
O mais humilde, neste transe, procurará sempre remeter para o que o antecede na
cadeia hierárquica e é assim que, noutra versão, as criadas, a quem a jovem ama pede
água, sabem que esta é a última desta cadeia e não detém qualquer poder; por isso,
como a lamentam, aconselham-na a dirigir-se à mãe, julgando que o “querer” desta
equivale a “poder fazer”:
22.“As criadas le disseram: - Minha Silvana da minh'alma,
23. vai ter com tua mãe, qu'ela ta há-de querer dar.”
S+D/21 Fontes (1983a) 123-124
Que a mãe e o resto da família temem o pai é bem certo, parecendo agir (ou
melhor dizendo, não agir) em bloco:
25.“Tem-nos prometido a todos, pelas cruzes da sua espada,
26. que aquele que te der água terá a cabeça cortada!”
S+D/5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V
Ele, de facto, poderá matar qualquer um, por isso recusam a ajuda, mesmo que a
acompanhem de expressões de simpatia por Delgadinha:
13.“- Eu a água bem ta dava, ó mana do coração,
14. mas o papá deixou dito que alguma de nós matava.”
D/242 Marques (1996) 157-158
174
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A família, se habitualmente exprime o receio das represálias (serem enforcados,
degolados, amaldiçoados ou ter cabeças e mãos cortadas), também não deixa de
apresentar como motivo da recusa de dar água a sua convicção de que Delgadinha
desobedeceu ilicitamente ao pai. A obediência, de resto, numa relação de poder, é dever
dos filhos, di-lo a Bíblia: “- Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, porque isto agrada ao
Senhor”,Col. 3, 20.
A negação de ajuda pela família, que no romance se destinará a acentuar os
padecimentos e também a integridade moral da jovem, revela não só uma certa
condescendência em relação ao incesto como demonstra falta de solidariedade para com
a desobediência de Delgadinha. Põe-se a questão, uma vez que a jovem em algum
momento se queixa à mãe (como faz Silvana) ou refere à família a proposta de que foi
alvo, de desconhecerem as intenções incestuosas do pai e não a ajudarem, levando o
castigo à conta de qualquer outra razão, mesmo na sua crueldade. No entanto, eles
sabem perfeitamente o que se passara, como se deduz do o teor de certas respostas ao
pedido de auxílio, que implicam que a família não hesita em sacrificar um dos seus
membros à omnipotência do seu chefe.
O preceito, religioso e social, que impõe aos filhos o dever de obedecer aos pais,
levado ao extremo, parece implicar que a protagonista de Delgadinha, em certa medida,
é culpada por resistir ao pai411. Irmãos há que nem compreendem a resistência da irmã,
o que, por vezes, é muito explícito:
27.“- Vai-te daí, irmã minha, cara de filha salgada,
28. Porque não fazias tu o que o nosso pai te mandava.”
S+D/27 Galhoz (1987) 387-389
Uma outra irmã realça mesmo as vantagens que aquela obteria se cedesse:
49.“Porque não fazias o que teu pai te pedia,
411
O que, de alguma forma algo retorcida, explicaria o prolongamento do romance de Silvana com o
castigo do encerramento.
175
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
50. Hoje serias da mais alta senhoria”
S+D/28 Galhoz (1987) 390-392
Em algumas versões, Delgadinha invoca os laços familiares para pedir água aos
irmãos e à mãe, fazendo-o com a proposição “Se [tu és minha irmã, meu irmão, minha
mãezinha], então [dá-me uma pinga d'água]”, equivalendo a primeira parte ao sentido
de é porque [tens comigo laços familiares] e a segunda a que deves [auxiliar-me]412.
Irmãos e mãe, negando-lhe a água, subvertem a obrigatoriedade de prestar auxílio a um
membro da família que se permite desobedecer ao seu chefe.
Contudo, diferenças de opinião podem também coexistir entre irmãos. No caso da
S+D/29 Galhoz (1987) 394-395, esta expressa-se segundo a idade de cada um. O mais
velho, na sua condição de futuro representante da família, matá-la-ia por ter causado dor
a “todos”, implicando, com este colectivo, que a família se vê como um bloco
prejudicado pela desobediência da irmã:
23.“Respondeu o mais velhinho: ah quem fosse caçador,
24.Mesmo daqui te matava que encheste todos de dor.
O do meio, se bem que gostasse de ajudar a irmã, acaba por não o fazer e
solidariza-se implicitamente com a mãe, abandonada pelo pai:
25.“Respondeu o da metade: à mesma hora eu te ajudava,
26. Por causa tua, Silvana, está nossa mãe desgraçada.”
Apenas o mais novo, talvez por a idade o aproximar da irmã, também ela “a mais
nova”, demonstra liricamente, vontade de a ajudar413:
412
Ver, por exemplo, a D/45 Leite (1960) 57-58 (“v. 10: - Se tu és minha irmã, dá-me uma pinga
d'água,”, v. 17:” - Se tu és meu irmão, dá-me uma pinguinha d'água.”, v. 20: “Se você é minha mãezinha,
dê-me uma pinguinha d'água,”, v. 26 “- Se você é meu paizinho, dê-me uma pinga de água,”).
413
Note-se a semelhança, na dureza dos mais velhos e na compaixão demonstrada pelo irmão mais novo,
com a atitude dos irmão de Aliarda (IGR 0149) ao ouvir o Conde gabar-se de ter dormido com a irmã;
enquanto os mais velhos propõem matá-la, o mais novo responde que o melhor será casá-la. Damos,
como exemplo, a versão 85 deste romance em RPTOM, p. 209:
“Disseram uns para os outros: - Irmãos, vamos a matá-la?
176
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
27.“Respondeu o mais novinho, cheio de pena e de mágoa:
28.- Ó quem fosse passarinho que no bico ta levava”.
O conjunto das versões apresenta uma diversidade de respostas da família a
Delgadinha só possível de explicar pelo conflito moral entre a repugnância pelo acto
incestuoso e a natural obediência ao poder paternal, que impede o auxílio à vítima.
O conflito é de tal ordem que não há hipótese de ser resolvido humanamente,
restando apenas a solução prodigiosa de fazer a personagem morrer para evitar que,
finalmente, obedeça ao pai e cometa o incesto. O facto é que Delgadinha não morre por
falta de água, pois esta é-lhe enviada; todavia, ela não pode bebê-la, pois se o fizesse
seria obrigada a cumprir o compromisso que tomara de ceder ao pai em troca de poder
saciar a sede, o que é o mesmo que dizer que teria de obedecer aos desejos dele. Ora isto
Respondeu o mais novinho: - Irmão, vamos a casá-la?
Muito ouro e muita prata temos nós para lhe dar;
Co’a fama de um grande dote alguém a há-de aceitar.”
Não nos parece possível estabelecer uma correlação directa de contaminação formulária (irmãos mais
velhos/irmão mais novo) entre esta versão, recolhida em Vinhais, c. de Bragança e editada em 1906 por
José Augusto Tavares Teixeira [1906], “Romanceiro transmontano”, Revista Lusitana, IX, 1906, pp. 277323 e a compósita de Silvana e Delgadinha do nosso corpus, recolhida em Tafe, c. de Tavira, em 1983 e
editada por Vanda Anastácio em 1988:
Respondeu o mais velho:
36. “- Ó minha mana Silvana, minha mana da minha alma,
37.
se eu fosse caçador mesmo daqui te tirava.
Respondeu o mais mocinho:
38
- Ai, quem fosse passarinho, quem no biquinho t'alevava!
S+D/36 Anastácio (1988) 81-83
No entanto, a correspondência semântica existe nas duas versões, tão separadas entre si por tempo, espaço
e tema, pelo que a entenderemos como um motivo (os motivos, como havemos de tornar a referir, podem
viajar entre contextos diferentes) que empresta o mesmo sentido a ambas: os irmãos mais velhos
sacrificam a irmã à “honra” familiar (tal como os irmãos de Claralinda a querem matar, ao saberem que o
Conde Claros se anda a gabar de ter dormido com ela; cf. Conde Claros gabarola, em RCTOP, Vol. I,
5.4.2.4, pp. 337-339), enquanto o mais novo se inclina à clemência. Note-se, ainda, e porque falamos de
padrões sócio-culturais, que mesmo este irmão mais novo de Aliarda, se não quer matar a irmã, apenas
encontra a solução de lhe resgatar a honra por um casamento, cujo sentido último é a de a vender a quem
esqueça o desaire por “muito ouro e muita prata”, ouro e prata esses que também, em certas versões
destes romances de incesto, se oferece às visadas (Como em Delgadinha: 5.”queres tu, ó Baldebina, ser a
minha namorada? // 6.Que eu de ouro te vestia, e de prata te calçava.”, D/14 Lima (1914) 294-295).
177
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
traduzir-se-ia numa obediência antinatural que contrariaria a obediência às leis
superiores, que não o permitem. Estas leis, por sua vez, podem ser do foro religioso, e
mais restritivamente, cristão, com a intervenção explícita das entidades divinas (Deus, a
Virgem, os anjos) que levam a jovem para o Céu, ou mais pagão, representado este pela
fonte de água clara. Uma vez que Delgadinha não bebe, no sentido prosaico, desta água,
entende-se que ela tenha a mesma funcionalidade de representação de um poder
superior ao humano que impede a prossecução da prometida (mais ou menos explícita)
obediência ao pai.
Na verdade, a tentativa de incesto é coisa do Diabo, que fica “raivoso” com a
morte de Delgadinha, logrado que fica por não se ter concretizado semelhante infracção:
33. “[Mas Galdina era morta, quando água lhe chegava,]
34. la Virgem la abençoou, anjo do céu la guardava.
35. Lo diabo, de raivoso, no Inferno praguejava.”
D/3 Azevedo (1880) 109-112
Nesta perspectiva, a morte será a única possibilidade que se oferece a Delgadinha
para resistir ao poder do pai, enquanto em Silvana os traços incesto/poder estão
dissociados, não se opondo a jovem directamente ao progenitor, pelo que não sofre o
castigo do encerramento e da sede. Neste romance, aliás, o pai não adopta o tom
impositivo como o faz o pai em Delgadinha, pelo que a questão da “obediência” se põe
neste e não em Silvana.
A rede de oposições em Silvana é mais complexa do que em Delgadinha, facto
tanto mais notável por se tratar de apenas três intervenientes. Mais do que traduzir a
natural protecção de uma mãe a sua filha, o romance reflecte o sentido da união de duas
mulheres contra um homem (oposição de género) que tem Poder sobre ambas,
frustrando-o nos seus intentos; mas essa mãe poderia ter alcançado o mesmo fim sem
deixar que a relação sexual com ela própria se concretizasse, pelo que o que fica
178
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
implícito é que, permitindo (ou, dir-se-ia, incentivando) essa forma de desmascarar o
marido, pode humilhá-lo e, dessa maneira, retirar-lhe autoridade. Com essa atitude,
ademais, afirma os seus direitos não só sobre o marido como sobre a própria filha, que,
de certo modo, foi sua rival.
O poder paternal, de qualquer forma, sai, afinal, logrado nos dois romances, uma
vez que ambas as filhas acabam por evitar a consumação do incesto, ainda que uma o
consiga pela astúcia e a outra pela morte.
Gerinaldo
Os amores da infanta e do pajem vão começar por centrar o romance no poder da
mulher sobre o homem, visto que é ela que o seduz414. De Gerinaldo diz Pratt Ferrer:
“El romance de Gerineldo contiene una situación inicial que, aunque no está expresada
explícitamente en él, representa un orden social establecido y que, por lo tanto, debe ser
respetado. Existe una jerarquía que limita y determina el trato que debe existir entre una persona
de sangre real y sus criados, y una orden implícita que prohíbe que la infanta tenga relaciones
sexuales fuera del matrimonio. No cumplir con estas regulaciones conlleva una alteración del
orden social establecido, con lo cual se crea un problema que debe ser resuelto. Por otra parte, el
orden social está fatalmente en desacuerdo con la inclinación instintiva al amor. Así pues, desde
el principio existe una tensión entre las prohibiciones que la sociedad impone y las fuerzas de la
naturaleza, es decir, del amor. Esta tensión es esencial para el desarrollo del argumento. La
ruptura de un orden, la desobediencia ante una prohibición exige un castigo, pero si esta
desobediencia se debe a unas fuerzas determinadas por leyes de otra índole entonces, se crea un
dilema.”415
Por nossa parte, entendemos que o facto de a sedutora ter um estatuto social mais
elevado do que o do seduzido vai deslocar o núcleo de interesse que, em primeira
414
Na versão G/114 Fontes I (1987) 477-478 é muito claro que este sentido é compreendido plenamente
pela informante, que assim o explica: “Ameaçava-a ela. Ela é que ameaçava o Gerinaldo. Era o criado
do pai. Ela gostava dele.”. Repare-se que usa a expressão “ameaçar” por “assediar”, frisando que é “ela”
[a infanta] a responsável, dizendo embora que é por gostar dele.
415
Cf. Juan José Pratt Ferrer [1988], “GERINELDO, GERINELDO”, em Revista de Folklore, nr. 93,
Tomo
08b,
pp.
86-98,
Fundación
Joaquín
Díaz,
1988,
http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=871, arquivo acedido na Internet em 15 de Dezembro de
2009.
179
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
instância, sustenta o romance, do campo da moralidade para o campo das hierarquias.
Esta deslocação deve-se ao facto de o pai que intervém ser um rei, o que introduz
relações de poder mais complexas que as decorrentes da oposição amorosa
Homem/Mulher ou familiar Pai/Filha. Tal evolução temática há-de revelar-se nas
considerações que o rei faz ao descobrir os dois infractores adormecidos lado a lado matar o pajem e a filha. O simples facto de, para o rei, isso constituir um dilema, prova
a implicitude de que o “deveria” fazer como pai e o “poderia” fazer porque rei (13.”O rei
se pós a pensar o que havia de decidir.”, G/180 Carvalho Rodrigues (1990) 203-204). Todavia,
ao pajem, não o quer matar porque o criou de pequenino e o ama como a um filho (13.”Se mato a Gerineldo, criei-o desde pequenino”, G/204 Armistead/Fontes (1998) 110-111). Em
relação à própria filha, porém, não invoca o amor paternal para não a matar (7.”Ou se
mato a infanta
fica o reinado perdido!”, G/171 Galhoz (1987) 407-408), mas declara
explicitamente que o reino fica “perdido”, o que suscita algumas questões.
No romance, esta filha de rei é referida como “a infanta”, mas também “princesa”:
16.”- Se te mato, ó princesa, fica-me o reino perdido;”, G/8 Leite (1881) 58-61
O facto é que se a protagonista de Gerinaldo é designada como “infanta” nos
“pliegos sueltos” do século XVI, o termo coexiste com “princesa” já na versão factícia
de Garrett, segundo ele composta por versões oriundas de Alentejo, Estremadura, Beira
Baixa, Douro Litoral, Ribatejo, Beira Alta e Minho.
7.” - Pois quando quereis, infanta, que vá pelo prometido?
[…….]
30. Tira el-rei seu punhal de oiro, deixa-o entre os dois metido,
31. o cabo para a princesa, para Reginaldo o bico.”
G/1 Garrett II (1851) 158-167
180
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Ora “infante” é termo que designa “em Portugal e Espanha filho de reis, porém não
herdeiro do trono” 416, dizendo Bluteau que este título se dá nos reinos de Portugal e
Castela aos filhos do rei, dando-se o de “príncipe” ao primogénito417. Esta designação,
todavia, surge aplicada exclusivamente ao herdeiro do trono 418 , em Portugal, pela
primeira vez ao infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V, quando este se torna rei,
aos seis anos de idade, por morte do pai, D. Duarte, tendo-o sido até que o Africano teve
sucessor, aquele que viria a ser D. João II. Até ao nascimento deste, foi sua irmã mais
velha a “princesa herdeira” e as preocupações com a garantia da sucessão haveriam de,
por muito tempo, pôr entraves à entrada na vida religiosa daquela que ainda hoje é
conhecida por “Princesa Santa Joana”419.
Por outro lado, no “pliego” de 1537, Desesperaciones de amor, o rei só pondera
matar o pajem e não a filha:
1.”Levantóse Gerineldo que al rey dejara dormido:
2. fuése para la infanta
donde estaba en el castillo
[……………]
15.Él quisiéralo matar;
mas crióle de chiquito;”
416
O Dicionário Houaiss, Tomo IV, p. 2090, na entrada respectiva, dá-o com origem no séc. XIII.
Diz Paulo Merêa que D. Afonso Henriques “nos primeiros anos, e ainda depois da morte da mãe,
intitulou-se apenas «infante» (infans), como filho da rainha D. Teresa, e às vezes príncipe, palavra de
significado vago aplicada genericamente aos indivíduos que governavam algum território e que já fôra
usada por seu pai D. Henrique.” Cf. Paulo Merêa [1926], “Quando começou D. Afonso Henriques a
intitular-se Rei?”, Revista de estudos históricos, Vol. 3, Num. 1/3, 1926, pp. 62-67, disponível na
Internet em http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id112id224&sum=sim, arquivo acedido em 6
de Maio de 2011.
417
Cf. Raphael Bluteau [1712-1728], Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico
..., Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v., (entrada para “infante” no
Tomo segundo, p. 122), disponível na Internet em
http://books.google.com/books?id=4FkSAAAAIAAJ&printsec=frontcover&hl=ptPT#v=onepage&q&f=f
alse, arquivo acedido em 6 de Maio de 2011.
418
É sabido que, na actual Espanha, o filho do rei Juan Carlos tomou o título de “Príncipe das Astúrias”
ao ser reconhecido como herdeiro da coroa, sendo suas irmãs, ambas mais velhas, infantas de Espanha.
419
Cf. Saul António Gomes [2006], D. Afonso V, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006.
181
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O mesmo acontece na sua reprodução com variantes na Tercera parte de da Silva
de vários Romances, de 1551, mas o dilema aparece no “pliego suelto” s. a., colocado
por A. Durán, vagamente, entre os impressos no séc. XVI420:
29.“Mataré yo a Gerineldo al que cual hijo he querido?
30. Si you matar ela infanta mi reino tengo perdido!” 421.
Torna-se evidente que a filha é a herdeira da coroa porque o rei não tem outros
filhos para lhe suceder. Não deixa de ser de notar que, numa versão, na qual os laços de
sangue aparentam ser a razão invocada para não a matar, o rei refira a “princesa”
(22.”p'ra ir matar la princesa, meu sangue vai-me perdido;”, G/6 Azevedo (1880) 66-68),
enquanto noutra, que fala explicitamente da “filha”, menciona com clareza as razões
(21.”se mato minha filha, fica meu reino perdido.” G/16 Pedroso (1902) 464-465) e estas são
de Estado - a morte da filha acarretará problemas sucessórios: 11.” para matar a infanta,
meu reino fica perdido.”, G/205 Alves Ferreira (1999) 125-126.
Assim, no romance, o termo “infanta” é facilmente intercambiável com
“princesa” 422 , reforçando a ideia de que a morte da única herdeira existente (e
reconhecida enquanto tal) acarrateria grande prejuízo ao reino. Não se refere, assim, ao
sistema que, na lei sálica
423
, exclui as mulheres da sucessão à herança (e
420
Por se iniciar com a proposta da infanta, este “pliego” também se distingue do de 1537 , que começa
com o levantar do rei:
1.”Gerineldo, Gerineldo, el mi paje más querido,
2. quisiera hablarte esta noche en este jardín sombrio”
421
Em Romancero General, I, BAE X, P. lxxiv. Cf. Catalán, Cid [1975], Vol. I, p. 25.
Como dissemos, “infanta” aparece nos “pliegos” (noutros, como o da Canción nueva del Gerineldo e
refundições, os amores são entre um “oficial russo” e a “sultana favorita del Gran Señor”) e em grande
número de versões pan-hispânicas, embora seja substituído ou coexista, noutras, com “princesa”. Cf.
Catalán, Cid [1975, 1976]*, ** e ***.
423
A lei sálica (lex Salica) é, na verdade, um conjunto das leis que governavam os francos sálios e que
excluíam as mulheres da herança. Cf. a entrada “Salic”, em William Little [1969], prep. by, The Oxford
Universal Dictionary Illustrated, Vol. II, London, New York, Melbourne, Toronto, Wellington, Oxford
University Press, 1969, p. 1781. Sobre a questão da herança feminina, transcrevemos, do inglês: “But of
Salic land no portion of the inheritance shall come to a woman: but the whole inheritance of the land shall
come to the male sex”. Cf. Salic Law, em Internet Medieval Sourcebook, Online Reference Book
for Medieval Studies, disponível na Internet em http://www.fordham.edu/halsall/source/salic-law.html,
422
182
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
consequentemente ao trono), mas aponta para o da primogenitura agnático-cognática,
que permite às mulheres reinar, na ausência de herdeiros masculinos424, o que é evidente
na versão na qual os conselheiros425 não se querem comprometer nem descontentar o rei
ou a infanta, pois sabem que esta viria a governar:
29. “El-rei rei chama o seu conselho, que se quer aconselhar,
30. Mas los grandes de palácio, falavam sem desatar,
31. Nem el-rei, nem la infanta queriam descontentar,
arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. A lei sálica, codificada no séc. V, tendo alegadamente
constituído as bases para as leis de Carlos Magno, dizia respeito à posse da terra, mas não à dos bens
móveis, e foi, a partir do séc. XV, invocada por algumas monarquias hereditárias como coerciva do
direito das mulheres à sucessão ao trono, tendo, por analogia, tomado o mesmo nome.
424
Na Idade Média tardia, o aumento da esperança de vida dos herdeiros veio a originar um decréscimo
da necessidade de as mulheres assegurarem a continuidade das linhagens, surgindo então uma preferência
pelo sistema agnático de sucessão. Cf. André Burguière [1997], dir. de, História da Família, 2. Tempos
Medievais: Ocidente, Oriente, Lisboa, Terramar, 1997, p. 15. O espírito das leis da sucessão seria quase
sempre adaptado ao sabor dos diversos interesses políticos e a aplicação da lei sálica (ou sua
interpretação) está na base de muitos conflitos europeus, como a Guerra dos Cem Anos e a Guerra da
Sucessão espanhola, neste caso a contestação da subida ao trono da primogénita de Fernando VII por seu
tio Carlos. Em intenção daquela que seria Isabel II, fora publicada a Pragmática Sanção, que anulava o
Auto Acordado de 1713, o qual excluía a sucessão feminina ao trono e restabelecia o direito castelhano
durante o reinado de Afonso X conhecido por Las Siete Partidas; segundo este, acederiam ao trono as
mulheres no caso de o rei morrer sem descendentes varões. Cf. Rosa Ana Gutiérrez Lloret, Los Borbones,
Isabel
II
(1833-1868),
disponível
na
Internet
em
http://bib.cervantesvirtual.com/historia/monarquia/isabel2.shtml, arquivo acedido em 20 de Junho de
2011. Segundo Bernardo Vasconcelos e Sousa, “[A] adopção do sistema linhagístico, de base agnática,
segundo o modelo de Georges Duby, fez integrar no meio nobiliárquico português alguns dos decisivos
elementos que lhe são inerentes. Entre estes, podemos considerar a tendência para a transmissão
hereditária de certos cargos políticos e administrativos de primeira grandeza, ou o surgimento de signos
identitários da linhagem, como o nome de família e as armas heráldicas (que se constituem, em Portugal,
a partir da segunda metade do século XII e na centúria seguinte). Mas, importa sublinhá-lo uma vez mais,
nem a subalternização dos secundogénitos ou das mulheres assumiu uma expressão absoluta, nem o
património material da linhagem foi transmitido hereditariamente ao primogénito varão, em exclusivo.
Pelo contrário e como vimos, os filhos segundos e as filhas participaram equitativamente na partilha dos
bens materiais da linhagem, já em pleno século XIV. Cf. Bernardo Vasconcelos e Sousa [2007]
“Linhagem e identidade social na nobreza medieval portuguesa (séculos XIII-XIV)”, Hispania, Revista
Española de Historia, 2007, vol. LXVII, núm. 227, septiembre-diciembre, págs. 881-898, disponível na
Internet em hispania.revistas.csic.es/index.php/hispania/article/download/.../65, arquivo acedido em 20 de
Junho de 2011. É de notar que só em 1777 haveria, em Portugal, uma rainha por direito de sucessão. Foi
ela D. Maria I, logo à nascença nomeada “princesa da Beira” por seu pai D. José I, e não teve irmãos
varões; tendo casado com seu tio D. Pedro, este apenas seria “rei consorte”. Cf. Luis de Oliveira Ramos
[2007], D. Maria I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007.
425
Trata-se da G/7 Azevedo (1880) 69-71, de Câmara de Lobos, Madeira. Na G/15 Nunes (1900-1901)
183-185, de Lagos, o rei invoca o conselho (vv. 21-24), mas a versão não contempla a resposta. Numa
versão brasileira de Gerinaldo, que reproduzimos após as do nosso corpus, com a identificação GRPP 364
(pp. 419-422), o conselheiros são de opinião que a infanta e o pajem devem casar-se, visto que este é de
“família real” (“Mandei chamar os consilheiros // Para consilhiar // Os consilheiros me disse // Que podiam
se casar // Que Reginaldo também era // De uma família real.”). Esta condição social do pajem é uma
variante a que nos referiremos no Capítulo III da Parte II. Quanto à ocorrência dos “conselheiros”, é de notar
que se dá em versões, muito poucas e de tão diversas geografias, que conservam o incidente da lenda renana
atrás citada sobre os amores de Emma e Eginhard, também ele um “conselheiro” de Carlos Magno (cf.
Wilhelm Ruland, Legends of the Rhine); a versão algarvia conserva essa circunstância (35.” - General,
General, meu conselheiro atrevido,” G/15 Nunes (1900-1901) 183-185).
183
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
32. Que se el-rei então reinava, viria a filha a reinar.”
G/7 Azevedo (1880) 69-71
Por esse motivo, a solução
426
de fazer casar o pajem e a infanta, que
aparentemente é da ordem do poder moralizador, esconde a questão mais profunda da
detenção do poder dinástico; o casamento faria ultrapassar a menos desejável questão de
uma mulher reinar, pois legitimaria Gerinaldo como herdeiro 427 . Será essa razão,
porventura mais forte que ter criado o pajem “de pequenino”, que levará o rei a atribuir
ao futuro genro os mesmos direitos de um filho de facto, o que é patente em versões
como a G/159 Fontes I (1987) 510-511: “21. Casarás com a princesa, // ficarás como sendo
filho”. A possibilidade de as mulheres reinarem está, de facto, presente no romance, mas
visto que “[A] elevação ao poder do genro na ausência de um filho é uma prática antiga” 428, a
ordem do casamento sugere um presumível desejo do rei de ver no trono um herdeiro
masculino, tanto mais que, como pajem que era, estaria preparado a vir a desempenhar
funções militares de protecção ao reino. Quanto a Gerinaldo, a pronta cedência ao
426
Em análise psicocrítica de Gerinaldo, José Luís Hernandéz encontra neste final uma significação
diversa da nossa. O autor sugere a existência de relações complexas (homossexual, do rei com o pajem e
ciumenta e incestuosa, com a filha) e tratar-se-ia de uma oposição do Poder patriarcal com o Não-Poder
dos filhos. O rei conformar-se-ia com a situação, propondo o casamento. Cf. José Luís Alonso Hernandéz
[2006], An lisis psicocr tico del “Romance de erineldo”. Actas del IX Congreso de la Associación
Internacional de Hispanistas (1986), http://cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/09/aih_09_1_027.pdf, arquivo
acedido na Internet na Internet, em 8 de Maio de 2006. Em Gerinaldo, porém, não encontrámos sugestão
de sentimentos incestuosos do rei, que, muito claramente, se preocupa com o problema da sucessão, pelo
que nos parece que o tipo de envolvimentos neste romance é mais próprio das oposições temáticas que
Bengt Olbek desenvolve, a partir do modelo dos papéis actanciais elaborado por Köngas Maranda, sobre
as categorias das crises e conflitos que aparecem nos contos tradicionais (na vertente dos Ordinary FolkTales, designação de Stith Thompson [1987], The Types of the Folktale, A Classification and
Bibliography, FF Communications No. 184, 4th printing, Helsínquia, Academia Scientiarum Fennica,
1987, p. 19-20). Estas categorias são de estatuto social (Hight/Low), de idade (Young/Old) e sexo
(Male/Female). Cf. Holbekt [1990].
427
Embora não a propósito de Gerinaldo, mas de “Sylvana”, numa versão coligida nos Açores, (“- Que
mulher é esta aqui, / Que tanto está enfadada? / É vossa filha Sylvana, / Que a deixais desherdada”, no
Vol. I, p. 477), Teófilo Braga cita a “lei sálica”, provando a antiguidade deste último pela “allusão ao
costume bárbaro da deserdação da mulher”. Comenta, ainda, que “no romance insulano o barão
moribundo deixa à filha um punhal de ouro”, acto que, segundo Teófilo, simbolizaria que a filha deveria
procurar “a sua riqueza” no casamento, como nos esponsais lombardos, formalizados pela espada e
guante. Embora tratando-se, na realidade, de uma contaminação de Delgadinha e Queixas de D. Urraca,
não deixa de haver analogias com Gerinaldo, na ideia de que o “punhal ou espada” deixado pelo rei entre
a filha e o pajem, associado ao casamento do desfecho, irá resolver problemas ligados à questão dinástica.
Cf. RGP, Vol. III, p. 453.
428
Cf.André Burguière [1997], dir. de, História da Família, 2. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente,
Lisboa, Terramar, 1997 p. 15.
184
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
convite da infanta, dissipados os escrúpulos iniciais, e as desculpas inconsistentes que
dá ao ser descoberto, poderão indiciar uma tentativa de ascensão ao trono através da
ligação com a infanta429. É deste modo que, como na versão abaixo, o pajem passa de
Gerinaldo a “D. Gerinaldo” e se torna, explicitamente, “rei coroado”.
28. “Oh! Quem tivera a ventura que teve D. Gerinaldo!
29.
Era filho dum porqueiro, agora é rei coroado.”
G/40 Leite (1958) 312-313
De qualquer modo, a decisão final mantém o sentido do Poder que é exercido,
pois o rei ordena explicitamente o casamento (sentido inverso ao de consentir) e o
pajem só será herdeiro porque serve intentos políticos.
5. Os actos de transgressão
5.1. Adultério – Bernal Francês
“Não cometerás adultério”, Ex. 20, 14; Dt. 5, 17
O matrimónio é um dos sacramentos da Igreja Católica, que o interpreta como
uma “unidade indefectível das duas vidas”, de acordo com a Sagrada Escritura, devendo
ser “exclusivo e fiel”: “Portanto, já não são dois, mas uma só carne” (Mt. 19, 6) 430.
Por isso, a falta de fidelidade ao matrimónio constitui uma infracção grave, à luz
das leis de Deus e dos Homens que as seguem. A sua simples suspeição poderia
acarretar consequências funestas, sobretudo à mulher, como se comprova no bíblico
Livro dos Números, que prescreve que a mulher suspeita de infidelidade seja levada à
presença do sacerdote, a quem prestaria juramento de inocência. Este administrar-lhe-ia
a água sagrada, advertindo-a de que esta a mataria, em caso de perjúrio e diz o Livro: “E
429
Exceptuando as versões em que o pajem jura não se casar com mulher com quem dormiu ou aquelas
em que se queixa ao rei de ter sido assediado pela infanta.
430
Cf. Catecismo da Igreja Católica [1993], versão oficial portuguesa sob orientação de D. Albino
Mamede Cleto, Coimbra, Gráfica de Coimbra, Libreria Editrice Vaticanna, 1993, Artigo 7. O Sacramento
do Matrimónio, pp. 356-368.
185
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
a mulher responderá: Amén! Amén!”
431
, significando a sua plena aceitação das
consequências. Se bem que o Sexto Mandamento não distinga géneros na condenação
do adultério, não é raro que às mulheres se atribua a responsabilidade da infracção. Pela
analogia que apresenta com a situação inicial de Bernal Francês, transcrevemos parte
do que uma Adúltera diz a um Jovem, em Provérbios, com o ónus da sedução e do
incitamento ao pecado a recair claramente sobre a mulher:
“16. Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto. 17.
Perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo… 18. Vem! Embriaguemo-nos de amor até
ao amanhecer, gozemos as delícias do prazer, 19. porque o meu marido não está em casa; partiu
para uma longa viagem, …”432.
Também nas leis humanas, o severo castigo aplicado às mulheres que o cometem
revela o próprio conceito da sua gravidade. O mesmo se aplica, implicitamente, à
desculpabilização social do marido enganado que faça justiça por suas mãos, mesmo
que este se salde pela morte da adúltera.
No romanceiro e ao contrário do que acontece nas baladas europeias, segundo
Menéndez Pidal 433 , o adultério não é usualmente tratado de forma cómica nem os
maridos enganados demonstram complacência434. Os romances da tradição portuguesa,
a este respeito, são, na generalidade, conformes aos da tradição espanhola, nos quais,
431
Nm. 6, 11-31.
“As seduções da Adúltera”, Prov. 7; 16-20.
433
RoH I, cap. IX, p. 331.
434
Dos Romances de Mulheres Adúlteras registados em RPTOM, apenas em As bodas em Paris, com
uma única versão, o marido revela alguma complacência. Em uma versão de Frei João, os versos 13 e 14,
que aparentemente expressam a bonomia do marido, poderão, na realidade, ser interpretados como um
sarcasmo dirigido a maridos complacentes:
432
“- Deixa-t’istar, mulher minha, na tua cama descansada
Para descanso teu, ‘inda te vou barrer a casa”.
Cf. J. J. Dias Marques e Maria Angélica Reis da Silva [1984-1985], Para o Romanceiro Português,
Separata da Revista Lusitana, Nova Série, Nr. 5, Lisboa, 1984-1985, p. 105.
Nos Romances Vulgares registados em GRPP, o marido consentidor existe no único romance de
Adúlteras, Mulher Ingrata, com três versões (GRPP, pp. 987-990).
186
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
igualmente, aqueles vingam a afronta, ao contrário do que acontece em outros géneros,
nos quais são objecto de escárnio435.
Em Bernal Francês, a condenação ao acto de adultério é, por vezes, subentendido
pelo pedido da morte como coisa merecida, feito pela adúltera:
13.“- Mata, mata, meu marido que a morte bem a mereci”, BF/101 Galhoz (1987) 290-291
Na verdade, o assumir ter cometido um delito grave está também implícito nas
versões em que a mulher pede perdão ao marido, ao contrário daquelas em que o tenta
ludibriar, dizendo-lhe que tudo foi um sonho ou que o ama436.
No entanto, em Bernal Francês, também não deixa de haver uma condenação ao
marido que deixa a mulher sozinha por muito tempo 437 , o que faz com que ela se
“desinteresse” dele e não lhe deseje o regresso, tal como na canção:
“Llorava la casada por su marido,
y agora la pena de que es venido.
Llorava la casada por su velado,
y agora la pesa de que es llegado”
[Correas, Vocabulario, p. 578b]438
Este sentido revela-se claramente na explicação que precede a versão BF/79
Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 138-139: “Um homem oi para o Brasil
435
A entrada 2 para os Tipos Morais, “El cornudo”, relaciona diversos modelos e antecedentes literários
de maridos enganados, distinguindo os que são ridicularizados por estúpidos, patéticos ou consentidores
daqueles que despertam admiração e temor por vingarem a afronta recebida. Cf. Joaquín Álvarez
Barrientos, Mª José Rodríguez Sánchez de León [1997], Diccionario de Literatura Popular Española,
Salamanca, Ediciones Colegio de España, 1997, pp. 335-336. Em relação aos que não retaliam, e apenas
para acentuar a reprovação social que o consentidor sofre através da literatura oral, refira-se o provérbio
português - “O homem que a molher não guarda, merece de trazer albarda”, citado por Carolina Michäelis
de Vasconcelos [1996], A Saudade Portuguesa, Lisboa, Guimarães Editores, 1996, p. 66. Fica bem
patente o sentido colectivo desta forma breve, sendo os provérbios “veículos de uma experiência e de um
saber colectivos, onde se plasmam as representações simbólicas, as verdades socioculturais e as normas
de conduta que alicerçam a vida da comunidade”, segundo Ana Cristina Macário Lopes [1992],
“Provérbios: o ‘eterno retorno’”, em Manuel Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa.
Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, pp.
269-280.
436
Ver Anexos. Grupo B. B.4. BERNAL FRANCÊS - Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação.
437
Na Parte II, Capítulo III – As intervenções na enunciação e no enunciado, veremos como a junção de
A Aparição a Bernal Francês opera este sentido.
438
Nr. 549 em Margit Frenk [1990], Lírica española de tipo popular, Madrid, Catedra, 1990.
187
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
e deixou ficar a mulher na terra. Escrevia-lhe, mas não recebia resposta. É que ela tinha
arranjado um amigo e por isso se desinteressara dele.” O tema é abordado frequentemente
em Literatura e Gil Vicente, no Auto da Índia, representado à “muito católica Rainha D.
Leonor”, fá-lo de forma bem mais jocosa do que nos romances de adultério, mas nem
por isso menos elucidativa das consequências da partida dos maridos a buscar fortuna,
deixando as mulheres sozinhas 439. Mais tarde, dizia D. Francisco Manuel de Melo “duas
palavras a uns certos casados” que se ausentavam por longo tempo “deixando as mulheres
440
moças, e às vezes bem desamparadas de todo o resguardo que lhes é devido”
.
Em Delgadinha, o argumento de fazer a mãe “mal-casada”, atrás citado, é também
um modo de lembrar o sacramento do Matrimónio. De facto, os laços matrimoniais
parecem sobrepor-se aos maternais e a mãe, numa versão compósita de Silvana e
Delgadinha (S/4), insinua lamentar ter ajudado a filha (em Silvana), o que a levou a
essa condição de “mal casada”:
18.“Vai-te por aí Galdina, Galdina desgraciada,
19. por amor de ti, Galdina, sete anos de mal casada.”
D/2 Azevedo (1873) 767
439
Diz à criada a Ama, cujo marido vai partir para a Índia:
“estará bem graciosa
quem se vê moça e fermosa
esperar pola ira má.
[……….]
Quem há tanto d’esperar?
[………]
pera que é envelhecer
esperando polo vento?
[……..]
Partem em Maio daqui
quando o sangue novo atiça
parece-te que é justiça?”
Ao Castelhano é que a situação agrada, pois lhe dirá “que la India hizo Dios 145 // sólo por que yo con
vos // pudiese pasar aquesto.” Cf. Camões [2002], Índia, Vol. II, pp. 171-186.
440
A esse propósito, conta a história de um certo Mosen Gralha, fidalgo casado de pouco que, deixando
sua mulher para acompanhar Carlos V a Itália, recebeu dela o seguinte recado: “Mosen Gralha, Mosen
Gralha, mon amor non manja palha”. Não entendendo estas palavras, mostrou-as ao Imperador e este
tanto lhes entendeu o sentido implícito que logo mandou para casa o pouco previdente marido. Cf. D.
Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados, Porto, Editorial Domingos Barreira, 1963, p. 139140.
188
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
5.2. Incesto – Silvana e Delgadinha
“ Não profanes a tua filha, fazendo-a prostituir-se;
para que a terra não se prostitua e não se torne incestuosa»
Lev. 19, 29.
“Quem planta a bananeira tem direito a comer o primeiro fruto".
(dito entre certas populações ribeirinhas da Amazónia441)
Os laços naturais entre pais e filhos desintegram-se quanto é cometido um incesto,
razão pela qual este é uma infracção, condenada tanto pela sociedade como pelas leis
divinas442 :
“Desde la Antigüedad, el incesto há sido considerado un crimen de los más execrables,
digno de la peores maldiciones y de los mayores castigos. Creencias y relatos documentados en
muchas épocas y tradiciones muestran como a esa falta condenada en casi todas las culturas se
le puede asociar muchas veces el castigo a los parientes incestuosos…” 443.
O incesto é considerado um pecado cujas implicações se revelam nas falas das
personagens de Silvana e de Delgadinha. Assim o entende a protagonista deste último,
que invoca as leis divinas para não ceder ao pai e lembrando “Deus do Céu” e a
“Virgem Maria” como entidades que não querem tal crime. De facto, estas alegações
têm um tal valor normativo que o pai fica sem argumentos e só lhe resta fazer valer a
sua autoridade pela força. Já Silvana, que hesita, também alega recear as “penas do
Inferno”, ao que o pai ainda replica que pode haver perdão, embora se reconheça nas
441
Segundo Maria do Carmo Modesto, que nessa zona coordena acções sociais, a prática do incesto com
filhas é tida como uma "tradição", apud Geraldo José Ballone, “Incesto”, PsiqWeb, disponível em
http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=307, arquivo acedido em 30 de
Novembro 30 de 2009.
442
No entanto, algumas passagens do Velho Testamento parecem justificar certas formas de incesto,
como o das filhas de Lot, que, crendo não haver homens na região onde se haviam refugiado depois de
fugirem de Sodoma e temendo não terem geração, se deitam com o pai embriagado. Em comentário a este
episódio, porém, explica-se que “a causa desta tão grande perversidade moral deve-se aos nefastos
exemplos e desmandos morais naquela corrompida cidade”. Cf. Bíblia Sagrada (Gn19.30-38).
443
Cf. José Manuel Pedrosa [2005], “Por qué vuelan de noche las lechuzas, por qué murió joven Roldán,
por qué se llama una novela Cien años de soledad: exclusión, soledad y muerte en los relatos de incesto”,
em Manuel da Costa Fontes e Joseph T. Snow, ‘Entra mayo y sale a ril’: Medieval Spanish Literary and
Folklore. Studies in Memory of Harriet Golberg, Newark, Delaware, Juan de la Cuesta, 2005, pp. 259279.
189
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
suas palavras o implícito de que a grandeza do pecado é tal que só um papa o pode
perdoar:
5.“- Serei uma, serei duas, serei toda a minha vida,
6. mas as penas do inferno, mê pai, quem nas passaria?
7. - Ê as passo, minha filha, a todas horas do dia.
8. Lá está o Santo Papa em Roma, perdoa o pai p'r'uma filha.”
S/16 Ferré (1982) 207-208
A filha, mesmo tentada, é que tem as suas dúvidas e argumenta:
5. “O padre santo não assolve pecados de pai com filha.”, S+D/18 Fontes (1983a) 118-119
Na verdade, o fenómeno, que costuma interessar a disciplinas como a
Antropologia, a Sociologia ou a Psicologia, também se manifesta na Literatura Oral e
Tradicional, em grande diversidade de discursos significantes e abrangendo situações
que vão do incesto consciente ao involuntário e do efectivamente cometido ao evitado
por determinação de um dos intervenientes444. Nestas narrativas encontram-se pais que
não hesitam em sacrificar as filhas aos seus desejos, filhas que fogem, que enganam,
que resistem e famílias que, perante a situação, ajudam a vítima a escapar ou, pelo
contrário, ficam indiferentes ao sofrimento, podendo mesmo, em certos casos, revelar
condescendência para com o agressor. Certos comentários de irmãos chegam mesmo a
acusar uma desvalorização do incesto:
23. “- Eu não te posso dar água, ó grande perra judia.
24. Porque não fizeste tu o que o nosso pai pedia?!”
D/215 Cardigos/Marques (1994a) 15
444
Sobre este assunto, estabelecemos uma relação entre estes romances e outros relatos de incesto, não só
na Literatura Oral e Tradicional como na comunicação social recente e debruçamo-nos sobre os
mecanismos da “Memória, Tradição, Oralidade e Sabedoria”, em Ana Maria Paiva Morão, “Um discurso
significante sobre o incesto na Literatura Oral e Tradicional (Silvana e Delgadinha)”, em José Pedro
Serra, Helena Carvalhão Buescu, Ariadne Nunes, Rui Carlos Fonseca, Memória & Sabedoria, Centro de
Estudos Clássicos, Centro de Estudos Comparatistas, Edições Húmus, 2011, pp. 471-482.
190
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Note-se que quem fala é uma irmã de Delgadinha, ela própria amante do pai, na
explicação prévia da informante da respectiva versão: “Era um pai que tinha duas filhas.
Já era amante duma, da mais velha, e queria ser amante da mais nova, mas ela não assinou”.
Outros deste género reflectem ainda mais uma moralidade um tanto dúbia, como
se ser a mãe “bem casada” e a paz da família dependessem da filha cometer incesto:
32.“Por uma ridicularia fazes a mãe mal casada”, S+D/16 Leite (1960) 86-87
Embora considerado um tabu, o incesto será encarado, naqueles casos, como um
direito paterno, dando origem a ditos como o da Amazónia, que colocámos em epígrafe
com o preceituado em Levítico, de modo a cotejar os sentidos contraditórios para a
mesma questão.
Silvana e Delgadinha reflectem sentidos diversos no modo de encarar o incesto,
originando diferenças no desenvolvimento das respectivas intrigas e, consequentemente,
nos desfechos. Na verdade, não chega a ser consumado, pois as duas jovens recusam-se
a cometê-lo, embora, como já se viu, encarando a questão com atitudes diferentes. No
caso de Silvana, o incesto parece ser visto com alguma ligeireza, pois a filha, parece
algo tentada com a proposta, deixando o pai pensar que lhe vai ceder e só depois se
queixando à mãe; em Delgadinha, a filha nega de imediato. Por isso, não há em Silvana
vislumbre de violência física sobre a filha e a sanção exerce-se sobre o pai, traduzindose pela humilhação que sofre frente à mulher e à filha ao ver-se descoberto e logrado,
enquanto em Delgadinha, dá-se o cruel castigo do encerramento e da privação de água e
o resultado é trágico. Neste caso, a apreciação social e moral reside na própria morte da
jovem, pelo implícito de ser preferível morrer a cometer incesto, o que se comprova
pelo facto de o romance não ter outro desfecho, qualquer que seja a posição final de
Delgadinha, ceder ou não. A morte pode ser encarada como uma consequência lógica da
resistência dela (não recebe água porque não cede, logo morre), ou, pelo contrário, a sua
191
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“salvação”, já que a jovem, como acontece em muitas versões, se decide a ceder ao pai,
embora se trate de uma salvação moral. A presença junto da jovem, em certas versões,
de anjos, santos ou da Virgem, que são entidades cristãs, salva-a, pois, do incesto mas
não de morrer, nunca havendo uma intervenção “divina” que produza o milagre de
salvar a vida da vítima. De facto, a água que tais seres lhe trazem terá o sentido
metafórico cristão da água da vida eterna, o mesmo que é desempenhado pela “fonte
sagrada” (29.“Encontraram-na morta ao pé duma fonte sagrada”, D/44 Leite (1960) 56-57) ou
do mais prosaico “tanque de água clara” (33.“À cabeceira ela tinha um tanque de água clara,
D/45 Leite (1960) 57-58) de outras versões, desprovidos estes elementos do sentido
cristão mas com a mesma função de sacralidade e purificação 445 . Segundo Rina
Benmayor, a morte por “intervenção divina” é própria da tradição peninsular e
americana, mas não da sefardí oriental, na qual a filha morre de sede sem nunca se
comprometer em ceder ao pai446. Se bem que a “presença de seres divinos” junto da
jovem já morta seja uma representação da visão cristã, a moral judaica coincide com
esta no factor “evitar o incesto”. Acontece até que uma Delgadinha “sefardi” de Tetuan
possa invocar Nossa Senhora na sua repulsa ao convite do pai, ainda que, no final da
mesma versão, tal entidade cristã não se encontre junto da jovem morta: “- No lo permita
Dios Padre ni la Virgen Soberana, // que en vida de la mi madre sea tu serica mala”. A versão,
445
Em estudo sobre a oração dos quatro “pilares”, “esquinas” ou “cantos”, José Manuel Pedrosa
menciona o grupo tipológico que refere um número variável de anjos que guardam a cama de quem se vai
deitar, e também diversos ritos de protecção dos recintos sagrados, da casa e da cama e de exorcização
dos demónios ou espíritos, entre os quais a aspersão com água. Cf. José Manuel Pedrosa [1995], Las dos
sirenas y otros estúdios de literatura tradicional, Madrid, Siglo XXi de España Editores, 1995, pp. 187220. Destas orações, exemplificamos com as dos “Anjos Guardiões” (ex: 051: “Nesta cama me deito, //
nesta cama me deitei // e sete anjos encontrei: // quatro aos pés // e três á cabeceira, // e Nossa Senhora
na dianteira. // E Ela me disse // que dormisse descansada, // pois estava toda a noite // na minha guarda”,
pp. 58-60) e dos “Quatro cantos” (ex: 075: “Esta casa tem quatro cantos, // quatro Anjos guardem nela, //
São Marcos, São Lucas, São Mateus // e o Senhor meu Deus”, p. 68) em Orações da Noite, em Idália
Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz, Isabel Cardigos [2008], Orações. Património Oral do
Concelho de Loulé, Vol. III, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2008.
446
Cf. Rina Benmayor [1979], ed. crít., Romances Judeo-españoles de Oriente, Nueva Recollección,
Cátedra Seminario Menéndez Pidal, Editorial Gredos, 1979, pp. 139-146.
192
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
logo após o pai ordenar o envio da água, finaliza com o verso: “… Ellos en estas palabras,
Delgadina el alma entregara”
447
.
A proibição absoluta das relações sexuais incestuosas é também, segundo
Anahory-Librowicz, um princípio ético dos judeus, que todavia faz notar que o incesto
pai-filha não parece suscitar a indignação do narrador de Delgadina (não o narrador
individual ou informante448), o que confirma a sua convicção, que partilhamos, de que
“el cantor de romances actua, en la mayoria de los casos, como transmisor de una materia
poética de la cual se distancia”449. O tabu, de resto, tem também as suas graduações de
apreciação e encontra-se, no nosso corpus, uma versão que reza assim:
6.“- Lá tá Santo Pap' em Roma que tudo dispensaria.
7. - Dispensa irmão com irmão não dispensa pai com filha.”
D/238 Xarabanda (1995) 35-36
O sentido é explícito – o incesto é perdoável entre irmãos, talvez por se acreditar
poder ser consensual450, mas não entre pai e filha. Note-se, porém, que neste romance, a
filha, que invoca as leis divinas, mas também a felicidade conjugal da mãe para não
ceder ao pai, sofre maus tratos da família (insultos verbais e negação de auxílio)
precisamente por se ter negado, o que leva a crer que todos teriam preferido que o
incesto fosse perpetrado, o que deixa em aberto a questão – porquê morre a vítima, mas
não o perseguidor, ou seja, o castigo do pecado parece exercer-se sobre a vítima. Em
termos de apreciação de um código moral, dir-se-ia que se trata de uma visão realista –
447
Versão de Alicia Bendayan (Tetuan) - Ashqelon, 13.2.1984 - NSA Yc 2255/36, em Susana WeichShahak, http//: parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, arquivo acedido na Internet em 22 de Novembro de 2006.
448
Por isso, a apreciação ditada pela pela moralidade judaico-cristã quanto à atitude de Delgadinha será
feita sobretudo como post-scriptum. Refira-se que, ao utilizar o termo “judaico-cristão”, acentuamos o
conceito de moralidade e não de religião. Cf. Anahory-Librowicz [2005].
449
Cf. Anahory-Librowicz [2005].
450
Em Tamar, o incesto entre irmãos não é consensual, mas uma violação, na qual se dá como que uma
transposição do Poder paternal, visto que o pai associa-se ao filho na transgressão, a que a filha está
sujeita. Amon finge-se doente e diz ao pai que só se curará com algo cozinhado pelas mãos de Tamar; o
pai envia esta ao quarto do irmão, que a viola. O acordo do pai às recomendações (ela deve ir só:
“Comera eu um guisado, se Tomásia o gisara, // se Tomásia o trouxera, venha só, sem camarada” – cf.
RPTOM, p. 410) revela o seu tácito sancionamento às intenções do filho.
193
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
os culpados nem sempre são castigados. A questão é complexa, pois além de
incestuoso, dir-se-ia que tal pai é pedófilo, hipótese que se põe até muito
explicitamente:
1. “Delgada, ó Delgadinha, ó Delgadinha, ó Delgada;
2. ainda só tinha doze i-anos, já seu pai a namorava….”
D/153 Fontes I (1987) 452-453
Noutras versões, sendo, muitas vezes, a mais nova das filhas, a sugestão põe-se
implicitamente. Na D/77 Fontes (1979) 142-143, estando já Delgadinha presa na torre,
avista o pai a “brincar com uma donzela” (23.“A Silvana subiu, subiu ao alto daquela janela,
// 24. e ela avistou o seu pai brincando com urna donzela”) sendo o “brincar” um eufemismo
das relações sexuais. A ideia de que pai parece tentar com outra das filhas o que não
conseguiu com Delgadinha é subtilmente insinuada:
21.“Subiu-se a outra janela que a mesma torre tinha;
22. encontrou lá o seu pai com a mana mais novinha.”
D/15 Lima (1916) 43-44
19.“Chegou-se a outra janela que essa mesma torre tinha
20. Avistou o seu pai com a filha mais novinha”.
D/40 Leite (1960) 53
O pai incestuoso de Delgadinha é um mau carácter, que desagrega a ordem
familiar; por isso a jovem, ao recusar-se, dirá que ser filha daquele homem já é
suficientemente mau, quanto mais ceder-lhe:
5.“- Valha-me Deus e os céus e a hóstia consagrada,
6. Não basta ser sua filha senão sua namorada!”
D/237 Xarabanda (1995) 34-35
Deveria, pois, ser punido, em termos de intriga, mas, na verdade, não o é; o
prolongamento é o único espaço ao qual se confia a sua penalização e, ainda assim,
apenas às entidades divinas451. A explicação só poderá encontrar-se na “neutralidade”
451
Em muitas versões, diz-se que o pai vai para o Inferno (e Delgadinha para o Céu).
194
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
do género, embora esta se dissipe na natural tendência de apreciação, positiva ou
negativa, pelos produtransmissores.
Quanto a Silvana, já o referimos, encontra o seu castigo na humilhação sofrida ao
ser desmascarado pela mulher; a punição, embora do foro moral, dá-se dentro da
narrativa do romance, que dispensa aditamentos do foro religioso do tipo dos de
Delgadinha.
5.3. Actos contra a honra
A honra, segundo o Dicionário Houaiss, e para apenas generalizar, é o “princípio
ético que leva alguém a ter uma conduta proba, virtuosa, corajosa, e que lhe permite gozar de
um bom conceito junto à sociedade”452. O que é a honra terá diversas interpretações nas
diferentes civilizações, mas pode afirmar-se que o conceito está usualmente ligado a
sentimentos de vergonha pela sua perda, pelo que as infracções às normas ou uma
conduta considerada desonrosa levarão a actos, pessoais ou colectivos, conducentes ao
seu desagravo453.
Nas acções que são praticadas nos romances do nosso corpus, encontram-se
implícitos diversos aspectos de “honra”, quer, em termos mais abrangentes, ligados à
esfera social, quer, em termos mais particulares, à esfera familiar. A honra pessoal
parece, nestes casos, subordinar-se às anteriores, razão pela qual a onomástica, que
Clara Pimentel traça a tipologia das imagens do Céu e do Inferno na poesia tradicional, o primeiro “um
lugar aberto, onde correm rios frescos e límpidos, os próprios anjos embelezam os eleitos, não existe o
tormento da sede ou da fome, o ambiente é requintado, há luz, e a própria Virgem Santa dispensa os seus
carinhos de mãe” enquanto no Inferno os espaços são fechados e de dor. A autora, que se serve de
Delgadinha (e também de A Aparição) para exemplificar o paralelo que estabelece entre os lugares do
Outro Mundo e os meios ambientes “reais”, enquadra o Céu na categoria dos ecossistemas perfeitamente
equilibrados e o Inferno no dos grupos que impossibilitam a criação da vida. Cf. Clara Pimentel [2004],
“Romanceiro: Qualidade de Vida, Qualidade de Sobrevida”, em Ana Paula Guimarães et alii.,
organização de, Falas da Terra. Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa, Lisboa, Colibri,
2004, pp. 129-136.
452
Dicionário Houaiss [2003], Tomo IV, p. 2009.
453
Cf. a este propósito, por exemplo, J. G. Peristiany [1988], Honra e Vergonha. Valores das Sociedades
Mediterrânicas, 2ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
195
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
serve para identificar concretamente os indivíduos, pode sofrer variação por substituição
sem que o sentido geral perca eficácia.
- A honra conjugal - Bernal Francês
Já atrás referimos a questão do adultério face às leis divinas e sociais. O marido,
enquanto tipo social, faz residir a sua honra no comportamento da mulher, pelo que, ao
ser enganado por esta, parece não ser alternativa senão matá-la, dado cujo sentido
sustenta o desfecho de Bernal Francês. No romance, a própria mulher o reconhece, mas
há uma certa diferença entre a declaração da mulher que diz merecer a morte porque foi
adúltera (a) e que, portanto, aponta mais directamente para uma infracção social/moral e
as versões (b) e (c):
(a) :13.“- Mata, mata, meu marido que a morte bem a mereci”, BF/101 Galhoz (1987)
290-291
(b):18.“- Mata-me, mata-me, marido, que eu a morte te mer’ci”, BF/34 Leite (1958) 401402
(c) :19.“- Morte! Morte! Meu marido, pois que tanto ta mereci”, BF/37 Leite (1958) 406407
A expressão usada, em (b) e (c), é “te” ou “ta [mereci]”, significando “merecida
vinda de ti” é, assim, indicadora do direito que a mulher atribui ao marido, mais
explicitamente, de desagravar a honra conjugal, ou seja, é a condição de marido que lhe
dá o direito de a matar.
Por outro lado, como já referido, a morte da adúltera dá-se por decapitação,
processo naturalmente sanguinário, o que vai ao encontro da expressão “lavar a honra
com sangue”. Este modo de execução implica, por sua vez, que o conceito de “honra”
seja aplicado ao ofendido, mas também à ofensora:
“… o direito a ser executado dessa maneira [por decapitação], embora a execução em si
seja uma desonra, reconhece ainda a honrosa posição social da vítima, derivada do seu
nascimento, que a conduta desonrosa pela qual foi condenada não chega a obliterar
196
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
completamente por se tratar de apanágio não só do indivíduo mas da linhagem. A decapitação
reconhecia a existência de qualquer coisa que ainda valia a pena cortar”454.
Ora nem sempre é explícito, no romance, se o marido o faz pessoalmente ou se
encarrega alguém de o fazer, nem se a mata em privado ou se, pelo contrário, o facto de
adiar a execução para “de manhã” implique a vontade de que tal acto seja
testemunhado, mais explícitas no segundo e terceiro exemplos:
20.“Deixa tu vir a manhã que eu te darei de vestir,
21. te darei saia de gala, roupinha de cramesi;
22. gargantilha colorada pois que tu o queres assi.”
BF/2 Braga (1867) 34-36
24.“- Cal'-te daí, falsa traidora, que isso não vem por aí.
25. vai chamar tuas vizinhas, que tomem exemplo de ti,
26. que não façam aos seus maridos o que me fizeste a mim.”
BF/10 Braga (1887-1889) 108-110
23.“Deixa tu vir a manhã, que negra será p'ra ti!
24. Vou chamar minhas cunhadas, que se despeçam de ti,
25. que não façam a seus maridos o que me fizeste a mim.”
BF/22 Mendonça (1911) 12-14
O castigo pode, também, ser endossado a poderes mais altos, que chancelam este
“lavar da honra” conjugal, de que pai e irmãos serão testemunhas:
1. “Mata-te Jesus do Céu que tem poderes em ti,
2. mas deixa-m'amanhecer, vou tratar de te prevenir.
3. Vou mandar chamar o teu pai para se vir 'espedir
4. e mandar chamar os teus irmãos pa' t'ajudar a carpir”
BF/66 Ferré (1982) 164
Há casos em que um marido mais pusilânime endossa a responsabilidade ao
sogro, sobre quem faz recair, portanto, o ónus da honra da filha:
454
Cf. Julian Pitt-Rivers [1988], “Honra e posição social”, em J. G. Peristiany, coord. de, Honra e
Vergonha. Valores das sociedades mediterrânicas, 2ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988,
pp. 11-60.
197
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
16. “- Ah! Eu matar não te mato, mate-te quem te criou,
17.
levo-te a casa de teu pai p’ra ver que filha me deu.”
BF/25 Martins (1928)/Martins (1987) 197-198
A resposta dela indicia uma consciência consentânea com um conceito de honra
mais convencional:
19.“- Que culpa terá meu pai os males que a filha causar ?
20. Enquanto fui de meu pai, muito bem me regulou
21. dês que vim p’rà tua mão, o mimo me derramou.”
BF/17 Tavares (1906) 298
18.“- Olha, em casa de meu pai boa filha era eu,
19. mas nas tuas mãos, cavaleiro, o mimo me derramou…”
BF/25 Martins (1928)/Martins (1987) 197-198
A mulher assume a culpa do que fez e, implicitamente, parece preferir a morte à
vergonha de ser devolvida ao pai, mas, sobretudo, assaca ao marido as culpas do
adultério, pelo bom tratamento dele recebido, dizendo-lhe que, afinal, a culpa até foi
dele, o que implica que a aplicação do castigo a ele pertencerá; por outro lado, a
resposta pressupõe que uma boa conduta, de filha ou esposa, apenas adviria do controlo
masculino (do pai/do marido).
- A honra perdida por sedução e abandono - Veneno de Moriana
“Rapariga enganada
Perde a honra, ganha fama;
Quantas vezes ela chora
Aos pés de quem a engana”455
Em Veneno de Moriana, a razão que leva a rapariga a matar o homem pode ser
consequência de ter “perdido a honra”, tendo sido abandonada pelo homem que a
seduziu e quebrou a promessa matrimonial, como é explícito na versão abaixo:
455
J. Leite de Vasconcellos [1975], Cancioneiro Popular Português, I, Coimbra, Acta Universitatis
Coninbrigensis, 1975, p. 330.
198
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
10.”- Pa que sabas cabalheiro, lo que teníês purmetido:
11. Palabra de casamento muito bien ancubrido.”
VM/179 Mourinho (1987) 23
Embora ela tenha infringido o pressuposto social da proibição do sexo antematrimonial456, haverá, nesta situação, justificações de outra ordem. Oliveira Marques
refere-se ao acordo simples entre duas partes, a furto ou na pública forma, com valor de
casamento mas sem o ritual religioso, ainda corrente no século XV457. A primeira forma
era adoptada pelos amores clandestinos, mas, não havendo testemunhas, facilmente uma
das partes podia furtar-se às obrigações do casamento. Também Maria Benedita Araújo
diz ter o povo guardado “vestígios dessas práticas antigas”, “ritos de prometimento” de
casamento futuro feitos em segredo pelos noivos, em especial nas regiões entre Douro e
Minho458. Mesmo não se tratando de um destes casos, o abandono da rapariga tornar-seia um estigma que impossibilitaria um seu futuro casamento. A esse propósito, diz José
Cutileiro:
“Às raparigas abandonadas pelos namorados e das quais conste terem tido relações
sexuais com eles ou ligações amorosas com outros homens está vedado o acesso a um
casamento digno. Casos houve de tentativas de suicídio”
459
.
Moriana não se suicida, mas envenena o traidor oferecendo-lhe um copo de vinho
e a expressão “vinho de há sete anos”460 revela a extensão temporal das relações entre
os dois, o que pode indiciar a possibilidade de ter havido o uso antigo dos casamentos a
furto e que provoca a indeterminação do estatuto de Moriana:
456
O motivo da rapariga seduzida e abandonada é, segundo Elisabeth Frenzel, “una consequência de la
monogamia Cristiana, que se basa esencialmente en San Pablo…”. A autora esclarece que só no Século
de Ouro (em Espanha) o motivo adquiriu importância literária, pois, “en la Literatura de la Edad Media y
comienzos de la moderna desempeñaba el motivo todavia un gran papel. Además las diferencias de clase,
muy acusadas, contribuían a que la seducción de una muchacha que no era de ‘case’ no tiviera
importância literária….”. Cf. Elisabeth Frenzel [1980], Diccionario de Motivos de la Literatura
Universal, Madrid, Gredos, 1980. (Motivo Seductor y seducida, pp. 328-337).
457
Cf. Marques [1971], pp. 105-129 (O Afecto).
458
Cf. Maria Benedita Araújo [1997], Superstições Populares Portuguesas, Lisboa, Colibri, 1997, pp. 3334.
459
Cf. Cutileiro [2004], p. 86.
460
Trataremos a questão do “vinho” na Parte II. Capítulo II. Os Motivos na Revelação do Sentido.
199
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
15.“- Que me dirá minha mãe, ao ver-me desta maneira,
16. Sua filha Laureana nem casada, nem solteira.”
VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263
Até mesmo o convite para ser madrinha, presente em algumas versões, além de
sentido como afrontoso para a rapariga traída 461 , limitaria as suas hipóteses de ela
própria vir a casar-se. Com efeito, para que nada obstasse a um futuro matrimónio, as
raparigas solteiras deveriam observar certos preceitos, como o de não amadrinhar
nenhum casamento 462 . O convite não só impediria Moriana de vir a contrair
matrimónio, como também anularia qualquer esperança que esta tivesse de vir a casar
com o próprio sedutor (isto, obviamente, se a noiva viesse a falecer), dado que o
compadrio era impeditivo de matrimónio. Embora noutra situação, veja-se o caso de
Inês de Castro, a quem D. Constança terá convidado para madrinha de seu filho 463, na
esperança de impedir os amores daquela com seu marido D. Pedro464.
461
Encontram-se no Cancioneiro certas quadras que, pelo seu sentido implícito, se aproximam da mesma
situação – um homem convida a “namorada” para ser madrinha do seu próprio casamento. Vejam-se as
seguintes, de Tolosa, concelho de Nisa, em Vasconcellos [1975], p. 244:
“Não quero que vás à monda, // Não quero que vás sozinha, // No dia do casamento // Não vou ser tua
madrinha.
Não vou ser tua madrinha, // Não te vou acompanhar, // Não quero que vás à monda // Não quero que vás
mondar”.
[…]
Sendo estas quadras de estrutura dialógica, entendemos que os primeiros versos da primeira serão uma
exigência de um namorado cioso, que não quer que a amada vá à monda, onde certamente se encontraria
com outros homens. Nos dois versos seguintes (e, inversamente, na segunda quadra, pois elas são de tipo
paralelístico), o sujeito poético, que é feminino, afirma que não acompanhará o interlocutor no dia do
casamento nem será sua madrinha, resposta que parece um despropósito, não fosse a pressuposição de ele
a ter convidado. Ora, se um amante com direitos a fazer tal pedido vai casar (obviamente não com ela,
que, nesse caso, seria a noiva e não a madrinha), o convite torna-se uma afronta para a rapariga
convidada.
462
Nas superstições relativas ao casamento, informa José Maria Adrião que “se não casa aquella quer fôr
madrinha de um casamento”. Cf. José Maria Adrião [1900-1901], “Tradições Populares colhidas no
Concelho do Cadaval”, Revista Lusitana, Vol. VI, Lisboa, Antiga Casa Bertrand, 1900-1901, pp. 103. A
mesma informação é citada por Benedita Araújo [1997], p. 35, e aparece, quase ipsis verbis, no conjunto
de conhecimentos fornecidos a Alberto S. Pimenta, no Algarve, pelo curandeiro Eugénio Cardoso e
relacionados no capítulo “Coisas que Atraem a Sorte ou a Má Sorte”, na p. 12-15, relativo a Noivados e
Casamentos. Cf. Eugénio Cardoso [1999], Panaceias para Livrar de Angaranhos e Más-Sortes.
Amuletos, Nóminas e Talismâs. Rezas e Defumadoiros. Prognósticos e Adivinhações, 2ª Edição,
Portimão, Edições Contramargem, 1999.
463
A respeito dos impedimentos canónicos que impediriam o casamento de D. Pedro e Inês de Castro, diz
Fernão Lopes: ”Mas venhamos a um grande impedimento além dos outros com que o Papa não dispensa,
por cousa que avir podesse, por o qual ella não podia ser sua mulher per nenhuma guisa, e este é: Que
sendo el-rei D. Pedro infante, casado com D. Constança, houveram ambos um filho que chamaram D.
200
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A honra de uma rapariga deveria ser paga. As populações do Antigo Regime
recorriam aos tribunais diocesanos para resolverem problemas decorrentes da falta de
cumprimento de promessas matrimoniais, o que prova o papel vinculatório que para elas
tinham os “esponsais”, prática social habitual de convivência matrimonial sem
consagração sacramental. Esta, aliás, era um obstáculo ao empenho da Igreja em ser a
única instância legitimadora do matrimónio 465 , o que fazia daquela prática, em si,
também uma infracção.
Em todo o caso, visto que o casamento do cavaleiro com outra mulher impedia o
desagravo social, Moriana faz justiça por suas mãos e mata o cavaleiro. Todavia o
romance não refere sanções para ela, como seria de esperar se o objectivo do género
fosse moralizador e o acto não tem consequências punitivas na intriga, para ela. O que
se verifica, nas versões de Veneno de Moriana, são pontos de vista sociais que se
revelam nas apreciações às situações narradas e aos actos das personagens e que se
manifestarão de diversos modos; uns justificam o acto de Moriana, o que implica uma
certa complacência social face à infracção cometida pela mulher traída e ultrajada,
outros imputam ao cavaleiro o dever de reparar o mal feito. Nestes casos, estão em
causa conceitos de honra, que se sobrepõem à Justiça, enquanto outros, que prolongam
a intriga com incidentes que no romance não existem, como a afirmação de que
Luiz, e quando ordenaram de o baptisar em esta cidade, foi esta D. Ignez madrinha d’este moço, e
comadre d’el-rei D. Pedro, salvando-a depois a infante D. Constança por comadre, e humilhando-se a ella
como é de costume. Ora vede como podia el-rei ser lidimo marido de sua comadre, madrinha de seu filho;
certamente não podia ser”. Segundo o cronista, D. Pedro, “tendo vontade de dormir com ella”, recomenda
a D Inês que, ao levar o menino à igreja, “não dissesse as palavras que os padrinhos costumam a
responder em nome do afilhado”; como ela assim teria feito, não era, portanto, “sua comadre, que podia
casar com elle sem peccado”. Cf. pp. 193-194 em Fernão Lopes [1897-1898], Chronica de El-Rei D. João
I, Vol. III, Bibliotheca dos Clássicos Portuguezes, Lisboa, Escriptorio, 1897-1898.
464
Diz Cristina Pimenta que D. Constança “terá favorecido a escolha de D. Inês para madrinha do seu
primeiro filho, D. Luís, numa tentativa de estreitar os laços familiares entre eles, que o baptismo
favorecia”. Cf. Cristina Pimenta [2005], D. Pedro I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, p. 82.
Cf. também, s.a., D. Constança Manuel, em Infopédia [Em linha], Porto: Porto Editora, 2003-2010,
Disponível na Internet, em www: <URL: http://www.infopedia.pt/$d.-constanca-manuel>, arquivo
acedido em 15 de Junho de 2010.
465
Cf. Palomo [2006], pp. 114-125.
201
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Moriana será presa, fazendo, então, prevalecer o sentido inverso – a consequência
lógica seria o castigo daqule “mulher matadora”.
- A honra e as leis da cavalaria - Veneno de Moriana
“cavaleiro luxurioso e cavalaria são contrários”
466
Há implícito, em Veneno de Moriana, um outro acto de infracção à ordem social
por parte do homem, pois se este é “cavaleiro” deveria acatar e seguir as leis de
cavalaria, que aliam os deveres cívicos aos morais. Com efeito, pertencem àquele as
virtudes da “justiça, sabedoria, caridade, lealdade, verdade, humildade, fortaleza, esperança,
esperteza”
467
, devendo também usar da “temperança”, de que nenhuma das quais este
cavaleiro parece ser dotado. Nem foi leal às promessas, nem caridoso no convite que faz
à rapariga para ser madrinha no casamento com outra, nem tão-pouco muito esperto na
aceitação de um vinho “guardado há sete anos” e que bebe rapidamente, o que ajuíza
pouco da sua temperança. Por vezes, Moriana chega a dizer-lhe antecipadamente o que
deitou no vinho468 sem que ele perceba. Veja-se esta versão:
2.“- O que é que tens, ó D. Helena, que me tens p'ra me dare?
3. - Tenho trigo e tenho vinho e tenho resalgare.”
VM/144 Fontes I (1987) 383
Esta pouca “esperteza” é bem explicitada pela informante da versão VM/161
Fontes I (1987) 393-394, que comenta: “Ele tam ém oi urro”.
Em algumas versões, dá-se uma variação por substituição do lexema “cavaleiro”
por “cavalheiro” (ex: 1.“- Apeia-t'ó cavalheiro, bamos aqui a merendar.” VM/3 Leite
(1883b) XIV; 1.“- Apeia-te ó cavalheiro, que haveis de merendar!”, VM/4 Tavares (1906) 313314), mas ambos os termos são equivalentes no sentido, segundo entrada no Dicionário
466
Cf. Ricardo da Costa [2005], tradução de, Raimundo Lúlio. O Livro da Ordem de Cavalaria (12791283), disponível em www.ricardocosta.com/textos/livrocav.htm, arquivo acedido na Internet em 15 de
Outubro de 2005.
467
Virtudes essas relacionadas no Livro da Ordem de Cavalaria. Cf. nota anterior.
468
Voltaremos a esta questão na Parte II, no Capítulo II, dedicado aos motivos.
202
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Houaiss469 que define “cavalheiro” como “s.m. 1 ant. homem da nobreza; cavaleiro” mas
também qualifica “… aquele que possui bons sentimentos; gentil, nobre, digno ”, qualidades
que estão conotadas com a honra.
Não é, pois, honrado este homem, que infringe todo um código de conduta,
implícita na sua condição de cavaleiro ou cavalheiro, pelo que a morte perpetrada pela
rapariga que se sente enganada será sentida como um desagravo e não passível de
castigo legal, mas, quando muito, de reprovação moral e esta apenas em Post-scriptum.
- A honra e a virgindade - Silvana e Delgadinha
Ainda que o incesto seja o tema motivador da intriga de ambos os romances,
aquilo que despoleta o seu desenvolvimento é, em Delgadinha, sobretudo a resistência
da filha enquanto, em Silvana, o interesse na narrativa reside na astúcia que o evita.
Em termos de padrões culturais, a honra de uma donzela reside na sua virgindade
e ambas as jovens, Silvana e Delgadinha, a defendem. Pese embora a diferença de como
o fazem, ambas cumprem o seu papel de donzelas, consequentemente “honradas”. Por
isso, em Delgadinha, a mãe, quando demonstra alguma simpatia pela situação da filha,
refere-se ao incesto no implícito de este constituir uma desonra e chama-lhe, então,
“honrada”:
22.“Como t’hei-de dar a água, ó Faustina tão honrada?”, D/33 Leite (1960) 45-46
Porque o é, a donzela deve ser louvada, ainda que na morte:
19.“D. Faustina morreu, mas morreu por ser honrada.
20.O seu pai está no Inferno, já tem a alma queimada.”
D/23 Carneiro (1945) 167-168
Enquanto a negação de Delgadinha é peremptória e claramente de natureza moral
e religiosa, já Silvana, que parece agradada com a proposta embora manifeste ao pai
469
Dicionário Houaiss, Tomo II, p. 854 e 855.
203
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
alguns pruridos ou receios de um castigo divino, refere sobretudo á mãe a sua “honra”
ameaçada, o que aponta para que a negativa provenha de condicionantes de ordem
social:
14.“- P'ra onde vais, bela Silvana, minha filha tão querida?
15. - O triedor de mê pai a honra me roubar queria. “
S/16 Ferré (1982) 207-208
4.“- Donde vais, bela Silvana, donde vindes, filha minha?
5.- Venho fugida de mê pai qu'honra me roubar queria.”
S/18 Ferré (1982) 208-209
Honra e virgindade estão tão ligadas que valem a vida e são uma exigência, ainda
que de tortuoso sentido, do pai para com Silvana, que se escapa à prova ao ser
substituída pela mãe, mas se vê ameaçada se não se apresentar “honrada”:
15.“- Oh, bem vinde vós, Silvana, oh, bem vinde, filha minha,
16.se me vieres honrada, uma tença eu te daria
17.e se não vieres honrada, a vida t' eu tiraria.”
S/9 Purcell (1976a) 166-167
Resistir ao pecado pagando com a vida é sinónimo de santidade e, assim,
aparecem versões nas quais se declara explicitamente que o martírio de Delgadinha a
torna santa. Certos informantes assim o entendem e comentam:
“Logo chegaram ao pé dela. Já 'tava amortalhada com uma fonte d'água à cabeceira. Era
uma Santa.”, S+D/36 Anastácio (1988) 73-74
“Quando le oram dar a auga j 'stava morta e santinha... “, D/222 Cruz (1995) 215-216
Outros até fazem o pai reconhecê-lo:
“Foi quando ele reconheceu qu'ela qu'era santa ...”, D/219 Cruz (1995) 212-213
A presunção desta santidade é tão forte que passa para o enunciado, com o
narrador (a), ela própria (b), ou o pai (c), a declará-lo:
(a): 25.“Quando o criado foi co'a água, Aldina santa estava …”, D/101 Ferré (1982) 221
(b): 48.“Eu, santa, vou p'r'ó céu, meu pai cá fica pensando”, D/190 Ana Martins/Ferré
(1988) 87-89
204
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(c): 24.“A tua alma stá santa, a minha'arde no Inferno”, D/71 Pereira (1970) 246-247
Até Silvana, que não se coibira de condicionar a decisão de perder a honra ao
receio do Inferno, não deixa de ser “santificada”, embora porque a versão em que tal
ocorre seja compósita com Delgadinha:
1.“Vindo a Santa Silvana do sê corredor um dia”, S+D/25 Galhoz (1987) 385
Este pai de Delgadinha, como o de Silvana, realça o valor da virgindade da filha e
a ela se refere como “donzela”:
7.“- Vão depressa homens todos, dar água aquela donzela”, D/181 Galhoz (1987) 387
A honra significa virgindade, já o vimos relativamente à filha, e também a mãe
em Silvana assim o declara, embora se refira a ela própria, ao desvendar a identidade ao
marido; afinal, sendo mãe não pode ser virgem/”honrada”470:
14.“- Como posso estar honrada quem cinco filhos teria?”, S/32 Xarabanda (1995) 28
Paradoxalmente, os mesmos filhos que lhe “tiraram a honra” são a razão da sua
própria, agora noutro sentido, o do orgulho de casta. A “honra”, aqui, reside no alardear
da nobreza da descendência:
19.“Eu já pari a D. Pedro e a D. Carlos de Castilha”, S+D/16 Leite (1960) 86-87
Por vezes, um remate final da mãe, em jeito de post scriptum intradiegético,
valoriza a honra da filha e dela própria, em contraste com a pouca que o pai tem:
19. “ - Tãobém honra a tua cara e a honra da nossa filha
20
E também honra os meus ossos debaixo da terra fria.”
S/32 Xarabanda (1995) 28
470
Também pode recorrer a um conhecido eufemismo (“flor) para se referir à virgindade perdida:
16.“Pois quando estive D. Silvana de D. Pedro de Castilha,
17. perdi minha flor que era enflorecida.”
S/25 Fontes (1983a) 125
205
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- A honra e a sedução feminina - Gerinaldo
“Muito bem parece o ouro
No pescoço da donzela
Melhor parece a honra,
Menina, faça por ela”471
A honra feminina está ligada às noções de castidade, pureza e fidelidade e instituise em oposição ao conceito da honra masculina, recaindo o ónus da sua infracção sobre
o marido e a família, tal como acontece, de um ponto de vista antropológico, nas
sociedades mediterrânicas ditas “tradicionais”472, nas quais se valoriza a castidade da
mulher, para a qual as relações pré-matrimoniais são um interdito. José Mattoso, que
aponta estas, na Idade Média, como “uma recomendação e um ideal e não como um pecado
grave”, salienta também que “as damas” eram excluídas da tolerância para com este tipo
de infracções; diz, ainda, que os homens buscavam as suas aventuras amorosas com
“mulheres de categoria inferior” e que a “disparidade entre os participantes” era encarada
como inadmissível ou escandalosa473. Por sua vez, Maria Carmen Sarceda, ao analisar a
representação da “donzela” nas Cantigas de Santa Maria, sublinha que, com o
incremento da devoção mariana, se desenvolve a exaltação da castidade, fixando
rigidamente nesses moldes a figura da “’donzela’ e da mulher em geral474.
471
Cf. A. L. Pinto da Costa [1997], Alto Douro. Terra de Vinho e de Gente. A vida quotidiana altoduriense no primeiro terço do século XX, Lisboa, Edições Cosmos, 1997, p. 76.
472
Anahory-Librowicz perfila as seguintes categorias femininas, no romanceiro: mulheres não-castas (as
consentidoras, as sedutoras e as adúlteras), virtuosas e malcasadas e distingue os conceitos de honra
masculina e feminina como termos opostos: a desonra da mulher advém da sua sensualidade e a do
homem da ausência desta. Cf. Anahory-Librowicz [2005].
473
Cf. José Mattoso [2004], “A Sexualidade na Idade Média Portuguesa”, Estudos Medievais. Quotidiano
Medieval; Imaginário, Representações e Práticas, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pp. 13-42.
474
Cf. Maria Carmen Seijas Sarceda [1993], “A Figura da ‘Donzela’ nas Cantigas de Santa Maria” em
Aires A. Nascimento, Cristina Almeida Ribeiro, organiz. de, Literatura Medieval, Vol. IV, Actas do IV
Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições
Cosmo, 1993, pp. 41-44.
206
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O modelo perdurou, com estes valores ligados à honra, pelo que a sedutora do
homem não é a imagem que uma jovem, de qualquer estrato social, deva dar de si475.
Assim, a castidade e o recato feminino são valores cuja infracção se insinua em Silvana,
como já referido, mas se expressa mais claramente em Gerinaldo.
A infanta, neste romance, perde a honra ao dormir com o pajem, o que é altamente
indesejável para a sua condição de rapariga solteira, pelo que solução do casamento
encontrada pelo pai, para além da que mencionámos atrás e que tem a ver com a questão
dinástica, torna-se consentânea com os parâmetros de uma sociedade orientada por esses
valores, visto que a situação da mulher fica moralizada. Gerinaldo, em certas versões, é
que parece fazer pouco caso da honra da infanta, e haverá versões em que se recusa a
casar, porque já dormiu com ela, assunto a que haveremos de voltar.
No entanto, no caso deste romance, a questão da sedução feminina ser conotada
com uma infracção, é ultrapassada por outra mais grave, que é a infracção à hierarquia.
5.4. Actos contra a hierarquia - Gerinaldo
“Cada pardal com seu igual”476
González Troyano encontra no romanceiro uma preferência reiterada por situar a
mulher sedutora num plano social mais elevado do que o do homem seduzido, o que se
presta a duas leituras: ou essa mulher teria, dada a sua condição, maiores possibilidades
para o fazer ou só nessa classe se encontrariam mulheres que se permitissem tais
excessos 477 . Em Gerinaldo, a sedutora é uma infanta, que induz o pajem do pai a
transgredir uma subtil regra que sustenta a hierarquia social – os casamentos de
475
A imagem da mulher como tentadora do homem, levando ao pecado o mais santo, é constante também
na hagiografia, de acordo com Ana Maria da Silva Machado [1993], “A Mulher e a Representação do Mal
na Hagiografia Medieval Portuguesa – Alguns Aspectos”, em Aires A. Nascimento, Cristina Almeida
Ribeiro, organiz. de, Literatura Medieval, Vol. II, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de
Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições Cosmo, 1993, pp. 111-120.
476
Nas comunidades, ”[P]or sua iniciativa ou por conselho ou pressão dos pais, cada qual procurava par
do seu nível social”. Cf. Costa [1997], p. 69 (Testemunho oral).
477
Cf. Alberto González Troyano [1989], “Algunos rasgos del arquétipo de la mujer-sedutora en el
romancero tradicional andaluz”, em Piñero [1989], pp. 549-551.
207
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
herdeiros com indivíduos de condição social inferior não são desejáveis para a
manutenção do prestígio e fortuna da família.
Por isso, certas modificações finais que ocorrem nas versões do romance têm
origem nas atitudes particulares dos produtransmissores quanto à pertinência de tal
união. Citamos a observação de Susana Weich-Shahak sobre as diferentes opiniões que
os casamentos desiguais suscitavam nas senhoras marroquinas que cantavam o
romance:
“cuando terminaban de cantar el romance de Gerineldo (El paje y la infanta), las señoras
tangerinas, o de Alcazarquivir o de Larache cotejaban, si efectivamente Gerineldo se casó con la
infanta o si no (porque, en fin, si bien había dormido con ella, había una insuperable diferencia
de rango, ella era princesa, y el no más que un paje) demostrando, en ardientes discusiones, que
veían la situación del romance como un dato verídico y como si esta situación tuviera una cierta
478
relevancia en su propia experiencia”
.
Mas “manda quem pode e obedece quem deve” e, de facto, ainda que Gerinaldo
comece por exprimir incredulidade face à proposta da infanta, acaba, na realidade, por
não se fazer muito rogado e prontamente aquiesce. A ilação possível é a de que,
conhecendo bem o rei, o pajem esperasse dele o consentimento para o casamento.
A procura de ascensão social e económica através do casamento não é apanágio
de uma única época ou sociedade e esse tema e os conflitos decorrentes encontram-se
largamente representados na Literatura, mas, também na História. Na nobreza medieval
portuguesa, procuravam-se consórcios que pudessem perpetuar as linhagens, mas
documentam-se matrimónios de nobres de categoria média ou inferior com herdeiras de
linhagens de maior prestígio, com o fim de ascenderem a níveis superiores da
478
Susana Weich-Shahak começa por dizer que “[E]s de señalar la particular actitud de los usuarios del
repertorio ante los textos de los romances, tal como se revelan en sus comentarios y discusiones en cuanto
al grado de credibilidad del texto…”, referindo-se às discussões entre as suas informantes sobre os
diferentes
desenlaces
das
respectivas
versões.
Cf.
Susana
Weich-Shahak,
http//:
parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, 22 de Novembo de 2006.
208
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
aristocracia479. Esse intento poderia ser o de Gerinaldo e a apoiar esta suposição está o
facto de a desculpa que dá ao rei (no motivo “caçar a rola”) ser uma clara alusão à
relação sexual que teve com a infanta, menos susceptível de ser perdoada, e não outra
com que mais facilmente o pudesse enganar. A conjectura de que Gerinaldo casa de boa
mente torna-se explícita na versão abaixo, logo após o rei ordenar o casamento (com a
alternativa da morte para o pajem), surgindo os seguintes versos, enunciados pelo
narrador:
21.“Gerineldo que ouviu, que isso era o que queria,
22. casou-se co' a infanta com prazer e alegria.”
G/23 Martins (1928)/Martins (1987) 183-184
Verdade seja que, por vezes, o pajem acusa a infanta de o ter “cometido”, dando a
entender que apenas obedeceu a alguém que lhe era hierarquicamente superior e,
noutros casos, proclamará o seu próprio estatuto, ao que voltaremos na Parte II.
5.5. Feitiçaria – Veneno de Moriana
“não deixarás viver a feiticeira”, Êxodo, 22.17.
Em Veneno de Moriana, encontra-se uma conotação com a feitiçaria no acto da
morte do cavaleiro por Moriana, embora as versões da tradição portuguesa não
estabeleçam uma relação explícita entre esta e o envenenamento, uma vez que o
romance não menciona palavras rituais que acompanhariam os actos de feitiçaria480 e
que a confirmassem. No entanto, o uso que a protagonista faz dos ingredientes que
junta ao vinho, como referiremos ao tratarmos os motivos, e sabendo-se que os feitiços
479
Cf. José Mattoso [1998], “Perspectivas Actuais Sobre a Nobreza Medieval Portuguesa”, A Cultura da
Nobreza. Revista de História das Ideias, Vol. 19 - 1997, Coimbra, Instituto de História das Ideias da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1998, pp. 7-37.
480
Referimo-nos aos “Géneros de intenção mágica e religiosa”, segundo a classificação de Pinto-Correia
[1993a].
209
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de morte eram elaborados com venenos481, pode sugerir essa hipótese, tanto mais que
ela está presente noutras tradições. Numa versão sefardi oriental, a mãe do cavaleiro
havia-o alertado, explicitamente, para a fama de Moriana, dizendo-lhe:
“Por puertas de Moliana que no fuerais a passare;
Moliana es fechicera, no vos haga algún mal”482
Nas versões consultadas da tradição portuguesa, não se encontra o pedido do
cavaleiro a Moriana para que esta o cure, como acontece numa versão asturiana, na qual
a sua condição de feiticeira está implícita, por nela se entender que quem preparou o
veneno conheceria também o seu antídoto: “Sáname, buena Mariana, que me casaré
contigo”483 . Não o sendo explícito nas versões portuguesas, Moriana poderia ser ela
própria feiticeira, ter recorrido, simplesmente, aos serviços de uma ou, ainda, possuir os
conhecimentos suficientes para a utilização mortal dos ingredientes misturados no
vinho. Na verdade, não é muito clara a distinção entre feiticeiras, bruxas e outros
agentes associados a práticas mágicas e Francisco Bethencourt, em O Imaginário da
Magia, refere a necessidade de definição dos termos usados neste campo para referir as
características dos seus intervenientes484 e refere a observação de Leite de Vasconcellos,
que distingue bruxas e feiticeiras dizendo que “[S]er bruxa é um fado. A feiticeira é um
481
Cf. Francisco Bethencourt [1987], O Imaginário da Magia. Feiticeiras, saludadores e nigromantes no
séc. XVI, Lisboa, Projecto Universidade, 1987, p. 101.
482
Cf. Xosé Ramón Mariño Ferro, Carlos L. Bernárdez [2002], Romanceiro en Lingua Galega, Vigo,
Edicións Xerais de Galicia, 2002, p. 186.
483
Cf. Díaz-Mas [2001], p. 277. Note-se, ainda, que a crença no poder que Moriana tinha para reverter o
feitiço era tal, que o cavaleiro se dispõe a casar com ela.
484
Bethencourt reporta-se a Vasconcellos (José Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa [1980],
vol. VII, organizado por M. Viegas Guerreiro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1980, p. 116) para a percepção
da “enorme complexidade e flutuação das acepções populares nesta matéria”. Cf. Bethencourt [1987], p.
13-32. Não sendo aqui o lugar para aprofundar esta questão, remetemos, de entre outros possíveis e para
além do mencionado de Bethencourt, para o estudo de Julio Caro Baroja [s.d.], As Bruxas e o seu Mundo,
Lisboa, Vega, s.d., para Maria Benedita Araújo [1994], Magia, Demónio e Força Mágica na Tradição
Portuguesa, Lisboa, Cosmos, 1994, para José Carlos Duarte Moura [1997], Histórias e Superstições na
Beira Baixa, Coimbra, A Mar Arte, 1997, para Maria de Lurdes Soares [2004], B.I. das Fadas e das
Bruxas, Colecção Bilhetes de Identidade, 11, Lisboa, Apenas Livros, 2004, para Claude Lecouteux
[2005], Hadas, brujas y hombres lobo en la Edad Media. Historia del Doble, Palma de Mallorca, José J.
de Olañeda, 2005 e para Maria Teresa Meireles [2006], Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras, Lisboa,
Colecção Redes & Enredos, 4, Apenas Livros, 2006.
210
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
modo de vida, é preciso ter arte”485. “Arte”, pelo menos, tinha-a Moriana, pela destreza
em manipular os venenos.
Neste romance, e no pressuposto de uma ligação a práticas de feitiçaria, quer seja
directa ou indirecta, as versões nas quais Moriana vai ao jardim486, que pode pertencerlhe ou aos seus parentes (pai/tio), buscar determinadas plantas (e a presença destas
naquele local implica a existência de determinados propósitos para o seu cultivo, dado o
tempo e os cuidados necessários ao seu crescimento), sugerem o conhecimento das suas
propriedades venenosas; o seu uso, neste caso o de “dar feitiços” ao homem que
quebrou uma promessa de casamento, está de acordo com a ameaça relacionada na
Inquisição de Coimbra, uma das fontes de documentação de Bethencourt, que
transcreve o pedido ao cura das Sé da Coimbra para que avisasse “Luiz das Quintas
estudante que se gardasse de Isabel Castanheira porque lhe avia de dar feitiços pera o matar
porquanto dizia que elle lhe tinha prometido de casar com ella e que se hia desta terra e a
deixava” 487.
A feitiçaria é, pois, uma infracção, como se vê pela citação em epígrafe, que diz
claramente que os seus praticantes devem morrer e, a tê-la Moriana praticado, torna-se
uma infractora das leis de Deus e também das leis humanas. No entanto, o romance
omite sanções para Moriana, da justiça terrena ou divina, embora, em certos
Prolongamentos,
ela
vá
presa,
revelando-se
então
uma
ambivalência
de
aprovação/rejeição quanto à reputação das feiticeiras, que a comunidade considerará
“benéfica/maléfica, virtuosa/iníqua, agente de Deus/agente do Demónio”488, o que se poderá
justificar por alguma “brandura” por parte da justiça eclesiástica, inquisitorial e secular
para os crimes julgados, como Bethencourt faz notar em relação às diferenciações dos
485
Cf. Bethencourt [1987], p. 13-32 e Vasconcellos [1980], p.109.
Trataremos o motivo “jardim” e a sua ocorrência no romance na Parte II, Capítulo II. Os motivos na
revelação do sentido.
487
Cf. Bethencourt [1987], p. 101. Note-se a semelhança com a situação de Veneno de Moriana.
488
Cf. Bethencourt [1987], pp. 13-32 e pp. 193-198 (3. A ambiguidade das atitudes).
486
211
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
ritmos de repressão da feitiçaria, bruxaria e magia489. Note-se, também, que talvez seja
uma certa visão mágica do mundo que, nas versões madeirenses, faça intervir o
sobrenatural na figura do homem morto que aparece à sua matadora, para se redimir de
lhe ter roubado a honra490.
5.6. O Quinto Mandamento
“Não matarás”, Ex. 20, 13
Embora o Quinto Mandamento, que deixámos para analisar em último lugar, seja
uma infracção clara às leis e normas sociais e religiosas, a morte infligida nos romances
do corpus parece ser objecto de uma valorização menor que qualquer um dos outros
valores que são infringidos pelas personagens. Há, neles, três mortes causadas, mas
nenhum dos matadores é castigado.
Em Bernal Francês, exceptuando algumas versões nas quais o marido enganado
resolve devolver a mulher ao pai491, a regra é que morra a adúltera, mas a questão tornase complexa, pois a infracção, como vimos, é cometida pela mulher e o castigo
implicado é executado. No entanto, esta morte poderia considerar-se um homicídio,
visto que a pena não é ditada pelas instâncias civis ou religiosas, a que o marido se
substitui. É ele, de facto, quem se encarrega de a julgar e também de aplicar a sanção,
subentendendo-se que o faz por suas mãos, o que se comprova pelo emprego da
primeira pessoa em “dar-te-ei [saia/gargantilha vermelha]”. Em nenhuma versão
consultada há, sequer, a sugestão de que o marido venha a sofrer qualquer penalidade -
489
Cf. Bethencourt [1987], Cap. VIII.
Ainda que este possa ter uma função moralizadora, como postula Dias Marques em artigo a que
adiante nos referiremos repetidamente, não deixa de ser uma figura sobrenatural que intervém em uma
narrativa onde a sua interlocutora é feiticeira (ainda que arrependida, pois lhe reza junto à campa). Cf. J.
J. Dias Marques [1992], “O Veneno de Moriana com Final Madeirense em Trás-os-Montes”, em Manuel
Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura
Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 303-338.
491
Quanto a estas versões, entendemos que tal desfecho se deve a uma contaminação de Claralinda,
romance no qual o marido aparenta ser menos sanguinário.
490
212
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
nem a lei de Deus nem a lei dos homens o castigarão. Se o Quinto Mandamento
preceitua que não se deve matar, o homem tinha, ainda assim, o direito de submeter a
mulher à ordália 492 pela água sagrada, mesmo por simples suspeita ou ciúme; diz a
Bíblia que “O homem ficará isento de culpa, e a mulher suportará a sua iniquidade” (Nm 6,
11-31). Quanto às leis dos homens, a Lei de Afonso IV, para os casos em que o marido
matasse a mulher adúltera, estabelecia “que não morra por ende, nem haja outra pena de
justiça” 493, e em época mais recente, o código penal da Espanha franquista absolvia o
marido que “lavava a sua honra” com sangue494. Em Veneno de Moriana, a rapariga
mata o cavaleiro perjuro por vingança e nada sofre por isso, com excepção de algumas
versões com Prolongamento, como veremos. Em Delgadinha, o pai é o responsável
pela morte da filha, mesmo que se entenda que esta seja uma solução divina para evitar
o incesto, mas não sofre qualquer sanção, senão a predição de que irá para o Inferno.
Em Silvana não há morte alguma, nem em Gerinaldo; neste romance, se bem que, em
certas versões, o pajem seja condenado a morrer, acaba por casar com a infanta.
Enquanto factores da procura do sentido, delimitámos o espaço físico e social no
qual se movem as personagens e configurámos os modelos sócio-culturais que
determinam os modos de actuação em Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana,
Delgadinha e Gerinaldo, considerando, desde logo, que as infracções cometidas nestes
romances o são porque disfóricas das normas de comportamento reconhecidas como
desejáveis pelo Poder hegemónico.
492
Sobre as ordálias pela água ou pelo fogo impostas como prova de virgindade, castidade ou fidelidade,
cf. o estudo de Paloma Gracia [1993], “Algunas Ordalías a Propósito del ‘Arco de los Leales Amadores’”,
em Aires A. Nascimento, Cristina Almeida Ribeiro, org. de, Literatura Medieval, Vol. IV, Actas do IV
Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições
Cosmo, 1993, pp. 215-218.
493
Cf. Marques [1971], p. 126.
494
Cf. Paço Mancebo Perales [2001/2002], “El Romance de La Adúltera en Hispanoamerica. Análisis de
variantes”, Revista ELO, nr. 7-8, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve,
2001/2002, pp. 187-206.
213
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
PARTE II
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
215
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO I
OS SUPORTES SIGNIFICANTES DO SENTIDO
Na Parte I, tratámos de relacionar e analisar, mais generalizadamente, os factores
a serem considerados para uma procura de sentido. Tendo já identificado as sequências
de cada um dos romances do corpus que são discursivamente actualizadas e a que
chamámos “explícitas”, passaremos, nesta segunda parte, ao modo de revelação do seu
sentido, começando, no presente Capítulo, pelos suportes significantes da narrativa
organizada em sequências.
1. Suportes significantes directos e indirectos
Os “suportes significantes directos” da narrativa são constituídos pelas sequências
chamadas explícitas, sendo através da sua análise que poderemos aceder às sequências
implícitas, ou “suportes significantes indirectos”495.
Uma vez que, como atrás dissemos, o processo da procura do sentido será de
maior ou menor complexidade dependendo da natureza narrativa ou dramática das
sequências e do seu posicionamento na ordem da narrativa, também a revelação dos
seus suportes significantes indirectos estará sujeita às mesmas condicionantes. As
sequências iniciais necessitarão, geralmente, de um maior grau de pressuposições do
495
Os estudos consultados para a análise do explícito e implícito ocupam-se, sobretudo, dos “enunciados
breves” enquanto trocas verbais entre interlocutores. Contudo, mesmo que a metodologia fosse aplicada
aos actos de fala das personagens dos romances, na perspectiva em que estas, efectivamente, dialogam
entre si, o objectivo deste estudo é a revelação do sentido de composições comparativamente longas e de
características específicas, pelo que houve que adaptar as terminologias e os conceitos a esta
circunstância. Deste modo, adoptamos, também neste caso, a terminologia e conceitos de Catherine
Kerbrat-Orecchioni, quando diz que “toute unité de contenu susceptible d’être decodée possède
nécessairement dans l’énoncé un support linguistique quelconque” (p.13) e que “Toute unité de contenu,
explicite ou implicite, possède un ancrage textuel direct ou indirect, donc en dernière instance certains
supports signifiants sur lesquelles repose prioritairement son emérgence” (p. 16). Cf. Kerbrat-Orecchioni
[1986]. Com a expressão “suporte significante directo”, referir-nos-emos às sequências discursivamente
manifestadas, nas quais se procurarão os elementos que servirão à encatalisação, recorrendo à expressão
de Greimas, das sequências que constituirão o “suporte significante indirecto”.
217
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que as intermédias, que são o seu desenvolvimento, e as finais deverão constituir a
natural implicação de ambas. De um modo geral, adianteremos já que, em Gerinaldo,
não são quaisquer acontecimentos prévios à proposta da infanta ao pajem que há a
pressupor para justificar o interesse do seguimento da narrativa, mas sim as
circunstâncias em que ela decorre e que têm a ver com o estatuto de cada um dos
intervenientes, embora, logicamente, elas sejam anteriores à situação criada. Dir-se-á,
então, que é a condição social das personagens que constitui um pressuposto de
interdição para estes amores, que se actualizam como uma infracção. Já em Silvana e
Delgadinha, o que prevalece como pressuposição lógica de haver uma infracção é da
ordem moral, devido ao tabu do incesto, seja qual for a posição social dos
intervenientes. Quanto a Bernal Francês e a Veneno de Moriana, ainda que
condicionamentos morais e sociais estejam implícitos, ambos envolvendo a instituição
do matrimónio, são, em grande parte, os factos anteriores não narrados no corpo das
respectivas narrativas que constituem os suportes significantes indirectos do seu sentido,
no primeiro caso o adultério cometido e, no segundo, as expectativas matrimoniais
goradas.
Por se tratar de textos constituídos por uma multiplicidade de manifestações, os
suportes significantes directos de cada sequência apresentam numerosas formas de
expressão, nas versões. Por esse motivo e não recorrendo à elaboração de uma versão
factícia de cada romance, como dissemos na Introdução, mas procurando uma
operacionalidade demonstrativa, optámos por utilizar versos de versões que
considerámos suficientemente ilustrativos da situação-chave correspondente
496
.
Sabendo-se que os começos e os finais dos romances são os elementos mais sujeitos a
496
Lembramos que as palavras ou frases-chave que as identificam descrevem sucintamente o seu
conteúdo narrativo, conforme se pode verificar, mais à frente, no “modelo-virtual” de cada romance.
218
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
modificações 497, apresentamos aqui também alguns suportes significantes directos de
variantes, deixando embora um maior aprofundamento da questão da variação e sentido
para o Capítulo III. Quanto aos suportes significantes indirectos, a sua revelação
assentará nos elementos procurados na Parte I e, por vezes, no exercício da chamada
competência enciclopédica; aos motivos, também eles suportes significantes indirectos,
dedicaremos o Capítulo II.
1.1. BERNAL FRANCÊS
Sequência I – A mistificação
1) Suporte significante directo
A sequência que abre o romance apenas dá conhecimento de que alguém está a
bater a uma porta e alguém vai abrir. Esta situação, nas versões, estrutura-se em
suportes significantes directos muito variáveis: o diálogo é iniciado por um ou outro dos
intervenientes, há uma muito breve introdução narrativa da situação ou, ainda, esta é
apresentada monologicamente.
a) – Diálogo
a.1.) - iniciado por alguém
1.“- Quem bate à minha porta, a esta hora de dormir?
indagando quem lhe bate à 2.- Sou Bernal Francês, senhora, p'ra vos bem querer e servir
porta. Após ouvir dizer que 3. - Pois que és Bernal Francês, minha porta vou abrir.”
BF/5 Azevedo (1880) 141-145
é Bernal Francês, diz que
vai abrir.
a.2.) - iniciado por alguém
1.“- Francisquinha, Francisquinha, desse corpo tão gentil,
2. abri-me lá essa porta, que ma costumais abrir.
497
Sobre a “abertura” dos significados nos vários “níveis” de articulação do relato, diz Diego Catalán não
ser de estranhar “que las alteraciones de la fábula ocurran, fundamentalmente, en dos lugares
semanticamente privilegiados: el comienzo y el final de los romances”, que atribui à reacção dos
“receptores-emisores” às questões focalizadas pela história contada. Cf. Catalán [1997], p. 178.
219
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que pede que lhe abram a
porta e respectiva resposta
3. - Não abro a minha porta, que são horas de dormir.
4.- Abri ao homem de França, que lha costumais abrir.
5. - Se é outro no seu lugar, digo que não quero ir,…”
(que pode começar por ser
BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204
negativa).
b) - Introdução narrativa
Um narrador indeterminado
conta que alguém está a
bater a uma porta:
- identificação de quem 1.“Rosmanino bateu à porta.”
BF/9 Braga (1887-1889) 105-107
bate
- identificação de quem 1.“Estando D. Margarida no melhor do seu dormir, ouvindo
bater à porta”.
ouve bater
BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76
-
representação
espaço- 1.“Era meia-noite em ponto, a uma porta batiam.”
BF/8 Pires (1885g) XXI
temporal
c) Monólogo
Uma personagem declara
1.“- Estando eu na minha cama, no melhor do meu dormir,
2. espadas ouvira tocar, espadas ouvira tenir.
que está a ouvir bater à
3. Se ele é Bernardo Francês minha porta vou abrir,
porta e irá abrir se, e só se,
4. Se ele é outro cavaleiro, já se pode despedir.
5.- Sou Bernardo Francês, senhora, sua porta vinde abrir.”
for Bernal Francês. (A outra
personagem
afirma
BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 428-429
ser
Bernal Francês).
2) Suporte significante indirecto
O suporte significante indirecto deste romance assenta na questão do adultério e
nas relações de Poder, nos seus pressupostos morais e sociais, tal como postulado
220
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
anteriormente, mas também em ocorrência anteriores pressupostas. O seu enredo baseiase no logro de uma mulher que julga acolher em sua casa o amante, quando, na
realidade, se trata do próprio marido, mas este facto não é desvendada senão quase no
final do romance. O suporte significante directo inicial, qualquer que seja a sua
estrutura, e uma vez que não contém elementos explícitos indicativos que identifiquem
o marido, veicula um equívoco que, afinal, sustenta o sentido do romance, pelo que a
revelação daquela circunstância assenta num intrincado jogo de implícitos e
pressuposições, que se faz interna e externamente, e quase em simultâneo.
Em primeiro lugar, a estrutura do suporte significante directo, dialógica ou
monológica, pouco revela do “quem, quando e onde”. A expressão interrogativa simples
“quem bate à minha porta?” do exemplo a.1.) estabelece como pressuposição estrutural
um encadeamento lógico anterior (“alguém que está dentro de casa está a ouvir bater à
porta”) mas que nada adianta à identificação de quem interroga; o mesmo acontece se o
diálogo for iniciado pela voz de quem pede que lhe abram a porta, pois, como em a.2.),
o verbo “abrir [a porta]”, mesmo enunciado no imperativo, tem o valor de um pedido
perfeitamente corrente, visto que remete para um acto social reconhecido como “alguém
quer entrar numa casa” e o ouvinte-leitor apenas fica a saber que alguém está fora e
chama/pede a determinada pessoa que lhe abra a porta. Em resumo, no diálogo, a
identificação dos intervenientes deixa-se num semi-anonimato498, no qual nem sempre é
imediatamente perceptível o género a que pertence o primeiro a falar e, na introdução
narrativa, a ser muito sumária. Quem bate à porta usa frequentemente o vocativo
“senhora” ou “minha senhora”, porém, “quem” fala torna-se perceptível, tanto mais
498
Pelo contrário, quando a Bernal Francês se junta A Aparição, neste último é muitas vezes
referido o nome da defunta. Quanto à identidade do marido , note-se que a mulher, ao dar-se este a
conhecer, não o trata pelo nome, chamando-lhe antes “meu marido” e até “maridinho”, quando o
quer ainda enganar e este também não a trata usualmente pelo nome, preferindo dirigir -se-lhe por
apodos como “falsa traidora” e similares.
221
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que o vocativo “Francisquinha” do exemplo de a.2.) ou a auto-identificação “Sou Bernal
Francês” do exemplo de a.1.) tornam óbvio tratar-se de uma mulher e um homem.
Quanto ao “quando” e “onde”, no caso de diálogo, a segunda parte do verso “a
esta hora de dormir”, como em a.1.), executa a localização temporal “ser de noite”,
tratando a expressão de fazer também reconhecer dois espaços – o exterior, onde se
encontra quem bate à porta e o interior, onde se encontra quem ouve bater – o que
corresponde à introdução narrativa “Era meia-noite em ponto, a uma porta batiam.”, em b).
Desta forma, o suporte significante directo constituído pelo par pergunta/resposta
assume o carácter de indicação cénica de uma determinada acção (bater à porta), com
uma determinada finalidade (entrar em casa), protagonizada por um homem e uma
mulher (identificados onomasticamente ou não), a que se junta a circunstância de um
ambiente nocturno. O suporte significante directo que sustenta o acto de bater à porta é
uma estratégia narrativa que supre a audição do som de bater. Há versões que vão mais
longe, pois narram o facto e, por redundância, reproduzem-no numa onomatopeia: 1.“À minha porta troparam: Truz, truz! Quem está aí?”- BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 4042; noutro caso, é a própria fórmula de chamamento que é explicitada: 1.“Estando D.
Margarida no melhor do seu dormir, // 2. ouvindo bater à porta: - Oilá, oilá! Quem lá está?”BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76 (nossos sublinhados). No caso do suporte
significante ser como em c), também a personagem narrador se encarrega da
didascália situacional, que permite ao ouvinte/leitor saber que, estando a dormir,
portanto durante a noite, um ruído a acordou ( 2 .“espadas ouvira tocar, espadas ouvira
tenir”). Ainda neste caso, o monólogo reflexivo condicional (3.“Se ele é Bernardo Francês
minha porta vou abrir”) substitui a pergunta explícita dos outros modos (“Quem bate à
minha porta?”) pois é articulada em voz suficientemente alta para ser ouvida do lado de
fora, uma vez que o interlocutor dá a resposta lógica (5.“- Sou Bernardo Francês, senhora,
sua porta vinde abrir.”).
222
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Vimos que, como em a.1.), é referido com frequência que a acção se passa à “hora
de dormir”, que equivale a “estar escuro”, pelo que o suporte significante directo vai
sobretudo ter a função de remeter para a condição fundamental que propiciará a fase
seguinte da intriga; além disso, o termo “a tais [horas]” do exemplo acima insinua,
desde logo e com mais acuidade, que a situação, que nesse momento narrativo ainda não
está esclarecida, será um tanto inapropriada (durante a noite, uma mulher dispõe-se a
abrir a porta de casa a um homem). A pergunta, de resto, nem sempre aguarda resposta
e pode ser logo seguida pelo conectivo se, que levará a compreender que “se e só se for
Bernal Francês quem bate à porta – então a porta será aberta”. A afirmação subentende
o sentimento de desejo de que o barulho ouvido seja indicador da presença desse
homem, mas, também, a intenção de afastar qualquer outra pessoa:
1.“- Oh quem bate à minha porta, às horas do meu dormir!
2. Ai se é Bernal Francês, a porta lhe vou abrir!
3. Se outro é o cavaleiro já se pode despedir.”
BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198? 46-49
Dissemos que o jogo de pressuposições se faz internamente, ou seja, no próprio
enredo, porque a personagem feminina acredita ser verdadeira a resposta “sou Bernal
Francês”, pelo que lhe abre a porta a desoras. Na verdade, muitas vezes não o faz sem
que se certifique de que se trata dele, o que é bastante explícito, como já se disse (5.“- Se
é outro no seu lugar, digo que não quero ir”, em a.2.). Mesmo que a identificação não se
faça com um nome próprio, mas por insinuação499, através do por vezes usado motivo
das flores (2.“São cravos, minha senhora, rosas vos trago aqui”- BF/2 Braga (1867) 34-36 ), a
499
Usamos o termo “insinuar” de preferência a “aludir”, visto que, embora sejam ambos do domínio dos
subentendidos que fazem referência a factos conhecidos dos protagonistas da troca verbal, há, na
insinuação, um conteúdo de natureza malévola, que se adequa ao que sabemos ser a intenção de quem o
profere. Com efeito, à pergunta “quem bate à minha porta”, o homem responde que são “cravos”- motivo
de significação amorosa implícita -, mas aqui quem o diz é um marido que, apresentando-se no aspecto
romântico que se atribui a um amante, o faz com o objectivo de lograr e castigar a mulher. A distinção
dos conceitos de alusão e insinuação é feita na nota 6, p. 39, em Kerbrat-Orecchioni [1982].
223
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
mulher parece compreender o seu simbolismo500, daí inferindo501 que se trata do amado.
Externamente, o ouvinte/leitor faz a mesma inferência da protagonista, pois “sabe” que
quem bate a coberto da escuridão e não possui a chave da porta não tem o direito natural
de entrar em casa sem se anunciar. Ora, o código social atribui implicitamente esse
direito a um marido e uma certa suspeição de ilicitude estava já presente em
determinados indícios iniciais; visto que a mulher declara que abrirá a porta apenas a
determinado homem e, presumindo-se que não é, certamente, o marido (que não bateria
à porta), chega-se à conclusão de que se trata de um amante. Em alguns casos, as
relações entre os protagonistas são indiciadas pelo tratamento amoroso no vocativo
(a negrito):
1.“- Quem bate à minha porta, estas horas de dormir?
2. - Meu amor, sou D. Francesco, só agora pude vir.”
BF/6 Azevedo (1880) 145-150
Noutros casos, a intenção amorosa é mais clara, embora eufemisticamente
expressa com os termos “querer” e “servir”:
2.“- Sou Bernal Francês, senhora, p'ra vos bem querer e servir”
BF/5 Azevedo (1880) 141-145
A solicitação para entrar alicerça-se, com frequência, em circunstâncias idênticas
anteriores – espera-se que a porta seja aberta, porque já o foi, como em (a), o que é um
indicador de continuidade, ou porque houve um acordo anterior, como em (b):
(a): 1.“- Francisquinha, Francisquinha, desse corpo tão gentil,
2. abri-me lá essa porta, que ma costumais abrir”
BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204
(b): 3.“- Eu sou João de França, eu aqui ficara de vir.”, BF/27 Rodrigues (1933) 15-16
500
Assunto que será tratado no Capítulo II.
“A inferência é o processo pelo qual uma suposição é aceite como verdadeira ou provavelmente
verdadeira pela força da verdade ou da verdade provável de outras suposições”. Cf. Dan Sperber, Deidre
Wilson [2001], Relevância: Comunicação e Cognição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.
119.
501
224
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A inexistência de quaisquer sequências introdutórias informativas obriga, pois, o
ouvinte/leitor, que começa por se deparar com uma situação para a qual não são
fornecidos dados que dêem a conhecer explicitamente nem os antecedentes nem as
relações entre os protagonistas, a um exercício de interpretação das implicaturas, como
a de que existe um marido, a de que este está ausente, e a de que o visitante nocturno é
um amante habitual. O contrário converte uma estrutura narrativa baseada na surpresa
numa estrutura comum 502 , o que acontece na recriação processada em versões
mexicanas, que cria uma sequência inicial que explica o estratagema do marido. Assim,
o Corrido de Elena, após uma primeira sequência admonitória às “senhoras honradas”,
segue com a seguinte sequência (vv. 5-8):
“Notícias tuvo su esposo que Elena era preferida:
cuando se encontraba sola de un francés era querida.
Un viage fingió su esposo para poderlos hallar
agarrallos en el lecho y poderla asesinar”.
De facto, mesmo sendo possível executar a pressuposição da situação anterior
através dos indícios presentes, a ocultação premeditada dessas informações destina-se
sobretudo a suscitar o suspense da narrativa, pelo que a sua veracidade só será
confirmada aquando da recepção de informações a posteriori 503 . Deste modo, e ao
contrário do que acontece na “reconstrução” de Bernal Francês por Garrett504, a intriga,
no romance oral tradicional, elide três sequências iniciais pressupostas:
# 1) - Um marido encontra-se ausente de casa há muito tempo
# 2) - A mulher tem Bernal Francês como amante
# 3) - O marido toma conhecimento do adultério
502
Cf. Roig [1997], pp. 318-319.
Segundo Mercedes Diáz Roig, Bernal Francês possui uma estrutura peculiar, somente partilhada com
poucos mais romances, que faz com que o público seja enganado, tanto como a personagem feminina, até
ao final. Cf. Roig [1997], pp. 54-55.
504
Garrett [1983] I, pp. 123-130.
503
225
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Admitindo, ainda, que o marido não tenha confiado totalmente na eventual
informação recebida na terceira destas sequências, pressupor-se-ia, igualmente, uma
quarta sequência - # - o marido conhece a identidade do amante da mulher -, que
integra o encaixamento das seguintes outras sequências implicadas:
# - decide confirmar a veracidade da informação,
# - congemina uma armadilha que confirme a informação.
É a pressuposição desta sucessão lógica que desencadeia a intriga, vindo a parte
manifestada do romance a começar in media res, no seguimento de uma implícita
sequência lógica:
# - O marido regressa a casa
Subentendendo-se que o faz disfarçado, de modo a assemelhar-se a Bernal
Francês (o que levaria a outra hipotética sequência encaixada em que o marido teria
observado Bernal Francês, de modo a poder assemelhar-se a ele), a Sequência I é
primeira a nível do discurso, mas a quinta a nível da estrutura da fábula505.
Sequência II – O encontro amoroso
1) Suporte significante directo:
3. “- Ao descer da minha cama rasguei o meu farandil;
4. ao descer da minha escada, me caiu o meu chapil,
5. e ao abrir da minha porta se me apagou o candil.
6. peguei nele em meus braços, levei-o p'r'ó meu jardim,
7. lavei-lhe os pés e as mãos com aguinha de alecrim.
8. e também lhe lavei o rosto com aguinha de jasmim,
9. levei-o p'r'à minha cama, deitei-o ao pé de mim.”
BF/13 Pedroso (1902) 463-464
505
Catalán, a propósito da sucessão lógico-temporal dos acontecimentos na narração, oferece como
exemplo Bernal Francês, cujo “romance-objecto”, segundo o autor, se elabora mediante uma violenta
distaxia na fábula, começando na 4ª sequència, a que chama “el ARDID”, na continuação das sequências
1ª. PARTIDA DEL MARIDO, 2ª. ADULTERIO e 3ª. REGRESO DEL MARIDO; seguindo-se ao ardil,
haverá as sequências 5ª. COMPROBACIÓN DEL DELITO, 6ª. REVELACIÓN DE IDENTIDAD e 7ª.
CASTIGO O VENGANZA. Cf. Catalán [1997], pp.149-153.
226
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A mulher, depois de se assegurar de que se trata de Bernal Francês, vai abrir a
porta. Em termos temporais, realiza várias acções, condensadas em três segmentos
sequenciais. No primeiro, desce as escadas e, simultâneamente, dão-se alguns
incidentes: deixa cair o chapim (sapato) e apaga-se o candil que leva. No segundo
segmento, a mulher abre a porta, introduz o homem no jardim, perfuma-o e, finalmente,
no terceiro segmento, deita-se com ele.
2) Suporte significante indirecto:
Esta segunda sequência é essencial ao desenrolar da narrativa, visto que é nela que
se materializam as condições que ajudam ao equívoco da personagem/mulher, i.e., o
apagar do candil que gera a escuridão, mas, mais do que isso, o seu carácter semi-lírico,
semi-erótico (mesmo que encurtada em algumas versões) comprova ao ouvinte-leitor a
já suspeitada ilicitude destes amores. Esta é, também, a sequência na qual o sentido
mais deve à carga simbólica dos motivos que nela ocorrem – a entrada no jardim e as
abluções perfumadas que aí ocorrem constituem suportes significantes indirectos da
relação amorosa506 que se afirma discursivamente no terceiro segmento sequencial; o
suporte significante directo de que ambos se deitam juntos raramente sofre elipse, quer
seja expressa de maneira sucinta (a) ou mais alongada (b):
(a) : 7. “Levou-o p'r'à sua cama, deitou-o ‘ó par de si”
BF/26 Martins (1928)/Martins (1987) 224-226
(b) : 7. “Levara-o para o seu quarto, ajudara-o a despir;
8. deitara-o na sua cama, ajudara-o a cobrir.
9. Deitara-se ao par dele, para ambinhos dormir.”
BF/17 Tavares (1906) 298
506
Pela complexidade dos também suportes significantes que são os motivos, desenvolvê-los-emos em
lugar próprio. Cf. Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido. 3.Motivos não-indexados.
227
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Se a elipse do segmento ocorre na versão, a existência do diálogo que se segue,
na Sequência III, faz com que o facto fique implicado. A razão de ser desta constância
nas versões reside no facto de o adultério constituir o tema e o sentido global do
romance.
Assim, havendo já nos incidentes que precedem esta última cena um
subentendido de ilicitude, a assertação “homem e mulher deitam-se juntos” destina-se a
não deixar dúvidas sobre o que tal circunstância implica.
Entre esta sequência e a seguinte e para que, nesta, a interpelação da mulher (6.“D.
Francisco, tu nã falas nem te viras para mim”, BF/71 Ferré (1982) 168 ) faça sentido, há
uma sequência implícita:
# O homem não inicia uma relação sexual.
Sequência III – O cair da máscara
1) Suporte significante directo:
(a) – Perguntas/respostas intercaladas
7. “- Tu que tens, ó Francisco? Dantes não era assim.
8. Já deu meia-noite em ponto sem te virares para mim.
9. Se temes os meus filhinhos, meus filhinhos são por ti.
10. - Não temo os teus filhinhos, que alguns serão de mim.
11. - Se temes os meus criados, meus criados são por ti.
12. - Não temas os teus criados, porque andam pagos por mim,
13. - Se temes o meu marido, meu marido não está aqui;
14. as balas por lá o matem, que não volte mais aqui.
15. - Cala-te, ó fera traidora, teu marido vê-lo aqui.”
BF/93 Fontes I (1987) 351-352
(b) - Perguntas/respostas em série
7. “Era meia-noite em ponto sem se virar para mim.
8. - Ó tu tens amores novos, ó tu desgostas de mim?
9. tens medo aos meus criados? Meus criados são por mim,
10. Ó tens medo ao teu marido, qu'inda se lá está para o Brasil?
11. Tantas novas haja dele que nunca mais torne a vir.
12.- Nem tenho medo aos teus criados, também já foram de mim;
13. nem tenho medo à justiça, que a justiça é por mim;
14. nem tenho medo ao teu marido, que o tens ao par de ti.”
BF/94 Fontes I (1987) 352-353
228
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Esta sequência é constituída por três segmentos sequenciais, evoluindo desde o
expressar da estranheza da mulher a respeito da passividade do “amante” (1º segmento)
até ao desvendar da verdadeira identidade deste (3º segmento), que afinal é o próprio
marido, podendo qualquer dos segmentos, nas versões, ser mais sucinta ou alongar-se
narrativamente pelo jogo de perguntas/respostas (2º segmento sequencial) que configura
o núcleo fulcral do romance e que é o desfazer da mistificação. O 1º segmento pode ser
enunciado por interpelação directa, como em (a) ou narrativamente, como em (b), e o 2º
pode decorrer intercaladamente, como em (a), ou a série dos “não temas” ser enumerada
de uma só vez, a que ele responde da mesma forma, como em (b).
2) Suporte significante indirecto:
A primeira indicação de que algo está errado numa situação em que dois
presumíveis amantes se encontram já deitados reside na pergunta da mulher sobre o que
se passa com o homem, a qual subentende uma passividade sexual, muitas vezes
eufemisticamente expresso pelos termos “virar para”:
7. “Que tens, Bernardo Francês, que te não viras para mim?”
BF/29 Joaquim Lima/Pires Lima (1943) 38-39
O espaço de tempo decorrido sem que o “amante” demonstre o
comportamento amoroso que dele se espera, chega a ser especificado:
10.“- Que tendes, Bernardo Francês, que tanto pensas em ti,
11. que meia hora é passada e sem te virares para mim?”
BF/8 Pires (1885g) XXI
A observação da mulher, em algumas versões, é alongada com uma outra, que
implicita que o homem tivera um comportamento bem diferente noutras ocasiões; se já
anteriormente se havia pressuposto um relacionamento amoroso prévio, percebe-se
229
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
agora (em sublinhado nosso) que este não é o primeiro encontro nem a relação é
platónica:
9.“- Que é isso, Bernardo Francês ? Da outra vez não era assim!”
BF/49 Leite (1960) 511-512
Noutras versões, é ainda mais evidente a continuidade e a intensidade de tais
amores:
11.“Estas mais noites passadas não me deixavas dormir,
12. Com beijinhos e abraços, eram mais de trinta mil”
BF/44 Leite (1958) 415-416
5. “Tu que tens ó D. Francisco, dantes num eras assim,”
BF/96 Galhoz (1987) 281- 282
María Teresa Ruiz, em artigo sobre Bernal Francês e com base em sessenta e uma
versões das tradições espanhola e hispanoamericana, entende dividir o romance em
variantes segundo o tipo de adultério, que cataloga em distintos níveis (efectivo ou
explícito, implícito, falhado ou hipotético). A autora faz depender o tipo de adultério da
temporalidade em que a forma de expressão se associa, efectivo se no pretérito (dá
como exemplo o verso “Yoy soy aquel don Francisco con usted solía dormir”) e implícito se
no presente (“que soy aquel don Francisco a quien tú sueles abrir”); nesta tipologia,
associando-o ao tempo presente, coloca ainda como “fallido” o adultério que não chega
a realizar-se, visto que o marido se dá a conhecer507.
É a presença nesta sequência de versos deste género que legitima a pressuposição
de um adultério anterior, embora se dê um curioso paradoxo. Os versos acima são a
confirmação da infracção já cometida, mas, neste momento narrativo, o adultério é
507
Cf. María Teresa Ruiz [2005], “Bernal Francés: romance de adulterio fallido”, Acta Poetica 26 (1-2),
Primavera-Otoño, 2005, disponível na Internet em http//:132.248.101.214/html-docs/acta-poetica/26-12/261.pdf, arquivo acedido em 20 de Dezembro de 2009. A autora retoma uma tipologia sobre a
infidelidade delineada na sua tese de doutoramento La infidelidade en el romancero (México, UNAM,
2004), que não pudemos consultar.
230
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
apenas moral, visto que, tecnicamente, não é cometido, tanto porque a relação não é
consumada, o que está implícito no teor daqueles, como porque o homem, de facto, é o
marido.
O facto é que a mulher está convencida de ter o amante deitado consigo e as
perguntas especulativas que a seguir vai fazendo destinam-se a tentar perceber a razão
de tal indiferença, seja ter ele outra ou ter ela sido difamada:
12.“ou tendes dama em França, a quem querais mais que a mim?”
BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204
8.“Conta-me cá, D. Francesco, disseram-te mal de mim?”
BF/6 Azevedo (1880) 145-150
Visto que as respostas dele lhe asseguram que não se trata de tal, a mulher, então,
alonga-se numa série de especulações de possíveis temores do homem, apresentando as
respectivas razões para o tranquilizar (“se temes a [filhos, pais, criados…]”, “não [os]
temas”). Uma vez que ela, efectivamente, procura inteirar-se do que lhe provoca tal
passividade, esta série equivale a uma interrogativa indirecta, razão pela qual se torna
um jogo de perguntas/respostas.
A cada possibilidade apresentada, o homem vai dando sempre uma justificação
no sentido de que nada pode temer e as respostas aludem implicitamente ao facto de ser
o senhor natural da casa:
14. “Não tenhas medo aos teus criados, qu'os teus criados são de mim;”
BF/81 Fontes I (1987) 341-342
10. “- Não tenho medo às aias, que elas também são de mim.”
BF/116 Alves Ferreira (1999) 117-119
Alude, igualmente, à sua própria identidade (no exemplo abaixo “quasi pai” é,
obviamente, o sogro):
17.“Nã me temo de teu pai, quasi pai ele é de mim.”, BF/5 Azevedo (1880) 141-145
231
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Dada a componente fortemente dialógica dos romances, é neste jogo de
perguntas/respostas que se encontra implícita a informação não narrada. De tal jogo
afirma L. Spitzer:
"el juego de preguntas y respuestas es algo esencial en los romances españoles, y no
solamente en cuanto a la técnica, sino en cuanto al ritmo de pensamiento, que presenta un estado
de alma compuesto de elementos contradictorios... como si las fuerzas contrarias hubieran
adquirido voces y viviesen su debate bajo la forma de la palabra... diálogos polémicos
originados en acciones anteriores y antecedentes, a su vez, de nuevas acciones."508.
Em outros romances de mulheres adúlteras, nomeadamente Frei João, O Gato do
Convento e Claralinda, há também uma série de perguntas/respostas, mas que, nestes
casos, representam uma espécie de teste feito pelo marido e que as respectivas
protagonistas tentarão vencer com respostas astuciosas, pelo que se pode dizer que,
neles, a “máscara” que o jogo faz cair é a de “mulher virtuosa”. Sobre as várias baladas
europeias nas quais a mulher adúltera usa a palavra para esconder a culpa, diz Louise O.
Vasvári:
“The narrative core of the ballad is a reiterative ‘testing dialogue’, in which the husband
questions his wife about the signs of her infidelity and through a smokescreen of cunning
semiotic ruses she attempts to manipulate all the signs of her guilt by relocating them in a new
context created entirely by her parole feminine” 509.
Em Bernal Francês, a “máscara” é a do amante, construída pelo marido510 e aqui,
no jogo perguntas/respostas, as perguntas não constituem um teste à mulher, pois quem
as faz é ela, que nem desconfia com quem está falando, tratando-se antes de uma
preocupação genuína com o comportamento dele. O seu teor é que vai confirmar o
508
Cf. L. Spitzer, "Notas sobre romances españoles", Revista de Filología Hispánica XXII (1935), 153174, p. 163, apud Susana Weich-Shahak [2006], Observaciones sobre el romancero sefardí de tradición
oral - motivos míticos y foco temático, Nota 8 a La partida del esposo (á) (CMP I6), em http//:
parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, 22 de Novembro de 2006.
509
Cf. Louise O. Vasvári, “Cunningly Lingual Wifes in European Ballad Tradition”, Destiempos,
México,
Distrito
Federal,
Julio-Agosto
2008,
Año
3,
Número
15,
em
http://www.destiempos.com/n15/vasvari1.pdf, arquivo acedido na Internet em 12 de Fevereiro de 2009.
510
O motivo da “máscara” em Bernal Francês será retomado no Capítulo II.
232
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
adultério ao marido, ao mesmo tempo que o faz ao ouvinte-leitor, externamente à
intriga. O jogo perguntas/respostas torna-se aqui uma armadilha bem mais subtil do que
a dos outros romances, visto que o teste, em Bernal Francês, é indirectamente feito pelo
marido, ao deixá-la ir enredando-se nas próprias perguntas, que a denunciam. As
respostas do marido vão, também interna e externamente e de forma mais ou menos
velada, sugerindo a sua identidade, mas a mulher não compreende tais alusões e
indícios. Da adúltera de Bernal Francês, em contraste com as dos outros romances, dirse-ia que “pela boca morre o peixe”, uma vez que insiste em perguntas que não fazem
senão confirmar que tem um amante. Não percebendo que as respostas que o marido lhe
vai dando indiciam quem está, na realidade, deitado com ela, parece pouco astuciosa no
seu próprio jogo. Só em alguns casos, e já na sequência seguinte, pretende enganá-lo,
dizendo ter tido um sonho.
Na última das perguntas ao “amante”, ou seja, se teme o marido, a mulher alega
que tal receio não se justifica, porque ele está longe de casa; esta informação só agora é
dada explicitamente e embora haja uma certa variação nos locais onde aquele se
encontrará, infere-se, em qualquer dos casos, que já está ausente há muito tempo.
11.”Se tens medo ao meu marido, meu marido está no Brasil,
12. As novas que venham dele sejam nunca mais cá vir.”
BF/98 Galhoz (1987) 283
As pragas que lhe roga pragas parecem ser a gota de água que faz transbordar a
taça e, finalmente, o suposto amante revela que é o marido; este desvendar da identidade
constitui o culminar da tensão dramática e uma evolução na narrativa, pelo que se
seguirá o desfecho do romance, na sequência seguinte.
233
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência IV – A punição
1) Suporte significante directo:
(a):
18.“Deixa vir a manhana, que eu te darei de vestir:
19.darei-te saia de grana colete de carmesim.
20. gargantilha de cutelo, pois o quiseste assim.”
BF/13 Pedroso (1902) 463-464
(b):
20.“- Dá-me a morte, meu marido, dá-me a morte agora aqui,
21. dá-me a morte, meu marido, também sei que a mereci.
22. - Deixa lá vir a manhã que eu te darei de vestir,
23. darei-te saias de holandia e roupinhas de camirim”
BF/102 Ana Martins/Ferré (1988) 71-72
(c):
23.“- Ai que sonho, feio sonho, eu sonhei agora aqui,
24.'inda bem que és meu marido, mais te quero do qu' a mim.”
25.Ergamo-nos já da cama, deixa-me vestir daí.
26.- Cal'-te lá, mulher treidora, que não me inganas assim,
27.antes do nacer do sol, eu te visto de cetim,
28.gargantilha de corais, que hão-de sair de ti.”
BF/5 Azevedo (1880) 141-145
(c.1.):
21. “- Perdoai-me, ó meu marido, isto foi sonho que sonhei.
22. - Deixai vós amanhecer, levarás saia de malha
23. e gargantilha colorada quando por amor de ti,”
BF/110 Falcão/Ferré/Morna (1988) 222
Na última sequência de Bernal Francês, o suporte significante directo limita-se ao
anúncio feito pelo marido de que, pela madrugada, dará certos objectos à mulher (a).
Em alguns casos, a mulher, ainda antes disso, pede a morte (b) como coisa merecida ou
tenta desculpar-se, dizendo ter tido um sonho (c) e, nalguns casos, pedindo perdão
(c.1.).
234
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2) Suporte significante indirecto:
O desfecho deste romance é a morte da mulher, mas, de facto, a narrativa omite a
sua concretização explícita, pelo que o sentido da sequência reside em suportes
significantes indirectos. Por um lado, a axiologia implícita511 implica-o, uma vez que
este tipo de desenlace fatal faz parte da “ordem natural das coisas”, dependente como é
do pressuposto de que, numa sociedade conservadoramente organizada, a morte é o
castigo do adultério. Por outro lado, não sendo a execução discursivamente explícita, é
comunicada de modo implícito, pois o marido, empregando o futuro do indicativo,
anuncia à adúltera512 a oferta de alguns objectos (peças de vestuário, gargantilhas e
similares) de cor vermelha e estes constituem uma metáfora, a da morte sangrenta que a
mulher vai sofrer de madrugada513. O seu referente é tão claro que ela logo o entende
como a implicação inevitável daquilo que fez. Chega mesmo a pedir a morte como coisa
merecida (b), se bem que possa tentar protelá-la:
16.“- Antes de morrer, deixai-me a Sã Gil uma vez ir;
17. lá me estão já pai e mãe, deles quero me espedir”
BF/6 Azevedo (1880) 145-150
Outras vezes, pelo contrário, parece querer acabar rapidamente com o sofrimento
de esperar que chegue a alvorada514:
24.“- Ó lua, que vas tão alta, que não quer amanhecer,
25.
para esta triste coitada acabar de padecer.”
BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204
511
Cf. na Parte I, o Capítulo IV - Para uma perspectiva axiológica dos romances.
Com algumas excepções em que exprime a intenção de a devolver a casa do pai.
513
No Capítulo II. Os Motivos na Revelação do Sentido, tornaremos a abordar as questões do sentido
metafórico dos objectos prometidos e do protelamento da morte para a manhã seguinte.
514
A invocação à lua ocorre em várias outras versões, de origem açoriana, como as BF/9 Braga (18871889) 105-107, BF/58 Fontes (1979) 113-114, BF/73 Fontes (1983a) 89-90, BF/74 Fontes (1983 a)
90-91, BF/76 Fontes (1983a) 92-9, BF/77 Fontes (1983 b) 78-79, BF/78 Fontes (1983 b) 79-80,
BF/101 Galhoz (1987) 290-291.
512
235
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Alternativamente a esta aceitação imediata, ela tenta ainda salvar-se, dizendo que
tudo não passava de um sonho e tentando assim induzi-lo a crer na inexistência do
adultério. Acontece o “sonho” tome o sentido de “desvario” e ela, invocando-o, rogue a
morte (a) ou o perdão (b) :
(a): 17.”- Matai-me, senhor, matai-me, que isto foi sonho que eu sonhei.”
BF/7 Dâmaso (1882) 155-156
(b):10.”- Ai! Perdoa-me, meu marido, foi um sonho que eu sonhi
11. Malvado este meu sonho, que a morte me causa a mim.”
BF/108 Anastácio (1988) 61
Casos há em que demonstra mais sagacidade que anteriormente e faz-se
desentendida, perguntando ao marido que prenda lhe traz:
22.“Oh que sonho seria este, que agora sonhei aqui?
23. Se tu és o meu marido, que me trazes para mim?”
BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208
Outras vezes, diz-lhe que é a ele que ama (a) ou chama-lhe “maridinho” (b), a
querer talvez aplacar-lhe a ira515:
(a): 22”- Se tu és o meu marido, eu te quero mais que a mim.”
BF/9 Braga (1887-1889) 105-107
(b): 15.” Cala, cala, maridinho, qu'isto é o modo d'eu sonhare.”
BF/87 Fontes I (1987) 346
Deste modo, há na intriga narrada apenas uma promessa/ameaça de morte à
adúltera, que se pressupõe seja actualizada, mas a nível da fábula, na qual a execução
está implicada.
515
Nas versões, podem ocorrer as várias situações em simultâneo, o que indica que ela pode tentar
defender-se, mas acabar por aceitar o inevitável. Ver Anexos. Grupo B - B.4. BERNAL FRANCÊS Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação.
236
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1.2. VENENO DE MORIANA
Este romance centra-se, dramaticamente, no envenenamento de um homem por
uma mulher. Desenhada a acção quase inteiramente na forma dialogada, a intriga
decorre num espaço temporal muito curto, que medeia entre a chegada de um cavaleiro
junto de uma jovem e a turvação dos sentidos que aquele experimenta logo após beber
um copo de vinho que esta lhe oferece. Ainda que tal enredo seja muito simples, as
razões do incidente não são igualmente explicitadas nos dois tipos que propomos (A e
B), que apresentam divergências de estruturação. Como este é um ponto importante na
revelação do sentido do romance, analisaremos alternadamente os suportes significantes
directos e indirectos dos dois tipos.
Tipo A - As sequências iniciais
Sequências I, II e III:
Nas versões do Tipo A, qualquer das três primeiras sequências que definimos para
este tipo estrutural de Veneno de Moriana e que correspondem às situações a), b) e c),
pode ocorrer como abertura, cada uma delas suportada, logicamente, pelo respectivo
suporte significante directo.
(a) Sequência I - Diálogo mãe/filha: Dá-se um diálogo entre mãe e filha, na
modalidade pergunta/resposta, apresentando uma determinada situação: a
filha está a chorar e a mãe pergunta porquê.
(b) Sequência II - Anúncio da chegada do cavaleiro: Normalmente constituída
por um único verso, a sequência anuncia a chegada de um homem montado a
cavalo.
(c) Confirmação do casamento – Sequência III: Um diálogo é iniciada pela
pergunta de Moriana a “D. Jorge” sobre se é verdade que vai casar, seguindo237
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
se a confirmação deste e o convite para o casamento; por vezes o diálogo é
precedido de um outro, de saudação entre os dois intervenientes.
As modalidades de abertura e os respectivos suportes são:
1) Suportes significantes directos:
Versão iniciada com a sequência I, seguida das sequências II e III
VM/76 Fontes (1982) 88-89
Suporte significante directo
I
1. - “Tu que tens, ó Juliana, qu'andas tão triste a chorare?
2. - É o D. Jorge, ó minha mãe, ele com outra vai casar.
3. - Bem t'avisei, minha filha, não me quisestes ouvir,
4. qu'o D. Jorge tem por hábito das meninas iludir.
II
Suporte significante directo
5. - Anda, lá vem no meu D. Jorge montado no seu cavalo.
Suporte significante directo
III
6. - Como estás, ó Juliana? Como estás, como tens passado?
7. - Hoje mesmo foi que eu soube que andavas p'ra te casar.
8. - É verdade, ó Juliana, que te venho convidar.”
Versão iniciada com a sequência II, seguida da III
VM/153 Fontes I (1987) 388
II
Suporte significante directo
1. Lá abaixo vem o D. Jorge no seu cavalo montado.
238
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Suporte significante directo
III
2.- Deus te guarde, ó Juliana, no teu país assentada.
3.- Ouvi dizer, ó D. Jorge, que andavas para te casare.
4. - É verdade, ó Juliana, que te venho a convidare.
Versão iniciada com a sequência III
VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115
Suporte significante directo (com saudação mútua)
III
1. - Deus te salve, Laureana, costurando teu bordado.
2. - Deus te salve, Leonardo, em teu cavalo montado.
3. Já cá me chegou a nova que te havias casado.
4. - Quem te disse não mentiu, mas foi talvez apressado,
5. já se passaram escritos, vai-se passar o mandado.
2) Suportes significantes indirectos:
A honra é o suporte significante indirecto que sustenta o sentido deste romance,
no que diz respeito a ambos os protagonistas, perdida por Moriana “enganada”, mas
também pelo cavaleiro incumpridor; este binómio vai provocar uma outra infracção, a
do assassínio.
(a) Sequência I - Diálogo mãe/filha
A sequência do diálogo mãe/filha, presente apenas no Tipo A, constitui, segundo
Ferré da Ponte, uma ”estratégia dramatizadora” introduzida para reforçar o carácter
“donjuanesco” do cavaleiro 516 , pelo que actua como prólogo destinado a explicitar a
razão de ser da intriga. No caso de este diálogo ocorrer como abertura, que é também
516
Cf. Ponte [1987], p. 106.
239
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
uma indicação cénica - uma jovem está a chorar -, a observação da mãe dá a conhecer
que a atitude de tristeza da filha não é pontual mas prolongada no tempo (1.“- Tu que
tens, Juliana? Passas a vida a chorar.”, VM/17 Leite (1960) 108-109). A resposta da filha à
pergunta faz saber que um tal “D. Jorge” vai casar e que o choro é a consequência desse
facto. A abertura com a sequência I destina-se, pois, a informar desse casamento e a dar
conta dos sentimentos de Moriana em relação a isso. O ouvinte/leitor, como ser social,
reconhece uma implícita manifestação de ciúme na tristeza de uma jovem por tal
razão517.
O ciúme, contudo, não é a única causa do seu choro, o que se saberá pela
implicação contida, no decorrer do diálogo, na referência feita pela mãe aos seus
próprios avisos anteriores (“eu bem te dizia…”) sobre o costume de D. Jorge “enganar”
donzelas:
3.“- Bem te disse, Juliana, não quisest'acraditar:
4. João Jorge tem por costume de toda a moça enganar;”
VM/18 Leite (1960) 109
Este factor informativo faz subentender que, tal como as outras “moças”, também
a filha foi “enganada”, o que significa ter sido seduzida com promessas de casamento,
pelo que se entende que, ao ciúme (a que D. Jorge, em verdade, poderia ser alheio,
tratando-se acaso de uma não correspondida paixão de Moriana), se junta a desilusão.
Neste caso, haverá que considerar a existência de uma sequência implícita:
# - D. Jorge tinha prometido casamento a Moriana.
517
Também em uma versão galega, a filha responde à mãe, explicitamente, que chora “por don Xorxe”:
“- O que tês, o Xuliana, que estas disposta a chorar?
- Miña nai, é por don Xorxe que con outra vai casar”.
Versão 0172:43, ficha nº: 801, com a indicação: “Loureiro (parr. Santiago de Loureiro, ay. Cotobad, ant.
Puente Caldolas, p.j. Pontevedra, Pontevedra, España). Recogida 00/00/1946. Publicada en Fraguas
Fraguas 1946, "Dous romances de Galicia", Revista de Guimarães, p. 117. Reeditada en Carré Alvarellos
1959, Romanceiro popular galego de tradizon oral, p. 133, nº 46. 024 hemist. Música registrada”. Cf.
Proyecto del Romancero pan-hispánico. O diálogo mãe/filha ocorre em versões portuguesas e brasileiras
e nesta galega, a avaliar por aquela base de dados.
240
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A inconstância amorosa do protagonista comprovar-se-á ao considerarmos
igualmente outras tradições que não apenas a portuguesa, como é o caso da versão
argelina, mas que ocorre igualmente em versões de Tânger, Tetuan e Larache
(Marrocos)518:
“Siete amigas tiene Bueso, que siete amigas tenía,
y a todas las iba a ver día de Pascua florida,
519
si no era Moriana, que se le olvidaria.”
(b) Sequência II - Anúncio da chegada do cavaleiro
O conteúdo narrativo desta sequência não parece, à primeira vista, servir muito
para o desenvolvimento da intriga, em especial se constituída por um único verso, como
no exemplo acima dado, ou mesmo no caso abaixo:
1. “- Lá vem o Jorge, lá vem no seu cavalo montado,
2.
Visitar a Luciana no seu palácio sentada.”
VM/201 Carvalho Rodrigues (1990) 220
No entanto, na sua extrema condensação, a sequência é portadora de informações
pertinentes para o sentido do romance, assumindo também aspectos diferentes
consoante a sua posição na abertura da versão.
Se esta for a primeira sequência da versão, ela terá, antes de mais, uma função
formulária, pela expressão “lá vem”, que denota a situação espacial dos protagonistas –
um homem a cavalo é avistado a aproximar-se pela mulher que se encontra no limiar da
casa. No caso de a aproximação desse homem ser anunciada durante o diálogo
Moriana/mãe, a sequência II tem, também, a função de “dizer” ao ouvinte que alguém
vai entrar em cena e, consequentemente, de anunciar uma evolução na intriga.
518
Cf. Versões de Veneno de Moriana em Proyecto del Romancero pan-hispánico.
519 Versão 0172:64, ficha nº: 9018, de Orán (Argelia), com a indicação: “Recitada por la señora de Coriat
y Esther Coriat y Camila de Levy. Recogida en Buenos Aires, Argentina por Paul Bénichou, (Colec.:
Bénichou, P.). Publicada en Bénichou 1946, nº XXXV, pp. 97-9. Reeditada en Bénichou 1968b, pp. 156159. 054 hemist. Música registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico.
241
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Internamente a esta, se ainda no interior desse diálogo (1.“- Minha mãe, lá vem D. Jorge
no seu cavalo montado”, VM/7 Martins (1928)/Martins (1987) 251-252), a função da
declaração de Moriana seria a induzir a mãe a afastar-se, presumivelmente para a jovem
poder envenenar o cavaleiro sem testemunhas; não sendo difícil de deduzir que “D.
Jorge” não agrada à mãe, Moriana saberia que o simples anúncio da sua chegada a
levaria a afastar-se. Parece-nos ser esta a razão, pois presumindo-se que também a mãe
teria visto o cavaleiro, a relevância da informação dada por Moriana perder-se-ia. Notese, no entanto, que, por se tratar de um terceiro protagonista, deverá sempre ter lugar a
saída de cena da mãe, para que se cumpra a já citada “Lei de Dois em Cena”, segundo
Axel Olrik.
Outra função da sequência, é revelar, desde logo, o estatuto social elevado da
personagem masculina, uma vez que o nome deste homem é geralmente precedido pelo
honorífico “Dom” (equivalendo, em termos de estatuto, ao “cavaleiro” no Tipo B) e
nesta condição estão implícitos valores e deveres que se inferirá, posteriormente, terem
sido transgredidos520.
Também questão de peso no sentido é a própria expressão “[lá] vem”, que indica
claramente que o cavaleiro se dirige à casa de Moriana e não deve ir a passar ao longe e
por acaso. Assim, surgem versões que alongam a sequência com um verso que não só
explica o motivo presumido da visita (vai escarnecer dela) como, no comentário do
segundo hemistíquio, introduzem o que é, pragmaticamente, reconhecível como uma
ameaça, que se confirmará no seguimento da intriga:
1.”- Lá baixo vem o D. Jorge, montado no seu cavalo,
2. veio escarnecer de mim, mas ele vem enganado.”
VM/106 Ferré (1987a) 50-51
520
Cf. Capítulo IV - Para uma perspectiva axiológica nos romances, na Parte I. Voltar-se-á, adiante, a
este aspecto, nesta Parte II , no Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido.
242
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(c) Sequência III - A confirmação do casamento
Quando, nas versões, a sequência I precede a III, haverá uma maior compreensão
das razões do acto que se segue, mas no caso de a sequência de abertura ser o diálogo
Moriana/D. Jorge, portanto sem o diálogo com a mãe, não existe a informação prévia
fornecida por este (Moriana está triste, porque D. Jorge vai casar), pelo que não se
estabelece logo a relação causa/efeito que corresponde a “expectativas goradas de
casamento > envenenamento”. Note-se que em outros casos que não contêm o diálogo
mãe/filha mas o de Moriana/cavaleiro, esta relação causal é mais clara. A abertura com
o diálogo Moriana/D. Jorge torna-se então um caso de implícito extratextual em relação
às já citadas circunstâncias anteriores, com a inferência das razões do assassinato a ser
adiada para o final, em geral nos comentários de Moriana às lamentações de D. Jorge. O
grau de encatalisação será, pois, mais elevado com a ausência da Sequência I.
Na sequência III, se em modo de abertura, está implícito que Moriana já sabia
antecipadamente do casamento, uma vez que declara que “ouviu dizer”; logo, o que
pretende é confirmar521 (a) e ele assim o faz (b):
(a):
3.“ Cá me vieram dizer que vós estáveis para vos casar.”, VM/21 Leite (1960) 111
7. “- Tu vens aí, ó João Jorge? Dizem que te vais casar...”, VM/18 Leite (1960) 109
(b):
4. “- Quem vo-lo disse, senhora, falou-vos muito a verdade;
5. Amanhã, por essa hora, se me quereis acompanhar.”
VM/21 Leite (1960) 111
” 5. - Quem te disse isso, Celeste, que não te quis enganar.
6. Venho-te dar a saber que amanhã irei casar.”
VM/242 Firmino (1996) 129
521
Este detalhe aparece também no que foi a Jugoslávia: “Mi an dichu, il Dumbueso, qui vus quiréx
casar”.Versão 0172:66 ficha nº: 9020, com a indicação:”Versión de Monastir (Yugoslavia). Recogida
por Max A. Luria, 00/07/1927 publicada en Armistead 1975,"Rare Judeo-Spanish Ballads from Monastir
(Yugoslavia), collected by Max A. Luria", The American Sephardi), 7-8 (1975-76), pp. 227-228 (nº
14). 059 hemist. Música no registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico.
243
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Percebe-se agora que “D. Jorge” andará a fazer convites para o casamento, como
compete a um noivo em certas zonas rurais, de acordo com Silva Picão:
“Oito dias antes da boda, o noivo tem de passar pelo incómodo de ir pessoalmente avisar
os padrinhos, o pároco e os convidados, do dia e hora em que tenciona casar. Aos convidados, é
da praxe, repetir-lhes que conta com eles, que não lhe faltem a acompanhá-lo, que leva muito
em gosto que tomem parte no ajuntamento, etc.”. 522
O detalhe é explícito noutras tradições, como esta, jugoslava (a) ou a seguinte,
leonesa (b):
(a): “Dispusadu istá Dumbueso qui si queríe casar
523
a primus y a parientis d` oy va ir a cumbidar”
(b): “Madrugaba don Alonso dos horas el sol salido,
para invitar a su boda a los parientes y amigos;
a las puertas de Mariana paraba el su rocino:
- Buenos días, Mariana. - Don Alonso, bienvenido.
- Vengo a brindarte, Moriana, para mi boda el domingo”524
Moriana estará, pois, no rol dos convidados e será essa a razão pela qual o
cavaleiro vem a casa dela, tanto mais que, como a sequência II indica, se aproxima
deliberadamente, o que se torna bem explícito no excerto da versão leonesa e neste
exemplo:
8. “ - É verdade, ó Juliana, venho-te cá convidar.”, VM/18 Leite (1960) 109
O que já não se sabe com certezas é se a visita é “inocente”, ou seja, se não haverá
qualquer compromisso anterior e é apenas Moriana que está apaixonada por D. Jorge,
sem que este o saiba, ou se a visita é “provocatória”, isto havendo a presunção de
522
Cf. José da Silva Picão [1983], Através dos Campos. Usos e costumes agrícola-alentejanos (concelho
de Elvas), Lisboa, D. Quixote, 1983, p. 177.
523
Versão atrás referenciada, de Monastir.
524
Versão 0172:4, ficha nº: 828, com a indicação: “ Versión de Cabornera (ay. La Pola de Gordón, p.j.
León, ant. La Vecilla, comc. Gordón, León, España). Recitada por Prudencia Flecha Mieres (65a) y
Manuel Morán Flecha (45a). Recogida por Diego Catalán, Teresa Catarella, Flor Salazar y
Jane Yokoyama, 17/07/1977 (Archivo: ASOR; Colec.: Encuesta NORTE 77; cinta: `Cabornera-Noceda`
A9). Publicada en AIER 2 (1982), nº 53:1, pp. 63-64, y TOL I 1991, pp. 229-230. 036 hemist. Música
registrada.” Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico.
244
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
compromisso, não se importando “D. Jorge” com os sentimentos dela. A segunda
hipótese é mais credível, dado o teor do diálogo mãe/filha que indicia as expectativas de
Moriana, mais tarde confirmadas quando há um Prolongamento, ou na versão
espanhola: “Las tus bodas, don Alonso, yo entendí que eran conmigo”525.
De qualquer forma, numa perspectiva de interpretação psicológica, a confirmação
do casamento de D. Jorge explicaria a rápida passagem do estado de tristeza de Moriana
para o desejo de vingança e, logo, para a sua concretização.
Tipo B:
Sequência I – O convite
1) Suporte significante directo:
1.“- Apeia-te, ó cavaleiro, são horas de merendar”
VM/10 Leite (1960) 104
O suporte significante directo da sequência inicial deste Tipo consiste em um
único verso, que, na realidade, dirige dois convites por alguém não identificado a um
cavaleiro – que se apeie e que merende.
2) Suporte significante indirecto:
No Tipo A, como atrás vimos, os suportes significantes directos que são as
sequências iniciais (I, II e III) contêm informação suficiente para se ir compreendendo a
razão do acto que Moriana praticará na sequência IV (o envenenamento de D. Jorge),
que implicará determinado desfecho (a morte daquele); o despeito de saber que D. Jorge
vai casar com outra e a implicação de um compromisso anterior com ela própria são
factores dados a conhecer logo de início.
525
Versão 0172:6, ficha nº: 830, com a indicação: “Versión de Puebla de Lillo (ay. Puebla de Lillo, ant.
Lillo, p.j. Cistierna, ant. Riaño, comc. Riaño-La Reina, León, España). Recitada por María Díaz.
Recogida por Matías Martínez Burgos, 25/07/1910 (fecha deducida) (Archivo: AMP; Colec.: María
Goyri-Ramón Menéndez Pidal). Publicada en TOL I 1991, p. 231. 022 hemist. Música registrada”. Cf
Proyecto del Romancero pan-hispánico.
245
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
No Tipo B, pelo contrário, o característico incipit do Tipo B (“- Apeia-te, ó
cavaleiro, são horas de merendar” ou semelhante) e que constitui a sua sequência inicial,
não possui elementos que permitam pressupor quaisquer circunstâncias anteriores ao
diálogo, nem, tampouco, saber a identidade de quem faz a interpelação; há apenas,
antecedendo esta curta sequência, uma pressuposição lógica, que corresponde ao verso
mais comum no outro tipo “Lá vem o D. Jorge” e similares:
# Alguém vê que um cavaleiro se aproxima
Deste modo, toma-se apenas conhecimento, através deste verso, de que alguém
convida um cavaleiro que se aproxima a apear-se e merendar, num acto que aparenta ser
de pura cortesia. Segue-se outro implícito lógico (# - o cavaleiro desmonta e
aproxima-se) e a inferência de que este aceita. Todo o resto, ou seja, uma explicação
para o envenenamento, que neste tipo é explícito, dependerá do conhecimento do outro
tipo, ainda que com restrições. De facto, sem o diálogo mãe/filha do Tipo A, que
justifica que Moriana envenena o homem porque este a traiu, o ouvinte/leitor, no fim da
enunciação, fica predisposto a crer num acto gratuito de maldade da jovem, pelo que o
cavaleiro aparenta ser vítima sem culpas e ela uma mera assassina.
Sequência IV do Tipo A e Sequência II do Tipo B – A oferta do vinho
1) Suporte significante directo:
Tipo A
Tipo B
6.“Espere, D. Jorge, espere, que eu vou ao 2.“- Que tens ó dona Eugénia guardado p'ra
[sobrado
7.Buscar um copo de vinho que p'rò senhor
[me dar?
3.- Tenho vinho de há sete anos, para te dar a
[tenho guardado.”
[provar.
4.- Deita cá um copo dele, que me quero
[refrescar.”
VM/17 Leite (1960) 108-109
VM/6 Martins (1928)/Martins (1987) 197
246
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
No Tipo A, Moriana diz a D. Jorge que espere enquanto vai buscar um copo de
vinho, que para ele tem guardado. No Tipo B, uma vez que lhe foi feito um convite
explícito para merendar, é o cavaleiro pergunta em que consiste essa oferta; Moriana
responde ter um copo de vinho (“há sete anos”) guardado para ele. O cavaleiro pede
então que lho dê a provar.
2) Suporte significante indirecto:
Os suportes significantes directos destas sequências equivalem-se, em termos de
funcionalidade de intriga, mas o mesmo não se aplica inteiramente aos suportes
significantes indirectos dos tipos A e B. Em ambos, a oferta do vinho representa uma
armadilha a D. Jorge/cavaleiro, mas este sentido apenas se confirma na sequência
posterior, quando se saberá que ele se sente mal depois de beber; na verdade, só no tipo
B se há-de explicitar que a bebida estava envenenada, enquanto no tipo A, o mal-estar
do cavaleiro permanece inexplicado; deste modo, o suporte significante indirecto da
sequência IV, no tipo A, reside no suporte significante directo (sequência III) do outro
tipo, o que significa que são interdependentes526.
Acontece que Moriana diga ao cavaleiro, explicitamente, o que pretende fazer:
1.“- Assuba, D. João, assuba p’a descançar,
2. que eu vou ao jardim de meu pai, ervas vir vou-l’apanhar,
3.
daquelas mais venenosas pr’a no vinho le deitar.”
VM/43 Fontes (1979) 126
Todavia, os versos 2 e 3 poderiam constituir um aparte da protagonista em
exclusivo benefício do auditório, interpretação possível pelo sistema português de
cortesia, pois o emprego da 3ª pessoa propicia a ambiguidade; as expressões “voul’apanhar”/”no vinho le deitar” poderão referir-se “a vós” ou “a ele”. Em qualquer dos
casos, fica o leitor/ouvinte ciente do que se vai passar, anulando-se o efeito dramático
526
Vimos, atrás, que há versões que apresentam versos dos dois tipos (A+B), o que comprova que a
revelação do sentido é interdependente.
247
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
final. O seu interlocutor é que não parece ter ouvido, pois bebeu o tal vinho, como se
depreende pelo seguimento (4.“- O que me deste, Diana, deste cálix do bom vinho?”)
Há ainda outros implícitos a considerar nos dois tipos; no Tipo B, pressupõe-se
que Moriana já tinha envenenado o vinho quando o cavaleiro chega, pois lho dá
imediatamente, o que subentende uma premeditação. Na versão abaixo, ela não só
especifica os ingredientes como a sua preparação, com o facto de o “rosalgar” ser sido
“bem fervido”, a revelar que gastou tempo e cuidado prévios na mistura:
8.”- Deitei-lhe sangue de cobra, o do lagarto moído.
9. entre o meio disso tudo, o rosalgar bem fervido.”
VM/52 Caufriez (1998) 133
A premeditação, não sendo tão clara no Tipo A, é explícita em certos casos:
13.”- Tu bebeste, Leonardo, um copo de rosalgar,
14. Que eu já tinha preparado, que te dei p'ra te matar,”
VM/95 Cortes-Rodrigues (1987) 259-260
Noutra versões, embora diga ter um vinho “guardado” para ele, Moriana pede ao
cavaleiro que “espere” enquanto o vai buscar, o que pode sugerir que, se bem que possa
ter ponderado a questão, só nesse momento se decide e envenena a bebida. Na versão
argelina abaixo527, esta situação é muito clara:
“Como esso oyó Moriana, fuese al vergel de su padre,
cortara siete hojitas de aquel fino solimanes;
majólas y bien majólas, y en el vino las fue a echare
y al caballero don Bueso se lo fuera a convidare”
Outras vezes, mais parece um impulso ditado pela raiva que a assola ao
confirmar a “traição”; na versão leonesa adiante, Moriana, logo após declarar julgar
527
Versão 0172:64, ficha nº: 9018), com a indicação: “Versión de Orán (Argelia). Recitada por la señora
de Coriat y Esther Coriat y Camila de Levy. Recogida en Buenos Aires, Argentina por Paul Bénichou,
(Colec.: Bénichou, P.). Publicada en Bénichou 1946, nº XXXV, pp. 97-9. Reeditada en Bénichou 1968b,
pp. 156-159. 054 hemist.”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico.
248
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
serem as bodas com ela, vai à horta, enfurecida, apanhar o veneno com que matará o
cavaleiro (a negrito):
“Se pasea don Alonso de a caballo en su rocino.
- Bien hallada seas, Mariana. - Don Alonso, bienvenido
- Te brindo para unas bodas, para unas bodas te brindo.
- Esas yo, don Alonso, juzgué que eran conmigo
Ya se fue para la huerta como león furecido
coge una, coge dos, coge cuatro y coge cinco,
sangre de cuatro culebras y la de lagarto vivo.
Ha entrado para dentro, se lo ha dado en el vino” 528
Nas versões portuguesas nas quais Moriana vai colher as folhas venenosas, fá-lo
de modo mais calmo (a) ou até com ares de grande alegria, mas percebe-se que a
decisão foi tomada nesse momento :
6. “Levantou-se Moliana com seu modo real,
7. Foi colher três folhas a seu lindo rosal.”
VM/21 Leite (1960) 111
12.”Adriana de contente pinchos dava no quintal.
13.Foi escolher uma rosa do mais fino rosalgar.
14.Para lhe deitar no vinho para lhe dar a provar.”
VM/258 Terreiro (1999) 80-81
Sequência V do Tipo A e Sequência III do Tipo B – A morte do cavaleiro
1) Suporte significante directo:
Tipo A
Tipo B
11.“- Que fizeste, Juliana, a este copo de vinho ?
12.Ainda o agora bebi, já num inxergo o
[caminho.”
528
5.“Consoante bubeu o vinho começou-se a
[desmaiar.
6.- Que deitastes ao teu vinho que me fezo
Versão 0172:5, ficha nº: 829, com a indicação: “ Versión de Lugueros (ay. Valdelugueros, p.j. León,
ant. La Vecilla, comc. Los Argüellos, León, España). Recogida por Narciso Alonso Cortés, 00/00/1920
(Archivo: AMP; Colec.: Alonso Cortés, N.). Publicada en Alonso Cortés 1920, pp. 21-22 (212-214) y
TOL I 1991, p. 230. 034 hemist. Música registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico.
249
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
[tanto mal?
7.- Deitei-lhe sangue de cobra, pós de
[lagarto moído,
8.Entremeios disso tudo foi um ressalgar
[metido.”
VM/18 Leite (1960) 109
VM/19 Leite (1960) 110
A acção final é rápida e, em ambos os tipos, o cavaleiro bebe o vinho, sente-se
mal e pergunta a Moriana o que lhe deitou. Apenas no Tipo B, obtém uma resposta
explícita descritiva dos ingredientes deitados no vinho, informação omitida no Tipo A.
2) Suporte significante indirecto:
Na sua brevidade, só agora a intriga do romance apresenta o seu ponto fulcral, ou
seja, o acto de matar. Que este é uma vingança perpetrada por uma mulher que se sente
traída por um homem529, deduz-se facilmente no Tipo A, no qual o ouvinte-leitor podia
já ter atribuído os motivos que despoletaram o envenenamento às expectativas de
casamento goradas de Moriana 530 , como atrás foi dito; nas versões do Tipo B, o
ouvinte/leitor permanece, até ao final, no seu desconhecimento e assim, o sentido de
vingança por falta de cumprimento das promessas matrimoniais, neste tipo, só pode
inferir-se pela existência do Tipo A. No Tipo B, apenas se houver um Prolongamento
no qual Moriana declare explicitamente que o acto que praticou foi uma vingança
(“Agora já me vinguei que com outra não casou” – VM/20 Leite (1960) 110, v. 16) ou com as
529
Esta vingança de mulher não é do tipo épico, como o é a do Rico Franco, no qual a donzela mata o
sedutor para vingar as mortes do pai e irmãos. Cf. RoH, p. 330. Aqui, trata-se unicamente da sua própria
honra.
530
Berta Beça fundamenta a existência de dois romances diferentes nesta circunstância, como atrás já
referimos. Um deles, Juliana, no qual o homem é solteiro, corresponderá, pelo incipit “Apeia-te, ó
cavaleiro…” ao nosso Tipo B e o outro, Eugénia, ao Tipo A, cujas versões apresentadas pela autora
incluem os versos que indicam ser o cavaleiro um homem casado, não podendo, portanto, casar-se com
Moriana (“Coitada da minha mulher, que fica sem o seu marido!”). Cf. Beça [1988], p. 239, versão 48, v.
15. Contudo, consideramos que os versos deste género não correspondem a um outro romance, mas são
um dos aspectos do Prolongamento das Lamentações de Veneno de Moriana, nas quais, em outras
versões, é a amada e não a mulher que é mencionada (14.“Coitadinha da minha amada, pensará que 'inda
sou vivo.”, VM/17 Leite (1960) 108-109, v. 14).
250
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
declarações finais da jovem, do tipo “também a mãe pensava que tu casavas comigo”,
poderá ser executada a inferência de que Moriana sabe que o cavaleiro vai casar com
outra e que explica (ou até justifica) o acto praticado (# - O cavaleiro tinha prometido
casamento a Moriana)531.
A intriga, em rigor, finaliza com a informação de que o cavaleiro se sente mal
após ter bebido o vinho ao qual foram adicionados certos ingredientes, apenas
mencionados e descritos no tipo B e que, muito claramente, são venenos 532 . Daí se
inferirá que o cavaleiro morre.
Seria de esperar que o acto de Moriana implicasse a continuidade da intriga,
expectavelmente o castigo da assassina, visto que, na ordem social normal, um crime
implica uma sanção. No entanto, tal não acontece e o romance deixa as consequências
em aberto, embora certas versões tentem colmatar a sua falta, em Prolongamento, que
analisaremos no Capítulo III da Parte II. A ausência de um fecho “lógico” (castigo de
Moriana) parece deslocar significações – a morte do cavaleiro justifica-se porque a
infracção/traição cometida por este é maior que a infracção perpetrada pela mulher,
sentido este que tem o seu suporte significante indirecto nos modelos sócio-culturais,
de acordo com o Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances, da Parte
I.
531
Em versão de Orán (Argelia), recolhida na Argentina, dá-se uma variante que modifica
substancialmente o desfecho; o cavaleiro declara que vinha, de facto, para casar com Moriana e esta, ao
ouvir isto, sabendo que tinha envenenado o seu amor, cai morta:
“Contigo eran las bodas, contigo eran las fiestas.
Como esso oyó Moriana, muerta al suelo se cayera.”
Versão identificada da seguinte forma: “0172:64 Veneno de Moriana (estróf.) (ficha nº: 9018) Recitada
por la señora de Coriat y Esther Coriat y Camila de Levy. Recogida en Buenos Aires, Argentina por
Paul Bénichou, antes de 1942. (Colec.: Bénichou, P.). Publicada en Bénichou 1946, nº XXXV, pp. 97-9.
Reeditada en Bénichou 1968b, pp. 156-159. 054 hemist. Música no registrada. Cf. Proyecto del
Romancero pan-hispánico.
532
Cf. Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido.
251
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1.3. SILVANA E DELGADINHA
Estes dois romances têm um tema que lhes é comum, ou seja, trata-se do
propósito incestuoso de um pai, o que faz com que por vezes sejam confundidos ou
mutuamente se contaminem, como já dissemos, embora uma análise mais detalhada
comprove as divergências nas intrigas. Quanto aos suportes significantes indirectos,
serão consideradas, para ambos, as relações de Poder no seio das relações familiares,
conforme postulado no Capítulo IV da Parte I, mas que fazemos assentar, desde já, no
princípio mais geral dos conflitos entre pai e filha, que podem assumir vários aspectos.
Cláudia Pereira refere as duas vias, escrita e oral, que tratam o tema, reportando-se, para
a literatura geneológica, ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e, para a dramática,
a King Lear de Shakespeare, ambas estabelecendo um “teste de amor” pelo rei a suas
filhas e que estaria ligado à repartição do reino entre elas, vindo a resposta da mais
nova, que o amava nem mais nem menos do que era devido533, a resultar em que o pai,
desagradado, não a casasse; da tradição oral, a autora refere as “inúmeras versões em que
a princesa mais nova diz gostar do pai ‘como a comida gosta do sal’”, tendo como castigo a
sua expulsão do palácio e as humilhações sociais que sofre antes do pai reconhecer a
injustiça e de poder casar. A autora, que apenas cita a existência de propostas de análise
que atribuem um cariz incestuoso à relação entre o rei Lear e Cordélia, privilegia a
questão do amor filial como dever a cumprir enquanto paradigma do amor entre
parentes, bem como do código de vassalagem, valores ambos veiculados pela obra de D.
Pedro e dirigido aos fidalgos da Espanha; o mesmo dever de conduta moral seria
533
“I love your majesty according to my bond; nor more nor less” é a resposta de Cordélia ao pai, que lhe
pergunta o que pode ela dizer que suplante as palavras das irmãs. Cf. William Shakespeare [1970], King
Lear, em Hodek Bretislav, introduction and glossary by, The Complete Works of William Shakespeare,
12th ed., London, New York, Sidney, Toronto, The Hamlyn Publishing Group, 1970.
252
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
exemplificado no conto tradicional534. Na proposta de leitura dos contos do ciclo de O
Sabor dos Sabores (Love Like Salt, AT 923 535 ), João David Pinto-Correia refere o
registo do episódio, ainda sem referência ao sal, por D. Pedro, Conde de Barcelos no
Livro de Linhagens. Da narrativa transcrita, retemos aqui a resposta da filha mais nova
ao Rei Leir, que inquiria as filhas sobre o amor que lhe tinham: ”e disse a terceira, que era
a meor, que o amava tanto como deve d’amar a filha a padre” 536. Desta e da que sai da pena
do dramaturgo inglês (“I love your majesty according to my bond; nor more nor less”)
facilmente se depreende que a jovem entendeu a exigência de um amor desmesurado
como antinatural, que poderá ser entendido como de cariz incestuoso; a afirmação de
um amor puramente filial vale-lhes a exclusão da herança paterna e, a Delgadinha, o
encerramento na torre. As relações de Poder entre pai e filha geram discursos
534
Cf. Cláudia Sousa Pereira [1993] “Rei Lear: Percurso de uma Lenda”, em Aires A. Nascimento,
Cristina Almeida Ribeiro, Literatura Medieval, Vol. II, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica
de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições Cosmos, 1993, pp. 289-293.
Já Maria Helena Paiva Correia faz também o paralelo entre a peça de Shakespeare, a narrativa medieval e
uma versão do conto publicada por Teófilo Braga em 1914 (O sal e a água), mas sem mencionar, em
qualquer delas, uma sugestão de intenção incestuosa do rei, antes pondo a tónica nas questões políticas e
geneológicas, para as duas primeiras, ausentes da terceira. Cf. Maria Helena Paiva Correia [1998], “The
Leir story”, Anglo-Saxónica, Série II, nºs 8 e 9, Lisboa, Edições Colibri, 1998, pp. 95-102.
O que nos interessa aqui sublinhar, porque tratamos de Delgadinha, é o Poder discricionário do pai, que
no romance como nas outras duas narrativas, castiga as filhas que não correspondem ao esperado, ou seja,
que não demonstrem uma total submissão, através da expressão de um amor sem limites. Interessa-nos,
também, reter outras questões apontadas no artigo de Maria Helena Paiva Correia, mas porque estas se
ligam a outro romance que analisamos, Gerinaldo – não só a falta de um herdeiro masculino, numa
sociedade em que poder e herança são transmitidos à descendência patrilinear, provocará uma crise, como
a divisão do reino (no caso pelas três filhas) é inevitável, passando-se a história do Livro de Linhagens e
do dramaturgo inglês antes de estabelecido o direito de primogenitura (à época de Shakespeare, a procura
do herdeiro masculino acabaria por provocar o cisma com a Igreja Católica, com Henrique VIII a não
reconhecer a filha do primeiro casamento; suceder-lhe-ia, não obstante, a do segundo, aquela que seria
Isabel I, a quem, não tendo filhos, sucederia Jaime I, este, por ironia, por via feminina, uma vez que era
neto da irmã mais velha de Henrique VIII e que, por ter irmãos, não beneficiara do direito à coroa).
535
O mesmo número de classificação é adoptado por Hans-Jörg Uther [2004], The Types if International
Folktales, 3 vols., FF Communications 284-6, Helsinki, Academia Scientiarum Fennica, 2004 (sigla
ATU) e Isabel Cardigos [2006], Catalogue of Portuguese Folktales, Helsinki, Academia Scientiarum
Fennica, 2066 (sigla APFT), mas Francisco Vaz da Silva entende a classificação absurda, “como se nada
tivesse a ver com o ciclo da Gata Borralheira”, uma vez que este e os temas de “Maria Peluda” e de
“Amor como o Sal” são “variações sobre um tema único”, porque “O eixo temático do ciclo é a
identidade entre a mãe morta e a filha que a substitui entre os vivos, da qual decorre tanto o ódio da
madrasta (em Gata Borralheira) como o amor do pai (em Maria Peluda e, tacitamente, em Amor como o
Sal)”. Cf. Francisco Vaz da Silva [2011], Gata Borralheira e Contos Similares, Lisboa, Círculo de
Leitores, 2011.
536
Cf. João David Pinto-Correia [2010], “Conto Tradicional. O Sabor dos Sabores”, em Maria Isabel
Rocheta, Margarida Braga Neves [2010], coordenação de, O Conto na Lusofonia. Antologia Crítica,
Porto, Edições Caixotim, pp. 15-40.
253
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
significantes como os de Silvana e Delgadinha, cujo sentido ora se aproxima, ora
diverge, tanto entre si como dos que brevemente citámos.
Continuando a cotejar os romances, tal como na Parte I, começaremos por
comparar os suportes significantes directos (com prólogo e dramatizado) da sequência
inicial de ambos para, de seguida, analisarmos o seu seguimento, já em separado.
Silvana e Delgadinha:
Silvana - Sequência I. A Proposta
Delgadinha – Sequência I. A Imposição Incestuosa
1) Suportes significantes directos:
Silvana
Delgadinha
1.“Bem se passeia Silvana pelo corredor acima,
1.“Três filhas tinha o rei, todas lindas como á
2.o magano de seu pai d' amores a pretendia.
[prata;
3.- Dá-me o teu corpo, Silvana, dá-me o teu corpo,
2.A mais novinha de todas Delgadinha se
[filha minha.
[chamava.
4.- Meu corpo sim eu lho dera, meu corpo sim lho
3.- Delgadinha, Delgadinha, serás minha namorada.
[daria.
4.- Isso não, ó meu pai, é coisa que Deus não quer,
5.- Pois eu sou a sua filha, não sou a sua mulher.”
5.mas as penas do Inferno, meu Deus, quem as
[passaria?”
S/3 Martins(1938)/Martins (1987) 37-38
D/43 Leite (1960) 56
As versões destes dois romances, bem como as compósitas, abrem geralmente
com um prólogo narrativo (a negrito) ao modo dialogado. A sequência inicial de
Delgadinha pode também apresentar-se totalmente narrativizada:
1.“O conde das três Marias, por ser o conde maor,
2. Tinha três meninas lindas, todas lindas coma o Sol.
3. Faustina era a mais velha, era a mais assenhorada,
4. Era a que seu pai pretendia para sua namorada.
5. Le pediu a mão direita e ela jurou qu'l'a não dava.”
D/36 Leite (1960) 49
254
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2) Suporte significante indirecto:
O tipo de significante directo da sequência inicial condiciona o grau de
pressuposição necessário à determinação das circunstâncias anteriores ao começo da
intriga. Por isso, uma sequência inicial incluindo um prólogo narrativo, e que pareceria,
à primeira vista, ser meramente introdutória vem, afinal, a indiciar certas informações
que a mesma sequência, se apenas dramatizada, não contém.
O suporte significante directo inicial de Delgadinha constituído por uma
introdução narrativa seguido de diálogo, começa por limitar-se a apresentar as
personagens – como no exemplo acima, quantas filhas tem, todas são bonitas, o nome
da mais nova “Três filhas tinha o rei, todas lindas como á prata; // A mais novinha de todas
Delgadinha se chamava.”
Deste modo, a situação-tema não será imediatamente
percepcionada, mas o teor do diálogo que se segue, dado que o parentesco dos
intervenientes está já identificado, logo faz perceber que se trata de um incesto.
Quando totalmente narrativizada, enunciada por um narrador extradiegético e
omnisciente, a sequência inicial de Delgadinha equivalerá à fórmula de abertura do
conto tradicional “era uma vez [um pai que se enamorou de uma das filhas]”, pelo que
tem também como função (não menos importante) de demarcar o sujeito enunciador de
uma situação considerada altamente reprovável e corresponderá à noção de
desembraiagem537, ao desencadear o afastamento das ligações do “eu” com o contexto,
instituindo um “não eu”, “não aqui”, “não agora”:
537
Os procedimentos de embraiagem e desembraiagem são inseparáveis, segundo Greimas, Courtés
[1990], p. 141, e o segundo é anterior ao primeiro. Não sendo nosso objectivo principal fazer a análise
linguística das versões, mas saber como se revela o sentido dos romances, adaptaremos as noções de
Greimas e Courtés à presente análise, entendendo a desembraiagem como o procedimento, executado
pelo sujeito da enunciação, de demarcação do “eu” em relação ao que narra e a embraiagem como o seu
inverso. Assim, as sequências narrativas do tipo “era uma vez …” e as sequências prosificadas, sendo em
si processos embraiadores de ficcionalidade, são, simultânea e implicitamente, desembraiadores, na
medida em que demarcam o sujeito empírico do que vai narrar, tal como o são didascálias simples como
“ele disse”/ele fez”, simples “efeito do real”. No mesmo sentido, os apartes valorativos dos informantes e
255
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em Silvana, pelo contrário, a introdução narrativa contida no suporte significante
directo, antes do diálogo, já contém alguma informação relacionada com as intenções do
pai, mais explícita (2.“o magano de seu pai d' amores a pretendia”, S/9 Purcell (1976a) 166167), ou um tanto velada, como nas versões nas quais o pai a “olha”, não sendo de crer
que o faça com a natural afeição paterna538:
1.”Passeava a Silvana por os corredores acima;
2. sê pai a 'tava mirando, com muita atenção a mira.”
S/17 Ferré (1982) 208
Sendo o início dialogado, a identificação dos intervenientes é executada, em
ambos os romances e nas versões compósitas, através dos vocativos qualificativos
utilizados (“minha filha/ meu pai”) 539. É o teor da fala de um deles, mesmo através de
eufemismos como “brincar”, “ser namorada” e outros equivalentes, que revela o cariz
sexual da situação e é a relação familiar o factor que torna esta incestuosa:
Silvana:
1.“- Ó Silvana, ó Silvaninha, ó Silvana, minha filha,
2.
Bem puderas tu, Silvana, comigo brincar's um dia”.
S/5 Leite (1960) 47-48
Delgadinha:
1.“- Galdina, minha Galdina minha rica prenda amada,
2. tu tens sido minha filha, vais ser minha namorada.”
D/3 Azevedo (1880) 109-112
os prolongamentos post scriptum, serão “embraiadores”, revelando adesão ou rejeição do sujeito da
enunciação ao conteúdo narrado.
538
Também em A infanta pejada (IGR 0469, PBI R4) o pai olha a filha com grande “atenção”, mas
porque o aspecto físico desta lhe denuncia a gravidez.
539
Há versões nas quais a personagem masculina se dirige à feminina pelo nome, sem que a relação
familiar se conheça senão quase no fim, quando a jovem o trata por pai e este reafirma a proposta (a
negrito):
1. “- Delgadinha, Delgadinha, Delgadinha, la Delgada;
2. queres tu, ó Delgadinha, ser a minha namorada?
3. - Não permita Deus do céu de eu ser sua namorada!
[………………………………………….]
17.- Ó meu pai, se o sondes, dai-me uma pinguinha de água!
18.- Muito ta daria eu, se fosses minha namorada!
19- Não permita Deus do céu, de eu ser sua namorada!
[………………………………………….]”
D/10 Tavares (1906) 303-304
256
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Havendo elipse total da sequência inicial, como na versão abaixo, de Delgadinha,
não é possível saber qual a razão da punição com a qual abre, nem tampouco se percebe
a relação entre as personagens tanto mais que a narrativa se inicia na primeira pessoa:
1.“Mandei fazer uma torre muito bem à maravilha
2. para meter a Faustininha sete anos e um dia”
D/39 Leite (1960) 52
No exemplo dado, apenas no segundo hemistíquio do verso final da versão se
subentenderá, por encadeamento lógico, que a razão do castigo era uma anterior recusa
da jovem em ser namorada de alguém: 22.“[Para dar água à Faustininha] – que já é minha
namorada”. Que esse “alguém” é o pai, apenas se deduz do medo que a família
exprimirá, negando ajuda a Faustininha.
Em versões nas quais há a imposição do pai, mas se dá a elipse do segundo
segmento sequencial, no qual a filha recusa, esta negação pode sempre ser subentendida
pela ocorrência do castigo na sequência seguinte, que, doutro modo, não se justifica.
Nestes dois romances, e ao contrário do que acontece em Bernal Francês e em
Veneno de Moriana, a razão de ser da intriga desenvolvida não depende tanto da
existência de acontecimentos passados como do subentendido moral de que os pais não
se enamoram das filhas. Ainda assim, havendo, tanto em Silvana como em Delgadinha,
a mesma intenção incestuosa, há uma circunstância prévia à proposta paterna que é
divergente nos dois romances e tem a ver com a possibilidade de uma atitude
provocatória ou não das protagonistas, questão já atrás abordada540, o que se reflecte
também na estrutura dos prólogos narrativos de ambos os romances. Este vêm a diferir,
na medida em que, em Silvana, há uma maior focagem na acção da protagonista filha
540
Cf. Parte I, no Capítulo III - A organização da narrativa.
257
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(encontra-se a passear-se e/ou a tocar) e, em Delgadinha, no pai541, com a filha a ser
apresentada como sujeito passivo:
Silvana:
1.”Bem se passeia Silvana pelo corredor acima,
2. o magano de seu pai d' amores a pretendia.”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
Delgadinha:
1.“O Rei tinha quatro filhas, o Rei tinha quatro amadas,
2. A mais nova delas todas Delgadinha se chamava.
3. Um dia estavem ao jantar, o seu pai p'ra ela olhava:”
D/178 Galhoz (1987) 373-374
1.“Nosso rei tinha três filhas, todas lindas como o sol;
2. a mais bonitinha delas Baldebina se chamava.
3. Entrou o seu pai um dia ao quarto donde ela estava.”
D/14 Lima (1914) 294-295
Aurélio González Pérez, que constata a escassez de versões puras de Silvana no
corpus do romanceiro nas Américas hispano e luso falantes, distingue os dois romances
pela substituição da filha pela mãe como motivo mais importante, mas também pelo que
chama “paseo provocativo de Silvana bailando e tocando un instrumento musical”542.
Também Gutiérrez Estévez se debruça sobre as diferenças de “tom” destes
romances de incesto, referindo, em Silvana, as “mui reducidas alusiones a la violencia y
541
Na maioria das versões com prólogo narrativo, o pai é o primeiro protagonista a ser apresentado, com
uma que outra excepção, do tipo das seguintes:
1.“Delgadinha, Delgadinha, Delgadinha bem delgada,
2. De tão linda que era o seu pai a namorava.”
D/44 Leite (1960) 56-57
3.“Vindo Andina da fonte, seu pai à'cometeu.”
D/48 Leite (1960) 62
1.”T'ando a D. Selivana, na sua sala assentada,
2. Seu pai, qu'aí chegava; a convidava p'ra namorada.”
D/51 Leite (1960) 68-69
542
Cf. Aurélio González Pérez [2003], El Romancero en América, Madrid, Editorial Síntesis, 2003, p.
108.
258
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
tensión próprias de una situación de marginación moral”, ao contrário do que acontece em
Delgadinha, levando esse tom a crer que a protagonista de Silvana aceitaria com agrado
os elogios do pai, enquanto passeia e canta e só não cede por receio das penas do
Inferno, recorrendo à ajuda da mãe543. Quanto a José P. da Cruz, para quem, como atrás
se disse, o encerramento da jovem faz parte dos dois romances, faz notar, ainda assim, a
divergência na atitude das protagonistas:
“A Silvana é de tema mais escabroso que a Delgadinha na forma como se desenvolve o
diálogo inicial entre o pai e a filha. Ele quer que a filha seja sua amante e claramente lhe
manifesta o desejo de dormir com ela uma noite. A filha responde ao pai que isso faria se não
544
fosse o medo do inferno…”
.
Sendo a atitude das protagonistas, muitas vezes, circunstância não explícita mas
sugerida, definiremos então, de seguida, os critérios de “provocação/não provocação”,
cuidado especialmente premente nos casos de contaminação dos dois romances, pois a
análise da sequência inicial nas várias versões de Silvana, de Delgadinha e nas
compósitas mostra que o fenómeno gera uma como que “contaminação de atitudes”, ou
seja, ocorrem nelas, sem prejuízo da narrativa subsequente, qualquer dos binómios
ordem/pedido, recusa/complacência545.
Fazendo, então, a paridade daquelas atitudes com cada incipit dos romances
antigos (Silvana, “Paseábase Silvana/[por un corral que tenía”] e Delgadinha, “Estábase la
Delgadita”), atribuir-lhes-emos os seguintes sentidos:
543
Cf. Manuel Gutiérrez Estevéz [1978], “Sobre el sentido de quatro romances de incesto”, em António
Carreira et alii., reunido por, Homenage a Julio Caro Baroja, Madrid, Centro de Investigaciones
Sociologicas, 1978, pp. 551-579.
544
Cf. Cruz [1995], p. 207.
545
Por sua vez, o incipit de Silvana apresentando uma personagem um tanto exibicionista como abertura
de outro romance de tema diferente, Conde Alarcos, há-de imprimir a este um clima passional de amores
ilícitos, diverso daquele que se apresenta em versões nas quais a infanta atribui ao conde responsabilidade
por compromissos anteriores: (“- Casai-me, meu pai, casai-me, que a idade mo declina, // quero casar
com conde Verde que é amor da minha vida // quando éramos pequenos d’amores me pretendia”, versão
de Vinhais, cf. RPTOM, II, pp. 353.354). Sobre a carga semântica que a abertura com Silvana para Conde
Alarcos, cf. Vanda Anastácio [1982], “Os incipit de ‘Silvana’ no romance do Conde Alarcos:
considerações”, em Quaderni Portoghesi, 11-12, Primavera-Autumno, Pisa, Giardini Editori, 1982, pp.
227-239.
259
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A) Movimento: qualquer tipo de actividade que chame a atenção como passear-se,
tocar instrumento musical ou pentear-se546 = Provocação.
B) Atitude estática: estar sentada [na sala/no jardim]; a jovem nada faz para se
fazer notada e é a condição de “ser” (a mais bonita/mais nova/mais velha das
irmãs) que a distingue e desperta a atenção do pai = Ausência de provocação.
É esta dicotomia movimento/atitude estática das respectivas protagonistas
(movimento = provocação de Silvana e atitude estática = ausência de provocação de
Delgadinha) que estabelece a diferenciação de cada romance e que há-de reflectir-se no
seu sentido. Note-se que tanto a “provocação” como a sua ausência, que equivale a
“complacência”, são geralmente comunicadas por uma economia narrativa profunda,
apenas implícita, a primeira, através do motivo “passear-se”, no caso de haver uma
introdução narrativa, e a segunda na resposta evasiva da filha. Há que esclarecer que
esta interpretação que relaciona movimento com provocação se faz com o pressuposto
de que a contenção do gesto feminino é objecto de valorização positiva em diversas
áreas. É voz corrente que “muito riso, pouco siso” e diz Ana Rodrigues Oliveira que,
entre as virtudes ideais para as “donas do passado”, os cronistas encontravam “discrição,
sisudez e prudência”, as quais “implicam a repressão dos gestos femininos que visam
expressividade de acção e movimento e a valorização da gestualidade fixa e imóvel…”547.
Daí se infere que o contrário se associa a uma atitude provocatória para com os
homens, logo implicitamente ilícita e condenável.
Assim, quando, em Silvana, existe um prólogo narrativo, diz-se geralmente nele
que a jovem se passeia pelo corredor, frequentemente tocando guitarra ou viola, penteia-
546
Estar a pentear-se é uma actividade conotada com sentimentos amorosos ou com o erotismo, em
especial se for com “um pente de ouro”, cuja cor se associa também ao cabelo loiro, associado, por sua
vez, à beleza, que, neste caso, se realça para chamar a atenção sobre si.
547
Cf. Ana Rodrigues Oliveira [2000], As representações da mulher na cronística medieval portuguesa
(sécs. XII a XIV), Cascais, Patrimonia, 2000, Capítulo 3. Identidades.
260
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
se, etc., em suma, movimenta-se ou pratica qualquer acção, no momento em que o pai
repara nela, o que insinua que a jovem atrai propositadamente as atenções deste e
sendo-se levado a crer que a motivação paterna para o desejo incestuoso está nessa
circunstância. Em Delgadinha não há tal sugestão de atitude provocativa da filha; ela
apenas “é” ou “está”548, não “faz” - é a sua beleza (ou juventude) que a destaca das
outras irmãs e desperta as atenções do pai549. Note-se que o motivo da beleza é, em si
próprio, ambivalente; se, por um lado, é uma manifestação de pureza e santidade, pode
também ser fonte de tentação, como o revelam certos textos hagiográficos550; a beleza
feminina explorada pelo demónio para tentação dos homens torna-se temática que aqui,
também, considerámos como suporte significante indirecto destes romances de incesto.
Por outro lado, as poucas vezes em que Delgadinha está a fazer qualquer coisa, como
bordar 551 , o sentido do que faz é inocente, face aos critérios de provocação/não
provocação; noutros casos, o sentido pode apresentar-se ambíguo, como o prova os
factos seguintes.
Dentro de uma das variações situacionais que é “estar no jardim”, ocorrem
variações de acção, com Delgadinha a pentear-se (com pente de ouro, na D/55 Leite
(1960) 77-80 ou na D/56 Leite (1960) 80-81) ou a passear e neste caso, ainda, uma outra,
548
Como nas versões abaixo:
1.”Três filhas que Deus le deu, todas mais lindas que o sol,
2. Faustina por ser mais nova, por ser a mais engraçada,
3. foi a que seu pai escolheu para sua namorada.”
D/189 Ana Martins/Ferré (1988) 86-87
1.”Nosso rei tinha três filhas, todas lindas como o sol;
2.a mais bonitinha delas Baldebina se chamava.
3.Entrou o seu pai um dia ao quarto donde ela estava.”
D/14 Lima (1914) 294-295
549
A diferença de sentido dos dois motivos, provocação e beleza, será novamente abordada no Capítulo
II. Os motivos na revelação do sentido.
550
Cf. O artigo de Machado [1993], já citado no Capítulo IV da Parte I.
551
Como acontece na D/6 Nunes (1900-1901) 171-173:
1.”Estando dona Silvana no seu quarto bordando,”
2.seu pai que lhe aparecia, d' amores a acometia.”
261
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que contraria a habitual modéstia da jovem – Delgadinha cobre o rosto para não ficar
queimada, sinal evidente de vaidade:
1.“Andava Malgaveta no jardim a passear,
2.com o seu véu pelo rosto para o sol não na queimar.”
D/65 Pestana (1965) 91-92
Em certas versões, Delgadinha é “acometida” pelo pai quando vai ou vem da
“fonte”:
1.“Vindo D. Claudina à sua fonte buber,
2. Lá veio ter seu pai, para a mal acometer.
3. - Nunca Deus há-de permitir, nem a Virgem Sagrada,
4. De sé'la sua filha a sua filha namorada.”
D/4 Leite (1881) 72-74
1.“Vindo Andina da fonte, seu pai à'cometeu.
2. - Que não permita Deus do Céu e a Virgem Consagrada
3. D'eu sê'la sua filha, d'eu sê'la sua namorada.”
D/48 Leite (1960) 62
A presença do motivo “fonte” é, aqui, de sentido ambíguo, visto que o seu
simbolismo é plural, como sejam o do perpétuo rejuvenescimento, o da regeneração e
purificação, do conhecimento e da Memória 552 , mas o motivo tem também uma
conotação sexual553. Há, porém, uma certa diferença nas versões acima. Na primeira, a
552
Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant [1994], Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1994, pp.
334-335. Diz Eugenio Asensio que “[P]ara el folclore y la poesia de los siglos XIII, XIV y XV la fuente
es un símbolo cargado de intrincadas sugerencias en las que domina la idea de renovación y fecundidad”.
Cf. Eugenio Asensio [1970], Poética y Realidade en el Cancionero Peninsular de la Edad Media,
Madrid, Editorial Gredos, 1970 (p. 240).
553
É da “fontana fria”, na cantiga de Pero Môogo, que volta a rapariga a quem a mãe questiona
repetidamente sobre a razão pela qual tanto lá se demorou e a quem ela responde que “os cervos do monte
a áugua volviam”, sendo o “cervo” um símbolo sexual masculino. Stephen Reckert cita o estudo de
Asensio (Asensio [1970]) sobre o tema da fonte e resume, a partir de Méndez Ferrín (Xosé Méndez
Ferrín, O cancioneiro de Pero Meogo, Vigo, Editorial Galaxia, 1966): “o encontro amoroso naquele sítio
pertence ao património comum romântico, assim como os motivos [...] da lavagem do cabelo ou roupa e
da explicação à mãe (ou ao marido) da demora na ‘fria fontana” e “a fonte mágica da juventude, do amor,
da fecundidade e da vida, é uma herança popular ainda mais universal que a Igreja fez prudentemente
questão de cristianizar [...]”. Cf. Stephen Reckert, “A variação subliminar na poética da cantiga” e
Stephen Reckert, comentários de, “Cinquenta Cantigas de Amigo”, em Stephen Reckert, Helder Macedo
[1996], Do Cancioneiro de Amigo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.
262
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
rapariga vem “beber à fonte” onde o pai vai ter, pelo que, considerando o sentido
erótico do motivo, a resposta que dá (versos 3 e 4) poderia ser interpretada como uma
espécie de desabafo lamentoso, ou seja, que apenas a falta da permissão de Deus é
causadora da recusa em ceder ao pai, como acontece em Silvana. No segundo exemplo,
a rapariga apenas “vem da fonte”, o que pode ser compreendido como uma tarefa
doméstica, quando o pai a encontra, razão pela qual, no apelo que faz a Deus (verso 2),
embora semelhante ao da outra versão, há uma rejeição clara e terminante ao assédio
paterno, como obriga o sentido do Delgadinha. A ambiguidade da primeira versão
explicar-se-á, cremos, pela contaminação de Silvana e Delgadinha, não só na estrutura
narrativa como também no sentido.
Também no modo como o incesto é apresentado às filhas apresentam os dois
romances diferença substancial de sentido. Em Delgadinha, o tom do pai é impositivo
na maioria dos casos, como nos suportes significantes directos “serás minha
namorada”/”vais ser minha namorada” ou neste outro, abaixo (a negrito):
1.“Um pai tinha três filhas, todas lindas como a prata;
2. A mais linda delas todas Aldininha se chamava.
3. - Aldininha, ó minha filha, tu hás-de ser a minha amada!”
D/202 Carvalho Rodrigues (1990) 90-91
É certo que, em certas versões, o pai não ordena explicitamente, mas pergunta à
filha se “quer” ser sua “amada” ou “namorada”, a troco de vesti-la e calçá-la de “ouro e
prata554”:
1.“- Idalina, Idalina, queres ser minha namorada?
2. De ouro te vestia e de prata te calçava.”
D/195 Anastácio (1988) 79
554
Revela-se, também aqui, o sentido do Mal associado ao Diabo e a este pai, pois “o diabo enganava os
humanos com promessas de ‘ouro e prata’”. Cf. A. L. Pinto da Costa [1997], Alto Douro. Terra de Vinho
e de Gente. A vida quotidiana alto-duriense no primeiro terço do século XX, Lisboa, Edições Cosmos,
1997, p. 145.
263
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Noutras, o tom é ainda amenizado, com o pai a sugerir ou tentando convencer:
2.“- Bem puderas, D. Aldina, ser a minha namorada!”
D/184 Galhoz (1987) 396-397
3.“ Sua filha a Delgadilha, por ser a mais engraçada,
4. seu pai a convencia para ser sua namorada.”
D/186 Ana Martins/Ferré (1988) 83-84
Apesar do tom mais ligeiro destes exemplos, o valor implícito dos avanços do pai,
mesmo se despojados do tom imperativo dos anteriores, equivalem à mesma ordem
explícita; por isso, ao contrário de Silvana em que, claramente, há uma proposta, em
Delgadinha a proposta torna-se uma imposição.
Por outro lado, a muitas vezes usada expressão “ser namorada/amada” do pai de
Delgadinha, encontra-se longe da ocasionalidade de uma noite ou uma hora sugerida
pelo pai em Silvana, cuja proposta parece mais pontual e sem indicação de pretender
continuidade; ao invés de fazer-se obedecer, como em Delgadinha, este pai pretende
convencer a filha:
4.“- Bem puderas, Solivana, seres uma noite minha.”, S/16 Ferré (1982) 207-208
O prólogo narrativo pode ainda integrar as circunstâncias em que o pai se lhe
dirige555 e algumas delas, como o estarem à mesa ou a existência de várias outras filhas,
tantas vezes referida em Delgadinha, mostram claramente que a imposição se dá no seio
de uma estrutura familiar, que facilmente se inteiraria dela, mesmo que o pai, tente,
nalguns casos, manter segredo:
3.“- Anda cá, ó minha filha, anda cá, que te vou dizer:
4.
hás-de ser a minha amada sem a tua mãe saber...”
D/26 Frias (1956) 570-571
555
Estas serão apontadas no “modelo-virtual” adiante proposto.
264
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sendo desde modo difícil que a restante família se alheie dos desejos do pai, a
posterior recusa de auxílio à jovem adquire um sentido complexo, a que nos referiremos
adiante mais detalhadamente.
Quanto à resposta dada pelas protagonistas aos respectivos pais, desenha-se nelas,
com maior clareza, a diferença de sentido da sua reação face aos avanços dos
respectivos pais, que se traduzirá nas respectivas intrigas. A protagonista de Silvana,
parecendo complacente, vai dizendo que “dormir [com o pai]… dormiria”, sendo o uso
do condicional que deixa subentender algum agrado por tal proposta, apenas não
concretizado pelo temor do castigo divino:
4.”- Meu corpo sim eu lho dera, meu corpo sim lho daria.
5. mas as penas do Inferno, meu Deus, quem as passaria?”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
A outra jovem, em Delgadinha, que nada fez para provocar o pai, nega
categoricamente ceder-lhe, o que acirra a ira deste e desencadeia o consequente
desenvolvimento da intriga, na sequência seguinte, que se traduz pelo imediato
encerramento desta filha:
3.“ - Eu não quero, meu pai, não quero, que isso é que ninguém quer,
4.é melhor que vá fazendo caso da sua mulher.
(Sequência II): 5. O papá da Idalina não mandou fazer mais nada,
6. mandou fazer altas torres pa'Idalina ser fechada.”
D/195 Anastácio (1988) 79
A sequência inicial de Silvana apresenta ainda outros segmentos sequenciais, que
não aparecem em todas as versões e de que apresentamos os seguintes suportes
significantes directos:
265
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3º segmento sequencial:
6.“- Cala-te lá, ó Silvana, que isso remédio teria,
7. o Padre Santo em Roma tudo nos perdoaria.”
4º segmento sequencial:
8.- Deixe-me ir vestir outra roupa, que esta é de todos os dias,
9. para que não caiam manchas na roupa de todos os dias.”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
A réplica do pai aos temores da filha não suscita grandes problemas
interpretativos, sendo ainda assim duvidoso se estará genuinamente convencido de que
o incesto não é pecado que não possa ser perdoado (embora, repare-se, suficientemente
grave para o ser apenas pela mais alta autoridade da Igreja) ou se apenas pretende
vencer os escrúpulos da filha. Quanto à declaração da jovem (vai lavar-se e vestir outra
roupa), poderá ser alvo de interpretações díspares. Ou pretende ganhar tempo e ter
oportunidade para chamar a atenção da mãe (o que realmente faz) ou dá continuidade à
possível tentação de ceder ao pai, tornando-se ainda mais desejável; a cena passa-se,
presumivelmente, durante o dia e o pai prefere adiar o encontro para a noite,
implicitamente de modo a que ninguém mais saiba556 (8. “Logo a mandou-a esperar no
quarto donde dormia.”, S/20+QdU Ferré (1982) 209-210), ou, tomando em conta aquela
declaração da filha, entende que vale a pena aguardar. Em certas versões, o tipo de
cuidados que diz que vai ter parece indiciar uma escondida vontade de substituir a mãe:
10.“vou lavar as minhas pernas, vestir as alvas camisas
11. p'ra fazer com'a mamãe quando c'o papai drumia.”
S/16 Ferré (1982) 207-208
556
Neste caso, note-se o contraste com Delgadinha, cujo pai parece nada importar-se se alguém sabe ou
não, tanto que chama os criados, ou quem quer que seja, para encerrarem a filha, numa demonstração de
Poder sobre todos, ou de desvergonha.
266
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Por outro lado, o pai chega a comparar as duas, embora a filha saia favorecida:
6.“- Bem me pareces, Silvana, em véstias de cada dia,
7. do que tua mãe, rainha, com quanto ouro havia.”
S+D/3 Braga (1869)/Braga (1982) 197-200
Esta comparação entre mãe e filha revela uma analogia de sentido com o conto
AT 510B The Dress of Gold, of Silver and of Stars557, no qual a mulher moribunda de
um rei lhe faz prometer que só tornará a casar com alguém tão belo quanto ela (ou a
quem sirva um adorno seu); este apaixona-se pela filha, por ser esta a preencher os
requisitos 558 . Reproduzimos um pequeno excerto de uma versão portuguesa daquele
conto, A p r i n c e s a q u e n ã o q u e r i a casar com o pai:
“Era uma vez um rei e uma rainha, e depois a rainha morreu e deixou um anel em cima da
mesa e disse, que a quem aquele anel servisse, é que havia de casar com o rei.
A princesa por um acaso foi a cima da mesa, viu aquele anel e meteu-o no dedo. Depois
foi dizer ao rei:
- Real senhor, não sabe? este anel que aqui achei em cima da banca, nem que fosse para
mim... serve-me tão bem!...
O rei disse:
- Ai! filha, tens de casar comigo, que a tua mãe disse que a quem esse anel servisse é que
eu havia de casar! ……….”559.
O incesto, já eufemizado na forma “casar”, é ainda disfarçado pela obrigação de
cumprir a vontade imposta pela mulher defunta: visto ser à própria filha que o anel
serve, a implicação é de que o pai tem, absolutamente, de casar com ela, o que, de certa
forma, tende a desculpabilizá-lo. Já as implicações de a filha pôr o anel da mãe e de
apresentar-se ao pai com ele posto (tal como Silvana, que já se “exibira” ao pai,
passeando-se ou tangendo e, mesmo, anunciando que se vai ataviar), podem suscitar
interpretação psicanalítica que não nos cabe desenvolver, mas nos parecem ter o sentido
557
Cf. Thompson [1987], p. 177-178.
Nos contos do Ciclo O Sabor dos Sabores já atrás referidos, as implicações incestuosas do conflito
serão menos evidentes, mas, mesmo assim, implícitas.
559
Consiglieri Pedroso [1978], Contos Populares Portugueses, Lisboa, Vega, 1978.
558
267
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de esta desejar substituir a mãe junto do pai, mesmo sexualmente (embora no conto se
desconheça se ela sabia a quem pertencera o anel), dando-se um fenómeno de
transposição; neste caso, a “culpa” passa do pai para a filha.
Silvana
Sequência II. A intervenção da mãe
1) Suporte significante directo:
10.“Foi-se deitar a sua cama para fingir que dormia,
11.os soluços eram tantos que todo o quarto termia [sic]
12. ouvira-a sua mãe do quarto em que ela dormia.
13.- Tu que tens, ó Silvana, tu que tens, ó filha minha?
14. - O magano do meu pai d' amores me pretendia.
15.- Cala-te lá, ó Silvana, que isso remédio teria,
16.eu vou deitar-me à tua cama e tu vai deitar-te à minha.”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
Silvana afasta-se, a mãe ouve-a e pergunta-lhe o que se passa; face à resposta da
filha, manda-a trocar de cama consigo.
2) Suporte significante indirecto:
As variações nesta sequência apresentam sentidos diferentes, nas versões, e a este
respeito voltaremos no Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado, mas
aqueles poderão agrupar-se em dois sentidos básicos: ou ela, de facto, teve uma atitude
de “provocação” e se sentiu tentada, mas se arrependeu (alternativamente, venceu o
medo das penas do Inferno), caso em que as versões apresentarão uma Silvana que se
afasta, a chorar, ou então a resposta ao pai foi um meio de o enganar até poder obter
ajuda. Em qualquer dos casos, subentende-se que o pai não se demove dos seus intentos,
o que implica uma sequência não explícita (# O pai insiste na proposta), mas deixa-a
partir, informação fornecida condensadamente (“foi-se dali”), embora adie a
268
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
concretização do incesto para a calada da noite, no próprio quarto da rapariga560, ou pelo
natural secretismo que tal acto exigiria, ou pela expectativa de a encontrar melhor
ataviada. Na verdade, as condições do encontro entre pai e filha estão apenas implícitas
na natureza do ardil da mãe, que manda a filha trocar de cama e de roupa consigo, o que
indica que o encontro só pode realizar-se no quarto de Silvana e na escuridão da
noite561. Sejam quais forem os sentimentos da rapariga, o que ela faz é chamar a
atenção da mãe sobre si, quer chorando, falando alto ou até praguejando (como na da
S/31 Xarabanda (1995) 27-28, v. 6), até esta lhe perguntar o que tem. Na verdade, com
esta atitude, faz afastar qualquer suspeita de conivência com o pai e pode queixar-se à
mãe562.
O suporte significante directo da sequência dispensa a indicação implícita de que
Silvana acata a sugestão da mãe.
Sequência III. O estratagema salvador
1) Suporte significante directo:
11.“Lá pelo meio da noite o rei à porta batia,
12.Deitou-se co'ela na cama sem nem uma cortesia.
13. - Que é isto, ó Silvana? Que é isto, ó filha minha?
14. Julgando que estavas honrada estás tão descolorida!
15. - Como eu hei-de estar honrada sendo três vezes parida,
16. Parida de rei Ingrama, parida de rei Ingria,
17. Parida da nossa Silvana a quem tanto eu queria.
18. - Bem haijas tu, ó Silvaria bem haijas tu, filha minha.
19. Tu salvastes a tua alma e eu condanei a minha!
20. Perdão, ó minha esposa, perdão, ó esposa minha.
21.Não julgavas que em mulheres que tanta desteza havia.”
S/7 Soromenho (1963) 55
560
Na Adozinda de Garrett é bem mais explícito este adiamento por promessa: “… para a noite seguinte,
// Quando tudo em paz jazesse // Em seu leito o recebesse”. Cf. Garrett [1983], I., p. 92.
561
No capítulo seguinte, dedicado aos motivos, referir-nos-emos de novo à natureza deste estratagema.
562
Note-se que, em certas versões de Delgadinha, o pai acusará a filha à mãe de o ter tentado seduzir.
269
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O pai vai ao quarto da filha e deita-se com quem que lá se encontra, censurando-a
por não ser virgem; a mulher revela, então, a sua condição de mãe de outros filhos e da
própria Silvana. O pai demonstra admiração pelo estratagema urdido, quer porque foi
salvo de cometer um pecado, quer porque foi descoberto e a intriga finaliza aqui.
2) Suporte significante indirecto:
Esta sequência pressupõe que foi posto em prática o estratagema da troca563, ou
seja:
# A mãe deita-se na cama da filha.
O acto sexual não é referido explicitamente, mas através do eufemismo “deitar-se
com”. Mesmo no caso de a versão elidir totalmente a informação de que foi consumado,
a própria fala do pai, na recriminação à “filha”, ao descobrir que a mulher com quem se
deitou não é virgem, assim o implica. Logo,
# A relação sexual é consumada.
A condição de virgindade, nalguns casos, é explícita (a) e noutros é referida em
termos mais ou menos eufemísticos, mesmo com um vago “algo” (b). O que importa,
como suporte significante indirecto, é o tom de censura paterno, que se prende com a
presunção de que a filha seria virgem, como implicitamente o deveria ser uma rapariga
solteira:
563
Outro tanto fez Maria de Montpellier a seu marido Pedro III de Aragão, ainda que as razões fossem
diferentes. A rainha, desejando a descendência que o marido não lhe proporcionava por preferir outras
mulheres, tomou de noite o lugar de uma delas na cama do rei, tendo chamado testemunhas, na manhã
seguinte, para se proteger da acusação de adultério. Cf. Oliveira [2000], pp. 143-144. A conclusão que se
tira da facilidade com que se davam estes equívocos, e veja-se também o caso de Bernal Francês no qual
a mulher não reconhece o marido deitado com ela, é que não haveria grande convivência entre os
cônjuges, pois o pai de Silvana não percebe que ali está a própria mulher, mesmo já tendo tido vários
filhos dela. Adicionalmente, o facto de julgar ainda tratar-se de Silvana, após a relação íntima com a
mulher, permite pressupor que esta mãe mantinha uma certa juventude, embora os filhos fossem já
crescidos.
270
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(a): 18. “Tu não estás virgem, Silvana, tu não estás virgem, filha minha”, S/3 Martins
(1938)/Martins (1987) 37-38
(b): 17.“Eu cuidei que tinhas algo, tu algo não no tenias”, S+D/16 Leite (1960) 86-87
A virgindade da filha está claramente associada à honra, mesmo nos termos
eufemísticos, equivalentes a essa condição - ser virgem = estar honrada, não ser virgem
= estar “descolorida”: deste delicado assunto
13. “Que é isto, ó Silvana? Que é isto, ó filha minha?
14. Julgando que estavas honrada estás tão descolorida!”
S/7 Soromenho (1963) 55
Não é casual a invocação dos nomes dos filhos pela mãe, ao desvendar a
identidade ao marido; ela está, através deles, a reivindicar a sua legitimidade de esposa,
o que, naturalmente, serve também para acentuar a humilhação daquele, mas também,
ao alardear os títulos que usam (“rei Ingrama, “rei Ingria”), está a usá-los para realçar o
seu próprio estatuto social frente ao marido.
No desfecho deste romance, as implicações não são extremistas como o são a
morte das protagonistas em Bernal Francês e Delgadinha, o casamento em Gerinaldo
ou a execução de uma vingança, em Veneno de Moriana, que encerram a intriga. Aqui,
o pai limita-se a comentar, positiva ou negativamente, a esperteza do ardil de mãe e
filha, culminando a intriga com o desvendar da identidade da mãe, sem mais
complicações, o que torna Silvana num romance de cariz verdadeiramente fragmentário,
deixando as implicações em aberto.
271
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Delgadinha
Sequência II. O castigo
1) Suporte significante directo
5.“Ele mandou fazer uma torre das mais altas que havia
6. Para meter a Balbeninha por dez anos e um dia.
7. O comer é poderoso e a água por medida,
8. Bacalhau é às arrobas para lhe acabar com a vida.”
D/24 Dias Martins (1954) 297-298
Esta sequência narra a reacção do pai à recusa veemente da filha em ceder aos
seus desejos: a filha será fechada, com pouca comida e água não potável.
2) Suporte significante indirecto
Sendo uma constante na maioria das versões analisadas, trata-se aqui da
consequência lógica da sequência anterior, ou seja, da recusa da filha. Nela não há
grande apelo a suportes significantes indirectos de pressuposição ou inferência, excepto
no que respeita à natureza do castigo imposto pelo pai à filha, cujo sentido mais
profundo será abordado adiante, ao tratarmos dos motivos, e que consta do seu
encerramento (geralmente numa torre, mas também em outros locais fechados, como
um “quarto”, um“convento”, um “palácio”, um “quarto”). A informação relativa ao
tempo em que está fechada pode ser dada ou não; o período de tempo, que é muito
variável nas versões, é de alguns dias a vários anos, mas sempre entendido como
excessivo, a par da privação de água, tormento agravado pela ingestão de comida
salgada.
Por outro lado, a mesma natureza de tal castigo reflecte-se em termos de intriga,
pois determina as consequências (a debilidade física e mental de Delgadinha) que a
farão evoluir – ela irá pedir ajuda à família.
272
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência III. O apelo à família:
1) Suporte significante directo:
7. “Assubiu uma vintena bem alta, desmarsiada:
8. - Lá vi 'star os meus manos jogando o jogo da bola.
9. Deus vos salve, ó meus manos, Deus me salve a minh'alma!
10. Pel'amor de Deus lho peço que me dê um jarro d'água!
11. - Como t'hei-de dar água, ó Faustina, filha mal aventurada,
12. Pois o nosso pai jurou, na ponta da sua espada,
13. Quem desse água à Faustina que morria degolada?
14. - Valha-me Jasus do Céu, mais a (da) Virgem Sagrada!
15. Meu coração se me quita e á minh'alma será salva.
16. Assubi outra vintena bem alta, desmarsiada,
17. Lá vi 'star as minhas manas a coser num'almofada:
18. Deus a salve, ó minha mana, Deus me salve a minh'alma!
19. Pelo amor de Deus lhe peço que me dês um jarro d'água.
20. - Como t'hei-de dar água, ó Faustina, filha mal aventurada,
21. Pois o nosso pai jurou, na ponta da sua espada,
22. Quem dessa água à Faustina que morria degolada?
23. -Valha-me Jasus do Céu mais a (da) Virgem Sagrada!
24. Meu coração se me quita e a minh'alma será salva.
25. Assubi a outra vintena bem alta, desmarsiada,
26. Lá vi 'star a minha mãe recostada na sua sala:
27. Deus a salve, ó minha mãe, Deus me salve a minh'alma!
28. Pelo amor de Deus lhe peço que me dê um jarro d'água.
29. - Como t'hei-de dar água, ó Faustina, filha mal aventurada,
30. Pois o vosso pai jurou, na ponta da sua espada,
31. Quem desse água à Faustina que morria degolada.
32. - Valha-me Jasus do Céu, mais a (da) Virgem Sagrada!
33. Meu coração se me quita e a minh'alma será salva.
D/52 Leite (1960) 69-70
Delgadinha vai avistando, sucessivamente, os diversos membros da família; a
cada um pede água, em nome dos laços que os unem, mas todos lha recusam,
explicitando as suas razões.
273
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2) Suporte significante indirecto:
Entre a sequência anterior e esta dá-se a inferência lógica de que as ordens do pai
foram integralmente cumpridas e Delgadinha foi fechada. A jovem reaparece, num salto
temporal narrativo564 no caso de o prazo imposto ser longo, geralmente movimentandose em sentido ascendente 565 , isto é, vai subindo pela torre e assomando às janelas.
Ligando-se, então, à sequência anterior, dão-se as seguintes situações:
- o prazo foi especificado e Delgadinha reaparece findo este:
5.“Mandou fazer um convento dos maiores que havia
6. para meter Faustina dentro sete anos e um dia.
7. Ao fim desses sete anos, Faustina veio à sacada;”
D/23 Carneiro (1945) 167-168
- o prazo foi especificado e Delgadinha assoma à janela logo a seguir:
3. “Mandou fazer uma torre com as mais altas maravilhas
4. e mandou-a meter nela por trinta i-anos e um dia.
5. Silvaninha entrou p'ra dentro muito mais triste qu'estava,
6. subiu à torre mais alta só p'ra ver quem avistava.”
D/124 Fontes (1984) 369-370
- o prazo de encerramento não foi especificado e ela assoma à janela após um
número variável de tempo:
10.“Outro dia por a manhã e à janela se deitava,”, D/237 Xarabanda (1995) 34-35
6.“Ó fim d'estar lá dois dias já a sede lhe obrigava”, D/241 Custódio/Galhoz (1996) 41-42
15. “Ao fim de três dias Silvaninha clamava”, D/9 Tavares (1906) 280-281
5. “Esteve lá dezoito dias, sem comer nem boer nada.
6. Lá ao fim dos dezoito dias, já a sede l'apertava,”
564
Pela regra de contracção de Holbek [1990], pp. 126-162.
José Manuel Pedrosa estabelece o paralelismo simbólico da movimentação ascendente ou descendente
no espaço de reclusão das vítimas de conflitos de incesto em relatos tradicionais, entre os quais
Delgadinha e também o conto indiano de Sona e Rupa, o conto ruandês de Byalbuti e o mito greco-latino
de Mirra, relatado nas Metamorfoses de Ovídio. Cf. José Manuel Pedrosa, “Mirra en su árbol, Delgadina
en su torre, la mujer del pez en su pozo: el simbolismo arriba/ abajo en los relatos de incesto”, Revista de
Folklore, nr. 312, Tomo 26b, 2006, pp, 183-194, Fundación Joaquín Diaz, disponível na Internet em
http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=2350, arquivo acedido em 30 de Dezembro de 2009.
565
274
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
D/229 Vilhena (1995) 124-125
9.”Ao fim de sete anos e um dia, Delgadina, enfadada,
10.assomou-se a ‘ma janela, uma janela mui' alta,”
D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168
Como no castigo está implícito o isolamento e as janelas simbolizam um elo de
ligação com o exterior, o seu aparecimento na narrativa significa uma abertura à
possibilidade de reparação do mal, por aqueles a quem recorre. Quando reaparece, vem
física e moralmente debilitada e o desespero da sede parece decidir a jovem a tentar que
a família a auxilie, pedindo água às irmãs, aos irmãos e à mãe, podendo a sequência
alongar-se com a inclusão de outros parentes e, até, de criados, no pressuposto de que a
família seria o natural apoio contra um tão cruel procedimento paterno. No entanto,
cada um deles, na sucessão de janelas que se vão abrindo a Delgadinha, nega a ajuda à
vítima, e nenhum tenta sequer reparar a injustiça de que esta é alvo, mesmo nos casos
em que a lamentam. Mais uma vez, o suporte significante indirecto reside nas relações
de Poder dentro desta família, que o pai domina, com poder de vida ou de morte; nesta
hierarquia de poderes, seguir-se-ia a mãe, cujo papel de protectora é anulado ora pela
sua fraqueza, na incapacidade de se opor ao poder do pai, ora por sentir a possibilidade
de uma inversão de papéis, vendo na filha uma rival. Equiparados em termos de poder
estão os filhos, e os irmãos de Delgadinha aceitam o seu papel de sujeição ao pai,
podendo declarar expressamente a sua adesão ou receio, por isso nada fazem para ajudar
Delgadinha, nem mesmo as irmãs, a quem poderia suceder o mesmo. A própria jovem
apenas pede à família que a ajude a suportar a sede, mas não pede que a liberte nem que
interceda por ela, o que indica que, embora se tivesse oposto ao pai, o fez porque a
proposta incestuosa ultrapassou os limites do Poder paterno, parecendo aceitar a
reclusão como castigo da desobediência, mas não a falta de água, cujo simbolismo tem
outras conotações, a que nos referiremos mais adiante.
275
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
As respostas são sempre negativas, ressalvando-se que, no conjunto das versões
de Delgadinha, se verifica grande variação nas respostas ao pedido de água, a que
voltaremos no capítulo III desta Parte.
Sequência IV. A cedência
1) Suporte significante directo:
23. “Desceu à janela do fundo, do fundo que a torre tinha;
24. avistou o seu papá do quintal para a cozinha.
25. - Ó papá que Deus me deu, dê-me uma pinguinha d'água;
26. a água alimenta a vida, o coração e a alma.
27. - Eu a água não ta dou, eu a água não ta dava;
28. pedi tua mão direita, disseste que ma não davas.
29. - Aqui tem minha mão direita, faça dela o que quiser;
30. bem se pode ir gabar que sou filha e mulher.”
D/73 Alberto Correia/António Nunes (1978a) 329-330
Delgadinha avista o pai, a quem pede água, nos mesmos termos com que o fez à
restante família. Este continua a negar e ela informa-o que cederá em troca de água.
2) Suporte significante indirecto:
Tal como a anterior, também esta sequência não carece de um processo de
identificação de pressupostos, sendo narrativamente explícita.
No entanto, deve articular-se com a seguinte, uma vez que se trata agora de um
pedido dirigido ao interlocutor que é o detentor do Poder de o fazer, bem como da
disposição de Delgadinha, numa relação causa/efeito. No eixo pedido/envio, os
elementos do primeiro implicam a natureza do segundo, ou seja, a água é enviada,
porque Delgadinha declara que já está disposta a cometer incesto com o pai, como
acontece na versão que nos serve de suporte significante directo e ele fá-lo, obviamente,
porque conseguiu o que queria, o que implica que se apressa a fazer a água chegar à
filha, na sequência seguinte. Se, pelo contrário, houver na versão elipse da cedência
276
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
explícita da filha e o pai mesmo assim envia a água, o arrependimento deste acaba por
ser insinuado. Há, pois, várias alternativas dos segmentos sequenciais, nesta sequência,
a ditar divergências de sentido nas razões pelas quais a água é enviada, e preferimos
retomar esta questão no Capítulo III, porque nele se abordarão os efeitos no sentido
provocados por elipse ou substituição das sequências e segmentos sequenciais.
Sequência V. O envio da água
1) Suporte significante directo:
22. “- Vão criados e criadas levar auga à Aldininha,
23. O primeiro que cá chegar terá uma prenda minha
24. E o último que lá chegar terá a cabeça cortada.”
D/123 Correia (1984) 293-294
O pai ordena que a água seja imediatamente levada a Delgadinha, geralmente com
promessas de prémios para o primeiro e ameaças para o último que lá chegar.
2) Suporte significante indirecto:
Esta sequência é narrativamente muito rápida e poucas vezes deixa de estar
presente nas versões. O seu suporte significante indirecto reside na sequência anterior,
ou seja, na razão por que o pai manda a água, e não faz mais do que concretizar a
relação causa/efeito atrás mencionada.
Sequência VI. Morte de Delgadinha
1) Suporte significante directo:
25. “Quando eles lá chigaram, Aldininha estava morta,
26. c' um reguinho d' água ao pé, com sete anjinhos à porta.”
D/125 Marques/Silva (1984-1985) 113-114
277
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Quando a água chega, Delgadinha está já morta. Junto dela encontra-se uma fonte
milagrosa de água ou/e entidades celestiais.
2) Suporte significante indirecto:
Depois da implicação lógica do imediato cumprimento da ordem dada pelo pai no
momento anterior (# A ordem do pai é imediatamente cumprida), a sequência final é
rápida e sucinta e a sua importância está na própria brevidade, o que serve à intenção do
romance. Deduzindo-se que o fazem a toda a pressa, os portadores da água mesmo
assim já não chegam a tempo de salvar a vida de Delgadinha; caso o desfecho não fosse
a morte da jovem, que é imediata e por isso narrada com toda a rapidez566, perder-se-ia
o dramatismo do romance, tanto mais que, se ela sobrevivesse, pôr-se-ia a questão de ter
de ceder realmente ao pai, desvirtuando o sentido global de Delgadinha. Assim, o
suporte significante indirecto desta sequência é intrincado; são forças superiores
(cristianizadas ou não), exteriores à intriga e únicas que o podem fazer, que intervêm
para resolver o conflito instaurado na família – o Poder do pai frente à resistência da
filha. Por outro lado, assenta também noutra questão que dá ao romance um realismo
cru - é que a resistência humana tem limites e Delgadinha encontrava-se prestes a ceder;
visto que a família, quaisquer que sejam as razões invocadas, coloca-se ao lado do
agressor e não a apoia, o incesto só é evitável, narrativamente, à custa da morte da
vítima. Moralmente, a solução é proporcionada pela intervenção de poderes superiores,
o que fica implícito pela presença das entidades divinas junto de Delgadinha e assim é
entendido por certos informantes, como o comprova o comentário à versão D/215
Cardigos/Marques (1994a) 15, que atribui a solução à intercessão de Nossa Senhora:
“Morreu. Nossa Senhora deu-lhe a morte, para o pai não se gozar com ela.” Aprofundando
566
Ressalve-se que, embora refiramos a brevidade narrativa do incidente, nas versões a sequência pode
ser muito alongada, fundindo-a com um Prolongamento, com a descrição das mais diversas entidades
celestiais que acompanham Delgadinha na morte e as penas do inferno destinadas ao pai.
278
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
este sentido, diremos que a morte vem, na verdade, gorar o intento do pai, mas,
sobretudo, impedir a quebra moral de Delgadinha no momento preciso em que ela se
dispõe a ceder.
1.4. GERINALDO
Sequência I – A Sedução
1) Suporte significante directo:
1. “Leonardo, Leonardo, pagem d'el-rei tão querido,
2. Bem podias ó Leonardo estar duas horas comigo.
3. - Não rias de mim, Senhora que sou um vosso cativo.
4. - Eu não rio ó Leonardo é verdade o que te digo.
5. - Senhora, quando mandais que venha em vosso serviço?
6. -Vem às dez ou vem às onze, que meu pai steja dormindo
7. Traze capa e capuz para não seres conhecido;
8. Traze sapatos de lã para não seres cá sentido.”
G/7 Azevedo (1880) 69-71
A primeira sequência do romance, por norma, é um diálogo entre a infanta e
Gerinaldo 567 , repartido por cinco segmentos sequenciais: 1) A infanta propõe a
Gerinaldo que passe a noite com ela; 2) Gerinaldo duvida da veracidade da proposta; 3)
A infanta reafirma a proposta; 4) Gerinaldo pergunta quando deve ir; 5) A infanta marca
a hora do encontro, com instruções para não ser ouvido ou reconhecido.
2) Suporte significante indirecto:
A fala que abre o diálogo poderia, numa leitura menos atenta, ser entendida como
uma proposta espontânea, partindo de uma qualquer jovem, um tanto livre de costumes,
sim, mas enamorada de outro jovem. Este convite da infanta tem feito com que o
romance seja classificado, por vários editores, no grupo dos romances de “mulheres
567
Este diálogo falta no folheto de 1537. Cf. Pidal [1973], pp. 224-256.
279
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sedutoras”, conotado que é habitualmente como uma forma de assédio sexual
feminino 568 sobre um jovem pajem e que este não deixa de fazer notar, na quase
canónica réplica equivalente a “Troçais de mim porque sou um criado”. Há até um
agravamento desta disparidade numa variação lexical que faz de Gerinaldo um “cativo”
(4.“- Mangareis, minha Senhora, porque sou vosso cativo?”, G/184 Lacerda (1994) 27-30).
Contudo, esta interpretação não é consensual. Manuel Viegas Guerreiro, sobre a
inclusão de Gerinaldo naquele grupo, diz que o pajem terá sido o sedutor, resultando a
proposta de um relacionamento anterior entre este e a infanta e, note-se, “na parte da
história que não se conta”, o que equivale a um suporte significante indirecto:
“Atrevo-me a pôr em reserva tal classificação. Se versões há em que o pagem do rei é
amado sem o saber e cai seduzido, inundado de volúpia, nos braços da infanta, em outras, na
568
Uma imagem de um Gerinaldo perseguido e, até, atormentado, neste caso não por uma infanta, mas
pela rainha, é apresentada no seguinte poema de uma das figuras do modernismo em Espanha, Manuel
Machado (1874-1947):
GERINELDOS, EL PAGE
Del color del lirio tiene Gerineldos
dos grandes ojeras;
del color del lirio, que dicen locuras
de amor de la reina.
Al llegar la tarde,
pobre pajecillo,
con labios de rosa,
con ojos de idilio;
al llegar la noche,
junto a los macizos
de arrayanes, vaga,
cerca del castillo.
Cerca del castillo,
vagar vagamente
la reina le ha visto.
De sedas cubierto,
sin armas al cinto,
con alma de nardo,
con talle de lirio.
Manuel Machado, Alma-ars moriendi, Madrid, Catedra, 1988.
O romance Gerinaldo e a figura do pajem têm inspirado outras manifestações literárias, sendo o seu
aproveitamento ora simbólico ora burlesco, ou como protótipo positivo ou negativo, logo no século XVI,
no Siglo de Oro espanhol e depois, no pós-romantismo e no modernismo, em outros romances, em
poemas ou no teatro. Consultar, para este assunto, o Capítulo III do vol. VIII (***) de Catalán, Cid
[1975, 1976].
280
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
parte da história que não se conta, aceita-se que o motivador do desafio possa ter sido
Gerinaldo. Ou nem uma coisa nem outra; o amor nasce de encontro, gera-se um afecto
recíproco, sem que haja rigorosamente sedução”.
569
No artigo, Viegas Guerreiro analisa a versão brasileira na qual um “príncipe” se
apaixona pela “princesa” e tenta aproximar-se dela, disfarçando-se de jardineiro 570 . O
autor acrescenta então: “O que, de qualquer modo, mal se aceita é que decisão tão perigosa se
tenha tomado sem outros antecedentes”. O autor, que dá a tradição antiga como prova de
um “Gerinaldo galanteador”571, encontra indícios que denunciam “anterior intimidade” do
pajem e da infanta nas versões que cita572; transcrevemos os versos que terão feito o
autor chegar àquela conclusão:
1.“- Gerinaldo, ó Gerinaldo, pajem d' el-rei mais querido,
2. porque num me falas d' amor quando te encontras comigo?
3. - Eu sou vosso vassalo, sou vosso pajem querido!”
G/19 Tavares (1906) 279
Também Enrique Baltanas vê na proposta da infanta um desígnio que, embora
apaixonado, não é erótico, apoiando-se nas versões em que ela manifesta o desejo de
casar. Segundo o autor, o romance triplo Conde Niño + Gerineldo + La condesita
desenvolve o que já estava no romance simples, ou seja, a infanta é um tanto atrevida,
mas não caprichosa, sendo capaz de lutar pelo seu amor; o caprichoso é Gerinaldo, que
se negará a casar (ou dificultará o casamento indo para a guerra) tanto quanto é
pusilânime no confronto com o rei. A problemática do romance seria, então, mais a das
569
Cf. Guerreiro [1988].
A versão em causa está transcrita após as versões do corpus e identificada como G/GRPP 364, em
Grupo A de Anexos, Versões de Gerinaldo.
571
Viegas Guerreiro refere, como outras evidências de que o pajem é um “galã”, o pliego suelto de 1537 e
outras versões de Gerinaldo, bem como a existência da expressão ou sua equivalente “ser más galán que
Gerineldos”, registada em 1627 pelo Maestro Gonçalo Correas, utilizada por Quevedo relativamente ao
Cid e também por Lope de Vega, a um “gracioso”, na comédia El Alcalde Mayor. Cf. Guerreiro [1988] e
Guerreiro [1997].
572
O autor cita as versões de Garrett, de Teófilo Braga (de S. Miguel, que será a nossa G/3 Braga
(1869)/Braga (1982) 265-267), de Pere Ferré (de Porto Santo, que será a nossa G/67 Ferré (1982) 232234) e numa de Vasconcellos (de Torre de Moncorvo, que na verdade foi primeiro editada por José
Augusto Tavares Teixeira e é a nossa G/19 Tavares (1906) 279).
570
281
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
relações sexuais pré-matrimoniais do que a da sedução, da oposição mentira/verdade ou
do poderoso frente ao mais fraco, ainda segundo Baltanás, que, todavia, não descarta a
atracção inicial dos dois jovens, de estirpe semelhante573.
Sendo a atracção mútua uma circunstância a ser levada em conta, já a possível
“anterior intimidade”, embora lógica574, terá uma importância menor na razão de ser da
intriga, cujo interesse reside não tanto nos antecedentes do encontro amoroso dos dois
jovens como no desenrolar dos acontecimentos que se lhe seguem, com a intervenção
do rei. Em Gerinaldo (qualquer que seja o primeiro a seduzir), o convite, em si, não
carece de antecedentes a pressupor. É a própria identidade das personagens e a relação
entre elas que constituem a razão de ser da intriga. O suporte significante indirecto será,
então, uma oposição de género, visto que a proposta é feita por uma mulher, ao
contrário do que é socialmente aceite. A resposta do rapaz, que se representa um tanto
relutante, em muitas versões, é reveladora de que situação não é tão simples como se os
dois tivessem o mesmo estatuto.
Estas circunstâncias são implicitamente fornecidas pelas próprias personagens, em
primeiro lugar pela infanta, no tradicional incipit (“- Gerinaldo, Gerinaldo, pajem do
rei…”), que identifica o interlocutor e lhe refere a qualidade social. A réplica do pajem,
por sua vez, mesmo não nomeando a interlocutora, fornece não só elementos que a
identificam socialmente como também indicam a relação entre ambos (“criado, “cativo”
ou “vassalo”), ficando desde logo inferida a disparidade de estatutos. É, aliás, da “fala”
de Gerinaldo que se depreende que a personagem feminina é a filha do rei, pois tal não
se diz explicitamente, embora na versão usada como suporte significante directo, quem
573
Cf. Enrique Baltanás [1996], “Una Heroína Anonima del Romancero. La princesa de Gerineldo”,
Revista de Folklore, Tomo: 16b, nr.187, 1996, Fundación Joaquín Díaz, pp. 14-20, disponível em
http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=1535, arquivo acedido na Internet em 15 de Dezembro
de 2009.
574
Esta “anterior intimidade” dos dois é circunstância a ser já pressuposta porque saber-se-á, na
sequência do Dilema do Rei, que o pajem foi por ele “criado de pequenino”, indiciando uma convivência
prolongada com a infanta.
282
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
fala adjective o pai como “rei tão querido”575.
Deste modo, o que importa, em Gerinaldo, é outro tipo de pressupostos, não
sendo tanto a natureza sexual do convite que está em causa, mas antes certos
condicionamentos sociais, em cujas normas está subentendido que aos indivíduos de
condição servil é interdito manterem relações amorosas com as filhas dos seus
superiores hierárquicos; neste caso, a infracção agrava-se por se tratar de alguém que é
inerentemente a herdeira do reino, subentendido este que, por sua vez, origina o Dilema
do Rei, no qual reside o ponto fulcral do romance. O próprio Gerinaldo entende estas
implicações e fará a inferência - é porque é um criado que o convite da infanta para
dormir com ela (que é um acto interdito à sua condição) só pode ser uma brincadeira ou
insanidade daquela:
3.“Como eu sou vosso criado, senhora, mangais comigo.”, G/31 Leite (1958) 302
3.“- Ou a senhora está louca ou está para zombar comigo.”, G/103 Ferré (1987a) 67
Por isso, o pajem chega a recusar, por vezes apresentando explicitamente a razão
(em sublinhado):
3. “- Isso não, minha senhora, que não me é permitido”, G/35 Leite (1958) 306
Contudo, as hesitações do pajem não o impedirão de, com menor ou maior
rapidez, anuir ao solicitado:
4. “mas se isso é assim, dizei a hora a que hei-de vir”, G/11 Dâmaso (1882) 235-236
A infanta é que é determinada, tanto que reafirma a proposta, em certas versões:
4.“- Leonardo, eu não zombo, deveras falo contigo.”, G/64 Ferré (1982) 229-231
575
Com esta expressão, a protagonista pode especulativamente referir-se ao pai (que lhe é querido) ou ao
“[para si] mais querido dos pajens do rei”. Só a seguir (a negrito) se entende que fala do pai (6.“- É das
oito para as nove; o rei, meu pai, é adormecido.” – G/52 Pestana (1965) 93-94).
283
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Não deixa, apesar de tudo, de ser cautelosa e dá-lhe instruções precisas quanto à
hora a que há-de apresentar-se e, até, ao que há-de trazer vestido e calçado para não ser
reconhecido nem fazer barulho:
4.“- Traz o teu capote em volta p'ra nã seres conhecido,
5. sapato d'holanda fina para nã seres sentido
6. e deita a mão àquela chave, vai ao quarto ter comigo.”
G/65 Ferré (1982) 231
O secretismo é, pois, essencial. Mesmo que, na Sequência I, tenha havido elipse
destes segmentos sequenciais, far-se-á a inferência lógica de que Gerinaldo acaba por se
convencer.
Sequência II – O encontro amoroso
1) Suporte significante directo:
7.“Inda as dez não eram dadas, já Gineraldo era vindo.
8. Chega ao quarto da princesa deu um ai, deu um gemido,
9. E ela de lá respondeu: Quem será o atrevido?
10. - (E) é o Gineraldo, senhora que vou p'ra ser cupido.”
G/173 Galhoz (1987) 413-414
Nesta sequência, Gerinaldo está já à porta da infanta e faz-se anunciar. Ela
pergunta de quem se trata e ele identifica-se.
2) Suporte significante indirecto:
O pajem, num salto temporal narrativo, dirige-se já ao quarto da infanta, sendo a
informação geralmente explícita e não necessitando de um exercício de pressuposições
para o entender576.
Como Gerinaldo ora bate à porta ora se limita a suspirar, fica a infanta na dúvida
sobre “quem é o atrevido”, até porque lhe mandara que não fizesse barulho e por isso
576
O que há, nas versões, é alguma variação de sentido quanto à presteza com que o faz, o que
abordaremos no Capítulo III.
284
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
dirá: 13.“- Cala, cala, Gerinaldo, entra por este postigo.”, G/13 Pires (1899)/Pires (1982) 157;
de qualquer modo, como sabe que o risco é grande, certifica-se, perguntando de quem
se trata. O pajem identifica-se, dizendo ao que vem, com o último dos exemplos abaixo
a denunciar que o faz um tanto forçado:
9.“- Gerinaldo sou, senhora, que venho ao prometido.”, G/ 9 Leite (1881) 62-64
8.“É General, senhora, que vem ao vosso serviço.”, G/11 Dâmaso (1882) 235-236
9.“Gerinaldo sou, senhora, que ao vosso mandado vinha.”, G/31 Leite (1958) 302
Finalmente, o pajem entra no quarto da infanta, que, por vezes, reforça o convite:
9.“ - Dá-me a mão, General, vem-te aqui deitar comigo.”, G/11 Dâmaso (1882) 235-236
O suporte significante indirecto da narrativa, até aqui, reside na sedução feminina
constituir uma infracção, o que representa uma oposição de género, mas esboçando já a
questão da hierarquia, implícita no tom de quase ordem da infanta.
Sequência III – O delito
1) Suporte significante directo:
12.“Toda a noite estiveram brincando só pela manhã dormindo”
G/26 Dias Martins (1954) 294-296
O suporte significante directo desta sequência, na maior parte das vezes, limita-se
a uma breve informação sobre o que se passou no quarto.
2) Suporte significante indirecto:
Entretanto, a questão da hierarquia, nesta sequência, parece ficar em suspenso e,
narrativamente, serve a não deixar dúvidas sobre a consumação das relações dos dois
amantes, embora sempre de forma eufemística, quer pelo lexema “dormir” (a), quer por
recurso a um termo comparativo (b):
285
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(a) : 10.“Foram-nos dois para a cama, foram-nos dois a dormir.”, G/169 Galhoz (1987)
406
(b) : 14.“Foram-se deitar na cama como mulher e marido.”, G/21 Mendonça (1911) 2-4
Beijos e abraços é o mais que se diz desta relação:
11.“(E) ela numa mão agarrou-o e p'ra sua cama o levou,
12. Tantos beijos e abraços (e) arregalado ficou.”
G/173 Galhoz (1987) 413-414
A eufemização vai ao ponto de apresentar os amantes a apenas conversarem:
9.“Tanto conversaram ambos que pela manhã eram dormidos.”, G/12 Pires (1885l) [X]XL
Se objecto de elipse, o facto apenas poderá ser pressuposto, quer por recurso à
lógica narrativa da sequência anterior, constituindo uma sua implicação, quer por se
encontrar subentendido em versos como estes:
12.“- Anda cá, ó Gerinaldo, podes-te deitar comigo.
13. Já era quase sol-fora e Gerinaldo dormido.”
G/22 Thomás (1913) 8-11
Outras vezes, só a existência da sequência V, na qual o rei os encontrará dormindo
juntos “como marido e mulher”, dá essa informação. Mesmo que também esta falte,
como na versão seguinte, ainda se revela que os dois passam juntos a noite, pois,
imediatamente a seguir à apresentação de Gerinaldo à porta da infanta, a “fala” desta
permite essa dedução lógica:
9. “- Acorda, Gerinaldo, acorda! Ai de nós! 'Siamos perdidos! ...
10. A espada de meu pai entre nós os dois metida!”
G/179 Carvalho Rodrigues (1990) 203
286
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência IV – O despertar do rei
1)
Suporte significante directo:
(a) - O rei tem um sonho e desperta:
11. “El-rei tivera um sonho que bem certo lhe saiu:
12. Que dormiam co'a infanta ou tinha o reino perdido.
13. Levantou-se el-rei da cama, mal calçado, mal vestido.
14. Pegou em seu 'spadim d'ouro, e foi rondar o partido.
15. Incontrou braço com braço, como mulher e marido.”
G/207 Eira (1999) 63-64
(b) – O rei desperta naturalmente:
11. “Acordou o senhor rei, do sono qu'era dormindo,
12. Chamara por Leonardo, não lhe fora respondido.
13. - Ou Leonardo está morto, ou ca infanta adormecido.
14. Foi à cama de Leonardo, por ali não o acharia,
15. Foi à cama da bela Infanta, ....................................
16. Ambos estavam abraçados, um com outro, como a mulher com o marido.”
G/175 Galhoz (1987) 415-416
Nesta sequência, o rei acorda e procura Gerinaldo, a quem encontra deitado com a
filha.
2) Suporte significante indirecto:
Daqui em diante, a intriga passará a ser sustentada ainda mais claramente pela
desigualdade da condição dos intervenientes, sendo esta a sequência que desloca a
focagem da narrativa para as implicações da infracção cometida. O suporte significante
indirecto alarga-se às relações de Poder; a infanta e o pajem perdem protagonismo e o
rei passa a ser dominante na narrativa - é o “despertar” do rei que permite a esta
personagem passar a controlar os acontecimentos.
287
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Enquanto os dois amantes se encontram no quarto, o rei acorda, quer naturalmente
quer após ter tido um sonho577. Este é já premonitório e tem o sentido da percepção que
o rei toma de duas ameaças implicitamente equivalentes - a segurança do “castelo” e a
honra da filha – que tem de defender de igual forma:
11.“O pai sonhou um sono, bem certo l'há saído:
12. Ou me dormiam com a infanta ou me roubam o castelo.”
G/131 Fontes I (1987) 489-490
No segundo segmento sequencial, o rei procura Gerinaldo. No caso de ter tido o
sonho, quererá confirmá-lo; no caso de despertar naturalmente, começará por chamar o
pajem, como é certamente seu hábito, para que cumpra as funções que lhe cabem e o
ajude a vestir-se; revela-se a proximidade de ambos, mas também a condição de
servidor de Gerinaldo:
15. “Lá pela noite adiante chama el-rei o seu criado.
16. que lhe desse o seu calçado, que lhe desse o seu vestido.”
G/21 Mendonça (1911) 2-4
Gerinaldo não responde:
14.“Acorda o rei de repente, chama o seu pajem querido.
15. Mas Gerinaldo não vem p'ra lhe trazer o vestido.”
G/22 Thomás (1913) 8-11
13.“(E) eram (n) as dez da manhã e el-rei se queria vestir.
14. Bradava pelo Gineraldo Gineraldo sem acudir.”
G/173 Galhoz (1987) 413-414
Quer tenha sonhado quer despertado naturalmente, o rei estranha a ausência do
577
Pidal faz notar que, aparte dos detalhes do despertar do rei, por sonho premonitório ou natural e que já
citámos na Parte I, as versões da tradição moderna no Sudeste e do Noroeste da Península são muito
semelhantes e faz sobre este romance um estudo sobre os traços comuns e as variantes dessas regiões,
advertindo que ambas se juntam ou sobrepõem. O autor regista, no capítulo dedicado ao romance de
“Gerineldo”, as características da versão mais difundida nas duas regiões (SE e NO), com os detalhes
próprios de cada uma, bem como das variantes, mais ou menos difundidas e das suas ligações aos
“pliegos”. Cf. Pidal [1973], pp. 224-256. Assinalamos no “modelo-virtual”, mais à frente, as variantes
observadas no nosso corpus.
288
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
pajem que o serve e pondera as razões, tentando saber onde aquele se encontra 578. Ao
procurá-lo por todo o castelo, o rei adia a confirmação da traição revelada pelo sonho ou
suspeitada quando o pajem não acode ao chamamento. De qualquer forma, acaba por
encontrá-lo deitado com a filha, o que constitui a prova da infracção cometida.
Sequência V – O dilema do rei
1) Suporte significante directo:
6.“Para matar Gerinaldo, criei-o de pequenino,
7. Para matá-la infanta meu reino fica perdido.
8. Meteu-le a espada no meio que lhe sirva de castigo.”
G/174 Galhoz (1987) 414-415
O rei, perante os amantes adormecidos, confronta-se com o dilema de matar a
filha ou o pajem. Decide-se por deixar a espada entre os dois.
2) Suporte significante indirecto:
Esta sequência tem um sentido complexo, que se prende com as relações de
Poder; o rei vê-se obrigado a dar uma solução ao acontecido, e a única que se lhe
afigura adequada é a de castigar a filha e o pajem com a morte, isto porque,
implicitamente, a infracção cometida por ambos afecta o Poder real, para além do
paternal, dada a sua dupla condição, a de pai e a de rei. No entanto não o faz; no que diz
respeito ao pajem, ao ponderar as consequências de o matar, parece prevalecer, no
dilema, um amor do tipo paternal (“criei-o de pequenino”), mas as de matar a filha
transferem o sentido de uma questão sentimental, de honra familiar ou meramente social
para o de uma questão dinástica, que se torna, assim, o suporte significante indirecto
578
O incidente é objecto de variação, que abordaremos no Capítulo III . As intervenções na enunciação e
no enunciado.
289
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
desta sequência, de acordo com o que ficou dito na Parte I, Capítulo IV. Para uma
perspectiva axiológica nos romances. O rei decide, então, deixar a própria espada entre
os dois, declarando que o faz para que lhes sirva de castigo, embora, na verdade, o
motivo “espada” e o acto de a colocar impliquem um simbolismo que será novamente
tratado no Capítulo II, dedicado aos motivos.
Sequência VI – A descoberta da espada
1) Suporte significante directo:
31.”Con la friúra de la espada, la infanta ha 'stremecido,
32.Y lhamó por Gerineldo: - Gerineldito pulido,
33.Que la espada de mio padre entre nós se ha dormido.”
G/89 Mourinho (1984) 161-163
Com alguma variação nas versões sobre quem acorda primeiro e sobre as medidas
a tomar, esta sequência relata o acordar dos dois jovens e a descoberta da espada do rei
entre ambos.
2) Suporte significante indirecto:
Quando os dois amantes acordam, descobrem a espada entre si, constatando
imediatamente que o rei os viu. Ambos compreendem de imediato que a espada
simboliza o Poder real, que tem poder de vida e morte sobre os infractores.
A infanta, certamente por estar mais habituada a mandar, toma a decisão de fazer
o pajem procurar o pai (27.”- Corre, corre, General, aos pés de meu pai querido,”, G/95 Cortes-Rodrigues (1987) 172-174), com as variações, nas versões, de lhe pedir perdão, ou de
lhe aplicar o devido castigo. O sentido da sequência é o de que o envio do pajem ao
encontro do rei descarta a infanta de ser ela a enfrentar directamente o pai, assacando a
responsabilidade a Gerinaldo. Deste modo, fornecem-se os elementos que fazem a
ligação entre a sequência anterior (a infracção cometida) e a sequência seguinte - a
290
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
implicação é a de que o pajem deve submeter-se à decisão do rei, o que se prende ainda
com a questão do Poder e da hierarquia.
Sequência VI – O encontro do pajem com o rei
1) Suporte significante directo:
22. “- Donde vens, ó Gerinaldo, donde vens tão espavorido?
23. - Venho de regar o jardim que já estava esmerecido.
24. - Não me mintas, não, Gerinaldo, pois nunca m'havias mentido.
25. - Venho de dar de beber ao cavalo qu'ainda não tinha bebido.
26. Não mintas, não, Gerinaldo, pois nunca me tinhas mentido.
27. Venho de caçar a rola das bandas d'além do rio.
28. - A rola que tu caçastes, criei-a eu com o meu trigo;
29. estima-a como tua mulher e ela a ti como marido.”
G/113 Fontes I (1987) 476-477
Gerinaldo encontra-se com o rei, que o inquire sobre as razões de vir tão
perturbado. O pajem vai dando respostas que o rei vai contradizendo, até que determina
o casamento com a infanta.
2) Suporte significante indirecto:
A primeira “fala” do rei, nesta sequência, corresponde, antes de mais, a uma
indicação cénica de que Gerinaldo se apresenta apressado e desalinhado (ver v. 22 do
suporte significante directo apresentado), o que é uma indicação do seu estado de
espírito. O rei vai-lhe perguntando de onde vem, e as respostas do pajem, cujo sentido
referiremos no Capítulo seguinte, dedicado aos motivos, destinam-se a enganá-lo;
Gerinaldo enreda-se numa teia de mentiras, e o rei, que lhes percebe o implícito, faz-lhe
finalmente ver que bem sabe o que se passou, ao retomar com ironia os subterfúgios do
pajem (“A rola que tu caçastes, criei-a eu com o meu trigo;”). O facto é que o casamento é o
291
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
desfecho tradicional de Gerinaldo – o rei manda o pajem, literalmente, casar com a
infanta, mas a questão que se põe é o sentido desta decisão.
As razões porque o faz poderiam ser entendidas como do foro moralizador, como
fruto da compaixão real ou tomar uma feição punitiva, com um fundo de vingança da
afronta recebida, se não radicassem numa parte crucial da Sequência V, ou seja, por ter
ponderado as consequências da eliminação dos infractores. Se, anteriormente, a simples
colocação da espada entre os amantes subentendia o perdão real, a ordem de casamento
parece ratificá-lo579, ao mesmo tempo que lhe confere a feição moralizante. É assim
que, em versões que sofrem elipse do dilema do rei, o casamento é imediatamente
decidido por este, como reparação do que acaba de ver:
13.“Levantou-se a ver o rei, não viu nada remexido;
14. o Gerinaldo na cama como mulher e marido.
15. - Não te mato, Gerinaldo, nem te dou nenhum castigo,
16. pois casas co'a minha filha, ficais mulher e marido.”
G/156 Fontes I (1987) 508
É verdade que, à primeira vista, o rei parece achar graça às respostas evasivas do
pajem e ficar aplacado com a sua humildade, apenas dizendo, implicitamente, que de
bom grado lhe daria a mão da filha sem o artifício de lhe dormir com ela:
24.“A rola que tu caçaste já ta tinha prometido”, G/43 Leite (1958) 316
No entanto, a solução algo romântica vem subverter a implicação lógica das
sequências anteriores, visto que as infracções cometidas pelo par (contra a moral e
contra a hierarquia) implicariam uma sanção mais pesada, não deixando o atrevimento
de ser comentado:
23.“- Leonardo, Leonardo, tu fostes muit'atrevido,
579
Diz Pidal que “el rey tradicional perdona al paje desde el momento en que deja en el lecho su espada”
e que as versões modernas acabam com o reconhecimento da culpa e pedido de castigo por Gerinaldo, “al
que lo rey contesta ratificando el perdón ya antes concedido, y mandando al paje que se case com la
infanta”. Cf. Pidal [1973], pp. 224-256.
292
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
24. te deitares com uma menina, tu sendo dela cativo!”
G/67 Ferré (1982) 232-234
A ordem do rei revela-se então como uma forma mitigada de castigo para o
pajem, por vezes explicitamente, remetendo o termo “pois”, na versão abaixo, para o
subentendido “foi cometida uma infracção”, equivalendo a “já que [o foi]… então…”:
19.”- A rola que tu caçaste, bem na caçaste no ninho.
20. Pois casarás com ela, que te sirva de castigo”
G/31 Leite (1958) 302
Neste e noutros casos, o rei não parece ter a própria filha em muito boa conta, nos
exemplos que seguem, se, ao invés de atribuirmos uma certa bonomia ao que diz, o
entendermos num sentido mais sarcástico – casar com ela é o castigo:
27.“- O castigo que eu te dou fazê-la casar contigo
28. Chamares-lhe tua mulher e ela teu marido.”
G/26 Dias Martins (1954) 294-296
24.“Agora hás-de casar com ela, para que te sirva de castigo.”
G/44 Leite (1958) 316-317
Outras vezes parece ressentido, dizendo por meias palavras que o faz
porque não tem outro remédio e que já tinha outro marido em vista para a filha
(v. 21):
19.“- Venho de regar uma rosa que 'tava no jardim ressequida.
21. A rosa que tu foste regar, já outro tinha no sentido;
22. recebe-a por tua esposa e ela a ti por seu marido.”
G/131 Fontes I (1987) 489-490
Ordenado ou consentido, de melhor ou pior vontade, o casamento, na maioria dos
casos segue-se, como dissemos, ao diálogo prévio, no qual o rei parecera brincar com
Gerinaldo, um pouco como no jogo do gato e do rato; dado que o suporte significante
indirecto desta sequência assenta na questão dinástica, este jogo revela-se teste ou prova
293
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
a que submete o pajem, para ajuizar da capacidade deste em lidar com tão grave
problema e preparando, então, a decisão final, que será o casamento com a filha.
De qualquer forma, a solução encontrada pelo rei resolve duas questões: a ordem
moral é reposta, pois salva-se a honra da infanta, e a segurança do reino fica
salvaguardada, com a herdeira viva, a legitimar a dinastia, mas com um homem no
trono, de acordo com a axiologia implícita580. Veja-se, comprovando-o581, o que o rei
diz, na versão abaixo:
9. “- Gerinaldo, Gerinaldo, Gerinaldo amigo;
10. se venceres esta batalha, serás meu genro querido.”
G/61 Fontes (1980) 71
2. A elaboração de um “modelo-virtual” dos romances
A análise das sequências explícitas de cada romance conduziu à identificação de
outras sequências, não actualizadas discursivamente, mas implícitas, quer por
pressuposição quer por implicação 582 . Certamente que, nas versões, se observam
desvios e variações, quer semânticas quer, até, da narrativa, chegando, em certos casos,
a uma alteração de sentido. Contudo, considera-se que, na sua maioria, tais desvios não
chegam a denegar a existência de uma invariância do romance, conforme se depreende
do afirmado por Maria Aliete Galhoz:
“a própria canonicidade fundamental por que se reconhece cada romance admite a
adstrinção de variações particulares em alongamentos ou metáforas que não ‘desconhecem’ o
romance mas o vivificam com fórmulas paralelas ou sinonímicas (em raros casos surgem
aberrantes) reflectoras de uma comunidade específica”583.
580
Ver Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances.
O fenómeno da variação, contudo, originará precisamente o sentido contrário numa versão na qual o
rei entende que o casamento repara a honra da filha, mas fará perder o reino: 17.”agora casas com ela e o
reinado está perdido.”, G/117 Fontes I (1987) 479-480 .
582
Esta identificação de sequências pressupostas ou implicadas distingue-se do processo de verificação de
elipse de sequências próprias da narrativa do romance, que acontece nas versões, por razões várias.
583
Cf. GRPP I, p. LVI.
581
294
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Assim, a conjugação das sequências explícitas e implícitas permitiu a
reconstituição do programa narrativo completo do romance e pode, agora, ser elaborada
uma construção artificial esquemática, a que se chamou “modelo-virtual”584, que visa
reproduzir a “canonicidade fundamental” do romance, essa estrutura completa que se
entende invariante, sob pena de alterações de fundo virem a transformá-lo em um outro
romance diferente.
O modelo-virtual que ora propomos para cada romance do nosso corpus585, ao
mesmo tempo que dá conta da sua invariância, admite a anotação de variantes
encontradas nas versões, assinalando-as como tal586. Um modelo fechado, que apenas se
fixasse na invariância fabular, iria depreciar aquilo que, precisamente, é a característica
mais marcante da literatura oral tradicional, a sua capacidade de abertura. Cada
romance, repetimos, ocorre em versões e, nelas, podem ser identificadas alterações das
sequências e segmentos sequenciais587 próprios da narrativa “canónica”. É também nas
versões que surgem contaminações com outros romances, soluções diferentes nos
desfechos, elipses, acrescentos, prolongamentos ou encurtamentos das cenas, inversão
na ordem das sequências, adendas de versos de sentido moralizador ou avaliativo e
mesmo junção de composições do cancioneiro e remates de cantigas. Deste modo, a
584
O termo retoma-se da terminologia de Catalán, cuja noção de virtualidade fora já referida ao insistir
em que cada romance não é um “discurso” fechado, mas uma estrutura aberta, constituindo “un programa
virtual, sujeto constantemente (aunque muy lentamente) a transformación como consecuencia del proceso
mismo de actualización o producción que da lugar a cada nueva versión cantada (o recitada)”. Cf. Catalán
[1997], p. 113.
585
Um “modelo-virtual” seria, idealmente, constituído pelo conjunto de todas as versões do romance de
todas as tradições e espaços, temporais e geográficos. A nossa proposta baseia-se nas versões do corpus,
registadas em BRPTOM, que entendemos reproduzirem a invariância narrativa de cada um dos romances
em causa, uma vez que verificámos que esta é também coincidente com a do largo número de versões de
outras tradições pan-hispânicas que nos foi dado consultar.
586
O nosso objectivo é criar um tipo de modelo aberto, que facilmente acolha novos dados, quer em
relação a versões já recolhidas quer àquelas que ainda o venham a ser. As divergências, logicamente, são
do domínio do fenómeno da variação, que afecta sobretudo segmentos narrativos, mantendo uma notável
constância do modelo de fundo. Não se tratando, contudo, de um estudo exclusivamente sobre a variação,
não teremos a preocupação de assinalar de forma exaustiva todas as pequenas variações lexicais
encontradas no corpus, mas a de dar conta da variação situacional para poder ajuizar dos seus efeitos
sobre o sentido.
587
Cf. Anexos - Grupo B. B7. Exemplificação da divisão das versões em sequências.
295
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
própria estruturação do modelo possibilita o cotejo de cada versão com a invariância do
romance, facilitando a identificação das variantes e dando conta de quais as versões
completas ou fragmentadas588.
O modelo-virtual proposto divide a narrativa invariante em sequências e estas em
segmentos sequenciais, que se descrevem sucintamente, e será indexado da seguinte
maneira:
- Sequências:
São identificadas por numeração romana e intituladas com uma palavra ou
frase-chave:
Ex: Sequência I – Título, Narração dos sucessos da sequência
Sequência II – Título, Narração dos sucessos da sequência
……….
- Situações ou ocorrências alternativas 589 , dentro da sequência a que
pertencem:
São assinaladas com maiúscula:
Sequência I - A), B), C)…
Ex: Gerinaldo - Sequência IV. O Despertar do Rei:
A) O rei desperta porque tem um sonho premonitório.
B) O rei desperta naturalmente.
- Segmentos sequenciais:
Dentro da sequência a que pertencem, são identificados por numerais:
Ex: Sequência I
588
Uma vez que, modernamente, as recolhas se fazem acompanhar de elementos extra-textuais de
identificação (nomeadamente local, data de recolha e informante), este modelo também facilitará, cremos,
os estudos comparativos, relativamente às diversas áreas geográficas nacionais e ao mundo
pan-hispânico, bem como a perspectivação dos efeitos da passagem do tempo sobre cada romance.
589
Distinguimos entre “situação” (“combinação ou concorrência de acontecimentos ou circunstâncias num dado
momento”) e “ocorrência”, esta como uma possibilidade de “acontecimento, sucesso”. Cf. Dicionário
Houaiss, Tomo VI, p. 3348 e Tomo V, p. 2654, respectivamente.
296
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1) Narração do sucesso
2) Narração do sucesso
………..
- Situações ou ocorrências, dentro dos segmentos sequenciais:
São precedidas por uma letra minúscula: a), b), c)...
Ex: em Bernal Francês:
Sequência IV. A punição.
Segmento sequencial 1):
Ao perceber que se trata do marido,
A) a mulher tenta ainda salvar-se;
a) diz-lhe que teve um sonho, b) pede perdão….
- Pequenas variantes semânticas:
São indicadas
em itálico,
separadas
por
barras,
(Como
em
torre/
convento/palácio, espada/punhal, a mais bonita/a mais nova/a mais velha das
filhas).
- Sequências implícitas/pressupostas:
Indicam-se com o sinal #.
No modelo-virtual que propomos são ainda assinaladas outras possibilidades.
Muitas versões apresentam um acrescento de número variável de versos, que podem ou
não afectar a narrativa “canónica”. Se o fizerem no final, serão denominados como
Prolongamentos, uma vez que prolongam a intriga sem propriamente a modificar, sendo
seus exemplos as lamentações das personagens, em Veneno de Moriana, ou a ascenção
ao Céu da jovem, em Delgadinha. Também neste caso estão os ditos e certas
composições do cancioneiro que finalizam algumas versões e, que, pelas suas
297
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
características sentenciosos ou moralistas, são denominados post scripta. Acontece
também que algumas versões dos romances apresentam contaminações com outros (ou
com parte deles), o que lhes alonga a narrativa, mas em moldes diferentes dos
“prolongamentos”, uma vez que não só surgem em situação inicial, intermédia ou final,
como introduzem na intriga outras situações. Na perspectiva em que o elaboramos, estes
casos são de assinalar no “modelo-virtual”, tanto mais que a possibilidade de uma sua
persistência em número considerável de versões pode indiciar transformações
estruturais nos romances; certos casos, como o da junção de Queixas de D. Urraca a
Silvana na tradição madeirense ou a de A Aparição a Bernal Francês, tornam mesmo
conveniente que se assinalem estes fenómenos num modelo deste tipo. Por outro lado, a
importação de um ou dois versos de um romance em versão de um outro, não será,
necessariamente, registada.
3. “Modelo-virtual” dos romances do corpus
3.1. BERNAL FRANCÊS
Sequências pressupostas
# - O marido encontra-se ausente
# - A mulher tem um amante
# - O marido descobriu o adultério
Sequências implícitas encaixadas
# - o marido conhece a identidade do amante da mulher
# - decide confirmar a veracidade da informação
# - congemina uma armadilha que confirme a informação
# - O marido regressa a casa, disfarçado de modo a assemelhar-se a Bernal Francês
298
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência I – A mistificação:
[# lógico encadeado: Alguém dentro de casa ouve bater à porta < Alguém quer entrar
numa casa]
Modos de abertura:
A – Diálogo
a) iniciado por voz feminina
b) iniciado por voz masculina
B – Introdução narrativa
C – Monólogo reflexivo
A - Diálogo
Uma personagem pede que lhe abram a porta e outra, de dentro de casa, pergunta
de quem se trata. A primeira identifica-se como Bernal Francês e a outra declara que,
sendo assim, vai abrir.
a) iniciado por voz feminina:
1) Personagem feminina pergunta quem bate à sua porta/que não a deixa dormir;
a) pergunta quem é e declara logo que apenas abrirá a Bernal Francês
2) Personagem masculina responde que é Bernal Francês;
a) declara explicitamente ser Bernal Francês; b) anuncia ser/trazer
cravos/alecrim [identificação #]; c) faz ameaças se não lhe abrirem a porta.
3) A personagem feminina diz que vai abrir a porta se for Bernal Francês quem bate;
a):
1) a mulher começa por recusar abrir a porta
2) o homem identifica-se como Bernal Francês
a) # diz ser cravos/ alecrim
299
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
b) iniciado por voz masculina
1) Personagem masculina bate à porta, pedindo que lha abram;
a) identifica-se logo como Bernal Francês
b) anuncia ser/trazer cravos/alecrim [identificação #]
2) Personagem responde que, sendo Bernal Francês, vai abrir.
a):
1) a mulher começa por recusar abrir a porta;
2) o homem confirma ser Bernal Francês. a) faz ameaças;
3) a mulher diz que, nesse caso, vai abrir.
B) - Introdução narrativa
Narra que alguém ouviu bater à porta [a) que alguém está a bater/bateu à porta, a
determinada hora; b) que Alecrim bate à porta e que Manjerona responde]
(Segue-se o diálogo inicial).
C) - Monólogo
Alguém conta que, estando a dormir, ouviu bater à porta e pondera ir abrir, se for
Bernal Francês.
Sequência II – O encontro amoroso:
Por narrador:
A) Extradiegético
B) Intradiegético
a) a mulher
b) o homem
C) Forma mista
A mulher vai abrir a porta, na convicção de que se trata de Bernal Francês. No
300
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
caminho, deixa cair um sapato e apaga-se a luz (candil). Introduz o homem no jardim,
onde o lava com água perfumada. Deita-se com ele.
1) A mulher, ao ouvir a identificação do homem, vai abrir a porta:
a) 1) manda a criada levantar-se e abrir a porta;
2) a criada recusa, alegando que é com a patroa que o homem vem dormir.
1.1) desce as escadas;
1.2) rasga-se-lhe a roupa;
1.3) descalça-se-lhe o chapim;
1.4) apaga-se o candil; [a) desconfia que a querem matar; b) pensa tratar-se de uma
brincadeira de Bernal Francês].
1.5) abre a porta.
2) A mulher leva o homem para o jardim e:
a) lava-o com água perfumada; b) lava-se com a mesma água; c) veste-lhe uma
camisa; d) faz-lhe uma cama de flores.
3) Deita-se com ele.
Sequência subentendida
# O homem tem um comportamento sexual passivo.
Sequência III – O cair da máscara:
A mulher manifesta estranheza perante a passividade amorosa do homem e diz-lhe
que não tema os parentes nem o marido, que está longe; o homem revela ser o marido.
Modalidades:
A) - Perguntas e respostas alternadas
B) - Perguntas e respostas em sucessão
1) A mulher pergunta ao homem porque não se vira para ela;
301
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
a) 1) inquire das razões da indiferença [diferente de ocasiões anteriores]:
a) ele terá outros amores; b) disseram-lhe mal dela;
2) ele refuta as hipóteses.
2)
2.1) A mulher diz ao homem que não tema:
- os familiares (pai, irmãos, mãe, filhos, filhas, cunhados)/os criados/a
justiça/vizinhos) dando-lhe razões;
- o marido, que está longe (a combater os mouros; no Brasil, na guerra, na
feira).
a) roga pragas ao marido ausente.
2.2) O homem responde não temer qualquer dos citados, dando as suas razões.
3) O homem revela ser o marido.
Sequência IV – A punição:
1) Ao ouvir o marido dizer que é ele quem ali se encontra, a mulher:
A) tenta ainda salvar-se. [a) diz-lhe que teve um sonho; b) pede perdão; c) tenta
protelar o castigo; d) afirma-lhe o seu amor; e) pergunta-lhe que prenda lhe traz].
B) pede a morte, explicitamente, como coisa merecida.
C) # acaba por aceitar a morte: [a) indica ao marido onde quer ser enterrada; b) pede
para se despedir dos pais; c) pede para se despedir do amante; d) pede que a mate
com uma toalha; e) pede para se confessar].
2) O marido [a) diz à mulher que espere pela madrugada] anuncia-lhe lhe dará vestuário
e adornos de cor vermelha. [a) diz explicitamente que a matará; b) diz que tem um
punhal de oiro, c) diz-lhe que chame por Bernal Francês; d) diz-lhe que chame os
pais/os irmãos/as irmãs/o coveiro/o tesoureiro; e) ela deseja que chegue a manhã.]
D) Contaminação com Claralinda
302
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1) O marido diz que não a matará, mas que a levará ao pai.
a) diz-lhe que chame os pais/os irmãos/as irmãs/o coveiro/o tesoureiro.
2) Ela diz que a culpa não é do pai.
# O marido mata a mulher
Prolongamento por contaminação com A Aparição: [ Ocorrência de versos de ligação]
1) O amante, ao procurar a amada, é informado da sua morte.
2) Dão-lhe os sinais reveladores.
3) Quer juntar-se a ela na sepultura.
4) A amada aparece e faz-lhe notar a sua condição incorpórea.
5) Diz-lhe: [que a lembre/que dê o seu nome às filhas/que case/não case com uma
mulher com o mesmo nome/que dê determinados nomes aos filhos que vier a ter, para
que se lembre dos filhos dela/que eduque os filhos, um para militar, outro para clérigo,
para que rezem por ela/que os eduque (não os eduque) como ele o foi/ aconselha-o a
guardar as filhas, para que não tenham o seu fim].
Post Scriptum
3.2. VENENO DE MORIANA
Sequências pressupostas, nos Tipos A e B
# - Um cavaleiro/“D. Jorge” prometeu casamento a Moriana
# - Moriana sabe já que “D. Jorge” vai casar com outra
303
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
TIPO A
TIPO B
Contaminação com Joaquim Caixeiro e
Ana Roberta – Um homem enganou uma
# Um cavaleiro chega junto de Moriana
rapariga, que era séria.
Sequência I – O convite
Sequência I – O diálogo mãe/filha
1) A mãe pergunta a Moriana a razão da sua Moriana convida o cavaleiro a apear-se
e merendar.
tristeza;
2) Moriana diz ter sabido que “D. Jorge” vai # - o cavaleiro aceita o convite e
desmonta.
casar;
3) A mãe/o pai confirma, referindo avisos
anteriores (tem por costume enganar
donzelas).
a) Moriana diz que se vai vingar.
Sequência II – Anúncio da chegada do
cavaleiro
Um cavaleiro chega junto de Moriana.
# - o cavaleiro desmonta
Sequência III – A confirmação do
casamento
A):
1) Saúdam-se;
2) Moriana pergunta a D. Jorge se é
verdade que vai casar;
304
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3) D. Jorge confirma/convida Moriana
para o casamento (a) a noiva é filha da
rainha.
a) convida-a para madrinha
B):
1) Saúdam-se;
2) O cavaleiro convida Moriana para o
seu casamento/ noivado;
Sequência IV – A oferta do vinho
Sequência II – A oferta do vinho
Moriana pede a D. Jorge que espere/a) que 1) O cavaleiro pergunta a Moriana o
entre no jardim,/ enquanto vai buscar um que que tem para lhe dar;
copo/cálice/taça de vinho/licor que tem 2) Moriana diz que tem um copo de
guardado para ele.
vinho de há sete anos para lhe dar;
a) não diz nada e levanta-se; b) vai ao jardim 3) O cavaleiro pede o copo de vinho.
colher folhas/resalgar.
a) o cavaleiro pergunta se não será
tempo demais para ter o vinho
guardado
Sequência V – A morte do cavaleiro
Sequência III - A morte do cavaleiro
O cavaleiro bebe o vinho e pergunta a 1) O cavaleiro bebe o vinho e pergunta
Moriana o que lhe deitou, pois sente-se a Moriana o que lhe deitou, pois sentedesmaiar.
-se desmaiar;
# o cavaleiro morre
2) Moriana informa-o dos ingredientes
Prolongamento
deitados no vinho (veneno).
1) O cavaleiro diz onde quer ser enterrado
# o cavaleiro morre
Contaminação: Não me enterrem em
305
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sagrado
2) Moriana vai rezar à sua campa
Contaminação: Quem dever a honra
alheia: cavaleiro aparece-lhe, dizendo
que a honra de uma donzela deve ser
paga.
TIPO A e TIPO B
Prolongamento
A) Lamentações dos protagonistas:
1) D. Jorge lamenta a mãe, que julga ter o filho vivo [a) o pai; os filhos; a mulher
que ficam sem ele).
2) Moriana replica que a mãe dela julgava que a filha iria casar. a) Moriana
reafirma a vingança.
B) Lamentações do narrador: [a) sobre Moriana; b) o crédito perdido de Moriana; c) os
filhos (a esposa)].
C) Moriana confessa-se culpada; vai entregar-se à prisão.
Fechos e remates:
a) Invoca-se a escrita (tabelião, jornais) como testemunho do mal que fazem as
mulheres/os homens
b) “Torradas”
c) outros
306
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3.3. SILVANA
# Antecedentes: Provocação da filha
Sequência I – A proposta
Introdução narrativa das situações:
- Rapariga passeia-se pelo corredor/varanda)/tange um instrumento musical
(viola/guitarra)/canta e/ou dança/ penteia-se com pente de ouro.
- O pai (que está na cama, na sala, à janela, vem da missa, vem da caça) repara nela (a
toda a hora, pela sua beleza).
Diálogo:
1) Um pai propõe incesto à filha [ a) compara-a com a mãe]; [a) impõe: contaminação
de Delgadinha];
2) A filha diz que aceitaria, se não temesse o castigo divino;
3) O pai diz que isso tem remédio [ a) ele penará; b) ela penará; c) serão perdoados
(pelo Santo Padre)]
4) A filha diz que vai lavar-se e trocar de roupa (para fazer como a mãe).
# O pai insiste na proposta; irá ter com ela ao quarto, durante a noite.
Sequência II – A intervenção da mãe
1) A filha [a) chorosa, b) praguejando] retira-se [a) vai para o quarto; b) vai procurar a
mãe; c) encontra a mãe (dentro/fora de casa); d) chama pela mãe; e) lamenta-se por não
ter irmãs a quem confiar o sucedido.]
2) A mãe ouve-a (ouviu os dois a falar) [a) a mãe vem do outro mundo; pergunta-lhe
porque chora.]
3) A filha queixa-se do assédio do pai;
4) A mãe manda-a trocar de roupa e de cama consigo.
# A mãe deita-se na cama da filha
307
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Sequência III – O estratagema salvador
1) O pai vai ao quarto de Silvana [a) Silvana bate à porta do quarto do pai] e deita-se
com a mulher que supõe ser sua filha;
2) Censura-a por não a encontrar virgem [a) ameaça-a antecipadamente se não a
encontrar virgem];
3) A mãe revela a sua identidade;
a) nomeia a prole e enuncia os seus títulos.
4) O pai demonstra admiração pelo estratagema.
a) agradece à mulher tê-lo livrado do pecado.
b) amaldiçoa a mulher/a filha (por o ter descoberto).
Contaminações:
- Delgadinha – a filha sofre o castigo de Delgadinha.
- Queixas de D. Urraca – a filha reclama a herança ao pai moribundo.
- A Filha Desterrada (Nave guiada por la Virgen) – a filha é metida numa nau.
- Conde Claros em hábito de frade – o conde vem salvar a jovem.
3.4. DELGADINHA
# Antecedentes: Ausência de provocação da filha
Sequência I – A imposição incestuosa
Introdução narrativa das situações:
- Um pai (rei/conde) tem várias filhas (três/sete), todas bonitas; o pai enamora-se da
mais bonita (da mais nova/da mais velha, da mais fidalga, por causa do nome).
- Rapariga é tão bonita que o pai se enamora dela.
308
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- Rapariga está sentada (na sala/no jardim/ no quarto) a) a bordar; b) vem da fonte (vem
de beber da fonte); c) vem da missa. d) o pai vem da missa e repara nela; e) o pai vai
procurá-la ao quarto (chama-a ao seu quarto); f) estão à mesa (a jantar) e o pai olha-a;
ela pergunta ao pai a razão porque a olha (diz que está delgada, porque está
enamorada); g) o pai quer casá-la com um mouro.
- Sequência inicial Silvana - rapariga passeia-se pelo corredor a tocar viola/guitarra e
acorda o pai com o ruído.
A) - Diálogo entre pai e filha (Pode encontrar-se narrativizado)
1) O pai impõe acto incestuoso à filha [a) pergunta se quer; b) sugere; c) prometelhe ouro e prata se aceitar]; [a) propõe: contaminação de Silvana];
2) A filha recusa terminante [a) por ser antinatural; b) por não querer fazer da mãe
malcasada; c) porque é contra a lei de Deus; d) porque já é casada]; [a) diz que
aceitaria, se não temesse o castigo divino: contaminação de Silvana];
B) – Proposta de um apaixonado - Alguém (um rapaz de quem a jovem gosta)
pergunta a uma rapariga se quer ser sua namorada, em troca de a vestir e calçar de
ouro e prata.
a) o pai (a mãe) soube que a filha namora; b) o pai não deixa casar as filhas e
Delgadinha tem um pretendente.
Sequência II – O castigo
A) O pai manda encerrar a filha (numa torre/quarto/convento/palácio), durante um
tempo determinado (variável: x anos/y dias), sendo-lhe impostos:
-
alimentos
salgados/impróprios
(bacalhau,
sardinhas,
pão
outros)/escassos;
- pouca água/salgada/amarga/salobra (água de pescada e outros).
a) escuridão.
309
bolorento
e
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
B) 1) O pai diz à mulher que a filha lhe fez propostas incestuosas; pergunta-lhe o que
lhe hão-de fazer;
2) A mãe determina o castigo da filha**.
C) Ao saber que alguém fez propostas amorosas à filha o pai impõe o castigo **.
** o mesmo castigo de A)
Sequência III – O apelo à família
Findo o prazo determinado (antes de acabado o tempo do castigo), Delgadinha vai
subindo no local onde se encontra e assoma às janelas (vagueia [pela montanha]) e
encontra os membros da família). [(a) Delgadinha é solta e procura a família]
Sucessivamente:
1) Avista as irmãs/uma irmã (X), os irmãos/um irmão (Y), a mãe (Z), outros (O, como
serviçais, tios), que se encontram em várias actividades590;
2) Pede-lhe(s) água [a) pede luz];
3) As irmãs/irmã (X), os irmãos/irmão (Y), a mãe (Z), outros (O) recusam a água,
alegando que [a) receiam o castigo do pai (terem a mão cortada, serem degolados,
serem enforcados); b) o pai tem a água fechada]. 3.1) Juntam à recusa [a) expressões
de compaixão; b) insultos; c) acusações de fazer a mãe mal casada; d) culpabilizam
Delgadinha por não fazer o que o pai queria].
Sequência IV – A cedência
1) Delgadinha assoma a uma janela, donde avista o pai;
2) Pede-lhe água [a) compromete-se, desde logo, a ceder, em troca de água];
3) O pai nega porque ela não cedeu/não cumpriu a palavra [a) porque ela tinha dado a
mão a um homem];
590
A variação destas actividades é muito grande, pelo que não as assinalaremos aqui; no entanto, de modo
geral, as irmãs e mãe estão em casa, na varanda/ na cozinha/no jardim, ocupadas a coser ou a bordar a
ouro, enquanto os irmãos e o pai se encontram fora de casa, a passear ou a jogar à bola, às canas, a
espada.
310
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
4) Delgadinha promete ceder, em troca de água.
Sequência V – O envio da água
O pai (a mãe, o irmão mais novo) manda levar água à filha (criados, vassalos,
determinada personagem), prometendo recompensas ao primeiro que lá chegar e/ou
castigos ao último [a) o primeiro a chegar é o namorado].
# A ordem do pai é imediatamente cumprida
Sequência VI – Morte de Delgadinha
Quando lá chegam, Delgadinha já está morta; junto dela tem água/fonte cristalina [a)
está rodeada de entidades celestiais591].
a) Delgadinha ressuscita.
b) descreve-se o funeral de Delgadinha – contaminação com A Aparição.
Post Scriptum: Condenação da atitude do pai (da mãe).
a) Delgadinha subiu (é levada) ao céu; b) os sinos dobram chamando a sua alma
para o céu; c) a mãe está junto dela/louva-a; d) o pai é castigado: vai para o
Inferno/está rodeado de demónios/chamas; e) a mãe/as irmãs são castigadas com o
Inferno; f) Delgadinha amaldiçoa o pai; g) Delgadinha tem uma carta na mão; não
lha conseguem tirar; a mãe lê a carta, que determina que Delgadinha vai para o céu
(com a mãe) e o pai para o Inferno; h) o pai reconhece o erro e diz que está
condenado, i) o pai chama o filho mais velho, para que fique com o reino, pois vai
penar pelo mundo; o filho diz que o pecado será perdoado, por não ter sido
consumado.
Contaminação com Conde Claros em hábito de frade.
591
A variação destas entidades é também muito grande e, no Capítulo II, dedicado ao motivos,
apresentaremos uma sua amostragem, extraída de VRP e GRPP.
311
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3.5. GERINALDO
Sequência I – A sedução
1) A infanta propõe a Gerinaldo que passe a noite com ela;
2) Gerinaldo duvida da veracidade da proposta;
3) A infanta reafirma a proposta;
4) Gerinaldo pergunta quando deve ir;
5) A infanta marca a hora do encontro.
a) dá-lhe instruções para não fazer ruído/não ser reconhecido.
Sequência II – O encontro amoroso
1) À [antes/depois da] hora aprazada, Gerinaldo apresenta-se / bate à porta da infanta
[a) com os sapatos na mão para não fazer ruído; b) suspira/dá um ai];
2) A infanta pergunta quem bate à porta/quem é o atrevido;
3) Gerinaldo identifica-se;
4) A infanta manda-o entrar/pousar as armas e entrar; louva-lhe a pontualidade.
a) promete-lhe beijos e abraços, mas nada mais.
Sequência III – O delito
Os dois passam a noite juntos.
Sequência IV – O despertar do rei
A): O rei tem um sonho592
1) Sonha que [a) que lhe assaltam o castelo; b) que Gerinaldo está com a filha];
2) Levanta-se e procura Gerinaldo por vários sítios; encontra-o no quarto da filha.
B) : O rei acorda naturalmente593
1) O rei [a) pede que Gerinaldo lhe traga os vestidos; b) chama por Gerinaldo; c) o
592
593
Presente no P.s. de 1537.
Presente no P.s. da Tercera parte de la Silva ….
312
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
rei diz à rainha que Gerinaldo deve estar com a infanta.; d) o rei pondera se este
estará morto ou se terá cometido falsidade; e) o rei desconfia que este se encontra
com a filha].
2) O rei procura o pajem [a) alguém (um guarda) lhe diz que o pajem se encontra
com a infanta, b) rei levanta-se e b.1) vai dar volta ao castelo, b.2.) vai visitar a filha
ao quarto];
3) Encontra Gerinaldo no quarto da filha.
Sequência V – O dilema
Ao ver dois adormecidos lado a lado,
1) O rei pondera as consequências de matar a filha ou o pajem;
2) Decide
deixar
a
espada
(espadim/punhal/alfange/cutelo/lança/estoque/as
armas,banda) entre os dois [a) volta o cabo para a filha e o bico para Gerinaldo].
Sequência VI – A descoberta da espada
1) a) A infanta desperta [vê a espada]. Acorda Gerinaldo.
b) Gerinaldo desperta [vê a espada/sente a picada do punhal]. Acorda a infanta.
2) Pensam no que há a fazer:
a) A infanta diz a Gerinaldo: a.a) que procure o rei e tente obter o perdão; a.b) que
tente enganar o rei; a.c) que não minta ao rei; a.d) que a mate ou se esconda; a.e)
que peça ao rei um castigo; a.f) que fuja; a.g) que o pai os casará; a.h) que o rei o
matará.
b) Gerinaldo diz: b.a) foi ele que trouxe a espada; b.b) vai procurar o rei para obter o
perdão; b.c) vai entregar-se ao castigo.
c) Escrevem uma carta (Gerinaldo/a infanta) a pedir perdão/compaixão.
Sequência VII- O encontro do pajem com o rei
a) Gerinaldo vai ter com o rei (encontra-o) e cumprimenta-o; b) Gerinaldo foge; c)
313
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
o rei encontra Gerinaldo.
1) O rei pergunta-lhe de onde vem tão perturbado; a) o rei, furioso, acusa Gerinaldo de
ser atrevido; b) Gerinaldo acusa-se de ter sido atrevido e pede o castigo; c) Gerinaldo
pede perdão (pede castigo); d) Gerinaldo acusa a infanta de o ter seduzido.
2) Gerinaldo responde que vem de caçar a rola/ a garça/de dar água aos cavalos/de
regar a horta/de regar o cebolinho594.
3) O rei não se deixa ludibriar e diz a Gerinaldo: a) que não lhe minta, b) responde-lhe
que a “rola/garça” foi “caçada no seu milho”; c) anuncia um castigo.
4)
O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta. a) Gerinaldo responde que
prefere casar a morrer; b) Gerinaldo revela ser de condição real; o rei diz que não
sabia/pergunta porque não o disse antes. d) o rei ameaça o pajem de morte, se este não
casar com a infanta.
Outros Desfechos
A) O rei ordena a prisão de Gerinaldo
1) O rei manda prender Gerinaldo.
a) A infanta cai de paixão.
2) Gerinaldo está preso (Contaminação com O Órfão+O Prisioneiro+Conde Ninho):
a mãe pede-lhe que cante, como o pai fazia; ele canta; o rei ouve-o e, comovido,
chama a filha para que ouça; a filha diz-lhe que é Gerinaldo quem canta; o rei
manda-o soltar.
3) O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta.
B) O rei ordena a morte de Gerinaldo.
1) A infanta intercede por ele [a) diz ao pai que quer casar com ele, b) diz que se
594
A tentativa de engano não ocorre no P.s. de 1537 nem no da Tercera parte de la Silva …., mas surge
no Pl. S., s.l., s.a., Este es un romance de Gerineldos … e nas reedições Canción nueva del Gerineldo…
314
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Gerinaldo for morto, também ela quer morrer].
2) O rei pede conselho.
2.a) os conselheiros não o querem descontentar nem à infanta; 2.b) acham que
pode haver casamento porque o pajem é de família real.
3) O rei reconsidera e manda soltar Gerinaldo; ordena o casamento com a infanta.
C) Gerinaldo recusa casar-se.
1) O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta;
2) Gerinaldo jura que não casará com mulher que desonrou;
3) O rei manda prender Gerinaldo;
4) Ao saber da traição, a infanta morre de desgosto.
D) A rainha manda matar Gerinaldo e a infanta
(Contaminação com O Conde Ninho).
Post Scriptum
Louva-se/deseja-se a sorte de Gerinaldo.
315
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO II
OS MOTIVOS NA REVELAÇÃO DO SENTIDO
1. Os motivos
No romanceiro, um dos processos de grande operacionalidade na produção de
sentido é o uso dos motivos, aos quais dedicaremos inteiramente o presente capítulo.
Dos motivos, faz Stith Thompson a seguinte definição; “A motif is the smallest
element in a tale having a power to persist in tradition”, especificando que, na sua maioria,
são incidentes singulares595. O autor, em Motif-Index of Folk-Literature596, divide os
motivos em três classes: a dos actores na narrativa, a de alguns itens no segundo plano
da acção e a dos incidentes singulares 597 . Por sua vez, Joseph Courtés começa por
definir o motivo como “une sorte de micro-récit élementaire, comme une séquence discursive
de type figuratif…”, que mantém um certo conteúdo próprio, uma invariante específica,
mas que, ao mesmo tempo, “est lié à des mises en contextes particulières qui lui confèrent des
significations diverses ou, plus exactement, qui le font servir à des fins de significations
variées”, para depois reformular a designação inicial como uma configuração discursiva
que “regroupe et organise les élements figuratifs y afférents, indépendamment des structures
syntaxiques et/ou sémantiques sur lesquelles elle est apte à s’árticuler” 598 . Para Michelle
Débax e Bárbara Fernandez, que seguem Joseph Courtès e se referem às diversas
acepções de motivo, uma primeira etapa para a sua definição seria a análise narrativa do
595
Thompson [1977], p. 415.
Stith Thompson [1955-1958], Motif-Index of Folk-Literature, 6 vols., Copenhaga, Rosenhilde and
Bagger, 1955-1958.
597
A sua metodologia é contestada por outros autores; referimo-nos, em particular, a Joseph Courtés e a
Claude Bremond. Ver Joseph Courtés [1980a], em “Le motif en ethno-litterature. Le motif selon Stith
Thompson” (pp. 3-14) e Joseph Courtés [1980b] em “Le motif: Unité narrative et/ou culturelle” (pp. 4454), bem como Claude Bremond [1980], “Comment concevoir un índex des motifs” (pp. 15-29), artigos
em Bulletin du Groupe de Recherches Sémio-linguistiques, Nr. 16, Paris, EHESS, 1980.
598
Joseph Courtés [1980], La “lettre” dans le conte populaire merveilleux rançais. Contribution à
l’étude des moti s, Documents de Recherche, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, 1980.
596
317
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“micro-relato” que o constitui, reconhecendo nele um “fazer”, enquanto a segunda seria
a análise da sua funcionalidade no “macro-relato”599. Especificamente em relação ao
romanceiro, João David Pinto-Correia define os motivos como “pequenas configurações
discursivas”, que “representam momentos de aditamento de sentido principal, suplementar ou
poético”, fazendo notar que facilmente se deslocam entre romances ou suas versões600. O
IGR define os motivos como unidades narrativas que fazem parte da organização
paradigmática da “linguagem romanceiro”, sendo uns utilizáveis em múltiplos
contextos fabulísticos e outros cabendo num número muito limitado de modelos
narrativos; nele se refere, ainda, que os motivos têm uma função narrativa e outra
indicial, e que alguns deles possuem valor simbólico601.
Por nosso lado, encararemos os motivos numa dupla dimensão: a de unidades
narrativas de dimensão discursiva geralmente curta, com o significado literal daquilo
que dizem ou contam e correspondendo ao que temos vindo a chamar “explícito” e
como unidades significantes culturais 602 , com poder indicial múltiplo e variável e
carácter simbólico603, correspondendo ao “implícito”, pois, para escaparem ao ónus da
simples narratividade, eles deverão ser entendidos como portadores de um carácter de
superação do seu sentido literal604.
599
Cf. Michelle Débax, Bárbara Fernandez [1989], “Motivos Y figuras en ‘Hero y Leandro’” em Piñero
[1989 ], pp. 71- 92.
600
ROTP, p. 38.
601
IGR, pp. 128-143.
602
Courtés advoga o carácter simultaneamente narrativo (“micro-récit”) e cultural
(“pratique/axiologique”) do motivo. Cf. Courtés [1980b].
603
O símbolo “transporta para lá da significação, depende da interpretação e, esta, duma certa
predisposição”. Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994].
604
Na entrada para “motivo”, diz Stith Thompson que “in order to become a real part of tradition an
element must have something about it that will make people remember and repeat it”, referindo que os
motivos, para o serem, devem ser portadores de algo de extraordinário que os distinga do que acontece na
vida normal. Cf. Stith Thompson [1984], “Motif”, em Maria Leach, Jerome Fried, Funk & Wagnalls
Standard Dictionary of Folklore, Mythology, and Legend, New York, Harper & Row, 1984, p. 753.
Courtés considera redutor o conceito de Thompson (referindo-se ao Motif-Index), uma vez que o que é
“unusual” em determinado contexto sócio-cultural pode não o ser em um outro. Cf. Courtés[1980a].
318
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Na acepção em que integram a face explícita da narrativa, os motivos contam ou
descrevem determinado incidente ou facto, tal como para as funções proppianas 605 .
Harriet Goldberg adaptou ao romanceiro o Motif-Index de Thompson elaborado para os
contos tradicionais, num acreditado índice, Motif-Index of Folk Narratives in the PanHispanic Romancero 606 que, por sua vez, foi modificado e aumentado para a sua
implementação na Web, numa das bases de dados do Proyecto del Romancero panhispánico607. Designaremos estes por “motivos indexados”608.
2. Os motivos indexados em Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic
Romancero
Apontamos abaixo os motivos do corpus relacionados no Motif-Index de Golberg
para cada um dos romances e os acrescentados no Pan-hispanic ballad Project, que
assinalamos com asterisco (*), com as nossas observações e exemplos. Em quadro
separado, indicamos os motivos de outros romances mais frequentemente presentes nas
versões do romance importador, ressalvando que, por vezes, apenas uma parte do
motivo é utilizada.
Note-se que o citado Motif-Index pode apontar motivos simples, seguindo-se um
apontamento descritivo da situação que os contém, como no T351.0 “Sword of chastity.
605
Cf. Vladimir Propp [2000 (1928)], Morfologia do Conto, 4ª ed., Lisboa, Vega, 2000.
Na Introdução deste, são indicados os vinte e três romanceiros e catálogos examinados para a sua
elaboração. Cf. Golberg [2000].
607
Cf. Trata-se do Index of Folk Motifs in the Pan-Hispanic Ballad (ou Harriet Goldberg's Motif-Index of
Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero), que pode ser consultado no arquivo on-line do
Proyecto del Romancero pan-hispánico (Pan-hispanic Ballad Project), coordenado por Suzanne H.
Petersen.
608
Ressalvamos que a indexação ou catalogação de motivos colocará sempre algumas questões, tendo
Claude Bremond entendido que “le point de vue de la fonction est la seule entrée pour un classement de
motifs”. Cf. Bremond [1980]. Uma vez que estes catálogos se baseiam num número que será mais ou
menos restrito de versões, os motivos neles indexados, obviamente, corresponder-lhes-ão, não podendo
afirmar-se que todos são próprios de determinado romance. Como a capacidade de abertura das estruturas
tradicionais permite a variação, os motivos “viajam” entre composições e outras versões poderão
apresentar outros motivos. Idealmente, os índices deveriam ser sempre um trabalho em aberto e ser
susceptíveis de acolher actualizações e motivos presentes em novas (ou ainda não consideradas) versões e
variantes.
606
319
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A two-edged sword is laid between the couple sleeping together”, em Gerinaldo ou, com
maior frequência, os motivos constam de uma “micro-narrativa”; esta descreve uma
acção ou acontecimento, de forma mais ou menos alargada, ou abrange mais do que
uma situação (T411.1.5. - Father desires daughter sexually. She consents but asks what of
divine punishment. She dies, angels carry her to heaven; Virgin shrouds her. ). Outras vezes, o
motivo é subdividido, com pequenas diferenças, o que se deverá a terem sido colhidos
em diferentes versões de cada romance. Alguns motivos indexados equivalem-se em
termos de intriga, enquanto outros resumem o essencial do romance.
BERNAL FRANCÊS
K1569.0.5 - Wife accepts husband in her bed thinking he is her lover. Husband says he
will kill her in the morning (will return her to her father, gives her a red necklaceblood).
Obs.: Resume sumariamente a intriga do romance, pelo que a primeira parte do motivo
ocorrerá nas versões. O que é indicado entre parênteses engloba variantes, que não
ocorrem cumulativamente nas versões.
Ex:
- “will return her to her father”: “15. Vou-te levar a teu pai veja a prenda que me deu.”,
BF/95 Galhoz (1987) 280-281.
- “gives her a red necklace-blood”: “20. Assim que veio a manhã, ele fazia assim: //
21.gargantilha encarnada, gargantilha carmesim.”, BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76.
*T483.1 - Woman admits husband to house in darkness. Thinks he is lover. Her
children are all lover’s except middle child. Husband gives her a red necklace (slit
throat).
Obs.: Não há, no corpus, menção específica a um “filho do meio”. Nem sempre se
320
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sabe, nas versões, se os filhos são do marido ou do amante. Deduz-se, na maioria dos
casos, que serão do marido, pois a mulher diz ao amante que não os tema, presumindose que os filhos, neste caso, constituiriam uma ameaça para o rival do pai. Que o são,
di-lo ele próprio (“14.- Não tenho medo de meus [sic] filhos, que eles filhos são de mim.”BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 e “16.- Eu não temo aos teus filhos, que são de entre mim e
ti.”, BF/12 Pedroso (1902) 462-463). Outras vezes, a questão é mais dúbia. Na BF/101
Galhoz (1987) 290-291, diz ela “6.Nem temas aos meus filhos, porque eu nunca os tive”,
ao que o revelado marido responde que “11. nunca te os conheci”, querendo talvez
significar que, mesmo que filhos existissem, nunca os reconheceria como seus por
saber da infidelidade da mulher. Na BF/47 Leite (1958) 419-420, v. 16, o marido diz
que “filhos serão de mim”, o que, existindo uma elipse do seguimento óbvio da frase,
que seria “ou não”, adquire um valor de dúvida, com o subentendido de que talvez não
o sejam. Na BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76, o marido manda-a calar e não
responde sequer ao “não temas”, podendo inferir-se do seu silêncio que acha que esses
filhos são do amante. Às vezes, acha que alguns desses filhos serão dele, o que
logicamente quer dizer que outros serão do rival: “8.Não tenho medo aos teus filhos que
alguns serão de mim.”, BF/108 Anastácio (1988) 61. Já na BF/50 Leite (1960) 513-514,
diz ela ao amante, explicitamente, que os filhos são dele (“16. Se temes os meus filhos,
eles filhos são de ti;”), enquanto no segundo hemistíquio do v. 7 da BF/96 Galhoz
(1987) 281-282, diz que “meus filhinhos são por ti”, pelo que, uma vez que se sabe que
julga falar com o amante, se pode inferir que os filhos seriam de Bernal Francês, sendo
de notar que, nesta versão, o marido, subentendendo que sabe que outros serão do
amante, replica: “8. Num tenho medo aos teus filhinhos que alguns serão de mim”. A
existência de filhos do amante, se nem sempre é explícita no romance, está implícita
no prolongamento de A Aparição, através das recomendações da mulher em relação
321
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
aos filhos.
Motivos de A Aparição
E214.2. Dead wife (lover) intercepts soldier’s return. He must remarry, and name
daughter after her as reminder of his faithlessness.
Ex: “32.Eu te peço, cavaleiro, que te cases a caminho. // 33.A mulher com quem casares não lhe
queiras mais qu'a mim; // 34.Filha que dela tiveres põe-le um nome com'a mim // 35.C'ando
chamares por ela te alembrares de mim”, BF/52 Lemos (1961-1962) 171-173.
H1385.3.2. Man (king) seeks his beloved. Told by a stranger that she is dead.
Ex: “14.- Pr'onde vais, Bernal Francês? Vou ver don'Ana. // 15.- Não vás lá que dona Ana já
morreu. // 16.- Eu hei-d'ir, hei d'ir onde costumava a ir, // 17. tanto hei-de bradar, dona Ana, que
ela me há-de acudir.”, BF/109 Anastácio (1988) 62.
VENENO DE MORIANA
S111.10 - Murder by feeding faithless lover poisoned wine. He has come to invite her to
his wedding.
T73 - Woman tricks ex-lover into drinking poison. He had returned to marry another.
Obs.: Estes motivos equivalem-se em termos de resumo da intriga. Ambos explicam a
causa e o T73 explicita a “armadilha” (envenenamento). No entanto, a explicitação de
que o vinho está envenenado só ocorre no Tipo B:
Ex: “6.- Deitei-lhe sangue de víbora, e por cima um resalgar.”, VM/195 Anastácio (1989) 347.
A menção ao convite para o casamento ocorre no tipo A:
Ex: “9.- É verdade, ó Juliana, é verdade que me vou casari. // 10.Venho-t’a convidari p’ra
ass’stires ò meu jantari.”, VM 229 Cruz (1995) 183-184.
322
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Motivos de outros romances
Não me enterrem em sagrado :
M258.4. Dying man asks for promise that he be buried in spot he has chosen.
Ex: “19.- Laurisberta, s'ê morrer, nã m'enterres em campo sagrado, // 20.enterra-m'ó pé da
roseira onde fostes enganada.”, VM/59 Ferré (1982) 184-185 (e outras madeirenses).
Quem Dever a Honra Alheia:
E413.1. Faithless lover killed, returns to warn other man not to act as he had. His
assassin must not pray for him. He spends nights in hell gathering wood to burn his soul
during day.
Ex:
- “15.Eu venho dar bons conselhos a quem nos quiser tomar, // 16.a quem deve a honra alheia
não s'espera de salvar, // 17.nem com ouro nem com prata, nem com outra qualquer fazenda, //
18.senão corpo com corpinho ond'a su'alma não pena.”, VM/64 Ferré (1982) 187-188.
- 25.“Eu venho do outro mundo, Beliana, te falare //26.Quem dever a honra alheia, que à trate de
pagare // 27.Não se paga com dinheiro, nem tão-pouque com fazenda // 28.Paga-se corpo com
corpo, p'a qu'a su'alma não pena // 29.P'a qu'a su'alma não pena, com'a minha está a penare //
30.Todo dia acarto lenha, à noite vou-a queimare”, VM/222 A. Sousa/D. Sousa/F. Oliveira
(1993) 47-48.
SILVANA
K1227.1.1 - Incestuous father puts off until daughter bathes and dresses.
Obs.: Surge em algumas versões.
Ex: “10. vou lavar as minhas pernas, vestir as alvas camisas”, S/16 Ferré (1982) 207-208.
T411.1.5 – a) Father desires daughter sexually. b) She consents but asks what of divine
punishment. c) She dies, angels carry her to heaven; d) Virgin shrouds her.
Obs.: Embora o Motif-Index o relacione para Silvana, o motivo completo só é aplicável
323
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
às versões compósitas de Silvana e Delgadinha, pois no primeiro a protagonista não
morre. Por isso, dividimos o motivo em alíneas:
a) “3.- Dá-me o teu corpo, Silvana, dá-me o teu corpo, filha minha.
b) 4.- Meu corpo sim eu lho dera, meu corpo sim lho daria.
5. mas as penas do Inferno, meu Deus, quem as passaria?”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
As alíneas c) e d) pertencem ao prolongamento de Delgadinha (cf. motivos em
Delgadinha).
T411.1.6 - Father desires daughter sexually. If she were to consent, he would reward her
richly.
Obs.: O motivo é apontado no Motif-Index para Silvana, mas, no nosso corpus, a
segunda parte (“he would reward her richly” a equivaler a “vesti-la de ouro e prata”) ocorre
apenas em versões compósitas com Delgadinha. (cf. Motivos em Delgadinha).
Ex: “5. Bem puderas vós, Aldina, ser a minha namorada, // 6. eu te vestiria de ouro, de prata
fina lavrada.”, S+D/2 Braga (1869)/Braga (1982) 193-196
Q260.1609 - a) Father punishes daughter for denouncing his incestuous demands. b) Her
mother takes her place in husband’s bed. c) He locks daughter in tower with little food
and water.
Obs.: O motivo completo só é aplicável às versões compósitas de Silvana e Delgadinha;
por isso, dividimos o motivo em alíneas:
a) “Father punishes daughter for denouncing his incestuous demands” - Silvana +
Delgadinha. Ex: “17.- Chegou-se p'ra sua mãe, que seu pai la cometia. // 18.E logo presa,
Gaudina, numa torre gradeada.”, S+D/4 Azevedo (1880) 112-115.
b) “Her mother takes her place in husband’s bed” - Silvana. Ex: “15.- Cala-te lá, ó
Silvana, que isso remédio teria, // 16.eu vou deitar-me à tua cama e tu vai deitar-te à minha.”,
609
No Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero, Index of Ballad Titles (p. 223), a
lista de motivos da Silvana indica o Q260.2., o que cremos dever-se a um qualquer erro, uma vez que este
não se encontra na descrição geral dos motivos (p. 100), mas sim o Q260.1, que aqui incluímos.
324
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38.
c) “He locks daughter in tower with little food and water” - Delgadinha: “6. Logo o pai
prendeu Alvina dentro dua torre fechada // 7. E deu-lhe pedras de pão e de beber água salgada.”,
D/235 Xarabanda (1995) 32-33.
Motivos de outros romances
Queixas de D. Urraca:
P17.14. Moribund king divides realm among sons, omitting daughters. Daughter
protests; will sell body to pay for father’s masses (She will wander the earth. No man
will respect her).
Ex:
- ”26.- Rei que ‘tás para morrer, Deus te tome parte na alma! // 27. Repartistes os teus bens e a
mim não me destes nada.”, S/12 Purcell (1976b) 57-59;
- “21.- Ê vou-me por aqui abaixo muito triste e mal fadada; // 22. vou pècurá roca e fuso, que
mulhé nã tem outra arma.” , S/33 Fontes (1996) 120-121.
Afuera, afuera Rodrigo:
T55.1.4. Princess reminds knight of her father’s gifts to him. Reproaches him for taking
her property now.
Ex: ”29. - Tu nã te lembras, Rodrigues, daquele tempo passado, // 30. qu'o rei era tê padrinho e
tu eras seu afilhado // 31. e eu te dei esferas douro para te ver aumentado, // 32. e p'agora vires
buscar todo o meu novo estado?”, S/33 Fontes (1996) 120-121.
A filha desterrada (D. Maria) ou Nave guiada por la Virgen:
S411.5. Woman banished. Daugther banished for faliing in love with lowly captain.
King puts her in boat out to sea”. (Terceira parte do motivo)
Ex: “13. Mandou fazer uma naua mais alta qu' a maravilha, // 14. para imbarcar Silvana, muito
só sem companhia.”, S/10 Purcell (1976b) 17-18.
325
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
DELGADINHA
Q257.1. - Father punishes daughter for refusing his incestuous demands. Locks her in
tower with little food and water.
R41.2.1.1. - Daughter locked in tower for refusing her father’s sexual advances. Locks
her in tower with little food and water.
S322.1.3. - Father imprisons daughter when she will not have sexual relations with him.
She dies.
T411.1 – Lecherous father. Unnatural father wants to marry his daughter.
L54.5 – Youngest daughter is victim of father’s incestuous demands. She refuses him.
*T411.1.6. - Father desires daughter sexually. If she were to consent, he would reward
her richly.
Obs.:
Estes motivos são equivalentes em termos de intriga; a proposta incestuosa e o castigo
da filha (aprisionamento + privação de alimentos e água) estão presentes nos Q257.1. e
R41.2.1.1. O aprisionamento e a morte de Delgadinha no S322.1.3.
Ex:
“1.- Galdina, minha Galdina minha rica prenda amada, // 2.tu tens sido minha filha, vais ser
minha namorada. // 3.- Nã permita Jesu Cristo, nem na hóstia consagrada, // 4.ser manceba de
meu pai, de minhas irmãs, madrasta. // 5.Mal lo disse, el-rei la prende, numa torre castelada, //
6.um quarto de pão por dia, de beber, água salgada.”, D/3 Azevedo (1880) 109-112.
“37.Quando os criados lá chegaram, já estava morta na sala,”, D/186 Ana Martins/Ferré (1988)
83-84.
T411.1. – O casamento com a filha está implícito em certas versões:
- “pedir a mão direita”: “38. eu pedi-te a mão direita, tu não ma quiseste dar.”, D/1 Braga
(1867) 181-183;
326
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- “não querer ser madrasta das irmãs”: “3. - Nã permita Jesu Cristo, nem na hóstia
consagrada, // 4.ser manceba de meu pai, de minhas irmãs, madrasta.”, D/3 Azevedo (1880)
109-112.
O motivo “filha perseguida pelo pai”, que sustenta a narrativa de Silvana e de
Delgadinha, tem o sentido correspondente no Tipo AT 510B, The Dress of Gold, of
Silver and of Stars (Cap o’Rushes), no qual o pai quer casar com a filha610. Contudo, ao
contrário do que acontece no conto, o romance é “realista”, no sentido em que tal
casamento é impossível e, de resto, o objectivo deste pai não é casar com a filha, mas
apenas ter relações carnais com ela, pelo que as expressões usadas são, sobretudo,
eufemismos para uma situação na qual, em última instância, Delgadinha ocuparia o
lugar da mãe, equivalendo a um casamento com o pai.
L54.5 - Nas versões portuguesas a filha pode ser a mais nova (a), mas também a mais
velha (b) ou, simplesmente, a mais bonita (c).
Ex:
(a) “1. Era um homem tinha três filhas, todas três mais lindas que a prata, // 2. a mais nova
delas todas Valdevina se chamava.”, D/19 Nunes (1928) 231-232.
(b) “1. Era um rei, tinha três filhas, mais lindas que a prata // 2. namorou-se da mais velha,
que se chamava Galdina.”, D/2 Azevedo (1873) 767.
(c) “1. Um rei, que tinha três filhas, todas lindas como a prata, // 2. a mais bonita delas todas
Valdevina se chamava.”, D/21 Joaquim Lima/ /Pires Lima (1943) 25-26.
610
De entre os chamados “Ordinary Folktales”, os nrs. 500-559 são, segundo Thompson, os dos
“Supernatural Helpers”, nos quais conta os de “filha perseguida”, que são Cinderella and Cap o’Rushes
(AT 510), Cinderella (AT 510 A), The Dress of Gold, of Silver, and of Stars (AT 510 B). O “perseguidor”
varia entre “a madrasta” e “o pai” que quer casar com a filha. Cf. Thompson [1987]. O tipo 510 B é
referenciado, no Index of Portuguese Folktales, que segue Uther [2004], como Peau d’Âne, cuja primeira
sequência (e variante que aqui nos interessa) é: I. The persecuted heroine. Girl runs away in disguise, (a)
because her father wants to marry her; o 510 B* (classificação de APFT) é The Princess in the Chest, cuja
sequência I é: Wishing daughter for wife. widowed king (pope, old man) wants to marry his daughter.
[….]. Cf. Cardigos [2006]. Na Introdução à selecção de texto comentados dos contos geralmente
conhecidos como “da Gata Borralheira”, Francisco Vaz da Silva divide-os em quarto subgrupos,
apresentando o segundo, que faz corresponder ao 510 B, e a que chama “Maria Peluda”, como os da
“jovem que é a fiel imagem da sua mãe e pela qual o pai se apaixona. Cf. Silva [2011].
327
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
T411.1.6. - O motivo “prometer vestir de ouro e prata” em troca de favores sexuais
ocorre com maior frequência nas versões que substituem a proposta do pai pela de um
pretendente, mas há algumas que o fazem, como nos exemplos seguintes:
- “4. - Baldebina, Baldebina, Baldebina malfadada, // 5. queres tu, ó Baldebina, ser a minha
namorada? // Que eu de ouro te vestia, e de prata te calçava.”, D/14 Lima (1914) 294-295.
- “1.- Adelina, minha filha, se tu fosses minha amada, // 2. eu de ouro te vestia e de prata te
calçava.”, D/192 Ana Martins/Ferré (1988) 90-91.
D925.1.0.2. Spring burst forth where wrongfully killed women is buried
Obs.: Não ocorre no corpus.
E231.6 – Letter in dead woman’s hand assigns evil father to death.
Ex: “29. Na sua mão direita tinha uma carta cerrada.”, D/65 Pestana (1965) 91-92.
E722.4.1 – Devils come for soul of sinful father.
E722.10 - Angels (Virgin Mary, Mary Magdalen) come to take soul to heaven.
*E722.10.1 – Angel comes for saint’s soul. She ascends.
Obs.: Ocorrência muito variável nas versões. Torna-se problemática a atribuição às
versões das subdivisões de determinado motivo indexado, como acontece com o E722.
“Soul leaves body at death”. Este motivo, de que pode apenas aparecer parte em algumas
versões ou ser narrado de formas diferentes, contém uma vertente informativa, que é a
de referir a separação da alma e do corpo, com as subdivisões a assinalar a presença de
entidades celestiais junto de Delgadinha ou de seres demoníacos ligados ao destino das
personagens; a outra vertente é valorativa, uma vez que associa as primeiras ao Bem e
os segundos ao Mal. Estas presenças aparecem em diversas combinações, das quais,
dada a diversidade das suas ocorrências no corpus, apresentamos somente, como
amostragem, as seguintes, encontradas em VRP e GRPP:
VRP:
Delgadinha está rodeada de santos, de anjinhos; a alma de Delgadinha no Céu e a do pai
está no Inferno; Delgadinha está a cantar com os anjos e o pai a arder nas fornalhas; Nossa
328
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Senhora está a vesti-la e os anjos a acompanhá-la; os anjos trazem a água; a cama está
cercada de anjos e a do pai de demónios; tem a Virgem Sagrada à cabeceira; o pai está
rodeado de diabos; está enfeitada pelos anjos e alma do pai no Inferno; está alumiada
pelos anjos, a alma do pai berra pelos outeiros e a da mãe está condenada; está nos braços
da Virgem Santa, de anjos alumiada, a alma no Céu, a do pai fica culpada; está
acompanhada de quatro anjos e é guiada pela Virgem da Guia; Nossa Senhora amortalha-a,
S. João leva-a para o céu com um tocha e o corpo do pai arde em labaredas; Nossa Senhora
amortalha-a, S. João leva-a para a Glória e o pai está em labaredas de fogo; estão presentes
sete anjos e a Virgem Maria; Nossa Senhora da Conceição amortalha-a, anjinhos levam-na
para o céu e a cama do pai está cercada de demónios; Nossa Senhora leva-a para junto de
uma fonte de prata; S. João faz a cova, Nossa Senhora amortalha-a, a cova é cercada de
anjinhos e o palácio do pai abrasado em fogo; S. João faz a cova, Nossa Senhora
amortalha-a e o quarto do pai fica abrasado em fogo; tem Nossa Senhora aos pés, que lhe
beija o rosto, a alma está no céu, a do pai condenada; Santo António era a mortalha, S.
Francisco amortalhava, os anjinhos eram as tochas que alumiavam; tem a Virgem Sagrada
junto dela, a alma é acompanhada de mil anjos, a do pai é levada por mil diabos.
GRPP:
Está cercada de anjinhos; tem Jesus à cabeceira; Nossa Senhora veste-a, os anjos alumiam;
está rodeada de anjos, há um coro de anjos e no quarto do pai berravam mil diabos; Nossa
Senhora está a vesti-la, os anjos a acompanhá-la; rodeada de anjos, a Virgem na dianteira;
rodeada de anjinhos; a Virgem a amortalhá-la; anjos acompanham-na; estão cinco mil
anjos a rodeá-la; Nossa Senhora amortalha-a, os anjos levam-na para o céu; Nossa Senhora
leva-a para o céu, os anjos amortalham-na; a alma é acompanhada de anjos; está cercada
de anjos; Nossa Senhora amortalha-a, os anjos acompanham-na; os anjos à roda, Nossa
Senhora amortalhada.
*E755.0.4. - Heaven’s bells sound for soul ascending.
E755.0.5. – Bells of hell sound for soul descending.
V115.6. – Church bells toll at moment of woman’s death.
Obs.: Os três motivos indicados utilizam o mesmo motivo tópico (sinos) e têm a
mesma função informativa - os sinos tocam -, sob designações temáticas diferentes (a
série E700-E759 é The soul [A Alma] e a V100-V199 é Religious Edifices and Objects
[Edifícios e Objectos Religiosos]). Os dois primeiros apresentam a mesma polaridade da
329
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
série E722, na qual intervêm entidades sobrenaturais benéficas ou maléficas. A sua
função é simbólica ao representar, um, o Bem que ascende ao Céu (E755.0.4.) e o outro
o Mal que desce ao Inferno (E755.0.5.). Podem ocorrer simultaneamente, como na
versão abaixo:
Ex: “35.Já os sinos do Céu chamavam, já os sinos do Inferno bradavam, // 36.- A minha alma
vai para o Céu e a sua morre abrasada!”, D/178 Galhoz (1987) 373-374.
O motivo V115.6. refere-se, mais especificamente, ao normal dobrar a finados, mas, ao
dar-se no preciso momento da morte, torna-se indicial de um prodígio (Delgadinha é
imediatamente levada ao Céu):
Ex: “ 25.- Corram todos, meus criados, levar água à Adelininha. // 26. O que lá chegar
primeiro recebe uma prenda minha. // 27. Tocam os sinos na Sé, ai Jesus, quem morreria? //
28.Foi a D. Adelininha com as paixões que trazia.”, D/49 Leite (1960) 62-63.
*T411.1.3. - Mother punishes daughter for being pregnant. Daughter’s father is father of
unborn baby. In tower without water, only salty food and drink.
Obs.: A primeira parte do motivo não ocorre no corpus.
Motivos de outros romances
O Quintado:
P551.0.1. Compassionate officer permits young recruit to return home to new bride
(affianced)
W10.4. Kindly captain grants lovesick soldier leave to marry (to be with his new wife,
his
ailing
lover).
He
must
return
in
seven
months
[years])
Ex:
“1.- Soldadinho pequenino que andas tão triste na guerra! // 2. Ou te lembra pai ou mãe ou
alguém da tua terra. // 3. Não me lembra pai nem mãe nem ninguém da minha terra; // 4. só me
lembra uma menina que dou a vida por ela. // 5. Sete anos te darei para ires falar com ela, // 6.
330
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
mas, ao fim dos sete anos, tornarás a vir à guerra.”, D/25 Delgado II (1955) 133.
VERSÕES COMPÓSITAS DE SILVANA E DELGADINHA
Motivos de outros romances
Conde Claros em hábito de frade:
K1371.4. Lover in disguise abducts beloved.
K1812.21. Count disguised as friar comes to court to rescue princess.
Ex: “51. Essa menina que aí vai inda vai por confessar. // 52. - Confessa-a lá, ó frei, enquanto
vamos jantar. // 53. - Confesse-se lá, menina, comece-se a persinar, // 54. No meio da
confissão um beijinho m'há-de dar.”, S+D/12 Leite (1960) 64-66.
GERINALDO
T91.8. - Princess invites page (steward) to her bed. Discovered by king.
Obs.: Ocorre em todas as versões, excepto se muito fragmentadas.
- “Princess invites page (steward) to her bed”:
Ex: “1.- Gerinaldo, Gerinaldo, pajem de El-Rei mais querido, // 2. Queres tu, ó Gerinaldo,
passar a noite comigo?”, G/205 Alves Ferreira (1999) 125-126.
- “Discovered by king”:
Ex: “13. Mas levantou-se o bom Rei, do leito que era dormido; // 14. Foi à cama de seu pagem,
nela não ‘stava dormido. // 15. Foi à cama da princesa,
os dois viu adormecidos; // 16.
Abraçados um com o outro, como mulher e marido.”, G/184 Lacerda (1994) 27-30.
D1813.1.1.2. - King dreams that someone is sleeping with his daughter or someone is
robbing the castle.
Obs.: Este motivo ocorre nas versões em que o rei tem um “sonho premonitório”.
Ex: “11. El-rei tivera um sonho que bem certo lhe saiu: // 12. Que dormiam co'a infanta ou
tinha o reino perdido.”, G/207 Eira (1999) 63-64.
331
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
J611.0.1. – King considers consequences of killing his daughter who has slept with a
page. He might lose his realm.
Ex: “18.- Para matar Leonardo, criei-o de pequenino … // 19. Para matar a princesa, fica o
reinado perdido …”, G/184 Lacerda (1994) 27-30.
T351.0. – Sword of chastity. A two-edged sword is laid between the couple sleeping
together.
Obs.: Ocorre quase sempre, com variação da arma.
Ex:
- “20. Meto-lhe a espada no meio para que sirva de aviso.”, G/2 Braga (1867) 18-20.
- “18. Aqui fica o meu punhal entre vós ambos metido,”, G/8, Leite (1881) 58-61.
- “17. Alfange d'oiro no meio, que se achem pressentidos.”, G/39 Leite (1958)
311-312.
M133.1. Man has vowed not to marry any women whom he has had sexual relations.
Obs.: O motivo ocorre em localidades perto da frontera com Espanha:
- “33. - No lo querra Dios del cielo ni tampoco lo querré // 34. La mujer que yo deshoje ella sea
mi mujer.”, G/28 Reinas (1957) 388-389 (Alamedilha).
- “44. - Tengo una promesa hecha a La Birgem de la Estrella: // 45. Que mujer que yo gozara, no
me casaré con ella...”, G/89 Mourinho (1984) 161-163 (Sendim).
- “14. A mulher que ele gozasse não havia de casar co'ela.” G/110 Fontes I (1987) 474-475
(Quadramil).
Q411.0.4. - King orders death of man who had sexual intercourse with princess.
Forgiven and married to her.
Ex: “-25. Ó homens da minha guarda, seja de morte punido.”, “38. Hoje mesmo na igreja, ele e
ela hão-de casar.”, G/7Azevedo (1880) 69-71.
*Q411.0.4.1. - King orders death of man who had sexual intercourse with princess; man
flees; she pursues.
T91.6.5. - Princess elopes with lover her father had ordered killed.
Obs.: Nas versões portuguesas, não é habitual que Gerinaldo fuja; no entanto, ocorre a
332
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
fuga em algumas versões, com o rei a mandar prendê-lo:
Ex: “22. Já Leonardo fugia, sai-lhe el-rei enfurecido.”, “26.- Ó homens da minha guarda, seja
de morte punido.” , G/7 Azevedo (1880) 69-71.
Se ele não foge, a infanta não irá, logicamente, atrás dele, mas o motivo ocorre em
versão de possível influência espanhola (Gerineldo y la Condesita), com a seguinte nota
do editor: “Gerineldo (í-o) + O Conde Sol (á), Sendim, informante viveu em Sevilha”:
Ex: “ 30. Ella se dispe de su ropa y se viste de zagal, // 31. se monta en su caballo, en busca de
Gerineldo vai.”, G/132 Fontes I (1987) 491-492.
Q411.0.4.2. - Lover who had had sexual intercourse with princess, asks king to execute
him for his transgression. Refused.
Obs.: Gerinaldo pede por vezes um “castigo”, mas nem sempre especifica que este é a
morte. Vejam-se os dois exemplos seguintes – apenas no segundo pede a morte como
punição:
- “26. - Aqui estou, real senhor, dai-me o castigo merecido. // 27. - Toma-a tu por tua esposa e
ela a ti por seu marido.”, G/32 Leite (1958) 302-303.
- “29. Mandai-me matar, senhor, que eu a morte tenho merecido. // 30. - Já que ela assim o quis,
que vos tome por marido.”, G/16 Pedroso (1902) 464-465.
Motivos de outros romances
O Orfão:
N128.1.1. Portentous events occur on St. John’s morning.
Q433.5.1. King imprisoned youth because princess fell in love with him.
D1275.3. Prisoner urged by his mother to sing father’s song before he is executed. King
hears song, pardons him.
O Prisioneiro:
R51.3. Prisoner’s springtime lament. Cannot see daylight. Even bird who announced
333
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
day and night is killed (has disappeared).
R51.3.1. Prisoner’s springtime lament. All the world is happy (animals in the fields,
lovers) except him because he is in prison.
Ex: “Sua mãe logo que soube, logo o veio visitar // Com as lágrimas nos seus olhos, seu rosto
vinha banhado. // - Tu não sabes, ó meu filho, o que teu pai me vem lembrando, // Quando teu
pai morreu, deixou-me recomendado, // Qu'eu te desse a bom senhor, que te desse a bom
fidalgo. // Pra eu te ver melhor fim, entreguei-te à mão do rei, // Foste-lhe falso à coroa, fostelhe cruel à sua lei. // Mas filho, pega na viola, filho pega c'onvicção, // Olha co rei está à janela,
de ti vai ter compaixão. // E canta aquelas cantiguinhas, ...................... // Que o teu pai cantava
às raparigas, na manhã de S. João, // - Ah que Deus tão cruel, mãe de tão duro coração, // Ver o
seu filho à morte, o manda tocar serão. // ‘Todos logram nos seus amores, na manhã de S. João,
// Uns com cravos, uns com rosas, outras com manjaricão. // Só eu pelos meus pecados,
sofrendo nesta prisão, // Já não sei quando é noite, nem quando é madrugada, // Senão pelos
passarinhos, quando cantam a arvorada...’”, vv. 33-50 de G/175 Galhoz (1987) 415-416.
O Conde Ninho:
T41.4. Lover sings to signal his presence.
B53.0.1. Lover’s song mistaken for siren’s song. Woman recognizes his voice.
O Conde Ninho no início de Gerinaldo não ocorre nas versões portuguesas, excepto se
por influência espanhola. Ver a sendinense G/89 Mourinho (1984) 161-163:
“1. Fué a dar agua a sus caballos, a las orillas del mar; // 2. Enquanto sus caballos bebian,
Gerineldo hecha un cantar. // 3. Que bien canta la serena, a las orillas del mar!... // 4. No es
serena, señhor, nin tampoco el su cantar, // 5. Se és Gerineldo pulido, que anda para me
engañar.”
T84.1. Queen orders death of daughter’s suitor.
E631.0.1. – Twining branches grow from graves of lovers.
D154.1.1. Transformation: woman to dove. Princess, as dove, leads hero to safety.
T86.7. Lovers die, buried in joint grave.
Ex:
“9. Rainha, como discreta, logo os mandou matar, // 10. Enterrou-o na igreja, a ela ao pé do
334
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
altar. // 11. Duma nasceu uma roseira, doutra uma árvore frondal, // 12. Um cresceu, outro
cresceu, às portas se vão juntar. // 13. Indo um dia a rainha à missa, não a deixaram entrar; // 14.
A rainha tão discreta, logo os mandou cortar. // 15. Dum nasceu uma pombinha, doutro um
pombo real: // 16. Um boou, outro boou, ao céu se foram juntar.”, G/171 Galhoz (1987) 407408.
Tivessem sido todas as versões portuguesas consideradas no Motif-Index e
considerando um índice de motivos como um arrolamento de situações ou funções
narrativas, haveria ainda que relacionar:
Em Delgadinha:
- motivos que seriam:
- “Pai acusa falsamente a filha de lhe fazer propostas incestuosas; mãe determina
o castigo”611. Ex: “9. Ora vinde, mulher minha, ver o que aconteceu: // 10. a nossa filha
Faustina de amores me prometeu.”, D/1 Braga (1867) 181-183;
- “Pedido de ajuda à família”, uma vez que fazem parte da estrutura narrativa do
romance em praticamente todas as versões da tradição oral moderna pan-hispânica
que pudemos consultar.
- “Aparecimento de água/fonte junto da jovem morta”. Ex: ”26. Delgadina já está
morta, [………………..] // 27. ao lado da mão direita tem uma fonte d' água clara.”, D/7
Pires (1901)/Pires (1982) 168);
- O motivo C.119.1.4. “Tabu: sexual intercourse during religious festival”, visto
que, embora raramente na tradição portuguesa, o pai vem da missa quando faz a
proposta incestuosa. Ex: “1. Estando dona Delgadina na sua sala quadrada // 2. e vindo
seu pai da missa”, D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168).
611
O que, sendo uma variante, não deixa de poder ser considerado um motivo, pelas funções que
desempenha.
335
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em Silvana:
- motivo que seria “enumeração dos filhos pela mãe”. Ex: “18. - Como te posso
trazer honra
quem já três vezes pariria? // 19. Um foi Dom Pedro de Castro, outro
Dom João de Castilhas // 20. e a tua filha Silvana, o que queres à tua filha?”), S/11
Purcell (1976b) 39-41.
- motivo E323.2. “Dead mother returns to aid persecuted daughter”. Ex: “7.
Encontrou a sua mãe que vinha da outra vida” , S/17 Ferré (1982) 208; “10. sua mãe dos
altos céus foi valer à sua filha.”, S/22 Ferré (1982) 209-210).
Em Veneno de Moriana:
- motivo que seria “Lamentações”; as lamentações do cavaleiro ao sentir-se
desfalecer estão tantas vezes presentes nas versões portuguesas que poderiam ser
consideradas um motivo612. Ex: “10. - Coitados dos meus meninos, que ficam sem
meu abrigo! // 11. Coitada da minha mulher, que fica sem seu marido!”, VM/4 Tavares
(1906) 313-314.
Em Gerinaldo:
- motivo que seria “O rei acorda naturalmente”. Ex: “11. Acordou o senhor rei, do
sono qu'era dormindo”, G/175 Galhoz (1987) 415-416.
- motivo que seria “O pajem acusa a infanta”. Ex: “30.- Senhor não fui o culpado,
antes fui acometido”, G/175 Galhoz (1987) 415-416.
3. Os motivos não-indexados
Uma vez que entendemos que o uso de motivos constitui um dos processos de
conferir de sentido à narrativa, analisaremos o modo como eles assumem a função de
612
Na Introdução do Motif-Index, refere-se ter sido considerado o RPI, que apresenta duas versões de
Veneno de Moriana, uma delas incluindo as Lamentações, do nosso proposto Tipo A (Can 150) e a outra
do Tipo B, que não as possui (VRP 539).
336
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“detonadores do instante significativo”613 nos romances em que se dá a sua ocorrência e
aos quais, por contraste com os arrolados em índices, chamaremos “motivos
não-indexados”. Mantendo-lhes o carácter narrativo, estes motivos têm um valor
indicial ou simbólico e diz Margit Frenk que, “el conjunto de símbolos que aparecem en las
canciones populares constituye un lenguaje, un sistema o código, y tiene que ser entendido por
sus usuários”, podendo alguns dos seus elementos ser ambíguos
614
. Simples ou
complexos, estes funcionam, então, como processos de significação, radicando num
imaginário colectivo que abrange diferentes contextos, embora, numa primeira
instância, o sentido lhes seja atribuído pelo grupo social que os usa615. Por outro lado, e
apesar da abrangência de usos e funções, as interpretações do seu sentido não serão
aleatórias, tal como não deverá, a todos eles e por princípio, ser atribuída uma excessiva
carga simbólica.
Ainda assim, sendo dotados de uma capacidade plurissignificante, os motivos, que
podem ser tópicos (“a rosa”, “o jardim”, “o pente”, “o cavalo”, etc.) ou expressar-se em
frases, como “encerrar numa torre/convento” e “não dar água/dar alimentos salgados”
para o mais abrangente “castigo cruel”, adaptam-se também ao contexto em que
ocorrem, tendo a capacidade de se “moverem” entre narrativas. Diz Clement Legaré
que “en tant qu’unité mobile, disponible et réglable, le motif peut s’éngager dans des parcours
613
A expressão é de Nuno Júdice, que encontra uma “condensação dos significados num único
significante, a que se chama motivo”. Cf. Nuno Júdice [1991], O espaço do conto no texto medieval,
Lisboa, Vega, 1991, pp. 252 e 256-257.
614
Cf. Margit Frenk [1998], “Símbolos naturales en las Viejas Canciones Populares Hispánicas”, em
Pedro M. Piñero, ed. de, Lírica Popular/Lírica Tradicional – Lecciones en homenaje a Don Emilio
García Gómez, Sevilha, Universidad de Sevilla, 1998, pp. 159-182.
615
Notamos, porém, que, embora a significação primeira dos motivos seja a que lhe é dada pelo grupo
social que o usa, tal não significa que atribuamos directamente todas as possibilidades de sentido que
adiante apontamos aos produtransmissores das versões, frequentemente iletrados. Entendemos, mesmo
assim, que os motivos utilizados nos romances partilham o núcleo de sentido implícito das possibilidades
apontadas, mesmo sem que haja uma relação evidente com estes. Assim, preferimos registá-las neste
momento e não mais à frente, ao tratarmos dos efeitos da acção dos produtransmissores que se realizam
nas versões, por julgarmos que seria mais proveitoso não só para a interpretação dos motivos enquanto
processos de significação implícita nos romances em apreço, mas também para servirem como paradigma
possível dos procedimentos de análise de outros motivos, em outros romances.
337
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
narratifs différents au gré de l’imaginaire collectif” 616. O cavalo, por exemplo, tanto pode
servir para revelar o estatuto social de quem o monta como, na sua dimensão simbólica,
anunciar um acontecimento trágico, como analisaremos em Veneno de Moriana; em
certas versões deste romance, o “jardim” é o local maléfico onde existem venenos
mortais enquanto, em Bernal Francês, é o locus amœnus onde os amantes se encontram.
Concomitantemente, o fenómeno da variação permite que um sentido possa ser
expresso por motivos tópicos diferentes; em Gerinaldo, a espada colocada pelo rei entre
os dois amantes pode ser substituída por uma adaga ou um punhal sem que se altere o
sentido do gesto.
Na sua capacidade de se deslocarem entre romances, como nos contos, os motivos
poderão
também
desencadear
associações
de
sentido,
levando
a
que
os
produtransmissores incluam versos de um ou mais romances que contenham esses
motivos em versões de outro romance, sobretudo se forem de tema idêntico ou as
situações sejam semelhantes. Veja-se o caso da versão617 que reproduzimos abaixo, na
íntegra, e que exemplifica o que foi exposto; nela encontram-se sequências e motivos de
três romances (Claralinda, Bernal Francês e A Aparição). Nesta versão,
poliassonantada e que começa como Claralinda, são próprios deste romance o motivo
da perda das chaves (vv. 12-13) e o interrogatório sobre os vários objectos de uso
masculino que o marido vai encontrando pela casa, tentando a mulher adúltera,
sucessivamente, ludibriá-lo (vv. 14-15). As pragas rogadas ao marido (vv. 5-6) ocorrem
em Claralinda e igualmente em Bernal Francês, sendo deste e não do outro romance o
616
Cf. Clement Legaré [1980], Le statut sémiotique du motif en ethnolittérature. Application à Pierre la
Fève, version québécoise du conte type AT563, Montréal, Éditions Quinze, 1980.
617
A versão em causa encontra-se classificada, em GRPP, como Claralinda, pp. 262-263 e, na pp. 286288, a mesma aparece em duplicação, como Bernal Francês. A mesma versão é reeditada como
Claralinda, com o número 31 e a indicação “estróf.; i; i”, em Idália Farinho Custódio, Maria Aliete
Farinho Galhoz, Isabel Cardigos [2006], Romances. Património Oral do Concelho de Loulé, Vol. II,
Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2006, pp. 68-69 e objecto da seguinte Nota, na p. 252: “ A versão 31
está contaminada com BERNAL FRANCÊS (i) e com A APARIÇÃO (i)”. Em BRPTOM, a versão está
classificada como Claralinda. Embora contenha versos de Bernal Francês, a versão não é integrada no
nosso corpus, tal como não o fazemos para outros romances em que possa existir a mesma situação.
338
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
motivo das promessas de morte quando metaforizadas no vestuário vermelho (vv. 1819) 618:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
36.
37.
38.
“- Ó meu cravo, ó minha rosa, meu jardim, minha flor,
Dá-me licença, menina, de falar contigo amor.
- Vem-te, vem-te, ó D. Carlitos, esta noite até mais não,
D. Roberto foi à caça para os campos de Aragão;
Más balas d' ombro esquerdo que lh' apasse o coração,
Que ele já não venha mais, qu' ele não venha mais não.
D. Roberto foi à caça para os campos de Aragão;
D. Carlinhos que entrava, D. Roberto que chegava.
D. Maria ansiada por D. Carlos se esconder
À sorte que D. Roberto não o mais chegasse a ver.
- Que é isso, D. Maria, que é isso, ó meu coração?
- Fui eu que aperdei as chaves do meu caixão.
- Se tu as perdestes de prata elas que d'oiro se farão.
Diz-me que armas são aquelas que além àquele canto estão?
- É o dole, meu D. Roberto, que me deixou meu irmão.
- Cala-te D. Maria, cala-te falsa traidora,
Por via da tua acção perdeste o sim de senhora.
Vou-te dar saia acicena, vestido de cramelim,
Gorlotina e gargolada, já que me mereceste assim.
- Eu peço-te, meu D. Roberto, que me não mates aqui;
Levarás-me a Campo Verde, darás-me assim a fim.
- Inda te faço este gosto de não te matar aqui,
Sete condes t' hão-de levar numa tumba de marfim,
A coberta que t' há-de cobrir há-de ser dum grão cetim.
D. Carlitos pensativo, pensativo sem saber
O fim de D. Maria, o fim qu' ela podia ter,
Pra disfarçar suas penas esses campos foi correr.
Indo já muito cansado duma pedra fez assanto,
Apuxou um lenço branco para alimpar suas lágrimas.
Viu vir uma velhota, e viu vir ua velhinha.
- Donde vens, ó minha velha, donde vens, ó minha velhinha?
- Venho de cima desse mundo tirando a minha esmolinha.
Conte-me lá o meu menino que paixões as suas são?
- Isso é a D. Maria, essa é que é a minha paixão.
-Essa mulher já é morta, que matar eu bem a vi,
O lugar que ela se enterrou, foi neste lugar aqui.
- Abre-te, sepultura abre-te, quero a minha amada ver.
- Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim;
618
Quanto ao castigo da adúltera de Claralinda, este salda-se, muitas vezes, por uma devolução à casa
paterna, enquanto o da de Bernal Francês é a morte, mas também aquela pode ser morta ou esta ser
levada ao pai (Cf., por exemplo, em VRP, I, a versão de Claralinda das pp. 449-450, vv. 23-24: ”matar… eu não te mato, mate-te quem te criou; // levo-te ao pai que veja a prenda que me mandou.” e a
BF/48 Leite (1960) 511, vv. 15-16: “- Eu matar-te, não te mato, - que te mate quem te criou, // Levo-te
ao pé de teu pai, - veja a filha que me dou.”.
339
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
39.
40.
41.
42.
43.
44.
45.
46.
Os olhos com que t' eu olhava fechei-os por causa de ti;
Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim,
Que a boca com que t' eu beijava por causa de ti a perdi;
Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim,
Vai ensinar aos teus filhos melhor que t' ensinaram a ti;
Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim,
Se chegares a casar casa com uma Maria como a mim,
Pra quando bradares por ela tu t' alembrares de mim.
A presença dos motivos “cravo/rosa/jardim” logo no incipit, que se encontram
também em várias versões de Bernal Francês, como adiante se verá, poderá ter
suscitado uma mistura dos dois romances, tanto mais que ambos têm como tema o
adultério 619 , levando o transmissor a fundi-los numa só versão. Esta finaliza com a
contaminação de A Aparição, o que sucede frequentemente com Bernal Francês, na
tradição portuguesa, mas não com Claralinda620.
A análise deste caso, embora sumária, demonstra que certas versões podem
resultar da partilha do sentido implícito dos motivos nelas contidos, ou resultar num
intercâmbio de significações. Em algumas versões de Bernal Francês contaminadas
com A Aparição, como a do exemplo abaixo, o motivo do vestuário como metáfora da
619
A diferença entre Claralinda e Bernal Francês é que, no primeiro, o marido regressa depois de uma
ausência breve (foi à caça ou à feira, nesta versão os vv. 4 e 7) e, com a sua própria identidade,
surpreende a mulher que tem o amante dentro de casa, enquanto no segundo se apresenta à porta vestindo
a máscara do amante. O adultério da protagonista de Claralinda é episódico e não continuado, como o é
em Bernal Francês. Em Claralinda, de facto, o adultério é narrado como dando razão ao dito “A ocasião
faz o ladrão”. Seleccionamos, como comprobatória, esta versão:
“Estando dona Filomena sentada em seu balcão,
Passa por ‘li um soldado, logo lh’apertou a mão,
- Soldadinho, agora, agora, agora é ocasião,
Meu marido foi à caça lá p’ra os campos de Aragão …”
VRP, vol. I, pp. 450-452
Também em outras versões deste romance, o amante de Claralinda vai, explicitamente, a passar à sua casa
(Cf. RPTOM, Vol. III, pp. 180-210). Já em Bernal Francês, pelo contrário, longe de se tratar de um
amante de passagem, dá-se a ideia, no decorrer do romance, de amores fiéis e continuados, ainda que
adulterinos. Será esta a razão pela qual, na versão em causa, no v. 2, parece haver um menor à vontade do
homem, que pede “licença para falar” e não que “se abra a porta”, pedido próprio de Bernal Francês mas
que ocorre também, recorrentemente, em Frei João. Note-se que, neste romance, as circunstâncias do
adultério são diferentes dos outros dois; o frade bate à porta, mas, como o marido se encontra em casa, a
mulher dá a entender ao amante que não pode abrir e engana o marido, dizendo-lhe que fala com a
forneira; logo o manda à caça e assim que o marido vai, a mulher vai encontrar-se no convento com Frei
João, mas quando regressa o já desconfiado marido sai-lhe ao caminho, confronta-a e mata-a.
620
Das quarenta e duas versões de Claralinda registadas no RPTOM apenas uma (nr. 961) apresenta esta
contaminação, em um fragmento.
340
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
morte violenta, próprio do primeiro (a), é retomado na parte que corresponde ao
segundo romance (b); os sinais da defunta que são dados ao amante que a procura (a
negrito) assemelham-se muito à oferta do marido:
(a)
15. “- Bau-te dai saia de grama, cordõu d' oiro gramasi,
16. E gargantinha coleirada; bós la causastes assi.”
(b)
23. “- A tua Aninha ié morta, ié morta qu' ieu bem na bi.
24. Os sinais qu' iela lebaba, bo-los digo já daqui:
25. Lebaba saia de grama, cordõu d' oiro gramasi,
26. E gargantinha coleirada; bós la causastes assi.”
BF/55 Pereira (1970) 243-244
A evidência de que os motivos são plurissignificantes, portadores de um sentido
implícito e, mesmo, simbólico, é observável não só neste tipo de associações executadas
pelos produtransmissores, mas também pela análise do discurso das próprias
personagens, de que se referem dois exemplos. A mulher adúltera, em Bernal Francês,
ao ouvir o marido anunciar que lhe vai dar determinados objectos (saia/colete/colar de
cor carmesim) compreende imediatamente que o sentido da oferta não é o literal, que se
referiria a uma qualquer “prenda” que este lhe trouxesse da viagem, mas o sentido
implícito na natureza dos objectos, que é a morte às mãos dele; em Gerinaldo, ao ser
inquirido pelo rei de onde vem, o pajem diz ter estado ocupado em actividades cujo
sentido literal estaria implicado pela sua condição de servo, mas as réplicas irónicas do
rei demonstram que este está a par do sentido implícito das conotações eróticas de
certos motivos inseridos nas declarações do pajem, como adiante veremos.
Os motivos desempenham, pois, funções denotativas, conotativas e simbólicas.
De facto, ainda em Gerinaldo, a infanta e o pajem tanto percebem que a espada do rei
colocada entre os dois simboliza o Poder discricionário deste, que logo agirão em
conformidade, tentando subtrair-se ao castigo. Os mesmos motivos, com o mesmo
341
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
simbolismo linear, podem, portanto, ser partilhados por vários romances e neles adquirir
funções e, até, sentidos diferentes. É o caso, por exemplo, da “porta” em Bernal
Francês e em Gerinaldo. A porta, tanto na lírica como na narrativa, é um bem
conhecido motivo de conotações eróticas, associado ao corpo feminino, simbolizando o
“bater à porta” do “amante” o desejo de nele entrar. Mariana Masera postula que entre
os símbolos amorosos que não de referente naturalístico estão o castelo, o moinho e a
porta e, deste último, diz:
“El tercer símbolo mencionado es la puerta que es el más destacado por su antigüedad,
frecuencia y polisemia. Al ser un símbolo de frontera se ha relacionado con innumerables “ritos
de paso” pues señala el límite entre lo privado y lo público, entre lo femenino y lo masculino y,
en última instancia, entre la vida y la muerte. Aparece tanto en poéticas cultas como populares,
antiguas como modernas”. [……..] “En la lírica tradicional la puerta se asocia con el espacio
privado, con la casa que era el lugar donde la mujer realizaba la mayor parte de sus tareas
cotidianas. Asimismo ésta representa, en un aspecto más general, la integridad de la familia, la
hospitalidad o la violación de las mismas según si se abre o se cierra la puerta”
621
.
A diferença entre aqueles romances, é que, em Bernal Francês, o marido subverte
deliberadamente este sentido, pois ao bater à porta para entrar, o seu fito não é, na
verdade, o desejo amoroso, mas probatório; em Gerinaldo, o pajem apresenta-se à porta
da infanta com o intuito de cumprir o desejo anteriormente expresso por ela própria; a
réplica desta (“- Ó quem bate à minha porta, ó quem é o atrevido?”, v. 9 de G/2, Braga
(1867) 18-20) será entendido como um querer certificar-se de quem se trata ou, até, de
exacerbar o desejo do amante, fazendo-o crer que bem poderia ser outro a procurá-la.
Deste modo, embora o seu sentido possa divergir, teremos, nos que nos servem de
corpus e por ordem alfabética, os seguintes motivos, fazendo notar que alguns se
relacionam entre si e, também, com outros:
621
Cf. Mariana Masera [2008], “Tradición y creación en los símbolos del cancionero tradicional
hispánico: la puerta”, Destiempos, (Julio-Agosto 2008), Año 3, Número 15, Publicación Bimestral,
México, Distrito Federal, disponível na Internet em http://www.destiempos.com/n15/masera.pdf, arquivo
acedido em 30 de Dezembro de 2009.
342
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Água: Bernal Francês, Delgadinha, Gerinaldo.
Canto: Silvana, Gerinaldo (em contaminação com D. Pedro Pequenino e com Conde
Ninho).
Cavalo: Veneno de Moriana (em “o cavaleiro”) e Gerinaldo.
Dar a mão: Delgadinha.
Espada: Bernal Francês, Delgadinha e Gerinaldo.
Filha perseguida pelo amor antinatural de um pai: Silvana (antecedente: motivo
“provocação”) e Delgadinha (antecedente: motivo “beleza).
Ocultação de identidade: Bernal Francês (máscara), Silvana (troca com a mãe),
Gerinaldo.
Jardim (motivos vegetais): Bernal Francês, Veneno de Moriana, Delgadinha,
Gerinaldo.
Luz: Bernal Francês, Delgadinha.
Mãe: Silvana, Delgadinha, Veneno de Moriana, Gerinaldo (em contaminação com O
Órfão).
Castigo: Bernal Francês (integra o motivo “oferta”), Silvana (punição moral do pai),
Delgadinha (integra “encerramento”, “água”, “luz”, “sal”), Veneno de Moriana (do
cavaleiro), versões compósitas de Silvana e Delgadinha, Gerinaldo.
Oferta: Bernal Francês (vestuário/adornos de cor vermelha), Veneno de Moriana
(vinho).
Sapato: Bernal Francês.
Sonho: Gerinaldo, Bernal Francês.
Passamos a apontar, nos romances analisados, os motivos não-indexados, o
micro-relato que lhes corresponde e a sua função.
343
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3.1. BERNAL FRANCÊS
Motivo: A máscara.
- Micro-relato: Um marido disfarça-se, de modo a fazer crer à mulher que é o
amante.
- Função no romance: Comprovar a infidelidade da mulher.
Parece estranho, à primeira vista, ainda que na escuridão propiciada pelo apagar
do candil e mesmo não o vendo há muito tempo, que a mulher não reconheça o próprio
marido. Contudo, é de presumir que este teria disfarçado o seu aspecto, vestindo a
“máscara”622 de amante. Esta poderia ser constituída pelo próprio vestuário623 ou pela
cobertura da cara com barbas e bigodes. Diz Leite de Vasconcellos que “[A] barba é
ornato mui sujeito a modas” e que “reinou entre nós barba afonsinha, cara rapada, barba
heróica, bigode e pêra, outra vez cara rapada, patilha simples, e assim por diante” 624. Segundo
Oliveira Marques, em Portugal a partir de D. Fernando e na Europa, até princípios do
622
O motivo da máscara é recorrente em literatura, com objectivos diversos. No romanceiro, destacamos
algumas máscaras: em Donzela Guerreira, cujo disfarce de homem adoptado pela protagonista destina-se
a auxiliar o pai, que não tem filhos varões para mandar à guerra, o que naquele contexto social,
constituiria uma vergonha; em A Bela Infanta, com função de teste de fidelidade (o marido, ausente
longos anos apresenta-se à mulher como um estranho; dar-lhe-á notícias em troco de a ele se entregar);
em Conde Claros em hábito de frade (o conde apresenta-se como confessor à infanta que vai a caminho
da execução e pede-lhe um beijo); como máscara de engano com o fito de seduzir, teremos A aposta
ganha (IGR 0255), cujo protagonista, aconselhado pela mãe, se disfarça de tecedeira para se introduzir no
quarto da donzela. Com um objectivo semelhante ao do marido em Bernal Francês, notamos o
estratagema do Romeiro, em Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. O Romeiro é também um marido
ausente por muitos anos e que se apresenta disfarçado, deparando-se com uma espécie de adultério, ainda
que em grau menos “culpável”. Ambos, afinal, “vestem” uma máscara que lhes permite comprovar algo
que já saberiam.
623
Refira-se, a propósito, que, em Espanha, o uso de grandes capas e de chapéus de aba larga foi proibido
em 1766, por decreto de Esquilache, ministro italiano de Carlos III, pretendendo-se a substituição daquele
vestuário tradicional pela capa curta e chapéu de três bicos. O objectivo era o de assegurar a ordem
pública, com o argumento de que os delinquentes não eram identificados, escapando à justiça, proibição
que desencadeou grandes motins. A série de revoltas, que se estenderia a diversas cidades, estalou em
Madrid, radicalizando um descontentamento provocado por uma crise de subsistência e pelas medidas
reformadoras de Carlos III, de quem se diz ter comentado “Lloran cuando los lavan”, referindo-se às
queixas dos madrilenos sobre as medidas tomadas quanto à implementação da iluminação da cidade.
Sobre estas revoltas, cf. Xavier Moreno Lara [1979], “El despotismo ilustrado”, Historia de España.
Hasta la Constituición de 1978, Bilbao, Ediciones Mensajero, 1979, pp. 208-213 e também Roberto
Fernández, Carlos III, Madrid, Arlanza Ediciones, 2001, pp. 170, 181-183 ou Maria de los Angeles Pérez
Samper [2005], “El motín de Esquilache. La Gran Crisis de Carlos III”, Historia y Vida, nr. 446,
Barcelona, Mundo Revistas, Año XXXVII, 2005, pp.70-79.
624
Cf. José Leite de Vasconcellos [1996], Signum Salomonis. A Figa. A Barba em Portugal, Lisboa, D.
Quixote, 1996 (A Barba, pp. 263-451).
344
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
século XVI, a moda era das faces glabras, sendo bizantino e muçulmano o uso dos
cabelos, bigodes e barbas compridas, moda introduzida no Ocidente pelos Cruzados625.
Note-se que o Bernal Francês do romance é associado a uma personagem histórica que
combateu os mouros, no século XV 626 , e que esta faceta, tal como o temperamento
feroz, poderiam ter sido transpostos para o “marido”. De facto, posteriormente no
romance, a mulher referirá ao suposto amante que o marido se encontra longe, por vezes
a combater os mouros, de onde poderia ter regressado barbado a uma sociedade onde os
homens usassem a face nua.
Entre os romances de adultério, o motivo da “máscara” apenas aparece em Bernal
Francês; em todos os outros, o marido enganado apresenta-se sempre com a sua
identidade real627. Obviamente, todos partilham o mais abrangente motivo “engano” e
este é largamente funcional em narrativas de fundo amoroso; visto que nos debruçamos
625
Cf. Marques [1971], p. 60.
Cf. Parte I, Capítulo I, Bernal Francês, História Externa.
627
Os “romances de mulheres adúlteras”, segundo o RPTOM, são D. Olívia, O Conde da Alemanha, Frei
João, Bernal Francês, Claralinda, A filha do ermitão, A condessa traidora, Landarico, O gato do
convento e as bodas em Paris. Partilhando o mesmo tema, em todos se desenha uma teia de amores
ilícitos e enganos, mas o sentido de cada um é diferente. Registamos aqui, num muito breve resumo, o
modo como constroem um discurso significante sobre o adultério que se afasta do de Bernal Francês:
D. Olívia – A adúltera pranteia o amante morto; a sogra adverte o filho, que vai ao local do enterro para
matar a mulher; esta confessa o seu desamor por ele, sendo do outro alguns dos filhos que teve.
O Conde da Alemanha – A princesa, sabedora do adultério da mãe, acusa o conde ao pai de a tentar
seduzir; o conde é condenado à morte e a filha considera que salvou a mãe.
Frei João – O frade bate à porta, mas, como o marido se encontra em casa, a mulher dá a entender ao
amante que não pode abrir; engana o marido dizendo-lhe que fala com a forneira e manda-o à caça; logo
que o marido sai, a mulher vai encontrar-se no convento com Frei João, mas, quando regressa, o já
desconfiado marido sai-lhe ao caminho, confronta-a e mata-a.
Claralinda – Na ausência do marido, a mulher recebe o amante; quando aquele chega a casa e vê objectos
masculinos que não lhe pertencem, a adúltera dá-lhe sucessivas justificações; ao ouvir um ruído emitido
pelo amante escondido, o marido repudia a mulher.
A filha do ermitão – N/NOTA: embora classificado como de mulheres adúlteras, as duas versões
registadas contam que há um clérigo novo que dorme com a“filha do ermitão”, mas não explicitam que
esta é casada.
A condessa traidora – O conde já velho e a condessa, que é jovem, passeiam e o conde adormece; a
condessa tenta mover o amante a matar o marido.
Landarico – semelhante ao anterior, a rainha pretende que, já que dele tem filhos, Landarico mate o rei,
mas este recusa-se.
O gato do convento – O marido, que se esqueceu da aguilhada, volta a casa e descobre um vulto na cama
e a mulher tenta convencê-lo de que se trata do gato do cura; o marido quer matar este, mas a mulher falalhe das conveniências (económicas ou religiosas) de não o fazer.
As bodas em Paris – A mulher foge com o conde ao marido, a quem teme; vai disfarçada de pastora; no
caminho, este encontra os dois e o amante tenta enganar o marido, mas o disfarce cai; ainda assim, o
marido diz-lhe que a leve e a torne a trazer.
626
345
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sobre infidelidades femininas, referimos a notável analogia do sentido pressuposto de
Bernal Francês com a décima quinta novela da segunda jornada do Heptameron628, cujo
resumo, que tomamos da tradução portuguesa629, é o seguinte:
“Por mercê do rei Francisco, um simples fidalgo de sua corte veio a desposar uma
mulher muito rica da qual cuidou tão mal, quer por ser muito novo, quer por o seu coração se
achar ausente, que ela, movida pelo despeito e vencida pelo desespero, depois de ter procurado
por todas as formas ser-lhe agradável, resolveu procurar algures reconforto para o dano que
seu marido lhe fazia”.
O seguinte excerto da novela, encontra, por sua vez, um evidente paralelo no
começo do romance - ambos os maridos, suspeitosos das mulheres, vestem a máscara
dos rivais e anunciam-se com o nome destes:
Heptameron:
“Mas o marido, tão tomado de ciúmes que nem conseguia dormir, agarra numa capa e
num criado, como ouvira dizer que o outro fidalgo levava, e lá vai ele bater à porta dos
aposentos de sua mulher. Esperando ela por tudo menos por ele, ergueu-se logo e tomou uns
borzeguins forrados, mais um manto que ali tinha à mão; e vendo que as duas ou três aias que
tinha consigo já dormiam, saiu do quarto e foi direita à porta a que ouvira bater. E perguntando
quem era, foi-lhe respondido o nome daquele a quem amava”.
Bernal Francês:
“Era uma senhora que tinha um amante e o amante era o Bernardo Francês. Um dia o
marido combinou com ela qu'ia p'ra uma feira, no Brasil, e saiu de casa. Mas ele veio à noite e
bateu à porta. E ela disse:
1. - À minha porta oiço bater, à minha porta oiço tunir,
2. s'é o Bernardo Francês, minha porta vou abrir.
628
Esta obra, possivelmente inspirada no Decameron de Boccaccio, é atribuída à rainha de Navarra, que
viveu entre 1492 e 1549 e foi editada pela primeira vez em 1558, por Pierre Boaistuau, sob o título
Histoires des amans fortunez e, um ano mais tarde, por Claude Gruget, com o título Heptaméron. Cf.
Prefácio de Walter K. Kelly [s.d.], The Heptameron of Margaret, Queen of Navarre by Marguerite de
Navarre (d'Angoulême) Duchesse d'Alençon (1492-1549), London, published for the trade, n. d.
(Translated from L'Heptameron des Nouvelles de très haute et très illustre Princesse Marguerite
D'Angoulême, Reine de Navarre Nouvelle edition, publiée sur les manuscrits par la Société des
Bibliophiles
Français,
Paris,
1853,
3
vols.),
disponível
na
Internet
em
http://digital.library.upenn.edu/women/navarre/heptameron/heptameron.html, arquivo acedido em 9 de
Dezembro de 2009.
629
Cf. Margarida de Navarra [1976], Heptameron, Editorial Estampa, 1976.
346
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3. Se é outro qualquer, daí já se pode ir.
Ele disse qu'era o Bernardo Francês e entrou. ….”
BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37
A protagonista da novela, porém, demonstra menos cegueira do que a do
romance; abre um pequeno postigo e pede ao interlocutor que lhe mostre a mão, o que
lhe permite reconhecer o marido. Outra das novelas, a sexta da primeira jornada 630 ,
apresenta maior semelhança com Claralinda, cuja protagonista ainda engana o marido
durante algum tempo, mas dela retemos, mais em particular, a analogia com o alegado
sonho tido em Bernal Francês pela mulher, ao ser confrontada com a identidade do
marido:
Heptameron:
“- Oh, meu marido, que satisfeita me sinto por terdes voltado! Estava a sonhar
uma coisa maravilhosa […]”
Bernal Francês:
16. “ - Ah! Que sonho sonhei eu, que sonhei agora aqui,
17. qu'hoje tinha mê marido, que o tinha a par de mim!”
BF/62 Ferré (1982) 160-161
Motivo: O sapato.
- Micro-relato: Uma mulher vai abrir a porta ao amante e perde o sapato.
- Função no romance: Indicar o alvoroço amoroso; prenunciar a fatalidade.
Atrás, mencionámos já o simbolismo amoroso/erótico do acto de bater à porta; no
romance, ao ir abri-la, a mulher deixa cair o chapim:
4. “ao descer da minha escada descalçou-se-me o chapim,”
BF/24 Landolt (1917) 81-82
O resumo desta é o seguinte: “Um velho zarolho, camareiro do duque de Alençon, avisado de
que sua mulher se apaixonara por um jovem, e desejando saber a verdade, fingiu que se
ausentava uns dias para o campo, de onde veio tão cedo que sua mulher, a quem, julgando que
a enganava, queria apanhar na esparrela, o enganou a ele”.
630
347
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O incidente, à primeira vista, parece um tanto inócuo e devido ao tipo de calçado
que não facilitaria um andar apressado - o quase sempre mencionado “chapim” é
“calçado feminino de sola grossa, de madeira, cortiça, etc. usado para realçar a estatura das
mulheres”631. Miguel Herrero refere-se aos chapins, na sua grande variedade, de entre os
diversos tipos de calçado usados na época abrangida na obra de Lope de Vega,
destacando que a altura de alguns dificultava o andar 632 . Diz também que, segundo
autores como Covarrubias, Argensola e Góngora, o chapim, até certa altura, era calçado
não de meninas, mas de mulheres casadas e, ainda, que, se postos em casa para alguma
visita de cerimónia, havia que tirá-los em caso de ser preciso correr. A descrição vem de
encontro à situação em Bernal Francês – ela teria posto os chapins para receber
condignamente o amante, mas, na sua pressa amorosa, ter-se-ia esquecido de os tirar
para correr à porta.
Assim, o cair do sapato633, no seu sentido mais imediato, resulta da pressa de ir
abrir a porta, o que, por sua vez, revela que o alvoroço da mulher se deve a uma
expectativa. Como o par de sapatos simboliza a harmonia conjugal, a perda de um deles
por uma mulher acorrendo ao chamamento de um homem significará que este não é o
marido634. Por outro lado, o motivo é indiciário, uma vez que o descalçar simboliza a
iminência de uma fatalidade635 e é já um prenúncio da morte que espera a adúltera. Esta
crença de que perder um sapato dá má sorte é comum e antiga, nas tradições ocidentais:
631
Dicionário Houaiss, Tomo II, p. 896.
Cf. Miguel Herrero [1977], Oficios populares en la sociedad de Lope de Vega, Madrid, Editorial
Castalia, 1977.
633
Motivos semelhantes têm funções diferentes; em Gata Borralheira, conto tradicional em que é a
heroína que se disfarça para não ser reconhecida, o cair do sapato tem como função permitir que o
príncipe o encontre e fique na posse de um elemento de identificação, que servirá depois como prova de
reconhecimento. Os motivos relacionados este incidente, em AT 510, Cinderella and Cap o’Rushes e AT
510 A, Cinderella, são: H111. Identification by garment; H36.1.Slipper test. Identification by fitting of
slipper; F823.2. Glass shoes. Cf. Thompson [1987], pp.175-179.
634
Tal como em Le Soulier de Satin, de Paul Claudel, Dona Prouhèze, ao partir para tentar encontrar D.
Rodrigo, entrega o sapato à Virgem, dizendo: “Mas, quando tentar lançar-me no mal, que isso seja com
um pé coxo .....” (apud Chevalier, Gheerbrant [1994] , pp. 585-586).
635
Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 585-586 (entrada “sapato”).
632
348
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“… es asimismo antigua la convicción de que acarrea desgracia echar a andar con un zapato
solo, o perder un zapato mientras se camina o se baja una escalera…”
636
.
Motivo: A luz
- Micro-relato: Ao ir abrir a porta ao amante, apaga-se a luz que a mulher leva.
- Função no romance: Propiciar a escuridão e prenunciar a fatalidade.
A luz está, simbolicamente, ligada à espiritualidade e é o inverso do caos 637, pelo
que, além do facto óbvio de que a escuridão propiciaria o engano da mulher, o seu
prévio apagar, por vezes repetidamente como na versão abaixo, torna-se prenúncio de
que ela vai mergulhar numa inversão dos valores sociais:
7. “No topo da minha escada, meu candil se apagou,
8. eu o tornei a acender, ele se tornou a apagar.”
BF/10 Braga (1887-1889) 108-110
O incidente do apagar da luz que a mulher leva, na maior parte das versões
proporcionada pelo “candil” (pequeno aparelho de iluminação), parece ser, geralmente,
atribuído ao Destino, como na versão acima e noutras (“apagou-se-me/apagou-se-lhe”),
mas pode ocorrer alguma variação638 quanto ao causador, se bem que mesmo as versões
que o atribuem a causas naturais, o “vento” na versão abaixo, deixem uma certa
insinuação de prodígio:
6.“Ela se levantou da cama, sua porta veio abrir;
7. veio de lá um vento norte lhe apagou o seu candil,”
BF/20 Dias (1911) 49-51
636
Cf. Pancracio Celdrán Gomáriz [2000], Creencias Populares (Costumbres, Manías y Rarezas: con su
explicación, historia y origen), Madrid, Edimat Libros, 2000; entrada sobre o sapato, pp. 432-433.
637
Luc Benoist [1999], Signos, Símbolos e Mitos, Lisboa, Edições 70, 1999, pp. 57-59.
638
Se bem que, adiante, nos venhamos a debruçar sobre a variação no sentido, preferimos, dada a
componente simbólica do motivo, indicar já aqui algumas variações.
349
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Acontece que a mulher não ache explicação ao incidente, se não a que lhe dita a
consciência pesada (alguém provoca a escuridão porque a quererá matar), o que
funciona também como uma premonição, ou, simplesmente, prefere pensar que o
amante se compraz em brincar com ela:
9. “Ou isto vai de aporfia, ou alguém me quer matar,
10. ou isto é Bernaldo Francês, que comigo quer brincar,”
BF/10 Braga (1887-1889) 108-110
Na versão seguinte, mais prosaica, diz-se que a luz é apagada a pedido do
homem, o que implica o modo ardiloso que este achou para não ser reconhecido:
3.“- Apagai esse candeeiro, que eu não 'stou capaz de ver luz.”, BF/45 Leite (1958) 416418
Revela-se, por vezes, uma certa criatividade poética na variação sobre o incidente
e, em outra versão, como se depreende da acusação implícita nas palavras da
mulher, é o homem mesmo que apaga a luz:
3.“Apagaste o meu candim pelo canudo de prata.
4.- Que me importa a mim, senhora, se a luz dos seus olhos basta.”
BF/7 Dâmaso (1882) 155-156
Neste caso, o apagar da luz não é de cariz prodigioso, como na maioria dos casos,
mas um poético pretexto (“ canudo de prata”) para a escuridão, que se torna
simultaneamente irónico, uma vez que a “luz dos olhos”, afinal, é cegueira
amorosa e reforço do sentido de acentuar a estratégia de engano adoptada pelo marido.
Em uma versão, não deixa de ser significativa a ocorrência de uma interpelação da
mulher, acusadora ao próprio candil: 5. “Ó candil de sete luzes, todas sete deste fim!”, BF/44
Leite (1958) 415-416. A referência a “sete luzes” remete para duas significações
possíveis. A primeira indicia uma reminiscência das torcidas de linho de sete fios
usadas nas “candeias do Senhor” e acesas antes do sol-posto de sexta-feira pelas donas
350
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de casa das comunidades cripto-judaicas639, devendo arder até ao fim640, ou mesmo uma
referência à menora641, que tem sete lâmpadas e cuja luz simboliza a presença de Deus,
servindo para alumiar a festa religiosa do Shabath. Neste caso, o apagar de uma candeia
desse tipo, estando a ser indevidamente usada por uma mulher adúltera, seria indicador
de que a luz de Deus a abandonava. O número sete, por si só, está também carregado de
simbolismo, com um sentido de mudança cíclica e tem mesmo qualidades mágicas,
invocado que é em fórmulas destinadas a mudar o comportamento de uma pessoa
(provocar amor, sofrimento ou dominá-la)642. A segunda hipótese possível aponta para
uma referência ao momento em que já abriu a porta e os dois estão juntos
5.”Que é isso, Bernardo Francês, que é isso meu querubim?
6. Candeeiro de sete luzes, todas sete deram fim.
7.Pegou-lhe pela mão, levou-o para o jardim”
BF/22 Mendonça (1911) 12-14
4.”Chegou ao traço da porta, apagou-se-l'o candil.
5.- Ó candil de sete luzes, todas sete deste fim!
6.Pegou nele em seus braços, levou-o ao seu jardim,”
BF/44 Leite (1958) 415-416
O “candeeiro/candil de sete luzes” seria, então, uma menção ao setestrelo, a
constelação de sete estrelas643 que deixa de ser visível um pouco antes do alvorecer, ou
639
Arriscamos esta hipótese por se tratar de versões recolhidas em Rapa, freguesia próxima de Belmonte,
c. Celorico da Beira, d. Guarda, onde existe, ainda hoje, uma comunidade de judeus. As versão em causa
são a do exemplo dado, recolhida em 1910, e a BF/22 Mendonça (1911) 12-14 (“Candeeiro de sete
luzes, todas sete deram fim.”).
640
Cf. Samuel Schwarz [1993], Os cristão-novos em Portugal no século XX, reprodução exacta da edição
original datada de 1925, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1993, p. 42 e David Augusto Canelo
[1985], Os últimos judeus secretos, Belmonte, Jornal de Belmonte, 1985, p. 93.
641
A Menorá é o candeeiro a ser usado no Tabernáculo, cujo modelo, de seis braços e uma haste central,
com sete luzes, foi dado por Deus a Moisés: “Farás as suas lâmpadas que serão sete; e acenderás as suas
lâmpadas para que dêem luz defronte dele”, Êxodo 25: 31-40; 37: 17-24. Cf. Luís Filipe Sarmento [2003],
tradução e introdução de, Tora, Lisboa, Sporpress, 2003.
642
Cf. Antonio Lorenzo Velez, “Simbologia del numero en el folklore y en la cancion tradicional”,
Revista
de
Folklore,
nr.
3,
tomo
01ª,
1981,
disponível
na
Internet
em
http://www.fundjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=37, arquivo acedido em 28 de Dezembro de 2009, pp.
27-33.
643
O setestrelo é o nome vulgar da constelação das Plêiades, as sete filhas de Atlas metamorfoseadas em
estrelas. As várias quadras ao Setestrelo que Trindade Coelho coligiu associam, tal como em Bernal
351
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
seja, quando impera ainda um lusco-fusco que propiciaria o engano – ela “vê” o amante,
mas a luz é insuficiente para ver o marido. O facto é que o candil se apaga e, ainda que
haja alguma variação quando à causa, a ocorrência do motivo no romance é tão
importante que o incidente poucas vezes é omitido nas versões.
Motivo: Os motivos vegetais.
Em Bernal Francês, os motivos vegetais que nele ocorrem têm como função
comum estabelecer a existência de um relacionamento amoroso, mas, na sua aparente
simplicidade, emprestam ao romance uma mais ampla complexidade significante. Estes
motivos são vários e neles incluímos as flores e plantas propriamente ditas, o jardim,
por ser o espaço lógico onde estas normalmente se situam 644 e os perfumes florais;
assim, ocorrem em vários micro-relatos, que sofrem variantes:
1) Motivos tópicos:
a): Cravos e rosas. b): Alecrim e manjerona
- Micro-relato: Um homem bate à porta e diz trazer/ser flores/plantas.
- Função no romance: identificação dos interlocutores entre si.
Francês, os encontros amorosos com o ambiente nocturno, como esta: “Os Setestrelos vão altos, // A Lua
já embarcou, // Abra-me a porta, menina, //Que há sete horas que aqui estou.” Cf. Trindade Coelho
[1993], O Senhor Sete, Lisboa, Vega, 1993, pp. 25-31.
644
Surgindo com a sedentarização do Homem, e num sentido mais literal, o jardim é, naturalmente, o
espaço onde crescem plantas, que aquele utiliza com fins alimentares, medicinais, aromáticos ou de
simples fruição estética. Os jardins, qualquer que fosse o objectivo principal do seu uso, são conhecidos
na Suméria, no Egipto, na Grécia ou no Império Romano, que os difundiu pela Europa, incluindo a
Lusitânia, estando documentado que o estudo das plantas, nos seus vários aspectos, foi sempre objecto do
maior interesse. Aqui, mencionaremos o estudo sobre o assunto de Sandra Mesquita, com ampla
bibliografia nas Notas e no qual, além dos da Antiguidade, são referidos os jardins árabes (lembrando em
especial os jardins do Alhambra), os hortos conventuais, os jardins palacianos e populares medievais, os
do Renascimento e a introdução de plantas dos novos continentes, com a menção à obra de Garcia da Orta
(Colóquios dos simples e drogas…), bem como o Jardim Botânico de Domingos Vandelli (1767) para
educação dos princípes e o de Coimbra (1772), também de objectivos didácticos. Cf. Sandra Mesquita
[2004], Breve História dos Hortos de Aromáticas e Medicinais em Portugal, Lisboa, Colecção Ofiúsa,
Apenas Livros, 2004. Destacamos também o estudo de João David Pinto-Correia [2008], “O Jardim
Medieval: Questão Filológica e Configuração Histórico-Literária”, em José Eduardo Franco, Ana Cristina
da Costa Gomes [2008], organização de, Jardins do Mundo – Discursos e Práticas, Lisboa, Gradiva,
2008, pp. 77-90, obra que oferece uma visão ampla e global sobre os jardins, tipos, origens,
nacionalidades e dimensão social, histórica e simbólica.
352
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
a)
- Cravos e rosas:
Em certas versões do romance, a identidade dos intervenientes é explícita, como
nas seguintes, a primeira identificando o homem e a segunda a mulher645:
1.“- Quem bate à minha porta, a esta hora de dormir?
2.- Sou Bernal Francês, senhora, p'ra vos bem querer e servir”
BF/5 Azevedo (1880) 141-145
1.“- Francisquinha diligente, vosso corpo bem gintil,
2. Abri essas vossas portas a quem costumais abrir.”
BF/52 Lemos (1961-1962) 171-173
Porém, noutras versões, o diálogo inicial menciona determinadas flores,
recorrentemente “cravos” e “rosas” e, à primeira vista, essas flores aparentam ser um
presente trazido por uma visita:
1.“- Oh quem bate à minha porta, quem bate, oh quem está aí?
2. - São cravos, minha senhora, flores lhe trago aqui!”
BF/2 Braga (1867) 34- 36
Uma vez que, nesses casos, se ignora quem são os intervenientes do diálogo,
torna-se claro que as flores servem outros sentidos; os motivos preencherão os
intencionais vazios do começo, que esconde ainda a identidade dos interlocutores,
substituindo os nomes e servindo como senha de identificação ou reconhecimento:
1.“- Oh quem bate a minha porta, oh quem bate e quem está aí?
2. Cravo roxo, minha senhora, Rosa Branca, venha aqui.”646
BF/26 Martins (1928)/Martins (1987) 224-226
Que assim é comprova-se pela imediata compreensão do seu significado que as
personagens revelam:
645
Atrás já tratámos da questão da identificação das personagens. Aqui, trata -se da substituição
dos nomes próprios, que são identificativos do género, pelo motivo flores ou plantas e do que estas
simbolizam no contexto do romance.
646
Na “linguagem das flores”, cravo roxo quer dizer “sentimento” e “rosa branca” significa “silêncio”.
Cf. s.a. [1868], Diccionario da linguagem das flores, Lisboa, Typ. Lusitana, 1868, disponível na Internet
em http://purl.pt/13929, arquivo acedido em 23 de Junho de 2011. Sentimentos fortes e secretismo são,
afinal, elementos essenciais neste romance.
353
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
1.“- Quem bate à minha porta? Quem bate? Quem está aí?
2. - São cravos, minha senhora, rosas vos trago aqui.
3. - Se sois D. Francisco d'Almada, a porta vos irei abrir;
4. Se sois outro cavalheiro, retirai-vos já daí.”
BF/32 Leite (1958) 398-399
Ora na simbologia popular das flores, sendo o cravo o homem e a rosa a
mulher647, a sua junção constitui o encontro amoroso648, razão pela qual a ocorrência de
tais motivos não só é intracontextual como dá ao ouvinte/leitor que conhece tal
simbologia a indicação das relações entre os dois falantes. Esse sentido dado ao cravo,
por vezes, é reforçado com a menção ao “amor”, como no exemplo seguinte, no qual
está implícita a intenção do homem: 2. “Cravo d'amor, minha senhora, Rosa branca, venha
abrir.”, BF/50 Leite (1960) 513-514. Este exemplo, de resto, contrasta com o seguinte, no
qual a intenção é explícita, ainda que eufemizada pelo termo “dormir”:
1.“- Quem bate à minha porta, quem bate e quem 'stá 'i?
2. - É D. Francisco, menina, que consigo vem dormir.”
BF/39 Leite (1958) 408-409
647
Se bem que a propósito da laranja e do limão, diga Luis Chaves da rosa e do cravo: “ Deve notar-se
que, assim como na heráldica folclórica da rosa, esta flor se opõe ao cravo, paralelamente à diferenciação
de sexo entre as personagens a que se aplica o símbolo da flor (rosa sempre alusiva à mulher, cravo
sempre que a poesia amorosa alude ao homem), também a laranja se opõe no mesmo significado ao
limão”. Cf. Luís Chaves, “Páginas Folclóricas: Árvores, Flôres & Frutos como o povo as vê, sente e
canta”, Revista Lusitana, XXXI, 1933, pp. 276-291. Noutra obra, o autor dedica à rosa várias páginas, ao
seu simbolismo e à associação desta flor à mulher e do cravo ao homem, com sentido de oposição e
contraste das duas flores. Cf. Luís Chaves [1943], Estudos de Poesia Popular, Porto, Portucalense
Editora, 1943.
648
“Rosa” e “cravo”, juntos, referem-se ao par amoroso e, assim, são também a noiva e o noivo, como se
comprova nas cantigas que lhes são dirigidas no dia do casamento, como na seguinte, de Penhas Juntas,
concelho de Vinhais, em 1983, cantada “pelas raparigas, que pegam os arcos, à porta dos noivos”:
“Onde foi, senhora Teresa, onde foi escolher o cravo?
Foi ao bairro do Souto, que lá estava bem formado.
Onde foi, senhor Manuel, onde foi escolher a rosa?
Foi ao bairro da Igreja, que lá estava bem formosa.
Donde vens, ó rosa branca, donde vens tão desmaiada?
Ainda há pouco eras solteira, já agora estás casada!
Oh, que lindo par eu levo aqui à minha direita!
Oh, que linda rosa branca, que lindo cheiro deita!
Viva lá, senhor Manuel, viva os anos que deseja,
Em companhia de uma rosa, que recebeu na Igreja!”
Cf. Berta Beça, António José Dias da Costa, “Loas de Casamento do Distrito de Bragança”, Revista
Lusitana. Nova Série, 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 109-150.
354
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A rosa, por sua vez, identifica a mulher em contexto amoroso, mas secreto e é um
conhecido símbolo do Amor649, sendo ofertada pelo seu apaixonado: 2.“- [São cravos,
minha senhora,] e rosas vos trago aqui.”, BF/12 Pedroso (1902) 462-463. Tendo em conta
que não é o amante, mas o marido, sabedor do adultério, que as traz650, a oferta de rosas,
sendo estas portadoras do simbolismo da regeneração, que “faz com que, desde a
Antiguidade, se deponham rosas sobre as campas”651, poderia significar que este dava ainda
à mulher a oportunidade de se “regenerar”, se porventura esta se tivesse negado a abrir a
porta a outro homem. Ela, porém, logo destrói esta (implícita ou disfarçada) esperança,
ao declarar que está disposta a fazê-lo e a alguém a quem basta identificar-se com uma
espécie de senha de reconhecimento, o que agrava o delito. No entanto, a cor dar-lhe-á
determinados significados652. Por um lado, o branco que em algumas versões faz parte
do seu nome (“2. [Cravo roxo, minha senhora,] Rosa Branca, venha aqui”, BF/26 Martins
(1928)/Martins (1987) 224-226), sendo a cor que se associa à inocência e à pureza,
parece qualificar aquela mulher isenta de pecado, o que, nesta altura do romance ainda é
credível para o ouvinte/leitor, que ainda não sabe o que se vai passar. Por outro lado, o
branco é também, ainda hoje no Oriente como o foi na Europa, a cor da morte e do
luto653. Assim, o sentido da rosa é duplo – ao ser ofertada, e uma vez que a sua
função é ser depositada nas campas, torna-se em aviso da morte para a adúltera; o
mesmo sentido tem o nome pelo qual é chamada pelo marido em várias versões (“Rosa
Branca”).
649
Cf. entrada para “rosa”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 575-576.
Nas versões que seguem com A Aparição, será o amante a interpelar a campa da amada, para que se
abra, referindo-se ainda às “rosas”: 26.”- Abre-te, ó campa de rosas, que eu nela me quero meter,” BF/104
Ana Martins/Ferré (1988) 73-74.
651
Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 575-576.
652 O significado das diversas variedades e cores da rosa é especificado em Diccionario da linguagem das
flores, que esclarece previamente que se modifica a mensagem das flores consoante são apresentadas. Cf.
s.a. [1868].
653
Cf. entrada para “branco”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 128-130.
650
355
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
b) - Alecrim e manjerona:
Em um pequeno número de versões de Bernal Francês, o diálogo inicial atribui às
personagens os nomes não de “cravo” ou “rosa”, mas de “Alecrim” e “Manjerona”; são
elas:
Versão
Localidade
1.“Alecrim bateu à porta. Manjerona: - Quem está aí?
Rosais (concelho de Velas),
2.É um cravo d' Arrochela, ó Rosa, mandai-lhe abrir!
Ilha de S. Jorge
3.- Se ele é D. Pedro de França, descalça lhe vou abrir.”
BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208
1.“O Alecrim bate à porta. Mangerona: - Quem está aí?
Minho
2.- É Cravo, minha senhora, que chegou agora aqui!”
BF/24 Landolt (1917) 81-82
1.“Alecrim bateu à porta. Manjerona: - Quem t'á aí?
Ilha de S. Jorge
2. É o cravo rosado, Sinhóra, mandai-lhe abrir.
3.Si ele é o Cravo Rosado, discalça lhe vou abrir.”
BF/53 Lemos (1961-1962) 174-175
1.“Alecrim bateu à porta. - Manjarona, quem está ai?
Beira, Ilha de S. Jorge
2.É o cravo da Rochelle; senhora, mandai-lh'abrir,”
BF/74 Fontes (1983a) 90-91
O inusitado destas ocorrências654 remete-nos para uma possibilidade, note-se que
não passível de confirmação, de estes nomes provirem do conhecimento que os
654
Noutras versões, a personagem masculina “Alecrim” é substituída por “Rosmanino” e por “Cravo”
mantendo o nome da personagem feminina “Manjerona”. Visto que essas são todas dos Açores
(uma de S. Miguel e as outras duas de S. Jorge), tal como três das quatro mencionadas e há
apenas substituição de um dos no mes, o que acontece frequentemente no romanceiro, cremos
poder incluí-las na mesma possibilidade sugerida para aquelas.
- Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel:
1.“Rosmanino bateu à porta. Manjerona: - Quem está aí?
2.Se ele é Bernardo Francês, a porta lhe vou abrir;
3.se é outro em seu lugar, digo que não quero ir.”
BF/9 Braga (1887-1889) 105-107
- Urzelina, Ilha de S. Jorge (7 d e A g o s t o d e 1 9 7 7 ) :
1.“O cravo bate à porta. - Manjarona, quem 'ta ai ?
356
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2. S'é o cravo d'Arrujela a porta le vou abrir;
3. s'é outro em seu lugar eu escuso de lá ir.”
BF/73 Fontes (1983a) 89-90
- Beira, Ilha de S. Jorge (22 de Julho de 1977):
1.“O cravo da Rochela bateu à porta. - Manjarona, quem está aí?
2. - É o cravo da Rochela. Descalça le fora abrir.”
BF/75 Fontes (1983a) 91-92
Em algumas destas versões açorianas de Bernal Francês, junta-se ao “Cravo” que bate à porta
um qualificativo cuja origem suscita uma explicação, ainda que seja hipotética, por
incomprovável, mas que se presta a ilustrar como os motivos são um dos processos de, no
romanceiro, significar para além do seu sentido mais imediato. Trata-se do qualificativo do
“Cravo” - “d'Arrujela”, “da Rochelle”, “da Rochela”-, respectivamente nas versões acima
(BF/73 e BF/75) e na BF/74 Fontes (1983a) 90-91, todas colhidas na Ilha de S. Jorge, em 1977,
conforme indicação de Costa Fontes. Com efeito, existem nos Açores localidades com o nome
de Arrochela, de onde, por associação fónica ou por deficiente audição na recolha, poderíam
provir os citados qualificativos. Porém, as localidades com aquele nome não se situam em S.
Jorge (existem várias também no Continente) mas sim no Faial, uma, e outra na Terceira,
existindo ainda o Forte de Arrochela naVila da Praia, Ilha Graciosa, o que torna menos plausível
essa origem do “Cravo” nestas versões do romance. Cf. s.a. [1988], Atlas de Portugal, Lisboa,
Selecções do Reader’s Digest, 1988 e Instituto Histórico da Ilha Te rceira, Forte de Arrochela,
em http://www.ihit/capitulos.php?id=63, arquivo acedido na Internet em 25 de Maio de 2008.
Assim, trata-se de encontrar para estes qualificativos uma justificação que tenha a ver tanto com
o local de recolha como com o sentido do romance. Parece -nos que o nome do “Cravo/amante”
das citadas versões se aproximará do da localidade francesa de La Rochelle, até porque o próprio
nome do romance, Bernal Francês, sugere a proveniência francesa do amante (como no v. 3 “ Se ele é D. Pedro de França, …”, BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208, ou o nome de “Pedro
Françoilo”, na BF/73 Fontes (1983a) 89-90, o, ainda, no questionar da mulher sobre se o amante
teria deixado alguma dama em frança, como na versão de Ponta Delgada, a BF/9 Braga (18871889) 105-107: v. 12 “ou ele tem dama em França, …”). Este nome de La Rochelle, a que em
português corresponde o topónimo “Arrochela”, conforme se verifica na notícia mais abaixo,
sobrepor-se-á à origem deste capitão dos Reis Católicos (cf. História Externa) por
acontecimentos a ele ligados e que poderão ter deixado alguma recordação nos Açores. Entre
eles, embora facto já longínquo, estariam os ataques que assolaram as Ilhas, em especial, no
caso presente, os dos protestantes franceses (A cidade de La Rochelle foi um dos locais
outorgados ao protestantismo pela Paz de Saint Germain, em 1570, quebrada, em 1572, pelos
acontecimentos sangrentos da Noite de S. Bartolomeu. Cf. s.a., Les Guerres de la Religion, em
http://histoirerochelaise.free.fr.protestants. htm, arquivo acedido na Internet em 25 de Maio de
2008). Já de 1571 nos chega a seguinte notícia: “Havendo notícia em Portugal que se armava na
Arrochela uma grossa armada de Luteranos, ordenou El-Rei que, suposto ainda não chegasse o tempo em
que por lei geral obrigava os povos a tomarem armas, se prevenissem e exercitassem para a defesa,
obrigando ao donatário da Praia, Antão Martins da Câmara, que viesse para a sua capitania, como se
manifesta da carta que lhe escreveu; e sobre o mesmo assunto escreveu ao provedor das fortificações,
autorizando-o a cortar e derribar algumas casas e quintais na dita vila, que se haviam de pagar a seus
donos de dinheiro da finta mandada estabelecer”. Cf. Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha
Terceira, Tomo I (Terceira Época, Capítulo VIII, Série dos acontecimentos que ocorreram na Terceira
entre os anos de 1570 e 1580), em http://pt.wikisource.org/wiki/Anais_da_Ilha_Terceira, arquivo acedido
na Internet em 25 de Maio de 2008. Sobre os ataques dos corsários, referimos ainda um deles, perpetrado
por um francês, René Duguay-Trouin, que se envolveu na Guerra da Sucessão espanhola, foi Cavaleiro de
S. Luis e chegou a almirante da Armada Real francesa. Sob o seu comando, no dia 20 de Setembro de
1708, uma esquadra naval, constituída por oito naus de linha e três navios corsários, todos de grossa
artilharia, atacou a Vila das Velas, na ilha de São Jorge, tendo à segunda tentativa “lançado em terra mais
de 500 homens que saquearam as igrejas e casas da referida vila”. Cf. s.a., informação sobre o autor René
Duguay-Trouin, Mémoires de Monsieur du Guay-Trouin, 1788, disponível na Internet em
http://www.liberrarus.com.br/documents/me9moires_de_monsieur_du_guay_trouin_1.html,
arquivo
acedido em 20 de Junho de 2011. Ainda como achega à possibilidade de o qualificativo desse “Cravo da
Rochela” nas versões de Bernal Francês de que nos ocupamos ter algo a ver com a localidade de La
357
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
informantes pudessem ter do texto de Guerras do Alecrim e Mangerona, de António
José da Silva. Esta obra do Judeu, de facto, não tem qualquer relação com o romance,
excepto na situação em que os dois fidalgotes vão embuçados a casa de D. Lanzarote,
na tentativa de conquistar as sobrinhas deste, D. Clóris do partido do Alecrim e D. Nise
do partido da Manjerona, daí resultando uma confusão de identidades. Há também uma
personagem, Fagundes, que tem um marido no Brasil há quarenta e sete anos. Do
hipotético conhecimento do texto (directa ou indirectamente) e fosse ele por via escrita
ou representada 655 , poderia ter resultado uma transposição dos nomes das suas
Rochelle, referimos ainda a existência, na Ilha Terceira, da capela erigida de Nossa Senhora das Vitórias,
invocação que celebra a derrota dos huguenotes no cerco daquela cidade francesa por Luís XIII. A capela,
onde se pode ver a flor-de-lis, símbolo da realeza francesa, data de 1700 e está anexa a Villa Maria,
propriedade da família Noronha, profundamente ligada à Ilha de S. Jorge, de onde provêm as versões em
causa.
Cf.
s.a.,
Capela
de
Nossa
Senhora
das
Vitórias,
em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Capela_de_Nossa_Senhora_das_Vit/Ce%B3rias, arquivo acedido na Internet
em 25 de Maio de 2008. Em Vila Franca do Campo, ilha de S. Miguel, existiu uma capela dedicada a
Nossa Senhora da Vitória. Segundo a lenda (com o número de classificação APL 1287, do CEAO), as
duas lindas filhas do Governador de Angra encontravam-se a ser educadas pelas freiras naquela vila,
quando uma delas sonhou que iriam ser capturadas por corsários, tendo Soror Boaventura profeciado que
Nossa Senhora as salvaria e à vila; antes de fugirem, foram vistas por dois argelinos espiões dos corsários,
que por elas se apaixonaram. Logrados pela fuga das jovens para a Terceira, juntaram-se ao feroz ataque
dos companheiros que atacavam a vila, tendo a intercessão de Nossa Senhora ajudado os vilafranquenses
a rechaçar os corsários, que gritavam “vitória”, pelo que foi erigida a capela com essa invocação. Cf.
Ângela Furtado-Brum, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores,
1999, A Ermida de Nossa Senhora da Vitória, no Centro de Estudos Ataíde Oliveira, disponível na
Internet em http://www.lendarium.org/narrative/a-ermida-de-nossa-senhora-da-vitoria/, arquivo acedido
em 20 de Junho de 2011.
655
António José da Silva fez representar As guerras do Alecrim e Manjerona em 1737, no Teatro do
Bairro Alto, dois anos antes de ser supliciado pela Inquisição. Após a sua morte, as suas obras - D.
Quixote (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter
e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu
(1737), Precipício de Faetonte (1738) – seriam reunidas por Francisco Luís Almeno em dois volumes
intitulados Teatro Cómico Português (Theatro comico portuguez, ou collecção das operas portuguezas,
que se representarao na casa do Theatro publico do Bairro Alto de Lisboa …., por Almeno, Francisco
Luís, 1713-1793) de que existe cópia digital em JPEG L.85752 P, em http://purl.pt/12184>,
<http://opac.porbase.org, arquivo acedido na Internet em 23 de Abril de 2008. Foi grande o sucesso do
Teatro Cómico Português, com cinco reedições até ao final do século.
O Judeu terá, ainda, escrito as suas peças para marionetas, género de representações de ampla divulgação
e gosto popular, como nota João Paulo Seara Cardoso: ” Não deixa de ser extraordinário que o Judeu
tenha escrito as suas óperas para marionetas. Como se teria apaixonado por elas, como terá entendido que
seriam os melhores protagonistas para o seu teatro, como terá adquirido os conhecimentos técnicos que
lhe permitiriam realizar os espectáculos? Já se viu que o Judeu era um espectador atento e assíduo do
teatro que passava em Lisboa, tanto mais que vivia no coração da movida teatral lisboeta.” Cf. João Paulo
Seara Cardoso [s.d.], Há na gloria padecer. Reflexões sobre a vida e obra de António José da Silva, o
Judeu, em www.marionetasdoporto.pt/Paginas/jpsc-esc_05.html, arquivo acedido na Internet em 20 de
Maio de 2008.
As guerras do Alecrim e Manjerona circularam também na Literatura de Cordel e do Catálogo de
Folhetos de Teatro de Cordel da Biblioteca do Instituto de Estudos Teatrais Dr. Jorge de Faria da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra constam os seguintes:
358
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
personagens para os do romance. A apoiar a hipótese, referimos uma versão, recolhida
pelo Abade de Baçal no concelho de Bragança, na qual a personagem masculina se
chama “Crovis”, o que nos parece uma analogia fónica com o nome “Clóris” da ópera
do Judeu, embora esta seja uma personagem feminina, circunstância que, como se sabe,
não embaraça os produtransmissores do romanceiro.
1. “- Oh quem bate à minha porta, oh quem bate ao meu postigo?!
2. Se é Bernardo Francês, a porta l'eu vou abrir;
3. S'é outro cavaleiro, já se pode despedir.
4. - Sou Crovis, minha senhora, rosas 1'eu trago aqui.”
BF/38 Leite (1958) 408
Note-se que esta versão transmontana não menciona “alecrim” nem “manjerona”,
pelo que a semelhança dos nomes fica também, necessariamente, no campo das
hipóteses. Por outro lado, Leite de Vasconcellos regista em Tolosa, no concelho de
Nisa, distrito de Portalegre, uma quadra cujos primeiros dois versos não só incluem
Nr. 931 – Guerras do alecrim e mangerona [SILVA, António José da] Guerras do alecrim e manjerona:
obra jocoseria que se há de fazer na Casa do Bairro Alto neste Caneval [sic] de 1737 – Lisboa: Officina
de António Isidoro da Fonseca, 1737. – [16], 143 p; 15 cm. JF [2-7-126].
Nr. 932 – Guerras do alecrim e mangerona [SILVA, António José da] Guerras do alecrim e manjerona:
obra jocoseria que se representou no Theatro do Bairro Alto de Lisboa, no Caneval [sic] de 1737 –
Lisboa: Offic. De Simão Thaddeo Ferreira, 1788 – p. 157-268; 16 cm. – (Theatro cómico portuguez ou
Collecção das operas portuguezas; 2). JF (3-1-53).
Cf. José Oliveira Barata, Maria da Graça Perição [2006], Catálogo da Literatura de Cordel. Colecção
Jorge de Faria, Lisboa, INCM, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.
O longo tempo que medeia entre estas produções e as versões de Bernal Francês aqui em causa tornam,
de facto, muito duvidosa uma sua correspondência directa, tanto mais que não há informações sobre a
fonte de onde os informantes teriam aprendido as respectivas lições. Sabendo-se que os romances
tradicionais são transmitidos oralmente, que “viajam” no espaço e no tempo e que, no processo, podem
sofrer variações por contaminação, até de outras composições, torna-se mais plausível que em qualquer
altura (não havendo registo escrito de versões contemporâneas das representações de As guerras do
Alecrim e Manjerona ou dos mencionados folhetos de cordel) tenha havido um contacto com a peça, quer
por via escrita (eventualmente dos folhetos) quer por assistência a uma qualquer representação, sabendose também que pequenas companhias de teatro itinerante percorriam o País, com actores ou fantoches.
Neste caso estão os Robertos, com um reportório mais específico, mas também outros teatros de
fantoches, cujos “bonecos” poderiam ter “herdado”, de algum desconhecido modo, os nomes de
“Alecrim” e “Manjerona”, ouvidos e transplantados para as personagens destas versões de Bernal
Francês. Almeida Pavão refere, precisamente, que o percurso do teatro popular (referindo-se ao
micaelense) passa, entre outras vias, pela literatura de cordel, sua oralização e retoma da forma escrita.
Cf. J. Almeida Pavão [1985], Teatro Popular Micaelense. Aspectos Genéticos e Estruturais, Ponta
Delgada, Instituto Cultural Ponta Delgada, 1985.
359
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
estes nomes como se assemelham à abertura das versões citadas 656, mas que apenas
permitem comprovar que géneros diferentes partilham motivos: “Manjerona, bate à porta,
// Alecrim, vai ver quem é, // Se é cravo, se é rosa,// Se é o meu amor José.”
657
2) Motivo tópico: O jardim.
- Micro-relato: Uma mulher introduz o amante no jardim da sua casa.
- Função no romance: Estabelecer o ambiente amoroso/erótico do encontro.
O jardim é paradigma do locus amoenus, lugar de encanto e maravilha 658 que
corresponde, em quase todas as culturas, ao local paradisíaco, com diversas
conotações659, que vão da inocência660 ao erotismo661 e entre as quais se encontra, para o
homem, a designação da parte sexual do corpo feminino. É assim que, no Cântico dos
Cânticos, ao ser comparada com um jardim fechado de inúmeras delícias, a Esposa diz:
“Entre o meu amado no seu jardim, e coma dos seus deliciosos frutos”662. Este simbolismo
656
De notar que uma quadra idêntica (“Mangerona bate á porta, // Alecrim vae ver quem é, // Se é o
cravo, se é a rosa, // Se é o meu amor José”) foi colhida nos arredores de Coimbra e registada por Neves e
Mello [1872], Musicas e canções populares, colligidas da tradição por Adelino Antonio das Neves e
Mello, Lisboa, Imprensa Nacional, 1872, na p. 84. A esta quadra refere-se Teófilo Braga, associando-a ao
começo do “romance Bernal francez na versão insulana”, na p. 431 de Teófilo Braga [1987], História da
Poesia Popular Portuguesa. Ciclos Épicos, Lisboa, Vega, 1987.
657
Vasconcellos [1975], p. 597.
658
Os perdidos jardins suspensos da Babilónia foram uma das sete maravilhas da Antiguidade.
659
Cf. a entrada para “jardim”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 382-384.
660
No jardim do Éden, criado por Deus, foram colocados Adão e Eva, em estado de “inocência” até
comerem o fruto da árvore proibida: “Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não
sentiam vergonha”, Gn 2:25. O jardim pode ser considerado um lugar onde as relações amorosas
socialmente consideradas ilícitas se revestem de uma aura de inocência primordial. Recordamos, como
paradigmático, o Paradou, em La Faute de l’A é Mouret, de Emile Zola, onde Serge e Albine,
despojados do sentido do pecado, se amam até que o jovem abade recupera a memória e abandona a
jovem, que aí morrerá soterrada sob um monte de flores perfumadas. Cf. Emile Zola [1972], O Crime do
Abade Mouret, Editorial Minerva, 1972.
661
O clássico árabe do erotismo atribuído ao xeque Umar Ibn Mohammed al-Nefzaui, denomina-se,
precisamente, O Jardim Perfumado para o Entretenimento das Almas. Cf. Xeque Nefzavi [1976], O
Jardim Perfumado, Lisboa, Europa-América, 1976.
662
Cf. Cântico IV do Cântico dos Cânticos. Cf. Bíblia Sagrada, Versão portuguesa preparada a partir dos
textos originais pelos Revºs Padres Capuchinhos, Lisboa, 1976, pp. 757-767. Ver, igualmente, José
Tolentino Mendonça [2008], tradução do hebraico, introdução e notas de, Cântico dos Cânticos, Lisboa,
Biblioteca Editores Independentes, 2008.
360
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
torna óbvia a intenção da protagonista de Bernal Francês que, antes de levar o homem
que lhe bate à porta para dentro de sua casa, o faz parar no jardim:
10.“E lo levei pola mão, à volta do meu jardim,
11. por entre cravos e rosas, fui deitá-lo par de mim”
BF/5 Azevedo (1880) 141-145
O episódio da paragem dos “amantes” no jardim ocorre quase sempre nas versões,
embora possa ser expresso de forma sumária ou alongada, como, respectivamente, nos
exemplos seguintes:
7.“peguei nele nos meus braços levei-o para o jardim,
8. fiz-lhe uma cama de rosas, deitei-o ao pé de mim,”
BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 46-49
6.“Peguei no amor pelo braço, levei-o para o jardim,
7. lavei-lhe os pés e as mãos com água do Alecrim.
8. Limpei-o a uma toalha de renda e fino amorim.
9. achei a água ditosa, lavei-me também a mim.
10. fiz-lhe uma cama de rosas e deitei-o ao pé de mim.”
BF/24 Landolt (1917) 81- 82
Nas poucas versões que o dispensam, a mulher levará imediatamente aquele que
julga ser o seu amante para o leito, logo após lhe abrir a porta:
4.“Se tu era lo João de França a porta te eu vou abrir.
5. Chegou ‘ó meio da escada apagou-se-lh' o candil;
6. puxou-le por uma mão, ajudou-o a subir
7. levou-o p’r’à sua cela, deitou-o ‘ó par de si,”
BF/25 Martins (1928)/Martins (1987) 197-198
Em qualquer dos casos, o motivo mantém o mesmo sentido663 e a mesma função,
a de deixar subentender a quase impossibilidade que essa mulher encontra em deitar-se
663
Ao motivo “jardim” em Veneno de Moriana, referir-nos-emos adiante, mas com o sentido de local de
amores, ocorre em Delgadinha, cuja protagonista, por vezes, aí se encontra quando o pai a assedia:
“'1.Stando D. Delgadinha no seu jardim assentada,
361
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
com o amante sem que primeiro o leve a dar a volta ao jardim, o que, por sua vez, deixa
implícito que os sentimentos que por ele nutre, se bem que constituam uma infracção,
ultrapassam o simples amor físico.
3) Motivo Tópico: A água.
- Micro-relato: Uma mulher lava o amante, antes de se deitar com ele.
- Função no romance: Anular a culpa.
O motivo “água”, com que a mulher lava o “amante” (e por vezes a si própria)
antes de com ele se deitar, se tomado em sentido literal, apresentaria uma feição
pragmática – o homem lava-se, porque vem empoeirado da viagem, como na versão
abaixo:
4.“Da poeira do caminho, lavou-se no meu jardim,
5. dei-lhe camisa lavada e deitei-lo par de mim.”
BF/6 Azevedo (1880) 145-150
Raras vezes, contudo, a cena é um mero preceito higiénico, antes prevalecendo o
aspecto simbólico da água. Esta é fonte de vida, meio de purificação e de regeneração;
segundo o Dicionário dos Símbolos “As significações simbólicas da água podem reduzir-se
a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência”664. O
sentido da purificação pela água está também presente na Bíblia: “Derramarei sobre vós
2.Com pente d'oiro na mão Oh! Tão linda! Seu cabelo penteava.
3. Apareceu seu pai-rei, Oh! Tão linda! Por amores a tratava.”
D/56 Leite (1960) 77-80
Também no jardim, mas com o sentido de espaço familiar, em algumas versões, estão as irmãs, a mãe ou
o pai de Delgadinha, contrastando a amenidade do local com o espaço de encerramento onde aquela se
encontra:
“10.Subiu à mais alta janela a ver quem ali estava;
11.estava sua irmã mais nova, no seu jardim assentada.”
D/21 Joaquim Lima/ Pires Lima (1943) 25-26
664
Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 41-46. Sobre “As Águas e o Simbolismo Aquático”, sintetiza
Mircea Eliade o seguinte: “Qualquer que seja o conjunto religioso de que façam parte as águas, a função
delas é sempre a mesma: elas desintegram, extinguem as formas, ‘lavam os pecados’, purificando e
regenerando ao mesmo tempo.” Cf. Mircea Eliade [2004], Tratado de História das Religiões, Porto, Asa
Editores, 2004 (Capítulo IV, pp. 243-275).
362
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os
pecados”, Ez 36:25. Deste modo, o motivo da lavagem no romance adquire o sentido de
um rito que é cumprido, pois com estas abluções, a mulher parece, implicitamente,
isentar o amante do pecado e da culpa; este sentido, e o de querer tomar para si a
responsabilidade do sucedido, torna-se mais evidente nas versões em que o marido
declara que não pretende matá-la, mas sim devolvê-la ao pai (“17. - Que culpas tem-no
meu pai ao mal que a filha causou?”, BF/48 Leite (1960) 511).
À água da lavagem juntam-se flores ou plantas aromáticas665, pelo que o motivo
se alarga para “lavar com água perfumada”. A planta mais utilizada para o fazer é o
alecrim, que é uma planta um tanto selvagem666, o que lhe confere conotações com uma
certa liberdade destituída de peias sociais667, sentido que se adapta bem ao de Bernal
Francês, não no que diz respeito ao moralismo implícito no desfecho, mas ao da
infracção que constitui a sua razão de ser. De facto, o alecrim é oloroso e estimulante668,
665
“O uso de plantas aromáticas (inteiras ou suas partes como folhas, cascas, sementes e seus produtos
extrativos como as resinas), é tão antigo quanto a história da humanidade, sendo empregadas na medicina,
na cosmética e em cerimônias religiosas. […] Não eram utilizados os óleos essenciais propriamente ditos
e sim soluções aquosas e alcoólicas.” Cf. Vanderlí F. Marchiori [2004], Monografia de Rosmarinus
officinalis, Fitomedicina Herbarium – julho / 2004, Fundação Herbarium, Associação Argentina de
Fitomedicina,
disponível
na
Internet
em
http://www.plantasmedicinales.org/archivos/rosmarinus_officinalis_romero___monografia.pdf, arquivo
acedido em 23 de Junho de 2011.
666
Como diz o bem conhecido Alecrim aos molhos do Cancioneiro, o alecrim “nasce nos montes sem ser
semeado”. Cf. Vasconcellos [1975], p. 121. O alecrim (Rosmarinus officinalis L.) é um arbusto comum na
região do Mediterrâneo, cujas numerosas propriedades e aplicações podem ser consultadas em s.a.,
Rosmarinus
officinalis
L.
(alecrim),
disponível
na
Internet
em
http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/Rosmarinus_officinalis.htm, arquivo acedido em 20
de Junho de 2011.
667
Na “linguagem das flores”, enviar uma haste de alecrim significa “Quero falar-te”. Cf. s.a. [1868],
Diccionario da linguagem das flores,
Lisboa, Typ. Lusitana, 1868, disponível Internet em
http://purl.pt/13929, arquivo acedido em 23 de Junho de 2011.
668
“O alecrim é usado há séculos como tônico dos nervos, em casos de debilidade, exaustão nervosa e
membros temporariamente paralisados. Age em pessoas hipersensíveis. É usado para ajudar a aliviar a
depressão e a melancolia, devido ao seu efeito estimulante. É um relaxante mental. [….] É revigorante,
agindo como excelente tônico da energia “yang” do corpo, capaz de promover a circulação sangüínea,
estimular o fluxo do sangue arterial do coração, regular palpitações, pressão arterial baixa, mãos e pés
frios”. Cf. Marchiori [2004]. Muitas outras utilizações poderiam ser referidas para o alecrim, várias vezes
mencionado em Ana Gomes de Almeida, Ana Paula Guimarães, Miguel Magalhães [2009], coords., Artes
de Cura e Espanta-Males. Espólio de medicina popular recolhida por Michel Giacometti, Lisboa,
Gradiva, 2009 e também as que lhe são atribuídas pelo ervanário José Salgueiro [2010], Ervas, Usos e
Saberes. Plantas Medicinais no Alentejo e outros Produtos Naturais, Lisboa, Colibri, 2010, pp. 55-57.
Destacamos um certo receituário médico, que o utilizava para a enfermidade “dores de cabeça”, para a
363
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
e a unção com perfumes, em muitos contextos, é associada aos actos de amor 669 ; a
sequência que integra o motivo e que descreve os cuidados prestados ao amante, fá-lo,
na maioria das vezes, de uma forma que, sendo lírica, não é isenta de sensualidade,
parecendo uma preparação do amor carnal que se seguirá, como é notório nos exemplos
seguintes, mesmo no quase laconismo do segundo:
6.“Lhe lavara pés e mãos, com bela água de alecrim;
7. uma gota que ficara, lavara também a si.
8. Vestira-lhe uma camisa, como quem vestira a si,
9. fizera cama de rosas, o deitara a par de si.”
BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208
6. “lavou-o de mãos e pés em águas d’alecrim,
7. Fez-lhe uma cama de rosas, deitou-o em par de si.”
BF/7 Dâmaso (1882) 155-156
No entanto, o alecrim, tal como a água, é um purificador670, o que vem reforçar o
sentido de “anular a culpa”; como, em certas versões, também ela se lava, inclui-se a si
própria neste ritual de purificação, mesmo que, como no segundo dos exemplos que
seguem, tal fique apenas sugerido:
5.“Levei-o p'r'à minha sala, da sala para o jardim;
6. lá lhe lavei pés e mãos, com água de alecrim.
qual se prescrevia “um saquinho, coifa ou barrete para trazer continuamente na cabeça em que entrem
alecrim, rosmaninho, rosas vermelhas, sementes de coentro, nós moscada, cravinhos da índia metidos
num pano de seda vermelha” completando-se o tratamento com defumadouros, sinapismos e banhos. O
receituário é de Portugal Médico, de 1726, da autoria de Brás Luís de Abreu, o médico judeu perseguido
da Inquisição e cuja atribulada biografia inspirou O Olho de Vidro a Camilo Castelo Branco. Cf. Maria
Antonieta Garcia [2006], “O drama de Brás Luís de Abreu – o médico, as malhas da Inquisição e a obra”,
em Medicina na Beira Interior da Pré-História ao Século XXI, Nr. 20, Castelo Branco, Cadernos de
Cultura, 2006, pp. 5-23.
669
No salmo 45, cântico de núpcias, louva-se o rei com as palavras “Mirra, aloés e cássia perfumam
os teus vestidos”. Cf. Bíblia Sagrada, v. 9, SI 45.
670
O alecrim é uma das plantas utilizadas en rituais de purificação, e lembremos o seu uso nas fogueiras
de S. João, mas também em templos e igrejas. Além do uso religioso, o alecrim é utilizado nas práticas de
Benzer contra as “Pragas Rogadas” e contra o “Mal de Inveja”, acompanhado de ensalmo, conforme é
descrito por Aurélio Lopes e cujo processo completo, por longo, nos dispensamos de transcrever, apenas
mencionando que integra “quatro pequenos ramos compostos de alecrim, arruda e tasneirinha”. Cf.
Aurélio Lopes [1998], “As práticas Mágico Curativas”, em Medicinas Alternativas do Ribatejo.
Comunicações apresentadas ao I Congresso/1994, Alpiarça, Garrido Artes Gráficas, 1998, pp. 25-51.
364
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
7. Conforme o lavei a ele também me lavei a mim;
8. levei-o p'r' à minha sala, deitei-o ao pé de mim.”
BF/21 Gomes Pereira (1911) 131-132
3.“Se é outro cavaleiro, lá fora não posso ir.
4. que estou lavar os pés com aguinha de alecrim.”
BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 40-42
Certo é que ela sabe que é culpada, pelo que o motivo é ambíguo; se, lavando-se,
poderá desejar “purificar-se” antecipadamente do pecado que vai cometer, por outro
lado, unge o amante, querendo talvez honrá-lo, em contraste com o conhecido episódio
bíblico da “pecadora” e Jesus671, embora, ao contrário desta, sem se arrepender – na
verdade, ao ser confrontada com a identidade do marido, quer peça a morte quer peça
perdão ou o tente enganar, nunca exprime, explicitamente, arrependimento.
4) Motivo tópico: Cama de rosas
- Micro-relato: Uma mulher faz a cama com rosas (e outras plantas) para se
deitar com o amante.
- Função no romance: agravar o sentido da infracção conjugal.
O motivo da “rosa”, já presente no início de certas versões, como atrás se disse,
reaparece no decorrer na intriga, mas agora num sentido menos platónico, uma vez que
a flor servirá para fazer a cama onde a protagonista se deita com o pretenso amante.
7. “peguei nele nos meus braços levei-o para o jardim,
8. fiz-lhe uma cama de rosas, deitei-o ao pé de mim,”
BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 46-49
671
A unção com perfumes serviu à “pecadora” para, sem palavras, demonstrar a Jesus o seu
arrependimento, como conta S. Lucas: “37. Ora uma mulher, conhecida como pecadora naquela cidade,
ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com perfume; 38.
colocando-se por detrás d’Ele e chorando, começou a banhar-Lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com
os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume”. Lc 8; 37-50. Jesus perdoa-lhe os pecados, dizendo ao
fariseu, que se mostrara desagradado com a cena, que ele, em sua casa, nem a cabeça lhe ungira com óleo,
enquanto ela, a pecadora, o honrara, ungindo-lhe os pés com perfume. Lc 8; 37-50.
365
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A rosa é, como se disse, um símbolo do amor e juntar-se-á ao alecrim, com o qual,
aliás, também se faz a cama; ao ritual da purificação junta-se o ritual amoroso, ligado ou
não ao acto de lavar, como é observável, respectivamente, no primeiro e no segundo dos
casos seguintes:
8.“Ela lhe pegou pela mão, o levou ao seu jardim;
9. lavou-o com água de rosas e depois com alecrim;
10. e levou-o p’r’à sua cama e deitou-o ao pé de si.”
BF/20 Dias (1911) 49-51
7. “Pegou-lhe pela mão, levou-o ao seu jardim,
8. cama de rosas lhe fez misturada de alecrim”
BF/110 Falcão/Ferré/Morna (1988) 222
Em algumas versões, há ainda a presença de outras plantas, como é o caso do
jasmim672:
8.“fiz-lhe uma cama de rosas, rodeada de jasmins;
9. lavei-o em água de flores e deitei-o a par de mim.”
BF/1 Garrett (1828) XXVI-XXXII
7.“lavei-lhe os pés e as mãos com aguinha de alecrim.
8. e também lhe lavei o rosto com aguinha de jasmim,”
BF/13 Pedroso (1902) 463-464)
A junção do jasmim à água das abluções ou à feitura da cama irá fazer
desvanecer o sentido da purificação para fazer prevalecer o sentido amoroso, uma vez
que a planta está ligada a este, sendo usado em feitiços de amor673.
672 O
jasmim é o nome comum pelo qual são conhecidas as espécies do gênero Jasminum, da família
Oleaceae. O seu óleo é o usado em perfumaria e considerado por alguns como afrodisíaco. Cf. s.a.,
Jasmim, disponível na Internet em http://www.plantasmedicinaisefitoterapia.com/plantas-medicinaisjasmim.html, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011.
673
Cf. , por exemplo, o que é afirmado em s.a., Jasmin (Jasminum officinale ou Jasminum
odoratissimum),
disponível
na
Internet
em
http://www.astrologosastrologia.com.pt/wicca=temas2/a&ewicca=46=poder_e_magia_das_plantas.htm,
arquivo acedido em 20 de Junho de 2011.
366
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Motivo: A oferta de adornos.
- Micro-relato: Um marido anuncia à mulher infiel a oferta de adornos de cor
vermelha.
- Função no romance: Anúncio de que vai ocorrer uma morte.
O marido enganado, nos romances orais tradicionais, poucas vezes é complacente
ou escarnecido, antes vinga a sua honra674. Se bem que, em algumas versões, se limite a
entregar a mulher ao pai ou a remeter a punição para Deus 675, o destino da mulher
adúltera, em Bernal Francês, é a morte. Na verdade, o marido não a mata
imediatamente, mas adia o momento para a madrugada. Tão-pouco a morte é
explicitamente referida, mas anunciada pelo motivo da “oferta”676, que consta de certos
adornos (“gargantilha colorada” ou, mais explicitamente, “gargantilha de cutelo”) e
roupas de cor vermelha, que não são senão metáforas da degolação e das manchas de
sangue provenientes dessa morte violenta:
19.“Deixa vir a manhãzinha que eu te darei que vestir,
20. darei-te saia de lã, roupinha de carmezi,
21. gargantilha encarnada, porque a quiseste assi.”
BF/11 Pires (1899)/Pires (1982) 183
Raras vezes acontece a substituição deste sentido implícito por uma declaração
explícita, embora esta se possa pode dar, como na versão seguinte:
22.“Manhã que era chegada, ele que a degolava”, BF/7 Dâmaso (1882) 155-156, v. 22
O sentido implícito do motivo é amplamente reconhecido, como já se referiu,
mesmo pela protagonista, se bem que a mulher possa começar por não o entender ou
674
A problemática da honra conjugal lavada com sangue foi abordada na Parte I, Capítulo IV. Para uma
perspectiva axiológica nos romances.
675
Esta atitude é mais frequente em outros romances de adultério, como em Claralinda, pelo que as
versões de Bernal Francês que apresentam esta solução/desfecho tê-la-ão tomado do outro romance,
como importação semântica tendente a suavizar um final sangrento.
676
Em Veneno de Moriana, o motivo da “oferta” consta de vinho que, sendo envenenado, é também uma
oferta de morte.
367
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
fazer-se desentendida 677 , apresentando algumas versões a seguinte continuidade
narrativa: o marido revela-se, anuncia o dito vestuário, ela diz que não o quer e, logo a
seguir, pede a morte, o que indicia não ter compreendido o sentido metafórico da oferta.
Na BF/38 Leite (1958) 408, por exemplo, ao marido que diz “Mandarei-te saia de
Holanda, roupinha de carmesim” (v.11), responde ela que “Nem te quero saia de Holanda,
nem roupinha de carmesim” (v.12), como se julgasse ir literalmente receber esses objectos
e, assim, continua: “Quero que me dês a morte qu’eu assi ta mereci” (v.13).
O sentido do motivo ultrapassa ainda o do acto passional de matar imediatamente
a mulher678, pois as circunstâncias apontadas (cor do vestuário e adornos, hora e tipo de
morte) parecem indiciar que se tratará de uma execução de alguém de condição social
elevada, levada a cabo por outrem com autoridade para o fazer679.
3.2. VENENO DE MORIANA
Motivo: O cavaleiro/O cavalo.
- Micro-relato: Um homem a cavalo aproxima-se de uma mulher.
- Função no romance: Referenciar estatutos e preconizar o desenlace.
O romance Veneno de Moriana, no tipo B, inicia-se com a expressão “Apeia-te, ó
cavaleiro” e no tipo A, iniciado com o diálogo mãe/filha, ocorre o verso “- Minha mãe, lá
vem D. Jorge no seu cavalo montado”, como em VM/7 Martins (1928)/Martins (1987)
251-252 ou similar; em qualquer dos casos, é claro que o homem que se aproxima é um
cavaleiro, mas parte do motivo “o cavaleiro” é, naturalmente, um dos seus atributos - o
677
Lembramos que, em outras versões, a tentativa da mulher de ludibriar o marido passa por dizer-lhe que
teve um sonho ou/e perguntar-lhe que prenda lhe traz, sendo então tal vestuário anunciado como essa
prenda.
678
Noutro romance de adultério, Frei João, a mulher é morta no momento mesmo em que é descoberta,
apunhalada no coração.
679
Sobre o estatuto das personagens, abordaram-se já outras indicações, na Parte I, Capítulo IV. Para
uma perspectiva axiológica nos romances.
368
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
cavalo (também ele um motivo). Assim, na sua aparente simplicidade, ambos
condensam várias narrativas e revelam vários sentidos.
A sua função mais prosaica é a denotativa, enunciada do ponto de vista da
personagem – anuncia-se, na narrativa, que alguém se aproxima de um “eu/aqui/agora”,
usando, para isso, um meio de transporte, com o fenómeno da variação a permitir várias
categorias de montada, quase sempre o cavalo 680 mas também o mais humilde
burrinho681:
1. “- Deus nos salve, Dom António, no seu burrinho montado.”
VM/ 240 Xarabanda (1995) 24
Estas variações dependerão sobretudo de factores sócio-económicos, que não
afectam o sentido que faz corresponder “homem em transporte” a “cavaleiro”, mas vejase o que diz o Livro da Ordem da Cavalaria:
“[C]avalo é dado ao cavaleiro por significado de nobreza de coragem e para que seja mais
alto montado a cavalo que outro homem, e que seja visto de longe, e que mais coisas tenha
debaixo de si, e que antes seja em tudo o que se convém à honra de cavalaria que outro
homem”
682
.
Se estar montado a cavalo é estar numa posição que permite ser visto, ao ser mais
elevada fisicamente, também o é no plano hierárquico; nas designações “cavaleiro” ou
“D. Jorge” reconhece-se um estatuto social elevado, denotando, a primeira, uma
680
Mais adiante no romance, bebido o vinho, o cavaleiro queixar-se-á de já não ver o seu “russinho” ou
“rucinho” (conforme transcrição das versões). Carvalho Rodrigues, na VM/199 Carvalho Rodrigues
(1990) 218-219 transcreve na primeira opção (“Estava coa rédea na mão, já não vejo o meu Russinho”),
anotando: “Russinho deve entender-se como deturpação do termo castelhano «rocino»,[…..] uma vez que
há semelhança entre a estrofe castelhana e a nossa.”. Julgamos, no entanto, que poderá tratar-se do
diminutivo de “ruço”, cor esbranquiçada da pelagem de certos cavalos. Ver Elwyn Hartley Edwards
[2006], Grande Livro do Cavalo, Londres-Porto, Dorling Kinderley-Civilização Editores, 2006.
681
Também Whitaker Penteado transcreve parte de uma versão de Goiás, recolhida por Regina Lacerda,
na qual “D. Jorge” monta um burrinho, e outra, pernambucana, de Sílvio Romero, na qual um mais
brasileiro “D. Joca” vai a cavalo, bem como uma quadra, sem identificação, que menciona um “rucinho”
como montada. Cf. J. R. Whitaker Penteado [1980], O Folclore do Vinho, Lisboa-Porto, Centro do Livro
Brasileiro, 1980.
682
Cf. Ricardo da Costa [2005], tradução de, Raimundo Lúlio, O Livro da Ordem de Cavalaria (12791283), disponível na Internet em www.ricardocosta.com/textos/livrocav.htm, arquivo acedido em 15 de
Outubro de 2005.
369
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
possível pertença desse homem à ordem da Cavalaria, cujos membros são obrigados a
um comportamento sem mácula. Cumulativamente, o motivo adquire ainda nova
dimensão, conforme é enunciado de uma ou outra maneira, ou seja, se “Lá vem [D.
Jorge] montado” ou se “Apeia-te, ó cavaleiro”. No primeiro caso, há uma implicação
lógica de que um homem que vem montado se vê ao longe, uma vez que o marcador
espacial “lá” indica uma certa distância, o que sugere que D. Jorge demorará a
aproximar-se, pelo que Moriana tem tempo de se decidir a matá-lo (e até a preparar o
veneno), caso se confirme a notícia do casamento com outra. No segundo, percebe-se
que o cavaleiro já está junto de Moriana, uma vez que esta fala com ele, fazendo-lhe o
convite, quase uma intimação, para se apear e merendar; visto que a “merenda” consta
de vinho envenenado e que este lhe é dado imediatamente, infere-se que houve
premeditação (matá-lo-á, sem esperar a confirmação do casamento).
Note-se que, no universo das versões portuguesas de Veneno de Moriana, o
cavaleiro/cavalheiro, no Tipo B, equivale, no Tipo A, ao protagonista geralmente
designado por “D. Jorge”, “senhor Jorge” ou “Jorge” 683 , enquanto nas versões
espanholas se chama, quase sempre, “D. Alonso”684. Na recorrência do nome “Jorge”
nas versões portuguesas, encontramos uma aproximação à figura de S. Jorge, que é,
também, um cavaleiro685. Esta hipótese de ligação de sentido do nome deste santo ao do
683
Há outras ocorrências que englobam este nome: “Jorge da Teixeira” (também “Jorge”, dentro das
mesmas versões) e “João Jorge”. Também na grande maioria das versões brasileiras que pudemos
consultar, o nome do protagonista é “Jorge”. Cf. por exemplo, de entre outros na Bibliografia, Doralice
Fernandes Xavier Alcoforado, Maria del Rosário Suárez Albán [1996], Romanceiro Ibérico na Bahia,
Salvador – Bahia, Livraria Universitária, 1996, pp. 152-172.
684
Cf. por exemplo, as versões de Veneno de Moriana disponíveis em Pan-Hispanic Ballad (A Database
of Ancient and Modern Oral Versions of Ballads).
685
Enquanto cavaleiro, uma das mais referidas proezas de S. Jorge é a morte do dragão: “A versão mais
conhecida da Lenda de São Jorge e do Dragão faz parte da Legenda Aurea, segundo a qual um
monstruoso dragão aterrorizava a cidade líbia de Selena com o seu hálito pestilento que espalhava a peste.
Os habitantes da cidade decidiram então entregar-lhe duas ovelhas por dia para lhe saciarem a fome,
impedindo-o assim de fazer mais estragos na cidade. Quando as ovelhas acabaram tiveram de escolher
uma vítima humana, calhando a sorte à jovem filha do rei, que em vão ofereceu toda a sua riqueza para
evitar a escolha. A jovem, vestida de noiva, foi mandada ao dragão e durante o caminho encontrou São
Jorge no seu cavalo que sabendo do seu destino a acompanhou e enfrentou o dragão, trespassando-o com
a sua lança, depois de fazer o sinal da cruz. Pedindo a liga da princesa, enrolou-a à volta do pescoço do
370
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
cavaleiro do romance, poderia residir no facto de a sua imagem ser bem conhecida, por
se integrar nas procissões do Corpo de Deus686 em Portugal687, que, como se sabe, eram
dragão o que permitiu que a princesa o levasse pela mão, dócil como um cordeiro. De volta à cidade, São
Jorge converteu e baptizou os habitantes e, quando o rei lhe ofereceu metade do seu reino, São Jorge
recusou mas pediu-lhe que cuidasse da igreja de Cristo, respeitasse o clero e ajudasse os pobres”. Cf. s.a.,
São Jorge, disponível na Internet em www.infopedia.pt/sao-jorge, arquivo acedido em 20 de Março de
2008.
686
Diz Maria Alexandre o seguinte: “[A] solenidade conhecida pelo nome de Corpus Christi (em Portugal
designada Corpo de Deus) ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, só ganha lugar de relevo na
Liturgia em 1246, quando o bispo de Liège (Bélgica) instituiu a festa, na sua diocese. Esta primeira ‘festa
oficial’ do Corpus Christi surge em consequência das revelações recebidas pela Beata Juliana de Retinne.
Pela bula Transiturus (1264), o Papa Urbano IV (que antes fora bispo de Liège) estendeu a festa a toda a
Igreja, como solenidade de adoração da Sagrada Eucaristia. A solenidade do Corpus Christi já era
celebrada em Portugal no século XIII, desde o reinado de D. Afonso III. Era, à época, uma festa de
adoração, não envolvendo a procissão pelas ruas. [… ] Celebrada em Lisboa, a festa do Corpo de Deus
incluiu a Procissão, pela primeira vez, em 1389. Eram os tempos da consolidação da autonomia face a
Castela e do bom ambiente criado pelas vitórias bélicas de Nuno Álvares e da influência cultural britânica
(a ponto de S. Jorge - devoção inglesa, vencedor do Mal, do Dragão - ser considerado Padroeiro de
Portugal). Por isso, à solenidade do Corpus Christi juntou-se a festa de S. Jorge. Desta junção, resultou a
magnificência da Procissão da capital. A festa chegou a atingir surpreendente grandiosidade no tempo de
D. João V, incorporando a Procissão que incorporava [sic], desde logo, as associações socioprofissionais
e também as delegações das diversas Ordens Religiosas de Lisboa (Agostinhos, Beneditinos,
Dominicanos, Franciscanos, Ordem de Cristo...) e militares. No cortejo, avultava a figura de S. Jorge a
cavalo e a Serpe, ou dragão infernal (do tipo chinês, locomovido por figurantes), contra o qual S. Jorge
lutava. Havia paragens para representação das famas ou glórias de S. Jorge; e também para uma série de
danças.”. Cf. Maria Alexandre, Corpo de Deus, em http://www.verbumdei.org., arquivo acedido em 27 de
Maio de 2008.
Nos dias de hoje, S. Jorge ainda defronta o dragão, como no Alto Minho, conforme descrição abaixo:
“Em harmonia com a tradição, a ‘Coca’ simbolizando o dragão, a que o povo tanto gosta de chamar
‘Santa Coca’, ‘Diacho da Coca’ ou, ainda, ‘Coca Rabixa’, « Por bia da Santa Coca rabixa / perdi o diacho
da Missa ». Sai na manhã da procissão do Corpo de Deus, ‘passeando’ pelas ruas de Monção. À mesma
hora, S. Jorge adestra o seu ginete, em tempos idos um galego que representava, no auto, o Santo da
Capadócia. Na procissão, a que não falta o ‘Carro das Hervas’, cheio de verdura e rapaziada; São
Cristóvão, o advogado das crianças ‘biqueiras’; o ‘Boi Bento’, todo enramilhetado de fitas e cores, vão as
duas figuras principais do auto – a ‘coca’, arrastando-se vagarosamente pelas ruas e calçadas, um monstro
anfíbio de escamas reluzentes, com largas queixadas móveis e uma língua tremulante implantada em
cabeçorra que volta à direita e à esquerda, criando um misto de espanto e incredulidade aos inúmeros
devotos da ‘rabixa’; logo seguida de S. Jorge, em carne e osso, vestido a rigor, armado de lança e espada,
capacete e broquel, e montado em cavalo de verdade. Procissão acabada, toda a gente, se desloca para o
Campo do Souto. Aí, ofegante, vaidosa, inchada, pousona, a Santa Coca! S. Jorge media, ao largo, o
‘bicharoco’, enquanto o cavalo, não habituado a multidões, se mostrava inseguro e nervoso. Ao impulso
dos ‘comparsas’ que se ocultavam no bojo da ‘bicha’ e que a manobravam a seu bel-prazer, a Santa Coca
vai a terreiro para o combate! Começa, então, o terrível combate !”. Cf. s.a., A Festa do Corpo de Deus no
Alto Minho, em http://www.rtam.pt, arquivo acedido em 27 de Maio de 2008.
687
S. Jorge é o santo que os portugueses, na batalha de Aljubarrota, invocaram contra os castelhanos, que
bradavam por Santiago, padroeiro até então comum aos reinos cristãos da Reconquista. O auxílio foi
eficaz e o culto a S. Jorge espalhou-se, até por passar a tutelar numerosos ofícios. Georgina Silva dos
Santos dedica a sua tese de Doutoramento, defendida na Universidade de S. Paulo e publicada em
Portugal, à Irmandade de S. Jorge, fundada em 1558, que congregava os ofícios ligados ao ferro e ao fogo
(ferreiros, sangradores, barbeiros, cutileiros, armeiros), e analisa o vínculo desta Irmandade ao Santo
Ofício. A autora refere a antiguidade e as muitas variantes do culto a São Jorge, patrono dos cavaleiros,
entre outras profissões e cita Oliveira Martins, para quem a invocação a S. Jorge pelos portugueses se
deve à influência dos ingleses, uma vez que D. João I casou com D. Filipa de Lencastre, filha de João de
Gaunt; o rei, agradecido a S. Jorge pelo auxílio prestado em Aljubarrota, instituiu o culto ao santo, cuja
imagem montada a cavalo (ou incarnado por um personagem) passou, posteriormente, a figurar nas
festividades do Corpus Christi, sob responsabilidade dos “homens de ferro e fogo”. Cf. Georgina Silva
371
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
terreno propício a que o profano se sobrepusesse ao sagrado; em Nisa, naquelas
festividades, apareceu, certa vez, “um grosso mancebo, montado em possante cavalo,
adornado com seu capacete com muitas fitas, couraça, escudo e lança, representando São Jorge,
e ia adiante do clero fazendo trejeitos e gaifonas; o que provocava extraordinária hilaridade, e os
motejos dos que o presenciavam, que foram tais no ano de 1694, que passaram a escândalo e
motim que ia perturbando a ordem da solenidade; …”688 . Um incidente atribuído a S. Jorge,
também aproxima o santo do cavaleiro que, no romance, é tão pouco zeloso das suas
implícitas obrigações, e ao qual Moriana, possivelmente feiticeira, dá vinho
envenenado, embora o santo, obviamente, não tenha morrido, como aconteceu com D.
Jorge. Dá-se o caso de este santo, entre os diversos martírios a que foi sujeito, ter sido
obrigado por um feiticeiro a ingerir veneno adicionada ao vinho; em Legenda Aurea,
conta-se como o santo resistiu à ordem de os cristãos sacrificarem aos deuses, pelo
governador Daciano. São Jorge, que exortava aqueles a não obedecerem, sofreu grandes
martírios, mas como os suplícios não o vencessem, o governador chamou um feiticeiro:
“lançados os seus esconjuros e invocados os nomes dos seus deuses, misturou veneno em
vinho e entregou-o a São Jorge para o beber. O homem de Deus fez sobre ele o sinal da cruz e,
depois de o ter bebido todo, não sentiu qualquer mal. De novo, o feiticeiro misturou outro
veneno mais forte que o anterior; o servo de Deus, feito o sinal da cruz, bebeu-o todo sem sofrer
a menor lesão”
689
.
dos Santos [2005], Ofício e Sangue. A irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa moderna,
Lisboa, Colibri, 2005.
688
O esplendor destas festas e a cena deste S. Jorge histrião são descritos por José F. Figueiredo, que cita
Mota e Moura, de Memórias de Nisa, Vol. I, p. 120 e Vol. II, p. 101. Cf. José F. Figueiredo [1989],
Monografia da Notável Vila de Nisa, edição fac-similada de 1956, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Câmara Municipal de Nisa, 1989, pp. 324-326. Cf. igualmente, Teófilo Braga [1994], O Povo Português
nos seus Costumes, Crenças e Tradições, Vol. II, Lisboa, D. Quixote, 1994, p. 207.
689
Cf. S. Jorge Mártir, Tomo I, pp. 244-246, em Tiago de Voragine [2004], Legenda Aurea, 2 tomos,
tradução do original latino de António Maia da Rocha, a partir da edição crítica de Giovanni Paolo
Maggioni (Edizioni del Galuzzo, Florença, 1988), Porto, Livraria Civilização Editora, 2004. Na p. 247,
encontra-se a reprodução de um fresco de Altichiero da Zevio, São Jorge a beber o veneno, do século
XIV, no Oratório de São Jorge, em Pádua. Refere-se, na introdução, que a Legenda Aurea se tornou, com
a Bíblia, o livro mais lido e copiado de toda a Cristandade, tendo sido conhecida entre nós desde o início.
Usado como forma de doutrinação, é natural que o sucesso narrado fosse sendo conhecido.
372
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Bakhtin faz notar como o riso e o grotesco iam, na Idade Média, a par dos ritos e
dos símbolos religiosos da cultura “séria”, oficial
690
. Ademais, as sociedades
camponesas, a par de sentirem o sagrado como uma dimensão poderosa, não deixam de
estabelecer com os santos que veneram um estatuto de familiaridade, facilmente os
despojando do seu primitivo ascetismo, tal como acontece com Santo António ou São
João691. Assim, nesta perspectiva, não seria muito de admirar que o protagonista de
Veneno de Moriana, que tal como São Jorge era “cavaleiro” e foi envenenado com
vinho, tomasse o nome do Santo, vindo o nome de “Alonzo” das versões espanholas692
a ser substituído pelo de “Jorge” nas versões portuguesas693.
Quanto ao motivo “cavalo”, longe de apenas indicar um simples meio de
transporte ou de tornar mais visível o homem que o monta, a sua função no romance é
dual ao, simultânea e implicitamente, estabelecer o estatuto e o destino deste. É
conotativa, porque não só relaciona o protagonista com uma determinada classe como
também remete para uma problemática social, pois, segundo Manuel Manzano, há no
romanceiro uma conexão do cavalo com a classe social poderosa, a qual é “en ocasiones
violenta e injusta…”, circunstâncias que “preocupan el pueblo que canta, justo por no estar de
690
Mikhail Bakhtin [2002], A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de
François Rabelais, 5ª ed. São Paulo, Hucitec, 2002.
691
A título de exemplo, transcrevemos duas quadras a estes santos, de J. Leite de Vasconcellos [1975,
1979, 1983], Cancioneiro Popular Português, Vol. III, Coimbra, Acta Universitatis Coninbrigensis, (III1983), pp. 331 e 334:
“Santo António, por ser santo
Não deixa de ser velhaco;
Levou as moças à fonte,
Levou duas, trouxe quatro!”
“São João, por ver as moças,
Fez uma fonte de bica;
As moças não vão a ela,
São João se mortifica.”
(Lisboa)
(Porto)
De entre a bibliografia dedicada à dimensão religiosa e popular de ambos os santos, indicamos, também
apenas a título de exemplo, Maria de Lourdes Sirgado Ganho [2000], O essencial sobre Santo António de
Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000 e Fernando de Castro Pires de Lima [1944], S.
João na Alma do Povo, Porto, Portucalense Editora, 1944.
É de notar que o local onde ambos os santos pretendem conquistar as “moças” é a fonte, local de amores a
que atrás aludimos já.
692
“Alonzo” teria sido, mais facilmente, transformado em “Afonso”, em vez de “Jorge”.
693
Trata-se, obviamente, de uma hipótese de carácter especulativo e que apenas tem como objectivo
demonstrar a operacionalidade dos motivos enquanto processos de significação.
373
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
acuerdo com ello”694. Na sua outra função, o cavalo adquire uma significação simbólica,
ao ser montado por aquela personagem específica, pois, sendo um animal oracular, que
anuncia a morte e a infelicidade695, é também uma imagem do movimento e que se
tornou um símbolo do Tempo, que um cavaleiro montado pode dominar696. Se bem que
em relação aos contos tradicionais, Manuela Parreira da Silva faz a associação do par
homem/cavalo com a superação da morte e cita o conto “A Bela Felicidade” 697, de que
reproduzimos o excerto do pedido feito pela protagonista ao príncipe, ao dar-lhe o seu
cavalo branco: “[…] peço-te que nunca te apeies, vejas o que vires, sintas o que sentires,
porque se te apeares o Tempo logo te mata”. A autora conclui que “na grande maioria dos
contos em que aparece, o cavalo cumpre um trabalho” e que tem como função tornar-se
“[…] um parceiro do homem, seu companheiro de viagem, seu conduzido/conduzidor – reflexo
da sua dualidade essencial”. Ora, no romance, a primeira coisa que Moriana faz é convidar
o cavaleiro a desmontar
698
(“Apeia-te, ó cavaleiro …”) e este, ao fazê-lo, perde a
capacidade de controlar o Tempo, o que o deixa vulnerável à Morte, cujo veículo é o
vinho envenenado que bebe. Este é o significado mais profundo das palavras que aquele
694
Cf. Manuel Lozano Manzano [2002], “Los Animales en el Romancero Tradicional Extremeño. (Las
Primeras Colecciones, 1809-1910)”, em Javier Marcos Arévalo, Los Animales en la Cultura Extremeña,
Badajoz, Carisma Libros, 2002, pp. 91-133.
695
Este animal, no Dictionnaire du Symbolisme animal, associa-se igualmente à infelicidade que pode
provir dos “invasores estrangeiros” que subjugam a “população indígena” (Cf. Jean-Paul Clébert [1971],
Dictionnaire du Symbolisme animal, Paris, Éd. Albin Michel, 1971, pp. 100-110) vindo o “D. Jorge” do
romance, montado no seu cavalo, a representar os primeiros e Moriana a “população indígena”, que
daqueles recebe infelicidade.
Destes confrontos entre povos conquistadores e conquistados surgem por vezes amores, tantas vezes
explorados na sua vertente mais trágica, com a temática da jovem “indígena” que se apaixona pelo
“invasor” e é por ele abandonada. Lembramos o argumento de Norma, sacerdotisa druída de cuja união
secreta com conquistador da sua terra, o procônsul romano Pollione, haviam nascido já dois filhos,
quando este a pretende substituir pela jovem Adalgisa. Tal como Moriana, Norma descobre as intenções
do romano e engendra uma terrível vingança contra o traidor (“Sangue roman, scorreran torrenti”) mas,
ao contrário do que sucede no romance, a sacerdotisa acompanhará o amante na morte. Cf. Vincenzo
Bellini, Norma, Libreto italiano de Felice Romani baseado no drama homónimo de Alexandre Soumet,
Lisboa, Editorial Notícias, 1987.
696
Cf. Manuela Parreira da Silva [2004], “As Hipóteses do Cavalo nos Contos de Tradição Oral”, em Ana
Paula Guimarães, João L. Barbosa, Luís Cancela da Fonseca [2004], organização de, Falas da Terra.
Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa, Lisboa, Colibri, 2004, pp. 301-314.
Em Veneno de Moriana, o cavalo é, naturalmente, parte do motivo “o cavaleiro”, sendo a sua função
dual, ao estabelecer, simultânea e implicitamente, o estatuto e o destino do homem que o monta.
697
Em Leite de Vasconcellos, Contos Populares, Universidade de Coimbra, Vol. I, 1964, p. 599.
698
A cor do cavalo, dissémo-lo atrás, será também esbranquiçada (“rucinho”/ruço), tal como a do cavalo
do príncipe do conto.
374
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
profere no final, onde se retoma o motivo do cavalo, constituindo a expressão “ter as
rédeas do cavalo na mão” o significante metafórico de controlar a Vida:
7.“ Tenho as rédeas na mão e já não vejo o meu cavalo”, VM/40 Fontes (1979) 124
O verso em causa demonstra o espanto do cavaleiro em estar a perder essa
capacidade, mas a incredulidade implícita face ao que está a acontecer, toma uma
ambiguidade de sentido, consoante fique ou não provada a traição cometida contra
Moriana; nas versões que incluem explicitamente a menção ao seu próximo casamento
com outra mulher, implica uma amoralidade de carácter desse que se julga impune ao
quebrar da palavra dada; caso contrário, isto é, se a razão do envenenamento não for
explícita, aquelas palavras (ou semelhantes) perdem este sentido e o acto de Moriana
fica por esclarecer, o que ocasiona que será a ela que se atribuirá uma maldade gratuita
ou uma vingança por razões mesquinhas.
Motivo: O vinho.
- Micro-relato: Uma mulher dá um copo de vinho envenenado a um homem.
- Função no romance: Identificação da vingança e do meio utilizado para a
perpetrar.
6.”Espera aí, ó D. Jorge, espera aí um bocadinho,
7.enquanto eu vou ao sobrado buscar-te um copo de vinho.”
VM/133 Fontes I (1987) 376
O motivo do “vinho” é, como os outros motivos, plurissignificante. Sendo uma
bebida geralmente associada a celebrações e a diversos rituais699, a oferta do vinho ao
cavaleiro pela protagonista, em Veneno de Moriana, aparenta, à primeira vista, tratar-se
699
Diz Whitaker Penteado que “[O] vinho está onipresente, nas festas populares, nos provérbios, no
cancioneiro, nas lendas e superstições, em todos os movimentos da vida” e assim também em “autos
populares”, nos quais o autor inclui os romances A Nau Catrineta, O falso cego (Auto do Cego) e Veneno
de Moriana (D. Jorge). Este último, nas suas palavras, é um “auto” a ser representado por um menino e
duas meninas, no qual o vinho é “o vilão da história”. O autor faz, também, o paralelo das
“predecessoras” da “Juliana”, que usaram veneno no vinho para as suas vinganças. Cf. Penteado [1980].
375
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de uma cortesia devida a um visitante. Mais prosaicamente, serviria para o dessedentar,
uma vez que se depreende que esse visitante vem de longe, como atrás dissemos:
10.“Esperai aqui, D. António, esperai aqui mais um pouquechinho,
11. qu'eu vou à minha sala buscar um jarro de vinho,
12. para te dar a beber que vens seco do caminho.”
VM/67 Ferré (1982) 189
É na continuação no romance, mesmo que não se explicite (Tipo A) que este
continha substâncias venenosas, que se perceberá que o vinho oferecido tem outras
funções que não estas, pois a sua ingestão provoca a morte do cavaleiro.
O motivo aponta para efeitos de significação diversos, o primeiro dos quais reside
na qualidade, referido como “bom” ou com a expressão “vinho de sete anos” (3.”- Ai,
tenho vinho de sete anos guardado para te dar.”, VM/235 Loddo (1995) 80-81) a associar-se
ao pressuposto de que um vinho velho é de qualidade superior700, pelo que prevalece o
seu sentido simbólico de oferenda ritual. Parece, então, que Moriana deseja honrar o
cavaleiro que a visita, oferecendo-lhe do melhor:
8.“- Foi d'adega do me pai, da pipa do melhor vinho.”, VM/68 Ferré (1982) 190
A ênfase posta na qualidade do vinho é não só de Moriana como do próprio
cavaleiro:
4.“- Espera-me aí, D. Jorge, espera-me um poucochinho,
5. enquanto te vou buscar uma taça de bom vinho.
6. - Que me deste, Juliana, nesta taça com bom vinho,”
VM/1 Braga (1883) 197
Não quer dizer, porém, que aquele não beba qualquer outro, mesmo vinho de
taberna, normalmente conotado com uma qualidade inferior:
8.“- Espera aí, ó meu D. Jorge, espera mais um bocadinho,
9. enquanto vou à taberna buscar um copo de vinho.”
VM/129 Fontes I (1987) 373-374
700
Notar a diferença entre “vinho de sete anos”, que qualifica o vinho como de qualidade, e “vinho de há
sete anos”, (3.“- Tenho vinho de há sete anos guardado para te dar”, VM/109 Fontes I (1987) 364), que
remete para a duração das relações entre Moriana e o cavaleiro.
376
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O motivo do “vinho” é recorrente em Veneno de Moriana, com apenas algumas
variantes semânticas, ocorrendo a oferta de um “licor”:
10. “- Toma, toma, Leonardo, este copo de licor.”, VM/5 Mendonça Dias (1922)
As versões em que aparece o licor são dos Açores, o que não significa que seja
uma variação fixada neste Arquipélago 701 , pois em outras versões da mesma região
mantém-se o motivo do vinho, mesmo em uma versão micaelense na qual o “licor”
alterna com o “vinho”, prova de que, sendo intercambiáveis, são tópicos portadores do
mesmo sentido:
9.“Toma lá, ó Leonardo, este copo de bom vinho,
10. Coitado de quem não tem quem lhe faça um mimozinho.
11. - Que me deste, Laureana, neste copo de licor?”
VM/95 Cortes-Rodrigues (1987) 259-260
Também uma versão da Ilha de S. Jorge, que apresenta uma variação que refere a
oferta de outro tipo de bebida, não alcoólica, faz, imediatamente no verso seguinte, o
retorno ao motivo canónico:
3.“- Entra, entra, Lionardo, p'ò meu jardim descansare,
4. que tenho cope de chá que guardei para te dar.
5. - Que me destes, Lauriana, neste copinho de vinho?”
VM/78 Fontes (1983a) 100
701
Certa criação poética que introduz um verso de teor sentimental, com o segundo hemistíquio a
finalizar com a palavra “amor”, juntamente com a estrutura estrófica de Veneno de Moriana, podem ter
favorecido a substituição de “vinho” por “licor”, a rimar com o citado verso. Atente-se na semelhança dos
versos destas versões, separadas pelo tempo:
10.“- Toma, toma, Leonardo, este copo de licor.
11.sempre me lembro que foste o meu primeiro amor.”
VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115
4.“Entra, entra, Lionardo, e toma um copo de licor:
5. sempre foste e hás-de ser o meu primeiro amor.”
VM/40 Fontes (1979) 124
4.“[…………………….] toma lá este copo de licor
5.que sempre foste e hás-de ser a prenda do meu amor.”
VM/81 Fontes (1983b) 89-90
377
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Todas estas bebidas são equivalentes, indubitavelmente, em termos de sentido da
função veicular do veneno nele misturado, o que é bem explícito no segundo exemplo
abaixo:
13.“- Um licor que preparei, somente para te matar,
14. não vives mais que uma hora, que o licor é resalgar.”
VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115
9.”- Que me deste, Laureana, nesta taça de bom vinho?
10. - Foi um copo de veneno para te matar assim,”
VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263
Seja a oferta de chá ou de licor, seja o vinho bom ou mau, o facto é que o
cavaleiro bebe seja o que for que Moriana lhe dê, mesmo que esta lhe forneça
indicações tão pouco veladas que deveriam fazê-lo desconfiar:
8.“Bebe, bebe, ó D. Jorge, este vinho de paixão,
9. amanhã por esta hora tu estarás no teu caixão.”
VM/101 Ferré (1987a) 48
Efectivamente, ele bebe sempre, mesmo achando algo estranho:
4.“- Vinho d'há sete i-anos não é bom de guardare.”
VM/108 Fontes (1987a) 567-568
Assim sendo, poder-se-á encontrar neste cavaleiro uma certa dependência da
bebida, como se depreende da adjectivização abaixo, a negrito:
9.“ - Ai! vinho, tirano vinho, qu'esta tirana me deu
10. qu'eu tenho o copo na mão, já não vejo quem m'o deu!”
VM/66 Ferré (1982) 188-189
Embora o sentido seja um tanto dúbio, pois a “tirania” do vinho tanto pode
entender-se como por ser maléfico, o que se aproxima do epíteto aplicado a Moriana
(“esta tirana”), como por ser um vício que o domina e que é do conhecimento da jovem,
que o aproveitará para melhor se vingar. Na rede de enganos que o romance tece, o
378
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
motivo do vinho torna-se então vital: ele “enganara-a” a ela, com promessas de
casamento, e ela engana-o a ele, envenenando-o com o engodo do vinho:
3.“- Eu bem te dizia, ó filha, tu não querias acreditar,
4. os passos que o Jorge aqui dava era só para te enganar.
5. - Não se rale, ó minha mãe, nem o meu pai que me criou,
6. que eu hei-de enganar o Jorge conforme ele a mim me enganou.”
VM/99 Ferré (1987) 67
a) Os ingredientes no vinho
O motivo do vinho contém geralmente outra informação significativa, a dos
ingredientes que lhe são misturados702 e que também constituem motivos, quase sempre
especificados e em número de três 703 - sangue de cobra, pós de sapo/lagarto e
rosalgar704:
7.“- Deitei-le o sangue da cobra, pós de lagarto moído,
8. Lá no meio disso tudo, um resalgar vai metido.”
VM/171 Galhoz (1987) 312
Os pequenos animais mencionados (cobra, sapo e lagarto705), que facilmente se
encontram no campo, foram muitas vezes utilizados quer como substâncias medicinais
quer venenosas:
702
Só no Tipo B o envenenamento é explícito, especificando os ingredientes de modo detalhado, podendo
embora sê-lo de forma lacónica, como: “ 6.- Quatro bolas de beleno, a ti te quero matar!”, VM/10 Leite
(1960) 104. Nas versões do Tipo A, o envenenamento apenas fica implicado pelas suas consequências,
não sendo de regra que Moriana responda à pergunta sobre o que deitou no vinho, embora haja algumas
excepções, como a da VM/101 Ferré (1987) 68:
9.“- Que deitaste, Juliana, que deitaste tu 'ó vinho?
10. Inda agora estava bom, já não vejo o cavalinho.
11. - Deitei-lhe pó de joana daqueles que eram mais fininhos.”
703
Segundo Bethencourt, a “simbologia do número estrutura e consagra grande parte dos ritos manuais e
ritos orais” e o número três, nas práticas de magia, simboliza a perfeição da unidade divina. Cf.
Bethencourt [1987], p. 112.
704
Cf. a entrada 439 da Varia, em Consiglieri Pedroso [1988], Contribuições para uma Mitologia
Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos, Lisboa, D. Quixote, 1988, p. 204.
705
Estes são os mais frequentes, mas são mencionados outros, até mesmo “peixinhos”: 10.”- Deitei-le
cobrinhas vivas, peixinhos d'endar no mar”, VM/151 Fontes I (1987) 386-387.
379
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“Quant aux venins, serpents et crapauds, si on savait que la médecine de l’époque les
utilisait dans un but thérapeutique, les sorciers et les empoisonneurs, s’en servaient aussi. [….]
Parfois on empoisonnait des crapauds avec du sublimé et de l’arsenic, on les sacrifiait aussitôt
afin de recueillir les urines que l’on considérait comme très dangereuses. On se servait aussi du
venin de l’animal en putréfaction, dont la virulence était exaltée par l’association à un
toxique.”706
Diz ainda o artigo acima citado que, do lagarto, se fazia uma “poudre a aimer,
contenant certainement de la cantharide”. A cantárida tem propriedades afrodisíacas707 e os
“pós de lagarto”, com grande frequência, fazem parte dos ingredientes usados por
Moriana (6.“- Eu botei-lhe resalgar e pós de lagarto moído.”, VM/2 Leite (1883a) VII; 5. “Dei-te o sangue da cobra, pós de lagarto moído,” VM/109 Fontes I (1987) 364),
o que levaria à
não confirmada hipótese de esta já ter dado semelhante poção ao cavaleiro (sem,
obviamente, a adição de veneno), de modo a provocar-lhe reacções amorosas, pelo que
este, sabendo ao que se destinava, a beberia de novo sem desconfiança. Contudo, a
intenção de Moriana, é seguramente a de matar.
Aqueles animais também aparecem em descrições de ritos malfazejos ou de
feitiçaria, podendo ser utilizados directamente, adicionados a alimentos (tal como o faz
Moriana no vinho), ou à distância (“Metendo dentro da boca de um sapo um bocado de pão
já mordido por uma pessoa e cosendo a boca do sapo, conforme ele vai secando, assim também
a pessoa)”708.
Paradoxalmente, cobras e lagartos também figuram nas Curas Medicinais de
Amato Lusitano, que prescreve sangue ou caudas de lagarto para tratamento de “humor
acre” e problemas sexuais, e “teriaga” (remédio com carne de víbora) na cura de
706
Cf. Josselin Fleury [2005], “L’Affaire des poisons de 1679-1682 à l’origine de la réglementation
relative aux substances vénéneuses”, Histoire de la Pharmacie, Paris XI, disponível na Internet em
http://www.ordre.pharmacien.fr/fr/jaune/index3.htm, arquivo acedido em 22 de Outubro de 2007.
707
Cf. entrada para “cantárida”, no Dicionário Houaiss, Tomo II, p. 781.
708
Informação do abade J. Tavares, Carviçais, Moncorvo, 1904. Cf. José Leite de Vasconcellos [1980],
Etnografia Portuguesa, Vol. VII., Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, reimpressão fac-similada
da ed. de 1980, p.p. 537-538.
380
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
diversas maleitas, mas da relação dos animais usados neste receituário médico709 não
consta o sapo710, o que parece confirmar a afirmação de Bethencourt: “O sapo […] é
empregue exclusivamente em ritos de mal querença e morte”711.
Outro dos ingredientes mencionados no romance é o rosalgar ou outras
denominações (“resalgar”, “ressalgar”):
7.”Lá no meio disso tudo, rosalgar era metido.”, VM/257 Eira (1999) 55
8.”e no meio disto tudo o resalgar vai metido.”, VM/138 Fontes I (1987) 380
8.”Entremeios disso tudo foi um ressalgar metido.”, VM/19 Leite (1960) 110
O rosalgar é o “sulfureto de arsénio monoclínico, de cor vermelha transparente, us.
como fonte de arsénio…” 712 , sendo este descrito como mineral venenoso 713 . A sua
utilização como veneno deveria ser bem conhecida, pois encontram-se-lhe várias
referências em diversos documentos que regulamentam as substâncias venenosas 714 .
Pela descrição que dessa substância faz Ambroise Paré, em Des venins et morsures,
1579 (“Le réagal (sulfure naturel d’Arsenic, pour être de nature chaude et sèche, induit soif,
échauffaison et ardeur par tout le corp”) 715, não é de admirar que, no romance, o primeiro
gole do vinho misturado com rosalgar provocasse ainda mais sede ao cavaleiro, fazendo
com que este bebesse até ao fim e, assim, causando a sua morte.
709
Cf. Albano Mendes de Matos [1998],”Os produtos de origem animal na terapêutica de Amato
Lusitano”, Medicina na Beira Interior da Pré-História ao Século XX, Cadernos de Cultura nr. 12, Raia,
1998, pp. 13-19.
710
Ver, entre outros, Guilherme Felgueiras [1963], “Os Batráquios no Conceito Popular e na
Superstição”, em Actas do 1º Congresso de Etnografia e Folclore. Promovido pela Câmara Municipal de
Braga (De 22 a 25 de Junho de 1956), Vol. II, Lisboa, Plano de Formação Social e Corporativa, 1963, pp.
65-92, Maria Teresa Meireles [2003], B.I. da Serpente, Colecção Bilhetes de Identidade, 3, Apenas
Livros, 2003 e, também, Maria Teresa Meireles [2003a], B.I. de Sapos e Rãs, Colecção Bilhetes de
Identidade, 6, Apenas Livros, 2003.
711
Cf. Bethencourt [1987], p. 129.
712
Entrada no Dicionário Houaiss, Tomo V, p. 3205.
713
Op. cit., Tomo I, p. 397.
714
Nas Ordenações Filipinas é proibida a sua venda (quer o branco, o vermelho ou o amarelo), sob pena
de perda de fazenda e degredo para África. Cf. Silvia Hunold Lara [1999], org. de, Ordenações Filipinas,
Livro V, S. Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 286-287.
715
Citado em Fleury [2005], op. cit.
381
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Este ingrediente é pois reconhecidamente um veneno, cuja proveniência não é
geralmente revelada nas versões portuguesas, ainda que a referência ao seu preço
indicie a sua compra, como na VM 173 Galhoz (1987) 313 (4.“[….] trinta réis de
ressalgar”) ou na VM/119 Fontes I (1987) 369 (3.“[…..] um vintém de resalgare”). Na
tradição madeirense716, porém, diz-se explicitamente que Moriana vai colher o resalgar
ao jardim 717 ; neste caso, subentende-se que este “resalgar” é um veneno de origem
vegetal, por vezes explicitamente uma planta com folhas718:
716
Cf. as versões madeirenses em Ferré [1982], pp.181-194.
O jardim, no caso destas versões de Veneno de Moriana, não tem a mesma conotação do jardim de
Bernal Francês. Enquanto neste romance tem uma função simbólica, denotativa de que aí decorrerá uma
cena amorosa, no outro, sendo o sítio lógico onde se cultivam plantas, torna mais evidente o pressuposto
da feitiçaria de Moriana (ou dos seus parentes - pai/tio), que já referimos na Parte I, Capítulo IV. Para
uma perspectiva axiológica nos romances. Em Veneno de Moriana, o jardim é um local maléfico, mas ao
mesmo tempo familiar, onde Moriana pode ir buscar o veneno sem fazer o cavaleiro esperar demasiado, o
que o faria desconfiar:
717
7.“Moliana levantou-se e foi ao jardim de sê pai
8. e depressa apanhou um ramo de resalgar
9. e deu a D. Bruno a beber, dentro dum copo de vinho.”
VM/60 Ferré (1982) 185
Apesar de o “jardim” não ter a mesma função nos dois romances, afinal ambos com desfechos trágicos,
pode aparecer em certas versões de Veneno de Moriana como motivo conotado com “local onde se trata
de amores”. Nesta versão da Ilha de S. Miguel, na qual há mesmo uma certa justiça poética, Moriana faz
entrar o cavaleiro no mesmo jardim onde este lhe jurara amor, para aí o matar:
6.“- Entra, entra em meu portal, por onde tens sempre entrado,
7. no jardim te vou esperar, como outrora, Leonardo,
8. quando juravas que eras meu amor, meu namorado.”
VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115
Será por essa razão que o cavaleiro pede para ser enterrado nesse jardim e, já morto, aparecerá a Moriana,
também ela arrependida, para se redimir do mal feito:
16.“- Ê te peço, Moliana, que me trates d'enterrar
17. neste jardim de tê pai, debaixo do resalgar.
18. Moliana, arrependida, à cova l'ia rezar;
19. um dia, por ali viu D. Bruno a passear.
20. - Que fazeis aqui, D. Bruno, neste jardim de mê pai?
21. - É venho, Moliana, d'outro mundo te falar;
22. quem deve a honra alheia nunca se pode saber.
23. Ê devo a honra a sete, nunca me posso salvar.”
VM/60 Ferré (1982) 185
Trata-se de um pormenor importante na explicação da origem do final diverso que surgirá nas versões
deste romance no Arquipélago da Madeira, a que Dias Marques a que chama o final madeirense. Cf.
Marques [1992]. O motivo do jardim onde Moriana vai colher as folhas do veneno (noutras versões
“horto” ou “vergel”) aparece igualmente noutras áreas geográficas (cf. Proyecto del Romancero panhispánico), mas em nenhuma destas versões há o mesmo prolongamento das madeirenses
382
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
6.“Levantou-se Moliana com seu modo real,
7. Foi colher três folhas a seu lindo rosal.”
VM/21 Leite (1960) 111
Tal veneno seria bastante acessível a Moriana, por se encontrar num jardim que
muitas vezes se explicita ser o dela própria, como na versão acima, o do pai ou até o de
um tio:
6. foi logo 'ó jardim do pai um resalgar apanhar,
7. deitou num copo de vinho para Bombónio tomar.”
VM/53 Ferré (1982) 181
6.“- Levanta-te, Boliana, e vai ao jardim de teu tio,
7.
e apanha resalgar e deita num copo de vinho
…………
719
e dá a Bombónio a tomar.”
VM/56 Ferré (1982) 182-183
Dir-se-ia que o cultivo do resalgar em jardim720 é um assunto familiar, o que dá a
Moriana a oportunidade de escolher o de qualidade superior:
2.“Foi ao resalgar do pai, por ser resalgar mais fino,
3. ela le apanha um ramo, deitou num copo de vinho.
Leão:
“Marianita a la ligera tira un brinco a su jardín
Las siete hojas del veneno luego se las trajo alii”
Astúrias:
“Enseguida Mariana brinco en su jardín florido,
Três hojas de resalgar pronta las diera cogido”
Marrocos:
“Salto diera Moriana hasta el jardín de su padre
Cortara siete hojitas de aquel fino solimane;”
718
Não podemos deixar de notar a seguinte coincidência: algumas versões em que se menciona a
“colheita” de folhas no jardim e nas quais a protagonista toma o nome de “Moliana” (provenientes da
Madeira), a saudação do cavaleiro (“- Salve Deus, ó Moliana, …”, VM/21 Leite (1960) 111 e “- Deus te
salve, Moliana, …”, VM/60 Ferré (1982) 185) assemelha-se ao incipit (“Deus te salve, moliana!) de uma
“oração” que acompanha a seguinte prática com a erva-moliana, de “grande virtude” - planta-se, juntando
um pouco de ouro, prata e cobre; mantendo-se a erva verde, a casa está feliz, se alguém adoecer seca. Cf.
entrada 595 em Pedroso [1988].
719
Nesta versão, ao contrário das outras, em que um narrador extradiegético informa que Moriana foi ao
jardim, o episódio desenha-se sob a forma de uma ordem directa, dada por uma voz não identificada.
720
Daí o pressuposto do conhecimento de práticas de feitiçaria por Moriana (ou dos seus parentes pai/tio) ser mais evidente nestas versões, o que já referimos na Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva
axiológica nos romances.
383
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
4. Deitou num copo de vinho e deu a D. Brunho a beber.”
VM/64 Ferré (1982) 187-188
Embora nunca mencionado no romance como tal, o rosalgar poderá também ser
um cogumelo, pois dá-se o mesmo nome, possivelmente por analogia da cor vermelha e
das propriedades venenosas, à Amanita muscaria 721 . Em estudo sobre cogumelos,
Francisco Xavier Martins descreve o seu uso como venenos, em Trás-os-Montes,
referindo-se ao “resalgar” ou “rosalgar” como sendo este cogumelo722 e, expressamente,
à sua utilização em Veneno de Moriana como “componente do veneno que, segundo
Amadeu Ferreira, era utilizado para vingar a honra perdida”723. O autor regista os efeitos
alucinogéneos deste cogumelo, usado nos rituais de feitiçaria e iniciação na Idade
Média e Renascimento e que, tomado sem precaução, poderia causar a morte. A
Amanita muscaria apresenta coloração vermelha e ausência de sabor e os sintomas de
toxicidade, descritos em literatura da especialidade724 (alterações do sistema nervoso,
descoordenação motora, lacrimejamento, entre outros), correspondem aos sentidos pelo
cavaleiro do romance que, após beber o vinho, declara “já não enxergo o caminho”.
721
A Amanita muscaria encontra-se não só em Trás-os-Montes, mas por todo o lado, em florestas de
folhosas e resinosas e é frequente no Outono, sendo possível a confusão com a Amanita caesarea, que
também aparece nesta estação, debaixo de castanheiros, carvalhos ou sobreiros e é referido como
“excelente comestível, muito procurado, sendo considerado o rei dos cogumelos”, em Andreia Gama
[2005], Cogumelos, Castelo Branco, Câmara Municipal de Castelo Branco, 2005.
722
O uso de um resalgar/cogumelo induz algumas considerações possíveis. De facto, a ser o “resalgar” do
romance um cogumelo, é certo que Moriana, pelo menos, conheceria bem as diferenças entre o Amanita
muscaria e o Amanita caesarea, pois utiliza aquele que mata. Resta, ainda, saber se é um impulso de
momento ou se é deliberado. Se bem que não haja no romance uma localização temporal explícita e
sabendo-se que aquele cogumelo é outonal, poder-se-ia inferir que a sua utilização no incidente se teria
dado nessa época do ano e que se tratou de um acto não premeditado, pela lógica da sua disponibilidade
de momento (tal como nas versões madeirenses, com a ida ao jardim). No entanto, é de notar que as
versões do Tipo B de Veneno de Moriana são cantadas nas segadas, que se realizam no Verão, e à hora da
merenda, porque esta refeição é referida nesse tipo. Há, pois, uma associação do contexto temporal da
performance ao do romance, quanto à hora do dia. Porém, é de crer que os seus produtores-transmissores
saibam que no Verão não há aquele cogumelo, o que leva à conclusão de Moriana estar antecipadamente
na posse dos ingredientes usados, quer do vinho “guardado há sete anos” quer de um “resalgar”, seja este
um cogumelo (talvez conservado de modo a manter as propriedades venenosas) ou outra substância, o
que implica que o seu acto é não só deliberado, mas premeditado.
723
Cf. Francisco Xavier Martins [s.d.], Cogumelos, Mirandela, João Azevedo Ed., s.d., pp. 61-68. O autor
transcreve uma versão mirandesa do romance (D. Ougenha), da recolha de Serrano Baptista, edição de
António Maria Mourinho, Cancioneiro Tradicional Mirandês, Vol. II, 1987, que é, no nosso corpus, a
VM/179 Mourinho (1987) 23.
724
Cf. Mário Figueiredo [2005], Amanita Muscaria, disponível na Internet em www.geocities.com,
arquivo acedido em 19 de Outubro de 2005.
384
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em qualquer dos casos, a cor vermelha e a insipidez do cogumelo725 torná-lo-iam
o ingrediente perfeito para ser misturado num vinho velho de “há sete anos”.
Os ingredientes adicionados ao vinho são, como se viu, de origem animal, vegetal
ou mineral, todos partilhando propriedades venenosas. O rosalgar, em particular, já
mencionado como mineral ou vegetal, pode ser também entendido como de origem
animal, sendo sinónimo da osga, como é indicado, em “Benzeduras”, por informante a
Berta Beça726: “No Verão é fácil apanhar porque os bichos andam por o chão veneroso. O
resalgar (a osga) a aranha e o sapo, são venerosos. [………..]”.
3.3. SILVANA e DELGADINHA
Motivo: Filha perseguida pelo amor antinatural de um pai.
- Micro relato: Um pai propõe à filha que tenha com ele uma relação amorosa.
- Função no romance: sustenta a razão de ser da intriga.
O motivo “filha perseguida pelo amor antinatural de um pai” é compartilhado
pelos dois romances, razão pela qual colocamos ambos em paralelo, de modo a que
possam ser comparadas as semelhanças e diferenças no seu uso.
Silvana
1.“Bem se passeia Silvana pelo corredor acima,
2. o magano de seu pai d' amores a pretendia.
3. - Dá-me o teu corpo, Silvana, dá-me o teu corpo, filha minha.”
S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38
Delgadinha
1.“Um pai tinha três filhas, todas lindas como a prata;
725
Com algumas excepções, em que o cavaleiro se queixa do sabor: 12.” - Que me deste, Laureana, que é
de tanto amargar?”, VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115.
726
Berta Beça, “Orações, Cânticos Religiosos, Ensalmos e Benzeduras da Beira Baixa”, Revista Lusitana.
Nova Série, nrs. 22-24, Lisboa, Centro de Tradições Populares Portuguesas “Professor Manuel Viegas
Guerreiro, UL, FLUL, 2002-2004, pp. 129-179.
385
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2. A mais linda delas todas Aldininha se chamava.
3. - Aldininha, ó minha filha, tu hás-de ser a minha amada!”
D/202 Carvalho Rodrigues (1990) 90-91
Antes de mais, referimos que este motivo se insere noutro mais lato, o da “jovem
perseguida”, objecto de aprofundada análise semiológica de Veronica Orazi, que lhe
encontra raízes em primitivos ritos de iniciação sexual, celebrados no início da
puberdade e a cuja realização seriam inerentes provas de carácter repetitivo, incluindo
mutilações, carregadas de significado simbólico727. Orazi faz notar que é do despojar do
significado sagrado do ritual, quando este se torna em objecto profano, que nasce o
motivo; segundo Propp, dá-se um fenómeno de transposição do sentido do rito, que
entende como a substituição no relato maravilhoso de elementos do rito quando estes se
tornam incompreensíveis, devido a mudanças histórias, por outros elementos mais
compreensíveis, sendo a inversão um caso especial deste fenómeno, ou seja, a
conservação no relato maravilhoso das formas rituais, mas de sentido ou tratamento
oposto728. No caso do motivo específico “jovem perseguida”, Veronica Orazi refere o
simbolismo do seu isolamento em qualquer local “terrível e isolado” (floresta, deserto, à
deriva no mar ou rio) de onde partirá sofrendo aventuras sucessivas, que correspondem
a provas que o iniciado deve superar para vencer a “morte” ritual, após o que
“ressuscitará”, com qualidades mágicas. Refere, ainda, que o motivo se multiplicará em
numerosas atestações, cujo predicado constante é a perseguição sexual, particularizada
727
A autora analisa o motivo relativamente às suas derivações medievais e lista as suas numerosas
atestações na esfera ocidental e oriental, com respectiva bibliografía. Cf. Veronica Orazi, “Die Verfolgte
Frau: Per l’analisi semiológica di um motivo folclórico e delle sue derivazioni medievali (con speciale
attenzione
all’ambito
catalano),
em
http://publications.iec.cat/X.do?method=start&LIST.ID=REVISTESSCIENTIFIQUES&ModuleName,
arquivo acedido na Internet em 7 de Janeiro de 2009.
728
Cf. Vladimir Propp [1998 (1946)], Las Raices Historicas del Cuento, Madrid, Editorial Fundamentos,
1998. Assim, a iniciação sexual das jovens pelos mais velhos, por vezes parentes, terá deixado a sua
marca naqueles relatos ou, diríamos, ter-se-á transformado no motivo “perseguição das jovens”.
386
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
em outra de natureza incestuosa, quer seja paterna quer fraterna (sobretudo no que diz
respeito á figura do cunhado)729.
Relativamente a Silvana e Delgadinha, diremos que partilham o motivo “filha
perseguida pelo amor antinatural de um pai”, mas entendemos que o mesmo desdobrase em motivos distintos (“provocação da filha” e “beleza da filha”) que correspondem a
antecedentes narrativos diferentes, não obstante ambos cumprirem a mesma função justificar a intriga. É de lembrar que a tradição portuguesa, de uma maneira geral, liga
de tal modo os dois romances em versões compósitas, que o motivo da provocação de
Silvana se confundirá com o motivo da extrema beleza de Delgadinha.
A alteridade dos dois motivos simples, “provocação” e “beleza”, por vezes subtil,
fará variar o micro-relato subsequente:
Silvana:
Motivo: Provocação da filha.
- Micro-relato: Um pai agrada-se da filha pelas suas atitudes provocantes.
- Função no romance: Justificar as causas do assédio incestuoso.
Tendo já definido, anteriormente, os critérios para as situações de “provocação”
/”não provocação”, o primeiro como qualquer tipo de actividade que chame a atenção,
repetimos que se trata de um motivo que se actualiza mediante outros motivos com
conotações ligadas à sensualidade feminina, como “passear-se” ou “andar pelo
corredor”, “cantar”, “tocar instrumento musical”, “beber da fonte” ou “pentear-se”.
729
Encontra Orazi, como antecedentes do motivo, os episódios bíblicos de Susana (Dn 13, 1-64) e de José
e a mulher de Putifar (Gn 39, 1-20); embora os respectivos protagonistas não sejam efectivamente
parentes, mantêm entre eles relações equivalentes, com a categoria paternal a ser atribuída aos anciãos, no
primeiro caso, e uma ligação de tipo fraterno de José com Putifar, o que faria da mulher deste sua
“cunhada”. Já referimos romances com essa temática, não classificados especificamente como “de
incesto”, o Romance Bíblico Tamar (Tamar, IGR 0140) e o Romance Clássico Florbela e Brancaflor
(Brancaflor y Filomena, IGR 0184), nos quais o incesto (com violação) se dá, respectivamente, entre
irmãos e cunhados.
387
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Assim, se bem que posteriormente saibamos que Silvana é bonita, ou pelo menos
ganha na comparação com a mãe, não é essa a razão alegada para que o pai repare nela,
mas sim o que faz:
1. “Andava a bela Silvana pelo corredor acima,
2. se melhor canta, melhor baila, melhor romance fazia”
S/16 Ferré (1982) 207-208
A “não provocação”, por sua vez, está associada a uma certa passividade, como
estar, simplesmente, sentada na sala ou no jardim. De facto, Delgadinha nada faz,
apenas “é”. E é bonita, tanto que desperta a atenção e o amor do pai:
1.“Delgadinha, Delgadinha, Delgadinha bem delgada,
2. De tão linda que era o seu pai a namorava.”
D/44 Leite (1960) 56-57
Delgadinha:
Motivo: Beleza da filha.
- Micro-relato: Um pai agrada-se da filha porque esta é muito bonita.
- Função no romance: Justificar as causas do assédio incestuoso.
A beleza é uma qualificação estética valorativa de Delgadinha, dando-se uma
aproximação ao modelo canónico da beleza feminina das artes poéticas medievais730, e
a ênfase nesta circunstância tem um grande peso no sentido do romance. Um refrão “Oh, és tão linda/Oh, tão linda/ e ó tão linda”-
730
que surge em certas versões de
A “louvanza da dama” é, segundo G. Tavani, um dos campos sémicos que caracterizam
topologicamente a cantiga de amor, circunscrevendo uma qualificação estética abstrata e indeterminada
ou valoração positiva do aspecto físico e associando a beleza a outras qualidades. Cf. Giuseppe Tavani
[1991], A Poesía lírica galego-portuguesa, 3ª ed., Vigo, Editorial Galaxia, 1991, pp.109-110. Por sua vez,
Arnaldo Moroldo faz a síntese do belo feminino: “A mulher cantada pelos trovadores é uma mulher loira,
de pele branca e faces rosadas, isto é, reúne as características do tipo nórdico que não do mediterrânico.
[… e da soma das suas partes deverá emanar] uma impressão de elegância, de delicadeza, …”. Cf.
Arnaldo Moroldo, “Le portrait dans la poésie lyrique de langue d’oc, d’oïl et de si aux XIIe et XIIIe
siècles”, Cahiers de Civilisation Médièvale, XXVI, 1 e 2: 149-67 e 239-50, apud Paulo Meneses,
Trovadorismo galaico-português (vozes & afectos), Cascais, Patrimonia Literária, 1998, nota 65, p. 96.
Assim, o motivo da beleza feminina hiperbolizada é partilhado pelos agentes poéticos de ambos os
géneros, poesia trovadoresca e romanceiro.
388
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Delgadinha731, realça, pelo seu tom exclamativo e repetitivo, a assunção de que a beleza
da filha é o motivo que subjaz ao tema do romance, enquanto em Silvana, cuja
protagonista, seguramente, é também muito bonita, prevalece o motivo da
“provocação”732.
O aspecto físico da rapariga é semelhante ao das irmãs, todas muito belas (1.”Um
pai tinha sete filhas mais lindas qu'a maravilha”, D/96 Ferré (1982) 216-217), mas com as
quais se faz uma comparação amplificante (é a mais nova, a mais velha, a mais
afidalgada, a mais linda); também é comparável ao sol, ao ouro e à prata, com os quais
merece ser vestida:
1.“Selibana, se quisesses, eras tu a minha amada,
2. de ouro andavas vestida, de prata andavas calçada.”
D/130 Marques/ Silva (1984-1985) 117-118
Acontece, mesmo, ser a beleza da rapariga apresentada como a causa próxima do
enamoramento733 e, até, uma fatalidade, como está implícito no verso 2.“De tão linda que
era o seu pai a namorava” da versão D/44 Leite (1960) 56-5, que parece insinuar que o
pai não tem culpa. Neste caso, a “infracção” às normas sociais e morais residirá apenas
no facto de o enamorado ser o próprio pai, vindo o motivo “beleza” a entrar em conflito
com o tabu do incesto e o seu axioma “os pais não se enamoram das filhas”, que
anteriormente referimos.
731
São elas a D/18 Nunes (1928) 229-230 (como referido pelo editor), a D/56 Leite (1960) 77-80, a D/57
Leite (1960) 80-81, a D/68 Purcell (1968) 149 e também em Silvana, a S/26 Fontes (1983b) 101 (como
referido pelo editor).
732
Outra opinião teve Joanne Purcell, que parece atribuí-lo a Silvana. A investigadora considerou a
versão que leva a nossa numeração D/68 Purcell (1968) 149 como “Silvana/Delgadinha” e diz: “This
refrain emphasizes Silvanas beauty as a motivation for the fathers incestuous desires. The emphasis on
Silvanas beauty is characteristic of the Silvana ballad.” [….] . The refrain “oh és tão linda” of my
Silvana / Delgadinha variant occurs in only two other published texts of Delgadinha (cf. Vasconcellos,
509, 510 from Nisa). [são as n/D/56 Leite (1960) 76-77 e D/57 Leite (1960) 80-81]. Cf. Joanne
Burlingame Purcell [1968], Portuguese Traditional Ballads from California, Tese de Mestrado, Los
Angeles, University of California, 1968.
733
Diz Ana Maria da Silva Machado, a propósito da mulher e da representação no Mal na hagiografia
medieval, que “a formosura, que na conformação do herói-santo pode ser uma manifestação de santidade,
é prevalentemente encarada como fonte de tentação, por vezes involuntária”. Cf. Machado [1993].
389
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Por outro lado, se a beleza justifica o assédio, dá-se, simultaneamente e segundo o
método de interpretação dos elementos narrativos postulado por Bengt Holbek que atrás
referimos, uma externalização, com a hiperbolizada caracterização física de Delgadinha
(é mais linda que o sol) a representar as suas qualidades morais 734 – sendo
excepcionalmente
bonita
é
excepcionalmente
virtuosa
e,
por
isso,
recusa
terminantemente um acto pecaminoso.
Motivo: A mãe
O motivo “mãe” 735 , é também partilhado por Silvana e por Delgadinha, mas
assume aspectos e funções bem diferentes em ambos os romances.
Silvana:
- Micro-relato: A mãe troca de cama e de roupas com a filha para frustrar os
intentos do pai.
- Função no romance: Repor a ordem natural da família.
Delgadinha:
- Micro-relato: A mãe recusa dar água à filha que lha pede.
- Função no romance: Associar-se ao poder.
734
Das regras de transformação de Bengt Holbek, aplicam-se, neste caso, a externalização (“Les qualités
morales s’éxpriment sous forme d’attributs physiques ou par l’action”) e a hipérbole (L’intensité d’un
sentiment est exprimée par l’exagération de ce que le suscite”). Cf. Holbek [1990], pp. 126-162.
735
O motivo “mãe” ocorre também nas versões do tipo A de Veneno de Moriana, nas quais a mãe é
confidente da filha e a voz que a adverte do ludíbrio do cavaleiro; por outro lado, este, ao sentir-se
morrer, lamenta a mãe, figura que, por sua vez, Moriana invoca como aquela que tinha esperanças no
casamento. A mãe, como motivo/entidade tutelar, é ainda a personagem que, nas versões de Gerinaldo
contaminadas com D. Pedro Pequenino, aconselha o pajem preso a cantar, para comover o rei à
compaixão; nas contaminadas com Conde Ninho, a mãe é entidade nefasta, pois que manda matar os dois
amantes. A questão das contaminações será tratada no capítulo seguinte.
390
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Em Silvana, a presença do motivo “mãe” é crucial para a intriga, na qual toma um
papel importante, sem o qual a intriga própria do romance não se desenvolveria, pois, ao
ouvir a filha queixar-se do assédio do pai, a mãe manda-a trocar de leito e de roupas:
9.“Se isso fora, ó Silvana para isso remédio havia:
10. Eu vou para a tua cama tu te vais deitar à minha.”
S/7 Soromenho (1963) 55
11.“- Dá-me cá esse tê lenço, impresta-m' o tê vestido,
12. qu' ê quero ver esse velho, que te quer, que te queria.”
S/10 Purcell (1976b) 17-18
A queixa à mãe, que equivale a uma fuga ao pai, bem como a alegação de que este
quer casar com ela, aproximam o incidente de parte do ponto b) (“flees in disguise from
father who wants to marry her”) de I. The Persecuted Heroine do ciclo conhecido como
Cinderella736. O motivo é uma constante em Silvana e, para o desenrolar da intriga, é
indiferente que a mãe esteja viva ou morta; a mãe ajudará a filha737, mesmo se, para
isso, for preciso vir do outro mundo (motivo E323.2. Dead mother returns to aid persecuted
daughter), como nas versões da Madeira, sendo a orfandade o factor a que Maria Aliete
Galhoz atribui as razões da contaminação com Queixas de D. Urraca 738 , a que nos
referiremos adiante:
13. “encontrou a sua mãe que vinha da outra vida,”, S/16 Ferré (1982) 207-208
A regra , porém, é que a mãe esteja bem viva, o que o pai, de resto, lamenta739:
4.“- Se a rainha já era morta, Silvana, tu eras minha”, S+D/20 Fontes (1983a) 121-123
736
Cf. Thompson [1987], pp. 175-178 e Cardigos [2006], p. 123.
Declara-o mesmo ao marido, explicitamente: 12.“venh'aqui por Selivana que te queres namorar dela.”,
S/20 Ferré (1982) 210-211. Pode, no entanto, haver a variante segundo a qual a mãe não ajuda a filha, em
versões compósitas de Silvana e Delgadinha, questão que abordaremos no Capítulo seguinte.
738
Cf. GRPP, C. Nota pontual a dois romances mais raros, p. LVIX-LX. Há também versões de Silvana
em Espanha nas quais a mãe está morta. Cf. Estévez [1981], no Tomo I, pp. . 404, 405, as versões S. 64:
p. 574: mi madre que estaba muerta se me representa viva (Tenerife), La flor de la marañuela e S. 11.:
p. 521 – Bajó su madre del cielo a consolar a su hija (Leon) – Inedito Arq. M. Pidal.
739
Embora se trate, no exemplo dado, de uma versão compósita de Silvana e Delgadinha.
737
391
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Com a atitude tomada pela mãe, não só esta ajuda Silvana a evitar o incesto como,
no fundo, repõe a ordem natural das coisas – quem deve ocupar esse lugar e essa função
é ela e não a filha. De facto, as palavras do próprio pai, na comparação que faz entre a
mulher e a filha, favorecendo esta, sugerem uma substituição dos respectivos papéis:
3.“- Melhor me pareceis, D. Silvana, com vestido de cada dia,
4. do que vossa mãe, rainha, com quanto ouro havia.”
S/24 Fontes (1983a) 121
Mais explícito, ainda, é o que Silvana diz á mãe:
9.“- Ó senhora, é el-rei, mê pai, que por sua esposa me queria.”
S/33 Fontes (1996) 120-121
Associado ao motivo da mãe, ocorre o do “espelho” e que, embora não seja
habitual no romance, surge em duas versões. Numa delas, o motivo intensifica o sentido
do ardil materno ao falar com a filha, como se, de facto, o “espelho” lhes trocasse, ou
mesmo confundisse totalmente, as respectivas identidades (a); noutra, a mãe fala ao
marido, e o “espelho” reporta-se simultaneamente à filha (ele “viu” a imagem da filha
na mulher) e à relação entre eles próprios (ela reflecte a honra dele).
12.“Veste tu os meus vestidos que eu os teus vestiria,
13. assoma-te ao meu espelho que eu ao teu me assomaria.
14. deita-te na minha cama que eu na tua me deitaria”
S+D/7 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 40-45
14.”[………………….] – Silvana não está perdida
15.pois quem tu tens em teus braços é o espelho onde te vias.”
S+D/6 Pires (1902)/Pires (1982) 14-15
392
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Na verdade, parece haver uma inversão do motivo H363.1. (“Bride test: wearing
deceased wife’s clothes”)740, pois no romance não é a filha que veste a roupa da mãe.
Neste caso, havendo uma troca que é simbólica, esta toma a forma de um ardil.
Em Silvana, as roupas são um motivo de grande importância na revelação do seu
sentido, não só nesta troca de vestuário que faz confundir a identidade de mãe e filha
como também porque, anteriormente, esta última faz o pai crer que anui à sua
solicitação incestuosa, dizendo:
4.”Vou lavar minhas carnes, vestir minhas alvas camisas,” S/17 Ferré (1982) 208
Ora, segundo Helder Macedo, embora reportando-se às cantigas de amigo, a
“alva”, palavra usada nas cantigas de amigo em vários sentidos, define uma identidade
entre a água que lava a roupa e a “virgem”, que é branca e pura. Por sua vez, o contacto
da “ camisa” com o corpo nu, “acentua o seu valor mágico de substituição metonímica de
quem as usa, que aliás está na base de todos os feiticismos”. Quanto ao “banho” é “um ritual
simbólico da expectativa núbil, cujo significado profundo se relaciona com a arquetipal
associação entre a água e a sensualidade feminina”741. Também Silvana parece, com aquela
declaração, ir preparar-se para umas, ainda que anti-naturais, núpcias, fazendo esperar o
pai, à semelhança do poema abaixo:
“Tate, tate, caballero, // dejá el amor para manãna: // lavaré mi lindo cuerpo, // me pondré
naguita blanca”, [Manuel Alvar (1966), Poesía tradicional de los judíos españoles,
México]742
A mãe, em Silvana, de facto, não hesita em pôr em causa o Poder do marido,
enquanto chefe de família, mas, de facto, o que está a fazer é a salvaguardar a sua
posição nela, o que implica que, no fundo, embora paradoxalmente, está a proteger a
740
Já referimos a condicionante de ser a mulher do rei, antes de morrer, a fazer-lhe prometer que só
casaria com outra mulher que a suplantasse em beleza e/ou a quem servisse algum adorno seu; sendo esta
a própria filha, o pai tem de casar com ela.
741
Helder Macedo [1996], “Uma Cantiga de Dom Dinis”, em Reckert, Macedo [1996], pp. 61-70.
742
Stephen Reckert, comentários de, “Cinquenta Cantigas de Amigo”, em Reckert, Macedo [1996], pp.
73-248.
393
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
instituição Família. É este, afinal, o sentido e a função do motivo neste romance,
enquanto em Delgadinha o seu papel é, dir-se-á, de sinal contrário. No caso deste
romance, a mãe não desempenha função muito diferente da dos outros membros da
família a quem a jovem implora água, a não ser pela intensificação dramática implícita
que decorre da negação do que se espera da sua condição de mãe, i.e., auxiliar a filha.
Na verdade, ela associar-se-á sempre ao marido, negando a água à filha, mesmo que lhe
lamente a sorte. O problema, neste caso, é que esta mãe opõe o papel maternal ao
conjugal, por sentir a sua situação ameaçada, talvez com mais premência do que a de
Silvana. No argumento de “estar mal casada” que dá para não auxiliar a filha, está
implícito o seu conhecimento de que esta a substitui no seu papel, o que não pode
permitir. É certamente o ciúme desnaturado que move esta mãe que, na sequência
seguinte da versão, assim responde à filha:
33.“- Vai-te daqui, ó maldita, vai-te daqui, ‘maldiçoada,
34. por amor de ti, maldita, passo eu tão mal casada.”
D/6 Nunes (1900-1901) 171-173
Na verdade, a posição da mãe dentro da hierarquia doméstica é aceite sem
reservas por Delgadinha; embora não seja uma constante de todas as versões do
romance, um dos argumentos invocados pela protagonista para se recusar a ceder ao pai
é, precisamente, não prejudicar a mãe, o que vem a ser o mesmo que defender o papel
desta:
4.“- Eu não, senhor pai, que faço a mãe mal casada”, D/45 Leite (1960) 57-58
Neste romance, a “mãe”, enquanto motivo, salvaguarda o seu papel e também a
organização familiar, através da associação ao seu chefe, mesmo que isso implique
sacrificar a filha. Dir-se-á que o motivo “mãe”, em Delgadinha, é um caso de
“resistência passiva” à ameaça a determinada estrutura social, representada pela própria
filha. Note-se que há variantes do romance em que a mãe toma um papel activo logo de
394
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
início, quando é ela que manda encerrar a filha, por causa da acusação do pai de que
esta a persegue:
3.“Sabes lá, ó mulher minha, o que vai na nossa casa!
4. Nossa filha Dalgadinha pol'amores me tratava!
5. Diz-me lá; mulher minha, degredo le vamos dar.
6. - Manda-se pôr numa ventana, numa ventana bem alta,
7. Dá-se-1'água por medida, sardinhas a mais salgada.”
D/58 Leite (1960) 81-82
Nestas versões, a mãe acredita no pai sem reservas ou estranheza e chega a culpar
a filha do sucedido, ou seja, de esta querer subverter a ordem natural das coisas:
40. “O que tu precisavas era ser degolada,
41. Pois t'of'receste a teu pai para sua namorada.”
D/51 Leite (1960) 68-69
Estas versões vêm corroborar o contraste já estabelecido com Silvana, a quem a
mãe pergunta à filha o que se passa e actua de acordo com o que dela é esperado,
enquanto a de Delgadinha, simplesmente, aceita de imediato a palavra do marido.
3.4. DELGADINHA
Motivo: Dar a mão.
- Micro-relato: O pai pede à filha que lhe dê a mão direita.
- Função no romance: Reforçar o carácter simultaneamente ilícito e dúbio da
relação proposta.
A relação incestuosa geralmente traduzida pela expressão “queres ser a minha
amada/namorada” pode apresentar uma variação ainda mais eufemizada, a do motivo
“dar a mão [direita]”, podendo as duas modalidades ser conjugadas (a negrito):
1.“O conde das três Marias tinha três filhas lindas como o sol.
2. Faustina, como mais velha, de todas mais engraçada,
3. A que seu pai pretendia para sua namorada.
395
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
4. Pediu-lhe a sua mão direita, ela disse que não lha dava.”
D/32 Leite (1960) 44-45
Se o sentido da primeira é óbvio, já a segunda coloca um problema adicional no
contexto do romance. De facto, “dar a mão direita” é o mesmo que casar743, o que é uma
impossibilidade moral e legal entre pai e filha744, o que tornaria dúbia a utilização deste
motivo no romance, não fosse, como atrás se disse, este pseudo-casamento equivaler à
substituição da mãe pela filha. Em Silvana, esta proposta é para uma relação ocasional,
que se traduz por expressões do tipo: “[brincar] uma noite/um dia/uma hora” ou como
na S/9 Purcell (1976a) 166-167: “- Bem puderas tu, Silvana, seres minha sequer um dia.”. Em
Delgadinha, pelo contrário, há uma paridade do traço “situação persistente no tempo”
com “ser namorada” ou casar, que indica uma substituição permanente, com a
consequente desordem familiar a tornar-se maior e a tender para uma desordem já do
tipo social. Para esta filha, também os dois estatutos, ser “namorada” e ser “mulher”
equivalem-se no horror que lhe causam:
3.“- Delgadinha, Delgadinha, serás minha namorada.
4. - Isso não, ó meu pai, é coisa que Deus não quer,
5.
Pois eu sou a sua filha, não sou a sua mulher.”
D/43 Leite (1960) 56
No final, Delgadinha toma consciência de que o pai não lhe dará água se não
ceder; para a obter, a rapariga promete tudo745, seja “esposa ou “namorada” ou qualquer
743
Sobre o sentido das mãos, esquerda ou direita, cf. o capítulo Tempo 5 … E as Mãos, pp. 169-200, em
Ana Paula Guimarães [1992], Olhos, Coração e Mãos no Cancioneiro Popular Português, Lisboa,
Círculo de Leitores, 1992.
744
Sobre os vários tipos do tabu do incesto, cf. Joaquim Lino da Silva [1988], “Uma Nota de Etnologia
Genética: As Duas Linearidades”, Revista Lusitana. Nova Série, 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 47-66;
Joaquim Lino da Silva [1997], “ Achegas para o Estudo das Duas Linearidades”, Revista Lusitana. Nova
Série, 16, Lisboa, Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro, 1997,
pp. 55-72; Joaquim Lino da Silva [1998], “Algumas Considerações sobre o Tabu do Incesto”, Revista
Lusitana. Nova Série, 17-18, Lisboa, Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel
Viegas Guerreiro, 1998, pp. 119-146.
745
Nas versões com elipse desta resolução, o sentido é de que a rapariga resiste até ao fim sem a
promessa de cedência.
396
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
das situações (a) e, em certas versões (b), o motivo reaparece (“dar a mão direita”, “dar
a mão esquerda”, expressão equivalente a ter um amante746 ):
(a): “[37.- Ó querido pai dest'alma, dai-me uma gotinha d'água
38.Que se me aparta a vida e se me arranca a alma,]
39.Que eu serei a sua esposa mai-la sua namorada.”
S+D/23 Cortes-Rodrigues (1987) 346-348
(b): “[37.- Deus vos guarde, ó Faustina, minha filha malfadada,
38.eu pedi-te a mão direita, tu não ma quiseste dar.]
39. - Aqui tem a mão direita, a esquerda se a quiser!”
D/1 Braga (1867) 181-183
Motivo: O castigo.
- Micro-relato: Um pai encerra a filha, durante um grande espaço de tempo, dandolhe apenas alimentos salgados e um mínimo de água.
- Função no romance: Sublinhar o poder do pai e fazer ceder a filha.
O motivo do castigo aplicado a Delgadinha por se negar a manter com o pai uma
relação incestuosa consta de uma conjunção de outros elementos e motivos.
O sentido mais imediato do primeiro elemento significante do motivo “castigo”,
que se traduz por “encerrar a filha [numa torre ou outro local]” é, logicamente, o da
privação física de liberdade747, o que lhe confere a função primordial de sublinhar o
Poder do pai sobre a família; este exerce-se não só sobre o membro infractor (a filha que
746
Se a mão direita tem um valor positivo, a mão esquerda tem um valor negativo (Ver Guimarães
[1992], pp. 169-200); por isso, por contraste, sendo a direita a que se “dá” no casamento legítimo, “dar a
mão esquerda” significa a ilicitude de entregar-se a um amante.
747
O motivo “castigo” ocorre igualmente em Bernal Francês e em Gerinaldo; no primeiro, trata-se não
de privação de liberdade para a adúltera, mas da sua morte; no segundo romance, é variável – ou o castigo
tem o sentido mais literal (o pajem é preso) ou pode traduzir-se pelo casamento ordenado pelo rei. Em
Veneno de Moriana também está implícito um castigo, que é a morte do cavaleiro porque faltou ao
compromisso do casamento; quanto à protagonista, só em alguns Prolongamentos, se dirá que vai para a
prisão. Já em Silvana, há um castigo, sim, mas para o pai e é um castigo moral, que se manifesta na
humilhação de ser desmascarado pela própria mulher. Ainda em Delgadinha, o castigo do pai (e outros
membros da família) ocorrerá em Prolongamento e é de ordem moral, com carácter divino – o castigo é ir
(irem) para o Inferno.
397
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
se nega a obedecer-lhe) como também sobre todos os outros, como é patente nas razões
apresentadas por estes para não socorrer Delgadinha. Todavia, o motivo integra, muitas
vezes, a explicitação da sua duração e do tipo de alimentação que deverá ser ministrada
a Delgadinha, circunstâncias que lhe imprimem implicações mais complexas, que levam
à questão de se tratar de um castigo ou de um meio de a fazer ceder à sua vontade. As
versões, por vezes, explicitam que se trata de um “castigo”:
8.“Alevantou-se sê pai da cama, à Silvana’à dar castigo
9. E meteu-a nema torre, às sete tchaves fetchada,
10. Aonde comia por onças e bebia por medidas,
11. Só sardinha salgada e a rodes canto queria.”
D/60 Buescu (1961) 213-214
A duração do castigo é longa, de sete anos (havendo variações), e determinada
pelo pai assim que ela se nega, pelo que se assemelha a uma pena de prisão ditada em
tribunal:
1.“Hei-de fazer ua torre, tão alta cum' ua ...
2. Pra meter Faustina dentro sete anos e um dia.”
D/71 Pereira (1970) 246-247
Não é explicitado, no romance, o que pretende o pai fazer com ela após o
cumprimento de tal pena, mas o número sete 748 indica uma transformação, uma
mudança depois de um ciclo749, pelo que Delgadinha deveria ser libertada após esses
“sete anos”. Aos sete anos junta-se um dia, que alonga a pena e serve a acentuar a
crueldade do encerramento, por exclusiva vontade do pai. Como não o chega a ser, o tão
longo espaço de tempo de encerramento que é anunciado logo de início parece, então,
destinar-se mais a aterrá-la e fazê-la mudar de ideias do que simplesmente a punir-lhe a
desobediência. Por isso, a comprovação de não se tratar de um simples (ainda que cruel)
748
O número sete é, segundo Trindade Coelho, “muito do agrado popular” e simbolicamente
plurissignificativo. Cf. Coelho [1993], p. 17.
749
“[N]os contos e nas lendas, este número exprime os Sete estados da matéria, os Sete graus da
consciência, as sete etapas da evolução” e “[A] cada sete anos os servidores são libertados e os devedores
perdoados”. Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 603-606.
398
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
castigo está no facto de o prazo do encerramento ter sido determinado mas não
respeitado, como deveria acontecer, se aquele correspondesse a uma pena de prisão.
É certo que a outra parte do castigo consta de impor a Delgadinha alimentos
salgados e que lhe seja dada pouca água ou insalubre, o que leva a crer que o
objectivo do pai é castigar a filha:
10. “Inda para mais castigo nem um copo d'água lhe dava !”, D/32 Leite (1960) 44-45
Em algumas versões, parece mesmo que o faz de forma a provocar-lhe a morte:
11.“Mando-te fazer uma torre no alto à maravilha
12. para meter-te, Silvana, Silvaninha, algum dia!
13.A dar-te pão por onças e água por medida
14. e uma sardinha salgada p'ra te tirar a vida.”
D/9 Tavares (1906) 280-281
Todavia, os alimentos são quase sempre administrados, sejam eles muito salgados
ou de natureza repugnante (8.“a carne era maur [sic] cebada”, D/13 Basto (1914) 59-60) e,
ainda, não comestíveis (8. “dava-lhe pedras por pão”, D/2 Azevedo (1873) 767) ou em
pequena quantidade (6.“um quarto de pão por dia”, D/3 Azevedo (1880) 109-112), embora
apareçam versões em que a comida é dada em quantidade, mas sempre excessivamente
salgada:
8.“Bacalhau aos quintais, sardinha, quanta havia.”, D/35 Leite (1960) 48
4.”A comida que le dava era comida salgada,” D/224 Cruz (1995) 217
A pouca água que lhe dão, por sua vez, é deliberadamente insalubre:
7.“y, si os pide de beber, dadle la hiel de retama.”, D/5 Pires (1885d) XII
8.“o que lhe dava a beber, a água em que se lavava.”, D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168
6.“a bubida que le dava era água de pescada.”, D/10 Tavares (1906) 303-304
8.“a bobida que le mandava era água d' azeda clara.”, D/17 Martins (1928)/Martins
(1987) 221-222
9.“A água que bebia era do mar mais amargo.”, D/219 Cruz (1995) 212-213
A morte infligida por privação de alimentos será mais cruel se estes não forem
399
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
retirados por completo, de modo a retardar intencionalmente aquele fim, representando
uma tortura adicional750. Todos exemplos atrás servem para indiciar a vontade não de a
matar Delgadinha à fome, mas de a torturar, sobretudo pela sede, finalidade que, muitas
vezes, é explícita:
9.“À fome não morria, mas à sede estava a findar;”, D/44 Leite (1960) 56-57
A sede é, na verdade, o que mais atormenta Delgadinha e o que ela implora,
sempre, à família, revelando, deste modo, a sua debilidade física, mas, sobretudo, o seu
estado emocional:
16. “- Deus vos salve, ó minhas manas, para que sejais bem criadas,
17.
mandai-me dar de beber pela hóstia que é sagrada
18.
que ou de fome, ou de sede, está-se-me apartando a alma.”
D/6 Nunes (1900-1901) 171-173
21.“- Ó madre que Deus me deu, dá-me uma pinguinha d' água;
22.
a sede me trespassa a vida, o coração e a alma.”
D/8 Pires (1903-1905) 216
Torna-se, assim, o meio mais eficaz de fazer vergar a jovem aos desejos do pai,
como ela própria reconhece:
29.“- Ó meu pai, que Deus me deu, dai-me uma pinguinha d' água,
30. que daqui para o futuro serei sua namorada!”
D/9 Tavares (1906) 280-281
A conjugação dos aspectos do tormento infligido - inacessibilidade do local de
encerramento, insistência no sal dos alimentos e escassez da água 751 - perde então o
750
Considerando este facto como um “motivo” que se manifesta em outros discursos significantes,
encontramo-lo numa lenda urbana aparentada, cremos, com Delgadinha, a que nos referiremos no
Capítulo seguinte, a propósito das prosificações.
751
Pode haver uma total privação, embora apenas quando o prazo não se mede por anos mas por dias,
presumindo-se que algum tempo sem comer nem beber não mataria a jovem:
3.“O papá quando ouviu isto numa torre a pôs fechada,
4. p'ra lá estar sete dias sem comer nem beber nada.”
D/12 Gomes Pereira (1910) 98
400
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
sentido de mero castigo e toma o carácter de uma estratégia paterna para fazer ceder a
jovem ao desejo incestuoso.
A água que lhe é fornecida faz parte do motivo “castigo”, por ser pouca e
insalubre, adquire, no romance, uma dimensão mais significativa do que os alimentos,
pelo seu sentido simbólico. Uma vez que se trata de uma água imprópria, vai desde logo
levar a uma associação de sentido com a que lhe é posteriormente enviada pelo pai, logo
que Delgadinha declara que está disposta a cometer o incesto:
27.“- Vai Carlos a toda a pressa buscar água a Baldebina;
28. trá-la num cálice dourado, num copo de prata fina.”
D/14 Lima (1914) 294-295
Se bem que esta água seja, agora, limpa e enviada em recipientes “nobres” (ouro
ou prata), ela é, metaforicamente, uma água inquinada pelas más intenções do pai .
Deste modo, no romance, o motivo da “água” é dotado de duas dimensões de
sentido. Tanto a água que é dada durante o encerramento como a que é enviada pelo pai,
está associada à materialidade, ao corpo, com um sentido implícito de ligação ao Mal,
visto que a primeira é “suja” pelas suas características insalubres, e a segunda, embora
“limpa”, é também “suja” porque, a ser recebida por Delgadinha, concretizaria a sua
degradação. De sinal contrário é outro sentido do motivo “água” – o da que a jovem, à
sua morte, tem à cabeceira. Nas versões, raramente se elide a morte de Delgadinha,
mesmo que narrada pelo implícito de a água não ser já precisa (29. “Quando o Barcelos
correu já iauga nu' era precisa.”, D/13 Basto (1914) 59-60). E não o é, em primeiro lugar,
Note-se que a substituição de anos por alguns dias se dá, preferencialmente, nas versões em que
Delgadinha é requestada por alguém que não o pai, embora não como regra. Assim acontece na versão
acima e também em outras, como a D/15 Lima (1916) 43-44 (7.“Esteve lá oito dias sem comer nem beber
nada”), a D/16 Landolt (1917) 83-84 (5.“Oito dias, oito noites, sem comer nem beber nada”) ou a D/22
Joaquim Lima/Pires Lima (1943) 26-27 (5.“Assim esteve oito dias e oito noites, sem comer nem beber
nada.”). Já nos referimos atrás à obra A freira no convento, na qual a protagonista, Bárbara Ubryk, para
não casar com o indesejado Zolpki, é enviada pela família para um convento, onde é sujeita às maiores
atrocidades e encerrada na escuridão do In pace, apenas lhe sendo dada o pão e a água suficientes para
não morrer.
401
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
pela razão bem prosaica de já não fazer a rapariga voltar à vida; no entanto, também
não é precisa porque, junto dela, está a água clara e pura, que está associada à
espiritualidade752, o que comportará um sentido implícito de ligação ao Bem.
21.“era ao fim de sete anos, Aldina já morta estava,
22.com uma fonte à cabeceira que Deus do céu lhe mandara.”
D/99 Ferré (1982) 219-220
A sua aparição junto da jovem, que é um facto miraculoso, não tem como função
fazer o milagre de salvar a vida de Delgadinha, visto que ela morre, mas não por falta de
água, como chega a ser bastante explícito (27.”Baldininha se morreu, não morreu por falta
de água.”, D/254 Caufriez (1998) 206-207), mas metaforiza a honra que reside na
preservação da virgindade, assim representando a salvação, não do corpo, mas da sua
alma, pois evita-lhe que cometa o pecado do incesto. Por isso mesmo, esta água
facilmente coexiste com a presença junto da morta de diversas entidades celestiais, ou é
comutada com estas.
O cenário final que enquadra a morte de Delgadinha sofre
variações quanto aos elementos que a rodeiam, mas estes equivalem-se em termos de
sentido, uma vez que qualquer um deles pertence ao domínio do sagrado, seja de
contornos pagãos, no caso da água, sejam eles cristianizados, no caso dos anjos, de
Nossa Senhora ou de diversos santos. Vejam-se os dois exemplos seguintes; no
primeiro, o motivo da “fonte”, explicitamente referida como sagrada, tem o mesmo
sentido do segundo exemplo, que integra Nossa Senhora:
29.“Encontraram-na morta ao pé duma fonte sagrada.”
D/44 Leite (1960) 56-57
29.“Nossa Senhora a levou p'ra o pé duma fonte de prata.
30. Duas fontes a correr, um tanque grande cheio d'água.”
D/55 Leite (1960) 76-77
752
Cf. Estevez [1978], pp. 551-579.
402
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A simbiose dos elementos sagrados pagão/cristão torna-se evidente:
33.“Aldininha não quer água, Aldininha já está morta;
34. os anjos à volta dela um rego d'água à volta.
35. Aldininha não quer água, ela tem-na à cabeceira,
36. que lha mandou Deus do Céu num jarro de vidraceira.”
D/73 Alberto Correia/António Nunes (1978a) 329-330
O motivo a que chamamos genericamente “castigo”, como vimos, conjuga dois
aspectos – o do castigo propriamente dito, no sentido em que este é uma pena aplicada à
filha desobediente, e o de estratégia, no sentido em que a privação de água, a
administração de alimentos salgados e o encerramento são os meios férreos que o pai
tem ao seu dispor para a obrigar a ceder à sua vontade. Ademais, em certas versões, a
falta de luz junta-se ao tormento imposto:
5.“Mandou fazer uma torre das mais altas que havia,
6. para meter Sulivana sete anos e um dia,
7. aonde não visse ninguém nem tão-pouco a luz ao dia.”
D/141 Ferré (1987) 76-77
Estas circunstâncias - a escassez e insalubridade da alimentação dada à jovem e o
isolamento a que é sujeita, que a afasta de qualquer pessoa -, representam por parte do
pai a negação de um destino dito normal à filha, que se traduziria pela possibilidade do
casamento
753
, tanto mais que
o “sal” dos alimentos condena Delgadinha,
implicitamente, à esterilidade754, como está implícito na expressão “secar a vida”:
753
Este sentido do castigo agrava-se nas versões que levam a crer que Delgadinha é aprisionada por ter
sido requestada por um namorado”, ao acrescer ao motivo uma insinuação de ciúmes do pai, pois, nestes
casos, traduzir-se-ia por “se não és para mim também não serás de outro”.
754
O sal opõe-se à fertilidade de uma vida normal. Salga-se a terra para a tornar estéril e isso acontece
como punição, como no caso das sentenças aplicadas aos acusados de tentativa de assassínio de D. José,
em 13 de Janeiro de 1759, no que ficou conhecido pelo Processo dos Távoras. Além das penas sobre as
suas pessoas, foram as armas picadas de onde se encontrassem e as casas arrasadas e salgadas para que
nunca mais nada aí crescesse. Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, D. José, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006, p.
125. Assim aconteceu à casa que o 8º Duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas da Silva e Lencastre,
possuía em Belém, tendo sido erigido, no local que hoje leva o nome “Beco do Chão Salgado”, um
padrão com a seguinte inscrição: "AQUI FORAO AS CASAS ARAZADAS E SALGADAS DE JOZE
MASCARENHAS EX AUTHORADO DAS HONRAS DE DUQUE DE AVEIRO E OUTRAS E CONDEMNADO
403
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
6.“só lhe dava pão por onça e a água por medida,
7. bacalhau às arrobas para lhe secar a vida;”
D/8 Pires (1903-1905) 216
3.5. GERINALDO
Motivo: Ocultação da identidade.
- Micro-relato: A infanta diz ao pajem o que deve fazer, quando ele for ao seu
quarto.
- Função no romance: Estabelecer o secretismo do encontro.
Após obter o assentimento do pajem à proposta de com ela dormir, a infanta
marca a hora do encontro. O sentido do micro-relato é, até, bastante explícito e a hora
marcada, por si só, sendo combinada entre uma qualquer mulher e um qualquer homem,
estaria desprovida de sentido oculto, não fosse, desde logo, ser tão tardia:
5.“- Vem pela meia-noute em pino, que está el-rei meu pai a dormir.”
G/11 Dâmaso (1882) 235-236
Além disso, a infanta trata também de lhe dar indicações precisas sobre o que háde fazer:
7.“Trazes sapatos de lona para não seres sentido;
8. trazes capote de vulto para não seres conhecido.”
G/79 Ferré (1982) 245-246
Deve o pajem, então, ir a coberto da noite, quando o rei estiver a dormir e
embuçado e calçado de modo a não ser reconhecido ou ouvido, o que constitui o motivo
da “ocultação de identidade”. A combinação dos seus elementos constitutivos revela,
logo no início do romance, a ilicitude desses amores; o facto de referir o pai e não o
POR SENTENÇA PROFERIDA NA SUPREMA JUNTA DA INCONFIDENCIA EM 12 DE JANEIRO DE 1758
JUSTIÇADO COMO HUM DOS CHEFES DO BARBARO E EXECRANDO DESACATO QUE NA NOITE DE 3
DE SETEMBRO DE 1758 SE HAVIA COMMULADO CONTRA A REAL E SAGRADA PESSOA DE EL REI
NOSSO SENHOR D. JOZE. NESTE TERRENO INFAME SENÃO PODERA EDIFICAR EM TEMPO ALGUM.".
Cf.
s.a.,
Padrão
do
Chão
Salgado,
disponível
na
Internet
http://historiaaberta.com.sapo.pt/lib/loc007.htm, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011.
404
em
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
marido faz perceber que não se trata de uma mulher casada, caso em que referiria este
como aquele que, mais que todos, deve ignorar o que se passa755, mas de uma jovem
solteira, para mais filha de rei. Os amores ilícitos usam ser discretos e esses encontros
combinados às escondidas de todos e a coberto da escuridão, por isso, há que tomar
precauções para não ser visto; por outo lado, e porque a escuridão é traiçoeira, como
vimos em Bernal Francês, é preciso fazer-se reconhecer e combinam-se certas senhas,
tal como, também, em Gil Vicente. Veja-se o diálogo entre a Ama e o Castelhano, em
Índia, 1519:
“Castelhano
A qué hora me mandáis?
Ama
Às nove horas e nô mais
e tirai ũa pedrinha
pedra muito pequenina
à janela dos quintais.”756
Na Floresta de Enganos, 1536, diz a Moça ao Doutor:
“Ide antre as nove e as dez
assoviais vós bem meu rei
ou tossi tamalavez
que logo vos entenderei.”757
Em Gerinaldo, percebe-se que o pajem não é o requestador, ou que este é menos
experiente ou expedito, pois que é ela quem lhe dá as instruções. No entanto, se lhe
recomenda discrição, esquece-se, ao contrário do que acontece naquelas obras
755
Assim o fazem as mulheres adúlteras como em Frei João ou em Claralinda, que logo no início
referem os maridos aos amantes ( “- Como te hei-de abrir a porta, meu Frei João da minha alma, // se
tenho meu filho aos peitos e meu marido à ilharga”, vv. 2 e 3 da versão de Frei João, nr. 886 em
RPTOM, pp. 108-109; “”Hoje sim, ó cavalheiro, hoje sim, amanhã não // meu marido não está cá foi
para a feira d’Ascenção”, vv. 1 e 2 da versão de Claralinda, nr. 972 em RPTOM, p. 201). A protagonista
de Bernal Francês também mencionará a ausência do marido, mas mais tarde na narrativa, como já
referimos.
756
Cf. Camões [2002], Índia , Vol. II, pp. 171-186.
757
Cf. Camões [2002], Floresta d’Enganos, Vol. I, pp. 479-515.
405
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
vicentinas, de lhe dizer explicitamente como o há-de reconhecer. Por isso, quando o
pajem não cumpre a hora marcada, a infanta é cautelosa e assegura-se da identidade de
quem lhe ronda à porta:
6.“- Venha das dez para as onze quando el-rei já esteja dormindo.
7. Inda as dez não eram dadas, já Gineraldo era vindo.
8. Chega ao quarto da princesa deu um ai, deu um gemido,
9. E ela de lá respondeu: Quem será o atrevido?”
G/173 Galhoz (1987) 413-414
É caso para dizer-se que a “ocultação de identidade” foi bem conseguida, o que,
na verdade, é a sua função neste romance. O motivo como meio de engano, sendo
comum a Bernal Francês e a Gerinaldo, não tem exactamente a mesma finalidade em
ambos os romances. No primeiro, trata-se de um sentido de engano, com o marido a
ocultar a própria identidade para vestir uma “máscara” ou disfarce de amante com o
qual ludibriará a mulher, que o aceita nessa qualidade; no segundo, o motivo tem a
função mais literal de estratégia de ocultação – não convém que o pajem seja
reconhecido por ninguém. Este é um caso em que um motivo partilhado por dois
romances adquire sentidos e funções diferentes.
Motivo: O sonho do rei.
- Micro-relato: O rei sonha que lhe roubam o castelo ou a filha.
- Função no romance: Premonição.
O romance tem, já referimos, duas variantes para o despertar do rei – ou este
acorda naturalmente, ou porque teve um sonho. É esta modalidade que consideramos
aqui como motivo 758 , pela sua função indicial que ultrapassa a função narrativa da
primeira:
758
O motivo “sonho” ocorre igualmente em Bernal Francês, mas, mais uma vez, trata-se de um sentido
diferente para o mesmo motivo - neste romance, o sonho não passa de uma alegação da mulher,
406
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
10.“El-rei sonhara um sonho que bem certo lhe saíra;
11. Que lhe dormem co'a infanta ou lhe roubam o castilho.”
G/31 Leite (1958) 302
A grande diversidade de sonhos foi dividida, pelas investigações psicanalíticas,
etnológicas e parapsicológicas, em certo número de categorias – o sonho profético ou
didáctico, o iniciático, o telepático, o visionário, o pressentimento e o mitológico 759 - e a
sua interpretação tem suscitado inúmeras obras760. Jacques Le Goff refere a divisão dos
sonhos premonitórios, dentro dos quais geralmente se inclui o do rei em Gerinaldo, em
três categorias: oneiros (somnium) ou sonho enigmático, o horama (visio), ou visão
clara, e o chrematismos (oraculum), ou sonho enigmático enviado por divindade.
Nas versões do romance, o motivo “sonho” é especificado em duas hipóteses – o
rei ou sonha que “lhe dormem” com a filha ou que lhe “roubam” o castelo, ambos os
casos bem de molde a fazê-lo acordar e levantar-se. De facto, o rei tem boas razões para
temer as duas, que se equivalem no sentido - quando o rei acorda, já o pajem havia,
eufemisticamente, “assaltado” a sua propriedade, na pessoa da filha; assim, a natureza
da segunda hipótese (roubarem-lhe o castelo) é, afinal, uma metáfora da honra da filha
e, consequentemente, da sua própria honra. O sonho do rei pertencerá à categoria visio,
uma vez que constitui uma visão clara do acontecido com a filha, mas poderá ser
também considerado “enigmático” (somnium), pelo sentido simbólico que representa o
“roubo” do “castelo”.
Motivo: A espada.
- Micro-relato: O rei coloca a espada entre a filha e o pajem adormecidos.
- Função no romance: Sublinhar o poder do rei.
confrontada com a identidade do marido, para se livrar de apuros; não se trata de um verdadeiro sonho,
mas de uma manobra, pelo que a função do motivo é, naquele romance, meramente a de servir como
engano.
759
Cf. entrada “Sonho”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 616-621.
760
Cf. Le Goff [1994], p. 291.
407
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Ao encontrar a filha e o pajem adormecidos, o rei confronta-se com o dilema de
matar um ou outro, mas resolve-se a colocar a espada entre os dois amantes; o motivo
“espada” é um símbolo do seu poder, paternal e real e um aviso para os dois:
15.“Achou-os braça com braça, como mulher com marido!
16. Deitou as mãos à cabeça: - Ai de mim, que estou perdido!
17. Para matar Gerinaldo, criei-o de pequenino;
18 Para matar a infanta, fica o meu reino perdido.
19. Meteu-lh’a espada no meio, como sinal de castigo.”
G/32 Leite (1958) 302-303
Esta arma é emblema real que está associado ao poder, no seu duplo aspecto: o
destrutivo, que pode tornar-se de sinal positivo ao destruir a “injustiça, a maledicência e a
ignorância” e o construtivo, ao estabelecer a paz e a Justiça761.
Repare-se como o motivo “espada” ocorre em Bernal Francês. O seu som ouve-se
no início (2.“espadas ouvira tocar, espadas ouvira tenir.”, BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira
(198?) 428-429), o que sugere que o seu portador é homem de armas, mas o motivo
apresenta-se sobretudo no seu aspecto destrutivo, visto que indicia a morte, a qual se
concretiza por este meio ( 15-16. “Ó minha espada d'ouro, bordadinha ò culher, // Hoje
mesmo bais a servir, pra matar minha mulher.”, BF/96 Galhoz (1987) 281-282). Também
em Delgadinha está presente o motivo “espada”, com o mesmo sentido duplo,
Poder/Morte. A “espada de ouro” com que o pai joga 762 remete para o poder, não só
da sua condição social, como de “jogar” com a vida da rapariga: 23.“avistou o seu pai rei,
com espadas d' ouro jogava.”, D/18 Nunes (1928) 229-230; Por outro lado, a espada é o
instrumento sagrado pelo qual se jura, mas também o instrumento que se teme, pois
761
Cf. entrada “Espada”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 299-300.
Também os irmãos jogam à espada, uma actividade guerreira, que aqui é lúdica e revela o
estatuto e o poder dos “jogadores”:
762
11.“Delgadinha com a sede subiu-se a outra bentana,
12. vira andar os seus irmãos na praça jogando espada.”
D/20 Martins (1938)/Martins (1987) 46-48
408
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
serve para matar (23.“o nosso pai nos jurou pelos copos da sua espada, // 24. que quem desse
água à Faustina, sua cabeça é cortada.”, D/1 Braga (1867) 181-183).
Em Gerinaldo, o rei não mata os infractores, como implicitamente é seu direito,
mas, uma vez que “sabe”, pois inteirou-se da infracção, faz saber que “pode” exercer o
“fazer”, mas que, por enquanto, não “quer”. Versões há em que o rei, muito
explicitamente, o declara quando o pajem entende que merece a morte:
26.“- Dê-me a morte, ó meu bom rei, que bem vos -la hei merecido.
27. - Se te quisera matar, já agora não eras vivo.”
G/37 Leite (1958) 307-308
O acto de colocar a espada entre os dois amantes é simbólico (ou outra arma com
a mesma dimensão simbólica), mas também o é o modo como o rei a dispõe. Embora
mantendo os argumentos habituais para não os matar (ao pajem, porque o criou e lhe
tem amor e, à filha, porque fica o reino perdido), revelam-se os sentimentos que nutre
por ambos, numa pequena variação, mais de forma que de sentido:
- O rei deixa a arma (no caso o “punhal”) entre os dois com a preocupação de o
fazer de modo que nenhum deles fique ferido, o que sugere que têm para ele a mesma
importância:
16.“- Eu para matar Girinaldo, criei-o de pequenino
17. e para matar a princesa, fica o meu reino perdido.
18. Aqui fica o meu punhal entre os dois fica metido,
19. [………………………] sem nenhum ficar ferido.”
G/45 Pombinho (1958) 123-125
- O rei deixa o bico do punhal virado para Gerinaldo:
17.“Eu se mato Gerinaldo, criei-o de pequenino,
18.e se mato a minha filha tenho o meu reino perdido.
19.E lançou as mãos atrás a um punhal que trazia,
20.voltou os copos p'r'à filha e o bico para Gerinaldo.”
G/14 Pires (1899)/Pires (1982) 93-94
409
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Ao fazê-lo, subentende que o Poder caberá à infanta (é pelo punho que se toma a
espada, símbolo do poder); por isso, e porque é ela a herdeira, o rei não pode matá-la,
razão pela qual não expõe a filha à parte cortante do punhal. Já para Gerinaldo fica
virado o bico, a parte que “mata”, o que revela, com maior acuidade, a possibilidade
desse castigo que, a aplicar, seria ao pajem, menos importante para a salvaguarda do
reino. Revela-se, então, que o sentido de Estado sobreleva-se ao amor paternal que
pudesse ter a Gerinaldo e que a infanta tem mais importância como herdeira do que
como filha. Cada uma de sua maneira, afinal, as opções da colocação da “espada”
correspondem aos argumentos invocados pelo rei.
Motivo: As desculpas.
- Micro-relato: O pajem justifica a sua atitude sobressaltada ao rei.
- Função no romance: Confirmação da relação sexual.
Em si, as desculpas que o Gerinaldo dá ao rei que, já sabedor do que se passou, o
interroga, não são propriamente um motivo 763 mas uma prova de esperteza que este
deve ultrapassar. Assim, à primeira vista, as alegações apresentadas aparentam ser
actividades próprias da sua condição e ele dirá que se ocupava em fazer o serviço do rei:
31.“- Em selar os vossos cavalos, em fazer os vossos serviços.”
G/45 Pombinho (1958) 123-125
Em versão de Orense, diz Gerinaldo: “veño de cortar as rosas e de rondar o
764
castillo”
, a segunda parte a ser uma obrigação militar, tal como nesta:
763
A serem as desculpas, por si só, um motivo, deveriam também sê-lo as justificações que a família de
Delgadinha invoca para não lhe dar água, ou as de Silvana para se afastar do pai e poder atrair a atenção
da mãe, mas estas constituem, na verdade, uma micro-narrativa sem sentidos implícitos, pelo que
optamos por as considerar susceptíveis de serem indexadas como motivos, mas não de terem um sentido
mais profundo.
764
Cf. Catalán, Cid [1975, 1976], Vol. VI, p. 99.
410
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
20.”- Venho de ver os soldados, que ainda não tinha bido.”
G/194 Armistead/Fontes (1998) 103-104 e 308
No entanto, cada uma das desculpas dadas constitui um motivo, pois o seu sentido
ultrapassa tão prosaicas ocupações, que podem ser resumidas em três actividades
básicas - tratar dos cavalos, tratar do jardim, caçar - e que ocorrem isoladamente ou
conjugadas, como na seguinte versão:
28.“- Venho de dar água aos cavalos que ainda não tinham bebido.
29. - Não me mintas, Gerinaldo, que nunca me tens mentido.
30. - Venho de regar o jardim que por água estava perdido.
31. - Não me mintas, Gerinaldo, que nunca me tens mentido.
32. - Venho de caçar uma rola das bandas d'além do rio.”
G/103 Ferré (1987a) 67
Cada uma delas revelará, implicitamente, a natureza sexual do que o pajem andou
a fazer, concluindo-se que o que é invocado como desculpa tem, afinal, um cariz
semelhante.
a)
Dar de beber aos cavalos:
No romanceiro, segundo Manuel Manzano, os animais são os próprios
protagonistas ou ocupam um papel relacionado com a actividade dos humanos 765 e
analisámos já, em Veneno de Moriana, o sentido do motivo “cavalo”. Em Gerinaldo,
comprovando as diversas funcionalidades que o mesmo motivo pode ter em romances
de temática não similar, os cavalos referidos pelo pajem ao rei encontram-se
relacionados com a sua actividade normal mas, simultaneamente, têm uma dimensão
simbólica. O cavalo é símbolo da “impetuosidade do desejo” e da juventude do homem.
Outro dos aspectos simbólicos deste animal é a associação à água, podendo, com uma
patada, fazer brotar uma fonte, símbolo do rejuvenescimento e da fecundação. Este
motivo torna-se também uma metáfora de conotação sexual, pois o cavalo é um símbolo
765
Cf. Manzano [2002], pp. 91-133.
411
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de virilidade e aplacar-lhe a sede é satisfazer tal desejo766; deste modo, ao declarar que
“vem de dar água aos cavalos”, o pajem dá a entender que acaba de cometer esse acto.
b)
Regar o jardim (flores)/a horta:
A mesma conotação tem outro motivo, desta feita utilizando o reino vegetal. No
jardim (ou a horta/o linho/o cebolinho, em algumas versões) que Gerinaldo diz ter ido
regar, dado o seu conhecido simbolismo, facilmente se adivinha a mesma alusão sexual,
adoçada por um valor mais poético.
c)
Caçar/apanhar a rola (pomba ou garça):
O mesmo se passa com o acto de caçar (ou “apanhar”, “dar de comer”, “tirar” e
semelhantes) a “rola”, com o pajem, por vezes, a tornar-se um pouco mais explícito:
19.“Venho de caçar uma rola que estava no palácio metida. ”
G/42 Leite (1958) 315
Veja-se como o exemplo a seguir inverte ainda mais o processo simbólico e,
embora parcialmente, torna o implícito em explícito; se bem que utilizando a metáfora
da caça, o simbolismo do objecto caçado, “a rola” da versão acima, é substituído pela
realidade (“uma donzela”):
12.“- Que é da caça, Generaldo, a caça que tens trazido?
13. - Eu cacei uma donzela, além, naquele castilho.”
G/178 Carvalho Rodrigues (1990) 201-203
Segundo Manuel Alvar, a palavra “rola” é uma variação proveniente de uma
modificação em cadeia. Os galegos, ao ouvir a palavra castelhana “ronda” (como em
“vengo de cortar las rosas / y de rondar el castillo”), tê-la-iam transformado em “rolla”
ou “rola” (“veño de velar a rola”) 767. Na verdade, trata-se de um duplo sentido, pois o
“castelo” a que se faz a ronda, tal como a honra da infanta, deveriam ser inexpugnáveis
766
Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], p. 174-175.
Cf. Manuel Alvar [2003], El Judeo español I. Estúdios sefardíes, Alcalá, Universidad de Alcalá, La
Galeta Ediciones, p. 52, 2003.
767
412
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
e bem defendidos, tal como a rola (e a pomba, noutros casos: 14. “Venho de ròber ma
pomba, inda a lá deixei no ninho.”, G/48 Buescu (1961) 219-220), que é uma ave associada à
inocência; a garça de algumas versões (como na G/19 Tavares (1906) 279, v. 18) é
símbolo da “amada”768 e nela, sendo ave de grande elegância, adivinha-se a alusão às
características inerentes a uma infanta. O duplo sentido, esse entende-o bem o rei, ao
dar uma resposta irónica a Gerinaldo – essa rola foi criada com o seu trigo -, dando a
conhecer que não se deixa enganar e, implicitamente, a afirmar o direito de posse: rola,
filha, castelo e mesmo o trigo, são todos de sua propriedade.
Motivo: O canto.
- Micro-relato: O pajem aprisionado canta.
- Função no romance: Despertar a atenção do rei, possibilitando o casamento.
O motivo do canto769 (D1275.3. Prisoner urged by his mother to sing father’s song
before he is executed. King hears song, pardons him), aparece em algumas versões de
Gerinaldo, nas quais o rei não manda casar o pajem, mas manda prendê-lo. Estas
versões são contaminadas com O Órfão, O Prisioneiro e Conde Ninho770, e o motivo do
canto vai permitir que o romance, alongado com cenas que dele não fazem parte, retome
o desfecho tradicional do casamento com a infanta, das seguintes formas.
Em primeiro lugar, quando a mãe viúva do pajem o visita na prisão (O Órfão) e
lhe pede que cante:
16. “Cantai, filho, cantai, cantai a vossa canção,”, G/74 Ferré (1982) 240-241
768
Segundo Margit Frenk, a identificação dos amantes faz-se, na poesia tradicional como na culta e semipopular, com elementos da natureza, neste caso com certas aves. Cf. Margit Frenk Alatorre [1978],
Estudios sobre lírica antigua, Madrid, Castalia, 1978 e também Margit Frenk [1998].
769
Também em Silvana aparece o motivo do “canto”, que, junto com o tocar de algum instrumento
musical, desperta a atenção do pai.
770
A visita da mãe ao filho aprisionado por ordem do rei é de O Orfão, o que Gerinaldo canta é o
romance O Prisioneiro; os versos nos quais o rei chama a filha para ouvir o cantar “das sereias” ou “dos
anjos” são de O Conde Ninho. Voltaremos à questão das contaminações no capítulo seguinte.
413
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A mãe refere como pai do pajem cantava, o que constitui uma ocorrência em
retrospectiva do motivo:
13. “- Cantai, meu filho, cantai, meu filho, falsão,
14. como o vosso pai cantava, na manhã de S. João.”
G/72 Ferré (1982) 237-238
Tão estranho parece o pedido, que o filho acusa a mãe de crueldade, pois toma-o
no sentido literal:
17.“- Ai, que mulher ingrata, de cruel ingratidão,
18. que vê o seu filho à morte e manda-lo cantar serão!”
G/69 Ferré (1982) 235-236
A mãe insiste no pedido:
17.“- Tomai, meu filho, tomai, conselho da vossa madre,
18. que mais vale um ruim conselho que seguir sua vontade.”
G/72 Ferré (1982) 237-238
A justificação que dá ao filho revela que é uma mulher experiente, conhecedora
do poder do canto771; bem ciente dele, recomenda ao filho que cante, especificamente,
as mesmas canções que o pai outrora cantara e com as quais, presume-se, não só a ela
conquistara, mas também às “ raparigas”:
19.”- Filho, pega na viola e canta aquelas cantigas
20. que teu pai, naquele tempo, cantava às raparigas.”
G/69 Ferré (1982) 235-236
Por isso, diz que o rei há-de ficar rendido ao seu canto e perdoar-lhe:
18.“Quando o rei t'ouvir cantar, de ti vai ter compaixão.”
G/74 Ferré (1982) 240-241
771
O canto com o poder de comover e encantar tem o seu paradigma em Orfeu, filho de Apolo e Calíope,
que, para resgatar Eurídice do mundo dos mortos, convenceu Caronte, com o seu canto, a deixá-lo
atravessar o Estige, estando vivo, e conseguiu chegar ao mundo subterrâneo, comovendo o cão Cérbero e
as Fúrias; ao ouvi-lo, o Senhor do Hades, Plutão e sua esposa Perséfone entregaram-lhe a sua bem-amada.
Cf. Edith Hamilton [1979], A Mitologia, Lisboa, D. Quixote, 1979, pp. 146-150.
414
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O pajem canta, então, O Prisioneiro. Em estudo sobre este romance, Sandra
Robertson encontra-lhe um sentido de representação metafórica do isolamento
(físico/mental) e descreve-o como um exemplo de como uma estrutura narrativa mínima
pode revestir-se de um significado máximo772. Neste caso, o teor do canto estabelece o
contraste entre a vida anterior do pajem, que se pressupõe vivida com certa
despreocupação e liberdade (comparável à dos “passarinhos”, que também cantam:
32.”Nã sei quand'é noite escura nem quand'é claro dia // 33. senão quand'os passarinhos cantam
n'alvorada.” G/70 Ferré (1982) 236-237), com a sua triste situação actual:
40. “- A manhã de São João é uma manhã de flores;
41.
todos os namorados visitam os seus amores:
42.
uns com cravos, outros com rosas, outros com manjaricão.
43.
Só eu, p'los meus pecados, 'stou aqui nesta prisão.
44.
Não sei quando é manhã, nem quando é meio-dia;
45. só me posso alegrar quando canto uma harmonia.”
G/52 Pestana (1965) 93-94
A função narrativa do motivo é, nesta perspectiva, a de despertar a atenção do rei;
o conselho da mãe surte efeito e, ao escutar Gerinaldo, o rei chama a filha, para que esta
ouça também o que lhe parece ser o canto dos anjos ou das sereias:
26.“- Levanta-te, minha filha, eu oiço tão doce cantar,
27.
ou são os anjos do céu ou são sereias do mar.”
G/69 Ferré (1982) 235-236
Aplacada a sua ira com o doloroso canto, pode o rei “salvar a face” e consentir no
casamento da infanta com aquele a quem mandara prender, precisamente pelo crime de
a desonrar.
772
Cf. Sandra Robertson, “The Limits of Narrative Structure: One Aspect in the Study of ‘El prisionero’”,
em Diego Catalán, Samuel G. Armistead, Antonio Sánchez Romeralo, edición a cargo de, El Romancero
hoy: Poética, 2º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos,
1979, pp. 313-318.
415
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A comparação da canção do pajem com o canto maravilhoso “dos anjos do céu ou
das sereias” é um caso de “contaminação formulística” com O Conde Ninho773, embora
a operacionalidade do motivo dependa da sua inserção no posicionamento na estrutura
narrativa. Segundo M. Pidal, o exórdio que antepõe os versos do poder do canto do
Conde Ninho a Gerinaldo é de uma variante muito antiga 774 . Diz Catalán que na
tradição leonesa, “el romance comienza, como muchas versiones meridionales de tema doble,
com una escena procedente del romance de El conde Niño, enriquecida a menudo com unos
versos de El Prisionero”
775
. De facto, no caso do Conde Ninho, o canto faz parte da
primeira sequência do romance e desencadeia a acção, enquanto nas versões compósitas
de Gerinaldo+O Órfão+O Prisioneiro+O Conde Ninho, é ouvido quase no final e faz
retomar o desfecho do primeiro. Se, pelo contrário ocorrer a abrir Gerinaldo, o que não
é habitual nas versões portuguesas776, o canto como prólogo fará pressupor que é essa a
razão da súbita paixão da infanta pelo pajem. Por outro lado, em O Conde Ninho, o
ouvinte-leitor tem conhecimento do som 777 , mas não de eventual letra que o
acompanhasse, enquanto, nas versões de Gerinaldo com O Prisioneiro, se conhece o
teor da canção, que explicita os lamentos daquele que está privado da liberdade. Além
disso, naquele romance, o canto é órfico e prenúncio de chegada do amor778, tornandose agente do encantamento da mulher pelo homem e é assim que a ira da rainha é
773
Embora neste romance o cantor não esteja prisioneiro na altura em que canta. Em O Conde Ninho,
quem ouve o canto pode ser o rei ou a rainha e os dois amantes serão punidos com a morte, seguindo-se
as transformações de ambos (cf., para este assunto, Maria Aliete Dores Galhoz [1997a],“Transformações
não punitivas no Romance Tradicional Conde Ninho na memória do património português”, Revista ELO,
3, Faro, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1997, pp. 61-73).
774
Cf. Pidal [1973], pp. 224-256 e Alcoforado, Albán [1996], pp. 138-146.
775
Cf. Catalán, Cid [1975], p. 221.
776
A cena na qual Gerinaldo canta enquanto leva os cavalos a beber, aparecerá, igualmente, em versões
recolhidas no Brasil, de informantes oriundas da Galiza, não aparecendo nas versões de informantes
naturais da Baía. Cf. Alcoforado, Albán [1996], pp. 138-146.
777
“Lá se vai o conde Aninho, seu cavalo vai banhar, // enquanto o cavalo bebe, forma um lindo cantar”,
Leite (1881) 33-35. Cf. as versões de O Conde Ninho em RPTOM II, pp. 149-173.
778
O canto órfico representa, como atrás dissemos, o encantamento que propicia e antecipa os encontros
amorosos. Em Conde Ninho, associam-se-lhe três elementos, rapaz/água/cavalo; o jovem canta enquanto
está a dar de beber ao cavalo, e lembramos que a fonte Hipocrene, criada pelo cavalo alado Pégaso,
“favorecia a inspiração poética”. Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], p. 174-175.
416
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
despertada, ao perceber que não é a sua destinatária, mas sim a filha, originando a morte
final dos dois jovens. Nas versões de Gerinaldo, pelo contrário, a canção do pajem é de
tristeza e dirige-se ao rei, como o pode declarar explicitamente a mãe (41.“ Olha co rei
está à janela, de ti vai ter compaixão.”, G/175 Galhoz (1987) 415-416), mas não perde
totalmente o seu sentido mais profundo de agente de encantamento amoroso, como
vimos acima. A infanta, essa, é que bem reconhece o canto, e desvenda a identidade do
cantor, parecendo, ao mesmo tempo, recriminar veladamente o pai, em (a), ou pedir-lhe
a libertação do pajem (b):
(a):
38.”- Ai! papai, nã são sereias nem anjos podem ser,
39. é aquele General qu'o papai mandou prender.”
G/70 Ferré (1982) 236-237
(b):
29. “ - Se o papai me dá licença, à pressa le vou contar:
30. não são serenas do rio nem marinheiros do mar,
31. que é canto do vosso preso, bem no podereis soltar.”
G/72 Ferré (1982) 237-238
Nesta contaminação com O Conde Ninho estabelece-se, pois, uma ligação à feição
encantatória própria deste romance; se, por um lado, porque semelhante ao dos anjos, o
canto de Gerinaldo aprisionado promove a sugestão da sua inocência (foi a infanta,
afinal de contas, que o seduziu) e suscita a compaixão real, também é comparado ao
canto das sereias, que encanta os homens779, pelo que serve para justificar a mudança de
atitude do rei:
30.”- Eu não digo que o mate nem que deixe de o matar;
31.se quiseres para marido, eu genro le vou chamar.”
G/69 Ferré (1982) 235-236
779
É bem conhecido o perigo que representa o canto das sereias, que atrai irresistivelmente os homens.
Lembramos o episódio da Odisseia, no qual só a astúcia de Ulisses e por conselho de Circe, ao amarrar-se
ao mastro e fazer os marinheiros do Argos tapar os ouvidos com cera, lhes permitiu escapar. Da atracção
fatal só se livravam os que cantavam melhor que elas e assim sucedeu com Orfeu, que, com a sua lira,
conseguiu salvar os que com ele procuravam o Velo de Ouro, tal como contado em Os Argonautas por
Apolónio de Rodes. Sobre as sereias e seus poderes, cf. Édouard Brasey [2002], Sereias e Ondinas,
Lisboa, Publicações Europa-América, 2002.
417
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
CAPÍTULO III
AS INTERVENÇÕES NA ENUNCIAÇÃO E NO ENUNCIADO
1. As intervenções e o sentido
Sendo o objecto deste estudo o modo como o sentido se revela nos romances,
analisaremos agora os efeitos que certas “intervenções” possam ter sobre aquele.
Usamos o termo para nos referirmos, a nível da enunciação, aos comentários que, sendo
pessoais, revelam condicionantes sociais ou morais, bem como às didascálias e a certas
explicações que vão sendo dadas no decorrer da enunciação da versão780, algumas das
quais, nesta perspectiva, se aproximam da prosificação. A nível do enunciado,
reportamo-nos às elipses, substituições, acrescento ou prosificação de sequências ou
versos, aos prolongamentos, fechos e remates, às contaminações e, de modo geral, à
variação, que referimos já, na Parte I, como factor da procura do sentido, tendo
ressalvado as limitações de lhe apontar as causas.
A este nível, as “intervenções” manifestam-se de diversas maneiras, sobre a
semântica e/ou sobre a estrutura narrativa e a sua análise apresenta algumas
complexidades. Em relação à semântica e se o corpus for extenso, basta consultar os
índices de primeiros versos de qualquer romance, presentes em obras de referência781,
para nos darmos conta da amplitude e variabilidade dos modos de expressão. O mesmo
se passa com a estrutura narrativa, tendo ainda em conta a inexistência de uma
composição fixa original. De facto, cada versão é uma ocorrência única, e assim pode
ser analisada, mas o seu sentido está intimamente ao do texto (enquanto conjunto das
versões).
780
Ferré distingue entre as didascálias da enunciação (“ele disse, ele fez”) e as do enunciado, estas
sequências narrativas que introduzem a sequência seguinte. Cf. Ponte [1987].
781
De entre outras e exemplarmente, ver GRPP ou as várias de Costa Fontes. Cf. Bibliografia Activa.
419
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
O tipo de estudos já levado a cabo por Diego Catalán, Suzanne Peterson e
outros782, embora essencial para atingir o nosso objectivo, não é o que aqui nos ocupa
como finalidade. Entendemos que uma simples apresentação das variações semânticas
encontradas no elevado número de versões do nosso corpus, ou quaisquer outras
listagens, exaustivas que fossem, resultariam pouco operacionais para o fim em vista, ou
seja, de o de determinar os efeitos da variação e das variantes no sentido. Preferimos,
então, analisar as chamadas “intervenções” partindo de uma análise comparativa. Para
isso, confrontámos a estrutura narrativa apresentada pelas versões com o “modelovirtual”, que reproduz esquematicamente a que é própria do romance, funcionando
como uma espécie de matriz, o que permite ajuizar-se de paridades ou de divergências
no sentido, que apresentaremos com recurso a casos significativos de exemplificação,
extraídos dos romances em análise.
Crendo que o sentido se revela nas chamadas “intervenções” e dado julgarmos
que o corpus delimitado é significativo para o efeito, este processo facilitará a detecção
de variantes e, posteriormente, de determinadas tendências (referindo-nos aqui às
variantes regionais) ou anomalias783, mas, sobretudo, constituirá uma amostragem dos
processos de significação usados no romanceiro; ao mesmo tempo, a sua análise
clarificará, em alguns aspectos, a questão da adesão/rejeição/transformação da narrativa
(que subjacerá ao fenómeno de reelaboração dos romances).
782
O Capítulo II do IGR é dedicado á estrutura sequencial do relato e às suas alternativas, fazendo notar a
extensa gama de possibilidades proporcionada pela propriedade de abertura. Referimo-nos também a
trabalhos como os vários documentados nas comunicações em Diego Catalán, Samuel G. Armistead,
Antonio Sánchez Romeralo [1979], edición a cargo de, El Romancero hoy: Poética, 2º Colóquio
Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos, 1979.
783
Usamos o termo para nos referirmos, por exemplo, à introdução de versos que não aparecem
normalmente na maioria das outras versões do romance. O termo não se aplica a contaminações de outros
romances ou a sequências que se regionalizaram.
420
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
2. Apartes e explicações; prosificações parciais e totais
Como intervenções na enunciação, começaremos por analisar certos apartes dos
informantes784, os quais, tanto quanto expressar empatias, positivas ou negativas, podem
ser, também, uma forma de fazer valer a veracidade dos actos narrados, de sublinhar o
dramatismo de certos episódios e, ainda, de expressar atitudes mais pessoais de empatia
ou de rejeição às personagens e suas actuações.
Alguns informantes, à maneira dos contos, deixam um comentário tendente a
demonstrar a veracidade do sucedido, como o seguinte, emitido depois da sequência
final, na qual o rei manda que Gerinaldo case com a infanta: “E l estão os dois...”, G/86
Marques/Silva (1984-1985) 119-120. Outros, chegam a manifestar incredulidade face ao
que está a ser narrado (“Iele, aspois, dízim qui a morta que le falau, mas isso ié que será ua
mintira.”, BF/55 Pereira (1970) 243-244) e a imputar a responsabilidade a terceiros
indeterminados (“dizem que…”). Note-se, porém, que o demonstrativo “isso”, como
anaforizante de “a morta falou-lhe”, implica que se duvida apenas desta circunstância,
mas não dos factos anteriores.
Entre as categorias pragmáticas do discurso, Elena Wolf encontra a valorização,
como caso especial da qualificação, abarcando substantivos, adjectivos e verbos. Diz a
autora que a qualificação tem como base os valores semânticos “bom/mau” e
“grande/pequeno” e que o sema apreciativo “bom” ou “mau” dependerá do padrão
apreciativo da comunidade. Faz notar, igualmente, que só com base na situação ou no
contexto se poderá, por vezes, ajuizar do sentido apreciativo de apreciação ou
784
Na Parte I, Capítulo III. A Organização da Narrativa, ao tratar as “falas das personagens”, definimos
os apartes destas como “estratégias de uma explicitação do seu ponto de vista em intenção de terceiros,
substituindo-se a um narrador omnisciente”. Adoptamos aqui a mesma terminologia, relativamente a estas
intervenções dos produtransmissores, visto que estes podem, simultaneamente, narrar e comentar, neste
caso expondo o seu ponto de vista.
421
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
desaprovação das palavras785. Nos romances aqui em análise, realçamos as expressões
qualificativas que, em Delgadinha e com o sentido implícito de valorização bom/mau =
aprovação/rejeição, a família aplica à rapariga (como “perra moura, malfadada, pérola
negra…”) a nível do enunciado, mas também em situação de enunciação se executam
qualificações valorativas, por vezes em comentários às personagens ou aos seus actos.
Em uma versão deste romance, a D/222 Cruz (1995) 215-216, a informante comenta a
resposta da mãe ( 3. -“Vai-te daí, ó maldita, vai-te daí, ó malvada, // 4. Já uns poucos de anos
que me fazes mal casada”) ao pedido de água da seguinte maneira: “A ursa da mãe pensava
qu’ela era … mas no era … qu’ela andava a fugir do pai, coitadinha…”. O comentário,
embora numa versão fragmentada786, denuncia a injustiça cometida pela mãe e revela
forte condenação a esta e compaixão pela vítima787, pois, nas expressões utilizadas - “a
ursa da mãe” e “coitadinha” -, encontra-se uma forma de implícito na apreciação do
falante em relação ao que refere, ou seja, a atribuição dos valores mau e bom,
respectivamente, como categorias de valorização. Esta estrutura apreciativa qualifica a
mãe negativamente, visto que esta não cumpre o papel protector que dela se esperaria,
por oposição com a valorização positiva implícita da filha, que cumpre o seu papel
numa estrutura familiar normal, negando-se ao incesto. A esta, que morre e se torna
santa, como se explica no comentário final (“Quando le foram dar a auga já 'stava morta e
santinha...”), contrapõe-se também a valorização negativa do pai, que também é “urso”
(“Apareceu o urso do pai..”, entre os vv. 12 e 13).
Também, no exemplo seguinte, a apreciação ao pai é negativa, mas de modo mais
subtil. Na versão S+D/17 Fontes (1979) 143-144, após a morte da filha, diz o pai: 32.“785
Cf. Elena M. Wolf [1982], “As Estruturas Apreciativas e Descritivas na Semântica da Palavra e da
Enunciação”, Biblos, Vol. LVIII (1982), Coimbra, Universidade de Coimbra, pp. 28-43.
786
A versão consta apenas dos versos do pedido de água pela Delgadinha à mãe, à irmã e ao pai e integra
os citados comentários.
787
A elipse do que se seguiria a “ela era” poderia ser preenchida por qualificativos como “provocadora do
pai/desavergonhada” e mereceria um estudo psicológico que não podemos fazer mas que entendemos
conduzir à hipótese de a informante achar que a acção da mãe se justificaria, caso a filha tivesse uma
atitude menos digna.
422
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Cobre-se as ruas de luto, palácios de tafetá, // 33. já que a minha ventura não quis que eu te
chegasse a gozar.” . Estes versos serão entendidos como revelando implicitamente que
não se arrependeu do mal que fez; por isso o teor do dito pelo pai (“O pai ainda diz que
disse mais esta p'a s'acabar de perder.”), facto que é insinuado como possivelmente
verídico (diz-se que ele disse) é a gota final, que merece castigo, como se comenta (vai
perder-se [a salvação]).
Na versão BF/58 Fontes (1979) 113-114, a informante, que durante a
recitação fornece explicações simples (” O marido estava embarcado.”), emite outras
que se apresentam como juízos de valor, em apartes que demonstram um forte
sentido de defesa do marido, pois a seguir ao verso em que a protagonista roga pragas
àquele (19.“E cem facadas lhe dêem e novas viessem-m'a mim”), comenta: “ a cara do
marido. E era o marido que 'tava ali.”. O comentário assim formulado revela a reprovação
sentida não tanto ao acto do adultério como ao desplante da mulher em “atirar à cara”
do marido que gostaria de o saber morto. Na mesma versão, as queixas da adúltera, ao
ver-se descoberta, são também objecto de comentários condenatórios. A informante
começa por fornecer uma indicação cénica: “E ela nã, nã chamou ninguém. Veio p'à
varanda. 'Tava fazendo lua. E ela veio p'à varanda e pegou-se”, a que se seguem os versos
31-32 (“- Ó lua que vais tan clara, que estás p'amanhacer // ua triste padecenta, que vai
acabar de padecer”). É o epíteto “padecenta” aplicado pela adúltera a si própria no verso 32
do enunciado, que merece o seguinte aparte de enunciação: “Ua triste padecenta? Grande
cadela!”. Apesar do evidente moralismo deste aparte, o último comentário da informante
(“Ela se não responde mesmo assim ainda se salvava”) acaba por revelar alguma
ambiguidade de sentimentos relativamente à adúltera. Não sendo de crer que a
“salvação” a que se refere seja espiritual, mesmo que o comentário tenha sido feito
depois de serem referidos, no enunciado correspondente a A Aparição, os “demónios”
423
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
que troçam da protagonista, parece-lhe que a tentativa de engano enunciada no v. 21
(“Ai, se tu és o meu marido, estimo-te como a mim mesma”) seria uma má defesa, pelo que
se adivinha, naquele comentário, um certo lamento pela falta de esperteza da mulher.
Em Veneno de Moriana também se comenta a actuação das personagens. Na
VM/161 Fontes I (1987) 393-394, censura-se principalmente o facto de o cavaleiro vir
convidar Moriana para o seu casamento com outra (7.“É verdade, ó Juliana, que eu te
venho convidar // 8. p'ra ires ao meu casamento, se me queres acompanhar.”), o que suscita o
comentário indignado: “E d -le assim uma tapona nas ventas!”. Logo após, a informante
emite a opinião de que o cavaleiro é “burro”, certamente por achar que este vai beber o
vinho sem sequer desconfiar da solicitude de Moriana, sabendo que ele vai casar (9.“Espere aí, senhor Jorge, vou subir ao meu sobrado. // Ele também foi burro //Tenho um
cálix de vinho, para o senhor estava guardado.”). Para a informante,
justifica-se que
Moriana mate o cavaleiro e até diz que acha bem: “Matou-o logo. Mas foi bem feito.
Arranjou-l'uma.”
As apreciações aos actos das personagens são feitas de forma jocosa, como no
exemplo seguinte; o informante, após os versos do rei deixando a espada entre
Gerinaldo e a filha (v. 14: “Mete-l'a minha espada no meio, que les serva de castigo.”, G/153
Fontes I (1987) 506-507), interrompe o canto com o aparte: “Olha que castigo! Ah! Ah! Ah!”.
Dá assim a entender que o simples colocar da espada entre os amantes lhe parece
inadequado e mesmo ridículo para o que, implicitamente, considera uma infracção
merecedora de maior castigo788.
Em situação de enunciação, o informante, sobretudo quando não canta mas recita,
pode fornecer indicações de tipo cénico, simples, revelando a preocupação de identificar
quem fala no enunciado e a quem fala:
788
Ressalva-se, obviamente, o facto de o informante não ter o cabal conhecimento do simbolismo do acto
do rei.
424
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- “Isto é o pai dele.”; “A ilha disse:”; ”Isto é o rei:”, G/75 Ferré (1982) 241-242
- “ E a in anta disse '
erinaldo:”, G/76 Ferré (1982) 242-243
- “E ela diz agora aqui”, D/86 Fontes (1980) 69-70
Outras indicações serão um tanto mais complexas, algumas parecendo um esforço
para recordar os versos e outras uma forma de tornar explícitas ao colector as
circunstâncias da situação que vai narrando789 ou o modo como a compreende, talvez
por julgar que este não esteja de posse do conhecimento de todos os pormenores da
história contada. Na verdade, ainda que o informante seja, por via de regra, um
produtransmissor, a situação de “recolha” é, de algum modo, artificial, pelo que haveria
que saber se, em circunstâncias normais de transmissão/fruição do romance, as
didascálias e as explicações seriam dadas. Essas circunstâncias são “a vida quotidiana do
povo”, segundo Joanne Purcell, que sobre o seu trabalho de recolha, diz ter encontrado
“o romanceiro cantado ou narrado nos períodos de descanso do trabalho”, na companhia dos
vizinhos ou “[N]a maioria dos casos, é quando a pessoa fica sozinha” 790, dispensando-se,
pois, grandes explicações.
Por vezes, enunciação e enunciado completam-se:
6.”- Pai da minha vida, pai do meu coração,
7.eu lhe peço, por favor,
que le desse una pinguinha d'água. Ela já estava assim desani mada
co' a sede e co' a f ome e el e é que l 'ent ão arrespondeu s’ela prometesse
ser namorada dele, que le dave a i-água. E ela então:”
D/116 Marques (1982) 214-215
789
Os informantes pretenderão, em certos casos, assegurar-se de estar a ser bem entendidos pelo
recolector. Durante uma recolha por nós efectuada, a informante, após recitar sem interrupção uma versão
de A Virgem Maria e o Cego (IGR 0226), repetiu-a, mas desta vez intercalando entre os versos várias
explicações, como “A Senhora ia a andar para Belém”, “O menino pedia de comer”, “A Senhora disse:
…”, “O cego pôs-se a ver, foi um milagre de Nossa Senhora”, insistindo em que se tratava de um milagre
(Informante: Carma Gonçalves, 84 anos, em Montalvão, c. de Nisa, d. de Portalegre, em 05.02.2006).
790
Cf. Joanne B. Purcell [1972], “Sobre o Romanceiro Português: Continental, Insular e Transatlântico.
Uma recolha recente”, em Diego Catalán, Samuel Armistead, edição a cargo de, El Romancero en la
Tradición Oral Moderna, 1º Colóquio Internacional, Cátedra Seminario Menéndez Pidal, Edit. Gredos,
Madrid, 1972, pp. 54-64.
425
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Outras, quase se confundem; vejam-se os exemplos abaixo, extraídos de duas
versões, ambas da mesma localidade (Machico, Madeira), de informantes diferentes. No
primeiro, é enunciado o verso do encerramento de Delgadinha na torre; no segundo, a
opção gráfica da transcrição revela tratar-se de uma explicação ao colector, em jeito de
substituição daquele verso por uma enunciação que fonicamente o segue de perto (a
negrito):
1º) - 8. “logo na mandou esconder na torre mais alta qu'havia”, D/94 Ferré (1982) 215
2º) - (entre os vv. 3 e 4): “ Era numas torres mais altas qu'havia.”, D/95 Ferré (1982)
216
Outras intervenções destinam-se a explicar o enredo ou as circunstâncias em que
se dão os incidentes:
Bernal Francês:
 Sequência I:
“Ela não queria a rir e ele diz:”, BF/45 Leite (1958) 416-418

Sequência II:
“Ela abriu a porta, e levava a luz”; “Ela apagou, e foi-se deitar” BF/45 Leite (1958) 416418.
“Foi o homem que l'apagou o candile ”, BF/92 Fontes I (1987) 351.

Sequência III:
“e ele voltou-lhe as costas.”, BF/45 Leite (1958) 416-418
“Era meia-noite dada, sem se voltar para ela”, BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121.
 Sequência III:
“O marido estava em arcado” (explicação de 18.“se temes a meu marido, lonja terra
está de mim.”, BF/58 Fontes (1979) 113-114).
 Sequência IV:
“E ela nã, nã chamou ninguém. Veio p'à varanda. 'Tava fazendo lua. E ela veio p'à
varanda e pegou-se:” (explicação de 28.”Chama teu pai e tua mãe p'a te perdoares
co'eles; // chama tua vizinhança
p'a te perdoares co'eles, // p'a eles nã fazerem aos
maridos o que tu fizeste.”, BF/58 Fontes (1979) 113-114).
426
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“E matou a mulher.”, BF/35 Leite (1958) 403-404;
“Ele matou-a e enterrou-a no
jardim”, BF/112 M.A. Vilhena (1995) 121; “Matou-a”, BF/82 Fontes I (1987) 342.
Veneno de Moriana:
 Sequência I:
“Eram os três cabaleiros aí, e depois ela791:”, VM/90 Marques/Silva (1984-1985) 108
 Sequências I e II:
“Ele enganou-na e disse-le:”, VM/61 Ferré (1982) 186
 Sequência III:
“Ele então estava a ouvir”, VM/102 Ferré (1987a) 48-49
 Sequência IV:
“Ela foi a casa buscar um copinho de vinho.”, VM/61 Ferré (1982) 186
 Sequência IV com ligação à Sequência V:
“E ele o que segue … Ela deu-le o vinho. E ele diss'assim:”, VM/41 Fontes (1979) 124-125
“ Foi busquer um copo de vinho, dou-lo, e começou logo a arrebolari...”, VM/230 Cruz
(1995) 184.
Silvana e Silvana + Delgadinha:
 Sequência I de Silvana:
“Ela estava tocando e cantando.” - S/22 Ferré (1982) 209-210.
 Sequência II de Silvana:
“Ela vai ter com a mãe conta
mãe e a mãe diz:” e “A mãe vestiu-se com os vestidos da
filha e foi lá ter co' ele. E ele disse-lhe:” – S/29 Marques (1989) 388-390.
 Sequência III de Silvana:
“'Pois ele
noite oi pensava que era a ilha e pediu-lhe um abraço e a mulher disse-lhe:”-
S+D/24 Ferré (1987) 77-78.
“A cometia o pai, cuidava que era a filha, era a mulher. E depois à mulher respondeu
assim:” - S+D/26 Galhoz (1987) 386-387.
791
Os “três ca aleiros” poderão ser, por hipótese, uma importação/contaminação de Os Três Reis do
Oriente, cantado nos peditórios dos Reis, que Maria Aliete Galhoz arrumou em Romances Religiosos e
Orações Narrativas em GRPP II, no Ciclo do Natal.
427
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“De noite quando estava deitado com ela”. - S+D/27 Galhoz (1987) 387-389.
“mas era a mãe, e o pai foi lá imblicar com ela” - S+D/285 Galhoz (1987) 385.
 Sequência III de Delgadinha:
“Quando de l saiu a primeira pessoa que encontrou oi a sua irmã.” - S+D/20 Fontes
(1983a) 121-123.
Delgadinha:.
 Sequência II:
“E ele raivou e assim disse e mandou-na prender, D/93 Ferré (1982) 214-215.
“E depois ele quando sou e isto o rei quando sou e depois mandou:”, D/127
Marques/Silva (1984-1985) 115.
 Sequência III:
“E ela botou-se por aí além e foi onde sua irmã estava.”, D/93 Ferré (1982) 214-215.
“Ò depois Silvana su iu. (Senhora: Ó depois é que subiu outro). Subiu mais al... ainda mais
alto e ò depois adonde encontrou seus irmãos” e “Ò depois dizia... (Senhora: Ó depois
subiu outro.) Ó depois subiu mais alto aonde avistou o seu pai:”, D/148 Fontes I (1987)
447-448.
“- ão não dou”. E ò depois sempre le pediu
mãe. E a mãe e a mãe disse-le tam'ém que
não. E diss'assim:”, D/158 Fontes I (1987) 457-458.
 Sequência IV:
“Passou por ali seu pai.” e “Dou-te a i- gua se me d s a tua mão direita. Diz:”, D/151
Fontes I (1987) 450-451.
 Sequência V:
“E depois ela desistia. Que o seu prometido estava eito.”, D/161 Fontes I (1987) 460-461.
 Prolongamento:
“A mãe começou a ler a carta e ela disse:”, D/80 Fontes (1979) 145-146.
Gerinaldo:

“E dormiram am os.”, G/67 Ferré (1982) 232-234.
As intervenções, a nível da enunciação ou do enunciado, ora precedem a narrativa,
ora a interrompem, a ligam ou concluem-na e actuam como didascálias, comentários ou
explicações (“Parece que a pôs a bacalhau (...) Saiu a uma janela:”, D/115 Marques (1982)
428
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
213-214), ou mesmo referir a existência de versos que não fazem parte da intriga (“Foi
atão quando mandou vir o papel.” diz a informante da versão VM/232 Cruz (1995) 185,
ao finalizá-la, obviamente referindo-se aos versos, de que não se lembraria, de
invocação à escrita que são um prolongamento de Veneno de Moriana,). Elas podem
coexistir com a enunciação dos versos, mas algumas tomam o carácter de prosificações
do enunciado, de que certos exemplos atrás já se aproximam.
Repare-se que uma mesma situação, que neste serve para dar conta da grande
tristeza de uma personagem (Silvana) motivada pela proposta incestuosa do pai, pode
ser contada ao nível da enunciação (a) ou ao nível do enunciado, neste caso como por
narrador extradiegético (b) ou como fala de personagem (c) 792 , como abaixo se
exemplifica:
(a) [….] Foi quando a Dona Silvana subiu ao seu quarto e gritou muito por a sua mãe,
que lhe valesse a sua mãe, que seu pai, que contando à mãe o que o pai queria fazer
naquele grande saluços de desgosto.”
S/13 Purcell (1976b) 66-67
(b): 10.“Foi Silvana para o seu quarto, mais triste que a noite o dia.
11. Chamava por su mãe, há sete anos falecida.”
S/12 Purcell (1976b) 57-59
(c): 6.“- O que tendes vós, Silvana, que assim vens agoniada?”
S+D/5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V
As prosificações serão devidas ao esquecimento dos versos pelos informantes, que
procuram colmatar as lacunas com um relato do que aconteceu (ou terá acontecido, na
sua interpretação), mantendo-se ou não fiéis ou não ao sentido do romance. O
fenómeno, considerado muitas vezes como efeito da erosão do tempo, que afecta os
romances como a outras composições tradicionais, origina versões mais ou menos
792
Comprova-se com este exemplo a grande versatilidade do romanceiro, que pode intercambiar o
narrativo com o dialogado ou prosificar, sem necessariamente perder o sentido.
429
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
fragmentadas, por vezes com um ou dois versos, sendo a falta de memória apercebida
pelos informantes (e assim o declaram)793:
“E depois ele... Nã sei então o resto. Sei qu'o resto, que vinham do enterro,
qu'o amante dela que vinha... Ia de carreira. E o coveiro disse -le qu'ele que nã
fosse, porqu'ela, que já a tinha enterrado. E ele disse que não, que não o
acreditava. E ele disse:
- Olha, aqui vai a pá da enxada com qu'a terra eu a cobri.
Mas então j tenho tudo muito perdido dessa.”
BF/56 Fontes (1979) 112
Deste modo, e de acordo com o grau de esquecimento, far-se-á a prosificação de
alguns versos, de partes do romance ou da sua totalidade, podendo resultar na
transformação, em casos extremos, em contos ou lendas794. Em rigor, a prosificação dá-
793
Com a distância, provavelmente, a não ajudar; a versão em causa é do Romanceiro Português do
Canadá, recolhida por Costa Fontes de uma informante de 77 anos, natural dos Açores.
794
Neste processo não incluímos outro tipo de prosificações possíveis, que podem resultar do que João
David Pinto-Correia sintetiza como “a produção popular no intertexto da literatura institucionalizada” em
artigo no qual percorre o “itinerários” de diversos tipos de marcas ou aproveitamentos da composições da
Literatura Tradicional, oral ou escrita, em renomados autores da Literatura Portuguesa. Ver João David
Pinto-Correia [1988], “A Literatura popular e as suas marcas na produção literária portuguesa do século
XX – uma primeira síntese”, Revista Lusitana (Nova Série), nr. 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 19-45 e João
David Pinto-Correia [2001],
“Tradição, ‘Cultura de Massa’ e Novos Contextos Culturais:
Desaparecimento ou Persistência da Literatura Oral Tradicional?”, Actas do IV Congresso Internacional
da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, disponível na Internet em
http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/TRADICAO_CULTURA%20DE%20MASSA%20E
%20NOVOS%20CONTEXTOS%20CULTURAIS.pdf, arquivo acedido em 20 de Setembro de 2011.
Embora não se trate de uma “prosificação” nem mesmo de uma reescrita de composições da Literatura
Oral e Tradicional, referimos, porque se trata de um dos romances do nosso corpus, dois exemplos das
suas “marcas” e/ou registos em obras contemporâneas, de que destacamos, em particular, Mau Tempo no
Canal (Vitorino Nemésio [1973], Mau Tempo no Canal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1973). É sabido que
Nemésio era bom conhecedor da literatura tradicional, oral ou escrita, e até utilizador, na sua obra
poética, das características das “cantigas”, “décimas” e “romances”, sobretudo em Festa Redonda e
Poemas Brasileiros (cf. sobre este assunto, João David Pinto-Correia [1998], “Voz e povo na poesia de
Vitorino Nemésio”, em António Manuel Machado Pires et alii, Vitorino Nemésio. Vinte anos depois. O
Colóquio Internacional Ponta Delgada, 18-21 de Fevereiro de 1998, Lisboa-Ponta Delgada, Edições
Cosmos, 1998, pp. 37-52) e também Carlos Nogueira [2006], “A poesia popularizante de Vitorino
Nemésio” em AAVV, O fragmento. Forma Breve 4, Aveiro, Centro de Línguas e Culturas, Universidade
de Aveiro, 2006, pp. 315-338; ambos os autores referem as contribuições de outros investigadores sobre
os elos entre a literatura tradicional e a expressão poética de Nemésio). Citando Pinto-Correia, diremos
que “’Voz’ e ‘Povo’ são componentes da escrita nemesiana” e, acrescentamos, não só na obra poética
como na narrativa. Assim, em Mau Tempo no Canal, a protagonista, Margarida, querendo contar ao tio
Roberto a história de Rosinha da Glória, fechada no convento pelo pai, diz que a ama lha contava, mas
que “misturava a freira com a décima de D. Silvana no seu jardim assentada…”. Embora este incipit
possa também aparecer, mesmo com variações, em O Conde Alarcos ou em A Bela Infanta, cremos que,
em Mau Tempo no Canal, esta alusão a um romance tradicional não é casual, mas sim deliberado, pelo
que entendemos que se trata de uma versão de Silvana + Delgadinha, de junção muito corrente na
tradição portuguesa. Nessas versões, a situação inicial, na qual existe a sugestão de uma certa
430
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
se ao nível do enunciado, mas o processo coexiste com as pequenas narrativas que
temos vindo a analisar, em contexto de enunciação, razão pela qual as tratamos em
simultâneo.
No nosso corpus, encontram-se casos de substituição de sequências por
prosificações, mais ou menos elaboradas, com ou sem fidelidade à intriga tradicional,
acompanhando às vezes apartes explicativos e didascálias. Veja-se o que acontece na
versão D/196 Anastácio (1988) 84, na qual são evidentes os hemistíquios em falta
([….]) que a edição assinala, atribuíveis a esquecimento total, e na qual se observam as
intervenções (a itálico) que fazem substituir aqueles de que há uma lembrança; a última
parte da intriga é prosificada:
1. “Silvana se passeava por um corredor que tinha;
2.também cantava, melhor dançava, melhor romances dizia.
3.O seu pai como maroto amores lhe acometia.
4.- Meu pai, as penas do inferno quem é que as passaria?
5.- Passava-as eu, minha filha, uma por cada dia.
6.Ele mandou-a fechar numa torre p'ra estar lá sete anos e um dia,
7.[………………………] ao cabo de sete anos e um dia,
8.a Silvana se assomava à mais alta janela que havia.
9.Via estar a sua mãe a fazer
(…)
10.- Deus te salve, ó minha mãe, ó minha mãe da minh'alma,
condescendência da protagonista de Silvana à proposta incestuosa feita pelo pai, prossegue com o
episódio, de Delgadinha, do encerramento da filha que se nega a ceder aos desejos paternos. O par
“condescendência com incesto + aprisionamento”, presente nestas versões, tem uma analogia com a
situação em Mau Tempo no Canal. A referência, nesta obra, é a uma forma mais atenuada e subtil de
incesto (o casamento com o tio para o qual o pai empurra Margarida) e com o qual também esta jovem
parece condescender; os seus sentimentos em relação ao tio, de resto, são de natureza ambígua, uma vez
que este casamento vagamente incestuoso parece agradar-lhe, mas também significa para ela a
possibilidade de se libertar da prisão social que a vida na ilha representa e em que a própria posição
familiar a mantém (também Delgadinha é mantida na “prisão”, não só pelo pai, que é o ordenante, mas
pela família que se nega a ajudá-la). Pomos, ademais, a hipótese de o autor estar a citar alguma versão de
seu conhecimento directo, com o citado incipit, uma vez que, até à data da publicação do romance de
Nemésio, em 1949, não está registada em BRPTOM nenhuma versão de Delgadinha ou de Silvana com
um incipit exactamente igual ([Estando] “D. Silvana no seu jardim assentada…”).
Citamos, também, outro “incesto”, igualmente não consumado, mas encenado, em Memórias das minhas
putas tristes, do colombiano laureado com o Prémio Nobel, Gabriel Garcia Márquez. O nonagenário
narrador/protagonista canta à “adolescente virgem” adormecida “a canção de Delgadina, a filha mais
nova do rei, por quem o pai se tomara de amores: ‘Delgadina, Delgadina, serás a minha jóia amada’”…
Cf. Gabriel Garcia Márquez [2007], Memórias das minhas putas tristes, Lisboa, Dom Quixote, 2007.
431
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
11.[……………………….] dá-me uma gotinha d'água,
12.que eu à fome e à sede, já me está cortando a alma.
13.- Água t’eu dava, ó minha filha, dava-te e não me custava nada,
14.mas se o teu pai jurou-me pela ponta da espada
se fosse dar água que a matava.
15.- Irmãos da minha alma, dêem-me uma gotinha d'água
16.que eu à fome e à sede, já me está cortando a alma.
No fim viu estar o pai e depois disse-lhe para ele le mandar dar água.
17.que amanhã por todo o dia serei sua namorada.
E depois o pai mandou-le dar água, e depois vieram os criados com um jarro de ouro
para ela e er gua vieram c e j ela estava morta.”
No caso seguinte, verifica-se como as intervenções a ambos os níveis, da
enunciação e do enunciado, podem ocorrer na mesma versão, ou seja, intercalam-se
explicações da intriga, mesmo da pressuposta (a), com os versos ainda recordados,
faz-se a prosificação de parte da intriga (b) e fornecem-se ainda didascálias
simples (c) e de ligação com A Aparição (d) :
(a) “Era uma senhora que tinha um amante e o amante era o Bernardo Francês. Um dia o
marido combinou com ela qu'ia p'ra uma feira, no Brasil, e saiu de casa. (b) Mas ele veio
à noite e bateu à porta. (c) E ela disse:
1.- À minha porta oiço bater, à minha porta oiço tunir,
2.s'é o Bernardo Francês, minha porta vou abrir.
3.Se é outro qualquer, daí já se pode ir.
(b) Ele disse qu'era o Bernardo Francês e entrou. Tinham lá aqueles candeeirinhos e a luz
apagou-se. E foram-se deitar às escuras.
(c) Diz ela:
4.- Qu'é que tens, amor, que 'tás agora assim?
5. Já é meia noite dada, sem te voltares p'ra mim!
6. Se tens medo dos meus filhos, eles nã estão aí,
7. se tens medo dos meus criados, eles nã estão por aí,
8. se tens medo do meu marido, ele foi para o Brasil,
9. mais vale qu'ele morra lá, essas novas me venham aqui.
(c) Diz ele:
10.- Eu nã tenho medo dos teus filhos, qu'os teus filhos são de mim,
432
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
11.eu nã tenho medo dos teus criados, qu'os teus criados são de mim,
12.nã tenho medo do teu marido, qu'ele está em par de ti.
13.- Oh, valha-me Nossa Senhora, oh que sonho qu'eu assonhi
14.Tenho o meu amor em braços, 'inda agora o conheci.
15.- Oh, espera, deixa tu vir aí a madrugada
16.que hei-de te fazer uma camisa, com gravata encarnada.
(d) Depois é que veio o amigo, o Bernando Francês.
17.- Eu venho à da minha amada, que p'ra num há-de ser,
18.Abre-me a porta, amor, qu'eu a ti te quero ter.
(c) E diz o marido:
19.A tua amada está morta, está morta qu'eu a mati
20.as facadas qu'eu di em ela, ainda hoje darei em ti.”
BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37
Um procedimento esquemático como o que mostramos abaixo pode ser
usado para avaliar da conjunção de várias situações que vimos referindo:
Veneno de Moriana - VM/186 Anastácio (1988) 67
A informante enuncia 1.“- Minha mãe, aí vem o Jorge no seu cavalo montado.
os versos
2. - Boa tarde, ó Julieta, e amor como tens passado?
3. - Eu ouvi dizer, ó Jorge, que ias agora casar.
4. - É verdade, Julieta, e eu venho-te a convindar.
5. - Demora-te um bocadinho que eu vá acima ò meu
sobrado,
6. buscar-te um copo de vinho, p’ra ires mais refrescado.
7. - O que deitastes no copo, e o que deitastes no vinho
8. que eu já tenho a vista turva e já não sigo o meu caminho?
A informante continua, com a prosificação:
Já não segui qu'ele morreu ali e daí ela foi-s'entregar
prisão: mas 'tava p’ra cada hora
não a tiveram lá quase tempo nenhum, soltaram-na e a mãe dizia assim:
Declara ter esquecido
J não segui qu'…
Final implicado próprio do romance, … ele morreu ali…
433
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
prosificado
Acontecimentos não fazendo parte da
e daí ela foi-s'entregar á prisão: mas 'tava
intriga do romance
p’ra cada hora não a tiveram lá quase
tempo nenhum, soltaram-na
Didascália simples
Introduz versos anómalos ao romance:
e a mãe dizia assim:
9. Uma mãe que tem uma filha metida numa prisão,
10.Vai-le a levar de comer e não le pode dar na mão.
Introduz, em prosa, acontecimentos não fazendo parte da intriga do romance:
Daqui p’ra diante eles mandaram a moça p’ra casa dela nunca a quiseram na cadeia
nem nada.”
Note-se a declaração da informante (“Já não segui qu'ele morreu ali”) sobre a morte
do cavaleiro, que, efectivamente, não é expliciada no romance, mas uma implicação.
Ninguém, de facto, tem dúvidas sobre tal desfecho, que é uma implicação lógica do
narrado, tanto no Tipo B, que descreve o veneno, como no Tipo A, que não o faz. Por
essa razão, na versão VM/3 Leite (1883b) XIV, do Tipo B, o informante finaliza com a
constatação “E morreu”. Na versão acima, há uma tentativa, prosificada (que noutras
versões será integrada a nível do enunciado, como se verá adiante), de prossecução da
intriga, narrando que Moriana se entrega à prisão, o que lhe parecerá uma consequência
lógica; por último, narra que “eles” não a quiseram na cadeia, “nem nada”, e estas
palavras revelam, implicitamente, o sentido de que a Justiça vai ao encontro do
sentimento: o acto de Moriana é compreensível e, por isso, sobrepõe-se à implicação
lógica.
Nem sempre, com o passar do tempo, a falta de memória resulta em prosificação,
pelo menos de forma permanente, podendo o esforço fazer lembrar outros versos (mas
434
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
também outros esquecimentos). Vejamos o caso da versão G/63 Fontes (1980) 72 e 7273795 de Gerinaldo, que é composta por duas recitações, em duas entrevistas, da mesma
informante796, num curto espaço de tempo. Na segunda, em Fevereiro, a informante
declara (em itálico, a negrito) que não se recorda da sequência do acordar do rei,
lembra-se dos versos 8 e 9 que não enunciara em Janeiro e lhe terão esquecido, mas,
desta vez, omite os 12 e 13 desta, substituindo-os pelo verso 14 (ver a nota à versão):
22 de Janeiro de 1978.
19 de Fevereiro de 1978
1. “- Generaldo, Generaldo, pajem dum rei
1. “- Generaldo, Generaldo, pajem dum rei
tão querido;
tão querido;
2. porque me não falas de amores quando
2. porque me não falas de amores quando
estás só comigo?
estás só comigo?
…………………..
Mas é que agora tem muitos versos que eu
não sei. [……] Quando o rei ... É qu'eu não
sei agora aqui. Acordou e chamou pelo seu
vestido, qu'ele é que vestia, é que lhe ia dar as
roupas.
3. Foi de quarto em quarto, de castilho em
3. Ele foi de quarto em quarto, de castilho em
castilho;
castilho;
4. foi ao quarto da infanta onde nunca tinha
4. foi ao quarto da infanta onde ele nunca
ido.
tinha ido.
5. Lá os vê ambos deitados como à mulher
5. Lá os viu ambos deitados como à mulher
c'o marido.
com o marido.
6. - Acorda, tão bela infanta, que nosso mal
6. - Acorda-te, tão bela infanta, que nosso
'tá sabido;
mal 'tá sabido;
7. o punhal de vosso pai entre nós ambos está
7. o punhal de vosso pai entre nós ambos 'tá
metido.
metido.
8. - Donde vens ó Generaldo que vens tão
acalorido?
795
796
É considerada, em BRPTOM, como uma única.
Maria Soares de Sousa, de 67 anos de idade, natural de S. Pedro, Santa Maria, em Stoughton.
435
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
9. - Venho de caçar à roda da manhã do
rocio.
8. - Nã me mintas, Generaldo, Gerenaldo,
10. - Não me mintas, Generaldo, nunca me
nunca lhe fostes mentido;
fostes mentido;
9. mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido1.
11. mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido.
10. Ainda ontem colheres de prata, já hoje
12. 'Inda ontem colheres de prata e já hoje
d'ouro batido;
11. ainda ontem meu criado,
d'ouro batido;
já hoje meu
13. 'inda ontem meu criado e já hoje genro
genro querido.
querido;
12. - Generaldo, Generaldo, tu foste muito
14. 'inda ontem separados e já hoje à mesa
atrevido;
comigo.”
13. mas tivera ela juízo p'ra te ter
arrecebido.”
----------Nota à versão: “1 Esforçando-se por se
lembrar do romance a informadora também
recitou a seguinte variante destes versos:
- Gerenaldo, Gerenaldo tu foste muito
atrevido
mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido.”
Apresentamos, de seguida, um exemplo do que pode acontecer, num caso de duas
recolhas por diferentes colectores, junto da mesma informante, separadas desta vez por
um certo lapso de tempo (onze anos); veja-se, igualmente, como a prosificação é
intercalada com a enunciação de versos e integrando apartes explicativos e didascálias :
436
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
S/13 Purcell (1976b) 66-67 [Ferré (1982) 203-204; Purcell (1987) 53-54; NRAM (2008)
355]797
A) 9 de Junho de 1970
B) 6 de Agosto de 1981
Purcell (1987) 53-54 (reedição de Purcell Ferré (1982) 203-204 - (Classifica como
(1976b) 66-67) - (Classifica como Queixas de Silvana) - Recolhida por José Joaquim Dias
Dona Urraca)
Marques, Pere Ferré e Ana Maria Martins.
29 hemistiquios.
49 hemistíquios.
1.”Passeava Dona Silvana por seu corredor
1.”Passeava D. Silvana por suas corredores
acima.
acima;
2.Seu pai andava-a mirando a todas as horas do
2.o pai a andava mirando todas as horas do dia.
dia.
(Mas aqui, ... o que me lembra é que o pai 3.- Bem podias tu, Silvana, seres minha pel'um
estava a gostar muito dela, e disse que ela que dia.
fosse para o seu quarto se mudar de fato, que 4.- Serei um e serei dois, do papai sou toda a
esperava por ela. Que tinha aquela hora vida,
marcada, qu' esperava por ela. Foi quando a 5.mas as penas do inferno, papai, quem as
Dona Silvana subiu ao seu quarto e gritou passaria?
muito por a sua mãe, que lhe valesse a sua 6.- Sou eu, minha filha, que as passo toda a
mãe, que seu pai, que contando à mãe o que o vida.
pai queria fazer naquele grande saluços de 7.Vai Silvana par'ó seu quarto, mais triste qu'a
desgosto. E a mãe apareceu-lhe e disse-lhe:)
noite e o dia,
8.chamava por sua mãe que há sete anos era
falecida.
9.- O que é que tu me queres, que me queres,
filha minha?
3.- Dá-m' os teus vestidos, teus fatos de cada
10.Empresta-m'os teus vestidos, teus fatos de
dia,
cada dia,
4.que eu quero ir com teu pai, ah, ladrão o que
11.qu'eu quero ir com teu pai, ah! ladrão, o que
te queria!
te queria!
797
São consideradas a mesma versão em BRPTOM; reproduzimos, na coluna da esquerda, como em
Purcell (1976b) 66-67 e, na da direita, como em Ferré (1982) 203-204. A informante é Filomena Oliveira
e a versão é do Campo do Cima, c. do Porto Santo, ilha de Porto Santo.
437
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(E nisto a mãe vestiu os fatos dela e vai c'o
E a mãe foi p'r'ó pai e o pai disse:
rei, c' o pai. Chega ao quarto do rei; e o rei
diz-lhe:)
5.S’acaso te conhecer honra, muito a vida te
12.- Se eu te conhecer honra, a vida te
guardaria;
guardaria,
6.mas se não te conhecer honra, a vida te
13.mas se eu não te conhecer honra, a vida te
tiraria.
tiraria.
(E aqui a mãe disse que já tinha tido três
filhos.)
14.- Como me podes conhecer honra (…)
7.- Como é que podia ser ter honra?
15.se sou mãe de sete filhos qu'eu contigo
teria?
(E o marido responde:)
8.Que vozes são estas que eu oiço tão
16.- Ai que vozes são estas, que vozes tão
desmudada?
desmudadas?
9.É a nossa filha Silvana, chora qu' está
17.- É a nossa filha Silvana que chora, 'tá
desgraçada.
desgraçada.
(E nisto o rei desmaioua e ficou quas’ a
18.- Rei que 'tás para morrer, Deus vos dê
morrer, e a mulher disse-lhe; e ele disse que
parte na alma,
deixava:)
19.repartistes os teus bens, a mim não me
destes nada.
10.- A João deixo-lhe as casas, a Pedro terras
20.- A João deixo as casas, a Pedro terras
lavradas.
lavradas.
11.E à nossa filha Silvana, a essa tu não deixas
21.- E à nossa filha Silvana, a essa tu não
nada?
deixas nada?
12.- Lá lhe deixo aquela bóia, aquela bóia
22.- Lá lhe deixo aquelas bóias, aquelas bóias
dourada;
doiradas,
13.por uma banda corre ouro, por outra prata
23.pel'uma banda corr'oiro, por outra pratas
lavrada.
lavradas.
14.- Quando eu nasci neste mundo, já a bóia
23.- Quand'eu nasci neste mundo já as bóias
era tomada
eram tomadas,
15.entre duques e marqueses, todos de espada
25.entre duques e marqueses, todos d'espada
dourada.”
doirada.”
Notas: na prosa, depois do 2b saluços, Variantes: 2a. seu pai; 4b. serei do papai toda
‘soluços’; 8b desmudada, ‘mudadas’, 12a, b a; 6a. Sou eu, Dona Silvana.
bóias ‘?’
438
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Seria de esperar que a versão B), recolhida onze anos após a versão A), tivesse
sido esquecida pela informante e apresentasse uma maior prosificação. Tal não
acontece, o que se explica por um possível maior esforço de memória da informante798,
notando-se a variação mínima dos últimos versos nas duas versões, que correspondem a
Queixas de D. Urraca. Embora o número de filhos que a mãe declara ter passe de três,
na versão A), para sete, na versão B)799, a prosificação da primeira versão, no que diz
respeito ao sentido da narrativa, é fiel aos versos enunciados na segunda. Já o sentido da
já referida aquiescência com o pai, implícita nos versos 4 e 5 da versão de Agosto
(“Serei um e serei dois, do papai sou toda a vida, / mas as penas do inferno, papai, quem as
passaria?”) não encontra equivalente explícito na prosificação.
798
Um esforço de memória pode, na verdade, produzir versões mais completas. É o que se passa com a
versão de Delgadinha recitada por Adélia Vieira Serrão, 72 anos na altura, recolhida no dia 11/8/84
em Aljezur (concelho de Aljezur), por Vanda Anastácio e Pere Ferré . (D/197 Anastácio (1988) 85
[Carinhas (1996) 88]):
1. “- Adelina há-des ser minha, há-des ser minha amada.
2. Hei-de te vestir d'ouro, hei-de te calçar de prata.
(…)
(…)
3. Adelina escada acima, muito triste, apaixonada,
4. viu estar as suas manas a bordar uma almofada. “
(…)
(…)
No dia 1/9/89, Ana Cristina Carinhas recolherá, no mesmo local e da mesma informante, já com 78 anos,
a versão mais completa ([Carinhas (1996) 88], que não considerámos no nosso corpus, por ser
considerada reedição):
1. “- Adelina, há-des ser minha, há-des ser a minha amada,
2. Eu hei-de te vestir de ouro, hei-de te calçar de prata.
[….]
[….]
3. Adelina escada acima, muito triste apaixonada,
4. Viu estar as suas manas a bordar a almofada.
5. - Manas, queridas manas, do coração, da minha alma,
6. Só lhes peço por favor, que me dêem um copo de água.
7. - O pai jurou quem desse água à Adelina, a cabeça degolada.
[….]
[….]
8. O primeiro que chegou com água, foi o seu amor constante,
9. Adelina bebeu água e morreu no mesmo instante.”
799
Se o número dos filhos tidos difere na parte correspondente a Silvana, já os nomes - “João, Pedro e
Silvana” - na parte de Queixas de Dona Urraca são os mesmos, nas duas versões.
439
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Mais ou menos elaborada, as prosificações podem assumir as seguintes
características:
a) fidelidade à intriga tradicional, substituindo sequências:
 Bernal Francês:
- Sequência II : “Ele disse qu'era o Bernardo Francês e entrou. Tinham lá aqueles
candeeirinhos e a luz apagou-se. E foram-se deitar às escuras. Diz ela:”, BF/114
Custódio/Galhoz (1997) 36-37.
 Delgadinha:
- Sequências I, II, III, IV:
“Chegava a
aldininha. Era o pai o pai queria o pai queria sa meti c’a ilha e a
ilha diss’ que ad’rava a Deus d’ céu que el’ qu’er’ pai dela que qu’ria que se
namorava dele. E el’ disse:” [……..] “E ’cando o pai c ’ da reina. Ele mandou-a
prinderi. Só pão e áugua. O pai prendeu-a s pão e gua. E ela ‘stava prisa e
depõis o pai diss’ par’ela não l’ dar gua s pão. J ‘tava h oito dias a pão é
qu’ela pediu
mãe que l’ desse gua. E ò pai dissi e
mãe diss’:” [……..] “O
pai depois qu’a ilha nã quis ir c’o pai a mãe oi maltrat -l’. H sete anos qu’o pai
d’sprezava a mãe. Passou a ar i meia e el’ d’ss’:” [……..] “E el’ disse que se le
desse gua o pai que le matava. E el’ pediu aos criados e os criados diss’ que não
que não podia. Quando ò depois e ela pediu a Deus.”, D/67 Purcell (1968) 142144.
“Era um pai que tinha três filhas e ele interessou-se pela mais moça. A filha nã queria
ter nada co' pai e ele vai lá mandou prender a ilha num quarto e depois a ilha ‘tava a
morrer.”, D/239 Xarabanda (1995) 36.
“Um rei tinha três filhas. Uma era mais bonita qu'as outras e ele queria facer pouco
daquela filha (chamava-se Delgadinha). E ele, depois, miteu-a numa sala. Nem le dava de
comer nem le dava de beber, nem lhe deixava dar de beber nem os criados, nem a mãe,
nem os irmãos.
Adepois, tanto tempo 'tev' alii, qu'ela, coitadinha, se morria c'a fome e co' a sede. E o
cabrão do pai queria fazer pouco dela e ela não se deixava, porque podia [?] morrer
naquela sala metida que não se deixou vencer do pai. Ela pedia à mãe que lhe desse de
comer e de beber, e ela respondia-le que não le podia dar, qu'o homem qu'a matava.
Adepois, sentia falar as su' irmãs, e ela saía a pedir que le dessem de e er e de comer:”
D/118 Marques (1982) 216-278.
440
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- Sequência V e Sequência VI:
“Quando ela morreu, [...]. Cá morriu.
E q’ando vind’ co’a ’ua ‘tava ag no rio aparecida com q’atro velas acisas e um jarro
d’ gua um jarro d’ prata ina um jarro de prata ina d’ gua.”, D/67 Purcell (1968) 142144.
“E o pai mandou os criados à pressa buscar um copo d' á'ua para dar à filha”, D/239
Xarabanda (1995) 36.
“Eles todos dois foram ô mesmo tempo. Quando chegaram lá, já ela era morta com uma
onte d’ gua cabeceira, mais clara que nem o leite”, S+D/27 Galhoz (1987) 387-389.
“ essa altura todos corriam pra não ser nenhum o derradeiro, e, quando lá
chigaram os criados, que estava ela morta num caixão já, muito bonito, assim com
raminhos e assim, e parece que com uma fonte d'água à cabeceira.”, D/116 Marques
(1982) 214-215.
“[Ele, então,] mandou os criados, o primeiro que lá chegasse parece que casava co'ela.
Quando lá chegaram, já estava morta, uma nascente d'água a correr ò pé dela (...) Ela
morreu de sede.
Ela não tinha água, não (...) Ela despois fez-le ver ò pai. Aquilo foi por milagre de
Deus.”, D/115 Marques (1982) 213-214.
 Gerinaldo:
- Sequência VII: “Foi iele, lebantau-s' e foi dai um passeio. E o rei foi-1' ò
incuontro e depois dixe-1' antõu: ...” , G/53 Pereira (1970) 242-243.
- Sequência IV , V, VI: “Grinalde foi o que fugiu co a moça ò rei. O rei sonhau
que Grinalde staba co a filha meteu-la spada ò meio e foi-s' imbora. E depois a
filha ascordau e dixe: ....”, G/53 Pereira (1970) 242-243.
b) conhecimento da fábula, introduzindo pressupostos que explicam as
circunstâncias ou que se imaginam:
 Bernal Francês:
- “Uma senhora era casada. O marido foi para a guerra. Entretanto ela foi-lhe infiel. O
marido volta, quando o amante estava ausente. (Já estropiado).”, BF/46 Leite (1958)
418-419.
441
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
- “Um homem oi para o Brasil e deixou icar a mulher na terra. Escrevia-lhe, mas não
recebia resposta. É que ela tinha arranjado um amigo e por isso se desinteressara dele.
Por artes do diabo, o marido apareceu uma noite na terra e foi à porta bater. A mulher
julgou tratar-se do amigo que j h uns dias não aparecia:” BF/79 Campos/Almeida
Fernandes/R. Pereira (1985) 138-139.
- “O marido oi para a França e quando terminou a guerra veio. A mulher tinha c
ficado. Ouviu bater à porta e cuidèva que era o amigo, mas era o home dela. O amigo é
que era o Bernal de França. Quando era meia-noite disse ela assim:”, BF/112
M.A.Vilhena (1995) 121.
- “Era uma senhora que tinha um amante e o amante era o Bernardo Francês.
Um dia o marido combinou com ela qu'ia p'ra uma feira, no Brasil, e saiu de casa. Mas
ele veio
noite e ateu porta. E ela disse:”, BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38.
 Veneno de Moriana:
- “Era um rapaz que namorava uma rapariga e odepois deixaram-se. Estava o casamento
todo tratado e ele ausentou. Mas depois regressou lá e ela pensava que ele ia p'ra
terminar outra vez o casamento mas era o contr rio.”, VM/177 Galhoz (1987) 316.
 Delgadinha:
“Era um pai que tinha duas ilhas. J era amante duma da mais velha e queria ser
amante da mais nova, mas ela não assinou (?). Cantava muito bem essa mocita e andava
cantando, fazendo as limpezas em casa800.”, D/215 Cardigos/Marques (1994a) 15.
c) fidelidade à intriga, mas com alterações ao sentido:
- Alteração do sentido das falas das personagens:
Em certas versões de Delgadinha801 dá-se uma variação importante, que mantém a
fidelidade à intriga, mas altera o sentido que uma das personagens, o pai, atribui à
afirmação da filha, de ser “sua namorada” (16.“- Eu peço a Deus do céu de ser sua
namorada.”, D/112 Marques (1982) 210-211), julgando que esta diz que lhe vai ceder.
800
Este pormenor de “cantar bem” e “andar cantando” pode ser influência do sentido de Silvana, que anda
tocando pela casa; parecerá à informante que Delgadinha é mais recatada, pelo que a imagina a
desempenhar as tarefas do lar.
801
São elas as nossas S+D/18 Leite (1960) 86-87, D/111 Marques (1982) 210-211, D/112 Marques
(1982) 211-212, D/113 Marques (1982) 212-213, D/114 Marques (1982) 213-214, D/115 Marques
(1982) 214-215, D/116 Marques (1982) 215-216, D/117 Marques (1982) 216-278.
442
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Delgadinha, porém, refere-se a Deus. Dias Marques analisa as versões e atribui a
variação a “equívocos”, quer o “lexical baseado na ambivalência do determinante possessivo
da 3ª pessoa”, quer o que se “centra não no sentido duma única palavra mas de toda uma
frase”, quer ainda num de natureza fonética 802 ; aqui, registamos a interpretação dos
informantes:
18.”- Eu prometo a Deus do Céu de ser a Sua namorada!”
Mas era a Deus, não era a ele!
D/113 Marques (1982) 211-212
24. “- Eu peço a Deus do Céu de ser a Sua namorada.”
Era pra Deus do Céu, não era pra ele!
D/114 Marques (1982) 212-213
12. “qu'eu já prometi a Deus de ser Sua namorada!”
Mas era de Deus qu'ela prometia, não era do pai, mas o pai, pelos vistos,
compreendeu qu'era dele (...) Nós interp'tamos pra aí o mal, não é?, podia ser ser
doutra maneira, agora nós... Ela queria dizer de Deus (...) mas ele entendeu (pra nós,
não é?) qu'era do pai, mas ela não era do pai, não.
D/115 Marques (1982) 213-214
8. ”- Eu prometo a Deus do Céu de ser Sua namorada.”
Mas prometia a Deus do Céu, não era a ele, e ele, então, quando ouviu esta
palavra, julgava que ela dizia que era pra ser namorada dele, é que ele:
D/116 Marques (1982) 214-215
16.”- A vontade de Deus seja feita!”
A vontade de Deus! Ele entendeu qu'era a dele, mas era a de Deus!
D/117 Marques (1982) 215-216
802
Cf. J. J. Dias Marques [1982], “Sobre um tipo de versões do romance de Delgadinha”, Quaderni
Portughesi, XI-XII, Primavera-Outono, 1982, pp. 195-225, que cita e refuta o exposto no artigo de Xosé
Maria Álvarez Blázquez [1965], O Romance de “Silvaniña” en aliza e Portugal, Separata das “Actas
do Congresso Internacional de Etnografia”, promovido pela Câmara Municipal de Santo Tirso, de 10 a 18
de Julho de 1963, Vol. 6º, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1965. Ao invés do defendido por
Blásquez, que argumenta com a falta de lógica de tal imoralidade, “incompatibre co esprito abuído e
sinxelo da nosa millor literatura popular, onde a prevaricación non foi nunca espiñenta frol que se dese” e
para quem, então, precisamente as versões nas quais Delgadinha se promete a Deus e o pai envia a água
representam o verdadeiro e original espírito do romance. Para Dias Marques, as versões nas quais
Delgadinha cede são o tipo primitivo e, de acordo com Gutiérrez Estévez (e cita Estévez [1978]),
demonstra que o romance é, na verdade, a vitória do Bem sobre o Mal, tanto mais que a cedência de
Delgadinha não é um pecado mortal, como alegara Blázquez, pois que é fruto da extrema coacção.
443
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Como variante, o pai ouve-a falar com os irmãos, mas o que percebe é o mesmo:
5.”- Irmanos, que soides por cierto, dade-m'uma jarra de água,
6. qu'adepois dela beber, de Deus serei perdonada!”
E o cabrão do pai o qu'é que percebeu? Que dele seria enamorada!
E depois já mandava os criados e as criadas acudir-le:”
D/118 Marques (1982) 216-218
- Alteração do sentido da actuação das personagens:
Mesmo que, nalgumas versões, os membros da família de Delgadinha a
lamentem, nunca procurarão ajudá-la, excepto numa versão em que a informante
entende que o irmão mais novo quer e tenta fazê-lo; é ele que está junto da irmã e
anuncia a sua morte ao pai, o que sugere a sua solidariedade; há, portanto, um desvio ao
sentido da negação de água a Delgadinha, que é o de que todos os seus membros
pactuam com o pai. Este ameaça o filho de morte, pelo que, afinal, o rapaz não dará a
água, o que segue o sentido do romance:
“Mas o mais novo sempre lhe queria lá dar a i-água à irmã.
[18.Avistou o seu irmão mais novo no jardim a passear.
19.- Irmãozinho, se és meu, tua alminha está sagrada.]
O rapaz ia a correr com a i-água pra cima, pra le dar a i-água. Chigou lá, o pai
pôs-lhe pena de vida ò fundo da escada (ò rapaz).
[20- Sim, ta dava, irmã minha, s' o pai não me matasse.]
[………….]
E depois o irmão mais novo, que le queria dar a i -água, é que
l'arrespondeu, que já estava à cabeceira da irmã:
[27.- Delgadinha não quer água, nim quer água nim quer nada,
28. ò pé da sua cabeça há um tanque d'água sagrada.]”
D/114 Marques (1982) 212-213
444
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
 Gerinaldo:
A prosificação praticamente total, abaixo (a versão apenas consta da censura do rei
ao pajem: “Gerinaldo, Gerinaldo, page do rei mais querido, // Tu eras o Gerinaldo que me
roubastes o ninho.”), respeita a intriga, mas atribuí o ónus da sedução a Gerinaldo (a
negrito), o que modifica o sentido do romance, :
“Bem, o Gerinaldo era um criado de servir e namorou a filha do rei e depois dormiu co'ela
e o rei pensou que lhe estavam roubando o ninho, quer dizer, quando foi lá encontrou o
criado a dormir co'a filha e pôs-se-lhe a espada no meio. E de manhã quando veio
acomodar a cria e os cavalos é que lhe disse: ...”
G/165 Galhoz (1987) 402-403
d) alteração da fábula:
 Delgadinha
- Elipse do sentido do incesto:
Sendo o incesto um tabu social, este pode ser objecto de elipse, o que altera o
sentido geral da fábula. Explica-se a perseguição à filha com um namoro indesejado
pelo pai, alterando-se o sentido incestuoso, mas não o resto da intriga, como se percebe
do seguinte comentário, no final da enunciação:
“O pai não queria que se casasse. E depois começou a namorar e o pai ez-le um
convento e fechou-a l dentro”, D/84 Fontes (1980) 68-69.
A mesma eufemização é executada noutra versão, mas com sentido inverso – a filha
não quer casar com um “moiro”, a que o pai a obriga, sendo por isso que é castigada:
“Porque queria-la obrigar a casar c’o Moiro. E ela nã queria casar com o Moiro. Por
isso o pai deu-le o castigo dela ‘tar aqueles sete i-anos fechada ali naquelas torres.”,
D/86 Fontes (1980) 69-70.
e) alteração da intriga:
 Delgadinha
445
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Embora o peso da tradição nem sempre seja de molde a permiti-lo, pode haver
tentativas de modificar aspectos que possam não ser do agrado dos informantes, como é
o caso da elipse da proposta incestuosa do pai, em Delgadinha, e a introdução de outra
personagem, um pretendente da jovem, mas a intriga pode vir a ser modificada.
Referimos já, na Introdução, o estudo de Dias Marques sobre o esquecimento
propositado ou inconsciente do desfecho infeliz, substituído pelo casamento com o
criado, com o comentário final da informante que intitula o artigo: “E acabou tudo em
bem” 803. É a condição social do pretendente, neste caso, que origina e explica a sanha
do pai contra a filha e o desejo de a salvar que altera o desfecho, o que fica patente nos
comentários às diversas recitações, que transcrevemos:
pp. 164-166:
“A rapariga tinha … parece que tinha um namorado que era criado não sei como era.
[……]
“Chegam lá, salvam a ra…, tiram a menina do coisa…, do…, de onde estava. O criado
casava com ela.”
pp. 167-168:
“O criado gostou muito da rapariga, e então foram-lhe contar [ao pai] que a Silvaninha que
falava muito com aquele rapaz […] O rapaz disse assim:
[……]
Quando o criado lá chegou, ela deu um suspiro e um ai. O primeiro que lá chegou foi o
homem que ela gostava, não é? O primeiro que lá chegou foi o seu namorado, que, ao
apanhá-la ao colo, [ela] deu um ai e… morreu… ou era assim…”
pp. 170-171:
“Ela gostava muito do rapaz, mas o pai não queria(?), porque era um criado. O pai não
queria que ela tivesse amores com o criado. Mas, depois, como chegou naquela torre e
aquilo tudo, naturalmente, tiveram remorsos, e ela conseguiu casar com o rapaz que ela
gostava. E acabou tudo em bem.”.
803
Cf. Marques [1996]. As recitações estão agrupadas na nossa D/243 Marques (1996) 164-166, 167-168
e 170-171.
446
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Nesta versão a informante irá concretizar a mudança no próprio enunciado (17 e
18 das pp. 170-171) “O primeiro que lá chegou foi com ele que ela casou”, assim alterando
a intriga e o sentido do romance.

Gerinaldo:
Numa versão de Gerinaldo, há uma alteração na intriga pressuposta que é
prosificada – Gerinaldo fora roubado quando ainda criança e levado para casa do rei.
Explicam-se, assim, as circunstâncias tradicionais (é criado pelo rei e é a infanta que o
namora), mas há, ao contrário daquelas, uma nivelação do estatuto social do pajem, visto
que o menino roubado é de sangue real:
“Genaraldo era filho do rei de Espanha e neto de el-rei da Hungria. Roubaram-no o
menino e levaram-no para outro reino. O rei daquele reino, gostando muito do menino,
puxou-o para casa para o acabar de criar. Criou-se e enducou que chegou a ser vassalo
do rei. A infanta que o namorava, mas ele não no sabia. Foi tão grande o amor que ela
chamou por ele e disse-le: …”, G/41 Leite (1958) 313-315.
Já uma versão brasileira de Gerinaldo 804 apresenta “Reginaldo”, um príncipe
pobre, que se apaixona primeiro por “D. Infância” e procura aproximar-se dela,
disfarçado de jardineiro do rei; só depois ela vai apaixonar-se por ele, tanto que o
provoca a dormir com ela. Assim, as circunstâncias iniciais são diferentes, alterando a
intriga e é Gerinaldo o sedutor805, mas respeita-se a semelhança básica de sentido (no caso
uma desigualdade social, visto que o “príncipe menos rico” correponde a pajem (a
desigualdade, aqui, não é de estatuto mas económica):
804
Cf. a versão 364 em GRPP I, pp. 419-422, que reproduzimos no final do nosso corpus. Utilizamos aqui
esta versão por ser nela muito evidente o fenómeno da prosificação, como, aliás, o é na tradição brasileira,
de forma geral.
805
Sobre esta circunstância, a que nos referiremos também adiante, cf. o artigo de Manuel Viegas
Guerreiro [1988], “Uma Versão Brasileira Inédita e Singular do Romance de Gerinaldo”, Revista
Lusitana. Nova Série, 9, 1988, pp. 5-17, artigo reeditado em Manuel Viegas Guerreiro [1997], Povo,
Povos e Cultura, Lisboa, Colibri, 1997, pp. 204-214.
447
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“Era um rei um rei que tinha uma filha. Mas ele era muito rico e só queria casamento
igual para a filha. Onde tinha um príncipe que era menos rico e era apaixonado por ela.
- Meu Deus, como vai ser pra eu me aproximar de D. Infância? Porque D. Infância é uma
princesa tão rica e o pai dela muito orgulhoso, não há possibilidade. O príncipe pensou: E eu que vou procurar um emprego no reinado dele?
Se vestiu numa pessoa humilde e foi a ele procurar emprego. Ele disse:
- Nós estamos com a casa completa. A única vaga que eu tenho aqui é de jardineiro. Você
aceita?
- Ele disse: - Aceito.
Ele queria ficar perto dela. Aceitou a vaga de jardineiro. Quando é um dia ele estava
regando o jardim, ela contemplando, contemplando. Quando foi um dia, ela não
resistindo mais chegou na janela e cantou”....
Veja-se o contraste com a versão seguinte, na qual o pajem é de condição social
inferior à da infanta, com o fenómeno da variação a atribuir-lhe uma outra profissão, no
caso a de “militar de faxina” 806, óbvia referência a um militar de baixa patente (“Era um
rei que trazia lá um militar de faxina, e depois tinha uma filha, e depois disse-lh’ assim a filha”
G/87 Marques/Silva (1984-1985) 120), mas na qual, todavia, a intriga não foi alterada.
A versão brasileira pode ser considerada tendente a uma total prosificação,
embora mantenha uma boa parte dos versos, funcionando as partes em prosa que
precedem os versos como explicitação do que narram, e finaliza com uma fórmula
própria dos contos tradicionais (em sublinhado):
806
O “militar de faxina” equivale ao filho de porqueiro de outras versões e, logicamente, ao pajem
desprovido de importância. O humilde posto aparecerá como contraste com “General”, simultaneamente
militar de alta patente (o que equivale ao filho de reis que por vezes se revela) e corruptela de
“Gerinaldo”, que ocorre em algumas versões:
1.“- General, General, vassalo do meu pai querido,
2. Porque não tratas d'amores a meia-noite comigo?”
G/95 Cortes-Rodrigues (1987) 172-174
A disparidade social não podia ser maior e serve, precisamente, a sugerir quem pode ou não casar com
uma infanta. Note-se, ainda, que nos “pliegos” genericamente denominados por Canción nueva del
Gerineldo, no século XIX, o pajem transforma-se em ‘oficial [russo]’, que foge do serralho de
Constantinopla com a sultana favorita, a bela Enildas. Cf. Catalán, Cid [1975], Vol. VI, pp. 30-36.
448
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“Aí casaram os dois, fizeram muitas bodas e muitas festas e até hoje estamos comendo.
Entrou por uma porta saiu por outra…”
Este tipo de finalização remete a narração para um não-real/não presente, ao
contrário do que sucede nos romances, que apresentam os actos praticados não os
desvinculando da realidade e como perante os nossos olhos. Pela mesma razão, entendese como um indício de prosificação a introdução do advérbio “depois” numa versão
totalmente versificada, como a G/128 Fontes I (1987) 487-488, no v. 12 (12.“Depois o rei
sonhou um sono, decerto le tem saído…”), a lembrar também a fórmula de ligação dos
contos (“ … e depois [acontecer/fazer algo]”), à semelhança do que acontece na versão
G/129 Fontes I (1987) 488, que substitui a sequência do acordar dos amantes pela
prosificação iniciada por essa forma adverbial, seguindo-se uma didascália com a
mesma estrutura: ” E depois, quando viu a espada, e ficou assustado e levantou-se. E depois
el-rei, o rei, dizia-le:…”.
f) prosificação total:
Os romances podem sofrer prosificações motivadas por esquecimento da forma
versificada, podendo manter desta alguns vestígios807, ou, ainda, vir a transformar-se
807
Já referimos a versão brasileira de Gerinaldo em GRPP, extensamente prosificada, mas incluindo ainda
parte da versificação. Embora o caso seguinte não tenha a ver com o nosso corpus, referimo-lo por ser
paradigmático de uma situação que pode vir a generalizar-se, ou seja, um progressivo esquecimento dos
versos, mas não da fábula, transformando os romances em composições mantendo elementos daquele.
Entre os trabalhos de recolha efectuados por alunos da disciplina de Literatura Oral e Tradicional
ministrada pelo Prof. Doutor João David Pinto-Correia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
e depositados no Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Prof. Manuel Viegas Guerreiro’, encontrase uma, efectuada em Moimenta da Serra, concelho de Gouveia, que contém uma composição (Ri-1799/00) que o colector considerou um Conto e uma outra (Rc-13- 98/99), recolhida no ano anterior, em
Évora, que foi considerada uma Lenda. Ora lendo as duas composições em paralelo, reconhece-se, em
ambas, os elementos narrativos que permitem concluir estarmos em presença de outra coisa. São eles:
- um conde seduz uma princesa;
- um conde gaba-se de ter seduzido a princesa;
- a gravidez da princesa é descoberta pelo pai (apenas numa delas);
- a princesa é condenada à morte (num dos caso será queimada e no outro enforcada);
- o conde disfarça-se de frade e interrompe o cortejo para a confessar;
- o conde disfarçado “confessa” Claralinda e pede-lhe um beijo;
- a princesa indigna-se e recusa;
- fogem os dois;
São estes elementos, mais o vestígio dos versos tradicionais que ambas as composições mantêm, a negrito
nas transcrições abaixo, que permitiram perceber (e classificá-las correctamente) que ambas as
449
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
composições são prosificações de unidades sequenciais do ciclo de Conde Claros (João David PintoCorreia organiza uma “sinopse da organização textual” das cento e sessenta versões disponíveis dos
romances do “ciclo” do Conde Claros. Sobre ele, cf. RCTOP, Vol. I, particularmente as pp. 291-303,
331-359, 389-412.).
Ri-17-99/00 – CONTO:
Um Rei tinha uma filha e disse-lhe que se algum dia le desse algum desgosto, que fosse dormir com
algum homem, ele que a mandava matar. Foram lá muntos mandados pelo pai. Houve um que lhe jurou
em pés de verdade que não dizia. Ainda não tinha o sol nacido e já s' estava a gabar que tinha dormido c
'ua filha do Rei Baltasar. E depois o pai mandou arranjar um tractor de lenha e deitou-o num monte para
pôr lá a filha a arder. Ele (o homem que tinha dormido com ela) disse:
- Se me fores leal eu caso contigo e deixo-te fugir que não és queimada.
Ele vestiu-se de frade e veio a cavalo, e já a levavam na comitiva para a queimarem e ele disse:
- Onde vão ó meus senhores, vão queimar essa menina mas ainda vai por confessar.
E ópois o pai disse:
- Confesse-a o Senhor Padre enquanto nós vamos jantar.
E disse-le, quando a' stava a confessar:
- Diga, diga menina qu 'é p’ra se salvar, ó meio da confissão um beijinho m 'há-de dar.
E ela respondeu:
- Isso não é mandado de Deus nem por santos de altar,
Onde Conde pôs os lábios não é para padre beijar.
Depois tornava:
- Diga, diga menina qu 'é p'ra se salvar, ó meio da confissão um abraço m’ 'há-de dar.
E ela respondeu outra vez:
- Isso não é mandado de Deus nem por santos de altar,
Onde Conde pôs os braços não é para padre abraçar.
Ele, então, mandou-a subir para o cavalo e fugiram, e quando vieram de jantar não incuntraram
ninguém.
Rc-13- 98/99 – LENDA (LENDA DO REI DE LERIA):
Ele tinha uma filha e era muito ciumento com ela. O nome dela era Mariana. Ele mandou encerrar a
Mariana num quarto virado para o mar, pensando que ninguém via a filha. Mas foi vista pelo conde de
Mont' alvar e ele gostou dela. Ele disfarça-se de marinheiro vai em direcção à janela de Mariana. Era de
noite, ele engana-a mostrando-se triste, então ela pergunta-lhe:
-O que tens marinheiro, estás tã triste no mar?
E ele respondeu:
-Fez-se-me de noite, sózinho nã tenho p'ra onde puxar.
E ela voltou e disse-lhe:
-Suba p 'ró mê quarto que nele terá lugar.
-E o sê pai Dona Mariana nã vos mandará matar?
-O que for há-de soar.
Então ele entra para o quarto de Mariana. No dia seguinte, quando a gente do reino se reuniu, o conde
afirma:
- Ai, ai, eu esta noite dormi c 'um a melhor flor qu'havia.
Os outros perguntaram-se com quem seria, houve um que disse:
- Foi com a Dona Mariana, filha do rê de Leria. Era a melhor flor que havia naquela corte, desta forma o
rei fica a saber e dirige-se para o palácio e manda chamar a sua filha:
- Paizinho aqui me tendes, o que me queredes?
- O que tens tu, Mariana, que já a saia t 'alevanta?
- Ah! nã desconfie meu paizinho, nem se ponha a desconfiar.
Este pano da saia mal talhada, quê não a soube talhar, mas ao fim de nove meses algum remédio s 'há-de
dar.
- O que dizes Mariana,qu 'eu mando-te já matar.
-Meu pai, amo e senhor, poderá-o fazer depois de mandar entregar uma carta ao senhor conto de
Mont'alvar.
O pai dela aceitou. O pai mandou reunir os seus vassais e levar a sua filha para a forca. Ela tinha que
passar à frente da igreja, mas tinha a ordem do pai de não se poder confessar. Mas o conde de Mont'alvar
disfarçou-se de padre e coloca-se à porta da igreja e obrigou a moça a ir confessar-se porque não podia
450
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
em contos ou lendas, como é, cremos, o caso de uma lenda urbana aparentada com
Delgadinha, na qual ressaltam analogias com o romance e que ocorre no México, país
onde este é bem conhecido, e que resumimos.
Num beco de Saltillo vivia um carniceiro, que casou com Isaura Delgado e a
quem, certo dia, encontrou nos braços de um amante. Tendo a mulher desaparecido por
uns meses, correu o rumor de ter sido encontrado um monte de ossos envoltos numa
pele enrugada e amarelecida. Contou-se, então, que o marido a teria prendido num
quarto dos mais escondidos da casa, suspensa pelos cabelos de um gancho de carniceiro,
dando-lhe somente migalhas de pão e água, até ela definhar e morrer.
O beco tomou o nome “la Delgadina”, não se sabendo se originado pelo apelido
da protagonista e que era, precisamente, “Delgado” (ou se, inversamente, derivaria este
daquele nome), se pelo estado de extrema magreza com que morreu, o que a colocaria
na categoria das lendas etiológicas, ou se, acrescentamos, pelos motivos partilhados
com o romance (a prisão num quarto, a escassez de alimentos e água); também, embora
aqui se trate de uma situação em que há um adultério, lembramos que há versões de
Delgadinha nas quais ela terá um “namorado”, o que provoca a ira de um pai com
sentimentos mais semelhantes aos de um marido demasiado zeloso.
A lenda que resumimos, classificada como urbana (ou contemporânea, segundo
terminologias mais recentes) recombina assim elementos bizarros ou violentos e tidos
ir para a forca sem se confessar. Os vassais do rei não tivera outro remédio senão deixar Dona Mariana ir
confessar-se.
-Confesse-se lá menina e saiba-se confessar qu 'a meio da confissão um abraço m 'há-de dar.
-Onde o senhor Conde pôs os braços nã é p 'ró senhor prior apalpar.
Ele repete:
-Confesse-se lá menina e saiba-se confessar qu'ó fim da confissão um beijinho m'há-de dar.
-P'ras palavras que ‘tou a ouvir e as rezões que m'está a dar,
está-se-me quase a parecer o senhor conde de Mont'alvar.
- Anda p'ra esta sala qu'ali taremos aonde escapar.
Trota p'ra este cavalo e saibas t'atromar,
diz agora ao teu pai que venha cá te matar.
E fugiram.
451
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
como factuais de narrativas mais antigas, como é o caso de Delgadinha808. Deste modo,
não obstante a efectiva perda que representa a prosificação, haverá, optimisticamente,
que encarar o fenómeno da prosificação como mais uma capacidade de pervivência dos
romances orais tradicionais.
g) ligação entre contaminações:
As ligações entre romances contaminados são também objecto de intervenções
prosificadas, quando parece importante que as circunstâncias narrativas sejam melhor
compreendidas. No caso de Bernal Francês + A Aparição as prosificações explicitam o
desfecho (foi o marido que matou a mulher) do romance enunciado (Bernal Francês) e
simultaneamente de ligação à contaminação que se segue (A Aparição) – Bernal Francês
vai procurar a amada e o marido desta, que a matou, encontra-o no caminho:
11. “- Cala-te, perra traidora, deixa vir manhã clara.
12. Tratarei de te vestir gargantilha colorada,
13. (…)
levarás saia malhada.
E ele matou-a e foi enterrá-la a um vale e logo encontrou o outro amigo dela:
14. - Pr’onde vais, Bernal Francês? Vou ver don’Ana.”
[….]
BF/109 Anastácio (1988) 62
Deste modo, como nos casos seguintes, é o marido que informa o rival do
sucedido:
“ Depois o marido encontrou o namorado:” BF/36 Leite (1958) 404-405.
“O marido deixou-a por morta no jardim.
em Bernardo Francês que diz:…”, BF/41
Leite (1958) 410-412.
“De manhã cortou-lhe as goelas e foi-s’andar. Indo l adiante encontrou o Bernardo
Francês, mas este não o conhecia”, BF/43 Leite (1958) 413-414.
808
Para a lenda, cf. Agustin Saucedo, El callejón de la Delgadina. Leyenda urbana de Mexico. Saltillo,
Coahuila, em http://www.mitos-mexicanos,com, arquivo acedido em 17 de Março de 2009. Para uma
definição de lendas contemporâneas, cf. Jacqueline Simpson, Steve Roud [2000], A Dictionary of English
Folklore, Oxford, Oxford University Press, 2000.
452
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“Depois o marido matou-a e voltou para a guerra. No caminho encontrou D.
Francisco de manhã.”, BF/46 Leite (1958) 418-419.
“Iele matau-a. Depois pr autro dia o autro inh’
sa ei diela:”, BF/55 Pereira (1970)
243-244.
“Ele depois mandou-a matar.”; “Ele encontrou o Bernardo Francês que vinha a cavalo
num cavalo:”; “E diz-le o que ela levava. E o Bernando Francês, na igreja de São Gil,
oi alar com ela.”, BF/108 Anastácio (1988) 61.
“E ele matou-a e foi enterrá-la a um vale e logo encontrou o outro amigo dela:”, BF/109
Anastácio (1988) 62.
“Quando foi de manhã cedo, encontrou o Bernal de França”, BF/111 M.A. Vilhena
(1995) 120-121.
“Depois é que veio o amigo o Bernando Francês”, BF/114 Custódio/Galhoz (1997)
36-37.
Já na parte correspondente A Aparição, certas intervenções actuam como
didascálias (“E brádou-lhe e ela respondeu-lhe:”, BF/109 Anastácio (1988) 62 ou“ A riu-se a
sepultura e ele escondeu-se. Ela diz:”, BF/36 Leite (1958) 404-405). Há, também,
explicações ao enunciado, como no caso seguinte, ao último verso no qual a
protagonista se despede do amante (“Adeus, adeus, meu amor, já estão burlando de
mim”, BF/58 Fontes (1979) 113-114), para que se perceba bem que ela está enterrada e
que são os demónios que a castigam, rindo-se dela: “Já os demónios estão burlando dela,
da cova.”.
Ligando Veneno de Moriana a Quem Dever a Honra Alheia, procura-se
especificar que ela matou, realmente o cavaleiro e, ao mesmo tempo, a explicação dá a
Moriana uma feição de arrependida:
“’pois ele morreu no quintal dela; ela enterrou-o no quintal dela (…) Ela nunca mais se
tirou da cova a rezar-lhe pela alma c’um rosário de contas na mão.”, VM/75 Ferré
453
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(1982) 194.
A análise das explicações e comentários pode esclarecer a razão de certas
contaminações. É o que se passa nestas versões de Silvana com Queixas de D.Urraca:
- “Foi quando ela desapareceu e j não apareceu senão quando o pai ‘tava morrendo,
mas o que é seu já o tinha deixado a outro e nunca mais se lembrou da filha. A filha
apareceu nessa ocasião e disse:”, S/22 Ferré (1982) 209-210.
- “Começaram repartir os bens todos. E nem se lembrou da Silvana, nã lhe deixava nada.
Foi lá, a menina Silvana disse:”, S/9 Purcell (1976a) 166-167.
- “Depois quando ele estava a morrer ele perguntou quem é que estava chorando e a
mulher lhe respondeu:” S/29 Marques (1989) 388-390.
Se o núcleo de interesse residia na trama de Silvana, a junção de Queixas de D.
Urraca vem agora exprimir uma clara vontade de reposição da justiça para com uma
filha que, assediada pelo pai, fora depois esquecida por este (repare-se que, enquanto
Delgadinha é presa por resistir ao pai, esta é “esquecida” na distribuição dos bens
paternos, episódio de Queixas de D. Urraca); vai, então, fazer-se lembrar junto do pai
moribundo, que reparte os bens pelos filhos. Na segunda das versões acima, depois de
fazer a ligação dos dois romances, e havendo o conhecimento da repartição dos bens do
rei, mas perdido o sentido global deste romance, a informante remata ainda com o
comentário “Antão ela ficou mais rica ainda qu’ os outros”. Na sua opinião, a atribuição a
Silvana da rica “terra de Birona” (31.”Deixo a terra de Birona, pa’ não ficares deserdada; //
32.numa banda corre o oiro, na outra prata lavrada.”) viria, de alguma forma, a colmatar a
falta e a indemnizar a vítima. Referir-nos-emos, adiante, ao que o pai deixa a “Silvana”,
nas versões com Queixas de D. Urraca, mas transcrevemos aqui a nota do colector à
versão S/29 Marques (1989) 388-390, que diz respeito à interpretação da informante: “
O pai - explica a informante - era um rei, e Sambóia «era um prédio, uma coisa de valor.»”. O
mesmo não pensará a informante da S/22 Ferré (1982) 209-210; embora Silvana, neste
caso, receba uma “jóia” (“É uma jóia unicamente qu'ele deixa à filha.”), a expressão
454
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
“unicamente” revela que lhe parece pouco. Ainda na versão S/29 Marques (1989) 388390, a junção deste último romance suscitará os seguintes comentários sobre o v. 25 a
28: «O pai já tinha deixado Sambóia ao outro, ao afilhado. Não era irmão dela nem parente,
talvez, era afilhado. Ele era pobre; agora, que tinha a riqueza do coiso, não se lembrava, já não
ligava a ela. Nessa acasião, já ele não lhe ligou»” e “«Ele era afilhado e estava lá em casa e, por
isso, lhe faziam aquelas ofertas, quando ele fazia anos».”, demonstrando que também não está
esquecido o restante sentido de Afuera, afuera, Rodrigo – o “afilhado”, o Cid, a quem é
oferecida tão boa “prenda de anos”, agora rico, não se lembrará mais de “Silvana”.
Quanto às ligações de Gerinaldo a O Órfão, são lacónicas e informativas da visita
que a mãe faz ao pajem:
“E a mãe foi-lhe azer uma visita.”, G/667 Ferré (1982) 232-234.
“O pai mandou-no prender e a mãe foi assim:”, G/72 Ferré (1982) 237-238.
“ isto a mãe dele soube. Foi ter com o filho.”, G/75 Ferré (1982) 241-242.
3. As intervenções no enunciado
Entendemos como intervenções a nível do enunciado as elipses, os acrescentos e
outras modificações à cadeia lógico-temporal dos sucessos do texto “base” do romance
que, de algum modo, afectam esta e/ou o sentido do romance (ou de segmentos da
intriga). Definimos, na Parte I, a organização narrativa dos romances em sequências,
mas é preciso ter em conta que as versões nem sempre começam com a primeira
sequência definida no “modelo-virtual” nem finalizam com a sequência canónica do
desfecho da intriga, nem, tão pouco, estão as intermédias isentas de modificações da
estrutura narrativa ou no sentido. Procurámos então fazer um levantamento das diversas
intervenções nas versões, comparando-as com o “modelo-virtual”, para ajuizar em que
medida o fazem, tendo já referido algumas delas, ao abordarmos os suportes
455
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
significantes do sentido (e até a plurissignificação dos motivos), por considerarmos esse
procedimento de maior operacionalidade no momento. Analisaremos agora, em cada
romance do corpus, as modificações às sequências iniciais, intermédias e finais, bem
como as contaminações que ocorrem, sob a perspectiva da revelação do sentido. Além
disso, é frequente, nas versões, haver Prolongamentos, com uma extensão variável de
versos, que podem mesmo estruturar-se como uma outra sequência e que dividiremos
nos seguintes tipos:
- Alongamento da narrativa
- Expansão da intriga
- Post scriptum
- Fechos e remates.
No primeiro caso estão muitas versões de Delgadinha, que de certo modo
alongam a narrativa com versos sobre quem a rodeia no leito de morte, sobre a sua
ascensão ao Céu e/ou sobre as penas do Inferno aplicadas aos que lhe fizeram mal.
Como estes versos, afinal, nada adiantam à intriga (sendo mesmo dispensados em certo
número de versões, tal como o fazem as sefarditas), considerá-los-emos como um
prolongamento de simples feição cristianizante. Também as Lamentações, em Veneno
de Moriana não afectam a intriga do romance, apenas sendo um meio de despertar
piedade. Já os casos em que Moriana há-de ir presa, são expansões da intriga porque se
tratam de uma continuidade narrativa, que parece ter certa lógica (a própria personagem
o faz).
Podendo estes acrescentos ter como razão de ser o exprimir uma tomada de
posição relativamente a determinada acção, e nessa perspectiva serem simultaneamente
prolongamento de narrativa e post-scriptum, outros adquirem mais marcadamente esta
função. O IGR (p. 119) entende como post-scriptum os comentários introduzidos por
456
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
um narrador, acabada a história, mas a designação pode também alargar-se às
apreciações manifestadas através das falas finais das personagens, quando estas
assumem a mesma função, como narradores intradiegéticos. O mesmo se poderá dizer
de certos fechos ou remates que, de qualquer forma, comentam a intriga, embora desde
já ressalvemos que alguns parecem extrínsecos a esta, sem ligação aparente de sentido.
Considerando que, na generalidade, a intriga é contada com uma certa neutralidade,
estes
prolongamentos
“eu/contador/narrador”
representam
ou
do
um
espaço
“eu/personagem”
em
que
a
individualizados
presença
do
daquela
se
transformam num acto de embraiagem do sujeito da enunciação, que pode assim revelar
um ponto de vista de associação (pró ou contra) ao acto narrado ou exprimir uma
moralização na qual está implícito um conjunto de códigos colectivos, mesmo que os
coloque na boca de personagens.
Estas “intervenções” a nível do enunciado de que temos vindo a falar ocorrem
após o desfecho, havendo outras, menos comuns e nesta ou noutra posição na versão, a
que chamámos “criativas”, por não parecerem ter nada a ver com a narrativa que se
segue. As contaminações, por sua vez, afectam a estrutura narrativa dos romances e
surgem em posição inicial, intermédia ou final das versões, podendo ou não modificar o
sentido. Segundo Flor Salazar, a contaminação809 “opera sistemática y abundantemente en
los romances, desde sus más remotas orígenes hasta hoy…”, e o seu estudo torna-se
relevante, visto que este fenómeno “afecta profundamente a la evolución y desarrollo del
género”810. No IGR distinguem-se dois tipos de contaminação, a “intrafabulística” e a
“extrafabulística”, a primeira das quais se define como a utilização de uma parte ou de
809
Note-se que o temo “contaminação” pode ter uma conotação negativa de impureza e deterioração, tal
como Philip O. Gericke adverte (Gericke [1989], pp. 65-70), mas não é obviamente nesse sentido que
aqui o entendemos, mas como um dos processos usados no romanceiro para revelar sentidos, e que pode
ter como efeito a alteração ou o reforço do sentido do romance importador.
810
Flor Salazar [1992], “El Romanceiro de Almeida Garrett y la edición de textos contaminados”, em
Manuel Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura
Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 395-432.
457
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
toda a intriga de um romance para representar uma (ou parte de uma) sequência do
romance importador e a segunda a incorporação inesperada de uma sequência de um
romance (sobretudo no início ou no desfecho) na fábula de um outro811. De facto, as
contaminações acabam por influenciar a estrutura narrativa própria do romance
importador, embora o façam em graus diversos. Neste processo, não só se utilizam
versos e hemistíquios de tipo formulário, como também a semelhança dos incidentes
narrados num romance (e até de temas), mesmo remota, pode levar à sua integração em
outros romances 812, constituindo um “formulismo situacional”, conceito formulado por
Philip O. Gericke, que lhe estabelece um paralelo com a situação de contaminação,
dizendo que ambos são “aspectos relacionados del mismo proceso composicional basado en
un extenso repertório de motivos y patrones verbales que el hábil poeta sabe utilizar” 813.
No nosso corpus, encontrámos diversas situações, em posição inicial, intermédia
ou final, de “contaminação”, termo que aqui empregamos no seu sentido mais lato, ou
seja, referindo-nos à incorporação, em versões de um romance, de um outro, de cantigas
narrativas ou de parte(s) deles, que pode limitar-se a apenas alguns versos.
Em Gerinaldo, o rei pode mandar prender o pajem e, em uma versão, particulariza
o castigo com um verso (a negrito), que é uma contaminação formulária de Delgadinha:
11.“- Eu vou-te mandar prender no baixo duma prisão,
12. vou-te dar bebidas d'água salgada e pedras por pão.”
G/66 Ferré (1982) 232
Em versões do mesmo romance, depois de os amantes serem descobertos pelo pai,
há a variação de a infanta escrever uma carta; numa delas, em vez de dizer logo a
811
IGR, pp. 143-158. Na p. 111, assinala-se que, em RESU e SUMM, serão inventariadas “secuencias,
alternativas de secuencia y fragmentos de secuencia tomados de versiones pertenecientes a corpora
textuales ajenos al del romance descrito”.
812
Verificar-se-á, na análise das contaminações encontradas nos romances do corpus, que nem todas as
junções de material narrativo importado de outros romances alteram substancialmente o sentido do
romance importador.
813
Cf. Gericke [1989], pp. 65-70.
458
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Gerinaldo que a leve ao pai, exprime o desejo de ter um portador, que o pajem se
oferece para ser:
26.“- Oh, quem me dera de ter um criado que me fosse leal,
27. que me levasse uma carta para as mãos de meu pai.”
28.“- Escreva lá, ó menina, que eu a irei levar.”
G/102 Ferré (1987a) 65-66
Ora esta situação é muito semelhante ao episódio do ciclo de Conde Claros, em
que a princesa vai ser punida e quer avisar o conde por carta, ansiando por um
portador814:
“- Quem me dera um criado que me fosse bem leal,
Que me levasse uma carta a Carlos de Montealbar.”815
Estas contaminações não são senão um meio de expandir a intriga, mas outras há
que levam a narrativa (e o sentido) por outros caminhos, podendo ou não chegar ao
mesmo desfecho do romance importador. A razão de ser de tais intervenções é
complexa de identificar, uma vez que poderiam ser devidas a eventual confusão pessoal
dos transmissores. No entanto, note-se que estes podem muito bem saber que os versos
são contaminação, o que é demonstrável pela nota do editor à versão acima citada: “Os
versos
26-28
foram
ditos
por
Sofia
Soares
Cruz,
tendo
sido
considerados
por Maria Joaquina Condenso como não pertencendo a este romance.” As contaminações
são, pois, um uso criativo de elementos narrativos romancísticos, resultando do recurso
a um fundo comum, do mesmo modo que são usados os motivos, mas não aleatório.
Uma vez que analisamos a revelação do sentido, procurámos então inventariar as
intervenções no enunciado816, seja a sua posição de inserção inicial, intermédia ou final,
814
Em Conde Claros (cf. RCTOP, Vol. I, Conde Claros enamorado, 5.4.2.3., p. 334-335), há variação
nos portadores e, na que nos serve de exemplo, é um irmão (“- Escreve tu, minha irmã, que lha irei
levar”). Em outra versão, a nr. 149, p. 286 do Vol. I do RPTOM, de Viana do Castelo, d. de Viana do
Castelo, o apelo é a um pajem (mas é um anjo que se oferece).
815
RPTOM, Vol. I, nr. 128, p. 257.
816
Estas reelaborações inventivas, embora nem sempre se generalizem, podem acabar por originar um
número suficiente de versões para poderem ser consideradas uma variante. Note-se também que
determinadas contaminações podem fixar-se geograficamente, tal como acontece no espaço da tradição
459
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
em função dos efeitos que provocam no sentido global do romance importador ou de
certos pontos em particular.
3.1. BERNAL FRANCÊS
Sequência I – A Mistificação:
Embora a abertura deste romance apresente grande variação estrutural, como
vimos ao tratar os suportes significantes directos, o sentido da situação inicial não é
objecto de modificação nas versões; nem mesmo nas que se apresentam fragmentadas,
com elipse da primeira sequência, há a implicação de que a sua falta altere o sentido do
romance. Em resumo, mantém-se o sentido da mistificação da adúltera pelo marido que
regressa a casa, por causa de uma pressuposta suspeição, e que, por isso assume a
identidade do amante.
No entanto, acontece que o objectivo de reservar a surpresa para o final (que é o
desvendar dessa identidade e, afinal, a razão de o romance começar in media res) seja
anulado, o que acontece em certas versões sul-americanas, que introduzem uma
sequência explicativa das circunstâncias prévias, tal como no corrido mexicano que
citámos no capítulo dedicado aos suportes significantes (Corrido de Elena). Se bem que
na tradição portuguesa não exista a variante na qual se conta que marido é sabedor do
adultério, o caso abaixo, narrativamente, vem-lhe a corresponder, com a introdução de
um verso inicial no qual se declara explicitamente que é o marido quem bate à porta (a
negrito). O verso longo da versão, de resto, mais parece uma indicação cénica a nível de
enunciação, até porque não segue a rima dos outros versos. Note-se, porém, que esta
introdução anómala não impede que a versão siga como habitualmente:
1.“Batera-lhe à porta o seu marido e ela respondeu-lhe:
2. - Se tu és o Bernal de França, as portas se vão abrir,
moderna portuguesa com Bernal Francês + A Aparição e com Silvana + Delgadinha e, mais
restritamente, na Madeira, com Silvana + Queixas de D. Urraca.
460
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
3.se tu és outro cavalheiro, deixe-me cá estando dormir,
4.- Eu sou o Bernal de França, as portas se me vêm abrir.”
BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121
Relativamente à questão de ter havido adultério ter sido ou não cometido
anteriormente, considera-se poder existir alguma variação:
a) Houve outras ocasiões de adultério (2.“abri-me lá essa porta, que ma costumais
abrir.”, BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204);
b) Não se sabe se o adultério foi anteriormente cometido, mas a intenção de
o cometer pode estar:
- no modo explícito ( 2.“- É D. Francisco, menina, que consigo vem dormir.”,
BF/39 Leite (1958) 408-409);
- implicada na combinação prévia (3.“Eu sou o João de França que aqui ficara
de vir.”, BF/25 Martins (1928)/Martins).
c) A mulher não tinha essa intenção, mas foi pressionada:
- Não se sabe se já terá havido relações anteriores nos casos em que a
mulher se recusa a abrir a porta (3.“- Não aibro a minha parta, a tais horas de dormir.”,
BF/33 Leite (1958) 404-405). Note-se que este facto ocorre nas versões em que o homem
não se identifica pelo nome, mas através do motivo “cravo” ou “flores” (2.”- É o Cravo
Roxo, senhora, Rosa Branca, venha aqui.”, BF/116 Alves Ferreira (1999) 117-119 ), como
referimos; a mulher ou não compreende de imediato a personificação do motivo ou não
quer franquear a porta facilmente; neste caso, poderia então encontrar-se um sentido
diferente das outras versões, dando à mulher uma feição mais “honesta”, uma vez
que parece ceder só após uma certa insistência e, até, chantagem emocional exercida
pelo homem:
4.“- Se me não abres a porta, morto m'acharás aqui
5. Eu trago dois homens mortos, a justiça ao pé de mim”,
BF/36 Leite (1958) 404-405
461
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
4. - Se tu não m'abres a porta, morto m'acharás aqui.
5. Ela se levantou, a porta lhe foi abrir.”
BF/37 Leite (1958) 406-407
4. “- Se me não abres a porta, morro a chorar aqui.”
BF/85 Fontes I (1987) 344-345
Sequência II – O Encontro Amoroso:
As sequências intermédias nas versões deste romance são notavelmente pouco
sujeitas a intervenções modificadoras a nível do sentido geral. O que podem é ser mais
sucintas ou alongadas, tal como acontece nas outras sequências.
No capítulo dedicado aos motivos, falámos já do aspecto simbólico do apagar do
candil e de algumas variações quanto ao causador do incidente, que agora apenas
sintetizamos:
- o Destino
- causas naturais
- o homem
Quanto à variação na cena do jardim, foi também já abordada nesse capítulo, mas
retomamo-la aqui, relativamente a uma determinada versão que elide a sequência, uma
vez que se trata de uma alteração a nível narrativo que não é muito frequente; a elipse
explica-se porque não é a mulher que abre a porta, como usualmente acontece no
romance, mas ordena à criada que o faça817; não sendo com esta o encontro amoroso, o
que ela explicita na resposta um tanto insolente que dá à ordem da ama, a cena do
jardim não se justificaria:
5.“- Levanta-te, minha criada, as portas lhe vai a abrir.
6. - Levante-se a senhora, com ele vem a dormir!”
BF/16 Tavares (1906) 295-296
817
Esta criada, de resto, é uma presença inusitada no romance, onde os servidores só são mencionados
indirectamente, na série de “não temas” dirigida pela mulher ao homem que lhe parece indiferente.
462
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Na mesma versão, porém, presume-se que a criada acabe por obedecer, embora
contrariada, e leve o homem para junto da ama; este terá ouvido o receio expresso no v.
8, porque lhe responde imediatamente, tranquilizando-a com protestos de amor,
fazendo-se assim a ligação à sequência seguinte:
7.”- Quem me apaga mi candil, melhor me matara a mim.
8. - Não a matara, não, senhora, que lhe quero mais que a mim.
9. Agarrou-le pelo braço e deitou-o ao par de si.”
Sequência III – O cair da máscara:
O sentido de estranheza manifestado pela mulher perante a indiferença
manifestada pelo homem deitado com ela não sofre alteração nas versões, embora
ocorram variações, como é habitual nos romances, que, neste caso, incidem sobre o tom
com que o interpela, a variar da preocupação (a) a uma certa admoestação (b):
(a): 1.“- Que tens tu Bernal de França? Tu dantes não eras assim.
2. Vai a meia-noite dada, sem te virares para mim.”
BF/112 M.A.Vilhena (1995) 121
(b): 1.“- Que é isto aqui agora, que é isto agora aqui?
2. Já é meia noite dada sem te voltares para mim.”
BF/108 Anastácio (1988) 61
Encontra-se um caso curioso de variação, numa versão na qual a mulher trata por
“marido” aquele que julga ser o seu amante:
9.“- Tu que tens, ó D. Francisco, tu que tens, ó meu marido?”
BF/39 Leite (1958) 408-409
Ressalvando a explicação mais óbvia de se tratar de confusão do informante, dirse-ia que há uma intenção implícita de a mulher considerar aquele que,
prolongadamente, tem tomado o lugar do marido legítimo, como seu “marido”.
Há também uma certa variação nos familiares a não serem temidos, que já
referimos, bem como nos locais onde a mulher diz que se encontra o marido, em
463
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
algumas versões a combater 818 , outras no Brasil 819 , ou apenas, vagamente, que está
longe (12.“Se temes o meu rnarido, longes terras está daqui”, v. 12, BF/4 Braga (1869)/Braga
(1982) 205-208 ), que é o sentido que, em nenhumas das situações, sofre variação.
Sequência IV – A punição:
Também já referimos as variantes segundo as quais, confrontada com a identidade
do marido, a mulher pede a morte como merecida ou tenta salvar-se, neste caso
variando entre simplesmente pedir perdão ou alegando que tudo não passou de um
sonho820. No primeiro caso e numa versão, ocorre uma variante de sentido um tanto
diferente das outras – ela alega que também o perdoou. A questão está em saber o que
há a perdoar; ou se refere ao abandono a que foi sujeita ou a um adultério dele e a
alegação tem o valor de moeda de troca:
15.” Perdoa-me, meu marido, que eu também te perdoei;”
BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 40-42
No caso de pedir a morte (a), pode até dizer como a quer (b), pedir para a
comunicar por escrito ao pai (c), despedir-se da mãe (d), confessar-se (e). Por sua vez, o
marido, que noutras versões a mata ou a entrega ao pai, nas versões abaixo nega-se,
remetendo o castigo para o poder divino (f), mas também parecendo afirmar, em versos
818
Explicitamente os “mouros”, mais uma vez lembrando a associação de Bernal Francês ao capitão
de Granada, como nas BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204, v.17; BF/7 Dâmaso (1882) 155156, v. 13; BF/ 34 Leite (1958) 401-402, v. 13, BF/46 Leite (1958) 418-419, vv. 9 e 10, BF/51
Buescu (1961) 209, v. 13, BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121, v. 9, BF/112 M.A.Vilhena (1995)
121, v. 6.
819
Especificamente no Brasil são várias as versões, como as BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?)
428-429, v. 19, BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 46-49, v. 26, BF/18 Braga (1907)/Braga
(1985) 40-42, v. 11, BF/24 Landolt (1917) 81-82, v. 18, BF/39 Leite (1958) 408-409, v. 11, BF/ 43
Leite (1958) 413-414, v. 116, BF/50 Leite (1960) 513-514, v. 17, BF/85 Fontes I (1987) 344-345, v.
11, BF/94 Fontes 1 (1987) 352-353, v. 10, BF/98 Galhoz (1987) 283, v. 11, BF/99 Galhoz (1987)
283-284, v. 11, BF/101 Galhoz (1987) 290-291, v. 7 (Maranhão), BF/114 Custódio/Galhoz (1997)
36-37, v. 8. Noutras, especifica-se que está no Brasil, numa feira, como na explicação à BF/114
Custódio/Galhoz (1997) 36-37. Nas BF/68 Ferré (1982) 165-166, v. 17 ou BF/70 Ferré (1982) 167168, v. 14, sabe-se que aí teria estado, pois a mulher, ao descobrir que é o marido que está junto
dela pergunta-lhe que prenda lhe traz do Brasil.
820
Nesta Parte, no Capítulo I. Os suportes significantes do sentido.
464
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
anómalos no romance (g), que esta a mulher (metaforicamente a “caça”) é de sua inteira
propriedade, a que esta não pode escapar-lhe821, nem querendo morrer:
(a) - 14.“Matai-me, senhor, matai-me, pois a morte mereci.
(f) - 15. Mate-te Deus do Céu que é quem tem poder em ti
(b) - 16.- Dá-m'aquela toalha qu’eu mesmo m’afogaria.
(g) - 17.- Não, senhora, não, senhora, qu'eu sou caçador real,
18.caça qu'eu pilho à mão, já não a deito a voar.
(c) - 19.- Dá-m'aquele tinteiro junto à minha escrivaninha,
20.quero escrever a meu pai a morte de sua filha.
(g) - 21.- Não, senhora, não, senhora, qu'eu sou caçador gentil,
22.caça qu'eu pilho à mão, já não a deito a fugir.”
BF/61 Ferré (1982) 160
(a) – 17.“- Matai-me, senhor, matai-me qu'a morte ê le mereci.
(b) - 18.- Que te mate Dês do Céu qu'ê quem tem poder em ti,
(d) - 19.- Deixai-me, senhor, deixai-me, da minha mãe despedir.
(g) – 20.- Caça que me vem á mão nunca a deitei a fugir.
821
Os versos do “caçador” ocorrem na versão C.VII(2).171, Xácara do Conde Claros, pp. 155.156, vv.
18-19 (“- Não sabeis, minha senhora, Que sou caçador gentil? // Pássaro que apanho à mão Não o deito a
fugir”) de Conde Claros condenado (classificação em RCTOP, Vol. II, pp. 145-157); a mesma versão (nr.
234, pp. 404-406, Leite (1935a) 185-190) é classificada em RPTOM, Vol. I, como Conde Claros preso e
é da Madeira. É a resposta do Conde a Claralinda quando, pavoneando-se sob a sua janela, ela começa
por mandá-lo embora antes de tomarem amores; do teor da fala, entende-se que se acha irresistível, e que
ela não pode escapar. As versões de Bernal Francês com esta contaminação formulária ocorrem apenas
em versões madeirenses e são as que nos servem de exemplo, a BF/61 Ferré (1982) 160 de Campo de
Cima, Porto Santo e a BF/63 Ferré (1982) 162-163 do Machico. As outras são:
Funchal:
18.”- Eu sou mestre caçador, nã me quero desmentir,
19. caça que tenho na mão, nã na vou deixar fugir.”
BF/6 Azevedo (1880) 145-150
Campo de Cima, Porto Santo:
22.”- Bem sabes, mulher, bem sabes, qu'ê sou caçador gentil.”
[...]
24. “- Bem sabes, mulher, bem sabes qu'ê sou caçador real;
25.caça quê tenho à mão, já não a deito a voar.”
BF/62 Ferré (1982) 160-161
Achada de Baixo, Gaula:
20.”- Eu sou caçador real
............
21. caça que me vem à mão, não a deito a voar.
22.- Deixai-me, senhor, deixai-me, deixai-m'ir a confessar,
23..................
eu sou caçador gentil
24.caça que me vem à mão, não a deito a fugir.”
BF/69 Ferré (1982) 166-167
465
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
(e) - 21.- Deixai-me, senhor, deixai-me, deixa-m'ir à confissão,
(g) – 22.- Nunca deitei a fugir caça, que me vem à mão.”
BF/63 Ferré (1982) 162-163
Nesta versão, a mulher insiste, sendo de crer que afinal, o marido acabou por
fazer-lhe a vontade, uma vez que finaliza, tal como as outras com A Aparição:
23.”- Nã m'importa morrer da morte qu'eu vou morrer;
24.pesa-me é mês filhinhos qu'outra mãe não irão ter.
25.Nã m'importa morrer qu'ê para morrer nasci;
26.pesa-m'é passar caminho em lugares que nunca vi.”
BF/63 Ferré (1982) 162-163
A morte é, por norma, o castigo da adúltera, e já mencionámos que esta é uma
“morte anunciada”, quer porque se dará na manhã seguinte, quer porque o é através de
certos atavios prometidos, onde impera a cor vermelha que metaforiza a degolação,
como tratámos no capítulo dedicado aos motivos (19.“Vestido de seda lavrada, corpinho
de grarmezim, // 20. gargantilha degolada já que tu queres assim.”, BF/62 Ferré (1982) 160161). Todos estes adornos ou vestes têm o mesmo sentido mortal, embora a variação
semântica os transforme em ofertas um tanto insólitas:
12.“Trago-te faca de ganga e cotão de mercancia;
13. trago-te cruais vermelhos para a tua companhia.”
BF/57 Fontes (1979) 112-113
A variação ocorre, largamente, na descrição da roupagem, mas também porque,
em certas versões, especifica-se o instrumento da morte (ele próprio sujeito a variação
lexical):
14.”que te hei-de talhar o vestido de vermelho carmesim;
15. a tesoura que o corta há-de ser o meu espadim.”
BF/27 Rodrigues (1933) 15-16
Em versão também ela com variação semântica da arma mortal (a negrito), a
morte anuncia-se através da descrição do enterro, começando por ser prometida para a
466
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
madrugada, mas introduz-se um verso (v.24) que a explicita e faz deduzir que, afinal, o
homem decide não esperar e mata a mulher imediatamente:
20.“- Deixa vir a manhanita, que há-des levar que contar:
21. Levarás saia d'holanda, roupinha de carmesim,
22. irás em esquife dourado, varandilhas de marfim,
23. gargantilhas encarnadas, vós as causásteis assim.
24. Puxou pelo seu alfange, tratou de a matare.”
BF/91 Fontes 1 (1987) 349-350
Também já falámos nos casos em que o marido não exprime a intenção de matar a
mulher pessoalmente, numa espécie de contaminação formulária situacional, com a
introdução de versos similares de Claralinda. A variante da solução pode ser devolvê-la
ao pai:
14.“- Para que te hei-de eu matar que te mate quem te criou,
15. Vou-te levar a teu pai veja a prenda que me deu.”
BF/95 Galhoz (1987) 280-281
A introdução de um termo como “a prenda”, que nesta versão toma um sentido
claramente pejorativo, poderia atenuar o sentido dramático e substituí-lo por uma feição
quase burlesca, se a mulher não revertesse ao drama, dizendo: 16.“- Que culpa tem o meu
pai ao mal que a filha causou”, mas o sentido do termo é também dual, visto que, afinal, é
ela própria a “prenda” que, em certas versões, pede ao marido:
18.”Que me trazes, mê marido, que me trazes para mim?”, BF/62 Ferré (1982) 160-161
O pedido merece uma resposta à letra, com variação, no terceiro exemplo, ao
habitual vestuário, mas que mantém ainda uma referência à cor vermelha:
17.“- Traigo-te vestido de seda, manto de clamesim,
18. E traigo-te punhal d'oiro que foi feito para ti.”
BF/53 Lemos (1961-1962) 174-175
18. - Trago-te um punhal de prata par’o teu peito ê abrir.”, BF/68 Ferré (1982) 165-166
467
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
15. “ Trago-t'um punhal de prata p'ra o teu peito abrir
16. e pinguinhas d'água rosada do teu peito vai sair.”
BF/70 Ferré (1982) 167-168
Nem sempre a resolução de não matar a adúltera passa pelas hesitações do homem
ou pela devolução à casa paterna. É o caso de uma versão, de criatividade poética, que
anula aparentemente o carácter vermelho/sangrento da degolação pelo seu contrário – o
branco das areias (e da pomba) –, sugerindo a palidez da morte, que, afinal, será
causada por um lento esvair do sangue, vindo a contrariar as palavras iniciais do
marido:
14.“Eu a morte não ta dou, nem as mãos t' hão -de embarrar,
15. te porei com esta faca como as areias do mar.
16. Nem uma pombinha branca t' há-de poder apanhar.”
BF/31 Carneiro (1945) 166-167
 Prolongamentos:
A condenação social do adultério é dada em prolongamento com carácter de post
scriptum enunciado em diversas modalidades, todas com a mesma função moralizadora:
- por um narrador extradiegético:
17.“Pedir perdão ao marido e a Deus que lhe perdoasse
18. E que vivesse feliz com a outra com quem casasse.”
BF/101 Galhoz (1987) 290-291
33.“Na campa da Francisquinha nasceu grande pinheiral
34. Ela foi falsa ao marido, morreu em pecado mortal”
BF/32 Leite (1958) 398-399
33.“Na campa da Francisquinha nasce um grande pinheiral.
34. quem é falsa ao seu marido morre em pecado mortal.”
BF/104 Ana Martins/Ferré (1988) 73-74
468
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
Note-se a diferença entre os dois últimos exemplos, no primeiro dos quais (“Ela
foi falsa…”) o tom é apenas narrativo e se refere apenas àquela mulher, enquanto, no
segundo (“quem é falsa…), se torna claramente admonitório a todas as mulheres
casadas.
- por um narrador intradiegético:
- o marido:
34.“vai-te dizer às vizinhas que tomem exemplo por ti,
35. que não façam aos seus maridos o que me fizeste a mim.”
BF/9 Braga (1887-1889) 105-107
24.“- Se você fosse boa mãe, como devia de ser,
25. Não havera de morrer da morte que vai a morrer!” 822
BF/45 Leite (1958) 416-418
Em modo de post scriptum, não parece justificar-se em Bernal Francês
qualquer comentário aos maridos que matam as mulheres, tendente a qualificar o
acto, nem pró nem contra; de sinal contrário é o que se segue, implícita que está no
apodo “flor da aurora” a simpatia pela mulher que morreu por amor:
15.“Já morreu a flor da aurora, dizendo assim, assim;
16. já morreu a flor da aurora, por um amor já deu fim.”
BF/92 Fontes I (1987) 351
 Contaminação de A Aparição:
Note-se que considerámos estes versos dos exemplos acima como post scriptum,
apesar de alguns estarem a meio das respectivas versões, sendo estas compósitas com A
Aparição, pois são eles que finalizam a parte correspondente a Bernal Francês. A
própria junção dos dois romances pode ser vista como uma modalidade de post scriptum
822
Note-se, no exemplo, o agravamento implícito da condenação derivado do facto de o adultério ter sido
ser cometido por uma mãe de família.
469
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
de Bernal Francês, funcionando como aviso moralizador, se nela virmos implícita a
ideia de que a sorte destinada às adúlteras será sempre a morte, mas pode haver outras
razões para a contaminação, tão frequente na tradição portuguesa823. O que nos interessa
é perceber como é que um romance de infidelidade como este acolhe um romance de
Amor Fiel824.
Fiel é o cavaleiro825 de A Aparição que, procurando a sua amada, é informado da
sua morte826 e dos “sinais” que a confirmam; junto da campa, exprime o desespero que
o leva a querer juntar-se-lhe:
41.“- Se a minha dama é morta, à cova lhe vou falar.
42.À entrada da água benta, principiou a soluçar.
43.- Abre-te, campa de flores, que eu me quero enterrar,
44.nos braços duma querida, que me quero sepultar!”
BF/9 Braga (1887-1889) 105-107
Também ela lhe permance fiel, como o foi em vida:
23.“Sou a bela Aninha, sete i-anos te servi.”, BF/75 Fontes (1983a) 91-92
823
Na tradição oral moderna portuguesa o romance A Aparição finaliza também O Soldado (ou O
Quintado, RPI J4; IGR 0176), tal como nas outras tradições de âmbito hispânico (tanto castelhana como
nas Astúrias, Andaluzia, Canárias, América hispânica, sefardita marroquina e catalã). A Aparição é
facilmente associada ao aparecimento pós morte das amadas infelizes e do romance foi elaborada uma
contrafacção, em 1878, aludindo á morte prematura da rainha Mercedes, mulher de Afonso XII e que
cedo passou a integrar o romanceiro infantil:
“¿Donde vás, Alfonso XII, / donde vás, triste de tí ¿
Voy en busca de Mercedes que ayer tarde no la perdi
Ya Mercedes ya esta muerta muerta esta que yo la vi
quatro duques la llevabam por las calles de Madri”.
Cf. Rosa Delia Montesdeoca Zamora, Datos de la pervivencia en la tradición oral de Santa Lucía de
Tirajana del Romancero infantil, em www.fulp.ulpgc.es, arquivo acedido na Internet em 7 de Maio de
2007.
824
De acordo com a classificação de BRPTOM, A Aparição inclui-se nos Romances de Amor Fiel, pp.
50-51 e Bernal Francês nos Romances de Mulheres Adúlteras, pp. 69-71.
825
Usamos o termo “cavaleiro”, que aparece no folheto de Praga (Cf. Paloma Díaz-Mas [2001], p. 251)
para o protagonista de A Aparição, fazendo notar que, nas versões compósitas de Bernal Francês com
aquele, este cavaleiro é identificado como Bernal Francês (ou o nome que lhe for dado na versão).
826
O sub-tema da amada morta que aparece ao amante que a procura tem correspondência em baladas
italianas e francesas. A versão castelhana mais antiga do romance está incluída no Cancioneiro de
Londres do século XV e dele há versões impressas em folhetos de cordel desde o século XVI (um
pertença de Hernando Colón, outro [perdido] no Centro de Estudios Históricos, dois na British Library e
outros na Biblioteca Nacional de Madrid e de Praga). Os dramaturgos do Siglo de Oro citam versos seus e
vinculam-no aos amores de Inês de Castro e D. Pedro. Cf. Paloma Díaz-Mas [2001], edição de,
Romancero, “Classicos y Modernos”, Editorial Crítica, 2001, pp. 251-253.
470
A REVELAÇÃO DO SENTIDO
A fidelidade é evidente no verso que faz a ligação dos dois romances, na versão
abaixo, e cujo teor implica o amor da mulher, prestes a ser morta, ao amante:
19.“Nã me mates, mê marido, sem de D. Francisco m’espedir.”, BF/68 Ferré (1982) 165-166
O cavaleiro vê então aparecer-lhe a imagem da mulher falecida que lhe mostra a
inutilidade do gesto, dado que do seu corpo já nada resta. Esta descrição é geralmente
detalhada e o apontamento roça o macabro, como no exemplo seguinte827:
44.“Pernas com que te aguentava, já calor não tem em si;
45. braços com que te abraçava, já força não tem em si;
46. boca com que te beijava, já de terra a enchi;
47. olhos com que te mirava, já de terra os cobri!...”.
BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208
Contudo, não há, neste romance, a intenção evidente de despertar o terror828 e o
espectro não pretende que o cavaleiro se lhe junte na morte, mas sim que viva:
33.“Vive tu, amor querido, vive tu, que eu já vivi;”, BF/23 Thomás (1913) 16-18
Admite até que ele se case (embora a condescendência tenha limites: 33.”A mulher
com quem casa
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a revelação do sentido - Repositório da Universidade de Lisboa