UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LITERATURAS ROMÂNICAS A REVELAÇÃO DO SENTIDO Estudo da significação narrativo-dramática nos romances orais tradicionais Ana Maria Fraústo Diogo Correia Paiva Morão Tese de Doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Literatura Oral e Tradicional, sob orientação do Professor Doutor João David Pinto-Correia 2011 “a tarefa que empreendo é ilimitada e há-de acompanhar-me até ao fim, não menos misteriosa do que o universo e do que eu, o aprendiz.” Jorge Luís Borges, Elogio da Sombra “Escrever sempre em estado de sonho. Reescrever sempre em estado de vigília.” David Mourão Ferreira (9º e 10º pontos do decálogo dos processos de escrita, enunciado em entrevista no Diário Popular de 6 de Junho de 1968) “Quantas vezes a memória Para fingir que inda é gente Nos conta uma grande história Em que ninguém está presente.” Fernando Pessoa, Quadras ao Gosto Popular “ - Then you should say what you mean, the March Hare went on. - I do, Alice hastily replied; at least - at least I mean what I say that’s the same thing, you know. - Not the same thing a bit! said the Hatter, why, you might just as well say that ‘I see what I eat’ is the same thing as ‘I eat what I see’!….” Lewis Carroll, Alice’s Adventures in Wonderland i NOTAS PRÉVIAS Quando, na minha infância, minha bisavó e avó me contavam que ”os olhos de D. Martinho são de mulher, de homem não” ou que “Vindo o lavrador da arada, encontrou um pobrezinho” … e tantos, tantos mais …, não sabia, nessa altura, que tais “versos” eram romances orais tradicionais, bastando-me então o prazer de ouvi-los, e nem imaginava, sequer, que haveria mais tarde de querer tentar analisar o que neles, não dizendo, se dizia. Para as vozes do passado, de Castelo Branco, na Beira Baixa e de Montalvão, no Alto Alentejo, raízes mais fundas deste trabalho, a minha primeira lembrança. Verificaria, mais tarde, que tal gosto não tinha incompatibilidade com o rigor do tratamento científico que encontrei nos seminários de Mestrado de Literatura Oral Tradicional, ministrados pelo Prof. Doutor João David Pinto-Correia. Por isso, ao meu Professor e orientador, pelo incentivo para que ampliasse o trabalho e empreendesse a presente tese e por ter acedido a orientá-la com a segurança do seu saber, pela confiança e gentileza constantes, o meu bem-haja, tradicional e sentido. Ao Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas Guerreiro’ e a todos quantos nele laboram, agradeço o acolhimento; lembro, sobretudo, a amizade da Teresa Amaral, da Lina Mendonça, do Francisco Melo Ferreira, da Beatriz Lúcio e da Profª Doutora Maria de Lurdes Cidraes e o interesse que a Profª Doutora Maria Aliete Galhoz sempre me dispensou e ao meu trabalho. Agradeço, também, à Profª Doutora Berta Beça por me ter permitido consultar a sua Tese de Doutoramento, não publicada. Ao Centro, os meus agradecimentos pela disponibilização da excelente biblioteca e pela consulta do seu riquíssimo acervo. iii Nem sempre me foi fácil obter as versões que constituem o corpus deste trabalho, dispersas por tantas publicações. Assim, aqui renovo os meus agradecimentos a quantos tiveram a amabilidade de me enviar as obras ou artigos que lhes solicitei, como foi o caso do Prof. Doutor Pere Ferré, do Dr. Domingos Raposo, do Dr. José Alberto Sardinha, do Dr. Daniel Café, das Câmaras Municipais de Ovar e de Paredes, da Biblioteca de Tarouca e do Prof. Doutor Manuel da Costa Fontes, a quem, muito em especial, manifesto o meu profundo reconhecimento. Este trabalho é devedor de meu Pai, mestre do “dizer não dizendo”. A ele devo, entre tantas outras coisas, o prazer de ler, tanto Eça ou Camilo como também, de igual forma, os folhetos dos ceguinhos, que lhes ia comprando. A minha Mãe, aos meus irmãos, aos meus amigos e, mais do que a todos, aos meus filhos António, Célia, Maria e Pedro, bem hajam pela paciência deste longo tempo em que, por vezes, os descurei. Depois, porque tradição é transmitir, este trabalho há-de ser legado do Simão, do Tomás e da Leonor. E sem mais palavras, que precisas não são, este trabalho é de e para o António. iv RESUMO Os romances orais tradicionais são composições poéticas de natureza narrativodramática, cujos textos são constituídos por múltiplas versões, sendo dotados de conteúdos complexos e altamente estruturados. Embora as suas manifestações se caracterizem por uma expressão elíptica, o seu sentido revela-se sempre numa significação económica e fortemente condensada. Para empreender este estudo, quisemos delimitar um corpus justificado e representativo, formado pelas versões registadas, em BRTPOM, dos romances Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha e Gerinaldo, dos quais se traçam breves histórias externas e internas. A pesquisa para uma revelação do sentido inicia-se com a análise das características dos romances e respectivas versões e pela compreensão e influência no sentido, de factores como o que é explícito e implícito, romance e versão, invariância e variação. Abordam-se questões relativas à organização da narrativa, à divisão em sequências, à natureza e posicionamento destas na estrutura narrativa e examinam-se tipos de estrutura e decorrentes problemas de classificação. Contendo os romances, de modo implícito, determinados modelos sócio-culturais, faz-se uma interpretação ideológico-axiológica, propõe-se uma tipologia dos espaços físico, social e familiar e definem-se as relações de Poder. Nesta perspectiva, apontam-se e analisam-se as acções cometidas pelas personagens, entendidas como de transgressão. Com base no exposto, encontram-se, nos suportes significantes directos da narrativa lógico-temporal invariante e organizada em sequências de cada romance, os elementos que permitem aceder ao implícito, o que possibilitará a reconstituição de uma v narrativa mais vasta e complexa. Esta conduz a um esquema ou “modelo-virtual”, construção artificial que visa reproduzir a estrutura invariante do romance e, simultaneamente, registar a anotação de variantes. O sentido assim revelado completase através da significação dos motivos, indexados e não-indexados. Analisam-se as variações resultantes da produtransmissão, apontando-se casos de transformação da narrativa e do sentido do romance que as versões revelam, através de elipses, aditamentos ou contaminações. PALAVRAS-CHAVE: Sentido, explícito, implícito, invariância, variação. vi ABSTRACT Oral traditional “romances” are poetic compositions of dramatic-narrative nature whose texts are composed by multiple versions and are endowed with complex and highly structured contents. Although an elliptic form characterizes their manifestations, their meaning reveals always on an economic and highly condensed signification. In order to undertake this study we delimitate a justified and representative corpus formed by the versions registered on BRTPOM of the romances Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha and Gerinaldo, of which short external and internal histories are done. The research of meaning’s revelation begins with the analysis of romances and versions’ characteristics and by the perception of influence on it of factors such as explicit and implicit, romance and version, invariance and variation. Issues concerning the organization of the narrative, the division into sequences, their nature and location within the narrative structure, types of structure and romances classification problems are examined. As romances contain implicit certain socialcultural models, an ideological-axiological interpretation is done, a typology of physical, social and family spaces is proposed, and Power relationships are defined. On this point of view, the actions perpetrated by the characters are highlighted and analyzed as transgressions. Based on the above, the elements allowing the access to implicit meaning are searched on direct significant supports of the logical-temporal invariant narrative organized in sequences of each romance enabling the reconstruction of a wider and complex narrative. This leads to a scheme or “virtual-model”, an artificial construction vii targeting the invariance structure of romance reproduction together with the notation of variants. The so revealed meaning completes through the use of indexed and non-indexed motifs significance. Variations due to production-transmission are analyzed and cases of narrative and romance’s meaning transformation through ellipsis, additions or contaminations revealed by versions are pointed out. KEY WORDS: Meaning, explicit, implicit, invariation, variation. viii ÍNDICE INTRODUÇÃO 1. O sentido nos romances orais tradicionais ……………………………... 1 2. Objectivos e metodologia ……………………………………………..... 4 3. Delimitação de um corpus ……………………………………………… 18 PARTE I - A PROCURA DO SENTIDO Capítulo I – Os romances do corpus ……………………………………... 29 1. Apresentação dos romances do corpus …………………………………. 29 1.1. Bernal Francês ……………………………………………………. 30 1.2. Veneno de Moriana ……………………………………………….. 36 1.3. Silvana e Delgadinha ……………………………………………… 39 1.4. Gerinaldo ………………………………………………………….. 42 2. Identificação de outros romances relacionados com os do corpus …….. 48 Capítulo II - Para uma procura do sentido ……………………………… 51 1. Características dos romances …………………………………………… 51 2. Explícito e implícito …………………………………………………… 64 3. Romance e versões ……………………………………………………... 67 4. Invariância e variação …………………………………………………... 69 Capítulo III - A organização da narrativa ………………………………. 85 1. Organização narrativa e sequências ……………………………………. 85 2. Os romances do corpus ………………………………………………... 91 2.1. Bernal Francês ……………………………………………………. 92 2.2. Veneno de Moriana ……………………………………………….. 93 2.3. Silvana, Delgadinha e as versões compósitas …………………….. 98 2.4. Gerinaldo ………………………………………………………….. 107 ix 3.O posicionamento das sequências na narrativa …………………………. 108 4.Sequências narrativas e sequências dramatizadas ………………………. 110 5.As “falas” das personagens ……………………………………………... 117 Capítulo IV – Para uma perspectiva axiológica nos romances …………. 131 1. Delimitação de âmbitos ………………………………………………… 131 2. A construção do espaço físico e social …………………………………. 147 3. A rede familiar – actividades, estatutos e relacionamentos …………….. 153 4. As relações de Poder ……………………………………………………. 169 5. Os actos de transgressão ………………………………………………... 185 5.1. Adultério - Bernal Francês ……………………………………….. 185 5.2. Incesto – Silvana e Delgadinha ……………………………………. 189 5.3. Actos contra a honra ………………………………………………. 195 5.4. Actos contra a hierarquia - Gerinaldo …………………………….. 207 5.5. Feitiçaria – Veneno de Moriana …………………………………… 209 5.6. O Quinto Mandamento …………………………………………….. 212 PARTE II - A REVELAÇÃO DO SENTIDO Capítulo I – Os suportes significantes do sentido ……………………….. 217 1. Suportes significantes directos e indirectos …………………………….. 217 1.1. Bernal Francês ……………………………………………………. 219 1.2. Veneno de Moriana ………………………………………………... 237 1.3. Silvana e Delgadinha ……………………………………………… 252 1.4. Gerinaldo ………………………………………………………….. 279 2. A elaboração de um “modelo-virtual” dos romances …………………... 294 3. “Modelo-virtual” dos romances do corpus …………………………….. 298 3.1. Bernal Francês ……………………………………………………. 298 3.2. Veneno de Moriana ………………………………………………... 303 3.3. Silvana …………………………………………………………….. 307 3.4. Delgadinha ………………………………………………………... 308 x 3.5.Gerinaldo ………………………………………………………… 312 Capítulo II – Os motivos na revelação do sentido ……………………….. 317 1. Os motivos ……………………………………………………………… 317 2. Os motivos indexados em Motif-Index of Folk Narratives in the PanHispanic Romancero …………………………………………………... 319 3. Os motivos não-indexados ……………………………………………… 336 3.1. Bernal Francês ……………………………………………………. 344 3.2. Veneno de Moriana ……………………………………………….. 368 3.3. Silvana e Delgadinha …………………………………………….. 385 3.4. Delgadinha ………………………………………………………... 395 3.5. Gerinaldo ………………………………………………………….. 404 Capítulo III – As intervenções na enunciação e no enunciado …………. 419 1. As intervenções e o sentido ……………………………………………. 419 2. Apartes e explicações; prosificações parciais e totais …………………. 421 3. As intervenções no enunciado………………………………………….. 455 3.1. Bernal Francês…………………………………………………….. 460 3.2.Veneno de Moriana ………………………………………………… 479 3.1. Silvana ……………………………………………………………. 520 3.2. Delgadinha ……………………………………………………….. 543 3.3. Gerinaldo …………………………………………………………. 576 CONCLUSÕES ………………………………………………………….. 615 BIBLIOGRAFIA ………………………………………………………… 633 Siglas e abreviaturas …………………………………………..................... 633 Bibliografia Activa ………………………………………………………… 635 Bibliografia Passiva ……………………………………………………….. 651 Bibliografia de versões do corpus publicadas posteriormente a 2000 ……. 700 Discografia ………………………………………………………………… 703 xi ANEXOS GRUPO A – Corpus Notas à edição do corpus ………………………………………………….. 3 Bernal Francês …………………………………………………………….. 9 Veneno de Moriana ………………………………………………………... 111 Silvana …………………………………………………………………….. 249 Delgadinha ………………………………………………………………… 273 Versões compósitas de Silvana e Delgadinha …………………………….. 481 Gerinaldo ………………………………………………………………….. 532 GRUPO B B1. Número de versões por editor, por ordem alfabética, de 1828 a 2000... 3 B2. Distribuição cronológica da edição das versões ……………………… 6 B3. Distribuição geográfica das versões ………………………………….. 10 B.4. Bernal Francês - Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação ………… 52 B5. Delgadinha – Versões do “namorado” ……………………………….. 57 B.6. Gerinaldo – Versões do sonho do rei ………………………………... 67 B7. Exemplificação da divisão das versões em sequências ………………. 71 xii A REVELAÇÃO DO SENTIDO INTRODUÇÃO 1. O sentido nos romances orais tradicionais Os romances orais tradicionais1 fazem parte do conjunto de práticas linguístico-literárias designado por Literatura Oral Tradicional 2 , que tem, como características comuns de base aos textos que nela se integram e que incluem contos, lendas, provérbios, cantigas, adivinhas e outros, a fixação pela memória e a transmissão oral. Estas manifestações, que acusam as marcas das culturas predominantemente orais3, demarcam-se da fixidez dos textos escritos da literatura institucional, pois não se manifestam num texto único. De facto, o texto do romance é, como o texto literário conceptualizado por Aguiar e Silva, uma entidade dotada de uma “organização interna que o configura como um todo estrutural” e partilha com este das propriedades de “expressividade, delimitação e estruturalidade” 4, mas, ao contrário deste, manifesta-se em 1 Seguimos a definição de romance oral tradicional de João David Pinto-Correia, que, no seu Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, referencia vários conceitos de outros estudiosos. Segundo este autor, um romance tradicional será “uma prática significante de manifestação linguístico-discursiva oral de curta extensão, com natureza e significação poética (em verso longo com dois hemistíquios e acompanhada de música), de organização predominantemente narrativo-dramática, embora por vezes muito contaminada pela componente lírica, altamente variável (versões e variantes) em cada uma das componentes textuais (expressão e no conteúdo) e que, situada na literatura oral tradicional, se insere no extracontexto da vida social quotidiana de uma comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de lazer)”. Cf. João David Pinto-Correia [2003], Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, Lisboa, Edições Duarte Reis, 2003, pp. 21-25 (Sigla ROTP). A partir daqui, para nos referirmos aos romances orais tradicionais, utilizaremos igualmente a expressão “romances”. 2 Sobre o conceito e metalinguagem teórica de “texto da Literatura Popular Tradicional”, remetemos para João David Pinto-Correia, que esboça uma tipologia mais geral sobre textos (“Não Literários, Contraliterários, Literários, Paraliterários e Sinliterários”), no último dos quais situa a “abrangente” designação de Literatura Popular. Dentro desta distingue os “textos populares de êxito efémero”, “os textos populares tradicionalistas”, “os textos populares tradicionais”, estes abrangendo os “textos” da Literatura Tradicional Oral, e entre os quais se encontram os romances e os textos da Literatura Tradicional Escrita, referindo ainda “os textos popularizantes”. Cf. João David Pinto-Correia [1992], ”Para uma Teoria do Texto da Literatura Popular Tradicional”, em Manuel Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 101-128. 3 Para a compreensão da maneira como o poeta oral organiza a sua produção e de como o pensamento das culturas orais se reflecte nos processos narrativos utilizados no romanceiro tradicional, serão fundamentais estudos como os de Paul Zumthor [1983], Introduction a la Poésie Orale, Paris, Seuil, 1983 e de Walter Ong [1998], Oralidade e Cultura Escrita: A tecnologização da palavra, S. Paulo, Papirus, 1998. 4 Ver conceito de texto literário de Aguiar e Silva: “O texto literário constitui uma unidade semântica, dotada de uma certa intencionalidade pragmática, que um emissor/autor realiza através de um acto de 1 A REVELAÇÃO DO SENTIDO múltiplas versões5 que, realizadas e transmitidas oralmente em espaços diversos e num grande alongamento temporal, sofrem um processo dinâmico de transformação. O texto do romance existe, pois, em estado virtual, invariante, sendo concretizado nas versões. Os romances orais tradicionais, segundo Menéndez Pidal, têm raízes na Idade Média, constituindo o resultado hispânico do desdobramento dos poemas épicos em pequenos cantos épico-líricos, por acção dos jograis, que seleccionavam os episódios mais marcantes, os quais, por sua vez, sofreram ainda um processo de fragmentação e tradicionalização 6 , processo esse que lhes veio a imprimir um modo particular de significar. De facto, a tradição oral tende a oscilar entre dar prioridade a uma economia narrativa ou a uma enfatização da mensagem, pelo que o “não-falante natural do romanceiro” 7 pode sentir uma certa falta de lógica na estrutura geral da narração, se não estiver familiarizado com as estratégias narrativas que lhe são próprias. Faltar-lhe-á, assim, a necessária competência textual, visto que esta, como refere Aguiar e Silva, é a capacidade não só de um emissor produzir textos como de um receptor decodificá-los, o enunciação regulado pelas normas e convenções do sistema semiórico literário e que os seus receptores/leitores decodificam, utilizando códigos apropriados”. Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva [2002], Teoria da Literatura, 8ª ed., 13ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 574-576. 5 João David Pinto-Correia designa as versões como “fanerotextos”, realizações integradas num texto global e “sempre virtual” a que chama “apotexto”, cujo conjunto se completará com “todo o extracontexto social e cultural que o envolve” e que contribui para o que chama a sua “significância”. Cf. Pinto-Correia [1992], pp. 101-128. 6 Cf. Ramón Menéndez Pidal [1968], Romancero Hispánico (Hispano Portugués, Americano Y Sefardi) Teoria e História, 2 Tomos, 2ª ed., Madrid, Espasa-Calpe, 1968. (Cf. Tomo I, Capítulo V – Los Orígenes en General, pp. 151-172). (Sigla RoH). Não são concordantes as teses sobre a origem do romanceiro em geral e a datação dos romances e não nos deteremos aqui sobre este problema, remetendo para o acima citado estudo de Pidal, bem como para o Capítulo 6. Visão Diacrónica do Romanceiro, em ROTP, pp. 5572 e, ainda, para o Capítulo 2. Origens e Datações do Romanceiro no Vol. I de Pere Ferré [2000, 2001, 2003, 2004], Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna, Versões Publicadas entre 1828-2000, 4 Vols., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, (I) 2000; (II) 2001; (III) 2003; (IV) 2004 (Sigla RPTOM). 7 A expressão é de Diego Catalán, para quem a “cadeia de transmissão” do romanceiro é constituída pelos seus “falantes naturais”. Diz o autor ser objectivo do IGR “reproducir, simular, la actividad recognoscitiva, descodificadora, de los consumidores-productores del romancero, com una clara conciencia de que estamos aprendiendo un ‘linguage’ ajeno, que sus ‘hablantes’ usan (pasiva y activamente, escuchándolo y hablándono) como parte de un saber adquirido naturalmente”. Cf. IGR, sigla para Diego Catalán et alii [1984, 1982, 1983], El Romancero Pan-Hispânico - Catálogo General Descriptivo/The pan-Hispanic Ballad – General Descriptive Catalogue, 3 vols., Seminario Menendez Pidal, Madrid: IGR/CGR 1a - “Teoria General”, 1984; IGR/CGR 2, 1982; IGR/CGR 3, 1983. 2 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que, além da competência linguística de ambos, “requer outros saberes ou competências que se situam num âmbito translinguístico, desde o conhecimento das pressuposições pragmáticas ao conhecimento das regras de argumentação e das normas e convenções de um 8 género literário, por exemplo” . Essas estratégias, no romanceiro, passam pela adopção de uma forma de representação elíptica, com raras descrições e forte predominância do diálogo, escassez de didascálias de tempo, espaço ou identificação de personagens e uso frequente de expressões formulísticas e motivos. A intriga, nestas composições de extensão relativamente pequena, de cariz narrativo-dramático e que se centram, preferencialmente, num único episódio marcante, começando e acabando de forma abrupta, apresenta saltos narrativos, sem ligação aparente entre as sequências. Perante esta condensação e elementaridade, o ouvinte/leitor é obrigado a pressupor antecedentes e a antever implicações, de modo a que uma narrativa mais vasta se possa completar e o sentido pleno do romance se revele. As características de que estes poemas narrativos se revestem não impedem que neles se encontrem universos de significação densos e altamente estruturados e que são, sobretudo, de natureza implícita. A interpretação destes universos não é, porém, aleatória, devendo basear-se nos elementos explícitos que o texto manifesta discursivamente, pelo que uma revelação do sentido se obterá pela análise destes, o que coloca algumas questões fundamentais. A primeira, sobre a qual desde já insistiremos, é a de estarmos a tratar de textos constituídos por uma multiplicidade de versões, que raramente apresentam uma coincidência discursiva dos versos que as compõem. Esta circunstância levanta outras questões, nomeadamente a que se refere à escolha dos elementos a serem apresentados como a “face explícita” dos elementos implícitos, uma vez que não analisamos apenas uma qualquer versão de cada um dos romances constituídos em corpus, mas todas. 8 Cf. Silva [2002], p. 567. 3 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Neste estudo, intentámos resolver aquela e outras questões inerentes às próprias características do objecto estudado e que aqui apresentámos brevemente, deixando, por ora, a noção de que o sentido dos romances se revela através da análise de elementos explícitos e implícitos. É, pois, sobre os meios de o fazer que, sobretudo, nos debruçamos. 2. Objectivos e metodologia O objectivo deste estudo é a análise da significação narrativo-dramática nos romances orais tradicionais, de modo a demonstrar que estas composições, na sua forma de expressão elíptica e condensada, são dotados de elementos que permitem a revelação mais completa, se bem que não totalmente disponível, do seu sentido. Pretendemos, pois, identificar os mecanismos formais de que se serve a langue do romanceiro para produzir uma parole 9 , que é realizada nas versões dos romances, para, de seguida, procurar os meios de lhes fazer revelar o sentido. Servindo-nos de um corpus previamente delimitado, de acordo com as directivas que adiante explicitaremos, procurámos que este fosse exemplificativo da metodologia utilizada e que a mesma pudesse a ser aplicada a outros corpora e, de forma geral, ao romanceiro. Os processos de revelação do sentido são vários e a sua procura far-se-á, em primeiro lugar, sobre a narrativa manifestada discursivamente, a que chamaremos “narrativa explícita”. Esta, porém, completa-se com a procura dos implícitos, o que deverá ser objecto de algumas considerações prévias. De facto, embora os romances 9 Servimo-nos, aqui, da terminologia de Saussure, considerando langue como o conjunto de códigos que estruturam o romance oral tradicional enquanto género e parole como a sua realização particular (cf. Ferdinand de Saussure [1995], Curso de Linguística Geral, 7ª ed., Publicações D. Quixote, Lisboa, 1995) e também da analogia estabelecida por Jakobson: “Dans le folklore, la relation entre l’œuvre d’art et son objectivation, c’est-à-dire les variantes de cette œuvre d’art interpretée par différentes personnes, este n tous points analogue à la relation entre langue et parole”. Cf. Roman Jakobson [1973], Questions de poétique, Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 63. 4 A REVELAÇÃO DO SENTIDO possuam uma componente lírica, são, essencialmente, poemas narrativos 10 de grande diversidade de conteúdos11. Como tal, contam histórias ou episódios em intrigas mais ou menos elaboradas e protagonizados por personagens cujos comportamentos, ainda que sob uma perspectiva ficcional, são uma mimese do “mundo empírico”, distinguindo-se, portanto, do grande conjunto das baladas europeias pelo seu “realismo” e quase ausência do “maravilhoso”12. Ao representarem o comportamento humano, os romances, logicamente, integrarão um quadro social e é por esta razão que a revelação do sentido implica que se considerem os diversos factores de ordem sócio-cultural que subjazem à sua produção/transmissão. Deste modo, os romances representam, com frequência, relações de conflito pessoais, nas quais se insinuam outros conflitos, de ordem social e moral e, sendo 10 Os romances orais tradicionais integram-se no modo narrativo e remetemos para João David PintoCorreia, que propõe a classificação das composições da Literatura Oral Tradicional em macroconjuntos (composições de carácter lírico, composições de carácter narrativo-dramático e composições dramáticas), subdivididos em subconjuntos e considerando as vertentes religiosa e profana. Os romances são inseridos no subconjunto designado como composições registadoras-elementares, no macroconjunto das narrativo-dramáticas. Cf. João David Pinto-Correia [1993a], “Os Géneros da Literatura Oral Tradicional: Contributo para a sua Classificação”, Revista de Língua Portuguesa, nº 9, Julho de 1993, pp. 63-69. Posteriormente, essa proposta sofreria alterações e o autor acrescentou ao modo lírico, narrativo e dramático o das práticas que, nas suas palavras, é “a descrição ou mesmo narração respeitante a uma prática quotidiana, como o da medicina popular, costumes agrícolas, etc.” Salienta, ainda, que, “nas práticas, não é a descrição ou a narração por parte do colector que interessa, mas a que é a dita, descrita ou relatada por parte do informante”. Cf. João David Pinto-Correia [2009], Património Imaterial Português: notícia das NR / LOT-CTPP (recolhas de Literatura Oral Tradicional) de 2002 a 2007, Comunicação apresentada no dia 12 de Outubro de 2009, no Colóquio Internacional Literatura Culta e Popular em Portugal e no Brasil, organizado pelo Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no âmbito da jubilação do Professor Doutor Arnaldo Saraiva. 11 “Segundo o conteúdo” é um dos determinantes para a distinção dos romances, que Pinto-Correia sumariza, chamando a atenção, tal como Michelle Débax, que cita, para a complexidade da tarefa de uma definição dos romances “quanto ao referente”. Cf. Vol. I, pp. 19-29 de João David Pinto-Correia [1993, 1994], Os Romances Carolíngios da Tradição Oral Portuguesa, 2 Vols., Lisboa, INIC (1º Vol. 1993, 2º Vol. 1994) (Sigla RCTOP). 12 Cf. ROTP, p. 18. Ao contrário dos contos tradicionais, o “maravilhoso” pouco intervém no romanceiro, embora surjam alguns casos, de que damos, como exemplo, e de entre outros, o cavalo de D. Beltrão, que fala ao pai deste defendendo-se da culpa da morte do cavaleiro (ex: “O cavalo, por Deus querer, ainda veio a falar”, A Morte de D. Beltrão, em RPTOM, Vol. I, pp. 212-213), as fadas que fadam a Infantina (ex: “-Sete fadas me fadaram nos braços de minha madrinha”, em RPTOM, Vol. IV, p. 52) ou a erva que faz pejar quem a toca (ex: “À porta de dona Alvórea nasceu uma erva mui’má // dona Alvórea buliu nela, logo se sentiu pejada”, A Infanta pejada, em RPTOM, Vol. IV, p. 11-12). 5 A REVELAÇÃO DO SENTIDO maioritariamente dialogados13, neles se encontrará uma similitude com os diálogos que se desenrolam entre locutores reais. Segundo Fernando Belo, “qualquer conversa é um conflito”14, conceito que se adequa especialmente à forma dramatizada dos romances15, permitindo que sejam aplicáveis ao diálogo entre as personagens as teorias da pragmática da conversa e as regras de implicitação conversacional de que fala Adriano Duarte Rodrigues16. Porém, tal como em situação real, ainda que acções e intenções das personagens possam ser dadas a conhecer pelos seus actos de fala, o que elas dizem e fazem não se esgota no seu sentido explícito e mais imediato, remetendo para outros sentidos, pressupostos e implicados, cuja compreensão poderá depender do conhecimento do contexto que lhes subjaz. Assim sendo, a procura de sentidos implícitos não é da ordem de uma interpretação subjectiva pessoal, mas a que provém de uma análise conjugada da forma de expressão e da forma de conteúdo, de modo a que a primeira, com o uso que faz de elipses, redundâncias, expressões formulísticas, motivos ou elementos simbólicos, desvende as chaves para a revelação do sentido da segunda. Adoptámos, neste estudo, uma perspectiva literária, orientada para a analítico-narratológica, mas igualmente comparativa (em certos aspectos da variação) e 13 Referimo-nos, em especial, à tradição portuguesa. Sob a direcção de Catalán, foi realizado um estudo sobre as tendências estilísticas do romanceiro oral, que concluiu haver na tradição portuguesa uma proporção de diálogo de 80%. Cf. Diego Catalán [1997], Arte Poética del Romancero Oral, Parte 1ª: Los textos abiertos de creación colectiva, Madrid, Fundación Menendez Pidal, 1997, p. 76. 14 Cf. Fernando Belo [1991], A Conversa, Linguagem do Quotidiano – Ensaio de Filosofia e Pragmática, Lisboa, Presença, 1991, p. 44. 15 Sobre este assunto, consultar Pedro Alfonso Ferré da Ponte [1987], Estratégias Dramatizadoras do Romanceiro Tradicional Português, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1987 (texto mimeografado). 16 Os processos de inferência levados a cabo pelos interlocutores para a produção de sentido devem-se ao respeito ou à violação do “princípio de cooperação conversacional” postulado por Grice, 1975, 54-70 (máximas de quantidade e qualidade de informação, de relevância e de modo de desenrolar a conversa). São expressão da violação dessas máximas os sentidos figurados (ironias, metáforas), que servem objectivos de comunicação diversos. Cf. Adriano Duarte Rodrigues [2001], A Partitura Invisível. Para uma Abordagem Interactiva da Língua, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 141-155. 6 A REVELAÇÃO DO SENTIDO interpretativa17, tendo recorrido, para isso, aos estudos sobre o romanceiro a que nos foi possível aceder, bem como a teorias de literatura, a obras sobre simbologia e de informação histórica, sociológica e antropológica, quer em suporte escrito quer na Internet. Devemos acrescentar que os romances que constituem o nosso corpus de trabalho, não tendo sido seleccionados por um critério de raridade, que não o são, foram objecto de vários estudos, de cujos autores nos constituímos devedora; entendemos, mesmo assim, que o presente trabalho constituirá uma perspectiva diferente e inovadora, uma vez que o objectivo não é apenas a análise de um único romance ou de um certo número de versões, mas, encarando embora cada um deles como um texto único, analisá-los sob denominadores comuns, de modo a permitir conclusões sobre o seu sentido e, também, sobre os meios de revelação deste. Reconhecemos a necessidade de não descurar uma perspectiva linguística num estudo que utiliza a análise do explícito para aceder ao implícito, uma vez que nos propúnhamos efectuar uma análise da linguagem do romanceiro, enquanto modo condensado de revelar sentidos mais vastos do que os apresentados pela sua forma habitual de expressão. Deparámo-nos, porém, com alguns problemas, não só por não ser aquela a nossa formação de base, mas, principalmente, devido à própria especificidade do objecto estudado uma vez que, como já havíamos adiantado, não se trata de lidarmos com uma manifestação única, imutável, ou de um somatório fixo de composições, mas sim de textos constituídos pela multiplicidade das suas ocorrências (as versões), que vivem pela oralidade, num espaço temporal e geográfico alargado 17 18 e numa João David Pinto-Correia aponta quatro grandes perspectivas seguidas por alguns estudiosos do Romanceiro: a histórico-geográfico-filológica, com as orientações geográfico-histórico-cultural e genético-histórico-filológica, a analítica, com as orientações linguística, poético-retórica ou estilística e narratológico-semiótica, a interpretativa, comportando a etno-antropológica, psicanalítica e ideológica e, ainda a perspectiva musicológica, indicando, para cada uma delas, um vasto número de trabalhos que considera importantes. Cf. RCTOP, Vol. I, pp. 42-44. 18 O corpus de que nos ocuparemos constitui uma amostragem significativa, pois consta de versões publicadas desde o ano de 1828 ao de 2000, com uma distribuição geográfica que cobre o território 7 A REVELAÇÃO DO SENTIDO diversificada produtransmissão 19 , o que equivale a dizer que cada romance é, na realidade, o conjunto das suas versões, já existentes ou vindouras, em todo o universo pan-hispânico. Deste modo, dado que os estudos do domínio das ciências da linguagem, se orientam, sobretudo, para o funcionamento da língua ou para os textos escritos e os conceitos metodológicos descritivos apresentados pelos seus vários campos não apresentam uma terminologia fixa 20 , intentámos adaptar terminologias e definições conceptuais a este estudo específico. Pela mesma razão e para o objectivo que tínhamos em mente, procurámos consultar o maior número de versões dos romances que previamente delimitáramos como base de trabalho a que nos foi possível aceder21, o que nos permitiu comprovar diversos aspectos que abordámos e estabelecer uma metodologia. Não esquecemos que as versões-ocorrência são os suportes de uma virtualidade do texto/romance, sendo, como dissemos, sustentadas por determinada forma de expressão22, passíveis de análise por si próprias e susceptíveis de apresentar variações de sentido. No entanto, a presente análise visa a revelação do sentido do romance e não apenas o de umas quantas versões. Foi no conjunto das versões de cada um daqueles romances que encontrámos um esse denominador comum 23 e, igualmente, uma certa constância da organização nacional, continental e insular. Essas versões são cantadas ou recitadas por membros de comunidades díspares, de ambos os géneros e de diversas faixas etárias. 19 O conceito de “produtransmissão” é de João David Pinto-Correia, referindo-se ao processo de recepção, aceitação e reprodução pela comunidade das composições da “literatura oral tradicional”, na qual o autor situa os “romances tradicionais”. Cf. ROTP, pp. 15-18. 20 Assim o afirmam Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov [2001], Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem, 3ª ed., 2ª reimp., São Paulo, Editora Perspectivas, 2001, p. 11. 21 Referimo-nos a versões dos romances que constituímos como corpus, tanto portuguesas como de Espanha e América hispano-falante, do Brasil e sefarditas, em obras e locais na Internet, que indicamos na Bibliografia. 22 É também adiante que, com mais detalhe, referiremos as características da forma de expressão dos romances. 23 Adiantamos que, embora não fosse nosso objectivo principal a comparação sistemática da tradição portuguesa com as outras, a leitura global das versões permitiu constatar que o seu sentido é assaz concordante com o do conjunto pan-hispânico. 8 A REVELAÇÃO DO SENTIDO narrativa. À possibilidade de criar uma versão factícia 24 dos romances em causa, preferimos elaborar um seu “modelo-virtual”, que, neste trabalho, se reporta à tradição oral portuguesa e que permite dar conta daquela organização nas sequências em que se estrutura, bem como das suas variantes. Para exemplificar determinados pontos, no decorrer do trabalho, recorreremos a casos concretos encontrados nas versões, procurando não privilegiar qualquer delas. Definimos, desde já, a aplicação de certos termos25 ao estudo dos romances orais tradicionais. Ao falar de sentido, reconhecemos as dificuldades da sua definição e dele dirão Greimas e Courtès que “[A]ntes de su manifestación bajo forma de significación, nada podría decirse del sentido, a menos que se hicieran intervenir presupuestos metafísicos de graves consecuencias” 26 . A submetermos a presente análise a um ou outro domínio das disciplinas da linguagem 27 , considerámos haver uma maior produtividade se procurássemos uma definição particularizada de sentido do romance; por isso, entendêlo-emos, em primeiro lugar, como o sentido da “fábula”, querendo com isto dizer que 24 Fosse ela na modalidade “artística” ou “científica”, segundo a distinção de Maria Aliete Galhoz, que lembra, para a primeira, o caso de Ramón Menéndez Pidal com Flor Nueva de Romances Viejos, e, para a segunda, estudos específicos como os de Samuel G. Armistead, Diego Catalán ou Manuel da Costa Fontes, em cujo “’construto’ a que se chega é dado sem alteração textual alguma dos versos contribuintes e indicando sempre e exactamente a fonte contribuidora”. Cf. Maria Aliete Galhoz [2000], “Breve Reflexão a ‘Algumas reflexões de Garrett sobre o Romanceiro’”, em Comissão Executiva dos “Seminários Garrett” [2000], coordenação de, Garrett às Portas do Milénio, Lisboa, Colibri, 2000, pp. 107-116. Na “Advertencia” aos critérios editoriais de Gerineldo. El Page y la Infanta, Diego Catalán e Jesús António Cid referem-se ao”romance de Gerineldo” como “arquetipo”, que não é um “prototipo” nem imutável, dizendo que, para o conhecer, não basta a recitação de uma qualquer versão nem seleccionar uma que pareça especialmente representativa, que sempre dará mostras da sua singularidade, nem, sequer, elaborar uma versão factícia, o que privaria o romance se “una de sus características fundamentales, la variabilidad”. Daí a publicação de cerca de 850 versões de Gerinaldo. Cf. Diego Catalán, Jesús António Cid [1975, 1976], ed. de, Gerineldo. El Page y la Infanta, *Vol. VI (1975), **VII (1975), ***VIII (1976) de Romancero Tradicional de las Lenguas Hispánicas (Español-PortuguésCatalán-Sefardita), Madrid, Editorial Gredos, 1975, 1976. 25 A definição de outros conceitos será feita à medida que forem sendo introduzidos. 26 Cf. A. J. Greimas, J. Courtés [1990], versão espanhola de Enrique Ballón Aguirre e Hermis Campodónico Carrión, Semiótica. Diccionario Razonado de la Teoría del Lenguage, Vol. I, Madrid, Editorial Gredos, 1990, pp. 372-374. 27 Remetemos para Ducrot, Todorov [2001], que apresentam uma visão de conjunto das ciências da linguagem, organizando o Dicionário Enciclopédico em secções (As Escolas, Os Domínios, Descrição – Os Conceitos Metodológicos e Descritivos). 9 A REVELAÇÃO DO SENTIDO nos referimos ao conjunto da “intriga” efectivamente actualizada, explícita, e ao que nela se encontra de implícito, mediante um “discurso” específico, adoptando os conceitos do IGR, segundo o qual os relatos romancísticos se encontram articulados em três níveis de organização poética. A intriga, construção e montagem da narrativa, exposição da fábula, mediante um discurso (primeiro nível de articulação, elementos linguísticos, estilísticos e métricos), será “la narración artisticamente organizada”, “el significante, la expresión particularizada que adopta la fábula”, sendo esta a “série causal de sucesos cardinales que se sucedem encadenadamente apoyándose en el discurrir natural del tiempo”. As fábulas são as manifestações dos modelos actanciais ou funcionais que “organizam sintagmáticamente contenidos ‘míticos’ atemporales” 28. Retomando as palavras de Greimas que, sobre o que chama “littérature ethnique”, acentua que “le récit n’est pas un message-occurance autonome mais qu’il est l’ensemble des corrélations entre toutes ses variantes”29, diremos ainda que também o sentido do romance é constituído pela correlação do sentido das suas versões, ainda que estas apresentem variantes, por vezes tendentes a modificá-lo. Nos romances, o sentido radica também num certo quadro axiológico, uma vez que as situações narradas, dentro dos temas e sub-temas que os enformam, bem como as atitudes e os actos das personagens, estão inseridas em determinadas estruturas socioculturais. Visto que a sua produtransmissão se realiza em uma voz, não única ou personalizada, mas colectiva, o romance, enquanto texto fazendo parte de um sistema literário, entender-se-á como plurissignificativo 30 e polifónico, parecendo-nos ser o 28 Cf. IGR, pp. 24-25. Cf. A. J. Greimas [1976], Sémiotique et Sciences Sociales, Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 194. 30 Segundo Aguiar e Silva, “ [A] plurissignificação pode verificar-se tanto num fragmento como na totalidade de um texto literário” e “… enraíza-se nas relações metonímicas e analógicas que o símbolo [literário] mantém quer com as estruturas socioculturais, quer com as estruturas psíquicas profundas e inconscientes…”. Cf. Silva [2002], p. 662. 29 10 A REVELAÇÃO DO SENTIDO conceito de polifonia31 particularmente adequado ao romanceiro. Com efeito, as versões são produto de transmissão colectiva e o papel dos produtransmissores poderá ser associado ao dos actores que narram e dão voz a personagens múltiplas, introduzindo, por vezes, as suas marcas de “autor”, nas variações. Por sua vez, as personagens sem referente histórico (caso dos romances novelescos) representam, sobretudo, tipos sociais estereotipados e, consequentemente, de voz colectiva (a adúltera, a assassina, a vítima, a sedutora). Por outro lado, os romances têm um carácter fragmentário 32 , pelo que nem a lógica narrativa é sempre totalmente explícita pelo registo nem apresenta um conjunto exaustivo de elementos explícitos informativos. Pelo contrário, há neles uma economia narrativa que se traduz numa condensação significante e em elipses diversas. A elipse é a ausência de uma unidade da camada profunda na camada de superfície, que pode reconstruir-se com a ajuda dos elementos presentes nesta 33 . A informação aparentemente elidida deixa, pois, indícios que permitem a sua recuperação, processada por anaforização, “uno de los principales procedimientos que permitem al enunciador establecer y mantener la isotopía discursiva (las relaciones interfrásicas) ”, dando-se a anáfora [semântica] quando um termo recupera uma expansão sintagmática anterior. Quando o termo recuperado precede, no discurso, o termo em expansão, a relação denomina-se catáfora34. Na perspectiva em que o fazemos, a revelação do sentido do romance dependerá, repetimos, na análise conjunta dos seus elementos, explícitos e implícitos. O explícito 31 O conceito de “polifonia” de Bakthine, que reconhece que nos textos literários várias vozes falam simultaneamente, serve a Ducrot para esboçar uma teoria polifónica da enunciação. Desta, reteremos aqui que o “locutor” é responsável pelo enunciado e, por meio deste, dá existência a “enunciadores”, dos quais organiza pontos de vista e atitudes. Ducrot recorre à comparação com o teatro, fazendo o paralelo do par locutor/enunciador com o par autor+actor/personagem, para sublinhar a multiplicidade de vozes intervenientes nos processos de fala e comunicação (oral e escrita). Cf. Oswald Ducrot [1984], Le Dire et le Dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233. 32 Esta e outras características do romance serão abordadas no Capítulo II da Parte I. 33 Greimas, Courtés [1990], p. 140. 34 Greimas, Courtés [1990], p. 33. 11 A REVELAÇÃO DO SENTIDO constitui a parte manifestada na superfície, do que é dito e declarado expressamente, enquanto o implícito é o não-dito, aquilo que, não manifestado no discurso, se subentende, pressupõe ou implica, revelando-se por um procedimento a que Greimas e Courtés chamaram encatalyser [traduzido em português como encatalisação] 35 . Retomando o termo, encatalisar é, então, interpretar e descodificar os elementos implícitos, mediante o apelo ao que Umberto Eco entende como “competência enciclopédica” 36 do receptor, que se socorre do seu conhecimento de elementos contextuais e extratextuais. Aplicamos, aqui, o termo contexto ao nível interno do texto, enquanto designamos o que lhe é exterior (social ou espacialmente) por extracontexto. Entende-se, pois, que o receptor procede a uma encatalisação porque o conhecimento das características dos romances fará parte da sua competência enciclopédica e, “sabendo” que o texto com o qual se confronta é fragmentário e não se limita ao discursivamente presente, “completa-o”, recorrendo a outras competências, multidisciplinares. A encatalisação consta de procedimentos de pressuposição e implicação. Fazendo a pressuposição 37 parte dos conteúdos implícitos, definir-se-á como condição antecedente, de que depende a actualização de uma situação posterior. A implicação, por sua vez, é uma relação de consequência, do tipo “se X, então Y”, que permite passar das premissas à conclusão38. Quanto ao sub-entendido, é tributário das 35 Tomamos, para estes conceitos, a definição proposta por Greimas e Courtés: “Implícito, adj., s.m., fr: Implicite; ing. Implicit: 1. Considerando-se que o explícito constitui a parte manifestada do enunciado (frase ou discurso), o implícito corresponde à parte não manifestada, mas directamente ou indirectamente implicada pelo enunciado produzido.”, p. 229 e “Catalisar – verbo, fr. Encatalyser; ing. To encatalyze: Catalisar é tornar explícitos, através de procedimentos apropriados, os elementos de uma frase ou os segmentos de uma sequência discursiva que estavam implícitos”, p. 43. Cf. A. J. Greimas, J. Courtés [s.d.], Dicionário de Semiótica, S. Paulo, Ed. Cultrix, s.d. Adoptamos o termo “encatalisar”, de preferência a “catalisar”, de acordo com João David Pinto-Correia. Cf. RCTOP, Vol. I, p. 379, nota 83). 36 Umberto Eco define a “competência enciclopédica” como o complexo sistema de códigos e subcódigos que o leitor, para actualizar as estruturas discursivas, confronta com a manifestação linear. Cf. Umberto Eco [1993], A Leitura do Texto Literário, Lector in Fabula, 2ª ed., Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 81. 37 Greimas, Courtés [s.d], pp. 347-348. 38 Gilbert Hottois [2004], Pensar a Lógica, Lisboa, Instituto Piaget, 2004, p. 223. 12 A REVELAÇÃO DO SENTIDO circunstâncias da enunciação e engloba valores cuja decifração exige um “cálculo interpretativo” sobre as razões (ou intenções) pelas quais o locutor disse o que disse39. Nesta análise considerar-se-ão dois modos de entender o implícito. O primeiro, de ordem estrutural, advém da característica de fragmentismo 40 dos romances e nele se manifestam as sequências não presentes no discurso, mas fazendo parte da fábula, bem como a informação e sentido presentes na plurissignificação dos motivos e das simbologias. O segundo tem a ver com as ideologias do Homem, enquanto ser social, que atravessam o sentido do texto, pois as personagens do romance, que comunicam entre si na forma mimética da vida real, actuam igualmente em conformidade (ou em conflito) com um programa condicionado pelas estruturas socioculturais (éticas, morais, religiosas). Também certos efeitos da acção dos produtransmissores, que afectam o contexto enunciativo (eufemismos, elipse, junção e/ou alteração de sequências), revelam outros implícitos, tais como determinadas atitudes culturais em relação ao conteúdo. Embora reconheçamos a sua relevância, e tanto mais que o suporte de que dispomos não contém habitualmente os necessários registos e, mesmo, porque não é essa a nossa formação nem tal magnitude de trabalho aqui caberia, ficarão ausentes desta análise os elementos extraverbais do domínio da paralinguística quinésica e proxémica 41 , ainda que entoação, expressão do olhar ou gestos sejam também uma maneira de, em situação de performance42, conferir sentido43. 39 Cf. Catherine Kerbrat-Orecchioni [1982], Comprendre l’implicite, Documents de Travail, nr. 110-111, Série A, Janeiro-Fevereiro 1982, Università di Urbino, Centro Internazionale di Semiotica e di Linguística, 1982, p. 5 e Ducrot [1984], p. 93. 40 Este conceito será desenvolvido no Capítulo II da Parte I. 41 A quinésica, estudo dos comportamentos motores associados à linguagem e a proxémica, que se ocupa do uso que o homem faz da relação do espaço com o corpo, seriam relevantes no estudo do sentido das manifestações da literatura oral, dada a relação que se estabelece entre intérprete e auditório em situação de performance, durante a qual aquele “modifica o discurso, a entoação, o tom, o timbre de voz e os gestos, de acordo com a recepção que percebe no auditório”. Cf. Carlos Nogueira [2000], “Cancioneiro Tradicional: Questões de recolha e de classificação”, Revista ELO, 6, Faro, Centro de Estudos Ataíde de Oliveira, Universidade do Algarve, 2000, pp. 97-116. 42 Retomamos, de Zumthor, a definição de performance (“La performance, c’est l’action complexe par laquelle un message poétique est simultanément transmis et perçu, ici et maintenant”). Cf. Zumthor [1983], p. 32 e, em especial, o Capítulo 8. Un discours circonstancial, pp. 147-157. 13 A REVELAÇÃO DO SENTIDO De igual forma, não será também aqui abordada a componente musical dos romances 44 , que são (ou eram) cantados, embora refiramos que as funcionalidades destes cantos45 poderão constituir um elemento a considerar na revelação do sentido46. Citamos Anne Caufriez, que diz: “Selon le rôle que la ballade remplit dans le calendrier de la vie paysanne, elle revêt un cadre formel différent. Sa musique épouse les circonstances, si bien qu’on peut parler d’une incidence privilégiée de la fonction sociale sur la forme musicale. On distingue bien les mélodies qui s’inscrivent dans la courte période de récolte du seigle et celles qui sont choisies pour le divertissement, au sens large du terme”47. 43 Refira-se que, em presença de determinado auditório, o produtransmissor de romances pode optar por eliminar ou modificar determinadas partes ou eufemizar sentidos. Assim acontece, por exemplo, em certas versões do romance de incesto Delgadinha, nas quais a personagem “pai que assedia a filha” é substituída por um pretendente desta. Entendemos, aqui, que se trata da concretização de um “acordo colectivo”, na medida em que estas versões camuflariam uma situação moralmente delicada à sensibilidade dos presentes, em dada altura, vindo depois a espalhar-se. O facto é que, das duzentas e sessenta versões do corpus, cinquenta e sete (21,92 %) utilizam este eufemismo por substituição, o que permite considerá-las, entendemos, uma variante do romance. Ver Grupo B de Anexos, B.5. DELGADINHA – Versões do “namorado”, onde transcrevemos os versos que executam a referida substituição e referenciamos a sua distribuição geográfica. 44 Para esta componente, referimos os estudos de Anne Caufriez, musicóloga e estudiosa do romanceiro (Cf Bibliografia Activa e Passiva). Sobre a etnomusicologia em Portugal, Caufriez enumera os trabalhos incluindo notações musicais e refere aqueles que, a partir dos anos 40-50, começam a fazer recolhas com gravação sonora. Cf. Anne Caufriez [1989] “L’ethnomusicologie au Portugal des origines à nos jours”, Recherches en Anthropologie au Portugal, I, Paris, Centre d’Études Portugaises de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1989, pp. 14-23. 45 Sobre este assunto, Maximiano Trapero adverte sobre o “grave vacío que afecta de forma sustancial a la comprensión general y totalizadora del Romancero” e acrescenta que “una Poética del Romancero deberá contemplar ineludiblemente el comportamiento lingüístico y literario de sus textos pero también el comportamiento y funcionalidad de sus elementos musicales.”. Cf. Maximiano Trapero [1982], “El romancero y su musica”, Revista de Folklore, nr. 15, Tomo 02a, pp. 80-84, disponível na Internet em http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=133, arquivo acedido em 20 de Março de 2011. Remetemos também para o estudo de José Alberto Sardinha sobre as tradições musicais da Estremadura, que dedica o Capítulo 9 aos cantos de trabalho, nos quais inclui o Romanceiro, e no qual faz notar uma diferenciação de funcionalidades no canto de romances: “Esta diferenciação de funcionalidades ditou uma distinção marcada na própria estrutura musical dos romances: quando preenchem uma função de lazer ou mesmo de acompanhamento de trabalhos domésticos, como acontece nas seroadas, afectam um género musical muito característico, alguns certamente descendentes ainda dos cantos trovadorescos medievais, possuindo cada romance a sua melodia própria; os que se destinavam a ser cantados no campo, nomeadamente durante as segadas do centeio, assumem o carácter de cantos de ar livre, todos com o mesmo desenho melódico, arrastado e melismático”. O autor cita, entre outras ocasiões em que se cantavam romances, os intervalos dos bailes e a audição dos romances pelos cantadores ambulantes, muitos deles cegos. Cf. José Alberto Sardinha [2000], Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde, Tradisom, 2000. 46 É o caso, como adiante referiremos, de Veneno de Moriana, cantado à hora da merenda pelos segadores e no texto do qual, justamente, o convite “para merendar” feito pela protagonista ao “cavaleiro” desempenha uma função crucial no sentido do romance. 47 Cf. Anne Caufriez [1998], Le Chant du Pain. Trás-os-Montes. Recherches sur le Romanceiro, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1998, p. 215. 14 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Não deixaremos, também, de mencionar Miguel Manzano Alonso, que, detectando quatro estilos musicais no género narrativo (“narrativo severo”, “narrativo melódico”, “narrativo lírico” e o estilo de “tonadilla reciente”), o encontra como ”uno de los más aptos para percibir la forma en que la melodia tiene el poder de influir sobre el texto y cargarlo de matices y contenidos emotivos muy diversos”. Diz o autor que, enquanto os estilos “narrativo lírico” e de “tonadilla reciente” têm um carácter sentimental, que faz corresponder a melodia aos sentimentos dos protagonistas da narração, com intenção de contagiar o ouvinte, pelo que são próprios das cantigas de cegos, os dois outros estilos, “narrativo severo” e “narrativo melódico”, costumam dar-se nos romances mais antigos, que se cantam: “com fórmulas arcaicas semirecitativas cuyas melodias son como asépticas, por así decirlo, respecto de los hechos y los estados de ánimo de los personages que van aparaciendo en la narración. En este tipo de fórmulas, ni hay acuerdo ni desacuerdo entre el carácter del texto y la música. Es el oyente el que pone de su parte el sentimiento y el estado de ánimo que le causa la narración cuando escucha una história cantada en la que la melodia es un mero suporte para una dicción clara y declamada, pero no dramatizada por la música” 48 . Todas as obras são relacionadas na Bibliografia, precedida esta de um sistema das siglas ou abreviaturas utilizadas. Uma vez que colhemos os dados para a elaboração do corpus de trabalho da obra Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna49, que utiliza um sistema de siglas próprio, optámos por anotá-las igualmente, em cada entrada da Bibliografia Activa, incluindo e assinalando com asterisco as reedições das versões referenciadas. As referências bibliográficas em notas de rodapé serão devidamente identificadas na primeira utilização e, posteriormente, referidas pelo último nome do autor e data da edição consultada ou pela sua sigla. Para os artigos colhidos da Internet, indica-se a data ou, se não a houver, a da sua consulta. 48 Cf. Miguel Manzano Alonso [2003], “Texto y Melodía en la Canción Popular Tradicional”, em AAVV, Literatura de Tradición Oral, León, Fundación Vasco-Leonesa, 2003, pp. 127-146. 49 Pere Ferré, Cristina Carinhas [2000], Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2000), Madrid, Instituto Universitario Seminario Menéndez Pidal, Universidad Complutense de Madrid, 2000 (sigla BRPTOM). 15 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Estruturámos o trabalho em duas partes. Na primeira, de carácter mais geral, focamos os elementos que entendemos determinarem as condições da procura do sentido nos romances orais tradicionais; na segunda, de carácter mais analítico, analisaremos o modo como o sentido se revela, recorrendo mais directamente ao corpus delimitado como instrumento de demonstração, exemplificando ou ilustrando determinados pontos com casos concretos. PARTE I. A PROCURA DO SENTIDO - No Capítulo I. Os romances do corpus, apresentamos os romances seleccionados como corpus de trabalho, com a sua identificação nos principais índices e catálogos, traçando uma sua breve História Externa e resumindo-os numa História Interna; identificamos, também, outros romances relacionados com estes. No Capítulo II. Para uma procura do sentido, partiremos do geral para o particular, revendo os elementos necessários para uma procura do sentido nos romances, explícito e implícito. Focaremos as principais características dos romances, relacionando-os com a tipologia do pensamento e da expressão nas culturas orais, e abordaremos os recursos formais como a repetição e a enumeração, as expressões formulísticas, bem como conceitos e noções como abertura e fragmentismo, romance e versões, invariância e variação. No Capítulo III. A organização da narrativa, ocupamo-nos das questões da estrutura interna dos romances, da divisão em sequências segundo as quais se organiza e se estrutura a lógica da narrativa e, ainda, da influência da natureza e do posicionamento das sequências no sentido do romance. Já mais particularmente, traçaremos de cada um dos romances do corpus, a respectiva organização da narrativa explícita, antepondo-lhes algumas questões relativas ao tipo de estrutura que apresentam ou a problemas da sua classificação. No Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances e com base no critério subjacente à delimitação do corpus, analisamos as linhas de sentido que, 16 A REVELAÇÃO DO SENTIDO no texto dos romances, sustentam os valores sócio-culturais neles implícitos, debruçando-nos particularmente sobre o modo como é traçado o espaço social, as relações de poder que se estabelecem entre as personagens, para que possa ser perspectivada a maneira como são valoradas, positiva ou negativamente, as infracções por elas cometidas. PARTE II. A REVELAÇÃO DO SENTIDO - No Capítulo I. Os suportes significantes do sentido, com base no exposto na Parte I, começamos por apontar e analisar, para cada um dos romances do corpus, os suportes significantes directos que remetem para respectivos suportes significantes indirectos. A partir das situações da organização narrativa explicíta e das pressupostas e implicadas, elaboramos um “modelo-virtual” de cada um dos romances do corpus. O Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido é dedicado inteiramente aos motivos, indexados ou não, pelo peso que estes têm na produção de sentido. Sendo os romances, afinal, constituídos pelas suas versões e estas transmitidas/produzidas por agentes humanos, dedicamos o Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado às possíveis causas e aos efeitos que a intervenção daqueles produz no sentido. Procuramos, assim, demonstrar que os romances orais tradicionais são composições linguístico-literárias dotadas de características elípticas e condensadas na forma de expressão, que, não obstante, deixam no texto discursivamente manifestado as marcas através das quais se podem reconstituir programas narrativos mais vastos e mais completos e complexos que os efectivamente actualizados; que a história narrada, explícita, não esgota a significação dos romances, sendo possível a identificação de diversas linhas de sentido que os atravessam, sustentadas por um conjunto de valores sociais, culturais e religiosos; que os romances, enquanto manifestações culturais, são a representação de uma certa visão do mundo e que a narrativa é, essencialmente, realista, 17 A REVELAÇÃO DO SENTIDO focando assuntos dentro dos parâmetros de uma sociedade organizada; que a intriga é narrada com uma certa neutralidade – conta-se o que se passou –, mas que não se conforma necessariamente com os valores veiculados pelo Poder, o que se revela através das “transgressões” neles cometidas. Procuraremos, ainda, demonstrar que, para além do sistema de valores implícito, revela-se, um outro sentido, o da reacção, naturalmente dentro de cada sub-tema, àqueles mesmos valores; que, nas versões, encaradas como intervenção dos produtransmissores, através de uma manipulação criativa da forma de expressão, revelam-se apreciações avaliativas, eufóricas ou disfóricas, às personagens e aos actos que praticam, que podem conformar-se com o sentido do romance ou modificá-lo. Em anexo (Anexos – Grupo A), apresentamos a transcrição das versões do corpus, precedida de notas sobre a edição e, em outro grupo (Anexos – Grupo B), apresentamos elementos referentes às versões e às sequências (ver Índice). 3. Delimitação de um corpus Neste estudo da significação narrativo-dramática dos romances orais tradicionais, sendo nosso objectivo analisar a produção de sentido e os procedimentos para a sua revelação, e tendo aquela a ver simultaneamente com as formas de expressão e de conteúdo e com a conjunção dos elementos explícitos e implícitos, procurámos encontrar um ponto comum que relacionasse todos estes aspectos. Seleccionar um corpus que permitisse demonstrar esses processos e que, simultaneamente, pudesse ser exemplificativo da metodologia utilizada, de maneira a que esta pudesse vir a ser generalizada ao romanceiro, face à vastidão da produção romancística da tradição oral portuguesa50, verificável em BRPTOM, constituiu a primeira dificuldade. 50 Além da aturada listagem sobre a recolha romancística levada a cabo em Portugal na Introdução Geral do GRPP, contamos ainda com a importante recensão de Maria Aliete Galhoz sobre a actividade editorial, que cita outros estudos e colecções de romances até essa data, uns agrupados por determinadas áreas 18 A REVELAÇÃO DO SENTIDO geográficas, outros mais gerais. Ver Maria Aliete Galhoz [1987], organização, introdução, notas e bibliografia de, Romanceiro Popular Português, I, Lisboa, INIC, 1987 (Sigla GRPP I), Maria Aliete Galhoz [1988], organização, introdução, notas e bibliografia de, Romanceiro Popular Português, II, Lisboa, INIC, 1988 (Sigla GRPP II) e Maria Aliete Galhoz [1987a], “Resenha Sobre a Actividade Editorial Romancística em Portugal nos Últimos Anos”, Revista Lusitana. Nova Série, 8, Lisboa, INIC, 1987, pp. 177-184. Em Portugal, a publicação dos 3 volumes do Romanceiro de Almeida Garrett, entre 1843 e 1851, marca o início da redescoberta do romanceiro que, a nível internacional era objecto de interesse de estudiosos como Jakob Grimm (Silva de Romances Viejos, 1815), Agustin Durán (Romancero General, 1849) e de Wolf e Hofmann (Primavera y Flor de Romances, 1856). No séc. XIX desenvolver-se-á, no nosso país, uma actividade romancística de que se destaca Soares de Sousa, que enviará o material recolhido a Teófilo Braga, que dele se serve para o seu trabalho. Braga reúne as versões até então publicadas e outras inéditas no Romanceiro Geral Português, entre 1906 e 1909 e o seu labor, ainda que passível de críticas, torna o romanceiro em objecto de estudo científico. Lugar de destaque ocupa Leite de Vasconcellos, pela recolha de romances, postumamente organizados no Romanceiro Português (1958-1960) e na fundação da Revista Lusitana (1887) que publicará numerosos romances e estudos, entre os quais os “Estudos sobre o romanceiro peninsular: Romances velhos em Portugal”de Carolina Michäelis, que se notabilizará no campo teórico desta matéria. A Revista Lusitana está hoje disponível on-line em http://cvc.institutocamoes.pt/bdc/etnologia/revistalusitana/02/lusitana02.html. Depois de 1900, surgem numerosos trabalhos de recolha, sobretudo regionais, destacando apenas os nomes de Giacometti (Arquivos Sonoros Portugueses, reeditados em CD, estando outra parte no Museu de Etnografia de Lisboa) e de Lindley Cintra, pelo incentivo dado à inclusão de romances em teses de dialectologia, parcialmente publicados por Maria Aliete Galhoz em Romanceiro Popular Português, 2 vols., 1987-1988. Recolhas do romanceiro português serão feitas por estudiosos como Joanne Purcell, Manuel da Costa Fontes (no Canadá, EUA, S. Jorge e Trás-os-Montes), também responsável por O Romanceiro Português e Brasileiro: Índice Temático e Bibliográfico, 1997, Pere Ferré (nos distritos de Castelo Branco, Guarda, Beja, este com Ana Maria Martins), Vanda Anastácio, (Faro) ou Anne Caufriez, esta mais centrada numa perspectiva musicologica (Romances du Trás-os Montes, 1997), entre outros. Mais recentemente, foram publicados, por Idália Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz e Isabel Cardigos, Romances. Património do Concelho de Loulé, 2006 e outros trabalhos que, se incluindo os romances do nosso corpus, procurámos reunir e indicamos na Bibliografia. Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, alunos de Licenciatura e mestrandos em Literatura Oral e Tradicional produziram trabalhos de recolha, cujo tratamento de sistematização e classificação tem vindo a ser efectuado por investigadores do Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas Guerreiro’. Quanto a estudos sobre o romanceiro, além dos prefácios e introduções a colectâneas (ver Bibliografia), de que destacamos o Estudo Introdutório de Pere Ferré em Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna. Versões publicadas entre 1828 e 1960, 4 volumes e de artigos em publicações como Revista Lusitana. Nova Série e E.L.O., menciona-se Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa, de João David Pinto-Correia, 2003. Dispersas por várias publicações, encontram-se artigos sobre romances, alguns dos quais, sobretudo aqueles que versam sobre os do nosso corpus, indicamos na Bibliografia. Das teses sobre o romanceiro da tradição portuguesa, damos notícia das seguintes: de Licenciatura, por Teresa Amado, O Estilo do Romanceiro Português – alguns aspectos, 1966; de Mestrado, por Joanne Purcell, Portuguese Traditional Ballads from Califórnia, 1968, por Vanda Anastácio, Os textos de Romances no Romanceiro e Cancioneiro do Algarve de Athaíde Oliveira: uma tentativa de Edição Crítica, 1985, por Lina do Carmo Godinho dos Santos, A Variação no Romance Oral Tradicional Perseguição de Búcar Pelo Cid, 2006; de Doutoramento, por Anne Caufriez, La Perennité du Romanceiro dans la Musique Paysanne du Tras-osMontes (Portugal), 1980-1981, por João David Pinto-Correia, Os Romances Carolíngios da Tradição Oral Portuguesa, 1987 (publicada em 2 vols. em 1993), por José P da Cruz, Estudos sobre o Romanceiro Tradicional. Tradição Oral da Beira Baixa, 1988 (publicada com alterações em 1993), por Ferré da Ponte, Estratégias Dramatizadoras do Romanceiro Tradicional Português, 1987, por Berta Beça, Romanceiro de Bragance. Sa Specificité et son Insertion dans le Romancero General, 1998, por Teresa Araújo, Teófilo Braga e o Romanceiro de Tradição Oral Moderna Portuguesa. Questões de História e Teorização, 2000 e por J.J. Dias Marques, A Génese do Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga, 2002, estas não publicadas. Uma completa bibliografia das versões editadas entre 1828 e 2000 pode consultar-se em Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2000), publicada em 2000, em Madrid, por 19 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Começámos, em primeiro lugar, e aplicando o pressuposto que os romances longos tenderiam a conter maiores possibilidades de informação e, logo, a ser mais explícitos do que os curtos, por procurar romances que fossem “explícitos” pelo critério da sua extensão. Mas o conceito de “romance longo” aplica-se, sobretudo, ao que apresenta vários episódios, alongando-se espacial e temporalmente e o de “romance curto” àquele que se centra num ou poucos incidentes, embora, logicamente, tal se repercuta na sua extensão. Na verdade, um maior número de versos pode dever-se à inclusão em romances considerados curtos de repetições, de sequências adicionais, de prolongamentos ou de contaminações de outros. De igual forma, podem os romances “longos” apresentar versões reduzidas ou sofrer elipse de sequências. Então, partindo do princípio de que este tipo de composições é de natureza fragmentária e que o sentido se revela menos pela extensão do que pela condensação significante, abandonámos o critério de escolha baseado na suposição de “romance longo = romance mais explícito”. Afastámos da escolha, também, o critério por classificação temática 51 , visto crermos que a estruturação da narrativa não depende tanto do assunto tratado como das características intrínsecas do género. Por esse motivo e para uma maior eficácia na demonstração da metodologia utilizada, a uma amostragem aleatória dos diversos grupos de romances, preferimos organizar um corpus em torno de uma mesma linha de orientação. Esta partiu do pressuposto de que as sociedades se organizam em torno de ideologias que se projectam nas suas práticas significantes e da constatação de que o conteúdo narrativo dos romances, enquanto manifestações culturais de uma Pere Ferré e Cristina Carinhas. Do panorama do romanceiro pan-hispânico lembram-se, mais em particular, os nomes de estudiosos como Menéndez Pidal, Benichou, Di Stefano, Alvar, Catalán, Armistead, Debáx, Diaz Roig, Diaz-Mas, González Peréz, Forneiro, Valenciano, Peterson, de entre outros. Na Internet, o Proyecto del Romancero pan-hispánico (Pan-hispanic ballad Project) disponibiliza uma importante base de dados. 51 Os critérios de classificação dos romances são diversos, apresentando complexidades observáveis nas diversas propostas disponíveis, algumas das quais citadas por João David Pinto-Correia, em ROTP, pp. 41-50. 20 A REVELAÇÃO DO SENTIDO comunidade, não versa apenas sobre acções individuais, mas reproduz valores sociais e reflecte atitudes perante estes. No romanceiro, encontra-se um vasto conjunto de temas que tratam de comportamentos humanos e por ele perpassam dois grandes temas – o Amor e a Morte que configuram diversos tipos de Poder nas relações humanas. Entendemos, então, que centrar estes temas, nos seus diversos aspectos e em uma só representação, poderia constituir a linha condutora para a constituição de um corpus significativo, tendo então optado pela representação, ainda que genérica, da Mulher. Muitos são os vultos femininos no romanceiro, mas, pela dificuldade de a todos abranger, decidimo-nos pela sua composição figurativa nos Romances Novelescos, nos quais a mulher assume um protagonismo consideravelmente maior do que nos outros52, o que é visível pelas designações das subsecções em que esses romances são divididos 53 , tendo, assim, deixado de lado as mulheres dos Romances de Contexto Histórico Peninsular, dos Romances Carolíngios e dos Romances Religiosos, bem como figuras como as da Donzela Guerreira (RPI X5; IGR 0231) ou da Infantina (RPI X2; IGR 0164), nos Romances de Assuntos Vários54. Visto que pretendíamos demonstrar que nos romances se encontram implícitas as estruturas sócio-culturais que enformam as comunidades e as relações de Poder que nelas se criam, e considerando ainda que estas se revelam no próprio modo de 52 A análise dos protagonistas romancísticos efectuada por Ruth Weber revela que há uma evolução a favor de relatos nos quais a mulher desempenha um papel mais importante do que o que tinha nos romances velhos. O mesmo estudo indica que o herói é mais um homem do que uma mulher, com excepção dos romances portugueses e sefardis e que as mulheres/herói pertencem a unicamente quatro classes: as vítimas, as enamoradas, as virtuosas ou fiéis e as adúlteras, estas junto com outras “malvadas”. Cf. Ruth House Webber [1989], “Hacia un análisis de los personajes romancísticos”, em Pedro M. Piñero et alii, edición al cuidado de, El Romancero. Tradición y Pervivencia a fines del Siglo XX, Actas del IV Coloquio Internacional del Romancero, Cádiz, Fundación Machado, Universidad de Cádiz, 1989, pp. 5764. 53 Em ROTP, João David Pinto-Correia adopta a arrumação dos romances que é proposta por Samuel G. Armistead e seus colaboradores e por outros como Costa Fontes em RPI e faz a seguinte subdivisão dos Romances Novelescos: “Presos e Cativos”, “Regresso do Marido”, “Amor Fiel”, “Amor Desgraçado”, “Esposa Desgraçada”, “Adúltera”, “Mulheres Matadoras”, “Raptos e Violações”, “Incesto”, “Mulheres Sedutoras”, “Mulheres Seduzidas”. 54 Adoptamos o critério de organização dos romances tradicionais de Pinto-Correia, em ROTP, p. 49. 21 A REVELAÇÃO DO SENTIDO representação, procurámos, dentro dos Romances Novelescos, alguns tipos femininos que desempenhassem papéis em conflito com um certo modelo estabelecido pelo poder social e moral55; escolhemos então romances centrados no protagonismo de uma única mulher, excluindo aqueles nos quais ressalta um conflito entre duas, como o de mãe/filha em O Conde da Alemanha (RPI M9; IGR 0095), o de rivais (princesa/condessa) em O Conde Alarcos (RPI L1; IGR 0503) ou o de sogra/nora em A má sogra (RPI L3; IGR 0153). Dos romances nos quais se encontram essas mulheres protagonistas, seleccionámos aqueles nos quais encontrámos “adúlteras”, “matadoras” e “sedutoras”, enquanto agentes em situação de conflito com um Poder; para seu contraponto, quisemos outras mulheres que encarnassem as “vítimas” e, visto a revelação do sentido ser nosso objectivo, entendemos comparar, neste caso, dois modos 55 Por esse motivo excluímos figuras como a da Bela Infanta (RPI I1, I2, I3, I4, I5; IGR 0113), óbvia representante de um moralizante “amor fiel” ao marido ausente na guerra e, talvez por isso, difundido pelos manuais escolares. Põe-se, a propósito, a hipótese de maior divulgação de alguns romances ou da fixação de determinadas versões, como veiculadoras de ideologias dos poderes políticos em vigência. Esta circunstância manifestou-se, particularmente, no regime salazarista, durante o qual a “cultura popular” foi orientada para a valorização de uma ruralidade alicerçada no nacionalismo e na moralidade (cf. Daniel Melo [2001], Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2001). Assim, no âmbito da Campanha Nacional de Educação de Adultos, publicam-se obras como o Romanceiro Português, em cujo Intróito se pode ler: “Se de várias lições nos servimos, para estabelecer os presentes textos, foi no intuito de os apresentar, sem desvirtuação, na sua forma mais acessível e menos crua” (nosso sublinhado). Cf. Plano de Educação Popular [1953/1973], Romanceiro Português, Colecção Educativa, série G, nr. 10, (1ª ed. 1953), Ministério da Educação Nacional, Direcção da Educação Permanente, 1973. Versões de “A Nau Catrineta” e “A Bela Infanta” encabeçam esta selecção, a qual, efectivamente, se encontra depurada de tais detalhes mais crus, nos outros romances que integra. Nela não se encontram representados Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha ou Gerinaldo. Ao propor-se realizar um estudo sobre a presença do que denomina “Literatura de Expressão Oral” nos manuais escolares do Ensino Primário, de 1901 a 1975, Maria Augusta Seabra Diniz refere não ter encontrado nenhum texto do Romanceiro Tradicional Português nos manuais que seleccionou como representativos desse período. Informa, todavia, que, noutros manuais consultados, existem versões de “A Bela Infanta”, “A Nau Catrineta” ou “O Lavrador da Arada”. Cf. Maria Augusta Seabra Diniz [2001], As fadas não foram à escola, 3ª edição, Porto, Edições Asa, 2001, Nota 37, p. 62. Para o estudo das ideologias e sistemas de valores que os diversos regimes políticos em Portugal procuraram transmitir às camadas mais jovens através dos manuais escolares de História, cf. Sérgio Campos Matos [1990], História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte, 1990; para o estudo das tendências didácticas e moralizantes através da literatura infantojuvenil, cf., entre outros, Glória Bastos [1997], A Escrita para Crianças em Portugal no Século XIX, Lisboa, Caminho, 1997 e Francesca Blockeel [2001], Literatura Juvenil Portuguesa Contemporânea: Identidade e Alteridade, Lisboa, Caminho, 2001. 22 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de representação de um mesmo tema, o incesto56. Como representativos, seleccionámos então os seguintes romances, que apresentamos pelo seu número de ordem em O Romanceiro Português e Brasileiro: Índice Temático e Bibliográfico57 (Sigla RPI) e, à frente, a identificação numérica IGR58: - M5; 0222. BERNAL FRANCÊS – (Adúlteras) - N1; 0172. VENENO DE MORIANA – (Matadoras) - P1; 0005. SILVANA - (Vítimas) - P2; 0075. DELGADINHA – (Vítimas) - Q1; 0023. GERINALDO – (Sedutoras) Constituímos em corpus e analisámos59 todas as versões destes romances editadas até ao ano 200060, de acordo com os dados de BRPTOM (cf. abaixo Quadro 1) e que ali 56 Deste mesmo tema, há outros romances de violência incestuosa contra mulheres, como o Bíblico Tamar (RPI E3; IGR 0140) e o Clássico Florbela e Brancaflor (RPI F1; IGR 0184), o primeiro entre irmãos e o segundo entre cunhados, mas optámos pelos romances Novelescos que focam o incesto pai/filha. 57 Manuel da Costa Fontes [1997], O Romanceiro Português e Brasileiro: Índice Temático e Bibliográfico, / Portuguese and Brazilian Balladry: a Thematic and Bibliographic Index, Selecção e Comentário das Transcrições Musicais de Israel J. Katz e Correlação Pan-Europeia de Samuel G. Armistead, 2 vols, Madison, 1997. 58 O IGR dá a cada romance um número arbitrário, seguido do nome (Ver IGR, p. 54), o que os identifica como um código, estando estes disponíveis, em sistema de referências cruzadas com outros, na base de dados Pan-Hispanic Catalog/Index Numbers (Cross References). Cf. Pan-Hispanic Ballad Project. International Online Archive of the Pan-Hispanic Ballad. A Database of Ancient and Modern Oral Versions of Ballads, disponível na Internet em http://depts.washington.edu/hisprom/ballads/index/php, arquivo acedido em datas várias. 59 Para não sobrecarregar o texto, dado que o número das versões é elevado, não referiremos sempre todos os casos ao exemplificar os pontos focados, preferindo seleccionar os que considerámos suficientemente ilustrativos para esse efeito. 60 São também objecto de atenção as versões destes romances publicadas em obras de que fomos tendo conhecimento, posteriores à data que estabelecemos como limite para a formação do corpus. Embora sem carácter de exaustividade, indicamo-las, a seguir à Bibliografia Passiva, por ordem cronológica de edição, tal como assinalamos alguma discografia nacional que contém versões destes romances. Temos também notícia (abaixo transcrita) da gravação, que não pudemos consultar, de Veneno de Moriana cantado como fado, em António M. Nunes, A canção de Coimbra no Século XIX (1840-1900). (Ele há teorias... e teorias...), em http://guitarradecoimbra.blogspot.com, arquivo acedido na Internet em 25 de Março de 2008: “- Jorge e Juliana (Minha mãe, lá vem o Jorge): fado menor, possivelmente muito próximo dos primitivos fados narrativos de finais do século XVIII e primeiros anos de oitocentos. A letra como que se confunde com os velhos romances populares de tipo cordel e ceguinho ambulante. Tema recolhido pelo Grupo Folclórico de Coimbra, gravado em 1999 no CD Cantares de Coimbra. Era cantado por operárias de uma antiga fábrica textil de Coimbra. A letra é constituída por seis quadras de teor narrativo. Jorge e Juliana conta a história da vingança de uma donzela desonrada, do cortejamento encetado à janela e do vinho envenenado que foi dado a beber ao sedutor. Em 23 A REVELAÇÃO DO SENTIDO foram criteriosamente bibliografadas por ordem alfabética dos primeiros editores, indicando as reedições, que reproduzimos no Anexo Grupo A - Corpus. Neste, apresentamos as versões arrumadas cronologicamente, uma vez que nos interessou, também, facilitar um futuro apuramento de transformações no romance causadas pelo passar do tempo. Quadro 1: Número de versões de cada romance em BRPTOM ROMANCE Nr. de versões registadas em BRPTOM Corpus61 Bernal Francês 116 116 Veneno de Moriana 259 259 45 33 286 260 - 39 205 207 Silvana Delgadinha Silvana + Delgadinha Gerinaldo Para comparação das versões portuguesas destes romances com as suas congéneres pan-hispânicas, consultámos colectâneas e antologias de outras tradições, que indicamos na Bibliografia, bem como as versões disponíveis na base de dados do Pan-Hispanic Ballad Project. Deparámo-nos com alguns problemas relativamente à classificação das versões que apresentam material narrativo de outros romances, visto que nem sempre há coincidência de critérios entre editores e entre estes e BRPTOM62, o que assinalamos no corpus. Intentámos resolver esta questão, pelo que, embora respeitemos e sigamos a algumas regiões tinha a designação de “Veneno da Moriana”. Figura nas recolhas de José Alberto Sardinha para a Estremadura.” 61 As divergências quanto ao número das versões do corpus são apontadas nas notas à edição do corpus, que precede Grupo A de Anexos, e a classificação dos romances como Silvana, Delgadinha e versões compósitas Silvana + Delgadinha é justificada no Capítulo III - A organização da narrativa, na Parte I. 62 É o caso, por exemplo, da n/S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193, que está classificada como Silvana (nr. 7) em BRPTOM e como Queixas de Dona Urraca (0004) em RPTOM (Vol. I, pp. 131-132). 24 A REVELAÇÃO DO SENTIDO arrumação de BRPTOM, estabelecemos o nosso próprio critério, nomeadamente no que diz respeito a Silvana, Delgadinha e às suas versões compósitas63. No decorrer do processo de constituição do corpus, e a partir dos dados colhidos em BRPTOM, elaborámos alguns Quadros que considerámos pertinentes para o presente e para futuros estudos, que apresentamos igualmente em anexo64. O primeiro (B1. Número de versões por editor, por ordem alfabética, de 1828 a 2000) oferecerá uma visão de conjunto do tipo de actividade editorial, que nos permite apurar que o número total de editores de Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha e Gerinaldo foi de noventa e seis, a maioria com apenas uma ou duas versões e outros atingindo um número considerável, como é o caso de Ana Martins/Ferré, Anastácio, Armistead/Fontes, Carvalho Rodrigues, Cruz, Ferré, Fontes, Galhoz, Leite, Marques e Xarabanda65, por vezes em vários anos. Outro Quadro (B2. Distribuição cronológica da edição das versões), do qual eliminámos os detalhes bibliográficos para maior facilidade de leitura, é complementar e dar-nos-á a percepção da actividade editorial por décadas e de quantas versões de cada romance estavam publicadas até ao ano 2000. Apresentamos, igualmente, um Quadro que mostra onde cada versão foi recolhida (B3. Distribuição geográfica das versões), o que possibilita, ao agrupá-las geograficamente, comparar as suas respectivas características e, ademais, apurar quais as regiões mais e menos exploradas. Cada uma das versões do corpus será identificada e referida no corpo do trabalho pelas iniciais do nome do romance e por um número de ordem, com a identificação do primeiro editor, segundo a sigla em BRPTOM, como no Quadro 2. 63 No Capítulo III – A organização da narrativa. Ver Anexos, Grupo B. 65 Cf. Bibliografia. 64 25 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Quadro 2: Identificação das versões do corpus Bernal Francês BF/1 Garrett (1828) XXVI-XXXII; BF/2 Braga (1867) 34- 36 … Veneno de Moriana VM/1 Braga (1883) 197; VM/2 Leite (1883a) VII …. Silvana S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193; S/2 Leça (1922) 65 … D/1 Braga (1867) 181-183; D/2 Azevedo (1873) 767 … Delgadinha Silvana+Delgadinha S+D/1 Garrett (1828) 107-113; S+D/2 Braga (1869)/Braga (1982) 193-196 … G/1 Garrett II (1851) 158-167; G/2 Braga (1867) 18-20 … Gerinaldo 26 A REVELAÇÃO DO SENTIDO PARTE I A PROCURA DO SENTIDO 27 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO I OS ROMANCES DO CORPUS 1. Apresentação dos romances do corpus Colocar os romances tradicionais “na sua época verdadeira ou ainda aproximada”, como já constatava Almeida Garrett66, é tarefa que apresenta dificuldades inerentes à sua condição de oralidade e à falta de registos escritos sistemáticos; origens ou datações hipotéticas dos romances têm sido objecto de polémicas até à data não resolvidas 67, tendo Pidal dito: “La fecha en que por primera vez se pone por escrito un canto tradicional o se alude a él, no fija el mínimo de antigüedad de tal canción. La dificuldad está en que, tratándose de una poesía de transmisión oral, la antigüedad máxima debe de estar bastante más atrás en la mayoría de los casos, pues es poco común que una canción popular desperte la curiosidad y sea registrada por escrito a raíz de su primera divulgación”. Essas dificuldades são acrescidas no caso dos chamados romances novelescos, que não possuem os referentes históricos dos de assunto épico nacional e dos noticiosos. Menéndez Pidal diz que alguns deles são de antiguidade igual ou maior que os noticiosos e que são “hijos de outra escuela romancística más ligada a las tradiciones literárias, escuela dependiente en gran parte de las baladas extrangeras”68. Faz também notar que muitos temas novelescos vieram de fora do romanceiro, embora haja fortes indícios de que também o inverso seja possível, como no caso de Bernal Francês, e atribui a 66 João Baptista de Almeida Garrett [1983], Org. fixação de textos, pref. e notas de Maria Helena da Costa Dias, Helena Carvalhão Buescu, Luis Augusto Costa Dias e João Carlos Faria, Romanceiro, 3 vols., Lisboa, Editorial Estampa, 1983. Cf. Garrett [1983], Vol. II, p. 245. 67 Cf. RoH I, p. 157. 68 RoH I, p. 160. 29 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Espanha a capacidade inventiva de não só dar forma romancística a muitos deles, como de imbuí-los de características notoriamente espanholas69. Sem aqui entrar no campo da polémica sobre a génese de cada um dos romances do corpus, indicam-se alguns dados sobre o que deles se conhece, em breve História Externa, após a sua identificação nos principais índices e catálogos, a partir do indicado no Pan-Hispanic Ballad Project70 e a que acrescentamos os GRPP, VRP71 e RPTOM72. Em RPI II faz-se a distribuição pan-hispânica dos romances, referenciando-os na Galiza, Castela, Catalunha, tradição sefardita e Hispano-América, nesta última com excepção de Veneno de Moriana, não assinalada nesta última; para a sua distribuição luso-brasileira 73 , o RPI considera Trás-os-Montes, Algarve, Açores, Madeira e o Brasil 74 . Fornece, igualmente, as respectivas correspondências europeias, que abaixo reproduzimos. De seguida, esboça-se um pequeno resumo do romance, na História Interna, não atendendo aqui a particularidades das versões. 1.1. BERNAL FRANCÊS Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica) (-) não presente na publicação Índices e catálogos 1849 - Romancero General, Durán Localização na publicação (-) 69 RoH I, Capítulos IX e X. Neste pode ser consultada a bibliografia completa das publicações que referencia. 71 José Leite de Vasconcellos [1958, 1960], Romanceiro Português, I, II, Acta Universitatis Conimbrigensis, (I) 1958, (II) 1960. 72 Pere Ferré [2000], estudo introdutório, organização e fixação de, com a colaboração de Cristina Carinhas, Ramon dos Santos de Jesus e Eva Parrano [2000], Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna, Versões Publicadas entre 1828-1960, Vol. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. 73 Sobre as primeiras versões de romances recolhidas no Brasil, cf. Teresa Araújo [2001], “Uma das primeiras notícias sobre o romanceiro na América Latina”, Actas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, Maio de 2001 na Universidade de Évora, Vol. II, disponível na Internet em http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/UMA%20DAS%20PRIMEIRAS%20NOTICIAS%2 0SOBRE%20O%20ROMANCEIRO.pdf, arquivo acedido em 20 de Março de 2011. 74 Apresentamos no Grupo B de Anexos, para o nosso corpus, o quadro B3. Distribuição geográfica das versões de cada romance. 70 30 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1856 - Primav.75 (-) 1899 - ASW76 (-) 1906 - Catálogo del romancero judío- Nr. 83 español , Menéndez Pidal 1978 - CMP77 M9 “Bernal Francés” 1953-1968 - RoH II, 407 “- Quien es ese caballero / que a mi puerta dixo: Abrid!” 1958-1960 - VRP (I e II) XXV - BERNAL FRANCÊS I - Versões 354-371; II - Versões 1007-1009 1982-1988 - IGR 0222. Bernal Francés 1987-1988 – GRPP (I e II) I, M. Adúltera, versões 235-246 1997 - RPI M5. BERNAL FRANCÊS (Í) 2000/2001/2002 - RPTOM III - BERNAL FRANCÊS, versões 893-942 2000 - BRPTOM LVIII.BERNAL FRANCÊS, pp. 65-71 Correspondências Pan-Europeias, segundo RPI: Francesa: Assassin - (Beauquier, pp. 256-258; Millien, I, 266: Puymaigre, Messin, I, 127-130). Italiana: Marito giustiziere – (Bronzini, II, 275-317; Nigra 30; Graves 10)78. 75 F. J Wolf e C. Hofmann [1856, 1943], Primavera y flor de romances, 2 vols., Berlim, 1856. (Sigla Primav.) 76 A sigla ASW identifica o “Apéndice y suplemento a la Primavera y flor de romances”, Vol. IX, pp. 11-148, 151-334, 347-385, 387-439, 441-445, 447-456, 462-465 de Marcelino Menéndez Pelayo [1945], Antología de poetas líricos castellanos, Edición Nacional de la Obras Completas de Menéndez Pelayo, Santander, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1945. Desta obra, os vols. VI e VII constituem o “Tratado de los Romances Viejos”, Partes I e II. Os vols. VIII e IX constituem “Los romances viejos”, Partes III e IV, sendo o VIII dedicado à reedição de Primavera y flor de romances de Wolf e Hofmann, de 1856, e o IX os “Apêndices y suplemento”. 77 Samuel G. Armistead [1978], El Romancero Judeo-español en el Archivo Menéndez Pidal (Catálogoíndice de romances y canciones), Madrid, Cátedra Seminario Menéndez Pidal, F.E.R.S., 3 vols., 1978 (Sigla CMP). 78 Cf. RPI, II, que aponta que “the relationship is genetic and close”. A bibliografia apontada é: Correspondências francesas: Beauquier, Charles, Chansons populaires recuillies en Franche-Comté, Paris, Emile Lechevalier – Ernest Leroux, 1894; Millien, Achille, Chants et Chansons (populaires), 3 vols., Paris: Ernest Leroux, 1906-1910; Puymaigre, Comte de (Théodore Joseph Boudet), Chants populaires recueillis dans le pays messin, 2d ed., 2 vols., Paris, Honoré Champion, 1881. Bibliografia indicada para as correspondências italianas: Bronzini, Giovanni B., La canzone epico-lirica nell’Italia centro-meridionale, 2 vols., Roma: Angelo Signorelli, 1956-1961. 31 A REVELAÇÃO DO SENTIDO História Externa Almeida Garrett, em 1843, chamava a este romance “preciosa relíquia da nossa poesia popular”, atribuindo-lhe origem portuguesa, por não aparecer nos romanceiros castelhanos nem na colecção de Ochoa79. Em 1909, põe Carolina Michaëlis a hipótese de ser Bernal Francês “obra portuguesa”, tal como outros, entre os quais, do nosso corpus, Gerineldos e Silvaninha80. Tal não pensava Teófilo Braga, que o afirmou vindo de Espanha e que, a partir do título das versões encontradas na ilha de S. Jorge (Dom Pedro de França e Dom Pedro Françoilo), insinua-lhe uma correlação provençal, citando também a existência de uma balada dinamarquesa, uma sueca e uma escocesa sobre o mesmo assunto 81 . No Romanceiro Geral Português82, Braga insere este romance nos Romances de Aventuras – Cyclo da Esposa infiel e inclui uma versão do Brasil e outra da Galiza. Em 1888, Constantino Nigra contestará também a afirmação de Garrett, afirmando a semelhança do romance com outras canções (do Piemonte, de Metz, de Veneza e da Catalunha) e baseia-se no nome “Bernal” para lhe situar a origem no Languedoque e o fundamento histórico nos amores do duque Bernardo de Septimania com a imperatriz Judit, no séc. IX83. Juan Bautista Avalle-Arce, que situa a génese deste romance na Andaluzia por volta de 1487-1488, atribui-lhe uma feição de “burla disimulada al desenfadado capitán” 79 Cf. Garrett [1983], I, p. 119. Cf. Carolina Michäelis de Vasconcelos [1980], Estudos sobre o Romanceiro Peninsular - Romances Velhos em Portugal (publicados na revista Cultura Española – Madrid, 1907-1909), Porto, Lello & Irmão, 1980, §178. 81 Teófilo Braga [1869-1982], Cantos Populares do Archipelago Açoriano, Porto, Livraria Nacional, 1869. Reedição Facsimilada, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1982, p. 408-409. 82 Teófilo Braga [1982], Romanceiro Geral Português, 3 vols., Lisboa, Vega, 1982. Edição facsimilada: Vol. I - Theophilo Braga [1906], Romanceiro Geral Portuguez. Romances heroicos, novellescos e de aventuras, segunda edição ampliada, Lisboa, Manuel Gomes, 1906 (sigla RGP I); Vol. II - Romanceiro Geral Portuguez. Romances de aventuras, históricos, lendários e sacros, segunda edição ampliada, Lisboa, Manuel Gomes, 1907 (sigla RGP II); Vol. III - Romanceiro Geral Portuguez. Romances com forma litteraria do século XV a XVIII, segunda edição ampliada, Lisboa, Manuel Gomes, 1909 (sigla RGP III). Cf. Vol. II, pp. 35-78. 83 Cf. RoH, I, p. 362. 80 32 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que terá sido a figura histórica Bernal Francês, o descendente de conversos cruel, avarento e detestado, que serviu os Reis Católicos e lutou contra os portugueses, os mouros de Granada, de Marrocos e de Almería e, ainda, contra os franceses no Rossilhão84. Esta opinião vem ao encontro da de Menéndez Pidal, que chama às canções francesas e italianas com correspondência com este romance “el proletário indocumentado frente al hidalgo de ejecutoria y de solar conocido”, considerando este, irrefutavelmente, nascido em solo castelhano85 e atribuindo o facto de não aparecer em recolecções até meados do século XVI à preferência dos editores pelos romances fragmentários e consequente menosprezo pelos “romances-conto”. Bernal Francês, contudo, era bem conhecido e Pidal encontra como prova disso o facto de Góngora, Calderón e Lope de Vega darem, em obras suas 86 , uma utilização burlesca ou humorística a alguns dos 84 Juan Baptista Avalle-Arce [2004], Bernal Francés y su romance, Madrid, Gredos, 1974, disponível em www.depts.washington.edu/hisprom/espanol, arquivo acedido na Internet em 17 de Junho de 2004, originalmente em Annuario de Estúdios Medievales, nr. 3, 1966, pp. 327-392. Parece-nos pouco clara esta associação e não se nos afigura que o romance oral tenha como sentido preponderante a citada “burla disimulada” a Bernal Francês. O que parece, isso sim, é ter-se efectuado uma certa transposição dos pouco simpáticos traços de personalidade do capitão dos Reis Católicos para a figura do marido, que é quem, de facto, se encontra a combater os mouros, o que é explícito em algumas versões. No romance, é este que se revela ardiloso e até cruel na sua vingança. Em contrapartida, embora ausente de cena, o amante/Bernal Francês é apresentado implicitamente como paradigma do amante caloroso, contrastando com a “crueldade” do marido. A ideia é reforçada quando, com a contaminação deste romance com A Aparição, frequente na tradição português, nos deparamos com um “Bernal Francês” que procura a amante e, desgostoso ao saber da sua morte, quer juntar-se-lhe na tumba. 85 Cf. RoH, I, pp. 361-364. 86 - Em Góngora: “- Quién es esse caballero // Que a mi puerta dijo: abrid? // - Caballero soy, señora, // Caballero de Moclin…”. Cf. Luís de Góngora [1597], Letrillas burlescas, em Antonio Chacón y Ponce de León (rec.), Obras de D. Luis de Góngora, Tomo II, 1597, edição digital disponível na Internet em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12695074335603728765657/ima0194.htm, arquivo acedido em 3 de Janeiro de 2010. - Em Calderón: “¿Qué me mandais? – Advertid // Que solo saber espero // Quién es esse caballero // Que a mis puertas dijo: Abrid.” . Cf. Calderón de la Barca [s.d., séc. XVII], Céfalo y Proicis (Fiesta que se representó a Sus Majestades día de carnestolendas, en el Salón Real de Palacio), edição digital a partir de Francisco Sanz, Novena parte de Comedias de Don Pedro Calderón de la Barca que nuevamente corregidas, publica Don Juan de Vera Tassis y Villarroel, Madrid, 1691, disponível na Internet em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12260401999002628532624/p0000001.htm#I_1_, arquivo acedido em 3 de Janeiro de 2010. - Em Lope de Vega: “Las três de la noche han dado, // Corazón y no dormis; // O vos no tenéis dineros // O alguien dice mal de mí”. Cf. Lope de Vega [1624], Amor secreto hasta zelos, em Iuan Gonçalez, a costa de Alonso Perez, Parte decinueue y la meior parte de las comedias de Lope de Vega Carpio..., Madrid, 1624, h. 23 v.-44, edição digital disponível na Internet em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/57915286805574273000080/032594_0001.pdf, arquivo acedido em 3 de Janeiro de 2010. 33 A REVELAÇÃO DO SENTIDO versos do romance, o que implica que os seus leitores ou espectadores também estariam familiarizados com ele87. Em 1828, Almeida Garrett, ao publicar Adozinda, em Londres, junta-lhe Bernal Francês e na carta a Duarte Lessa que lhe serve de Prefácio e ficou servindo de testemunho da sua reflexão estética, justifica a recriação literária a que procedeu, ao “arranjar e [a] vestir” alguns romances com os quais mais “engraçara”88. Deste modo, os romances Bernal Francês e Silvaninha (este último de que Garrett se serve como fundamento para a Adozinda) aparecem “reconstruídos e ornados com os enfeites singelos porém mais simétricos da moderna poesia romântica” na primeira parte do Romanceiro, sendo os “originais” da tradição oral incluídos na segunda parte89. Ainda que Garrett fale no “texto original” de Bernal Francês, ele próprio faz notar que este vai “muito mais correcto e melhorado agora pela colação das diversas versões que tenho obtido ”. O romance, como os outros do nosso corpus e como pode ser apreciado pelos quadros acima, facultados pelo RPI, apresenta-se distribuído pelo universo pan-hispânico, cantado ou recitado em contextos diversos. Joanne Purcell aponta, como “caso curioso”, tê-lo ouvido cantar em Ponta Delgada das Flores, com o nome de “Nicolae Françoilo”, pelos “foliões que acompanhavam os carros de bois enfeitados que distribuíam carne de casa em casa durante a Festa do Senhor Espírito Santo ”, 87 que o entoavam na toada característica Cf. RoH, I, p.160 e RoH II, pp. 407-409. Cf. Garrett [1983], I, p. 61. 89 Cf. Garrett [1983], II, p.137. Para o estudo da metodologia utilizada por Garrett para o tratamento que faz das versões orais, cf. Luís Augusto Costa Dias [1988], Fontes Inéditas do Romanceiro Português. Os Papelinhos de Garrett, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1988. 88 34 A REVELAÇÃO DO SENTIDO dessas Festas, sem perceber o que cantavam90. Um deles, o único que lhe conhecia a letra, referiu que os antigos o cantavam nessa ocasião, “mas nunca em presença da coroa”91. História Interna Durante a noite, uma mulher ouve alguém bater à sua porta e diz que só a abrirá a um tal Bernal Francês 92 . Um homem identifica-se assim e a mulher vai abrir, mas apaga-se-lhe a luz da candeia. Ao deitar-se com ele, a mulher estranha a atitude passiva do homem e diz-lhe, sucessivamente, que não tema os vários membros da família ou o marido. O homem vai-lhe respondendo que não teme a nenhum dos citados, revelando-se como o próprio marido e anuncia que a vai matar. Muitas versões continuam com o romance Aparição93 e esta contaminação94, com maior ou menor número de versos, aparenta tornar este romance parte integrante de Bernal Francês, dando-lhe continuidade. No episódio assim introduzido, Bernal Francês procura a amante, sendo informado que ela morreu. Demonstra o desejo de se lhe juntar na sepultura e a amada aparece-lhe, incorpórea, dizendo-lhe que viva ele, mas que a recorde, dando o seu nome à mulher com quem casar. Aconselha-o, ainda, a guardar as filhas que vier a ter, para que estas não tenham o seu destino. 90 Joanne B. Purcell [2002], recolha e estudo preliminar de, organização de Samuel G. Armistead, Cristina Carinhas, Pere Ferré e Manuel da Costa Fontes, transcrições musicais de Israel J. Katz, com a colaboração de Karen L. Olson, Romanceiro Tradicional das Ilhas dos Açores. I. Corvo e Flores, Angra do Heroísmo e Lisboa, Governo Regional dos Açores e Universidade Nova de Lisboa, 2002, p. 26. 91 Esta é a Coroa do Espírito Santo, “forma consagrada da representação da divindade”, nas palavras do antropólogo João Leal. Sobre estas festas e os rituais que as estruturam, cf., entre outros estudos, o de João Leal [1994], As Festas do Espírito Santo nos Açores. Um Estudo de Antropologia Social, Lisboa, D. Quixote, 1994. 92 Nas versões deste e dos outros romances, a onomástica varia bastante, pelo que os seus protagonistas serão aqui referidos sempre com o nome dos próprios romances, segundo identificação no RPI (Bernal Francês/Bernal Francês, Moriana/Veneno de Moriana, Silvana/Silvana, Delgadinha/Delgadinha e Gerinaldo/Gerinaldo), sejam quais forem os que lhes são dados nas versões. 93 O romance A Aparição está identificado em Durán, Romancero General, nr. 292; em ASW nas pp. 47, 96, 300; no RPI J2; no IGR 0168 (Aparición de la enamorada muerta) e no CMP J2. 94 A junção dos dois romances é frequente na tradição portuguesa. Teófilo Braga, devido à sua grande difusão, supunha ter havido uma “desmembração” do Bernal Francês em duas partes distintas, que havia “observado” no Romancero General de Durán: a primeira até à degolação da adúltera e a segunda quando o amante visita a amada na sepultura. Cf. RGP III, pp. 509-517. 35 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1.2. VENENO DE MORIANA Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica) (-) não presente na publicação Índices e catálogos Localização na publicação 1849- Romancero General, Durán (-) 1856 – Primav. (-) 1899 - ASW pp. 224-225 1906 - Catálogo del romancero Nr. 86 judío-español , Menéndez Pidal 1978 - CMP NI.”El Veneno de Moriana” 1958-1960 – VRP (I e II) II- XL “Veneno de Moriana” - Versões 533-548 1982-1988 - IGR 0172: Veneno de Moriana 1987-1988 – GRPP (I e II) I – N. Mulheres Matadoras - Versões 262-275 1997 - RPI N1. VENENO DE MORIANA (ESTRÓF.) 2000/2001/2002 - RPTOM III: O VENENO DE MORIANA, versões 9991021 2000 - BRPTOM LXV: O VENENO DE MORIANA, pp. 75-77 Outros: Pl de Praga I, 4 Correspondências Pan-Europeias Segundo o RPI, II, este romance não tem correspondência pan-europeia. Carolina Michaëlis, pelo contrário, havia-lhe encontrado um fundo comum compreendendo quase toda a Europa, “- nacionalidades arianas e turanianas” e cita os ”nomes com que os eruditos costumam designá-lo, atendendo aos typos mais famosos, conhecidos de longa data ”, referindo a balada escocesa Edward, em Reliques of the Ancient English Poetry, por Percy, a sueca Der Knab im Rosenhain (“germanizada por Mohnicke em Volkslieder der Schweden, Berlin, 1830”), a alemã Die Schlangenköchin (Wunderhorn, 16) e as “representantes turanianas”, de entre as quais a “finnica, admiravelmente imitada pelo poeta inglez Swinburne no seu The Bloody 36 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Son (Poems and Ballads. Lond., 1885; o original publicou-se em Finnica Velyusmaaja, trad. por Schott. A. A. L. V. iV, 134)” e as da Transilvania (“dos Székler de Siebenbürgen… ”) 95 . História Externa Menéndez Pidal apresenta este romance como exemplo do facto de as colecções antigas não tomarem em consideração as composições cuja métrica não era a de “octossílabos” monórrimos. Dele há notícia através de um folheto de cordel que se encontra na Universidade de Praga, provavelmente impresso por volta de 1560, contendo a Ensalada de muchos romances viejos96. Estas “ensaladas” compunham-se de versos soltos de vários romances e, numa delas, encontravam-se os versos “Qué me distes, Moriana, // qué me distes en el vino”. O romance é registado na tradição oral moderna em diversas assonâncias, segundo as regiões, o que Pidal atribui à supressão de uma ou outra das assonâncias da repetição primitiva paralelística, conhecida através da inclusão de alguns versos numa comédia espanhola de cerca de 1620-3097. A comédia, La morica garrida, é de Juan Bautista de Villegas e, nela, um cavaleiro embriagado diz: “Moriana, Moriana, qué me diste en este vino? que por las riendas le tengo y no veo al mi rocino! Moriana, en el cercado, qué me diste en este trago?, que por las riendas le tengo y no veo al mi cavallo!...” 95 Referimo-nos, aqui, ao comentário de D. Carolina, a pp. 216-218, sobre o romance VII, D. Ausenia, do Romanceiro Portuguez, em estudo no qual faz a crítica de dois romanceiros então publicados, um deles por A. W. Munthe, Folkpoesi fran Asturien, 1. Ur SpraKvetenskapliga Sällskapets i Upsala förhandlinger, Upsala, Universitets Arsskrift, 1888 e, o outro, de Leite de Vasconcellos, Romanceiro Portuguez, Nr. 121 da Bibliotheca do Povo, Lisboa, 1886. Cf. Carolina Michäelis de Vasconcelos [18901892], “Estudos sobre o Romanceiro Peninsular”, Revista Lusitana, II, Livraria Portuense, pp. 156-179, 193-240. 96 RoH II, Cap. XIII: 17. 97 Cf. RoH II, Cap. XIII:17. 37 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em Portugal, a sua antiguidade é atestada pela menção “... e Muliana Muliana” pela Ama à Feiticeira, que solicitara aquela a dizer o que iria cantar a Cismena, na comédia Rubena de Gil Vicente (1521) 98. O romance terá sido cedo transportado para o Brasil, tendo sido recolhida uma versão (Juliana e D. Jorge), que Celso de Magalhães publica em 1873. Em 1883, nos Cantos Populares de Sílvio Romero99, Teófilo Braga inclui uma versão cearense e outra da Ilha de São Miguel, a primeira versão portuguesa, portanto, a ser divulgada. Leite de Vasconcellos, em 1886 100 , dá a conhecer um fragmento do romance – D. Ausênia. Teófilo Braga, que, em 1887, dera o romance como inexistente em Portugal 101 aquando da sua colheita no Ceará e em Pernambuco, só mais tarde vindo a ser encontrado por Arruda Furtado na Ilha de S. Miguel, publica estas versões no Romanceiro Geral Portuguez (RGP I). 98 Ver José Camões [2002], direcção científica de, As Obras de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2002 (Rubena, Vol. I, , pp. 367-418). Tão breve referência, por si só, não prova que se trate de Veneno de Moriana. No Vol. V desta obra, a páginas 35, o teor da nota à linha 626 indica duas hipóteses possíveis para a procedência de referência “... e Muliana Muliana”: “Romance do ciclo de Moriana y el moro Gálván que começa A pie de una verde haya \ estava el moro Gálvan, ou romance de Veneno de Moriana”. Cf. Camões [2002], Vol. V, otas aos textos textos complementares s notas ndice de iguras hist ricas e mitol gicas ndice de personagens gloss rio e i liogra ia de il icente. É o contexto de Rubena que torna possível a associação com Veneno de Moriana, cujo referente temático é a vingança motivada pela traição e ela própria é considerada feiticeira, enquanto o outro romance, Moriana y Galván (IGR 0312), trata do amor fiel da protagonista aprisionada pelo mouro e se comove vendo ao longe o seu amado. Teresa Araújo, considera que os outros romances a que a Ama alude (“em Paris estaa Don’Alda”, vamonos dixo mi tio”, “levantey me hum dia/ lunes de manhana”) representam em Rubena uma “cadeia de significados”, na qual “a interferência de ‘Muliana’ surge como expressão burlesca de uma mulher que manifesta a sua opinião frente à solução encontrada por Rubena e a crítica àquele que não tinha, ainda, sido atingido satiricamente na sua acção, o jovem clérigo. ‘Muliana’ funciona, assim, como acusação da personagem masculina através da alusão indirecta e irónica ao amante traidor de Muliana, o qual, embora não seja fiel ao amor da vingadora, não assume a atitude do par de Rubena, ‘hallo de preñada, el moço ahuyo’. Mas também não é possível deixar de reconhecer, na evocação, um paralelo, em imagem invertida, entre a reacção de cada uma das figuras traídas. Enquanto uma deseja a sua própria morte, a outra castiga mortalmente o amante”. Cf. Teresa Araújo [2004], “O sentido de algumas evocações vicentinas a romances velhos”, em Portugal e Espanha: Diálogos e Reflexos Literários, s.l., Centro de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade do Algarve, Instituto de Estudos sobre o Romanceiro Velho e Tradicional, 2004, pp. 11-65. 99 Sylvio Romero [1883], Cantos Populares do Brazil, acompanhados de Introducção e Notas Comparativas por Theophilo Braga, II, Lisboa, Nova Livraria Internacional-Editora, 1883. 100 Leite de Vasconcellos [1886], Romanceiro Portuguez, Biblioteca do Povo e das Escolas, nº 121, Lisboa, David Corazzi, 1886. 101 Cf. Teófilo Braga [1887], “Ampliações ao romanceiro das ilhas dos Açores”, Revista Lusitana, Vol. I, Porto, Livraria Portuense, 1888-1889, 1887, pp. 99-116. 38 A REVELAÇÃO DO SENTIDO História interna Este romance apresenta dois tipos de estrutura, ambos versando o mesmo incidente básico, com algumas diferenças102. Moriana oferece um copo de vinho a um cavaleiro que dela se acerca (após confirmar que ele vai casar com outra). O cavaleiro, ao bebê-lo, deixa de ver claro e Moriana informa-o (ou não) que foi envenenado. 1.3. SILVANA e DELGADINHA Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica) (-) não presente na publicação Índices e catálogos 1849- Rom. General, Localização na publicação Localização na publicação SILVANA DELGADINHA (-) (-) 1856 – Primav. (-) (-) 1899 - ASW (-) pp. 247-250; 280-287 1978 - CMP P1. “Silvana”; P2. “Delgadina”; Durán Vide CMP, II, 132 e CRHH Vide CMP, II, 137: 51: “Paseábase Silvana / [por “Estábase la Delgadita; un corral que tenía]” 1958-1960 – VRP (I e II) Delgadina, Delgadina”; Vide também CRHH, 33 ab; II – XXXVII. DELGADINHA - versões 479-514 (não é feita a separação de Silvana e Delgadinha) 1982-1988 - IGR 0005 Silvana 0075 Delgadina 1987-1988 – GRPP (I e II) I - P. Incesto. XXXV. DELGADINHA - Versões 310-344 (não é feita a separação de Silvana e Delgadinha) 1997 - RPI P1. SILVANA (Í-A) 2000/2001/2002 - III: RPTOM 1124-1134 102 SILVANA, P2. DELGADINHA (Á-A) versões III: DELGADINHA, versões 1135-1200 Desenvolver-se-á esta questão no Capítulo III. A organização da narrativa. 39 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2000 - BRPTOM LXXIII.SILVANA, p. 84 LXXIV. DELGADINHA, pp. 84-87 Correspondências Pan-Europeias Segundo o RPI, II, estes dois romances não têm correspondência pan-europeia. História Externa Os romances que tratam de incestos não foram da preferência dos editores antigos, presumivelmente por uma questão de moralidade. É na tradição sefardita oriental que se pode encontrar a mais antiga referência a Delgadinha, em um himnário hebreu de 1555, no qual aparece o incipit “Estábase la Delgadita” e a Silvana em um outro, de 1587, que inclui a melodia para cantar “Paseábase Silvana”103. Diz Carolina Michaëlis104 que o romance Silvaninha já estava divulgado em 1640 e que se lhe não encontra nenhuma redacção castelhana antiga. Encontra-lhe, isso sim, menção no Auto do Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de Melo, pelo verso inicial, “à portuguesa”, “Passeava-se Silvana por um corredor um dia”, refutando a afirmação de Menéndez y Pelayo quanto à possibilidade de aquele autor estar a citar um texto castelhano e sublinhando que já Almeida Garrett havia elucidado este ponto. “Da Silvana nasceu a Adozinda”, declara Garrett, que escolheu “esta xácara para provar nela a mão”, irritado pelas dificuldades de “traduzir” tais antiguidades “para língua e poesia de hoje”105. Quando posteriormente, em 1851, o Romanceiro é editado, Garrett 103 Paloma Díaz-Mas [2001], edição de, Romancero, s.l., Editorial Crítica, 2001, pp. 281-285. Vasconcelos [1980], pp. 193-195. 105 Cf. Garrett [1983], II, pp. 125-132. Sobre os procedimentos de “reconstrução” e “restauro” por Garrett, cf. Dias [1988] e também João David Pinto-Correia [2000], “Almeida Garrett e a literatura tradicional portuguesa”, em José da Costa Miranda [2000], org. de, Almeida Garrett. Um Breve Encontro, Caldas da Rainha, Livraria Nova Galáxia, 2000, pp. 37- 53. Sobre a recriação por Garrett, fará Gianluca Miraglia um estudo segundo o qual a memória literária daquele “desempenha um papel, sem dúvida decisivo e importante”. O autor refere a conhecida carta a Duarte Lessa, na qual Garrett compara a protagonista do romance com Mirra, que alimenta uma paixão incestuosa pelo pai. Garrett teria sido influenciado pela história narrada por Ovídio no Liber Decimus e, também, pela figura de Mirra, cujo segredo é a paixão pelo pai que a leva à morte, na tragédia de Vittorio Alfieri, escrita em 1786. Cf. Gianluca Miraglia [2000], 104 40 A REVELAÇÃO DO SENTIDO inclui versão diferente da que acompanhara a Adozinda, em 1828, agora, ainda nas suas palavras, “melhor restituído o texto com o auxílio de outras cópias que me mandaram da Beira e do Ribatejo”. Teófilo Braga inclui Silvana nos Romances de Aventura – Cyclo da Mulher Perseguida (Vol. I) e, nas notas sobre o romance (Vol. III, pp. 453-465), não chegando claramente a contradizer a opinião de Garrett quanto às suas origens portuguesas, diz que se encontra “porém” nas Astúrias, com o título de Delgadina. Encontra-lhe também similitudes com o conto de Pérrault, Peau d’Âne, e com a lenda de Mathilde, filha perseguida pelo contranatural amor do pai, assim como o foi santa Difna106. História interna Nestes dois romances a situação inicial, a de um pai que se enamora da filha e lhe propõe uma relação incestuosa, é, em ambos, muito semelhante, pelo que facilmente se contaminam, o que é muito frequente na tradição portuguesa107. “A Silvaninha torna-se Adozinda: modelos literários da personagem criada por Garrett”, em José da Costa Miranda, organização de, Almeida Garrett. Um Breve Encontro, Caldas da Rainha, Livraria Nova Galáxia, 2000, pp. 55-64. 106 O encerramento numa torre por um pai antinaturalmente cioso da filha é sofrido também por Santa Bárbara, pelo que a torre é atributo desta santa. Assim figura no brasão da freguesia do mesmo nome, na Lourinhã. (cf. http://www.lourinha.oestedigital.pt, arquivo acedido na Internet em 23 de Fevereiro de 2007). Outras santas sofreram dos pais os mais terríveis tormentos, como Santa Catarina, metida numa roda de navalhas, no romance devoto tradicional Santa Catarina, IGR 0126. Vejam-se, igualmente, as vidas das Santas Engrácia, Quitéria, Olaia, Apolónia e Susana, em Maria Clara de Almeida Lucas [1988], Ho Flos Sanctorum em Lingoage: Os Santos Extravagantes, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988. O castigo, nesses casos, é infligido às jovens por se negarem à idolatria, mas liga-se também, implicitamente, à defesa da sua virgindade, na resistência que oferecem ao casamento; nestes casos, note-se, não há uma perseguição de cariz incestuoso, como ocorre em certos contos tradicionais, a que adiante nos referiremos, mas o casamento com um pagão é a razão explícita da resistência das mártires. Também em Delgadinha há uma versão em que a informante declara que o pai quer que a filha case com um mouro (e que é uma variação importante ao sentido do romance, anulando-lhe o cariz incestuoso); não se sabe se a resistência da jovem se deve ao facto de o noivo que lhe é imposto ser um “pagão”, mas o facto é que tal a torna “santa”, na indicação didascálica da informante que precede os versos do castigo imposto (“Estava Santa Albina”…..). Cf. versão D/86 Fontes (1980) 69-70, em Anexos. Grupo A. 107 A questão da distinção entre os dois romances será aprofundada no Capítulo III - A organização da narrativa, da Parte I. 41 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Silvana Em Silvana, à proposta incestuosa do pai, a filha começa por dizer que aceitaria se não temesse o castigo divino, para logo se queixar à mãe dos avanços daquele. A mãe manda a filha trocar de cama consigo. O pai censura a mulher que julga ser a sua filha por não a encontrar virgem e a mãe revela a sua identidade. O pai ora amaldiçoa a filha por o ter descoberto ora a bendiz (ou à mulher) por o ter livrado de tamanho pecado. Delgadinha Em Delgadinha, um pai de várias filhas propõe a uma delas uma relação incestuosa. A filha recusa terminantemente e é encerrada, sofrendo o tormento da sede. A jovem vai pedindo água aos diversos familiares que vai avistando das janelas, mas todos lha negam. Por fim, pede água ao pai, prometendo ceder-lhe e este manda levá-la imediatamente, mas, quando chegam, já Delgadinha está morta. 1.4. GERINALDO Identificação nos índices e catálogos (por ordem cronológica) Índices e catálogos - 1537 - Pl. s. Desesperaciones de amor … Localização na publicação 4º, 4 folhas, letra gótica, R2254, Madrid, Biblioteca Incipit dos folhetos “Leuanto se Girineldos quel rey dexaua dormido” Nacional - 1551 – Tercera parte de la Silva Fol. lxxxxvj de vários romances108 - 1849, reed. do Pl. S. de 1537 “Leuantose Girineldos, el rey dexaua dormido” - I, BAE X, pp. 175-176 “Levantóse Gerineldo que el Rey dejara d.” - II, pp. 96-97, Nr. 161 (as modificações de Durán passam à Primav.) em Romancero General, Durán - 1856, reed. do Rom. General em Primav. 108 Pidal crê que a Silva teria copiado o folheto de outra edição melhor que a de 1537. Cf. Ramón Menéndez Pidal [1973], Estudios Sobre el Romancero, Vol. XI de Obras Completas, Madrid, Espasa Calpe, 1973, pp. 224-256. 42 A REVELAÇÃO DO SENTIDO s.a., s.l. Pl. s. Paradeiro desconhecido (séc. XVI, segundo Durán) - 1849, descrito e reed. em Romancero General, Durán - I, BAE X, pp. 176-177 - 1856, tomado de Durán em - II, pp. 97-101, nr. 161a “- Gerineldo, Gerineldo, el mi page más querido” Primav. 1899 - ASW p.: 63;122;170-173;275-278 1978 - CMP Q1 1958-1960 -VRP XVIII “Gerinaldo” I - Versões 257-274; II - 1004 1982-1988 - IGR 0023: Gerineldo 1987-1988 - GRPP I – Q. Mulheres Sedutoras, versões 345-364 1997 - RPI Q1 : GERINALDO (Í-0) 2000/2001/2002 - RPTOM III: GERINALDO, versões 1203-1249 2000 - BRPTOM LXXV. GERINALDO, pp. 8890 Correspondências Pan-Europeias, segundo RPI: Em Nota, diz o RPI que “The similarities to Gerineldo are very striking, but, even so, are probably coincidental; the problem certainly deserves further study”, indicando as seguintes correspondências: Alemã: Spielmannsohn: DVM 62; Hozapfel D 28109. História Externa Gerinaldo foi publicado em cordel, estando o folheto mais antigo, que finaliza com a descoberta pelos dois amantes da espada do rei metida entre eles, datado de 109 Bibliografia indicada: DVM: John Meyer, Erich Seeman, Walter Wiora, H. Siuts, Jürgen Dittman, Otto Holzapfel, et alii, Deutshe Volkslieder mit ihren Melodien. Deutsche Volkslieder: Balladen, 9 vols., Berlin – Leipzig/Freiburg im Breisgau: Walter de Gruyter/Deutshes Volksliederarchiev, 1935-1992; Otto Holzapfel, “Balladeninindex,” in DVM, X (“a publicar”). 43 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1537110. O segundo111, cujo paradeiro se desconhece, é colocado no século XVI por Agustín Durán, que o descreve no seu Romancero General, I, BAE X, p. lxxiv, em 1849, versão que conta a fuga dos dois amantes para a Tartária. Diz Garrett estar convicto que o romance veio de França, por não se encontrar nas colecções castelhanas (“Estou que nos veio de França este romance: não se encontra nas colecções castelhanas”) e acrescenta “e entre nós é dos que andam mais desfigurados e corruptos. Eu tive de reunir vários fragmentos para o restituir”112. A reconstituição que faz, e que menciona a região de onde provêem os “fragmentos”, finaliza com o encerramento do pajem numa torre, o perdão pelo seu belo cantar e a promessa de casamento com a infanta113. Garrett considera que o romance apresenta “diferenças de acção nas variantes”, mas se aproxima da tradição114, de acordo com o extracto do Chronicon Laurishamense 110 Desesperaciones de amor que hizo vn penado galán y vna glosa que dize salgan las palabras mias y vna quexa contra el amor y vnas exclamaciones hechas por vn Cauallero filosofo de Cupido; y las coplas de dama hermosa ques cos y cosa. Foi objecto, como se vê no quadro acima, de reedições, com algumas modificações em Durán, que passam a Primav. e a ASW. A versão com ”Desecha” acrescentada ao final é reproduzida na Tercera parte de la Silva de 1551. Cf. Catalán, Cid [1975, 1976], pp. 25-27 de *. 111 Este es vn romance de Gerineldos, el page del Rey, nueuamente compuesto, também reeditado em Durán, em Primav., em ASW e outros, com variações e refundições. Cf. Catalán, Cid [1975, 1976], pp. 28-43 de *. 112 Garrett [1983], I, p. 152. 113 Trata-se da contaminação com outros romances, assunto que abordaremos na Parte II, Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado. 114 Diz a lenda que o jovem secretário de Carlos Magno e a filha deste se apaixonaram e se encontravam em segredo no quarto da princesa, castamente, trocando palavras de amor. Uma noite, quando Eginhard se preparava para sair, um manto de neve cobria o pátio e, para que a marca dos seus pés não fosse descoberta, a princesa carregou-o às costas. Infelizmente, Carlos Magno não conseguia dormir e encontrava-se à janela, descobrindo o estratagema, com admiração e fúria, que consegue conter. Na manhã seguinte, reunindo os conselheiros, pergunta que destino se há-de dar ao ofensor da honra real. Entre aqueles encontra-se Eginhard, que responde que o castigo para tal crime deve ser a morte. Espantado, e face às súplicas da filha, Carlos Magno decide expulsar os dois do palácio. Alguns anos mais tarde, o imperador, que se perdera na floresta durante uma caçada, vai ter a uma pequena cabana, onde encontra um casal com uma filha, chamada Emma. Reconhecem-se mutuamente e Carlos Magno perdoa e abençoa Eginhard e a filha amada. Cf. Wilhelm Ruland, Legends of the Rhine, Cologne, Hoursch & Bechstedt, Publishers [ca. 1906], em www.Kellscraft.com/LegensRhine/legendsrhine054.html, arquivo acedido na Internet em 24 de Novembro de 2004. Na verdade, Eginhard, ou Einhard, nascido c. 770 e falecido em 840, gozou do favor de Carlos Magno e de Luis I, sendo tutor do filho deste, Lotário. Encarregou-se da construção dos palácios de Aachen e Ingelheim, bem como de diversas negociações com os Saxões e junto do papa. O seu mais importante trabalho como historiador foi a Vita Karoli Magni, que baseou nos vinte e três anos que passou ao serviço do imperador. Após a morte da sua mulher Emma, irmã do bispo Bernhar de Worms, passou o resto da vida como abade beneditino. O túmulo dos dois encontra-se na pequena igreja de Ingelheim. (Dados sobre Einhard ou Eginhard retirados da Catholic Encyclopedia e da Columbia Encyclopedia, respectivamente em www.knight.org/advent/cathen/05366b.htm e em www.encyclopedia.com/thm/E/Einhard.asp, ambos os arquivos acedidos em 22 de Novembro de 2004). 44 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de Jacob Grimm115. Nas Notas a Reginaldo, refere Garrett diversas correspondências em baladas e lendas do tema dos amores de uma mulher de condição social superior ao do amante e, especificamente, o motivo da espada colocada entre os dois, a que nos referiremos na Parte II, no Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido. No Romanceiro Geral Português, Teófilo Braga inclui-o no Cyclo Carolíngio (Matéria de França) 116 , referindo que, “na Beira, segundo descobriu primeiro Garrett, chamam-lhe Eginaldo, que é a tradução mais próxima de Eginhart” 117 . Como de origem carolíngia o considerou igualmente Menéndez Pelayo, no Capítulo XXXIX. Romances Caballerescos del Ciclo Carolingio, do “Tratado de los Romances Viejos, II”, dizendo: “La leyenda que el poeta castellano desarrolló tan ingeniosamente es, sin duda, de origen carolingio, y Depping fué el primero en señalarle. Trátase de los supuestos amores entre Emma, hija de Carlomagno, y Eginhardo, futuro cronista de aquel emperador: historia fabulosa referida en algunas crónicas alemanas, y atribuída por Guillermo de Malmesbury al secretario y a la hermana del emperador Enrique V. Muy conocido es, gracias a Jacobo Grimm, el relato de la Crónica del monasterio de Lauresheim (Chronicon Laurishamense), que al parecer es la más antigua que consigna este hecho.” 118 Também segundo Menéndez Pidal, Gerinaldo poderá ter fundamento nos pretensos amores de Eginardo, secretário e camareiro de Carlos Magno, com a filha deste, Emma119. Pidal divide as versões da tradição oral moderna de Gerinaldo em dois tipos, relacionados com o detalhe do despertar do rei, - com sonho pressagiador ou Sobre a Vita Karoli Magni e outros documentos que, segundo João David Pinto-Correia, são responsáveis pela elaboração da “história literária” de Carlos Magno, cf. o Capítulo I. A “História Poética de Carlos Magno”: da História à Lenda e à Literatura, de RCTOP, Vol. I. 115 Segundo Teófilo Braga (RGP III, p. 387), o episódio relatado “aproxima-se o mais possível da tradição”, exceptuando algumas circunstâncias como o episódio da neve, talvez por esta ser menos comum em terras hispânicas do que nas renanas. Já em relação à lenda, haverá menor correspondência, pois os amores de Gerinaldo e da infanta, no romance tradicional, não são tão inocentes como os apresentados em Legends of the Rhine. Manuel Alvar aproxima Gerinaldo da história de Amis et Amiles, através dos motivos do enamoramento da princesa, dos protestos do camareiro e do temor provocado pelo rei. Cf. Manuel Alvar [1968], introd. e selecção, El Romancero, Madrid, Editorial Magisterio Español, 1968, pp. 23-24. 116 Cf. RGP I, Notas, pp.177-206. 117 Cf. RGP III, pp. 386-395. 118 Cf. Pelayo [1945]. 119 Cf. Ramón Menéndez Pidal [2002], Flor Nueva de Romances Viejos, 48ª ed., Madrid, Espasa Calpe, 2002. 45 A REVELAÇÃO DO SENTIDO natural - correspondendo a duas grandes regiões e aos romances da tradição antiga e sublinhando que a variante que domina modernamente na região na qual se inclui Portugal seria, provavelmente, mais arcaica que a do folheto a que corresponde. Despertar do Rei: Despertar com sonho pressagiador Despertar natural (P. s. de 1537 e terceira parte da Silva de romances, Saragoça, 1551) (Pl. s. s.a., s.l.) - Portugal (com Madeira e Açores) e Norte - Sul, Sudeste e Centro da Península de Espanha Das duzentas e sete versões do nosso corpus, em setenta e oito (37,68%) o rei tem um sonho de presságio, sendo a esmagadora maioria (sessenta e uma) do distrito de Bragança, uma com indicação “Trás-os-Montes e Alto Douro”, uma do distrito de Vila Real, uma do Porto, quatro do distrito de Viseu, quatro do distrito da Guarda, duas da Madeira e quatro de origem desconhecida120. O romance foi objecto de uma edição organizada por Diego Catalán, com as versões ordenadas segundo critérios de tempo e espaço, incluindo os três folhetos (de 1537, da Silva e s.a.), as variações conhecidas deste último (Canción nueva del Gerineldo) e as suas refundições em folhetos, no séc. XIX121. Na obra, são editados separadamente os romances Gerineldo e Gerineldo y la condesita e distinguidos seis tipos principais do romance autónomo Gerineldo segundo as regiões em que se radicam (tipo do Noroeste, tipo Português, no qual se incluem subtipos distintos, tipos 120 Ver Anexos, Grupo B. B.6. Gerinaldo – Versões do sonho do rei. Ver, sobre um deles, Jerineldos, o artigo de Luis Suárez Ávila, que lhe analisa a estrutura narrativa (começa com Conde Niño, segue com La Condesita e, depois, com Gerineldo, com a particularidade de inverter a ordem do chamado “romance doble”, que começa com Gerineldo e segue com La condesita e, em particular, o facto de, pela primeira vez no âmbito de um folheto de cordel, surgir o desenlace meridional, tomado da tradição, do juramento de não casar, feito à Virgen de la Estrella. Cf. Luis Suárez Ávila [2006], “Pliegos de cordel, Bernardo Núñez, impresor popular y su Gerineldo de El Puerto de Santa María”, Culturas Populares. Revista Electrónica 3 (septiembre-diciembre 2006), 39 pp., disponível na Internet em http://www.culturaspopulares.org/textos3/articulos/suarez.pdf, arquivo acedido em 17 de Maio de 2011. 121 46 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Asturiano, Cantábrico, Castelhano velho e Catalão e, no Sudeste, o tipo Meridional), desligando desta divisão as versões judeo-espanholas do Oriente e Marrocos, as das Canárias e as americanas122. No Brasil, a primeira notícia deste romance deve-se a Celso de Magalhães, em 1873 123 , conforme Doralice Alcoforado, que anota que a edição foi organizada por Domingos Vieira Silva “a partir da recolha de artigos publicados em jornais”: “[N]o Brasil, a primeira referência a esse romance que se tem conhecimento é a de Celso Magalhães no seu livro A Poesia Popular Brasileira, editado em 1966, com uma versão fragmentária de apenas 04 versos, recolhida no Maranhão”. A autora destaca ainda as sequências temáticas de uma versão baiana, que compara com outras versões, brasileiras e ibéricas, e compara os respectivos “esquemas narrativos”, dizendo que “detectaremos as permanências e as prováveis recriações do romance Gerinaldo no Brasil.” História Interna A infanta pergunta a Gerinaldo se quer dormir com ela. Este exprime as suas dúvidas quanto à seriedade da proposta, dada a sua condição social inferior, mas acaba por aceitar e vai ter ao quarto da infanta. Durante a noite, o rei desperta e procura Gerinaldo, que encontra deitado com a filha. Não se decide a matar o seu pajem, que criou desde pequeno, nem a infanta, por falta de outro herdeiro, optando por sair, deixando a espada entre os amantes adormecidos. Estes, ao acordar, vêem a espada e deliberam sobre a atitude a tomar. Gerinaldo sai e, ao encontrar o rei, que lhe pergunta de onde vem, tenta enganá-lo. O rei não se deixa ludibriar, mas decide casar o pajem com a infanta. 122 Catalán, Cid [1975, 1976]. Cf. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado [1992], “O Romance Ibérico no Brasil: Tradição e recriação” em Manuel Viegas Guerreiro, org., Literatura Popular Portuguesa, s.l., ACARTE, 1992, pp. 43-64. 123 47 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2. Identificação de outros romances relacionados com os do corpus No decorrer do trabalho referir-nos-emos a outros romances que se relacionam com os do corpus, seja por analogia temática, seja porque ocorre contaminação, ou por outras razões. Deles fazemos, desde já, a identificação que lhes é atribuída pelo RPI e pelo IGR124: - A Aparição (Aparición de la enamorada muerta) - RPI J1; IGR 0168 - A Filha Desterrada (Nave guiada por la Virgen) - RPI J7; IGR 0108. - A Morte do Rei D. Fernando (Muerte del rey Fernando) - RPI A7; IGR 0009. - Afuera, afuera Rodrigo - RPI A10, A11; IGR 0021. - Bodas de sangue (Bodas de sangre) - RPI 09; IGR 0440. - Claralinda (Albaniña) - RPI M1; IGR 023. - Conde Claros em hábito de frade (Conde Claros en hábito de fraile) - RPI B4; IGR 0159 (correspondência pan-europeia: Szégyenbe esett lány). - Conde Claros preso (Conde Claros preso) – RPI B2; B3; IGR 0366. - Conde da Alemanha (Conde Alemán)- RPI M9; IGR 0095. - Conde Sol (La Condesita) - RPI I8; IGR 0110. - Floresvento - RPI B10; IGR 0343. - Frei João (Ronda a una mujer malcasada) - RPI M3; IGR 0167. - Não me enterrem em sagrado - RPI K5; IGR 0101. - O Conde Alarcos (Conde Alarcos) - RPI L1; IGR 0503. - O Conde Ninho (Conde Niño) - RPI J1; IGR: 0049 (correspondência pan-europeia: Fior di tomba, Kate Kádár). - O Orfão (Canción del Huérfano) - RPI H8; IGR 0092. 124 Entre as bases de dados do Proyecto del Romancero pan-hispánico, encontra-se a disponibilização dos números de referência utilizados nos principais catálogos e índices dos séc. XIX-XX (Primavera, Goyri, Moñino, Cat.-Índice del Rº Judeo-Esp. de Armistead, Costa Fontes, González, etc.). Ver Proyecto del Romancero pan-hispánico. 48 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - O Prisioneiro (El prisionero) - RPI H7; IGR: 0078 (correspondência pan-europeia: Mois de mai, Voici le temps et la saison). - O Quintado (El Quintado) - RPI J4 ; IGR 0176 (correspondência pan-europeia: Pierre de reno le et s’amie). - Queixas de D. Urraca (Morir vos queredes, padre) - RPI A8; IGR 0004. - Quem dever a honra alheia - RPI K6; IGR 2863. - Santa Iria - RPI U32; IGR 0173. 49 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO II PARA UMA PROCURA DO SENTIDO Apresentados os romances que nos servirão de corpus de trabalho e considerando que um estudo da significação narrativo-dramática dos romances orais tradicionais que tem como objectivo central uma revelação do sentido implicará, logicamente, que uma “procura” prévia seja efectuada e devendo esta ser empreendida em diversos níveis de actuação, revemos, neste segundo capítulo, os factores mais gerais que enformam essa procura. 1. Características dos romances orais tradicionais O primeiro destes factores a considerar prende-se com a compreensão da tipologia do pensamento e da expressão nas culturas orais, uma vez que os romances têm vindo a ser conservados e transmitidos, em especial, nas comunidades rurais menos alfabetizadas e mais afastadas dos centros urbanos125. Segundo Walter Ong, o pensamento e a expressão, nas culturas predominantemente orais, são de base mnemónica e formular e tendem a ser “mais aditivos do que subordinativos, mais agregativos do que analíticos, redundantes ou ‘copiosos’, conservadores ou tradicionalistas, próximos ao cotidiano da vida humana, de tom agonístico, mais empáticos e participativos do que objectivamente distanciados, homeostáticos, mais situacionais do que abstratos”126. 125 Há que distinguir entre o que se entende geralmente por “culturas orais”, que desconhecem a escrita, e culturas em que esta se conhece, mas há uma fraca alfabetização. Os efeitos e as implicações da oralidade e da literacia sobre pensamento e sociedade têm vindo a ser estudados por numerosos autores, em diversas perspectivas, de que destacamos, apenas, a análise de dezasseis conceituados estudiosos sobre cultura, cognição e formas de discurso. Ver David R. Olson, Nancy Torrance [1991], editores, Literacy and Orality, Cambridge-New York-Melbourne, Cambridge University Press, 1991. 126 Ong [1998], pp. 47-62. 51 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Já Paulo Raposo, que cita os estudos de Ong e de outros, como J. Goody, sobre os géneros artísticos orais, diz não ser “revelável e contrastável” a linha de demarcação entre “as técnicas oratórias dos grupos tradicionais e o mundo da ‘arte erudita’” pela ausência de características como “o distanciamento ou a referencialidade, a abstracção ou a contextualização, a descontinuidade ou as ‘quebras de raciocínios’, a criação ou o mimetismo, a inventabilidade ou a conservação, ou ainda pelas diferenças de ritmos e de cadências mnenónicas, etc”, rejeitando, deste modo, a polarização oralidade/cultura escrita ou letrada e postulando que os géneros orais “convidam à interpretação e à reflexão, fixam locuções ou ideias, revelam metáforas e ambiguidades, atributos usualmente imputados à lógica da escrita ou à razão gráfica…”127. Parece-nos, também, de repensar extremismos quanto a uma rigidez de fronteiras entre oralidade e escrita e as características atribuídas a cada uma. No entanto, reconhecemos que as características da expressão nas culturas orais apontadas por aqueles autores se encontram também nos romances, enquanto prática linguísticodiscursiva das culturas em que a oralidade predomina. Os romances englobam-se no conjunto da literatura oral tradicional, que, segundo Menéndez Pidal, possui duas componentes, a tradicionalidade e a oralidade, que lhe dão um carácter específico. Quanto à tradicionalidade, Pidal distingue 1) a essencialidade, intensidade; 2) a naturalidade; 3) a intuição, liricidade, dramatismo; 4) a impessoalidade. O primeiro destes factores imprime às composições uma brevidade concentrada, enquanto o segundo que lhes retira artifícios, vindo o terceiro, que igualmente suprime o que não é essencial, a introduzir tonalidades emotivas, reiterações, enumerações 127 Cf. Paulo Raposo [1997], “Artes Verbais e Expressões Performativas: Repensar a Oralidade numa Perspectiva Antropológica”, em Jorge Freitas Branco e Paulo Lima, org., Artes da Fala, Oeiras, Celta Editora, 1997, pp. 22-46. 52 A REVELAÇÃO DO SENTIDO simétricas e exclamações. O quarto factor, por sua vez, substitui marcas individuais de autoria pela reelaboração colectiva128. Quanto à “oralidade”, melhor dizendo à sua natureza oral, também os romances partilham das características do que Zumthor chama uma especificidade linguística da poesia oral: “le texte oral, la plupart du temps, est multiple, cumulatif, bariolé, parfois divers jusqu’au contradictoire”. Referindo-se aos poemas breves, diz também Zumthor que “[L]’éspace du discours, …. [N]e laisse place qu’aux élements nucléaires de la phrase, à quoi l’ellipse, la suspension confèrent une ambiguité, sinon une apparente vacance sémantique…”129. De facto, os romances socorrem-se de processos de significação altamente condensados, dos quais os motivos e mesmo as expressões formulísticas são bons exemplos, e empregam metáforas ou simbolismos cujo sentido há que decifrar, sendo frequente o uso de repetições e de enumerações que sublinham a lógica da narrativa. Quanto à proximidade com o quotidiano de que fala Ong, entende-se que os romances, dentro do género narrativo que não da esfera do maravilhoso, e em particular os novelescos, representam lógicas comportamentais humanas inseridas num quadro social dotado de valores. Deste modo, os episódios narrados são identificáveis com situações reconhecíveis pelas comunidades (um adultério em Bernal Francês, traição e vingança em Veneno de Moriana, um assédio incestuoso em Silvana e em Delgadinha, a leviandade em Gerinaldo); a enunciação, por sua vez, poderá revelar sentidos de 128 O estilo dos romances de base épica, que tende a prescindir de preliminares, incidentes e desenlaces e a que M. Pidal chamou “épico-intuitivo”, foi posteriormente alargado a outros romances. Cf. RoH I, Cap. III, pp. 58-80. 129 Zumthor refere-se especificamente aos poemas muito breves, mas também àqueles que constituem vestígios de composições mais longas (pp. 132-133) e é neste sentido que entendemos estas citações aplicadas ao romanceiro. Noutro local (p. 56), Zumthor refere-se à performance poética oral como uma descontinuidade no contínuo, “fragmentation ‘historique’ d’un ensemble mémoriel cohérant dans la conscience collective”. O autor referir-se-á diversas vezes ao Romancero, como forma dos cantos épicos (pp. 06-107), demonstrando que o género partilha de noções operatórias aplicáveis à poesia transmitida pela voz e memória, referindo-se também ao uso das expressões formulárias (pp. 116-119). Cf. Zumthor [1983]. 53 A REVELAÇÃO DO SENTIDO empatia ou rejeição, não só relativamente aos actos das personagens como também aos valores morais e sociais implícitos nos romances. Se bem que os romances partilhem das características gerais das outras composições produzidas pelas culturas de transmissão oral, eles têm, dentro da literatura oral tradicional, outras que lhes são próprias e cujo conhecimento importa à metodologia da procura do sentido. Uma vez que esta passa, em boa parte, pela análise dos procedimentos segundo os quais o dito revela o não-dito ou, como atrás afirmámos, pela análise dos elementos explícitos que contêm os implícitos, começaremos por transcrever, previamente à descrição das características mais particulares dos romances, a seguinte observação feita por uma informante130: “Dantes traziam as quadras das canções, mas a gente como no sabia ler, cada uma compreendia os pontos de sua maneira ...” A afirmação, mesmo que de forma não intencional ou consciente por parte de quem a produziu, presta-se a introduzir noções que de seguida abordaremos, como as de tradicionalização, forma de expressão e propriedade de abertura das estruturas tradicionais. Assim: - “Dantes” – remete-se para uma localização temporal indeterminada, que pressupõe um tempo passado, longínquo e impreciso. De facto, Menéndez Pidal chama a atenção para as dificuldades de datação de um romance, dado tratar-se de uma poesia de transmisão oral, por certo já largamente retransmitida antes da sua fixação por escrito131. 130 Trata-se de Catarina Sargenta ou Catarina Chitas, que fez o citado comentário após a sua versão cantada de Conde Alarcos, no dia 18/8/1986, em Penha Garcia, c. Idanha-a-Nova. Cf. José P. Cruz [1995], Romanceiro Tradicional da Beira Baixa, 1995, pp. 127-128. Devemos, aqui, esclarecer que as designações de “informante” ou “produtransmissor” não se equivalem necessariamente, sendo o primeiro, logicamente, um produtransmissor, mas, mais especificamente, entendido como aquele junto do qual o recolector colhe uma versão. A intervenção dos produtransmissores na produção do sentido será abordada mais detalhadamente na Parte II, Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado. 131 Cf. RoH I, pp.151-172. 54 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - “traziam” – a utilização do sintagma “traziam”, de sujeito indeterminado, evidencia a impossibilidade de identificação do agente da acção “transportar” e, também, o pressuposto de que se tratava de algo que vinha de fora para dentro da comunidade. - “as quadras das canções” - sendo o verso tipo do romance constituído por dois hemistíquios heptassilábicos (octossilábicos na métrica castelhana) 132, que abarcam uma unidade sintáctica, com rima assonante nos versos pares, a designação da informante pode ser entendida pelo facto de o romance, ao ser cantado, acentuar a cesura dos hemistíquios, assemelhando-o, assim, à estrutura da quadra lírica. Esta analogia, aliás, foi feita por José Joaquim Nunes, que chama aos romances “quadras 132 Lembramos que esta não é a única forma do romance e que a própria designação deste é objecto de critérios diversos. Além da própria definição de “romance” que tomámos de ROTP e já citámos, remetemos, da mesma obra, para os pontos 3.1. Forma de expressão, 3.3. Componentes discursivas. Sobre o assunto, reproduzimos também alguns excertos estudo de Luis Díaz Viana: “Resulta evidente que un "romance" no lo es únicamente por su forma estrófica (de octosílabos asonatados o, según la descripción de Menéndez Pidal, dieciseisílabos en hemistiquios de ocho); hay versiones muy arcaicas de algunos temas romancísticos de métrica hexa y heptasilábica y aún en la tradición oral de nuestros días podemos encontrar muestras de esas características. De otro lado, llamamos "romance" a las coplas - generalmente cuartetas asonatadas - de la literatura de cordel y catalogamos como tales a ciertas "canciones seriadas" de larga extensión. Ejemplos de esta práctica los hallamos en vários romanceros.” [……………..] “¿Qué criterio adoptaremos, pues, para definir el romance? ¿Consideraremos sólo como tal a una de las clases o formas que el romance presentó en su proceso evolutivo? ¿Consideraremos sólo como tal a ese romance renacentista fijado literariamente del que aún perviven interesantes huellas en la tradición oral de nuestros días? ¿A aquel romance, que para Menéndez Pidal era el "más excelente" y perfecto? Enfoquemos el problema desde una perspectiva contemporánea. ¿Distinguen los informantes de hoy las categorías de romances que comentamos? Dado que ciertos investigadores parecen pensar esto he dedicado especial interés a tal punto, en mis últimas encuestas, y he podido comprobar en mi recopilación romancística por tierras sorianas, que únicamente el 3 por 100 de mis informantes era capaz de hallar diferencias -más por el modo de transmisión y la antigüedad que por estilo o contenido- entre unos y otros poemas narrativos.”[……………..]“El proyecto en el que actualmente trabajo dentro del Departamento de Antropología de la Universidad de Berkeley sobre las diversas formas de balada en la tradición oral que exige, por ejemplo, la comparación de las distintas clases de romance con los corridos y las baladas anglosajonas me obligó a elaborar un cuadro que tuviera en cuenta tanto lo folklórico como lo literario y que pudiera aplicarse en cada caso para determinar lo que una composición tradicional tiene de específico y particular. De manera muy resumida el cuadro comparativo responde al siguiente esquema: Criterios folklóricos: Cauce de transmisión (Tipo de informantes, relación emisores-receptores, rasgos de la comunidad). Función (Cuándo y para qué se interpretan las composiciones. Repercusión social). Cronología (Origen y proceso de la transmisión. Transformaciones diacrónicas). Criterios literarios: Temática (Asuntos generales y particulares. Posibles "grupos temáticos". Arquetipos). Forma y estilo (Métrica, fórmulas, recursos). Estructura (Partes y relación entre ellas. Formas de desarrollo de una estructura general).” Cf. Luis Díaz Viana [1983], “La tradición oral, hoy. (El ejemplo del Romancero)”, Revista de Folklore, nr. 31, Tomo 03b, 1983, pp. 9-16, disponível na Internet em http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=277, arquivo acedido em 28 de Março de 2011. 55 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de redondilha maior” 133 e, do mesmo modo, por Fernando Wolf e outros 134 . Segundo José Monteiro, o termo quadras é aplicado aos romances na região da informante, a Beira, sendo noutras terras chamados “versos, histórias em verso, trobos, romances, jacras (xácaras) ou aravias”135. - “como a gente no sabia ler” – intui-se nesta expressão o conhecimento de uma via escrita, com a recepção e transmissão por via oral e colectiva. Esta apropriação, reformulação e transmissão por uma comunidade (“a gente”) é, afinal, o processo de tradicionalização de que fala Menéndez Pidal136 e que é agora necessário explicar a alguém “de fora”. A causal “como” parece, por um lado, reconhecer à escrita um carácter normativo137 e, por outro, validar o direito de proceder ao que está contido na afirmação seguinte. - “cada uma compreendia os pontos 138 de sua maneira” – o emprego do feminino na expressão “cada uma”, sugere que o interesse, conservação e transmissão da tradição passaria, sobretudo, pelas mulheres139. Constata-se, ainda, 133 apud ROTP, p. 22. Cf. RoH, I, pp.121-123. 135 Cf. José Monteiro [1990], “Introdução ao Cancioneiro da Beira Baixa”, em Ao Redor do Fundão, Edição Comemorativa do Centenário de José Monteiro, Fundão, Câmara Municipal do Fundão, 1990, pp. 117-165. Pere Ferré assinala a “enorme vacilação na designação deste género” por parte de Garrett em Romanceiro II, que este tenta definir, acabando por cingir-se a três – romances, xácaras e solaus. Cf. Pere Ferré [2000], “Algumas reflexões de Garrett sobre o Romanceiro”, em Comissão Executiva dos “Seminários Garrett” [2000], coordenação de, Garrett às Portas do Milénio, Lisboa, Colibri, 2000, pp. 95-106. 136 O processo de assimilação, reelaboração e retransmissão por um “autor-legião” é descrito no Capítulo II de RoH, I. 137 Não deixa de ser de notar que as próprias composições orais referirão a escrita, como se esta sancionasse o que nelas é narrado. Por exemplo, no nosso corpus, em versões de Veneno de Moriana, o “jornal” ou o “tabelião” registarão o mal feito pelos homens ou mulheres, em Delgadinha a vítima de incesto tem uma carta na mão quando morre e, em Gerinaldo, a infanta escreve ao pai. No entanto, tratase aqui de variantes, introduzidas por aquilo a que chamamos “intervenções” na produtransmissão, a que dedicamos o último capítulo da Parte II. 138 Os pontos são a denominação dos versos em Penha Garcia, região da informante, tal como o são em outros locais, entre eles Alcongosta, Castelejo, Fundão, Idanha, Lavacolhos ou Silvares. Cf. Monteiro [1990], pp. 117-165. 139 Aceita-se, geralmente, que as mulheres têm tido um papel preponderante na transmissão do romanceiro, que Catalán atribui ao carácter “matriarcal” da cultura popular oral (IGR, p. 21), referindo-se, supomos, ao meio rural no qual se processa o circuito da sua tradicionalização (RoH, I, pp. 11-57). Por isso, os romances seriam, em boa parte, a expressão de uma perspectiva feminina, opinião corroborada por Virtudes Atero e Nieves Vasquez [1998], “Espacios y formas rituales de lo feminino en el romancero tradicional”, Revista ELO, 4, Faro, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1998, 134 56 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que é executada uma interpretação individual de uma situação-padrão colectiva, com a consequente produção de diversas versões. Esta observação vai ao encontro do que declara Diego Catalán, a propósito da “abertura” 140 dos significados como propriedade das estruturas tradicionais: “Los transmisores de un romance lo han aprendido siempre palabra por palabra, verso a verso, escena tras escena y, al memorizarlo, lo han descodificado según su particular entender...”. [……………] “La tradición oral... conserva y propaga modos colectivos (regionales, temporales, comunitarios, clasistas, etc.) de descodificar esos elementos en que se articula al romance y de reaccionar (ética, estética, social o políticamente) ante el 141 mensaje” . Uma das características mais marcantes dos romances é o fragmentismo, noção introduzida por Pidal 142 , constituindo um procedimento estilístico que visa a concentração num ponto culminante, prescindindo de informações acessórias. Torna-se, assim, técnica expressiva que não só condensa a informação e o sentido como, simultaneamente, acentua o efeito dramático. Os elementos descritivos e narrativos são sumários 143 e apresentam-se muitas vezes como forma de introdução ou ligação aos diálogos, o que se traduz numa forma pp. 9-22. Por outro lado, Díaz Roig atribui o maior número registado de versões cantadas ou recitadas por mulheres a uma certa predisposição dos investigadores para procurarem informantes com uma determinada tipologia – mulheres idosas, não letradas, residentes nos meios rurais, as quais tenderiam a preservar os valores mais conservadores, mesmo os que punem ou desvalorizam as mulheres. Cf. Mercedes Díaz Roig [1997], El Romancero Viejo, 18ª ed., Madrid, Ediciones Cátedra, 1997, p. 32-33. 140 A “abertura” será, segundo Diego Catalán, uma propriedade básica da “literatura artesanal”, na qual, citamos, “un modelo puede producir un sin fin de poemas-objecto más o menos diferenciados según tipos temporal y espacialmente delimitados (esto es, historicamente condicionados), dependientes de la interpretación de los modelos por la serie de transmissores-recreadores (artesanos) que en el curso del tiempo, en espacios sociológicos variables, lo han ido utilizando”. Cf. IGR, pp. 21-22. 141 Cf. Catalán [1997], p. 177. 142 A noção de fragmentismo dos romances prende-se, antes de mais, com o serem o resultado da selecção dos episódios mais marcantes dos poemas épicos efectuada pelos jograis, segundo RoH I, pp. 151-172. 143 Ainda que sumários, estes elementos são portadores de sentido. Em artigo dedicado à linguagem dos contos maravilhosos, Bengt Holbek expõe um método de interpretação dos elementos narrativos, a fim de elucidar o seu sentido. Holbek lista sete regras de transformação, segundo as quais as impressões afectivas se transformam em expressões simbólicas, entre as quais a contracção (“les évolutions dans le temps e dans l’espace sont contractés de manière à apparaître comme des changements instantanés, souvent en trois étapes”). As outras regras são a dissociação (bom/, mau, masculino/feminino), a particularização (um aspecto particular de uma personagem toma a forma de um elemento simbólico), a projecção (os sentimentos e as reações dos protagonistas são da responsabilidade do mundo exterior), a externalização (as qualidades morais exprimem-se pelos atributos físicos), a hipérbole (a intensidade dos 57 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de expressão que se aproxima do texto dramático. Pere Ferré faz notar que já Pidal, ao distinguir romances-conto de romances-cena e romances-diálogo, utilizara “uma conceptualização e uma terminologia que nos remetem para o teatro” 144 . A tradição oral portuguesa, em particular, parece ter uma predilecção pelo modo maioritariamente dialogado e com escassez daqueles elementos145. Também são característicos os começos abruptos, quase sempre in media res, os saltos narrativos e os finais truncados146, o que empresta um carácter fragmentário à narrativa manifestada. Uma relação de sucessos é, muitas vezes, desarticulada com transições bruscas, sem referências a antecedentes, finalizando no momento em que a tensão dramática atinge o auge147. Por outro lado, não é rara, na tradição oral moderna, a adição de finais moralizantes ou valorativos, ou a extensão da intriga, que por vezes se traduz pela contaminação de outros romances. O conceito de fragmentismo pode alargar-se, visto que o romance, de acordo com a teoria dos três níveis de organização de Catalán, constitui um fragmento de um sentimentos exprime-se pelo seu exagero) e a multiplicação (uma qualidade exprime-se pela quantidade). Cf. Bengt Holbek [1990], “Le Langage des Contes Merveilleux”, Cahiers de Littérature Orale, nº 28, Paris, Institut national des langues et civilisations orientales, 1990, pp. 127-162. Consideramos que também os elementos narrativos do romanceiro adquirem sentido através destas regras, que destacaremos, quando aplicáveis. 144 Cf. Ponte [1987], p. 110. 145 Estas características são decorrentes do que Pidal chama “estilo tradicional” e cujos procedimentos descreve em RoH, Tomo I, Cap. III, pp. 58-80. Voltaremos a este assunto no Capítulo III. A Organização da narrativa, ao tratarmos mais em particular das “falas das personagens”, que preferimos tratar nesse local, visto que a narrativa se organiza, muitas vezes, na forma dialogada. 146 Estes provêem do gosto fragmentista difundido pelos editores, na passagem do século XV para o século XVI. Diz Pidal que a principal diferença entre a exposição épica e a épico-intuitiva consiste neste fragmentismo, que elimina preliminares e desenlaces, fixando-se numa única situação, sendo mais frequentes, no romanceiro, os começos abruptos do que os finais. Este truncamento, que Pidal exemplifica com o folheto de 1537 de Gerinaldo, seria intencional, como efeito da grande difusão dos romances épico-nacionais e carolíngios, que destacavam uma cena de entre o vasto conjunto épico, tornando-se, assim, num procedimento estilístico, que distingue o romanceiro velho das canções épico-líricas dos outros países. A exaltação de um ponto culminante do argumento predisporia o público a preferir o destaque dado a uma cena particular, mesmo em romances de outros temas. Cf. RoH I, pp.7175. 147 No caso das transições bruscas de um sucesso para outro, sem narrativa do que se passa entretanto, uma das regras de B. Holbek, a contracção, é aplicável: “Les évolutions dans le temps et dans l’éspace sont contractées de maniére à apparaître comme des changements instantanés, souvent en trois étapes. […] les progressions lentes, les voyages longs et fastidieux, les travaux monotones et les transitions progressives ne sont jamais décrits”. Cf. Holbek [1990], pp. 126-162. 58 A REVELAÇÃO DO SENTIDO programa narrativo mais vasto do que o actualizado discursivamente. São esses níveis o discurso, organização linguística variável de um conteúdo, a intriga, narração organizada da fábula, sendo esta o nível mais profundo da história que se narra e o modelo-actancial, organização dos conteúdos míticos atemporais, que se traduzem na fábula e se actualizam na intriga, através do discurso148. Este autor encontra, no conjunto das versões de qualquer romance, a prova de que a intriga manifestada nas versões-objecto é uma representação particularizada de entre as possíveis da fábula do romance. Nas versões, com efeito, podem (ou não, se muito fragmentadas), estar incorporados os dados que permitem a reconstrução das sequências lógico-temporais da fábula e o enredo pode ser complicado com incidentes secundários; outros poderão ser ignorados, deixando indícios em outras sequências. A noção de fragmentismo é, igualmente, aplicável às versões que não se apresentam completas, quer em relação à isotopia de base do “apotexto” 149 quer ao seu esquema narrativo, podendo, igualmente, sê-lo no caso de romances pertencendo ao mesmo ciclo150. 148 Cf. IGR, pp. 24-25. Termo tomado de J. D. Pinto-Correia, que sugere que se considerem as versões que sofrem fragmentação do esquema narrativo do “apotexto”, mas mantêm a isotopia de base, como “VFI, versões fragmentárias idênticas” e as que sofrem cortes no esquema narrativo e mudança da isotopia como “VRF, versões fragmentárias reinterpretadas”. As outras serão as “VCI, versões completas idênticas” (fidelidade ao esquema narrativo e à isotopia de base), as “VCI, versões derivadas idênticas” (manutenção da isotopia mas contaminação da sintaxe narrativa de outro texto), as “VCR, versões completas reinterpretadas” (esquema narrativo completo sem fidelidade à isotopia dominante no apotexto) e as “VDR, versões derivadas reinterpretadas” (mudança da isotopia dominante e contaminação do esquema narrativo por outro romance). Cf. Pinto-Correia [1992], pp. 121-122. 150 Caso do “ciclo” de Conde Claros, “texto-mosaico”, na expressão de Bráulio do Nascimento (p. 140 de Bráulio do Nascimento, “Conde Claros na tradição Portuguesa”, Quaderni Portoghesi, nºs 11-12, Primavera/Outono, Pisa, Giardini Editori e Stampatori 1982, pp. 139-187). Sobre este ciclo, diz João David Pinto-Correia, para cujo completo e aprofundado estudo sobre os romances carolíngios remetemos, que “[N]a tradição portuguesa, tem-se aceitado que este ciclo é constituído principalmente por três romances: Conde Claros insone, Conde Claros e a infanta acusada e Conde Claros em hábito de frade – romances que, só raríssimas vezes, se manifestaram autonomamente, antes circulando em versões contaminadas dos mencionados romances entre si, como também por alguns outros romances, …”, mas o autor considera, para o ciclo, os seguintes: Conde Claros insone, Conde Claros condenado, Conde Claros enamorado, Conde Claros gabarola, Conde Claros apostador e Conde Claros- D. Ausenda e a água/erva fecundante. Cf. RCTOP, Vol. I, particularmente as pp. 291-303, 331-359, 389-412. Ver, igualmente, o seu estudo, no qual propõe uma sistematização de Conde Claros; nele, o autor cita, além dos estudos de M. Menéndez Pelayo, Milá y Fontanals, R. Menéndez Pidal, Teófilo Braga e Carolina Michaëlis de 149 59 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sendo composições narrativas, os romances são também dotados de elementos líricos151 e simbolismos e utilizam diversos recursos formais152, como a redundância e as expressões formulísticas, que são aqui entendidos como processos de significação a analisar para uma procura do sentido. Walter Ong considera que a redundância é uma das características do pensamento da cultura oral, uma vez que assegura a atenção e compreensão do ouvinte153. É assim que o estilo poético tradicional 154 se socorre de recursos formais como a repetição (sintáctica, semântica, fónica, textual) e a enumeração (exaustiva, distributiva, representativa ou em variação de séries), que não adiantam ao desenvolvimento da intriga, mas lhe intensificam a tensão dramática. O romanceiro é pródigo em redundâncias. No caso do nosso corpus, entre muitos outros casos que cumprem a mesma função de manifestar o desejo de tornar mais explícita uma acção ou uma ideia155, são redundâncias os apelos da adúltera ao suposto amante para que não tema os parentes, em Bernal Francês, as lamentações do cavaleiro, Vasconcelos sobre estes romances, o de Bráulio do Nascimento, que identifica vinte e nove episódios, num corpus de oitenta e sete versões portuguesas e quarenta brasileiras, que constituem uma espécie de narrativa-tipo. Cf. João David Pinto-Correia [1987], “Le cycle des romances du Conde Claros: proposition de systematisation”, em AAVV, Litterature Orale Traditionelle Populaire, Actes du Colloque, Parte II – “Romanceiro” Traditionnel, Paris, 20-22 Novembre 1986, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris, 1987, pp. 301-314. Em BRPTOM registam-se duzentas e duas versões de Conde Claros vestido de frade (pp. 26-30) e vinte e uma ( pp. 32-33) de Conde Claros preso (IGR 0366). Em RPTOM, a designação é Conde Claros em hábito de frade (pp. 241- 365) e O Conde Claros preso (pp. 390-409). 151 Zumthor, ao tratar as formas e géneros da poesia oral, diz que “le ‘narratif’ implique une concaténation linéaire d´’unités interdependentes, le ‘lyrique’ comporte une addition circulaire ou non ordonnée d’unités plus au moins autonomes”. Cf. Zumthor [1983], p. 100. A “intromissão” do lírico na narrativa do romance destaca-se especialmente nos romances novelescos, de que em particular aqui nos ocupamos e dá a estes uma dimensão de sentido mais abrangente, pela sua dimensão plurissignificativa. Veja-se, por exemplo, como a simples informação da introdução do suposto amante no jardim, no Bernal Francês, se expande em simbolismos poéticos. Cf. Parte II, Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido, Ponto 3. Os motivos não-indexados nos romances do corpus. 152 Ana Paula Guimarães faz notar que certos recursos formais ultrapassam a simples ornamentação: “os ritmos, as simetrias, as antíteses, as aliterações (no Romanceiro português) funcionam como pilares de transmissão e não como ornamento ou enfeites de qualquer ordem”. Cf. Ana Paula Guimarães [1985], “Memórias dos nossos romances”, Jornal de Letras, ano IV, nr. 138, Lisboa, 1985. 153 Cf. Ong [1998], pp. 50-52. 154 Cf. RoH I, p. 78. 155 Cf. Roig [1997], pp. 44-48. 60 A REVELAÇÃO DO SENTIDO em Veneno de Moriana, os pedidos de água à família, em Delgadinha156 e as perguntas do rei ao pajem, em Gerinaldo. Outro tipo de redundância muito frequente nos romances é a iteração. Segundo Di Stefano, “…[A]unque coincide a veces con fórmulas, la iteración verbal no es en si una fórmula” e, diz ainda, “… la simetria verbal afecta a la zona de exordio y a la de cierre del texto, com un efecto de marco que enriquece el realce del sentido”157. Assim, a iteração simétrica das designações dos protagonistas, que realça e enriquece a eficácia emotiva do discurso, surge no habitual incipit de Gerinaldo e em certos começos de Delgadinha: 1.“- Gerinaldo, Gerinaldo, pajem dél rei mais querido”, G/12 Pires (1885l) [X]XL 1.“- Ó Silvana, ó Silvaninha, ó Silvana, ó filha minha”, D/38 Leite (1960) 51-52 Este tipo de redundância ocorre também no meio (a) ou no fecho (b), com as mesmas funções das ocorrências inicias: (a): 17.- “Francisquinha, Francisquinha, [triste hora em que nasceste]”, BF/32 Leite (1958) 398-399 (b): 7.- “Juliana, Juliana, [que deitaste no teu vinho]”, VM/14 Leite (1960) 106 A iteração manifesta-se igualmente nos verbos, para que a mesma ideia, o mesmo conceito e a mesma ordem ou pedido sejam emotivamente reforçados e se tornem denotativos de determinadas acções. Estas poderão expressar-se no imperativo que apressa o envio da água a Delgadinha: 28. “- Correi, Barcelos, correi …”, D/13 Basto (1914) 59-60 28. “ - Vai, Barcelas, vai, Barcelas…”, D/36 Leite (1960) 49 Repetir é, também, um meio de melhor induzir o interlocutor a realizar qualquer acção ou a persuadi-lo de algo: 156 Veja-se, igualmente, neste romance a enfatização do desejo de que o pai seja castigado através do prefixo re-, com sentido enfático pela repetição, em “a [alma] do pai fica requémada” (G/D 25, v. 59). 157 Cf. Giuseppe di Stefano [2000], “Simetrias e iteraciones verbales com función de marco en Romances Viejos”, Revista ELO, 6, Faro, Centro de Estudos Ataíde de Oliveira, Universidade do Algarve, 2000, pp. 7-17. 61 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 10.“- Toma, toma, Leonardo, este copo de licor”, VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115 19.“- Não te agonies, Gerinaldo, não t'estejas a agoniar,”, G/161 Fontes I (1987) 512 Notem-se, também, os casos em que o mesmo verbo (no exemplo seguinte “mangar”) utilizado por uma das personagens (Gerinaldo) pode ser retomado na fala seguinte, mas na negativa, pela sua interlocutora (a infanta), para convencer o pajem da veracidade da proposta que lhe havia feito (2.“Eu te peço, Gerinaldo, durmas 'ma noite comigo.”), pelo que se trata da reiteração da mesma idéia: 3.“- Isso não, Senhora, ‘standens mangando comigo! 4. - Não mang', Gerinaldo, não mango, que eu bem deveras to digo:” G/179 Carvalho Rodrigues (1990) 203 Os métodos orais de composição poética favorecem uma economia narrativa que gera expressões que, sendo adaptáveis a diferentes temas e contextos158, não são meros lugar-comuns. Estão neste caso as fórmulas que, segundo Michelle Débax: "[Las fórmulas] son el lenguaje figurativo del Romancero, se caracterizan por su repetibilidad y su adaptación a contextos e historias diversas. Sirven para situar en un espaciotiempo, para caracterizar a un personaje, para describir una acción, para servir de transición entre dos momentos. Más allá del significado literal o denotativo funcionan como un lenguaje connotativo, remitiendo a un significado segundo conocido y reconocido por los transmisores y los oyentes"159. João David Pinto-Correia prefere a designação de Albert B. Lord e Ruth Webber, “expressões formulísticas”, que consistem, segundo aquele autor, em “pequenos segmentos linguístico-discursivos que se repetem nas múltiplas versões dos diferentes romances…” e têm uma dupla função. A primeira é marca da distanciação (“desembraiagem”) do transmissor em relação à composição e, ocorrendo no início desta, 158 Cf. Ong [1998], pp. 25-40. apud Bárbara Salas Garcia que cita, de Michelle Débax, "Lo maravilloso en el Romancero Tradicional", Draco, nº 3-4, 1991-1992, p. 158. Cf. Bárbara Salas Garcia [2004], Un Análisis del Romancero Erótico-Burlesco de la Província de Cádiz, disponível na Internet em www.parnaseo.uv.es/Lemir/Revista/Revista6/salas_cadiz.htm., arquivo acedido em 11 Dezembro 2004. 159 62 A REVELAÇÃO DO SENTIDO serve à identificação do enunciado enquanto género; a segunda função é mnemónica e, simultaneamente, estratégia narrativa servindo à actualização repentina de um sucesso160: 8.“As falas não eram ditas, Silvana era fugida.”, S/8+QdU Purcell (1976a) 159-160 16.“Viagem de quinze dias, em três dias quero ‘dar”, BF/66 Ferré (1982) 164 Deste modo, em qualquer das funções, as expressões formulísticas possuem um significado literal informativo, mas são, igualmente, expressões lexicalizadas de um conteúdo, que valem pela sua significação mais profunda: 1.“Bem se passeia Silvana pelo corredor acima”, S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 7. “Levanta-se Boliana à pressa não devagar”, VM/54 Ferré (1982) 181-182 7.“Inda não eram nas dez Gerinaldo ao postigo”, G/31 Leite (1958) 302 Os exemplos apresentados representam, com efeito, acções explícitas que se destinam a dar informações sobre o espaço e o tempo em que decorrem, mas o seu significado amplia-se, transmitindo informação essencial para a dramatização da intriga. No primeiro exemplo, remete-se para a possibilidade de o passeio da rapariga ter como objectivo atrair a atenção do pai e, consequentemente, a dar-lhe um sentido de “provocação”; no segundo, a pressa de Moriana implica a dúbia questão de o envenenamento ser premeditado ou de ser efeito de um impulso de momento, como parece ser o caso na expressão formulística utilizado nesta versão (“à pressa não devagar”). O terceiro exemplo, por sua vez, ao referir que o pajem se dirige ao quarto da infanta antes da hora marcada, indicia uma pressa amorosa que desmente a sua relutância inicial161. Desde modo, a análise das expressões formulísticas presentes nos romances revela que estas mantêm uma relação estreita entre o explícito e o implícito. 160 161 Cf. ROTP, p. 31. A estes assuntos voltaremos oportunamente. 63 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2. Explícito e implícito Roland Barthes, segundo quem “o sentido não está ‘no final da narrativa’, ele atravessa-a”, diz que: “compreender uma narrativa não é apenas seguir o esvaziar da história, é, também, reconhecer nela ‘planos’, projectar os encadeamentos horizontais do ‘fio’ narrativo sobre um eixo implicitamente vertical”, é “passar de um nível [de sentido] a outro” 162 . Os romances são estruturas narrativas, que o IGR assim define: “segmentos de discurso estructurado, que imitan la vida real para representar, fragmentária e simplificadamente, los sistemas sociales, económicos e ideológicos del referente y someterlos así, indirectamente a reflexión crítica. Esa simulación, esa representación, constituye la fábula que todo romance encierra”163. Ainda aí, diz-se que a complexidade significativa da fábula é devida às duas forças complementares – herança e inovação – que se exercem sobre a transmissão e transformação de todas as estruturas sociais e expressões artísticas colectivas164. Catalán dirá, também: “Dada la importância, en la creación de um romance, del proceso de transformación que permite generar una intriga a partir de una fábula y de la incorporación al relato de ‘indicios’ superpuestos a la cadena de unidades del hacer, la posibilidad de reducir a un inventario limitado de reglas esse proceso generativo y de establecer un código capaz de dar cuenta de esas unidades no encadenadas constituye un objectivo fundamental de la trans-lingüística aplicada al Romancero”. 165 Considerando o que atrás fica e, ainda, os já citados níveis de organização poética postulados em IGR, a procura do sentido processa-se através da análise dos elementos explícitos e implícitos. O que entendemos como “explícito” manifesta-se, então, no nível de superfície, sendo composto pelo conjunto dos elementos discursivamente 162 Cf. Roland Barthes [1987], A Aventura Semiológica, Edições 70, Lisboa, 1987, p. 101. Cf. IGR, p. 19. 164 Cf. IGR, pp. 19. 165 Cf. Diego Catalán [1997], Arte Poética del Romancero Oral, Parte 1ª: Los textos abiertos de creación colectiva, Madrid, Fundación Menendez Pidal, 1997 ( pp. 152-153). 163 64 A REVELAÇÃO DO SENTIDO manifestados (descritivos, narrativos ou dramáticos) que dão corpo à intriga, aí se encontrando o sentido mais imediato e literal do romance, não se esgotando, nesse processo, os meios disponíveis para que o sentido se revele na sua plenitude166. Por um lado, a fábula não é constituída apenas por tais elementos, sendo estes indiciadores de uma “narrativa” mais vasta, a nível profundo. Há a considerar que as comunidades que produzem e transmitem os romances são regidas por ideologias que condicionam comportamentos sociais e que aqueles, enquanto textos ficcionais 167 , reflectem essa visão do mundo, a qual, por sua vez, se manifesta nos comportamentos das personagens e nos subentendidos e implicados dos seus actos de fala. É deste modo que o sentido do romance radica também naquele que lhe é conferido pelas estruturas sociais, ideológicas ou míticas, que sustentam implicitamente a intriga. Por outro lado, saber o que constitui o explícito e o implícito no romanceiro tem também a ver com uma das suas características mais marcantes e que atrás conceptualizámos, o fragmentismo. Os acontecimentos lógicos e cronológicos organizam-se em sequências, como veremos, mas a elipse 168 de uma destas unidades narrativas significantes não altera necessariamente a unidade da fábula. O que haverá, muitas vezes, é que pressupor outras sequências preexistentes à intriga explícita, colmatar saltos narrativos entre sequências, em anáforas ou catáforas e até mesmo prever o desfecho implicado pelo encadeamento lógico narrativo, que pode não ser actualizado. Por vezes, a intriga 166 Segundo a teoria medieval da interpretação, “um enunciado tem sempre e apenas quatro sentidos: literal, alegórico, tropológico (ou moral) e anagógico”, que coexistem, conservando embora a sua autonomia. apud O. Ducrot, T. Todorov [2001], Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem, 3ª ed., S. Paulo, Perspectiva, 2001, p. 237. 167 O texto ficcional, entendido como texto narrativo literário, relata uma sequência de eventos ficcionais, cujas “conexões, semânticas e pragmáticas, reenviam a uma visão do mundo, a sistemas de crenças e valores no quadro dos quais os eventos adquirem significado e coerência”. Cf. Silva [2002] (9.7.2. O texto narrativo, pp. 596-604 e 9.10. Ficcionalidade e semântica do texto literário, pp. 639-654). Os romances orais tradicionais partilham desta característica, visto serem uma modelização do mundo empírico e real, no qual o comportamento humano é condicionado por esses sistemas, quer por aceitação quer por rejeição. 168 “A elipse designa primordialmente uma amputação de elementos discursivos susceptíveis de serem recuperados pelo contexto”. Cf. Carlos Reis e Ana C. Lopes [2002], Dicionário de Narratologia, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, pág. 119. 65 A REVELAÇÃO DO SENTIDO actualiza-se apenas através de diálogos, caso em que as relações entre as personagens só são conhecidas do ouvinte/leitor pelos vocativos169 (como “minha filha!”, “meu pai!”, em Silvana/Delgadinha ou “pajem do rei!”, “senhora!” em Gerinaldo). Espaço e tempo são igualmente condensados, por vezes em expressões formulísticas, originando saltos narrativos entre cenas, que se sucedem como realizadas de imediato. Assim acontece, por exemplo, em Silvana: num momento, a mãe está a engendrar o estratagema da troca de camas para evitar o incesto e, imediatamente, o pai está a censurar a filha por não ser virgem. O sentido “implícito” procurar-se-á em indícios, seja no relato da intriga170 seja na informação contida em quaisquer outros elementos; é recuperável por “encatalisação”171, levada a cabo pelo ouvinte/leitor, e necessária, em maior ou menor grau, de acordo com a estratégia narrativa adoptada por cada romance; os procedimentos de pressuposição e implicação172 tornam-se particularmente necessários no caso dos começos in media res. Também o que é dito pelas personagens ou narrador tem frequentemente, além do literal, um sentido implícito, como se demonstrará no decorrer desta análise. Outras informações necessárias para que o sentido se complete, estão, muitas vezes, implícitas nos motivos, como acontece nas situações que antecedem a proposta incestuosa do pai, em Silvana e Delgadinha 173 e, deste domínio, são também os 169 Segundo Ferré da Ponte, a função dos vocativos “será a de nos indicar dramaticamente a quem se dirigem as palavras pronunciadas por uma personagem”. Cf. Ponte [1987], p. 101. 170 Devido à propriedade de abertura, contudo, o relato da intriga pode sofrer modificações nas versões, por reestruturação das sequências. O IGR dedica o Capítulo II à estrutura sequencial do relato e às diversas possibilidades que a afectam. 171 Retomamos de novo a expressão de Greimas e Coutès, para quem a elipse dos elementos informativos faz parte do processo de implicitação. Cf. Greimas, Courtés [1990], p. 138. 172 Na semiótica narrativa, a ordem lógica de pressuposição faz-se inversamente ao encadeamento linear da acção. É porque se deu ‘x’ que aconteceu ‘y’, pois “[a] presença do termo pressuponente não é condição necessária da presença do termo pressuposto e a relação de implicação pressupõe a relação de pressuposição que lhe é anterior”. Cf. Greimas, Courtés [s.d.], p. 347-348. Cf., igualmente, Nicole Everaert-Desmadt [1984], Semiótica da Narrativa, Coimbra, Almedina, 1984. 173 Cf. Analisar-se-á esta questão na Parte II, Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido. 66 A REVELAÇÃO DO SENTIDO elementos simbólicos de que o romanceiro faz uso. Tal como acontece nas contaminações e mesmo nas prosificações, a variação, no que diz respeito aos efeitos da intervenção dos produtransmissores, é um fenómeno afecta a produção de sentido; os comentários destes, sendo por vezes uma explicitação do que narram, são não apenas a sua interpretação como também revelam a sua apreciação positiva ou negativa. Pelo seu peso na revelação do sentido, estes temas serão tratados adiante, em lugar próprio. Acrescentamos ainda que o sentido global de um romance se procurará na globalidade das versões, o que implica o conjunto das várias tradições e sub-tradições, tanto mais que cada uma destas poderá preferir uma ou mais variantes que integrem, elidam ou modifiquem determinados episódios ou detalhes de uma narrativa e acontecerá, com frequência, que a análise de outras tradições venha a lançar luz sobre algum ponto do sentido das versões que analisamos. 3. Romance e versões Já mencionámos a distinção entre “romance” e “versão” e voltamos ao assunto, uma vez que o consideramos um factor fundamental no processo de uma procura de sentido. O romance oral tradicional não possui uma única e imutável manifestação, mas, ao ser transmitido oralmente, durante longos períodos de tempo e através de diversas áreas geográficas, ocorre em performances singulares de emissores únicos, em versões-objecto. Dir-se-á, então, que cada romance é o conjunto das suas múltiplas versões, que constitui o “romance-tipo”174, funcionando como um programa-virtual que assegura a 174 Julgamos pertinente retomar aqui o conceito de “tipo” (type) de Stith Thompson: “…. a complete tale (the type) is made up of a number of motifs in a relatively fixed order and combination” e “A type is a traditional tale that has an independent existence. It may be told as a complete narrative and does not depend for its meaning on any other tale”. Cf. Stith Thompson [1977], The Folktale, University of Califórnia Press, Berkeley, London, 1977, p. 415. Nesta perspectiva, também cada romance constituiria um “tipo”, composto pela ordenação combinada de determinados “motivos”. Assim o entende João David Pinto-Correia, que tem em conta a noção de tipo para chegar à de motivo, ao fazer o levantamento dos 67 A REVELAÇÃO DO SENTIDO coerência textual, de sentido invariante, que faz reconhecer cada versão (ou parte dela, no caso dos fragmentos ou das contaminações) como fazendo parte de determinado romance e não de outro. Deste modo, porque singulares, as versões são estruturas fechadas dentro do texto que é o romance, dotado este de uma estrutura aberta e dinâmica, visto que passível de novas realizações. Porém, se bem que esta permita a variabilidade nas ocorrências e gerar algumas alterações de sentido 175 , as versões ajustam-se ao modelo consabido pela comunidade, tomando, segundo Pidal, uma direcção fixa, “determinada por el sentido general de la ficción própria de cada romance y por tendencias y gustos colectivos” e raramente se perpetuarão “invenções” individuais 176 . Assim, as versões constituem, cada uma delas, a interpretação do modelo aceite pelo espaço cultural no qual os transmissores estão inseridos e a sua aceitação, preservação e transmissão ligar-se-ão intimamente aos factores culturais, históricos e geográficos que exercem a sua acção sobre a cosmovisão das comunidades177. motivos nos romances de Alcácer Quibir compilados por Kelly Basílio, entendendo oportuno falar de “romance-tipo”. Cf. João David Pinto-Correia [2007], “Temas e motivos dos romances de Alcácer Quibir”, em Kelly Benoudis Basílio, organização de, Romances de Alcácer Quibir, Lisboa, Colibri, 2007, pp. 207-230 (p. 217). Harriet Goldberg, que toma o Motif-Index de Stith Thompsom (Stith Thompson [1955-1958], Motif Index of Folk Literature, 6 vols., Copenhagen, Rosenkilde and Bagger, 1955-1958) como modelo para classificar os “motivos narrativos” no romanceiro, questiona a razão de Diego Catalán não usar o termo “motivo” ao formular uma gramática da narrativa, sendo a “sequência”, para este autor, a unidade mínima que satisfaz as mesmas condições de um motivo (Cf. p. XXIV de Harriett Goldberg [2000], Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero, Temple, Arizona, Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies, 2000). Bráulio do Nascimento, por sua vez, refere as designações atribuídas por diversos estudiosos do romanceiro relativamente às “unidades operacionais” da estrutura temática do romance, que ele próprio denomina “episódios”. Cf. Bráulio do Nascimento [2004], “Conde Claros na tradição portuguesa”, em Estudos sobre o Romanceiro Tradicional, Paraíba, Editora Universitária/UFPB, 2004. Aos motivos dedicaremos o Capítulo II da Parte II. Posto isto, esclarecemos que usámos a expressão “romance-tipo” para designar a ordenação combinada de determinadas situações, que podem envolver um ou mais incidentes singulares, sendo esta combinação que faz reconhecer cada romance como distinto dos outros. “Romance-tipo” não é, pois, um conceito normativo, mas o modelo representativo, fixado na tradição, ressalvando sempre a existência de variantes. Mais adiante, elaborar-se-á, com base nas linhas narrativas encontradas em cada romance do corpus, um seu “modelo-virtual”. 175 No caso das contaminações de um romance (ou parte dele) em outro, o romance (ou parte dele) importado ou se ajusta ao sentido do romance importador ou o modifica – não deixa, em qualquer dos casos, de poder ser identificado como um outro romance, o que prova a existência de uma invariância em cada um deles e, ao mesmo tempo, a propriedade de abertura destas estruturas narrativas tradicionais. 176 Cf. RoH I, pp. 43-44 177 Diz Aguiar e Silva que “a produção e difusão dos textos da literatura oral são primordialmente condicionados pelas crenças, pelos padrões éticos, pelos usos e costumes desses mesmos grupos sociais, pois a literatura oral está sujeita a uma ‘censura preventiva da comunidade’ que não permite a difusão de 68 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 4. Invariância e variação Ao considerar um romance como um texto uno, constituído pela multiplicidade das suas versões, torna-se perceptível a existência de uma narrativa própria, que, nessa acepção, é invariante, mas também de um considerável número de desvios, quer a nível do discurso quer a nível da estrutura narrativa, e que são comummente englobados no fenómeno da variação, vindo alguns deles a constituir variantes daquele texto. Por um processo lógico, uma qualquer “variante” só se estabelece relativamente a uma “invariante”; se uma certa invariância-base não existisse, as reelaborações mais profundas viriam a subverter o romance de tal forma que este se tornaria irreconhecível. De facto, reconhece-se no conjunto das versões disponíveis de qualquer romance178 uma constância lógica, organizada segundo certas linhas narrativas179 que corresponderão, de certo modo, ao desenvolvimento do tema, podendo então definir-se a invariância como equivalente à “narrativa fundamental” que identifica claramente determinado romance180 Referindo-se à semântica do corpus de GRPP, faz Maria Aliete Galhoz notar que este se assemelha a outros corpora, dando a explicação: “[…] não representará surpresa em relação à tradição colhida nas vertentes portuguesas dos romances tradicionais a partir da recolecta de José Leite de Vasconcellos….” [………] “Os romances de maior difusão por todas as áreas do país […] mantêm uma canonicidade textos refractários ou hostis às normas axiológico-pragmáticas prevalecentes nessa comunidade”. Cf. Silva [2002], p. 143 e a nota 227, na qual o autor elucida que “[A] relevância da ‘censura preventiva da comunidade’ na produção e na difusão dos textos da literatura oral foi assinalada por Roman Jakobson e Petr Bogatyrev […)” (o autor, na nota 218, cita Roman Jakobson e Petr Bogatyrev “Le folklore, forme spécifique de création”, in Questions de Poétique, Paris, Éditions du Seuil, 1973, pp. 63-64). 178 Referimo-nos, logicamente, às versões, publicadas ou não, a que o investigador possa aceder, não esquecendo que outras possam vir a surgir. Esse corpus deverá ser suficientemente amplo e abrangente, no espaço e no tempo, para permitir uma eficaz confrontação das versões, o que, no nosso caso, procurámos fazer, tal como descrito na Introdução, no ponto 3. Delimitação de um corpus. 179 A identificação das linhas narrativas dos romances do corpus, enquanto procedimentos a ter na procura do sentido, será feita adiante. 180 É o próprio conceito de invariância, enquanto definidor de determinado esquema, fabular ou discursivo, que permite que se possam ainda identificar fragmentos de romances “perdidos” ou, até, que se continue a classificar como Delgadinha as versões nas quais já não há um pai incestuoso, mas um namorado indesejado. 69 A REVELAÇÃO DO SENTIDO representativa da estrutura arquétipo-potencial do romance que são, e as sequências definidoras do seu desenvolvimento tal como se estabilizaram, ou fixaram, na tradição portuguesa”181. Note-se que aquela colectânea e a de José Leite de Vasconcellos, Romanceiro Português, incluem um número significativo de versões que, recolhidas em espaços geográficos diversos e cronologicamente afastadas, corroboram o afirmado pela investigadora. A canonicidade de que fala Galhoz será, pois, o factor que faz reconhecer um romance como distinto dos outros; porque cada um deles constitui uma estrutura narrativa própria, o seu sentido procurar-se-á, primeiro, na narrativa invariante. Para a encontrar, para além das que constituímos em corpus, analisámos o maior número que nos foi possível de versões publicadas posteriormente ao ano 2000, de versões de outras tradições, em suporte escrito, discográfico ou na Internet, bem como as que se encontram depositadas, e ainda inéditas, no Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas Guerreiro”182. Assim, nos romances do nosso corpus, poder-se-ão postular as seguintes invariâncias, desafectadas dos elementos de variação que afectam a estrutura narrativa mais completa: Romance Bernal Francês Invariância-base Uma mulher recebe em casa o homem que julga ser o amante; na realidade, trata-se do marido, que desvenda a identidade e a mata. Veneno de Moriana Uma jovem vinga-se do cavaleiro com quem esperava casar, fazendo-o ingerir vinho envenenado. Silvana Uma jovem solicitada ao incesto pelo pai é ajudada pela 181 Cf. GRPP, p. LI. Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Professor Manuel Viegas Guerreiro”, unidade investigação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 182 70 de A REVELAÇÃO DO SENTIDO mãe, que toma o seu lugar no leito e confronta o marido com a sua identidade. Delgadinha Uma jovem recusa o incesto proposto pelo pai, é encarcerada sem água; morre. Gerinaldo Uma infanta seduz o pajem, são descobertos pelo rei; casam. Falamos, então, de invariância também no sentido em que o faz o IGR, ao realçar o dinamismo e a propriedade de abertura do romanceiro, assinalando no Campo RESU, com códigos distintos, as sequências alheias à intriga, as extra-fabulísticas, as extranarrativas e as diversas variantes de cada romance: “En su transmisión, el poema varia, se adapta continuamente al médio en que se reproduce; pero toda variación presupone una ‘identidad’ entre las variantes a outro nível estructural, una 183 ‘invariante’” . Sabe-se que a propriedade de “abertura” e o dinamismo das estruturas tradicionais permitem o fenómeno da variação, através da actividade criadora184 e transformadora dos seus produtransmissores, tanto na estrutura verbal como na estrutura temática, produzindo um extenso leque de variações; as versões-ocorrência, que são afectadas por 183 Cf. IGR, p. 22. Segundo Paul Bénichou, “criação” é a capacidade renovadora dos transmissores que “conservaron el secreto inconsciente de los procedimientos creadores proprios de la poesía oral y los supieran usar com felicidade en más de un caso”. Cf. Paul Bénichou [1968], Creación Poética en el Romancero Tradicional, Madrid, Gredos, 1968, pp.7-9. Diego Catalán refere vários estudos dedicados a este aspecto do romanceiro tradicional, entre os quais os ensaios de Bráulio do Nascimento, “Processos de variação do romance” (1964) e “As sequências temáticas no romance tradicional (1966), os livros de Di Stefano, Sincronia e diacronia nel Romanzero (1967), e de Paul Bénichou, citado na nota acima, além do seu próprio trabalho, Por campos del Romancero. Estúdios sobre la tradición oral moderna. Em relação ao conceito de “criação”, Catalán insiste em que as possibilidades de invenção de um “sujeito folclórico” estão condicionadas pela tradição local, ainda que aceite as observações de Di Stefano sobre a variedade de sentidos introduzidos ou descobertos pelos cantores no texto de cada romance. Cf. Catalán [1997], Parte 1ª (em especial os pontos 3 e 4 de II, “Nuevos Estúdios Acerca de la Creación Poética Tradicional” e “El Romance como Tradición Estructurada y como Estructura Tradicional”, pp. 46-53). Entendemos, aqui, a “criação poética” como a acção, mais ou menos alteradora, exercida nas versões pelos produtransmissores. Sobre algumas causas e consequências das variações na produção de sentido, debruçar-nos-emos mais detalhadamente na Parte II - A Revelação do Sentido. 184 71 A REVELAÇÃO DO SENTIDO toda uma complexidade de factores, “optam” por vezes por seleccionar, eliminar, expandir ou reajustar determinados episódios, sendo os desfechos os mais sujeitos a modificações, numa reelaboração susceptível de afectar a estrutura narrativa e o sentido do romance, como nota Suzanne Petersen: “… notamos una tendência muy marcada y general en el Romancero moderno havia la elaboración del desenlace: o bien a base de la sustituición del final heredado por outro desenlace más de acuerdo com la moralidad del público cantor, o bien mediante la adición de nuevos motivos o de escenas enteras (unas veces inventadas y otras debidas a un préstamo o a una contaminación) que responden mejor a las exigências del gusto y de los valores humanos del cantor moderno y su público” 185 . Os estudos de Bráulio do Nascimento são de particular importância para o estudo da variação no romanceiro, estando dez ensaios reunidos em Estudos sobre o Romanceiro Tradicional186 e outros dispersos por várias publicações. Ao caracterizar os processos de variação dos romances, em 1964, Nascimento concluira que “[A] variação do romance obedece a processos que, embora alterando profundamente sua estrutura verbal, não atingem fundamentalmente sua estrutura temática” 187 . Em 1974, em Romanceiro Tradicional, diz que “existe uma certa autonomia entre as estruturas temática e verbal”, podendo um romance apresentar versões com uma estrutura verbal diversificada, mas mantendo a mesma estrutura temática ou a variação de uma originar a variação da outra. Pode, ainda, haver uma modificação da estrutura temática por contaminação de outro romance e, mesmo, “abandono ou anexação de trechos” 188 . Noutro estudo, em 1994, declara que as variantes derivadas da criação poética “por mais longas e criativas que 185 Cf. Suzanne Petersen [1972], “Cambios estructurales en el Romancero tradicional”, em Diego Catalán, Samuel G. Armistead, edición a cargo de, El Romancero en la Tradición Oral Moderna, 1º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal y Rectorado de la Universidad de Madrid, 1972, pp. 167-179. 186 Bráulio do Nascimento [2004], Estudos sobre o Romanceiro Tradicional, Paraíba, Editora Universitária/UFPB, 2004. Ver outros, na Bibliografia. 187 Cf. p. 120 em “Processos de variação do romance”, em Nascimento [2004], pp. 31-124, anteriormente em Revista Brasileira de Folclore, Ano IV, ns. 8/10, Janeiro/Dezembro de 1964, p. 59-124. 188 Cf. Bráulio do Nascimento [1974], Romanceiro Tradicional, “Cadernos de Folclore”, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1974. 72 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sejam, constituem formas diferentes de dizer o mesmo”, pelo que a análise da poesia tradicional deverá focalizar as invariantes, “estudando as variações também como formas criativas de permanência”, uma vez que “as variantes operam laboriosamente para a permanência da invariante no espaço e no tempo” 189 . Este estudioso reconhecerá a “supremacia da invariante, da fábula, em relação à variante”, sugerindo uma “imperiosidade do estudo global do binómio invariante/variante” e diz ainda, que “[A] estrutura fabular, através das suas sequências, transmite um significado. Em torno desse significado é que deve ser estudada a variância, que venha a modificar a mensagem”190. Os catorze processos de variação que o autor encontra, a partir da análise de quatro versões brasileiras de Veneno de Moriana (Juliana e D. Jorge) são “a participação psicológica, a anástrofe, a supressão, a justaposição, a analogia, o eufemismo, a generalização, a sinonímia, a repetição, a substituição, a contaminação, a actualização e a adaptação”. Alguns destes processos, afectam, sobretudo, a estrutura verbal. Outros, como a supressão e a contaminação, alteram a estrutura temática, enquanto a sinonímia procura preservá-la; já o eufemismo e a generalização implicam a intrusão de factores de ordem psicológica, social e pessoal191. Maria de Fátima Pessoa Viana Silva e Andrea Ciacchi irão reduzir este número a dez e debruçar-se-ão sobre o equilíbrio entre estruturas superficiais e estruturas textuais profundas, caracterizando os processos de variação como paradigmáticos ou 189 Cf. Bráulio do Nascimento [1994], Literatura Oral: Limites da Variação – Comunicação apresentada no IX Encontro Nacional da ANPOLL, em Caxambu, Minas Gerais – 12 a 16 de Junho de 1994, Rio de Janeiro, Sociedade Editorial de Sergipe, 1994. No mesmo estudo, sobre os limites da variação, o autor cita Paul Bénichou, que diz: ”A palavra variante abarca realidades distintas, desde a variante pequena (...) até à variante que modifica vários versos, ou introduz episódios inteiros, cria novas transições, muda o desenlace e, com isto, sugere outro sentido e outra moral do romance”. 190 Citações, respectivamente, das páginas 343, 344 e 346 do estudo “Invariantes, Paráfrases e Variantes na Literatura Oral”, pp. 341-357 em Nascimento [2004], anteriormente em versão espanhola nos Anales de Literatura Hispanoamericana, nº 30, Madrid, Universidad Complutense, 2001, 37-51 e republicado na versão original, em português, no Correio do IBECC/UNESCO, Rio de Janeiro, 2003, 69-89. 191 Cf. “As sequências temáticas no romance tradicional”, em Nascimento [1974], pp. 125-166, anteriormente em Revista Portuguesa de Folclore, Ano VI, nº 15, Rio de Janeiro, Maio/Agosto de 1966, pp. 150-190. 73 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sintagmáticos, conforme se exercem sobre o “aspecto verbal” ou sobre o “tecido temático” 192. Outros estudos193 abordam a variação em diversas perspectivas. A utilização de métodos computacionais no estudo do romanceiro194 veio introduzir alguns dados sobre a variação e, consequentemente, sobre a questão da invariância. Suzanne Petersen desenvolveu um método que lhe permitiu analisar sincrónica e diacronicamente as estruturas verbais e temáticas de um certo corpus de romances195, concluindo que as secções básicas que distingue (“comienzos, escenas principales y secundarias, enlaces y finales”), manifestaram “evidentes tendencias evolutivas de carácter estructural”. No estudo em causa, e como atrás referido, Petersen debruça-se sobre os processos de variação que alteram os desenlaces (como supressão, substituição ou adição de motivos, versos ou cenas e remates formulários moralizantes) e exemplifica com o caso de Bernal Francês, cuja estrutura, na tradição portuguesa e segunda a autora, se altera radicalmente com a junção de “duas cenas” de A Aparição196. Os estudos quantitativos da variação, no que 192 Cf. Maria de Fátima Pessoa Viana Silva e Andrea Ciacchi [1987], “Les processus de variation dans le Romanceiro de tradition orale: une étude des axes syntagmatique et paradigmatique”, em AAVV, Litterature Orale Traditionelle Populaire, Actes du Colloque, Paris, 20-22 Novembre 1986, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris, 1987, pp. 231-245. 193 Referimos em particular os estudos de Diego Catalán reunidos em dois volumes, da maior importância para o conhecimento dos processos de reelaboração do romanceiro oral. São eles o já referido Catalán [1997] e Diego Catalán [1998], Parte 2ª: Memória, invención, artifício, Madrid, Fundación Menendez Pidal, 1998. 194 Já em 1971, algumas comunicações do Primer Coloquio Internacional sobre el Romancero, sobretudo na 3ª sessão de trabalho, posteriormente revistas pelos autores para a versão impressa, davam conta das metodologias computacionais que então vieram abrir novas perspectivas ao estudo do romanceiro. Cf. Diego Catalán, Samuel G. Armistead [1972], edición a cargo de El Romancero en la Tradición Oral Moderna, 1º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal y Rectorado de la Universidad de Madrid, 1972. 195 Do corpus seleccionado pela investigadora faziam parte Bernal Francês e Veneno de Moriana, bem como outros a que nos reportamos neste trabalho (La aparición e El prisionero). Cf. Petersen [1972], pp. 167-179. 196 Segundo Suzanne Petersen, estas cenas sentimentalizam o romance de adultério. O estudo quantitativo da evolução do diálogo no romanceiro levado a cabo pela autora demonstrou a tendência “exagerada” da tradição portuguesa para dramatizar e sentimentalizar o relato. op. cit. O estudo contempla apenas as 32 versões de VRP, mas podemos confirmar a tendência maioritária da presença de A Aparição em Bernal Francês no nosso corpus de 116 versões deste último, se bem que em número variável de versos do primeiro. 74 A REVELAÇÃO DO SENTIDO diz respeito ao fenómeno da contaminação197, foram contestados por autores como Pere Ferré, que entende “a necessidade de critérios qualitativos para a determinação do tema primordial nas versões híbridas” 198 . Jesús Antonio Cid fará notar que os romances, por razões várias, mas justificadas pela capacidade de abertura do sistema tradicional, estão continuamente a ser sujeitos a transformações, no que chama uma “adaptação ao meio” e que as alterações radicais afectarão tanto a mensagem como a organização do próprio relato. No entanto, sublinha que a variação tem fortes restrições, entre as quais o carácter conservador da tradição oral. A ritualização, a divinização ou a conversão em jogos infantis serão, igualmente, factores que restringem e chegam a anular a possibilidade de transformação da mensagem, actuando a um nível externo ao conteúdo do romance; a nível interno, e porque este conteúdo é constituído por uma reflexão ideológica sobre questões que afectam a colectividade, a restrição à mudança dever-seá, precisamente, à escassez e lentidão das próprias mudanças ideológicas sociais199. É geralmente aceite ser no momento da aprendizagem que a memória individual fixa determinado modelo; logo, será esse que se irá transmitir, embora o modo de transmissão do romanceiro proporcione, em qualquer altura, uma contínua reinterpretação. Nem sempre é seguro determinar com exactidão as causas concretas que levam à produção de determinadas variações, visto que estas, além do próprio processo de tradicionalização, têm origem em factores diversos, que aliam 197 No âmbito do presente trabalho, o fenómeno da contaminação interessar-nos-á sobretudo pelo efeito da sua presença no sentido do romance contaminado; assim, pela importância que nele adquirem, as contaminações, tal como as variações, serão tratadas em sítio próprio, na Parte II, Capítulo III - As intervenções na enunciação e no enunciado. 198 Cf. Pere Ferré [1983], “Os Romances da ‘Infantina’, ‘Cavaleiro Enganado’ e ‘A Irmã Cativa’ à Luz da Tradição Madeirense”, disponível na Internet em http://cvc.institutocamoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/28/boletim28_pag143-178.pdf, arquivo acedido em 8 de Novembro de 2009. 199 Cf. Jesús Antonio Cid [1979], “Recolección moderna y teoria de la transmission oral: El traidor Marquillos, cuatro siglos de vida latente”, em Diego Catalán, Samuel G. Armistead, Antonio Sánchez Romeralo, edición a cargo de, El Romancero hoy: Poética, 2º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos, 1979, pp. 281-359. 75 A REVELAÇÃO DO SENTIDO condicionantes colectivas e individuais 200 . Estas últimas podem residir no foro psicológico ou na já referida criação poética, que, por sua vez, terá as suas próprias condicionantes individuais201, pelo que salvaguardaremos o risco de tentar apontar essas causas, sobretudo quando não dispomos de um aparato que nos informe das circunstâncias ou contexto de enunciação das composições. Relembramos, por outro lado, que o objecto de que se trata é múltiplo (as versões) e, simultaneamente, uno (o texto de cada romance) e que essa paridade terá de estar sempre presente num estudo como o que empreendemos, pois que toda a variação o é relativamente a uma invariância. A interpretação de certas “intervenções” nem sempre é fácil a um leitor ou a um ouvinte que não em presença 202 , porque estes se encontram “fora” do contexto da enunciação e só conhecem as condições da performance na medida em que o colector as regista e edita203, o que não era o caso em colecções mais antigas204. 200 Pere Ferré relaciona o romanceiro com a memória, frisando ser na “memorização selectiva, feita na aprendizagem de um texto tradicional, que se introduz a variante” e diz que “[E]ssa introdução não é feita por um acto consciente e voluntário de modificar o texto herdado mas pela competência desse novo falante do romanceiro, profundo conhecedor do léxico e da gramática do género”, notando, ainda, que a “memória prega partidas”. Cf. Pere Ferré [2011], “Romanceiro e Memória”, em José Pedro Serra, Helena Carvalhão Buescu, Ariadne Nunes, Rui Carlos Fonseca, Memória & Sabedoria, Centro de Estudos Clássicos, Centro de Estudos Comparatistas, Edições Húmus, 2011, pp. 435-458. 201 Relembramos, a propósito, o atrás citado comentário de uma informante: “Dantes traziam as quadras das canções, mas a gente como no sabia ler, cada uma compreendia os pontos de sua maneira...” 202 É o caso das gravações comercializadas que, geralmente, editam as recolhas mais “perfeitas”, sem as hesitações, repetições ou comentários dos informantes. 203 Veja-se a nota à versão G/54 Catalán/Cid (1975) 61-62, que diz expressamente terem as explicações sido omitidas: “La colectora advierte que en la versión se intercalaban explicaciones en prosa que aqui se han omitido”. Outros optam por incluir um aparato minucioso das variantes nas versões recolhidas, como é o caso de Costa Fontes, Pere Ferré e Dias Marques. 204 Para a problemática das complexidades da edição, devemos remeter para os estudos da especialidade. Com o objectivo de reflectir sobre esta questão, o Instituto Universitário Menéndez Pidal, em finais de 2002, organizou um Seminário Internacional subordinado ao tema Problemas de transcripción y edición de textos orales y escritos, cujos estudos foram publicados em obra que dedica o capítulo I ao romanceiro (Transcripción y edición des romancero: problemas y propuestas). Dos vários problemas abordados, destacamos os que dizem respeito aos critérios de tratamento editorial de versões prosificadas, total ou parcialmente, de fragmentos, das várias recitações por um mesmo emissor, de variantes e dos comentários que acompanham a recitação ou canto, cuja edição terá a ver com os seus objectivos finais. Cf. Ramón Santiago, Ana Valenciano, Sílvia Iglesias [2006], editores, Tradiciones Discursivas. Edición de textos orales y escritos, Madrid, Editorial Complutense, 2006. 76 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em estudo visando rever terminologias, conceitos e métodos de recolha de literatura “oral, popular e tradicional”, Díaz Viana critica a desatenção que, por vezes, é dada ao agente humano, referindo-se às causas ou condicionantes que fazem com que as versões sejam “precisamente como son y no de outra manera” e diz: “el ‘informante’ o ‘transmisor’ es considerado generalmente a manera de ‘pieza neutra’ que reproduce, pero no influye en nada sobre lo transmitido” 205. Nesta perspectiva, e porque se trata de textos produzidos/transmitidos por agentes humanos, entendemos haver também, numa análise dos processos de significação dos romances, que considerar a acção exercida no sentido por esses agentes, tendo em conta que o fazem em diversos graus e de diversas maneiras206, matéria a que dedicamos o capítulo III da Parte II. Segundo Diáz Roig, aquele para quem o que importa é aquilo que diz, procurará manter a coerência do texto207. Aqueloutro, para quem é o aspecto fónico o essencial, não se importará de deformar as palavras se não compreender cabalmente o seu significado, produzindo então corruptelas de certos termos, como acontece em Bernal Francês ([vestidos] “cramezim”, por carmesim), ainda que estas possam manter alguma ligação com o seu sentido, como em Gerinaldo (“Bela Infance” e “infância” 208, por infanta). Tais variações podem até ser algo insólitas, como acontece 205 O autor começara por referir a importância, para o estudo do “folclore”, do contributo interdisciplinar da Antropologia, Linguística e Literatura. Na obra, fala-se em “folclore” na acepção do estudo de uma estética colectiva, em oposição à anterior atitude ética, que tende a apresentar o “folk como una alternativa global de sociedad opuesta a la moderna, urbana y deshumanizada”. Cf. Luís Diáz Viana [1997], Literatura Oral, Popular y Tradicional. Una revisión de términos, conceptos y métodos de recopilación, Valladolid, Castilla Ediciones, 1997. 206 Note-se que os romances são cantados, embora os informantes possam preferir recitá-los a um colector, pelo que o aspecto linguístico está ligado ao aspecto musical, podendo, na performance, um deles ser valorizado em relação ao outro. Segundo Arnaldo Saraiva, em estudo sobre a canção de Sérgio Godinho, os dois aspectos “podem manter, em parte ou no geral, relações de dominante e de dominado (música mais importante do que a letra: canto poetizado – ou letra mais importante que a música: poema cantado, e até recitado); podem estabelecer entre si um jogo complexo de certo equilíbrio e desequilíbrio, de coincidências e incoincidências, de repetição, paralelismo, paródia ou de crítica, complementaridade, alternância…”. Cf. Arnaldo Saraiva [1980], Literatura Marginal izada – Novos Ensaios, Porto, Edições Árvore, 1980, p. 130. 207 Cf. Roig [1997], pp. 49-50. 208 O termo “infanta” designa, em Portugal e Espanha, a filha de reis não herdeira do trono, mas também, como feminino de “infante”, é relativo à infância. Cf. ambas as entradas em Houaiss [2003], Tomo IV, p. 2090. O uso da expressão “infância” por “infanta”, que pode dever-se ao desconhecimento pelo 77 A REVELAÇÃO DO SENTIDO em uma versão de Gerinaldo, sem que a função das respostas do pajem ao rei, e que é a tentativa de o enganar depois de ter sido encontrado deitado com a infanta, se altere: 16.“- Eu venho de 'penar perus das bandas d'além do rio”, G/153 Fontes I (1987) 506-507 A coerência de sentido poderá manter-se caso haja esquecimento genuíno da forma versificada e esta seja substituída por uma prosificação, como veremos adiante ao tratar este fenómeno. Por outro lado e porque a estrutura tradicional é dinâmica, o texto poderá ser reformulado em versões que manterão, ainda assim, o sentido original, parte dele ou que, pelo contrário, modificarão o romance em variantes com outros sentidos. Estas reformulações, porém, não dependem apenas de um indivíduo, pois as inovações só se fixam e retransmitem se houver aceitação pela comunidade, razão pela qual serão factores ditados pelos códigos sociais vigentes, até mais que os individuais, a afectar o sentido, nas versões209. Bráulio do Nascimento assim o entende: “[S]ão numerosíssimos os exemplos em que o texto tradicional, ao recriar-se, adapta-se ao contexto cultural, transmitindo uma particular visão da sociedade em que ocorre”210. Deste modo, uma vez que o contexto cultural em que os produtores/transmissores se inserem é diversificado, também as causas e os efeitos da variação serão diversos, como dissemos, o que é corroborado por Beatriz Mariscal de Rhett: “Participants in the chain of transmission of oral texts decodify the narratives in terms of their own social structures. The types of relationships they establish between the actions and situations narrated and the world as they perceive it will not only determine their comprehension produtransmissor do seu significado, além da semelhança fónica, retém-lhe o sentido de “filha de reis”. Certos termos, por mais desusados, podem sofrer transformações que as modernizam e é assim que, em versões de Gerinaldo, a “infanta” torna-se “princesa”, observando-se a “adaptação”, um dos fenómenos de variação encontrados por Nascimento [1974]. 209 Daí, o interesse de conhecer o contexto da enunciação de cada versão-objecto, o que nem sempre é possível, visto que na sua grande maioria não se encontra anotado pelos editores, embora possamos, ainda assim, analisar nelas os elementos que revelam variações relativamente ao sentido/protótipo do romance. 210 Cf. Bráulio do Nascimento [2005], “Cultura Popular e Mudança Social”, arquivo acedido na Internet na Internet, em 2 de Junho de 2005, www.tropicologia.org.br/conferencia/1986cultura popular.html. 78 A REVELAÇÃO DO SENTIDO and memorization of the text, but in addition it will necessarily play a part in their restructuring of the narrative when the information is retrieved in a future oral performance of the text.”211. O tipo de comunidade em que o romance é transmitido pode, na verdade, ter os seus efeitos no sentido e é por isso que Aurélio Pérez refere o “ambiente machista” das comunidades transmissoras de versões centro-americanas e mexicanas do romance de incesto Delgadinha, que faz com que estas abram com uma sequência na qual a protagonista se passeia com um vestido transparente e explica esta introdução como uma tentativa de justificar o comportamento de um pai que assedia sexualmente a filha e atribuir as culpas a esta, por se exibir despudoradamente, tentando-o: “Delgadina se paseaba de la sala a la cocina com vestido transparente que a su cuerpo lo ilumina”212. Este tipo de visão social, na verdade, altera o sentido de Delgadinha, pois não há no “modelo canónico” do romance a mínima sugestão de que a filha aja desse modo213. O facto é que um romance, na sua globalidade textual, apresenta grande número de variações, devido a factores como os que apontámos, embora se observe certa estabilidade no sentido mais profundo. É assim que, em Bernal Francês, não se altera o tema do adultério nem o “castigo” da morte para a adúltera, o mais tradicional. Neste caso, trata-se de manter o sentido de uma morte sangrenta, seja qual for o meio utilizado, quer por degolação quer, como em versão do Novo México, com uma pistola: ”En una cama de flores, allí fué donde murió, Com três tiros de pistola que su marido le dió…”214. 211 Cf. Beatriz Mariscal de Rhett [1987], “The Structure and Changing Functions of Oral Traditions”, Oral Tradition, 2/2-3 (1987), pp. 645-666, disponível em journal.oraltradition.org/files/articles/2ii/12_rhett.pdf, arquivo acedido na Internet em 27 de Janeiro de 2010. 212 Cf. Pérez [2003], p. 130. 213 Note-se que as versões de Delgadinha que abrem com a protagonista passeando-se dever-se-ão à intromissão neste romance do motivo da provocação de Silvana, que mais tarde abordaremos, havendo, no exemplo acima, como que uma sua exacerbação, na descrição da transparência das suas vestes; de facto, no caso citado, observa-se a rima em í-a deste último tal como nas versões portuguesas em que a mesma contaminação acontece. 79 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Que o sentido é este – a inevitabilidade de uma morte sangrenta – prova-o o facto de a própria protagonista o pressupor, tanto que chega a pedir outra modalidade de morte 215 : 14.“mata-me com a toalha ‘longueira’ que eu tenho ao pé de mim.”, BF/112 M.A.Vilhena (1995) 121. A devolução à casa paterna que se dá em algumas versões, com o ónus da punição a recair sobre o pai, parece uma variante mais suave, mas este tipo de castigo não deixa de ser uma “morte social” para a adúltera. É nessa perspectiva que entendemos que nem todas as variações afectam o sentido mais profundo dos romances, devendo-se mais a uma adaptação cultural do que a uma verdadeira transformação. É o caso de uma versão brasileira de Veneno de Moriana, por exemplo, na qual o “primo Jorge” chega de bicicleta. Trata-se de uma variação a nível cultural que moderniza/urbaniza o clássico cavalo do romance, mas não afecta o sentido deste, visto que a posse de uma bicicleta, num determinado meio sócio-cultural, equivaleria à daquele animal, fazendo-se corresponder o estatuto social dos proprietários de ambos os meios de transporte216. Verdade é que o transmissor, que muitas vezes o reconhece e aponta, pode ter falhas de memória que ocasionam elipses de sequências ou hemistíquios, aparecendo versões fragmentadas217, mas essas falhas nem sempre significam um esquecimento da intriga, mas sim dos versos, pois casos há em que os hiatos são preenchidos com relatos prosificados que respeitam o sentido geral do romance. Por outro lado, nem sempre 214 Versão publicada por León Campa Arthur, Spanish Folk Poetry in New México, pp. 40-41 apud Luís Santullano [1955], Romances y Canciones de España y América, Argentina, Librería Hachette, 1955, pp. 199-200. 215 Também em versões de O Conde Alarcos, romance em que o conde deve matar a mulher para casar com a infanta, aquela pede ao marido que não a mate de forma sangrenta, sendo o uso de “uma toalha” uma das alternativas sugeridas: “Não me mates com adagas nem ferros que façam f’ridas, Mata-me com uma toalha ao uso da fidalguia.” (versão de Poiares, c. Freixo de Espada-à-Cinta, d. de Bragança, reeditada em RPTOM, Vol. II, p. 343, com o nr. 667). 216 Versão 1.19.14 – Primo Jorge/EBR 37.3 (EBR VII/B) em Alcoforado, Albán [1996], p. 163. 217 Distinguimos a fragmentação, que consiste na supressão de elementos narrativos próprios do romance e se exerce nas versões, do fragmentismo, este abordado atrás. 80 A REVELAÇÃO DO SENTIDO serão devidas à falta de memória certas elipses ou reelaborações de sequências mas a fenómenos de outra natureza. Tomamos como exemplo o estudo de Dias Marques sobre uma versão de Delgadinha que substitui a proposta incestuosa pelo namoro da jovem com um criado, na qual a informante comunica, logo de início, algumas dúvidas sobre o que vai narrar (“[…], não sei como era…”). Nas diversas recitações que faz, a informante irá oscilar entre um final em que Delgadinha não morre e casa com o criado, ou com a mais tradicional morte da rapariga e Dias Marques conclui haver um esquecimento propositado ou inconsciente do desfecho trágico, substituído este por um final feliz, pela informante, que o terá achado mais a seu gosto218. Certas “intervenções” nas circunstâncias do romance são desencadeadas por tabus, que levam ao atenuar de palavras ou ideias reprovadas pelos grupos sociais, gerando eufemismos cuja produção, diz Bráulio do Nascimento, “é determinada antes de tudo pela pressão social”. O autor esquematiza os diversos tipos de elaboração eufemística que ocorrem no romanceiro tradicional: por elipse parcial ou total, por substituição sinonímica ou inventiva e por criação poética 219 . Os eufemismos são também uma forma de implícito e têm grande representação no romanceiro, sendo os temas de natureza sexual dos mais afectados220. Encontram-se muitos exemplos para designar o acto sexual como dormir com, deitar com, como marido e mulher e expressões do tipo “[sem te] virares para mim”, em Bernal Francês ou “[encontrou-os] 218 Cf. J. J. Dias Marques [1996], “E acabou tudo em bem”. Sobre uma versão algarvia do romance de Delgadinha”, Revista ELO, 2, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1996, pp. 157-175. Ver versão D/243 Marques (1996) 164-166, 167-168 e 170-171. 219 Cf. Bráulio do Nascimento [1972], “Eufemismo e Criação Poética no Romanceiro Tradicional” em Diego Catalán y Samuel Armistead, edição a cargo de, El Romancero en la Tradición Oral Moderna, 1er Coloquio Internacional, Madrid, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal Y Rectorado de la Universidad de Madrid, 1972, pp. 233-275. 220 Diz Heinz Kröll que “a noção das relações sexuais está sujeita a uma forte interdição linguística” e que se actualiza em expressões de sentido mais vasto, por perífrases e metáforas. Cf. Heinz Kröll [1984], O Eufemismo e o Disfemismo no Português Moderno, Vol. 84, Biblioteca Breve, Lisboa, ICLP, 1984, pp. 108-111. 81 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de braça com braça como mulher e marido” ou “está a vencer uma batalha” 221 em Gerinaldo. Já os os disfemismos obscenos aparecerão sobretudo em certos romances vulgares ou nas cantigas narrativas. O que pode deduzir-se de alguns casos de variação é o desejo de moralizar determinadas situações narradas nos romances, que eram cantados em ocasiões e circunstâncias diversas, nomeadamente nos serões familiares, durante o desempenho dos trabalhos agrícolas ou até em bailes. Não se torna difícil acreditar que a presença de jovens e crianças nesses eventos fosse mais propícia a certas alterações de carácter eufemístico e até à sua utilização moralizante. Refere José Alberto Sardinha as palavras de uma sua informante, que corroboram esta hipótese e que transcrevemos: “A minha avó chamava a atenção à gente e cantava isto (romances, canções narrativas) como exemplos para a nossa vida. Era nos serões. A minha avó, coitadinha, fazia renda, 222 obrigava-nos a rezar toda a noite e cantava estas histórias de exemplos” . Percebe-se, então, como a presença de certo tipo de público pode gerar alterações de sentido. Se certas alterações podem ser consideradas da responsabilidade individual dos informantes, como acima referimos para a versão de Delgadinha analisada por Dias Marques, o certo é que em várias outras versões há também a substituição do pai por um namorado, na primeira parte do romance. Não será, pois, um simples “esquecimento” a troca de identidade de um dos protagonistas de Delgadinha, sobretudo nas versões cantadas pelas crianças 223 , mas uma deliberada intenção, por parte da fonte da aprendizagem, de lhes esconder tema tão pouco edificante. Nessas versões, já não é o 221 G/117, v. 17 e G/159, v. 17. Sardinha [2000], p. 102. 223 Segundo Ana Pelegrín, “varios temas de los romances se cantan en corro de niñas incorporados y adaptados de la tradición adulta con temas ‘poco apropiados a la edad de los cantores’ pero donde se percibe en aquellos espíritus infantiles el sentimiento trágico de la vida». A citação que a autora faz é de Roh, II, p. 385. Cf. Ana Pelegrín, Romances del repertorio infantil en América – www.ucm.esBUCMrevistas.pdf, arquivo acedido na Internet em 26 de Maio de 2009. Numa das versões “do pretendente” no nosso corpus, a D/215 Ventura (1994) 55, indica-se o seguinte contexto: “Utilizado como cantiga de roda nos anos 30”. 222 82 A REVELAÇÃO DO SENTIDO pai que assedia sexualmente a filha, mas um pretendente desta que lhe faz propostas amorosas. Este caso é um tanto diferente do da versão algarvia acima citada, na qual há um interdito implícito referente à condição social, sendo o tabu interno à intriga; o namorado é indesejado, sim, mas é-o pela sua condição inferior – é um criado – e parece ser por isso que Delgadinha é castigada. A substituição do pai por um “namorado” assenta num tabu, o incesto, mais forte que o da desigualdade social. É o tipo de variação que é portador virtual de uma modificação e, a divulgar-se o modelo, desapareceria Delgadinha enquanto romance de incesto para surgir um romance diferente, agora com o tema de amores fatais e tirania de um pai. Outro tipo de eufemismos verifica-se, por exemplo, na versão abaixo, de Gerinaldo. A informante, no v. 2, emprega o habitual “passar a noite” e também, no v. 12, parece querer acentuar uma certa inocência na situação (“entraram nos dois p'rò quarto, foram os dois a dormir…”, G/132 Fontes I (1987) 490-491). Além disso, faz Gerinaldo pedir a infanta em casamento ao rei; este, por sua vez, dará ao pajem o infantilizado epíteto de “meu menino”: 19.“- Bom dia, ó senhor rei, bom dia le venho dar; 20. venho-le pedir a sua filha para com ela casar. 21. - Donde vens, ó Gerinaldo, donde vens, ó meu menino?...” . É graças à nota prévia do colector que podemos inferir que a razão desta atenuação da carga sexual e, também, da presteza do pedido de casamento (que na maioria das versões não ocorre) estará na presença de duas crianças, uma delas filha da informante: “Recitado por Olívia Afonso Esteves, de 35 anos de idade. Ofereceu muita resistência, mas acabou por ditá-lo ante os rogos da filha e de outra miúda”. 83 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Quaisquer que sejam as causas, é nos seus efeitos (as versões) que se revela o sentido produzido pelas variações e a importância deste assunto leva-nos a dedicar-lhe um capítulo próprio224. 224 Na Parte II, Capítulo III – As intervenções na enunciação e no enunciado. 84 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO III A ORGANIZAÇÃO DA NARRATIVA Os romances são, já o dissemos, poemas narrativos que contam/relatam um ou vários acontecimentos ou episódios de um acontecimento. Essa narrativa, enquanto modo de representação literária 225 , corresponde a uma determinada conjunção dos factores personagens, tempo e espaço, articulando uma intriga. Entender os modos como essa narrativa se organiza será um dos procedimentos a ter na procura do sentido e o objecto deste Capítulo. 1. Organização narrativa e sequências Conhecer a estrutura interna dos romances é de não somenos importância para a procura do sentido. Compreende-se que uma narrativa organizada de forma lógica e cronológica, com um encadeamento coeso dos factos narrados, contendo um maior número de elementos informativos e serem estes explícitos, revelará com mais presteza o seu sentido. Porém, nem sempre os romances obedecem a este modelo 226 e diversos investigadores debruçaram-se sobre a questão da estrutura interna dos romances. Entre eles, Menéndez Pidal, que distingue os “romances-conto”, que relatam uma acção extensa com vários incidentes, compreendendo antecedentes, núcleo e desenlace, dos “romances-diálogo”, que suprimem a narração e desenvolvem a cena ou situação em forma de diálogo, sem versos de união que informem quem fala e responde227. Pidal fala 225 Não nos cabe, aqui, a intenção de rever a multiplicidade de estudos sobre narratologia, para o que reenviamos para estudos sobre a matéria, como o de Carlos Reis, Ana Cristina M. Lopes [2002], Dicionário de Narratologia, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2002, de entre os indicados na Bibliografia, parecendo-nos legítimo falar de “narrativa literária” em relação aos romances orais tradicionais. 226 O que não impedirá, cremos, o acesso à revelação do seu sentido, pois é possível encontrar, mesmo em estruturas menos simples, os elementos-chave que permitem a reconstrução de uma organização sequencial da narrativa, como adiante intentaremos comprovar. 227 RoH I, pp. 63-65. 85 A REVELAÇÃO DO SENTIDO ainda de “romances-cena”. Já Di Stefano, para quem há que aprofundar estas classificações, observa que o “romance-diálogo” não é senão uma forma de organizar o “romance-cena”, que se concentra num único episódio e representa a estrutura narrativa que caracteriza o romanceiro228 preferindo distinguir as formas de organização do relato segundo duas estruturas, a “al a” e a “ mega”. Na alfa, coincidem a estrutura superficial com a estrutura profunda, o que não acontece na ómega, na qual os factos narrados não correspondem à ordem lógica e cronológica 229. Outros investigadores encontraram diversos tipos de estruturas no romanceiro, como Diego Catalán que prefere, à classificação dos romances segundo a sua estrutura interna, postular três níveis de organização poética230, como já referimos. Por seu lado, Díaz Roig refere a existência de estruturas minoritárias, como é o caso da estrutura concêntrica de romances como Delgadinha, com uma parte introdutória e um final e que são baseados na repetição enumerativa do núcleo da história. A autora considera ainda não ser aplicável aos romances a teoria de Propp sobre o conto tradicional, por não ser possível reduzi-los a uma série fixa das funções, mesmo nos “romances-conto”, visto que as funções dos actantes podem mudar nas várias versões de um mesmo romance, pela acção dos “recriadores”231. Por nossa parte, adoptamos o conceito de níveis de organização poética de Catalán, que consideramos operacional para um estudo da revelação do sentido, vindo a adaptá-lo à nossa metodologia232. Nesta perspectiva, entendemos que a estrutura interna do romance se procurará na narrativa, que, por sua vez, se organiza em sequências. 228 Cf. Giuseppe Di Stefano [s.d.], El Romancero, 4º ed., Madrid, Narcea, s.d., pp. 24-47. apud Roig [1997], pp. 41-44. 230 Cf. IGR, pp. 19-25. 231 Cf. Roig [1997], pp. 41-44. 232 Cf. Introdução. 229 86 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Nos romances, a narrativa tende a apresentar-se como uma cadeia cujos elos são constituídos por eventos sucessivos, que se distinguem dos anteriores e dos posteriores por uma disjunção de espaço, tempo e actores, correspondendo cada evento, de certo modo, a uma cena na peça teatral233. No entanto, nem todos os romances apresentam a mesma estrutura interna, podendo os factos discursivamente narrados não corresponder à ordem lógica e cronológica da estrutura profunda, como atrás ficou dito. Assim sendo, o acesso ao conhecimento do programa narrativo completo de um romance é facilitado pela segmentação prévia do texto em unidades narrativas, cada uma delas constituindo uma sequência, que é objecto de diversas definições. O IGR especifica o seguinte: “[D]enominamos secuencia a la unidad articulatoria mínima al nível de organización del relato en que la intriga es expresión de un contenido fabulístico. La secuencia puede definirse como la representación de un suceso que, al cumplirse, modifica sustancialmente la interrelacion de las dramatis personae, dando lugar a una situación de relato nueva”234. Para João David Pinto-Correia as “sequências” serão as “grandezas” referidas na definição de “segmentação” do Dicionário de Semiótica de A. J. Greimas e J. Courtès (“…um primeiro encaminhamento empírico, com vista a decompor provisoriamente o texto em grandezas mais fáceis de serem manejadas”). O autor apresenta uma proposta de “divisão sequencial” como “etapa primeira na análise da significação narrativa” dos romances que 233 Catalán entende haver mudança de cena quando a acção se desenrola num novo cenário, podendo a transição ser explícita ou estar implícita no diálogo que se segue. Cf. Catalán [1997], nota 14, p.118. Note-se, também, que nos romances são respeitadas as características da narrativa popular, na qual raramente surgem em cenas mais do que dois personagens ao mesmo tempo, de acordo com uma das suas leis épicas, a “Lei de Dois em Cena”, segundo Axel Olrik: “Among others, the so called Law of Two to a Scene is a manifestation of the clarity of the narrative: the narrative only reluctantly brings more than two characters on stage at the same time; under particular circumstances a third (subordinate) character may be added for a short performance. The narrative prefers one of the performing characters to disappear from the stage, or at least to step outside of the action before a new appears.” Cf. o Capítulo 3. The Structure of the Narrative, p. 43 em Axel Olrik [1992], Principles for Oral Narrative Research, Bloomington, Indiana, 1992. 234 IGR, p. 67. 87 A REVELAÇÃO DO SENTIDO analisa, os carolíngios, identificando “uma nova sequência, desde que haja uma disjunção ou mudança de espaço, tempo, actor, etc.”235. Para Bráulio do Nascimento, trata-se de “segmentos temáticos” que, reunidos, “reconstituem o romance”, dispondo de certa autonomia e com a seguinte extensão: “[O] segmento temático é constituído de quatro versos heptassílabos, correspondentes aos quatro hemistíquios do dístico de quinze sílabas”.236 O autor distingue ainda “seqüência temática” como “segmentos temáticos que representam o desdobramento de uma mesma ideia”, portanto semelhantes à forma paralelística e que ocorrem em determinados romances, ao contrário dos exemplos que dá de outros (do nosso corpus são Veneno de Moriana [Juliana e D. Jorge] e Gerinaldo), constituídos por “segmentos perfeitamente individualizados” 237. Considerando estas definições, verifica-se na leitura/audição das versões de um romance que a forma predominantemente dialogada, com a sua escassez de elementos descritivos238 e mesmo da própria identificação dos intervenientes, produz uma falta de informação explícita que dificultará também a percepção imediata das fronteiras de delimitação das sequências. Nestes casos, as localizações de espaço, tempo e actor poderão apenas ser perceptíveis por indícios a nível do discurso, através de deícticos, marcadores espaciais e temporais como “aqui” e “agora”, no uso de expressões formulísticas (ex: ”estando nestas razões”) ou nas próprias “falas” dos protagonistas, através de expressões anaforizantes, como a de exprimir intenção de cometer acções: 235 Cf. RCTOP, Vol. I, pp. 307-359. Nascimento [2004], p. 41. 237 Cf. Bráulio do Nascimento, “As sequências temáticas no Romance Tradicional” em Nascimento [2004], pp. 125-166. 238 Ferré da Ponte diz que o romanceiro adopta as características dos antecessores (cantares de gesta e baladas europeias), ao associar a dramaticidade que neles se verifica à situação de performance pelo jogral, com os ouvintes como espectadores, indo mais longe nas suas “estratégias dramatizadoras”. Cf. Ponte [1987], Capítulo II. A dramaticidade no Romanceiro. 236 88 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “dar-te-hei [gargantilha colorada]”, em Bernal Francês, ou “vou buscar [um copo de vinho]”, em Veneno de Moriana. Devido à condensação narrativa própria do romanceiro, pode também acontecer que se verifique no mesmo dístico a presença de mais do que um verbo de acção, o que daria lugar às disjunções atrás citadas e, consequentemente, ao assinalar de uma sequência que correspondesse a cada uma delas. Assim aconteceria em Delgadinha, cuja protagonista, encerrada, suplica aos membros da família que lhe dêem a água de que está privada pelo pai incestuoso; em cada um dos seus pedidos, há disjunções temporais e espaciais239, actualizadas por verbos que assinalam os seus movimentos na torre (voltou, subiu, viu), bem como disjunções dos actores que com ela falam (os irmãos, as irmãs, a mãe, outros); contudo, todos estes pedidos desempenham a mesma função – explicitar a negação do auxílio pela família e reforçar a angústia crescente de Delgadinha – pelo que constituem uma única sequência, seja qual for o número de pedidos que ocorre, visto que a intriga não evolui. Já o mesmo pedido de água que é feito ao pai, pela aplicação do critério exposto, constitui outra sequência. De facto, repetem-se os passos da anterior sequência, agora em relação ao pai (1 - Delgadinha avista um membro da família, 2 - pede-lhe água, 3 - a água é recusada) mas, desta vez, é introduzido um novo elemento: 4) – Delgadinha diz ao pai que lhe cederá em troca de água. É esta resolução de vir a ceder, declarada por Delgadinha pela forma verbal futura estarei [resolvida a ser sua namorada], que indica uma evidente evolução da intriga, pois dá origem à sequência seguinte, com o pai a ordenar o envio da água. Nesta perspectiva, alargaremos o conceito de sequência, definindo-a como uma unidade que expressa a representação global de uma determinada situação, pelo que poderá ser constituída por mais do que um dístico. Ao cumprir-se aquela, surge uma 239 Aplica-se, aqui, a regra de contracção de Holbek, o que também sucede na passagem do tempo entre a declaração do castigo e a primeira aparição de Delgadinha encerrada na torre e, de maneira geral, em todos os saltos temporais. 89 A REVELAÇÃO DO SENTIDO nova situação de narração, ligada à anterior e à subsequente por disjunções significativas de espaço, tempo ou actores, fazendo evoluir o desenrolar da intriga. Note-se que, nas versões, as sequências podem sofrer uma elipse, serem prolongadas, modificadas ou substituídas por apartes explicativos ou narrativos do informante. Pode, também, haver introdução de sequências ou segmentos sequenciais complementares ou anómalos, bem como contaminações com outros romances que, na versão, funcionarão como sequências do romance importador240. Cada situação de narração, por sua vez, pode conter uma sucessão de vários momentos, de extensão variável mas abrangendo, geralmente, dois versos longos; estes momentos serão denominados segmentos sequenciais. Note-se que acontece, nas versões, serem as sequências “deslocadas” da sua ordem normal na narrativa, o que se deverá a confusão do informante, mas, noutros casos, serem como que “adaptadas” a uma circunstância diferente da habitual. Veja-se o caso abaixo, em uma versão de Bernal Francês, romance no qual há uma sequência em que a adúltera, ao receber o amante em casa, o lava com água perfumada; nesta versão, exactamente o mesmo é prometido ao marido, depois de este revelar a sua identidade, transpondo, assim, aquela sequência para uma outra: 14.”- Se tu és o meu marido, quero-te mais do que a mim; 1 5 . D e i x a v i r a m a d r u g a d a , i r e mo s par a o j ar di m, 16. Eu te lavarei os pés com perfume de alecrim.” BF/115 Alves Ferreira (1999) 116-117 Cada uma das sequências do romance, agrupando os segmentos sequenciais que as constituem, corresponde, pois, a uma evolução na narrativa, sendo possível descrever o seu conteúdo através de frases ou palavras-chave identificadoras do núcleo de sentido que o sustenta. As sequências, que organizam a intriga de forma encadeada, podem ser constituídas por: 240 Estas situações, que podem ou não alterar o sentido do romance, são relacionadas no IGR, Capítulo II. La Estructura Sequencial del Relato, pp. 67-157. 90 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - Uma situação descritivo-narrativa, por um narrador, na primeira ou na terceira pessoa. - Um diálogo, curto ou alongado, entre personagens. - Um monólogo de uma delas. - Um conceito ou afirmação valorativo-moralizante. Contudo, dividir um romance em sequências não consiste apenas na enumeração daquelas que são discursivamente actualizadas e a que chamaremos “explícitas”. Há, também, que identificar situações que, não estando presentes a nível discursivo, são indiciadas por aquelas, de modo a garantir uma linha de organização lógica e coerente. Assim, uma sequência pode igualmente ser constituída por: - Uma situação implícita ou implicada (assinala-se com #). Desta forma, será o conjunto de sequências explícitas e implícitas que constituirá a fábula do romance, cujo sentido se pretende revelado. Em Anexos, exemplificamos o procedimento para a divisão das sequências, de acordo com o modelo-virtual que proporemos, com algumas versões de cada romance do corpus (B7. Exemplificação da divisão das versões em sequências), onde é observável que nem todas as versões apresentam todas as sequências do romance. 2. Os romances do corpus Uma vez estabelecido que cada romance é dotado de uma narrativa invariante e que esta se estrutura em sequências, começaremos por descrever e identificar as linhas gerais que sumarizam cada um dos romances do corpus e que correspondem às sequências “explícitas” em que foram divididos. Fá-lo-emos agora de maneira muito sucinta, importando-nos identificar claramente as situações-chave, pelo que não teremos a preocupação de listar todas as variantes presentes em todas as suas versões disponíveis, não especificando, por exemplo, se o rei, em Gerinaldo, deixa entre os dois 91 A REVELAÇÃO DO SENTIDO amantes uma “espada” ou um “punhal” ou se, em Veneno de Moriana, o vinho envenenado é dado ao cavaleiro num “copo” ou num “cálice”. A identificação das sequências implícitas, nas quais o sentido mais completo se revela, será efectuada na Parte II, após o que proporemos a elaboração do seu “modelo-virtual” 241. Quando necessário e porque romances como Veneno de Moriana apresentam dois tipos de estrutura narrativa e outros, como Silvana e Delgadinha, se encontram frequentemente contaminados entre si, faremos preceder esta parte da análise de algumas questões. 2.1. Bernal Francês Este romance abre, geralmente, com um diálogo sem prévia identificação dos intervenientes ou das circunstâncias que os rodeiam 242 . Deste modo, a revelação do sentido de Bernal Francês basear-se-á, quase integralmente, na interpretação de elementos implícitos na narrativa que vão sendo disseminados à medida que esta avança, residindo o seu interesse, exactamente, nesse jogo de “enganos”. Esta é a razão pela qual a organização da narrativa explícita do romance se apresenta num modelo também ele enganadoramente elementar. Sequência I – A mistificação: Alguém bate a uma porta, pedindo que lha abram; quem está dentro de casa diz que só abrirá a Bernal Francês. Sequência II – O encontro nocturno: Essa pessoa vai abrir a porta, caindo-lhe entretanto um sapato e apagando-se-lhe a candeia; introduz Bernal Francês no jardim e, depois, deita-se com ele. 241 Tal como será proposto, o “modelo-virtual” que elaboraremos de cada romance do corpus, além de descrever as situações invariantes, permite, em qualquer altura, a adição de variantes e de possíveis contaminações que vierem a ser encontradas em versões. 242 Adiante se verá que nem sempre é assim e que, nas versões, podem ocorrer introduções narrativas que, em maior ou menor grau, pretendem colmatar este tipo de “falta de informação”. 92 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência III – O cair da máscara: A protagonista exprime estranheza pela passividade amorosa de Bernal Francês; diz-lhe que não tema os parentes nem o marido, que está longe; o protagonista revela ser o marido. Sequência IV – A punição: O marido diz à mulher que quando chegar a madrugada lhe dará vestuário e adornos de cor vermelha. 2.2. Veneno de Moriana Sobre este romance incidem diversos critérios de distinção, relativamente às suas versões e à estrutura que apresentam. Bráulio do Nascimento divide o corpus de Veneno de Moriana, do qual, com Teresa Catarela, se ocupa para a série Romancero Tradicional de las Lenguas Hispânicas, em “duas grandes famílias: as versões em que se descreve o veneno adicionado ao vinho por Moriana e oferecido a D. Jorge” e “[E] a segunda família, sem referência ao veneno”243. Na sua tese de Doutoramento, Ferré da Ponte analisa as 191 versões de Veneno de Moriana recolhidas até então 244 e divide o romance em dois grupos independentes, chamando a um “modelo transmontano”, com assonância quase exclusivamente em á, com uma parcela em í-o e, ao outro, “modelo nacional”. Refere que “extremamente raro é encontrarmos no romance mais longo a descrição do veneno utilizado pela mulher vingadora”245 e, também, que “a versão pura do romance se inicia com o diálogo entre a 243 Cf. Nascimento [2004], pp.17-29 (pp. 21-22). Anteriormente “O Romanceiro no Brasil”, Comunicação apresentada na II Jornada Sergipana de Estudos Medievais: Romanceiro tradicional, Aracaju, 9-11 de Janeiro de 1977. In: Anais. Aracaju, Secretaria de Estado da Cultura, 1998:115-27. Noutro artigo, “Processos de variação do romance”, e baseado em quarenta e sete versões deste romance recolhidas no Brasil (Juliana e d. Jorge), o autor faz o levantamento de doze “segmentos temáticos”, a partir dos quais elabora um estudo da variação temática e verbal, concluindo que, no geral, se mantém o sentido do romance, enquanto a estrutura verbal sofre diversas mutações. Cf. Nascimento [2004], pp. 31-123. Anteriormente em Revista Brasileira de Folclore, ano IV, ns. 8/10, Janeiro/Dezembro de 1964, p. 59-124. 244 Cf., em especial, o Capítulo V. A Tradição Oral Moderna em Confronto, pp. 518-710, de Ponte [1987]. 245 Cf. Ponte [1987], p. 564. 93 A REVELAÇÃO DO SENTIDO envenenadora e o amante”, como se passa nas versões do Arquipélago da Madeira 246 . Uma sequência em que Moriana fala com a mãe teria sido, então, introduzida posteriormente para explicitar as causas do envenenamento247. Berta Beça, também em Tese de Doutoramento 248 , entende que se trata de romances diferentes e diz: “[S]ous le titre de Veneno de Moriana, dans VRP (533-548) on trouve deux romances différents – Juliana et Eugénia. Nous les séparons car, bien que de thème général identique ‘une femme empoisonne un homme’, ils présentent des différences notables: dans Juliana le héros a un nom – D. Jorge ou D. João; il est célibataire; il invite Juliana à assister à son mariage; et le romance comporte 3 scènes. Dans Eugénia, le héros n’a pas de nom, il est marié et le romance se limite à une scène. Les rimes différencient aussi ces deux romances.” Segundo Vanda Anastácio249, há duas vias de transmissão de Veneno de Moriana, que geram dois modelos estruturais diversos. A autora faz corresponder as versões com o diálogo de Moriana e a mãe à linha de difusão “familiar”, do repertório das mulheres em ambiente doméstico e comuns a todo o território português, e as versões, muito mais concisas e com o incipit “Apeia-te, ó cavaleiro, que são horas de merendar” ou similar, à de “trabalho”, mais especificamente às cantadas por homens e mulheres nas segadas transmontanas250. Nesta situação, a notação temporal expressa no incipit – “ser horas de merendar” - determina que se cante pela hora canónica de noa. 246 Cf. Ponte [1987], p. 566. Voltaremos a este assunto na Parte II, Capítulo I. Ponto 3. O sentido e a organização das sequências. 248 Cf. Berta do Rosário Madureira Beça [1988], Romanceiro de Bragance. Sa Specificité et son Insertion dans le Romanceiro General, Tomo I, Tese de Doutoramento apresentada à Universidade Michel de Montaigne, Bordeaux III (texto policopiado), 1988, p. 239. 249 Cf. Vanda Anastácio [1989], “O Livro de Horas da segada”, em Pedro M. Piñero et alii, edición al cuidado de, El Romancero. Tradición y Pervivencia a fines del Siglo XX, Actas del IV Coloquio Internacional del Romancero, Cádiz, Fundación Machado, Universidad de Cádiz, 1989, pp. 343-353. 250 Lembramos, a propósito, o estudo de Maria Aliete Galhoz sobre os trabalhos efectuados de prospecção dos cantos de trabalho em Trás-os-Montes, no qual analisa, em particular, o romance “A Condessa traidora”, o paralelismo nas “cantigas das malhas” e as “cantigas das trilhas”. Cf. Maria Aliete Galhoz [1995], “Mais algumas nótulas em torno aos cantos de trabalho de Trás-os-Montes”, em Mishael M. Caspi, edição de, Oral Tradition and Hispanic Literature – Essays in Honor of Samuel Armistead, New York and London, Garland Publishing, 1995, pp. 231-255. 247 94 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Para Dias Marques, a funcionalidade não serve “como carácter distintivo entre dois romances, não só porque varia de região para região, como, sobretudo, porque não pode vencer um critério estrutural, baseado na análise das fábulas”, nem a opinião dos informantes deve “ser tomada como critério classificativo”, o que levaria a considerar dois romances distintos, Juliana e Jorge e Apeia-te, ó cavaleiro251. Quanto a Manuel da Costa Fontes, em RPI, apresenta duas versões deste romance, de diferentes estruturas252. Com a análise de oitenta e quatro versões brasileiras, Fátima Batista, na sua tese de Doutoramento, identifica vinte e sete segmentos e distribui as versões por oito grupos, “distintos quanto ao facto de apresentarem ou não certos momentos da narrativa”253. Por nossa parte, independentemente da extensão da versão, da sua proveniência geográfica ou do contexto em que ocorre254, consideraremos que Veneno de Moriana apresenta a mesma narrativa básica – uma jovem envenena o seu presumível sedutor -, mas em dois tipos de organização estrutural, que designaremos do seguinte modo255: - Tipo A: versões geralmente mais longas, constituídas por cinco sequências, sendo fulcral, para determinar o tipo, o episódio da confirmação pedida a ”D. Jorge”256 de que se vai casar e a não explicitação dos ingredientes do veneno. 251 Cf. J. J. Dias Marques [1988], “Recensão a Manuel da Costa Fontes, Romanceiro da Província de Trás-os-Montes (Distrito de Bragança)”, Revista Lusitana. Nova Série, nr. 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 162-171. 252 Correspondendo uma delas ao que chamaremos Tipo A e a outra ao que chamaremos Tipo B, respectivamente a [a) (Can 150)], nossa VM/36 Fontes (1979) 121-122 e a [b) (VRP 539), nossa VM/16 Leite (1960) 107. Cf. RPI [1997], pp. 188-189. 253 Cf. Maria de Fátima B. de M. Batista [1999], O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica, Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-graduação em Linguística da USP, Tomos I e II, São Paulo, 1999. 254 O Tipo B ocorre em Trás-os-Montes, mas também pode surgir noutras áreas, como no distrito de Aveiro, caso da VM/19 Leite (1960) 110, versão esta, contudo, igualmente de contexto de “trabalho”(“cantado nos malhas”). 255 Ver, mais à frente, o “modelo-virtual” deste romance. Note-se que há versões que não apresentam todas a sequências e outras que são apenas fragmentos, de poucos versos, o que dificulta a sua atribuição a um ou outro tipo. Neste caso, limitar-nos-emos a indicá-lo. Ver Anexos. Grupo A – Corpus. 256 Neste Tipo, o cavaleiro é identificado por um nome, objecto de certa variação, mas que designaremos sempre por “D. Jorge”, seja qual for o nome que lhe é dado nas versões, pela frequência com que se encontra. 95 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - Tipo B: versões mais curtas, geralmente com o incipit “Apeia-te, ó cavaleiro” (ou similar, como “cavalheiro”) 257 e constituídas por três sequências. Nestas versões, Moriana não pede a confirmação do casamento e o diálogo entre os dois limita-se à oferta do vinho por ela, à pergunta dele sobre o que lhe deitou e à resposta que aquela lhe dá, explicitando os ingredientes do veneno, que é decisiva para a determinação do tipo. É de notar que há versões que incluem características de ambos os Tipos, com a confirmação do casamento e a menção ao veneno 258 , com ou sem detalhe dos ingredientes, quer na resposta de Moriana, ou, em verso narrativo a dizer que esta o vai buscar. Estão no primeiro caso algumas versões açoreanas259, mas também dos distritos de Castelo Branco e Bragança260 e, no segundo, certas versões madeirenses e do distrito da Guarda 261 . Referenciamos estas versões como Tipo A+B, embora não consideremos que se trata de um tipo diferente, mas de uma junção, do mesmo modo que acontece com as contaminações entre romances. 257 Nestas versões, o nome do “cavaleiro” não é mencionado. Por exemplo, a VM/148 Fontes I (1987) 385-386, transmontana, apresenta o diálogo mãe/filha (vv. 14), o pedido e a confirmação do casamento de “D. Jorge”, com o respectivo convite (vv. 6-9), o que a colocaria no Tipo A, mas também apresenta a explicitação dos ingredientes do veneno (vv. 17 e 18), próprios do Tipo B. Outras, como a VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115, açoreana e também ela “longa” (23 versos), não tem o diálogo mãe/filha, mas explicita o veneno (vv. 13-14). 259 Ver as VM/40 Fontes (1979) 124, v. 8. “Foi um copo de veneno para te tirar a vida”; VM/78 Fontes (1983a) 100, v. 7.”- Uma dosa de veneno p'ra t'acabar de matar.”; VM/79 Fontes (1983a) 99, v. 10. “Veneno estanquenim deitei-te no copo de vinho”; VM/81 Fontes (1983b) 89-90, v. 9.”- Foi um copo de licor prometido em veneno”; VM/94 Silveira (1986a) 34, v. 16. “- O que eu deitei nesse vinho foi os pós de rosalgar”; VM/95 Cortes-Rodrigues (1987) 259-260, v. 13. “- Tu bebeste, Leonardo, um copo de rosalgar”; VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263, v. 10. “- Foi um copo de veneno para te matar assim”; VM/195 Fontes (1989-1990) 58, v. 12. “- Um bocado de veneno para te tirar a vida”. 260 VM/100 Ferré (1987) 68, v. 10.” - Deitei-lhe pó de joana daqueles que eram mais fininhos. A versão é de Penha Garcia, c. de Idanha-a-Nova, d. de Castelo Branco. A versão transmontana é a VM/134 Fontes I (1987) 376-377 (de Moás, c. de Vinhais, d. de Bragança) e tem a variante de ser o cavaleiro quem declara que se trata de veneno: v. 8.”- Que me deste, ó Juliana? Foi veneno, não foi vinho. 9. Já tenho a vista escura, já não enxergo o caminho”. 261 Tornaremos a referir-nos às versões madeirenses que apresentam esta característica, deixando aqui, como exemplo, a VM/53 Ferré (1982) 181, v. 6. “foi logo ‘ó jardim do pai um resalgar apanhar”. A versão do distrito da Guarda é de Junça, c. de Almeida, a VM/258 Terreiro (1999) 80-81 (v.13.” Foi escolher uma rosa do mais fino rosalgar”). 258 96 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Ao elaborar o “modelo-virtual” de Veneno de Moriana, optámos por considerar que a primeira sequência, no Tipo A, é o diálogo mãe/filha, de elevada ocorrência nas versões, e a segunda o anúncio da chegada de D. Jorge, mesmo que ocorra dentro daquele diálogo, uma vez que este representa um desenvolvimento na narrativa. A terceira sequência será o diálogo entre Moriana e o cavaleiro, versando o próximo casamento deste com outra mulher. Neste Tipo os eventos são mais detalhados e as sequências podem alongar-se em pormenores como D. Jorge a convidar Moriana para madrinha. Segue-se, na quarta sequência, o episódio da oferta do vinho e, finalmente, a quinta sequência, com D. Jorge a anunciar a turvação dos sentidos. No Tipo B, a primeira sequência é constituída pela interpelação de Moriana ao cavaleiro para que se apeie e merende; o diálogo efectivo entre os dois passa-se já na sequência seguinte, que inclui a oferta do vinho. É na terceira e última sequência que o cavaleiro se sente mal e pergunta o que Moriana lhe terá misturado no vinho; porém, ao contrário do que acontece no Tipo A, a protagonista informa-o, com certo detalhe, dos ingredientes venenosos, considerando-se então que, no Tipo B, a narrativa foca-se sobretudo no instante do envenenamento. Em ambos os tipos o cavaleiro morrerá, o que se deduz, mas quase nunca é explícito262. Tipo A Sequência I – O Diálogo mãe/filha: Tipo B Sequência I – O Convite: A mãe pergunta a Moriana porque chora Alguém convida um cavaleiro a apear-se e e esta responde que “D. Jorge” vai casar. merendar. Sequência II – A aproximação do cavaleiro Sequência II – A Oferta do vinho: O cavaleiro pergunta a Moriana o que tem 262 As versões de ambos os tipos podem apresentar um acréscimo de versos ao desfecho, com lamentações do cavaleiro e respectivas réplicas de Moriana, ou/e versos de teor sentencioso ou moralista que não fazem, em rigor, evoluir a intriga, pelo que não os consideraremos como uma sequência no seu sentido mais estrito, mas como Prolongamento e Post scriptum. A este assunto voltaremos adiante, ao tratar a elaboração de um “modelo-virtual” dos romances. 97 A REVELAÇÃO DO SENTIDO D. Jorge, a cavalo, aproxima-se de para lhe dar, esta diz-lhe que tem vinho de Moriana há sete anos e o cavaleiro pede para o Sequência III – A Confirmação do provar. casamento: Sequência III: A morte do cavaleiro Moriana pergunta a D. Jorge se é verdade O cavaleiro pergunta a Moriana o que deitou que vai casar; ele confirma. no vinho, pois sente-se desmaiar; Moriana Sequência IV – A Oferta do vinho: descreve os ingredientes que deitou no Moriana diz a D. Jorge que lhe vai vinho. buscar um copo de vinho. Sequência V- A morte do cavaleiro: D. Jorge pergunta a Moriana o que deitou no vinho, pois sente-se desmaiar. 2.3. Silvana, Delgadinha e as versões compósitas Ao apresentarmos a História Interna de Silvana e de Delgadinha, dissemos já que a situação inicial de ambos, a de um pai que se enamora da filha e lhe propõe uma relação incestuosa, é semelhante263. Pese embora esta semelhança, o primeiro elemento de distinção entre os dois romances é a rima, (í-a) em Silvana e (a-á) em Delgadinha e as respectivas intrigas desenvolvem-se de maneira bastante diferente. Começamos por colocar em paralelo os esquemas das sequências explícitas de Silvana e de Delgadinha, para a distinção estrutural entre os dois romances. Silvana (í-a) Delgadinha (á-a) Sequência narrativa introdutória: Sequência narrativa introdutória: Silvana passeia-se e o pai repara nela. Um pai enamora-se de uma das filhas. Sequência I – A Proposta: Sequência I – A Imposição Incestuosa: O pai faz uma proposta de incesto à filha; O pai diz à filha que quer ter com ela uma 263 Berta Beça considera haver um terceiro romance de perseguição incestuosa, denominado Solivana, no qual a filha que se recusa a ceder ao pai seria violada por ele, vindo a ter um filho deste. Cf. Beça [1988], p. 287. A ele nos referiremos na Parte II, no Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado. 98 A REVELAÇÃO DO SENTIDO esta diz que aceitaria, mas receia as penas relação incestuosa; do Inferno. terminantemente. Sequência II – A Intervenção da Mãe: Sequência II – O Castigo esta recusa A filha retira-se e queixa-se à mãe do O pai manda encerrar a filha, devendo assédio do pai; a mãe manda-a trocar de receber pouca ou nenhuma água cama consigo. Sequência e alimentos escassos e insalubres. III – O Estratagema Sequência III – O Apelo à família: Salvador: A filha avista os diversos membros da O pai censura a filha por não ser virgem; família; pede-lhes água; a água é recusada. a mãe revela a sua identidade; o pai Sequência IV – A Cedência: exprime os estratagema. seus sentimentos pelo A filha avista o pai; pede-lhe água; o pai recusa; a filha compromete-se a ceder em troca de água. Sequência V – O Envio da Água: O pai, a toda a pressa, manda levar água à filha. Sequência VI – O Desfecho Delgadinha está morta. Este cotejo das sequências mostra claramente que, embora haja um ponto de partida em comum, os dois romances são distintos, mas há na tradição portuguesa um bom número de versões264 que integram elementos constitutivos da trama narrativa de ambos os romances 265 e nas quais se dá, frequentemente, a absorção das respectivas rimas. É notável a persistência desta junção, que seria já frequente quando Garrett se serve de “Silvana” para compor a Adozinda 266 , pois nesta obra são evidentes as sequências da intriga própria de Silvana, seguindo-se-lhes as sequências de Delgadinha, 264 Segundo Pere Ferré, estes romances não surgem simultaneamente nas mesmas zonas geográficas ou, então, contaminam-se, o que atribui às limitações individuais ou colectivas da memória que provocam a exclusão de “dois temas que quase se sobrepõem” . Cf. Ferré [2011]. 265 Nas versões do Arquipélago da Madeira, Silvana não sofre esta contaminação, mas sim, em algumas versões, a de Queixas de D. Urraca (IGR 0004/RPI: A8). Cf. Pere Ferré [1982], com a colaboração de Vanda Anastácio, José Joaquim Dias Marques e Ana Maria Martins, Romances Tradicionais, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1982, pp. 203-211. 266 Garrett [1983], I, pp. 73-1163. 99 A REVELAÇÃO DO SENTIDO tal como acontece na versão que se encontra transcrita no estudo de Costa Dias sobre as fontes de Garrett 267 e na versão final de Silvaninha, que Garrett declara conter “as variantes mais notáveis”268. A existência destas versões, que parece conduzir à formação de um romance único e a algumas discrepâncias na classificação observadas em alguns editores, leva a que nos alonguemos sobre estas questões. Dá-se o caso de os dois romances terem sido algumas vezes confundidos, tanto mais que a protagonista de Delgadinha toma, em versões deste romance, o nome da outra jovem (Silvana/Silvaninha) 269 . D. Carolina Michaëlis, ao falar do romance de Silvaninha, descreve-o como “o amor incestuoso de um pai brutal e tirano, e o cruel martírio da filha, presa numa torre, e morta a fome e sede, sem que nenhum dos irmãos, nem a própria mãe lhe possa valer.” 270 , referindo-se, certamente, a Delgadinha. Vários e importantes factores os distinguem, além da rima, quer do domínio do explícito, quer do domínio do implícito, havendo autores que apresentam critérios de distinção baseados nas circunstâncias que antecedem a proposta do pai e no tipo de reacção da filha, o que, entrando mais no domínio do implícito, tornaremos a referir na Parte II271. Referimos, a propósito, a opinião de vários autores272. 267 Cf. Dias [1988], p. 135-139. Garrett [1983], II, pp. 125-1322. 269 Nem sempre são diferenciados os nomes dos dois romances. Em artigo na Internet, a respeito do livro de Ariano Suassuna Romance d’a pedra do reino e o pr ncipe do sangue do vai-e-volta, diz o seu autor que “ no capítulo ‘A filha noiva do pai’ há um tema de incesto, originário do romance Dona Silvana, conhecido como A delgadinha”. Cf. Roberto Benjamin, Os Romances da Tradição Ibérica na Obra Midiática de António Carlos Nóbrega, (trabalho apresentado no Núcleo de Folkcomunicação, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de Setembro de 2003), em www.intercom.org.br/papers/congressos2003, arquivo acedido na Internet em 12 de Outubro de 2005. 270 Cf. Vasconcelos [1980], p. 193. 271 Parte II – Capítulo I - Os suportes significantes das sequências. 272 Reproduzimos, a apoiar a afirmação, os resumos dos dois romances em Juan Busto Cortina [1989], Catálogo Índice de Romances Asturianos, Astúrias, Servicio Central de Publicaciones, Principado de Astúrias, 1989, pp. 86 e 88: “Silvana: RES: Silvana sufre el acoso de su padre, que pretende acostarse com ella. Va a contárselo todo a su madre, y esta decide cambiarse por la hija. En el lecho descubre su verdadera identidad ante el marido, que a punto estuvo de cometer gran pecado.” “Delgadina: 268 100 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em “Nota Pontual” a Silvana, no GRPP, ao comentar as versões que edita e que são “geminadas com Delgadinha”, Maria Aliete Galhoz torna evidente que o encerramento faz parte deste último273: “Silvana troca de vestidos com sua mãe e é verberado o comportamento do Rei pela sua própria esposa; segue com ‘Delgadinha’” (nosso sublinhado). Também Dias Marques especifica que o episódio da intervenção da mãe é próprio de Silvana, no qual o pai, “ao dar pelo logro, cai em si e bendiz a inteligência da mulher (e/ou a de Silvana)”, sendo o castigo do encerramento exclusivo de Delgadinha 274 , contradizendo José P. da Cruz, que o atribui a ambos os romances 275. Sobre a versão Silvana + Delgadinha, que transcreve em Romanceiro Tradicional da Beira Baixa, diz Cruz: “Em ambos, o pai enamora-se da filha e porque ela não acede aos seus desejos cupidinosos manda-a castigar, metendo-a, isolada, numa torre com escassez de alimento e bebida. Cada romance assenta numa rima diferente apesar do assunto ser igual, pelo menos a partir dos versos iniciais. O romance de A Silvana é assonantado em í-a, enquanto o da Delgadinha apresenta a assoante á-a….”. RES: El rey requiere de amores a su hija. Al negarse esta, el rey la castiga encerrándola sin comer ni beber. Delgadina pide consecutivamente un poco de agua (a su madre, a sus hermanas…). Al fin, cuando se la van a dar, Delgadina expira y va al cielo mientras su padre se condena en los infiernos.” Este Catálogo Índice reporta-se apenas aos romances asturianos, mas a consulta das versões dos dois romances em outros catálogos e colectâneas prova a constância da sua estrutura narrativa e, consequentemente, das suas diferenças. Cf., por exemplo, Susanne H. Petersen [1982], edição a cargo de, Voces Nuevas del Romancero Castellano-Leonés, I, Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos, 1982 (sigla AIER), pp. 218-221 para Silvana e 221-236 para Delgadina e, também, Diego Catalán y Mariano de la Campa [1991], preparada por, com a colaboração de Debora Catalán, Paloma Esteban, Angeles Ferrer e Maite Manzanera, composição a cargo de Suzanne Petersen, Romancero General de Leon, Antologia 1899-1989, II, Madrid, Seminario Menendez Pidal y Diputacion Provincial de Leon, 1991, pp. 75-83 para Silvana e pp. 83- 98 para Delgadina. Qualquer destas versões, note-se igualmente, é sem contaminação, tal como acontece na maioria das versões espanholas consultadas (ver Bibliografia), concluindo-se que as versões compósitas dos dois romances aparecem, preferencialmente, na tradição portuguesa. 273 Galhoz, em GRPP, pp. LVIX, LVX, indica como sem contaminação, a versão Silvana publicada por Firmino Martins [1939], Folclore do Concelho de Vinhais, 2º vol., Lisboa, Imprensa Nacional, 1939, pp. 37-38. Também refere que o romance aparece “como contaminação no incipit de “O Conde Alarcos’ e como contaminação do incipit ou na primeira sequência de Delgadinha”, além de, na Madeira, aparecer com um final de Queixas de D. Urraca. 274 Cf. J. J. Dias Marques [1996 a], “Algo de Novo na Frente Oriental”, Revista ELO, 2 (1996), Centro de Estudos Ataíde Oliveira, 1996, pp. 254-256. 275 Cf. Cruz [1995], pp. 207-208. Quanto à apresentação que faz de Delgadinha, Cruz reitera o atrás dito, acrescentando: “É de notar que neste romance não há a interferência da mãe que salva a filha do atentado do pai. É ela que defende a sua honra não acedendo aos desejos do pai” (cf. idem, p. 210). 101 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Mais adiante, no esquema narrativo de Silvana que identifica, Cruz especifica que o castigo se segue ao estratagema da mãe: “Ao dar pelo logro, castiga a filha metendo-a numa torre e manda-a alimentar com apenas um pouco de pão e água. A partir daqui o assunto desenvolva-se como o da Delgadinha”. Manuel da Costa Fontes, por sua vez, distingue os dois romances da seguinte forma276: - Silvana (“í-a”): “romance em que o pai, que também é frequentemente o rei, pede à filha para ela se deitar com ele. A moça queixa-se à mãe, que toma o seu lugar junto ao marido, fingindo ser Silvana”. - Delgadinha (“á-a”): “romance de tema semelhante cuja protagonista é encerrada numa torre. Em Delgadinha o pai faz encerrar a filha por ter rejeitado a sua proposta incestuosa”. Note-se que Costa Fontes, no RPI, apresenta como exemplo de Silvana uma versão que contém a intervenção da mãe seguido do episódio do seu encerramento277, anotando, após a sua transcrição, que “(c)omo geralmente ocorre na tradição portuguesa, esta versão prossegue com Delgadinha (P2)” 278 , o que levaria a crer que o castigo ocorre ainda naquele romance. Na sua tese de Doutoramento, Manuel Gutiérrez Estévez279 descreve Delgadinha, do qual analisa 450 versões280, como: 276 Cf. Manuel da Costa Fontes “Uma nova versão do Romance A Morte do Rei D. Fernando”, Revista ELO, 2, Faro, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1996, pp. 115-123. 277 A versão é Silvana, de Velhas Canções, pp. 12-13. 278 Cf. RPI, p. 200-201. Quanto à versão da Delgadinha editada pelo RPI, pp. 201-202, trata-se da nr. 493 de VRP e é a nossa D/44 Leite (1960) 56-57. 279 A tese constitui um ensaio de análise estrutural aplicado aos romances de incesto que têm maior vigência actual na tradição, segundo o autor, e que são Delgadina, Silvana, Tamar e Blancaflor. Cf. Manuel Gutiérrez Estévez [1981], El Incesto en el Romancero Popular Hispânico – Un Ensayo de Analisis Estructural, 4 Tomos, Tese de Doutoramento apresentada à Universidad Complutense de Madrid, 1981. 280 A maioria das versões provém do corpus do Arquivo Menéndez Pidal. Das quatrocentas e cinquenta versões de Delgadinha, trinta e oito são portuguesas, sendo trinta do Romanceiro Português de Leite de Vasconcellos, uma publicada na Revista Lusitana, duas do Romanceiro Minhoto de Pires de Lima, três do Romanceiro Geral Português de Teófilo Braga e duas que se indicam serem do Arquivo Menéndez Pidal. Não há nenhuma versão portuguesa de Silvana sem aditamento de Delgadinha no corpus daquela tese. 102 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “la historia de una joven que pretendida por su padre, es encerrada para padecer de sed hasta que consienta en la relación incestuosa”. De Silvana, com 97 versões analisadas, diz o mesmo investigador que a protagonista: ”no rechaza la relación amorosa con su padre de una forma tan directa a como lo hace Delgadina. Inicialmente acepta esa relación, aunque después acuerda con su madre el intercambio de sus respectivos vestidos y atuendos con el fin de engañar al padre. Cosa que, en efecto, consigue. El romance termina generalmente, con parabienes y felicitaciones porque se han eludido, con ingenio, las penas morales que hubiera acarreado la realización del incesto”. Por nossa parte, entendemos que os pontos fulcrais de ambos os romances divergem por causa do que lhes está implícito, o que fará com que também a organização narrativa explícita de cada um seja diferente. As respostas evasivas, que implicam certa condescendência com a proposta e o protelamento astucioso por parte da protagonista de Silvana levam a que o ponto fulcral deste romance seja o episódio da intervenção da mãe, uma vez que o desfecho constitui um anti-clímax, com o pai a oscilar entre bendizer ou maldizer mulher e filha. O repúdio indignado da outra jovem, em Delgadinha, induz o momento mais dramático deste romance que é o seu encerramento, durante o qual a família se nega a dar-lhe água. O episódio prepara a tensão narrativa da sequência antes do desfecho; enfraquecida e prestes a ceder, a jovem morre para que o incesto seja evitado. A intervenção da mãe e o encerramento são, pois, os elementos narrativos chave da distinção entre os dois romances. Sendo estes os elementos que distinguem os dois romances, não deixa de ser de notar que Harriet Golberg atribua o motivo Q260.1, que destaca bem a punição, a Silvana: “Father punishes daughter for denouncing his incestuous demands. Her mother takes her place in husband’s bed. He locks daughter in tower with little food and water”. Em 103 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Delgadina, Golberg inclui o motivo T411.1.4., que não menciona o castigo: “Father desires daughter sexually; her mother takes her place in his bed” 281 (nossos sublinhados). Esta questão leva a outra, a da sua identificação/classificação, uma vez que a tradição portuguesa associa de tal modo os dois romances que há versões, geralmente iniciadas com Silvana e continuando com Delgadinha, que podem apresentar uma conjugação das situações iniciais de ambos (de provocação/não provocação e de recusa terminante/complacência) conjugadas ou não com a intervenção da mãe, a que se segue o castigo e demais sequências de Delgadinha. Os editores mais antigos não faziam a separação entre os dois romances e/ou a distinção das versões contaminadas de ambos 282 , mas Costa Fontes, entre outros, já distingue os dois romances e indica ainda, a composição das versões (como Silvana [ía] + Delgadinha [á-a] e Delgadinha [á-a] + Silvana [í-a] 283 . Outros editores tomam outras opções, que nas mais recentes usam ser apostas introdutoriamente 284 e dá-se 281 Cf., para o motivo Q260.1, Harriett Golberg [2000], Motif-Index of Folk Narratives in the PanHispanic Romancero, Temple, Arizona, Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies, 2000. Cf., para o motivo T411.1.4, o Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero, no Proyecto del Romancero pan-hispánico, disponível na Internet em http://depts.washington.edu/hisprom/espanol/router.htm, arquivo acedido em várias datas. Note-se, igualmente que Golberg, que segue a definição de Thompson para “motivo”, por vezes inclui, nos motivos indexados aos romances, vários incidentes em um único motivo. 282 Assim acontece em VRP, com todas as versões classificadas como Delgadinha, e também em GRPP, embora a Introdução Geral desta colectânea, como já referido, esclareça o assunto e aí se sublinhe ser incontaminada a versão nº 327, que, segundo indicado na p. LVIX, é remanescente do espólio de Leite de Vasconcellos e tem, no nosso corpus, o número S/7 Soromenho (1963) 55 [Galhoz (1987) 375]. Indicase, em GRPP I, C. Nota pontual a dois romances mais raros. 1. Silvana, p. LVIX e LX.que são “geminadas a Delgadinha” as nrs. 319 (n/nr. S+D/11 Reinas (1957) 423-425 [Galhoz (1987) 364-366), 335 (n/nr. S+D/25 Galhoz (1987) 385), 338 (n/nr. S+D/27 Galhoz (1987) 387-389), 340 (n/nr S+D S+D/28 Galhoz (1987) 390-392) e 343 (n/nr. S+D/29 Galhoz (1987) 394-395), não referindo como estando neste caso a versão nr. 336 (n/nr. S+D 26 Galhoz (1987) 386-387), que integra a intervenção da mãe e o castigo do encerramento. 283 Cf., por exemplo, Manuel da Costa Fontes [1987], Romanceiro da Província de Trás-os-Montes (Distrito de Bragança), I, Acta Universitatis Coninbrigensis, 1987. 284 Referimos, como exemplo, a Nota Introdutória à nova compilação de romances recolhidos na Madeira, de Pere Ferré, Sandra Boto [2008], Novo Romanceiro do Arquipélago da Madeira, Funchal, Funchal 500 Anos, 2008. 104 A REVELAÇÃO DO SENTIDO também o caso de, por vezes, não haver coincidência de critérios entre editores ou entre estes e RPTOM/BRPTOM285. Entendendo que as versões de Silvana + Delgadinha constituem um corpus especial na tradição portuguesa, optámos por analisá-las como um grupo específico, na perspectiva que nos move - a revelação do sentido. Assim, embora com base nos dados colhidos em BRPTOM, preferimos agrupá-las separadamente 286 em “Versões Compósitas de Silvana e Delgadinha”287, de acordo com o seguinte critério: Ocorrência, nessas versões, dos episódios fulcrais para a distinção de ambos os romances, i.e., a intervenção da mãe (Sequência II de Silvana) e o castigo do encerramento (Sequência II de Delgadinha). Estas versões compósitas, quase sempre, começam com Silvana (proposta do pai, queixas do assédio pela filha à mãe e enunciação por esta do estratagema de mandar a filha trocar de cama consigo - sequências I e II), mas pode omitir-se a concretização do estratagema (sequência III), seguindo-se o encerramento da filha e demais episódios de Delgadinha. Há, no entanto, uma certa diversidade de combinações que pode originar variações de sentido, a que nos tornaremos a referir, exemplificando aqui as seguintes hipóteses: - Integração total dos dois episódios. Ex: S+D/16 Leite (1960) 86-87. - Inclusão de parte da sequência III de Silvana, com omissão da enumeração da descendência, pela mãe. Ex: S+D/4 Azevedo (1880) 112-115. - O encontro do pai com a mãe é laconicamente narrado. Ex: “Lá pela noite adiante a traição a acometia”, S+D/5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V. 285 Por exemplo, um fragmento de quatro versos longos que, em GRPP, aparece como Conde Alarcos (com o número 27, na página 196) é, em RPTOM, classificado como Silvana (n/nr. S/27 Galhoz (1987) 196) e, em RPTOM, a versão nr. 7 de Silvana (n/nr. S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193) aparece em como Queixas de dona Urraca e Fontes classifica como Silvana uma versão que, em BRPTOM é Delgadinha, nr. 130 (a n/S+D/19 Fontes (1983a) 119-120). 286 Indicaremos, igualmente, a opção do editor e a de BRPTOM. 287 Trinta e nove versões, identificadas como S+D. Ver Anexos - Grupo A. Corpus. 105 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - Dá-se o pedido de ajuda da jovem à mãe, mas omite-se a enunciação pela mãe do estratagema. Ex: S+D/17 Fontes (1979) 143-144. - Começam com a introdução narrativa de Delgadinha (tipo “Um rei tinha três filhas”), continuam com Silvana (episódio da mãe) e finalizam com Delgadinha. Ex: S+D/19 Fontes (1983a) 119-120. As versões com o incipit de Silvana, (o pai propõe e a filha dá uma resposta condicional), mas sem qualquer segmento da intervenção da mãe, seguindo com Delgadinha, como a D/174 Galhoz (1987) 363, são agrupadas em Delgadinha, visto que contêm uma maioria de versos deste romance. Não tomaremos a assonância de apenas uns poucos versos como critério determinate da classificação, pelo que não serão separadas do grupo de Delgadinha as versões com o incipit próprio deste romance e em que a filha responda como em Silvana, seguindo os episódios do primeiro288. Também em Delgadinha se inclui o caso da versão D/6 Nunes (1900-1901) 171-173, na qual a filha se queixa à mãe, visto que a intervenção desta, que se segue, não é a de Silvana; aqui, a mãe não a ajuda, mas ordena a prisão da filha. Caso diferente é o da versão abaixo, que inclui as queixas, mas não a explicitação da intervenção da mãe. A elipse não deixa explicitar o estratagema e o pai encerrará a filha só porque a ouviu queixar-se, mas, ainda assim, considerámos mais lógico incluir a versão nas Compósitas, dado o sentido implícito correspondente a estas, nos vv. 8 a 12: 8.“Foi-se ter com sua mãe, nos braços dela caía; 9. tudo o que o pai lhe dissera logo à mãe tudo dizia. 10. O pai que ali perto estava todas as queixas ouvia. 11. Mal haja a filha maldita, que ao próprio pai descobria! 12. Encerrou-a numa torre muito alta em demasia;” S+D/10 Serrano (1921) 39-41 288 Ver, a propósito, a recensão de Dias Marques ao Romanceiro da Província de Trás-os-Montes (Distrito de Bragança) de Costa Fontes, na qual, referindo-se à classificação das versões de Silvana e Delgadinha observa que “ [O] autor baseia a sua opinião, segundo julgamos depreender, na presença, nos textos de Delgadinha, de alguns versos em í-a, os quais proviriam de Silvana (romance que, como é sabido, apresenta este tipo de assonância)”. Cf. Marques [1988]. 106 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Noutros casos, não se poderá falar, propriamente, de “versões compósitas” na acepção em que o temos vindo a fazer, mas de versões muito fragmentadas ou inacabadas289, que contêm versos dos dois romances, mas que considerámos pertinente manter no grupo de Silvana, apenas por começarem com este e o número de versos de Delgadinha que seguem não justificar, em nosso entender, que o segundo se sobreponha ao primeiro, na classificação290. Outras contaminações (ou que contenham versos de outros romances e tal como para os outros romances do corpus) não originam um grupo separado, como é o caso de Silvana seguindo com Queixas de D. Urraca, como, por exemplo, a S/29 Marques (1989) 388-390. Tampouco, por serem casos isolados, se separam de Delgadinha as versões deste romance iniciadas com Santa Iria ou com O Quintado, embora se assinalem respectivamente, como na D/128 Marques/Silva (1984-1985) 115-116 (Santa Iria + Delgadinha ) e na D/25 Delgado II (1955) 133 (Quintado + Delgadinha). 2.4.Gerinaldo Gerinaldo é, de todos os romances do corpus, o que tem um esquema composicional narrativo mais alongado e o maior número de sequências, não necessitando, neste momento, de quaisquer anotações prévias. Sequência I – A Sedução - A infanta propõe ao pajem Gerinaldo que passe a noite com ela. Ele duvida da seriedade da proposta, mas aceita e combinam a hora do encontro. 289 Como é o caso, por exemplo, da S/5 Leite (1960) 47-48 , da S/6 Leite (1960) 55 ou da S/26 Fontes (1983b) 101. 290 Para a divisão em sequências das versões compósitas de Silvana + Delgadinha adoptamos uma metodologia diferente da dos outros romances, uma vez que, neste caso, não elaboramos um modelovirtual nos mesmos moldes daqueles, mas pretendemos demonstrar que estas versões integram as sequências Silvana e de Delgadinha que as tornam em um grupo específico – a intervenção da mãe, de Silvana e o tormento imposto a Delgadinha, de Delgadinha. É de notar como as sequências de ambos os romances, em algumas versões compósitas, se entrelaçam. Ver Anexos-Grupo B, em B7. Exemplificação da divisão das versões em sequências. 107 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência II – O Encontro Amoroso – Gerinaldo dirige-se ao quarto da infanta. Sequência III – O Delito - Os dois passam a noite juntos. Sequência IV – O Despertar do Rei - O rei acorda e procura o pajem, que encontra no quarto da filha, vendo os dois adormecidos lado a lado. Sequência V – O Dilema – O rei pondera as consequências de matar a filha ou o pajem e decide deixar a espada entre os dois. Sequência VI – A Descoberta da Espada – Os amantes acordam e descobrem a espada. Decidem o que fazer. Sequência VII - O encontro do Pajem e do Rei – Gerinaldo sai do quarto e encontra o rei, que lhe pergunta de onde vem. O pajem dá-lhe respostas evasivas a que o rei responde, não se deixando enganar. O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta. 3. O posicionamento das sequências na narrativa O posicionamento das sequências na estrutura da narrativa (inicial, intermédio ou final) determina, em boa medida, a maior ou menor facilidade na procura do sentido do romance. Geralmente, a encatalisação torna-se mais premente nas sequências iniciais, pois a intriga começa muitas vezes in media res, entra bruscamente no assunto ou inicia-se com um diálogo. Logo, estas sequências conterão escassa ou nenhuma informação explícita das circunstâncias que antecedem o que se vai contar. A sequência inicial pode ser constituída por um segmento narrativo-descritivo ou por um diálogo, não havendo, neste caso, uma informação prévia sobre as circunstâncias em que se dá o diálogo, nem se conhecendo, tão pouco, as questões fulcrais que desencadeiam a intriga, em 108 A REVELAÇÃO DO SENTIDO particular se o romance começar in media res. Casos há em que o diálogo inicial é precedido de um pequeno e sucinto prólogo introdutório291. Se as situações iniciais, condicionadas pelas pressupostas, despoletam a acção, esta desenvolver-se-á nas sequências intermédias, ressalvando, obviamente, os romances que, como Bernal Francês, adoptam uma certa estratégia de suspense, deixando para o final a revelação explícita das circunstâncias. É nas sequências intermédias que se encontra o máximo de tensão narrativa, prenunciando um Desfecho que é implicado pelas próprias circunstâncias e é nelas que geralmente se desenvolve o assunto focado e se centra o clímax, se o final for trunco. Seria, pois, expectável que fossem mais elucidativas que as primeiras, mas acontece que não deixam de apresentar saltos narrativos, o que implica que estes terão de ser preenchidos por pressupostos lógicos de ligação. As sequências finais dos romances são a implicação das anteriores, resultando da acção desenvolvida nestas e tendem a encerrar o episódio narrado com um desfecho lógico, o que não obsta a que este possa, ainda, remeter para outros sentidos implícitos. Diz Catalán292 que “es bien sabido, en efecto, que los desenlaces de los romances están más sujetos al cambio que el resto de la narración”, devido às atitudes culturais que condicionam a reacção dos receptores-emissores à história contada. No entanto, julgamos ser de distinguir entre os desfechos “tradicionais”, próprios da intriga, e aquilo a que chamámos “Prolongamentos”, os quais se tornam o espaço no qual se manifestam tais reacções, chegando a subverter a fábula tradicional. Com efeito, os primeiros são, geralmente, a consequência “lógica” dos actos das personagens, na medida em que uma “lógica de acções” implica, necessária ou eventualmente, a realização doutras acções 291 Acontece, nas versões, ser a sequência ser substituída, em todo ou em parte, por uma prosificação dos versos provavelmente esquecidos ou por explicação dada pelo informante, assunto a que voltaremos. 292 Cf. Catalán [1997], p. 178. No IGR, p. 96, diz-se que a tradição oral moderna prefere uma elaboração maior dos desenlaces, ainda que haja finais truncados em versões que não são consideradas incompletas pelos “portadores de folklore” mas sim pelos editores e leitores. 109 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que lhe estão ligadas. Trata-se, então, de uma relação de causa/consequência que se estabelece entre a situação posta (ou pressuposta) inicialmente e a final. A relação propriamente dita pertence ao modo implícito e é descodificada recorrendo a informações extra-enunciativas do foro das competências enciclopédicas293, pois sabese que as infracções ao social e moralmente correcto implicam uma sanção. Como castigo da acção inicial, morrem a adúltera de Bernal Francês e o perjuro de Veneno de Moriana, mas morre também a vítima de Delgadinha, visto que esta é a única solução de salvação de um mal maior, o incesto (Silvana “salva-se” pela força da esperteza da mãe); já o casamento é o desfecho desejável (e viável) para remediar relações ilícitas entre dois jovens e a sanção transforma-se em casamento, em Gerinaldo. 4. Sequências narrativas e sequências dramatizadas Mencionámos já a tendência para uma feição maioritariamente dramatizada nos romances orais da tradição portuguesa. De facto, ao dividir um romance em sequências, observa-se frequentemente que as suas versões dispensam a presença de sequências narrativo-descritivas 294 . Estas, pelo seu poder informativo literal, fazem com que as versões que as contêm tendam a ser mais explícitas do que as versões mais dramatizadas. Assim, a natureza das sequências (narrativas ou dramáticas) tem também um considerável peso na procura do sentido. Na verdade, as “sequências narrativas” são assim designadas por contraste com as “sequências dramatizadas”, estas totalmente dialogadas. Em rigor, há que salientar que 293 Segundo Kerbrat-Orecchioni, interpretar um enunciado, quer se trate do seu conteúdo explícito ou implícito, é aplicar diversas “competências” aos diversos significantes nele inscritos, para dele extrair significados. Delas distingue, ainda que sob reserva, as competências “linguística”, “lógica” “retóricopragmática” e “enciclopédica”, apresentado-se esta como “un vaste réservoir d’informations extraénonciatives portant sur le contexte; ensemble de savoirs et de croyances, système de representations, interprétations et évaluations de l’univers référentiel…”. Cf. Catherine Kerbrat-Orecchioni [1986], L’implicite, Paris, Armand Colin, 1986, pp. 161-162. 294 Segundo Pere Ferré, “o processo dramatizador assentou na transplantação de versos narrativos para falas de personagens”. Cf. Ponte [1987], p. 660. 110 A REVELAÇÃO DO SENTIDO as “sequências narrativas” podem ser de dois tipos: “extradiegéticas”, i.e., enunciadas por um narrador extradiegético, por vezes no pretérito, ou as personagens podem assumir essa função narrativa e o narrador ser intradiegético, produzindo-se uma “sequência narrativa intradiegética”. Muitas vezes, as “sequências narrativas extradiegéticas” apresentam-se como uma espécie de prólogo ou introdução às falas das personagens, o que é dispensado em outras versões do mesmo romance. Também podem relatar, total ou parcialmente, o conteúdo narrativo do segmento que dá continuidade à trama, sendo este tipo de sequência intercambiável com a forma dialógica do mesmo. Acontece, por outro lado, que haja uma intervenção do informante, que narra o que se vai passar, diz quem vai falar ou dá explicações, por vezes prosificando a sequência inteira ou parte dela. Assim, a mesma sequência do romance pode ser enunciada, nas versões, de distintas formas. Damos, como exemplo, a Sequência II em Bernal Francês: A) - Sequência enunciada por narrador extradiegético: 4.“Pois se erguera donde estava, descalça lhe fora abrir 5. lhe pegara pela mão, o levara ao seu jardim. 6. Lhe lavara pés e mãos, com bela água de alecrim; 7.uma gota que ficara, lavara também a si. 8. Vestira-lhe uma camisa, como quem vestira a si, 9. fizera cama de rosas, o deitara a par de si ” BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208 B) - Sequência enunciada por narrador intradiegético: (o narrador pode ser qualquer das personagens) - a mulher é o narrador295: 6.“Ao abrir a minha porta se apagou o meu candil! 7. Ao subir a minha escada me caiu o meu chapim. 295 Veja-se a incongruência de ser a mulher, que se sabe ter sido morta no final, a narrar a cena. 111 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 8. Peguei nele nos meus braços levei-o pelo jardim 9. Mandei lavar pés e mãos em aguinha de alecrim: 10. vestir camisa lavada, deitá-lo ao par de mim.” BF/2 Braga (1867) 34-36 - o marido é o narrador: 3.“Ao abrir da minha porta se apagou o meu candil 4. ela me pegou na mão, me levou ao seu jardim, 5. e lá me lavou os pés em água de alecrim; 6. levou-me para o seu quarto, me deitou ao pé de si”296 BF/11 Pires (1899)/Pires (1982) 183 Em certas versões, a sequência monologada do narrador intradiegético/mulher pode apresentar-se não com o sentido de narrar o que se passou, mas como que exprimindo uma fantasia amorosa, enunciada como um aparte da personagem, assunto que será abordado mais à frente: 3.“- S'eu soubesse a ser D. Francisco, a porta lhe ia abrir, 4.lavava-lo em água de rosas, perfumado em alecrim, 5.dava-lhe camisas alvas, deitava-o a par de mim.” 297 BF/61 Ferré (1982) 160 Neste caso, o sentido de fantasia amorosa está implícito na expressão traduzível por “se eu soubesse ser [D. Francisco/Bernal Francês] que está à minha porta, então eu faria as seguintes coisas”, que descreve. Apenas o conhecimento de que a narrativa se estrutura em determinadas sequências impede que estes versos sejam integrados na Sequência I, uma vez que se actualizam na modalidade reflexiva; um desejo que se exprime não implica a sua realização efectiva e, consequentemente, não é certo que haja a disjunção de acções que separa as sequências. Nestas versões, de facto, não se sabe de 296 Nesta versão há a variante de ser o homem o portador da luz que se apaga. São do mesmo teor as versões, todas da Madeira, B/F 62 Ferré (1982) 160-161, BF/63 Ferré (1982) 162-163, BF/65 Ferré (1982) 163-164, BF/67 Ferré (1982) 165, BF/68 Ferré (1982) 165-166 e BF/71 Ferré (1982) 168. Já a BF/69 Ferré (1982) 166-167, também da mesma área geográfica, segue o modelo da narrativa intradiegética não reflexiva (peguei nele, levei-o, lavei-o, vesti-lhe, deitei-o). 297 112 A REVELAÇÃO DO SENTIDO imediato se a mulher concretiza estas intenções (abrir a porta, lavar [o homem] em água de rosas, perfumar com alecrim, dar[-lhe] alvas camisas ou se estas não passam de um devaneio. Apenas se sabe que a última intenção, deitar-se com ele, se realiza, visto que está implicada na sequência seguinte, uma vez que, nesta, ela pergunta: 6.“Que tendes, D. Francisco, que não te viras p'ra mim? ” Numa outra versão dá-se a mesma interacção das duas sequências, mas ainda noutros moldes: é o suposto amante que “sugere” a cena do jardim, com a forma verbal imperativa a assumir, aqui, um valor de pedido, que se pressupõe ela aceite, visto que a Sequência III é a “normal”: 5.“D. Bernardo Francês, saiba a senhora que é, 6. Levai-o p'rà sua casa que vai p'ró jardim em pé. 7.Que vai p'ró jardim em pé, com um ramo de alecrim, 8. Levai-o p'rà sua cama, deitai-o em par de si. ” BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38 C) - Sequência enunciada nas duas formas: A sequência, ou até um só verso, pode começar com um narrador extradiegético e acabar na voz de um narrador intradiegético, o que será atribuível a confusão do produ-transmissor: - no 2º hemistíquio do v. 10, passa à 1ª pessoa: 10.“agarrara-o pela mão e deitara-o ao pé de mim” BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 428-429 - narrador extradiegético no v. 3 e 1ª pessoa nos restantes versos: 3.“Ao subir da minha escada lhe caiu seu chapim;” 4.ao abrir da minha porta me apagou o meu candim. 5. Levei-o p'r'à minha sala, da sala para o jardim;” BF/21 Gomes Pereira (1911) 131-132 - 1ª pessoa nos vv. 5 e 6 e 3ª pessoa no v. 7: 5.“Ò decer da mnha cama se me rasgou o frandile, 113 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 6.Ò abrir da mnha porta, se m'apagou o candile.”; 7.“Foram scadas acima e dêtéram-s'a drumir.” BF/51 Buescu (1961) 209 - alternância: 3.“Ao descer a sua escada descalçou-se o meu chapil” BF/97 Galhoz (1987) 282 D) - Sequência enunciada em prosificação298: A mesma sequência é objecto de uma explicação do informante, numa forma narrativa por vezes muito sucinta, que elide pormenores das circunstâncias do engano, bem como toda a cena do jardim: “Ela abriu a porta, e levava a luz”; “Ela apagou e oi-se deitar, e ele voltou-lhe as costas” - BF/45 Leite (1958) 416-418 “Foi o homem que l'apagou o candile.” - BF/92 Fontes I (1987) 351 Estes exemplos das formas que a mesma sequência pode tomar em versões do mesmo romance demonstram que tal versatilidade não afecta a estrutura narrativa. De facto, seja de que maneira for, é sempre relatado o mesmo incidente: uma mulher faz um homem entrar na sua casa e, às escuras, deita-se com ele. Estas sequências narrativas, quer se inscrevam no enunciado quer na enunciação e qualquer que seja a sua extensão e posição na estrutura do romance, apresentam-se como “embraiadores de ficcionalidade”, em contraste com o modo dialogado, também obviamente ficcional, mas que se institui como “efeito do real” 299 . A sua ausência 298 Cf. na Parte II, o Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado. Kerbrat-Orecchioni refere-se às fórmulas liminares dos contos, “era uma vez”, como indícios ou “embraiadores” de ficcionalidade. Cf. Kerbrat-Orecchioni [1986], p. 125-129. A embraiagem (fr. embrayage, ing. engagement, esp. embrague) é, segundo Greimas e Courtés, o efeito de retorno á enunciação, “exigido por la suspensión de la oposición entre ciertos términos de las categorias de persona y/o espacio y/o tiempo, así como por la denegación de la instancia del enunciado. Todo embrague presupone, pues, uma operación de desembrague que le es logicamente anterior” e “Contrariamente a lo que sucede el momento del desembrague (cuyo efecto es referencializar la instancia desde la cual es operado) el embrague produce una des-referencialización del enunciado al que afecta”. A desembraiagem (fr. débrayage, ing. disengagement, esp. desembrague) será “la operación por cual la instancia de la enunciación … disjunta y proyecta fuera de ella ciertos términos vinculados a su estrutura de base, a fin 299 114 A REVELAÇÃO DO SENTIDO obrigará o ouvinte-leitor a um maior exercício de localização situacional, que, nesse caso, se efectuará através de indicações que vão sendo dadas pelos diálogos das personagens, no desenrolar da intriga. Ainda que versões do mesmo romance possam apresentar, para as mesmas sequências, quer a forma narrativa quer a dialogada, notamos algumas tendências300. Em Veneno de Moriana, as sequências são, regra geral, dialogadas, embora por vezes a Sequência III do Tipo B seja precedida de um verso narrativo, como no seguinte exemplo: 5.“Cavaleiro bebeu vinho, começou a desmaiar” VM/15 Leite (1960) 106-107 Este é substituído, em versões do Tipo A, pelas próprias palavras do cavaleiro (a negrito): 8.“[… que fizeste ao teu vinho?] 9. Inda agora o bebi, já não enxergo o caminho” VM/17 Leite (1960) 108-109 Também a Sequência II do Tipo A, que informa da aproximação de um cavaleiro pode considerar-se como narrativa, se abrir a versão: 1.”Já lá baixo bem o Jorge montado no seu cabalo.” VM/92 Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 119 No entanto, a mesma pode estar incluída no diálogo com a mãe, como no caso abaixo, no qual uma das protagonistas (não se sabendo qual delas) seria o enunciador: 1.“- Tu que tens, Juliana? Passas a vida a chorar. 2. - Eu nada, ó minha mãe, o D. Jorge vai casar. 3. - Já 'li vem o D. Jorge no seu cavalo assentado.” VM/17 Leite (1960) 108-109 de constituir así los elementos fundadores del enunciado-discurso”. A desembraiagem actancial consiste em disjuntar um “não-eu” do sujeito da enunciação e projectá-lo no enunciado, a desembraiagem temporal postula um “não-agora” distinto do tempo da enunciação e a desembraiagem espacial opõe um “não-aqui” ao lugar da enunciação. Cf. Greimas, Courtés [1990] - (embraiagem, pp. 138-141; desembraiagem, pp. 113-116). 300 Estas tendências, ressalvamos, carecem de estudo percentual comprobatório. 115 A REVELAÇÃO DO SENTIDO As versões de Silvana apresentam, no geral, um prólogo narrativo curto, seguido do diálogo pai/filha, e as de Delgadinha apresentam, basicamente, três tipos de começo: introdução narrativa/descritiva da situação “um pai enamorou-se da filha”, o mesmo tipo de introdução seguida do diálogo entre pai e filha, ou apenas a proposta directa do pai, sem prévia explicação. Quanto à Sequência II, pode ser enunciada por um narrador ou pela voz do pai, havendo também casos em que se funde com a Sequência I, condensando ambas em versos narrativos: 1. “Um conde tinha sete filhas, todas sete mandou chamari, 2. Dilgadinha era a mais fina, ele pensou em enganari. 3. Ele a mandou fechari sete meses e alguns dias, 4. Ela era insultada com palavras de tiranias. 5. Dava-le pão por onça e água de peixe salgado, 6. Ele a mandou fechari na torre mais alta que tinha.” D/223 Cruz (1995) 216 A Sequência III pode ser precedida de versos, em número variável, que narram os movimentos da jovem dentro do local onde está fechada, bem como cada um dos seus pedidos de água: 7.”Assubiu a uma janela mais alta que ali havia, 8. avistou a sua mãe na varanda de a cozinha.” [……………] 13.“Assomou a outra janela, a mais alta que havia, 14.avistou suas irmãs na varanda de a cozinha.” [……………] 19.”Assomou a outra janela, a mais alta que ali estava, 20.avistou o seu pai assubindo uma escada.” D/244 Sardinha VI (1997) Visto que o Desfecho é, normalmente, narrativo, poder-se-á considerar que este é o romance do corpus com maior incidência de versos narrativos. Também as versões de Gerinaldo são maioritariamente dramatizadas e a presença de versos narrativos dá-se, sobretudo, precedendo a Sequência II, com um narrador a 116 A REVELAÇÃO DO SENTIDO especificar a hora do encontro marcado pela infanta ao pajem, enquanto a Sequência III é, geralmente, manifestada num único verso longo, como abaixo: 10.“Deitaram-se ambos na cama, como mulher e marido”, G/37 Leite (1958) 307-308 A Sequência IV é, regra geral, narrativa e, nela, um narrador omnisciente descreve o sonho do rei e a procura/descoberta dos dois amantes. 5. As “falas” das personagens Uma vez que, muitas vezes, a intriga é quase integralmente dramatizada, dir-se-á que a narrativa se organiza através das “falas” das personagens 301. O modo dialogado, por si próprio, torna simultâneo o tempo da enunciação com o tempo da acção e o ouvinte/leitor terá a impressão de estar assistindo ao desenrolar dos eventos, tal como em teatro. Há neste paralelo, no entanto, algumas questões a considerar. Aguiar e Silva distingue o texto dramático, integrado no modo literário do drama, do texto teatral, que, nas suas palavras é “um específico texto espectacular”. Segundo o autor, o texto dramático é “constituído por um texto principal, isto é, pelas réplicas, pelos actos linguísticos realizados pelas personagens que comunicam entre si …. e por um texto secundário, formado pelas didascálias ou indicações cénicas”.302 María del Carmen Naves considera o “texto literário” e o “texto espectacular” como aspectos (e não partes) do texto dramático e faz as seguintes definições, distinguindo claramente “acotaciones” (que traduzimos por “anotações” e equivalerão a indicações cénicas) de “didascalias”303: “… llamaremos diálogo al habla de los personajes, escrita en el texto y realizada verbalmente en la escena; acotaciones, al habla del autor, que se incluye como anotaciones al 301 Preferimos esta designação a réplicas, termo mais conotado com o texto teatral, precisamente para distinguir duas manifestações literárias, que, embora com semelhanças, diferem entre si. 302 Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva [2002], Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 604624. 303 Adoptamos esta distinção, que nem sempre é feita em outras obras consultadas, por nos parecer melhor conformar-se às características de um objecto de estudo sem suporte escrito, os romances orais. 117 A REVELAÇÃO DO SENTIDO diálogo en el texto escrito, y que no pasa verbalmente a la escena, pues se sustituye por sus referencias, y didascalias a las indicaciones que, sobre hechos escénicos, puedan encontrar-se en el diálogo, y que pasan a la representación en forma verbal, como parte del diálogo, y en sus referencias, como las acotaciones”.304 De certo modo, poderemos considerar uma aproximação do texto romancístico ao texto teatral, com as instâncias de comunicação a serem levadas a cabo, no primeiro caso, entre o produtransmissor e o seu ouvinte, e no segundo, entre actor e espectador, que assim são correspondentes. A situação de representação ou performance do texto teatral é que não corresponde à situação do texto romancístico, que não implica, necessária e exclusivamente, a representação para um público; o romance poderá ser cantado para fruição própria ou em contexto laboral, como cantiga de trabalho (lembremo-nos dos romances como “cantigas de segada”). Mesmo se cantados para outrem, os signos proxémicos (distância e movimentos das personagens), os signos do actor (penteado, roupas, pinturas) e outros signos como o cenário, os adereços, a luz, a música ou outros sons)305 não ocorrem, como em teatro; Nos romances, aqueles signos submetem-se à oralidade e, em termos de performance, teriam mais importância, embora possam ou não ocorrer, os signos quinésicos (mímica de rosto e gestos de mãos e corpo). Não se trata, pois, na verdade, de teatro, mas de um poema narrativo que adopta algumas estratégias comunicativas daquele306. Se a acção dramática, segundo Carlos Reis, “dispensa as intervenções descritivas levadas a cabo na narrativa pelo narrador […]. Quando muito, é no texto segundo […] da obra 304 Cf. María del Carmen Bobes Naves [1997], Semiología de la Obra Dramática, Madrid, ARCO/LIBROS, 1997. 305 María del Carmen Naves relaciona estes signos que, juntamente com a palavra e os signos paraverbais (tom, timbre, ritmo e, talvez, intensidade), acompanham a acção no cenário teatral. Cf. María del Carmen Bobes Naves, op. cit. 306 Para este assunto, remetemos para Ponte [1987]. 118 A REVELAÇÃO DO SENTIDO dramática que se exerce essa função descritiva …” 307 , nos romances a palavra, melhor dizendo, uma única voz, fisicamente enunciada pelo produtransmissor, deverá integrar, com eficácia, indicações cénicas, informativas de espaço, lugar e tempo, bem como didascálias referentes a qualquer situação ou incidente não passível de ser visto/ouvido, fazendo-os conhecidos do ouvinte/leitor, como se um único actor desempenhasse todos os papéis. Assim, a mesma voz, assumindo todas as personagens que nele intervêm, instituise como narrador, tanto extra como intradiegético. Um único sujeito de enunciação reproduz as estruturas dialógicas que se dão entre os sujeitos enunciadores das “falas” e que são as personagens dos romances. 20.“E pôs seu punhal entr' ambos, e foi falando baixinho. 21. Ao despois acordam eles, do seu sono bem dormido.” G/5 Azevedo (1880) 63-65 O mesmo sujeito encarrega-se das funções narrativas/descritivas, pois os romances, sendo de natureza narrativa, contam com alguns apontamentos a funcionarem como indicações cénicas: 1.“Era meia-noite em ponto, a uma porta batiam.” BF/8 Pires (1885g) XXI 1.“Lá vai subindo D. Jorge no seu cavalo montado, 2. Lá estava a D. Julieta no seu sofá encostada.” VM/101 Ferré (1987a) 48 1.“Estando dona Silvana no seu quarto bordando, 2. seu pai que lhe aparecia, d' amores a acometia.” D/6 Nunes (1900-1901) 171-173 307 Cf. Carlos Reis [1995], O Conhecimento da Literatura, Coimbra, Almedina, 1995. 119 A REVELAÇÃO DO SENTIDO No quadro abaixo, listamosas personagens principais e imprescindíveis à intriga dos romances do corpus (no sentido da sua canonicidade no romance) e outros que enunciam “falas” 308. Romance Actores principais Outros Bernal Francês Marido e Mulher Veneno de Moriana Rapariga e Cavaleiro Silvana Pai, Filha, Mãe Delgadinha Pai e Filha, Mãe, Irmãos Outros familiares, criados Gerinaldo Infanta, Pajem, Rei Conselheiros, outro pajem Mãe (Tipo A) As “falas” integram didascálias, pois com elas as personagens, enquanto instâncias da enunciação, contam o que se está a passar (a), o que passou anteriormente (b) ou anunciam o que vão fazer (c): (a): 8.“Trago a minha vista turva, já não vejo bem o caminho.”, VM/29 Garcia (1965) 196-197 (b): 1.”Estando eu na minha cama, estando no melhor dormir 2. Espadas ouvi bater, espadas ouvi tenir”, BF/ 113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38 (c): “Enquanto eu ponho a mesa, um copo vou deitar”, VM 15 Leite (1960) 106-107 Também as atitudes tomadas pelas personagens são comunicadas pelas “falas” de outras personagens: 1.“- O que tens, ó Juliana, qu'estás tão triste, a chorar?” , VM/36 Fontes (1979) 121-122 Não havendo representação cénica, portanto, é assim que as “falas” comunicam o que, em cena, implicaria audição ou visão: 8.“- Que passadinhas são estas qu'ê sinto à minha ilharga?”, S/20 Ferré (1982) 210-211 308 Não tivemos aqui preocupações onomásticas e excluímos os “figurantes”, para recorrer à terminologia teatral, que não enunciam “falas”; em Outros, incluímos personagens que aparecem ou não nas versões, sem prejuízo para o romance. Em Delgadinha, note-se, embora mãe, irmão, irmãs, tias, criados (e outros que surjam nas versões) sejam, cada um deles, um actor, a “família” actua como “a personagem que nega a água”, pelo que a tomamos, aqui, em conjunto. Não considerámos, neste quadro, outras personagens introduzidas aquando de contaminações com outros romances. 120 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 5.“- Já lá vem o seu D. Jorge, em seu cavalo montado.”, VM/20 Leite (1960) 110 6.“- O que tendes vós, Silvana, que assim vens agoniada?”, S+D 5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V Os enunciados actualizados nas “falas” das personagens são, com frequência, enunciados explícitos, com uma função informativa, referencial, de acordo com o que diz Fernanda Fonseca: “É a tentativa de captar e representar as implicações temporais do agir humano que determina a diversidade de formas assumidas pelo verbo – os tempos verbais”309. Os tempos verbais, a revelar as intenções de quem os usa, abrem, pois, vastas tramas de significação. Segundo Kerbrat-Orecchioni, “les comportements langagiers peuvent refléter certaines relations de pouvoir existant entre les interactants, mais aussi les confirmer, les contester, et même les constituer” 310 . De facto, os enunciados verbais reflectem as relações de poder que lhes são exteriores, embora a situação comunicativa condicione a sua formulação, pelo que existem diversas formas de dar uma ordem. Se, em Gerinaldo, a categoria “rei” permite o valor imperativo explícito da ordem “casarás”, já nos romances de incesto, é a categoria “pai” que transforma o pedido que surge em versões de Delgadinha (“Queres ser [minha namorada?])”, que indicaria um contexto amoroso, numa ordem, visto que a categoria corresponde a alguém com estatuto dominante e poder para retaliar, em caso de não satisfação do pedido, o que se vem a verificar na intriga do romance. Veja-se, abaixo, a diferença aparente entre os dois primeiros exemplos e o terceiro, o a) em tom de “convite” e o b) de “sugestão”, mas com o mesmo valor da ordem explícita do imperativo em c): a): 1.”- Queres tu, filha Faustina, ser a minha namorada?”, D/1 Braga (1867) 181-183 b): 4.”bem podias tu, Aldina, seres minha namorada.”, D/89 Ferré (1982) 211-212 309 Cf. Fernanda Irene Fonseca [1992], Deixis, Tempo e Narração, s.l., Fundação Eng. António de Almeida, 1992, p. 165. 310 Cf. Kerbrat-Orecchioni [1986], p. 250. 121 A REVELAÇÃO DO SENTIDO c): 3.”- Aldina, minha Aldina, vais ser minha namorada.”, D/105 Ferré (1982) 223-224 Para que estes enunciados sejam interpretados como uma ordem, é necessário que haja uma ligação institucional entre os interlocutores e que o ouvinte saiba que quem os emite é seu superior hierárquico311, sendo a relação, neste caso, familiar. A resposta de Delgadinha pode ser directa (5.”- Isso não, ó meu papá, isso não, não pode ser”, D/26 Frias (1956) 570-571), mas mesmo que não o seja (5.”- Deus do céu nã quer isso nem a hóstia consagrada.”, D/235 Xarabanda (1995) 32-33) será interpretada como uma recusa à obediência, o que lhe vale um cruel castigo. Em Silvana, onde o pai sugere ou pede, mais que ordena, a resposta da rapariga à proposta deste, articulada no condicional (“lá passar, passaria [a noite com o pai]), subentende uma aquiescência que só não se concretiza por receio das penas do Inferno (equivalendo a “satisfazer os desejos do pai de boa vontade se não fosse o medo do castigo divino”). Já os desfechos “morte da adúltera”, em Bernal Francês e “casamento”, em Gerinaldo, se não são discursivamente actualizados, são realizados pelos actos de fala dos seus mandantes: no primeiro, metaforicamente, o marido diz “dar-te-hei [gargantilha/vestuário vermelho]” e, no segundo, o rei ordena ao pajem “casarás [com a minha filha]”. Tais relações de poder não só são constituídas e confirmadas pelos comportamentos linguísticos, como ainda estes podem contestá-las, como acontece em Gerinaldo. Confrontado com a proposta da infanta para que passe a noite com ela, o pajem, geralmente, exprime as suas dúvidas quanto à veracidade de tal intenção e fá-lo pela alegação de ser um simples criado: “- Vós como sois ama minha, senhora, zombais comigo?”, G/2 Braga (1867) 18-20. Note-se que, na maioria das versões, a infanta faz a pergunta de maneira directa (2.”queres tu, ó Gerinaldo, à noite dormir comigo?”, G/105 311 Cf. José Pinto de Lima [2007], Pragmática Linguística, Lisboa, Caminho, 2077, pp. 31-32. 122 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Fontes I (1987) 471-472), como se efectivamente estivesse a perguntar ao pajem o que ele quer (à semelhança do que se passa em Silvana, cuja fórmula usada pelo pai propondo incesto à filha é, aliás, a mesma [“queres”]). Em alternativa, a infanta faz a proposta (2.”bem podias, Gerinaldo, passar a noite comigo.”, G/7 Fontes I (1987) 472) através de expressões que atenuam o implícito acto directivo, como “bem podias”, embora lho possa “pedir” explicitamente (2.“eu te peço, ó Gerinaldo, que durmas uma noite comigo”, G/101 Ferré (1987) 80-81). No entanto, a “fala” da infanta, habitualmente com valor de sugestão/ordem, é transformada, noutra versão, numa espécie de provocação irónica, transpondo para o pajem as suas próprias intenções (2.“quem te dera, Gerinaldo, à noite dormir comigo”, G/111 Fontes I (1987) 475) , o que leva este a proferir uma resposta bem mais brusca e desrespeitosa (3.“Eu como sou criado, não esteja a zombar comigo”) que o habitualmente humilde “Senhora, zombais comigo”. Se, também, é a posição hierárquica do rei que permite a este perguntar directamente a Gerinaldo de onde vem, após o ter visto adormecido ao lado da filha (15.”- Donde vens, ó Gerinaldo, donde vens tão espalvorido?”, G/112 Fontes I (1987) 476), sem qualquer das fórmulas de delicadeza usadas para evitar a indiscrição 312 , o acto de perguntar deixa ainda ao pajem uma hipótese de escapar ao castigo, pois o rei evita a acusação directa de um facto que conhece; o locutor-rei atenua o implícito “acto ameaçador” para com o alocutário-pajem, evitando acusá-lo explicitamente. Este, por sua vez, tenta “salvar a face” respondendo com evasivas, mas a réplica irónica do rei informa-o de que sabe o que se passou e dá-lhe a ordem explícita de casar com a filha. Verificam-se, nestes diversos tipos de ordem, oscilações e variações formais e estilísticas que modulam a força ilocutória do que se diz, reflectindo diferenças 312 Cf. Maria Helena Carreira [1995], “A Delicadeza em Português: para o estudo das suas manifestações linguísticas”, em Maria Emília Ricardo Marques, Sociolinguística, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 207-218. 123 A REVELAÇÃO DO SENTIDO resultantes das atitudes dos sujeitos enunciadores 313 . É deste modo que outras “perguntas” feitas pelas personagens destes romances surgem como formas de fazer saber ao interlocutor que quem as faz tem o direito de as fazer. Estão neste caso a pergunta da mulher ao suposto amante, em Bernal Francês (9.”Que tens, Bernal Francês, que não te viras para mim?”, BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 ) a qual, aludindo a um comportamento anterior não passivo, é uma forma de reafirmar os seus direitos e expectativas de amante. O mesmo se passa com a pergunta que Moriana faz ao cavaleiro, num tom quase casual (7.”- É verdade, ó seu D. Jorge, que você se vai casar?”, VM/20 Leite (1960) 110), mas que subentende o direito de a fazer, que se pressupõe ter sido ganho anteriormente. As “falas” das personagens assumem, pois, a dupla função de comunicação interna, relativamente a elas próprias, e externa, dirigida ao ouvinte/leitor. Com frequência, também se encarregam das funções laudatórias ou condenatórias usualmente executadas em post scriptum; em Delgadinha, cuja protagonista é alvo de aprovação devido à resistência ao pai, o qual, por sua vez, é condenado, as diversas personagens assumem-se como porta-voz destes sentimentos e as suas “falas” invocam a solidariedade divina para a filha e o diabo para o pai: a) - Delgadinha: 36.“- Eu não sou a sua amada nem também a sua filha, 37.Sete diabos o levem p'ra um tanque d'água fria, 38.Que eu fico acompanhada de sete anjos e da Virgem Maria.” D/54 Leite (1960) 73-74 b) - a mãe: 32. “....................... sua mãe l'alumiava : 313 “…se as modalidades ilocutórias surgem dependentes da relação EU -»OUTREM e do grau de implicação, de responsabilização no discurso estabelecido por EU, também elas deixam transparecer, ou manifestam explicitamente, tipos específicos de coordenadas e de relações, que, pelo enunciado, o sujeito enunciativo estabelece com o mundo”. Cf. Maria Emília Ricardo Marques [1995], Sociolinguística, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 227. 124 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 33.- Morreste, Faustina, morreste, minha filha tão honrada, 34.Tu' alminha está no Céu, d'anjinhos arrodeada; 35.A de teu pai no Inferno, de tanto que a clamava!” D/34 Leite (1960) 46-47 c) - o próprio pai: 21.”- Morrestes, filha, morrestes po seres ua mulher honrada, 22.A tua alma stá santa e a minha stá exquemungada. 23.Ó que berdade tão certa, dita plo Padre Eterno: 24.A tua alma stá santa, a minha'arde no Inferno.” D/71 Pereira (1970) 246-247 Na Sequência III de Bernal Francês, e não sendo de crer que um “amante” não se certificasse previamente da ausência do marido, o último item da fala da mulher (estar o marido longe – 11.”Tu não temas o meu marido, que ele está para o Brasil”, BF/39 Leite (1958) 408-409) na série “não temas a”, serve simultaneamente a tranquilizar o interlocutor e a fazê-lo mudar de atitude e, externamente, a fazer saber ao ouvinte /leitor de que existe um marido, o que até então não fora explicitado. A distância e o tempo de ausência são referidos, mas ressalta o contraste entre a informação quase sempre vaga314 do local onde o marido se encontraria (“longes terras” ou “largas léguas”) e a enunciação quase minuciosa das variadas pragas que lhe roga. Estas podem considerarse um aparte da personagem, dentro das suas “falas”. De facto, além do que as personagens se comunicam mutuamente, também se manifestam em apartes, tornando-se estas estratégias de uma explicitação do seu ponto de vista em intenção de terceiros, substituindo-se a um narrador omnisciente. Segundo Ferré, as funções dos apartes das personagens são: 314 Por vezes identifica-se mais explicitamente o local onde o marido se encontra: o Brasil, o Maranhão, uma romaria, a Serra do Marão, todos tendentes referidos a uma considerável distância. 125 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “sublinhar um momento capital da acção, tornar explícito um desejo que o espectador (neste caso, o ouvinte do romance) poderia não perceber, e ainda a de estabelecer o contraste 315 entre as palavras pronunciadas e o que vai no íntimo da personagem que as pronuncia” . Pragas ou maldições são fórmulas de aspecto mágicos que se destinam a atrair qualquer mal ou infelicidade sobre aqueles a quem se destinam. São, muito frequentemente, emotivas e relacionadas com o binómio amor/ódio, recorrendo a imagens fortes e hiperbólicas316 e é assim que, na referida sequência de Bernal Francês, as pragas que a mulher profere têm a função de comunicar os seus sentimentos em relação ao marido. Consistem elas em diversas expressões explícitas do modo como lhe deseja a morte, tal como de que “o matem/cativem/detenham os mouros; os peixes do mar o comam; as ondas do mar o levem; a peste o mate; o trespassem/o passem; maus lobos/bichos o comam; mau bicho (ou corvos) lhe coma os olhos, a serpente o coração….”. A violência dos sentimentos faz especificar que a morte há-de ser devida a “adagadas”, “estocadas”, “facadas” (estas seriam tão fundas “que o sangue lhe chegue aqui”) e também a armas de fogo, com “balas”, sejam “uma”, “sete”, “ mil”, “cinco mil” ou “sete mil”, especificando-se que lhe “bazassem” o coração e, mesmo, a uma misteriosa “entre coladas” (BF/24 Landolt (1917) 81-82 ). Elas servem, sobretudo, para frisar que os sentimento que nutre pelo marido são negativos (12. ”Sete facadas o matem, que o sãigue le chegue aqui!”, BF/39 Leite (1958) 408-409) e implicam sempre o desejo de que ele não regresse, contrastando com o lirismo muitas vezes presente na sequência II, ao descrever os cuidados que gostaria de prestar ao amante (3.- S'eu soubesse a ser D. 315 Cf. Ponte [1987], p. 123. O autor dá como exemplo a fala da mulher, em Bernal Francês, na qual esta parece dirigir-se a um público, dizendo: “S’eu soubesse de ser D. Francisco, a porta l’eu ia abrir…”. A versão tem o nr. 186, em Ferré [1982], p. 165 e é, no nosso corpus, a BF/68 Ferré (1982) 165-166. 316 Pragas ou maldições são fórmulas de aspecto mágicos que se destinam a atrair qualquer mal ou infelicidade sobre aqueles a quem se destinam. São, muito frequentemente, emotivas e relacionadas com o binómio amor/ódio, recorrendo a imagens fortes e hiperbólicas. Cf. Olaf Deutschmann, “Formules de malediction en espagnol et en portugais”, disponível em www.cvc.institutocamoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/10/pag215_272.pdf, arquivo acedido na Internet em 27 de Janeiro de 2010. 126 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Francisco, a porta lhe ia abrir, // 4.lavava-lo em água de rosas, perfumado em alecrim, // 5.dava-lhe camisas alvas, deitava-o a par de mim.”, BF/61 Ferré (1982) 160). Outro bom exemplo de aparte de personagem encontra-se em uma versão de Veneno de Moriana. Dentro da sequência em que Moriana diz ao cavaleiro que vai buscar-lhe um copo de vinho, o verso 7 diz, figuradamente, que está grávida (estar com a “barriga redonda”): 5. “- Assentai-te aqui, ó Jorge, enquanto bou ó sobrado, 6. Buscar um copo de binho que te tenho lá guardado. 7. Assim te bás e me deixes com a barriga redonda... 8. Ou hades casar comigo ou m' hades pagar a honra.” VM/92 Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 119 Trata-se de uma variação que preferimos registar neste momento, não comum, pois, regra geral, as versões do romance apenas aludem (e quando o fazem) a um compromisso matrimonial não cumprido; este verso pode ser, então, considerado um aparte da personagem com as múltiplas funções de que fala Ferré, como atrás citado, tanto mais que o interlocutor parece não tomar conhecimento da ameaça explícita do verso 8, vindo a beber o vinho oferecido. Os apartes emitidos pelas personagens dão conta dos sentimentos presentes, mas também podem ter uma função anaforizante, como é o caso de versão de Gerinaldo contaminada com D. Pedro Pequenino; a mãe, ao ver o filho preso manda-o cantar, mas emite o seguinte comentário (a negrito): 32.“- Vosso pai, quando morreu, pediu (m'estou alembrando; 33. as lágrimas dos meus olhos o rosto m'estão lavando) 34. qu'eu vos desse criação e entregasse a bom senhor.” G/52 Pestana (1965) 93-94 Noutra perspectiva, também o Dilema do Rei, em Gerinaldo, sendo um monólogo (as outras duas personagens estão a dormir, portanto não o ouvem), é um aparte da 127 A REVELAÇÃO DO SENTIDO personagem, visto que se destina a informar o ouvinte/leitor das alternativas que se lhe apresentam (matar o pajem ou a filha), bem como, ao ponderar sobre as consequências, a justificar a implícita decisão de os poupar, o que implicará o desfecho do casamento. A ironia é outro dos recursos com que as falas das personagens transmitem significações que ultrapassam o que é dito e cujo sentido se dirige tanto ao interlocutor como ao ouvinte/leitor. Vejam-se os casos seguintes. Em Bernal Francês a morte é o fim inevitável da adúltera, que não é expressa literalmente, mas anunciada pelo marido como uma oferta (de vestuário/adornos de cor vermelha) que, na maioria das versões, está envolta em grande dramatismo, entendendo-se imediatamente (ouvinte/leitor e personagem-mulher) o sentido trágico da metáfora. Porém, não deixa de conter uma componente pesadamente irónica, como se tal roupagem se tratasse de um presente trazido pelo marido, ao regressar de longe, para a sua mulher. A naturalidade de tal gesto está presente na pergunta explícita da adúltera ao marido, em certas versões317, vindo a ironia da situação a tomar, no diálogo, uma feição um tanto burlesca: 17.”que me trazes, mê marido, o que me trazes dos Brasis? 18. Gargantinhas encarnadas ….”, BF/71 Ferré (1982) 168 A ironia agrava-se ainda, tornando-se sarcasmo e o marido dirá: 13.“- Deixa-te vir a manhã, qu’ele te será perdoado!”, BF/35 Leite (1958) 403-404 O sarcasmo da resposta reside no facto de o perdão não vir a ocorrer e disso não há dúvidas, como o confirma a imediata didascália do informante: “E matou a mulher”. 317 Ver Anexos. Grupo B - B.4. BERNAL FRANCÊS - Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação. 128 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Como um sarcasmo, igualmente, deve ser entendida a resposta do pai de Delgadinha ao pedido de água, pelo subentendido de ser a honradez da filha (nosso sublinhado) a causa do tormento que ele próprio lhe inflige: 23.“- Como te hei-de dar auga, minha filha tão honrada?”, D/37 Leite (1960) 50 Também Moriana sabe como ser irónica, usando a expressão “tenho vinho guardadinho” (VM/19 Leite (1960) 110) para dar ao cavaleiro, bem como no próprio convite para a “merenda” (Tipo B), uma actividade aprazível mas que, afinal, se revela ser composta por um “presente envenenado” – o vinho oferecido. Em Gerinaldo, igualmente, o rei brinca ironicamente com o pajem que tenta ludibriá-lo com o argumento de vir de “caçar a rola”, ao retomar-lhe as palavras e retorquindo que a tal “rola” foi “criada no seu trigo”. Diz Roger Wright, em artigo que questiona se a presença do humor no romanceiro não teria contribuído para a sua pervivência: “Humour is not the same thing as frivolity; serious themes can be developed with a sense of humour, and where that happens, it is usually to their advantage”318. Por nosso lado, entendemos que a perspectiva irónica, afinal uma forma de humor, quer se destine ou não a fazer sorrir a audiência, empresta ao romance um sentido que, sendo ambíguo, certamente o aprofunda. 318 Roger Wright [2009], “Humour in the oral Romancero: how would we know?”, The Bulletin of Hispanic Studies, Vol. 86, Nr 1, 2009, disponível na Internet em http://muse.jhu.edu/journals/bulletin_of_hispanic_studies/v086/86.1.wright.html, arquivo acedido em 18 de Janeiro de 2010. 129 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO IV PARA UMA PERSPECTIVA AXIOLÓGICA NOS ROMANCES 1. Delimitação de âmbitos Neste estudo da significação narrativo-dramática nos romances orais tradicionais, temos vindo a sustentar que estes são dotados de elementos implícitos que lhes organizam o sentido. Entre estes, e visto que as composições de transmissão oral, tal como as escritas, se inserem nas práticas sociais, encontram-se os modelos sócioculturais das comunidades transmissoras, entendidas, no seu sentido mais amplo, como os valores, sociais, familiares e religiosos, que as regem. Trata-se, então, de procurar a mundividência implícita nos romances, enquanto percepção e concepção do mundo. A primeira questão que se levanta é a de estabelecer um nexo significativo entre os textos estudados e um modelo de ideologias e valores, surgindo então o problema de delimitar estes conceitos relativamente ao romanceiro, dado que haveria que conhecer previamente os contextos sociais em que se inserem. Em relação a estes, as perspectivas dos críticos incidiram, com frequência, na relação entre o mundo retratado nos romances e a interpretação da sua função social. Para Teófilo Braga, era “evidente que as situações sociais e morais que aparecem nestes romances, quer sejam portugueses, espanhóis, franceses ou italianos, representam um estado de atraso bárbaro, e inferior ao que pela história se sabe dos povos helénicos, itálicos e célticos”. E acrescenta: “pela monstruosidade das situações morais os romances correspondem a uma sociedade bárbara, inferior ao que se conhece da mais antiga constituição de todos os ramos áricos”. Teófilo exemplifica o seu ponto de vista com os romances, entre outros, de Silvaninha e Bernal Francês, nos quais, diz, “há um estado de consciência compatível com 131 A REVELAÇÃO DO SENTIDO uma civilização extremamente rudimentar, e as catástrofes excedem as emoções de uma sensibilidade delicada”. De acordo com esta concepção, os romances não teriam sido entendidos, mas “abandonados ao automatismo popular, adaptando as situações violentas aos novos costumes” 319 . A. do Prado Coelho notará que os românticos se entusiasmariam com o romanceiro pelo que nele havia de “senso humano” o qual, “com uma intuição clara e robusta de primitivo, vê e expõe no homem, ainda que só de perfil” a heterogeneidade dos homens e o império dos “instintos brutais”, capaz das maiores violências. O povo, esse, não se poderia rever nas personagens demasiado “grandes” dos romances, mas, sendo “bom apreciador e bom julgador do humano”, teria amado o romanceiro pelo “abundante pasto para a vida dos sentidos”, tanto quanto pelas “formas específicas” da composição e ritmo320. Uma orgânica social do romanceiro é desenhada por Paulo Caratão Soromenho que, baseando-se no Romanceiro Português de Leite de Vasconcellos, faz o levantamento das “exigências basilares”, “actividades económicas”, “vida política e cultural”, para concluir sobre o “tipo de orgânica social” nos romances. A lista é longa (“1200 vocábulos, verbetados do romanceiro leitiano”) e, segundo o autor, reflecte a visão de uma “sociedade rural, pobre, ‘antiga’” sobre a vida das classes elevadas e retrata uma sociedade “cientificamente paupérrima, tecnicamente rudimentar, literariamente deficiente”. Soromenho começa por relacionar a origem popular dos “autores anónimos medievais e modernos” com a concepção que estes têm da “vida dos grandes”, aos quais são atribuídas “características singulares, com estranhos costumes, insensatos conceitos morais, sentimentos 319 Cf. Teófilo Braga [1994], O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, Vol. II, Lisboa, D. Quixote, 1994, pp. 290-294. Importa notar que, embora haja em Teófilo Braga a assunção implícita do atraso “bárbaro” do povo que, conservando os romances, se comprazia com tais situações, o autor observa e refere, já, o fenómeno da variação, embora se lhe refira como uma adaptação aos “novos costumes”. 320 A. do Prado Coelho [1943], introdução, selecção de textos e notas de, O “Romanceiro” de Garrett, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1943, pp. 25-48, “(III – Notícia sobre o romance popular português)”. 132 A REVELAÇÃO DO SENTIDO destrambelhados e ideologias extravagantes”. Esta visão de sociedade teria por base “o regime monárquico (real ou imperial) absolutista, frequentemente degenerado na tirania ou despotismo – dado que a vontade do chefe é caprichosa”, assente em uma hierarquia de características medievais, em que a “força se sobrepõe ao direito” e na qual se encontra uma organização familiar na qual o incesto é frequente, acreditando que “por defeituosa visão que os autores populares teriam da sociedade elevada, por um lado, e por certo realismo, por outro” 321 . Quanto às ideologias, na perspectiva mais geral de Teun van Djik, são definidas como “sistemas básicos de cognições sociais fundamentais e como princípios organizadores das atitudes e das representações sociais comuns a membros de grupos particulares”322. No que diz respeito ao romanceiro tradicional, diz Diego Catalán que este “no recoge el ideário de las classes dominantes” e que a propriedade de abertura “[…] permite la adecuación de las narraciones romancísticas a la ideologia del ‘pueblo’ cantor que las transmite y re-crea” 323 . Ao empregar o termo “adecuación”, Catalán estabelece uma implícita diferenciação de ideologias de grupos; para o autor, a ideologia do povo que canta, transmite e recria o romanceiro, “(aunque no carezca de contradicciones) incluye siempre, de una u otra forma, aspiraciones a una reorganización mas justa de la realidad social y a una profunda revisión del sistema de valores en que se sustenta el orden, injusto, establecido”. Já Lorenzo Velez 324 discorda de uma visão de mera impugnação, visto que o romanceiro “integra una pluralidad de contenidos que abarcan pautas y comportamentos de la cultura dominante, al lado de uma especial cosmovisión de los sectores que lo usan” , mas 321 Cf. Paulo Caratão Soromenho [1982], “A Organização da Sociedade no Romanceiro Português”, Biblos, Vol. LVIII (1982), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1982, pp. 199-206. 322 Adoptamos esta definição visto que o que aqui nos interessa não é levantar questões de ideologias do foro filosófico, mas encontrar uma sua formulação num enquadramento de análise do discurso, fazendo notar que, citando ainda o autor, as ideologias “controlam indirectamente as representações mentais (modelos) que formam a base interpretativa e a ‘inserção’ contextual do discurso e respectivas estruturas” Cf. Teun van Djik [1997], “Semântica do discurso e ideologia”, em Emília Ribeiro Pedro, organização de, Análise Crítica do Discurso, Lisboa, Caminho, 1997, pp. 105-168. 323 Cf. IGR 1.A, 1984, p. 21. 324 Cf. Velez [1989], pp. 93-100. 133 A REVELAÇÃO DO SENTIDO reconhece-lhe uma consciência reivindicativa embora, simultaneamente, uma aceitação de valores, aspirações de prestígio social e desejo de melhoria de nível económico. Por sua vez, João David Pinto-Correia, que sublinha que o objecto do seu estudo 325 se situa no domínio da literatura dita popular tradicional, que “liberta” as figuras de Carlos Magno e dos Doze Partes de França dos referentes “históricos e “literários”326, confere aos termos “axiologia” e “ideologia” os sentidos propostos por A. J. Greimas e J. Courtés, verificando que, na identificação dos “valores básicos” dos romances carolíngios, uma ideologia predominante é a “/aristocrática-guerreira/”, a qual, diz, “vai actualizar sintacticamente valores seleccionados de entre os disponíveis num universo axiológico colectivo (digamos o da mundividência medieval com seus prolongamentos na actualidade” 327. Noutra obra328, o autor relaciona axiologicamente as linhas fundamentais de sentido329 com valores do “estrato nobre-cavaleiresco” e religiosos, não encontrando outros que “se liguem mais estritamente a estratos considerados mais ‘baixos’ da comunidade” e sugere, como hipótese para que as comunidades rurais tenham “feito suas as histórias de que esses valores constituem alicerces axiológicos e ideológicos”, um certo fascínio pelo “outro”, “com classes, costumes, personagens diferentes, mas, apesar disso tudo, também humanos, dotados das mesmas condutas e sentimentos…”330. Para António Lorenzo Vélez, “[A]nalizar ideologicamente el romancero en general es tarea imposible”, pelo que prefere centrar a análise ideológica em âmbitos ou domínios 325 Referimo-nos a RCTOP. Cf. RCTOP, Vol. 1, pp. 10-15. 327 Os sentidos propostos pelos autores que cita são: “designa-se pelo nome axiologia o modo de existência paradigmática dos valores, por oposição à ideologia que toma a forma do arranjo sintagmático e actancial deles”. Cf. RCTOP, Vol. 1, pp. 459-460. 328 Referimo-nos a ROTP. 329 O autor refere, ainda, que os grandes núcleos temáticos Amor/Ódio, Fidelidade/Traição, Vida/Morte se inscrevem nos valores das classes predominantes do esquema encontrado por George Dumézil como próprio dos Indo-Europeus (a “estrutura das três funções). Cf. ROTP. As funções que regulam a organização da sociedade nas civilizações indo-europeias são, segundo Dumézil, a soberana e religiosa (espiritual), a marcial (força física) e a económica (fecundidade). Cf. Eric Maulin [2006], The IndoEuropean Tales of George Dumézil, www.diplomatie.gouv.fr/label_france/English/LETTRES/DUMEZIL/dumez.html, arquivo acedido na Internet na Internet em 20 de Abril de 2006. 330 Cf. ROTP, p. 40. 326 134 A REVELAÇÃO DO SENTIDO concretos, entendendo que “un análisis ideológico del romancero debe delimitar com claridad un campo narrativo coherente y relativamente homogéneo, esto es um âmbito concreto…”331. Posto isto, acrescentamos que ao falar da mundividência nos romances, ou de “valores” e “ideologias”, há que ter em conta que se trata de textos que partilham das condicionantes das estruturas tradicionais - transmissão oral, num grande alargamento temporal e geográfico e multiplicidade das versões - e que a atribuição de determinadas ideologias a contextos concretos poderá ser dificilmente perspectivada, se considerarmos que as comunidades transmissoras sofrem mutações na forma de viver e pensar a realidade e elas mesmas são heterogéneas. De facto, as contradições a que Catalán se refere têm a ver com a diversidade cultural do “povo”332, o qual, segundo António Gramsci, não é “uma unidade culturalmente homogénea”333, pelo que tais valores, dentro da mesma comunidade, podem ser manifestados de uma forma aparentemente paradoxal 334 . Há, ainda, a considerar a falta de referentes históricos, no caso dos romances novelescos 335 , circunstância que dificulta a sua inserção nos chamados 331 Cf. António Lorenzo Velez [1989], “Ideologia y visión del mundo en el romancero tradicional” em Pedro M. Piñero et alii, edición al cuidado de, El Romancero. Tradición y Pervivencia a fines del Siglo XX, Actas del IV Coloquio Internacional del Romancero, Cádiz, Fundación Machado, Universidad de Cádiz, 1989, pp. 93-100. 332 Não aprofundaremos a conceptualização de “cultura popular” e “cultura erudita”, nem procuraremos definir o conceito de “povo”, essa “entidade pouco concreta”, nas palavras de João David Pinto-Correia, em Prefácio (“Uma escrita acerca do povo ou da possibilidade de um discurso etnográfico”) a Alves Redol [2004], Glória. Uma aldeia do Ribatejo, Lisboa, Editorial Caminho, 2004, preferindo entendê-lo no âmbito deste trabalho, como comunidade na qual se processa o circuito de transmissão-reprodução do romanceiro tradicional e que é principalmente rural e não-letrada (adoptamos a definição de João David Pinto-Correia, em ROTP, p. 15-18). 333 apud Raposo [1997], pp. 22-46. 334 Segundo Teun van Djik, as ideologias são sistemas de cognição social essencialmente avaliativos e organizam núcleos de esquemas de opinião partilhados por determinados grupos, vindo estes a instanciar modelos padronizados que formam a base mental dos seus discursos. Os membros de grupos específicos tendem a expor as ideologias próprias do grupo, no seu discurso oral e escrito; não obstante, este pode revelar opiniões e atitudes contraditórias, devido a transformações provocadas por factores pessoais ou pela identificação com outros modelos contextuais. Cf. Djik [1997], pp. 116-121. A troça pode ser um meio de exprimir opiniões sem que os actos sociais convencionais deixem de ser cumpridos. Veja-se, a este propósito, o estudo de Paulo Correia de Melo [2005], Anedotas e Outras Expressões de Anticlericalismo na Etnografia Portuguesa, Lisboa, Roma Editora, 2005. 335 Não retomando aqui a questão das designações e classificações dos romances, lembramos que Pere Ferré diz que “grande parte dos romances velhos deriva de baladas europeias. A este numeroso grupo de textos dá-se-lhe também o impreciso nome de novelescos”. Cf. RPTOM, Vol. I, p. 38. 135 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “documentos sociais”336. Os assuntos neles abordados não têm uma natureza histórica ou noticiosa, mas estão subordinados aos temas mais vastos Amor/Ódio-Vida/Morte, pelo que, nesta perspectiva, se consideram intemporais. Assim, aos episódios concretos, focados nessas narrativas, subjaz a universalidade daqueles grandes núcleos temáticos, o que suscita a Susana Weich-Shahak o seguinte comentário: “Como en otros muchos casos en el romancero de tradición oral, cabría referirse aquí a las preguntas formuladas por Jesus Antonio Cid respecto a la fidelidad del romance al relato histórico, pero también observar qué relevancia tendría una historia de los reyes de España para una señora sefardí mondando sus habas en la judería de Tetuán. Lo que es evidente es que para los usuarios del romancero serfadí es más importante lo universal del tema que su exacta historicidad, de la cual ni siquiera tienen una exacta noción.”. Referindo-se aos comentários das informantes sobre os desenlaces diferentes de Gerinaldo (ou seja, se a infanta deveria ou não casar com o pajem, dado o acentuado declive social entre os dois), a autora demonstra que, para elas, os referentes sociais ou morais se impõem ao referente histórico e conclui: “Es decir, que de toda la trama de intriga amorosa y escándalo paleciego, algo sí apuntaba a un problema diario y vivido tambien en la sociedad de las informantes: el peso del estrato socio-económico como criterio para la relación amorosa y el matrimonio.” 337 (nosso sublinhado). 336 Relativizamos o conceito de “documento social” aplicado aos romances, se entendido como retrato de uma dada época, tal como o entende Rómulo de Carvalho, que encontra registos dos mais diversos temas de significado social em textos poéticos, desde os cancioneiros galaico-portugueses até ao limiar do 25 de Abril. Nas palavras do autor, o texto poético será um “documento social” quando portador de “sinais definidores de uma sociedade determinada”, pelo “assunto de que trata, os termos em que é redigido, a escolha dos vocábulos que utiliza, a sua ordenação formal, o seu ritmo ou falta dele, a sua intencionalidade…”. Cf. Rómulo de Carvalho [1995], O Texto Poético como Documento Social, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. Numa perspectiva mais restrita, a categoria de “documento” seria, quando muito, aplicável aos romances nos quais subsistem referentes históricos (Romances Históricos de Contexto Peninsular, classificação em ROTP). Esses referentes diluem-se nos Romances Carolíngios e nos que, mesmo assentando em factos reais, exploram sobretudo o factor sentimental (como os de tema lendário) e religioso, pelo que os romances serão “documentos sociais” não no sentido de retratarem concretamente uma determinada sociedade, mas pela sua vertente implícita, que reproduz modelos de conduta social e moral das comunidades transmissoras, ainda que o possam fazer através das infracções cometidas. 337 Cf. Susana Weich-Shahak, “Observaciones sobre el romancero sefardí de tradición oral - Motivos míticos y foco temático”, em http//: parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, arquivo acedido na Internet em 22 de Novembro de 2006. 136 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Percebe-se, então, que as narrativas tradicionais reproduzem e reflectem o imaginário colectivo (sagrado ou profano), os valores, as ideologias, os tabus e as normas sociais e regras de conduta dos grupos que as contam338. Sabe-se, também, que as comunidades nas quais vivem os romances orais tradicionais se inserem no espaço cultural ocidental 339 , caracterizado por um tecido social revestido de uma acentuada hierarquização 340 social e de género e imbuído de uma ideologia judaico-cristã 341 , determinando esta uma mundividência que rege os códigos de comportamento sociais e pessoais. No caso português, estas circunstâncias são observáveis em textos que revelam os esforços para criar modelos de conduta normativos, em particular no que respeita ao estrato social não dominante342. A partir do Concílio de Trento, o poder 338 Cf. Holbek, p. 131. Andrés-Gallego define por “ocidental aquilo que é próprio da cultura formada sobre o classicismo greco-romano filtrado pelo cristianismo”. Cf. José Andrés-Gallego [1993], História da Gente Pouco Importante. América e Europa até 1789, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 247. O autor declara pretender, com esta obra, “traçar a hist ria antropologica das gentes culturalmente ‘ocidentais’ no inal do Antigo Regime” e nela alude à “antropologia do poder” e à “sociedade como sistema”, fazendo uma síntese do modo de viver do Antigo Regime, de que ressaltam, muitas vezes, as tensões entre grupos sociais. Indica uma vasta bibliografia comentada, com leque variado de estudos sobre diversas matérias e campos culturais nos quais se apoia. 340 Indicam-se, a título de exemplo, duas obras sobre a evolução da cultura portuguesa no tempo, nas quais se verifica a continuidade de uma dicotomia opositiva entre os estratos mais e menos poderosos na sociedade portuguesa: António José Saraiva [1950], História da Cultura em Portugal, 3 vols., Lisboa, Jornal do Foro, 1950 e Maria José Ferro Tavares [1990], coord., Sociedade e Cultura Portuguesas, 2 Vols., Lisboa, Universidade Aberta, 1990. 341 Referimo-nos, em geral, ao carácter pan-hispânico do romanceiro e, em particular, ao caso da tradição portuguesa. A este respeito, citaremos Miguel Real, que, após apresentar um quadro comparativo das características básicas dos portugueses em Teixeira de Pascoais, Jorge Dias, Eduado Lourenço e A. José Saraiva, conclui que “São milhões de pequenos sinais que compõem o corpo religioso da nação e que, em última análise, espelham a cristalização duradoura de uma mentalidade judaico-cristã entre nós”, embora dissocie esta dos actos institucionais eclesiásticos. Cf. Miguel Real [1995], Portugal, Ser e Representação, Lisboa, Difel, 1995, pp.179-187. 342 A intenção por parte do poder hegemónico de instituir um modelo orientador da religiosidade popular alonga-se no tempo. Refira-se, como exemplo, o propósito corrector de S. Martinho de Braga no século VI (cf. Aires A. do Nascimento [1997], edição, tradução e comentários de, Instrução Pastoral sobre Superstições Populares. De correctione rusticorum, Lisboa, Cosmos, 1997) e, recentemente, o seguinte Directório, que se cita, cujos termos por nós sublinhados subentendem uma oposição mal/bem entre o popular e o institucional: “Por vezes, as expressões de religiosidade popular aparecem inquinadas de elementos que não se coadunam com a doutrina católica. Nesses casos, devem ser purificadas com prudência, por contactos com os responsáveis e com uma catequese atenta e respeitosa, a não ser que incongruências radicais exijam medidas claras e imediatas”. Cf. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos [2003], Directório sobre a Piedade Popular e a Liturgia. Princípios e Orientações, Lisboa, Paulinas, 2003, p. 9. Os termos por nós sublinhados subentendem a existência de uma oposição entre o mal, que corresponde aos ”elementos que não se coadunam com a doutrina católica” e o bem, representado pela ”doutrina católica”, entendendo-se que aqueles (o mal) devem ser 339 137 A REVELAÇÃO DO SENTIDO hegemónico socorrer-se-á das visitas pastorais, que constavam de “um levantamento paróquia a paróquia dos pecadores públicos (concubinários, incestuosos, pais e maridos consentidores, prostitutas, cônjuges separados, maridos que maltratam as suas mulheres, blasfemos, não-pascalizantes, ébrios, usurários, curandeiros, feiticeiras, etc.) através da denúncia dos seus vizinhos”. Elas visavam, sobretudo, os estratos mais baixos, pelo que era “raro ver um nobre acusado em devassa, e quando tal acontece os visitadores informam pessoalmente o bispo que, aí sim, procede ‘paternalmente’”343. O relato destas visitas demonstra que não só o poder hegemónico sancionava as infracções como actuava em especial sobre os estratos menos favorecidas. Revela, sobretudo, a natureza dos “pecados” e que estes abrangiam um leque variado de comportamentos desviantes à norma, incluindo as próprias relações familiares (“concubinários, incestuosos, pais e maridos consentidores…”). Ultrapassada há muito esta letra e forma conciliar, é no entanto sabido que os desvios comportamentais aos códigos morais instituídos continuam a ser, recorrentemente, objecto da atenção das instâncias do Poder, políticas344 ou religiosas345. expurgados da religiosidade popular, mesmo sob coacção das autoridades religiosas (que detêm o poder de o fazer). 343 Cf. Joaquim Ramos de Carvalho [2006], A jurisdição episcopal sobre leigos em matéria de pecados públicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das populações portuguesas de Antigo Regime. (Revista Portuguesa de História, Tomo XXIV, Coimbra, 1990, pp.121-163), arquivo acedido na Internet em 2 de Abril de 2006, www.uc.pt/bahp/bahp90.ft1523.html. O autor faz notar a diferenciação entre as visitas pastorais portuguesas e as europeias, que “eram normalmente uma inspecção do estado das igrejas, dos livros e alfaias do culto, da competência e zelo do clero local”. A vida familiar era vigiada pela igreja e pelo estado, sendo do interesse de certos grupos sociais (nomeadamente as elites) controlar o comportamento sexual de outros. 344 Atente-se, como caso exemplar, na investigação de Daniel Melo sobre a perspectiva do Estado Novo português em relação à cultura popular. Segundo o autor, a política cultural salazarista integrava uma ideologia tendente a configurar e uniformizar a cultura cultural do povo, recriada “num sentido nacionalista, ruralista e tradicionalista” (p. 378) e cujos conteúdos desejáveis incluiriam, basicamente, o amor da pátria, “a noção da autoridade, da sociedade e da família” (p. 99). A cultura popular transparece então como “uma cópia do modelo da cultura dominante” (p. 101). Cf. Daniel Melo [2001], Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2001. 345 Embora noutra perspectiva, as infracções sociais e morais são hoje também objecto da atenção de outras instâncias, como as mediáticas, o que referimos por associação com a representação ficcional, nos romances, de casos bem conhecidos das comunidades. Referimo-nos à analogia entre Silvana e Delgadinha e os numerosos casos de incesto divulgados através da comunicação social, sobretudo aqueles que são acompanhados pela violência de manter as vítimas longamente sequestradas. Em um deles, uma jovem austríaca encerrada na cave durante vários pelo pai, viveu com ele maritalmente, tendo 138 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Mesmo não afectando os romances a uma determinada época ou área geográfica, reconhece-se neles uma tessitura social que mimetiza a real e na qual se movem as personagens; na sua condição de práticas significantes, encontram-se nos romances os modelos e sistemas de valores que regem qualquer comunidade e se sabe serem veiculados pelo poder hegemónico. Há, pois, nos romances, toda uma rede de sentidos sociais e morais que, no entanto, não se constrói explicitamente na narrativa, antes estando-lhe implícita, razão pela qual sustentamos que valores comportamentais e sentidos revelar-se-ão sobretudo pela natureza dos actos cometidos346. De facto, a razão primeira de os actos cometidos nos romances serem narrados é, precisamente, o facto de nunca serem banais, sendo apresentados “como se deram” e sem que cumpram uma intenção moralista ou pedagógica explícita, que apenas se evidencia nas versões com prolongamento desse tipo. A narrativa é, de certo modo, “neutral”, no sentido em que se limita a relatar determinado episódio ou incidente. Lembremos, a propósito, o que mencionámos na Introdução sobre o carácter “asséptico” das “fórmulas arcaicas semirecitativas” e também a observação de Garrett na carta-prefácio a Adozinda, “Ao sr. tido diversos filhos, o que fez dela “madrasta” dos próprios irmãos. Veja-se o que diz a protagonista de Delgadinha, também ela encerrada durante anos, por se negar ao incesto: 5. “- Não queira Deus do Céu, nem a Virgem Sagrada, 6. Que seja de meu pai mulher, de minhas irmãs madrasta.” D/42 Leite (1960) 54-55 A expressão usada na versão do romance acaba, afinal, por provar que estas composições são, muitas vezes, “mecanismos de um saber”, simultaneamente tradicional e actual. Para as notícias sobre casos reais de incesto, cf. Correio da Manhã, edição on-line, disponível na Internet em http://www.cmjornal.xl.pt/pesquisa.aspx?pesquisa=Fritzl&source=tags&contentid=F132FD7F-E5764D31, arquivo acedido em 26 de Março de 2010. Em Silvana encontramos outra analogia, desta feita com o incesto consensual, abaixo noticiado, que no caso do romance só não se concretiza por receio das penas do Inferno, o que afinal representa uma condicionante religiosa judaico-cristão: “O assunto voltou a estar na ordem do dia quando, há algumas semanas, a actriz Mackensie Philips, de 49 anos, lançou uma biografia em que assume ter tido relações sexuais consentidas com o seu pai durante cerca de dez anos. Mackensie é filha de John Philips, um dos fundadores do conjunto Mamas and Papas, celebrizado na década de 60 com as músicas 'California Dreaming' ou 'Monday, Monday'.” Cf. Revista Única, edição on-line do Expresso de 17 de Outubro de 2009, disponível na Internet em http://aeiou.expresso.pt/incesto-amores-proibidos=f543000, arquivo acedido em 26 de Março de 2010. 346 Por outro lado, a sua apreciação, positiva ou negativa, tende a ser comunicada no modo implícito. 139 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Duarte Lessa”, sobre os sentimentos nele provocados pela recitação meio cantada, meio rezada, das “xácaras e romances populares”, referindo a “monotonia do canto”347 . Estas observações vêem corroborar a nossa afirmação sobre um certo distanciamento posto na enunciação (cantada ou não) dos romances, que denuncia o propósito de “neutralidade” do género, que nem sempre dos seus transmissores/produtores348. Basta ver, neste caso, nos versos da versão de Delgadinha a seguir transcritos, a ênfase posta na adjectivação, que denuncia a opinião do enunciador349 acerca da crueldade paterna, assim associada ao Demónio: 5. “O pai algoz cruel com ira endemonhada 6. mandou levar a Delgadinha a alta torre fechada;” D/17 Martins (1928)/Martins (1987) 221-222 Na verdade, as normas impostas pelo poder hegemónico e o efectivo viver das comunidades nem sempre são coincidentes. Alguns dos pecados arrolados como tal pelas visitas pastorais pós-tridentinas não eram senão modos de viver decorrentes das raízes culturais vigentes no Antigo Regime350; em muitos casos, as populações, embora 347 Cf. Garrett [1983], Vol. I., p. 59. A este propósito, citamos Abel Barros Baptista que, em artigo sobre o romance Frei João, assevera “ a disponibilidade do romance para funcionar como exemplum, mas um exemplum sempre diferente: diferença que pode passar, inclusivamente, pela oposição frontal. Assim, a mesma fábula, não existindo senão através de versões diferentes, corre permanentemente o risco de dizer aqui uma coisa e além o seu contrário”, referindo a “tensão entre sentido literal e sentido figurado que não chega a resolver-se”. O autor conclui também que o “aspecto utilitário da narrativa tradicional, a sabedoria que transmite ou a ‘moral da história’ que apresenta se estruturam através da escolha de um desenvolvimento narrativo em prejuízo de outros possíveis, e que só se cumprem enquanto efeito se o auditor puder dissolver a sua experiência vivencial particular transformada em história na história da narrativa tradicional, isto é, se puder encarar a situação em que se encontra como um exemplo da situação narrada”. Cf. Abel Barros Baptista [1989], “A Experiência da Morena nos braços de Frei João. Retórica da alegoria no romanceiro Tradicional (‘Frei João’)”, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nr. 4, Lisboa, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 11-67. 349 A avaliação do narrado nem sempre é tão clara, sendo a aprovação ou a rejeição a determinados actos mais marcadamente expressas nos prolongamentos, a modo de post-scriptum. 350 Os pecados começaram a ser vistos enquanto tal (pecados ou transgressões individuais) como resultado de uma acção conjunta dos poderes civis e religiosos para a regulamentação dos comportamentos sociais, tendo mudado a forma de olhar (mas não de erradicar) condutas que eram lícitas anteriormente; ainda nos finais do século XVI a sociedade admitia a forma de casamento sem a bênção eclesiástica, o que deixou de suceder posteriormente. Cf. Federico Palomo, A Contra-Reforma em Portugal. 1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006, pp. 114-125. 348 140 A REVELAÇÃO DO SENTIDO viessem a moldar ao seu quotidiano as normas assim impostas, persistiam em certas condutas condenadas, o que pode gerar paradoxos nas suas manifestações culturais. Entendendo então os actos cometidos (ou sofridos) nos romances como formas de representação da realidade 351, se bem que dentro de um quadro ficcional, eles serão “infracções” ao modelo institucional e será a análise destas que revelará as normas que 351 Se os romances são uma forma de representação da realidade, eles serão também, literalmente, representados. Referimo-nos, concretamente, à adaptação a representação teatral de alguns deles, nomeadamente a Veneno de Moriana, o que demonstra, por um lado, o próprio dinamismo do romanceiro, cuja morte se tem repetidas vezes augurado, e, por outro, que os assuntos e temas nele tratados são ainda compreensíveis no mundo contemporâneo. Mencionamos, os casos seguintes: Em 2005, nas comemorações dos 454 anos da cidade de Vitória, Brasil, estreou-se o musical, “grande bailado de congo, samba e candomblé”, intitulado “Farsa de Juliana e D. Jorge”, do dramaturgo César Huapaya e inspirado naquele romance. O texto integra vários personagens populares, como Otinho (poeta de rua dos anos 1960 e 1970), Maria Saraiva (negra vendedeira de doces em seu tabuleiro) e Maria Tomba-Homem (famosa prostituta) e históricos, como o escravocrata Barão de Itapemirim. Do blog que noticia o evento, transcrevemos o seguinte excerto: “O espetáculo é um musical atemporal, passando do século XVI ao século XX. Os cantantes, em depoimentos históricos, narram a origem da colonização em nossa capitania. Dom Jorge é um fanfarão que vivia prometendo em casamento todas as moças de Vitória. Na peça, ele é um descendente de Dom Jorge de Menezes, fidalgo degredado, que veio com Vasco Fernandes Coutinho colonizar a capitania do Espírito Santo. Dom Jorge é um fazendeiro escravocrata e traficante de escravos. Sem escrúpulos, ele segue os mesmos princípios criminosos de Dom Jorge de Menezes. Entretanto, acaba esbarrando em poder maior que o dele e é obrigado a se casar. Juliana é uma descendente de um rei africano do Congo (Kambinda) que veio como escravo para o Brasil, e se tornou um líder de quilombo. Ela e sua mãe ajudavam os famintos da Vila de Vitória. […….] Juliana havia recebido a promessa de se casar com Dom Jorge, mas descobre que ele acabara de casar-se com Mariazinha, filha do Barão-coronel Messias. Para se vingar de Dom Jorge, Juliana oferece-lhe um cálice de vinho com veneno. Assim, todas as mulheres da Vila de Vitória são vingadas e o povo festeja sua morte aos sons dos atabaques de Candomblé e dos tambores de Congo”. Cf. "Musical resgata cultura popular”, em www.seculodiario.com.br/arquivo/2005/setembro/09/cadernoatracoes/cultura/04.asp, arquivo acedido na Internet em 3 de Abril de 2008. O outro caso é o de L BENENO DE MORIANA, quelóquio an un ato, por Francisco Niebro, para ser representado pelos alunos da Escola Secundária de Mogadouro (o que não chegou a acontecer) por alturas da assembleia geral da Associação Micológica A PANTORRA, em 2005, a qual havia anteriormente publicado na sua revista, em 2004, uma palestra daquele autor, com o título “La amanita muscaria i ls remanses ‘veneno de moriana’: notas para ua perpuosta de nuoba lheitura”. O “quelóquio” baseia-se nas versões mais comuns “an que la mulhier mata l home cun beneno scundido nun copo de bino” e também nas de “final madeirense”, a que nos havemos de tornar a referir adiante, que parecem “dar a antender que l home nun se muorre, mas que haberá ‘rucecitado’ apuis de star alguns dies anterrado ne l huorto de la matadora.” Trata-se, nas palavras do autor, de buscar “[…] ua nuoba lheitura daquel remanse popular” e continua: “Inda que se agarre la cuonta que stá por trás de l remanse tradecional, reproduzindo-la eiqui an buona parte, l quelóquio trata essa cuonta cumo la cristalizaçon dua rialidade aterna: l amor. Deste tema central sálen outros mui bariados: l ódio; la bingança; l çprézio de ls fuortes puls fracos; la rejisténcia de ls fracos an relaçon als fuortes; la lhibartaçon de la mulhier; la tentatiba de domínio de fuortes fuorças scundidas para apoiar ls deseios houmanos; la berdade i la mintira nas relaçones houmanas, etc. Lhigado cun aquel tema central, hai un outro que atrabessa todo l remanse: la lhibardade i ls lhemites de la decison andebidual. Assi, anque la cuonta cuntada ne l remanse se passe nua sociadade mediabal, eilha tem ua dimenson antemporal que le dá ua grande atualidade. Ye por esto modo de ber las cousas que passa la ourdidura de l quelóquio i zdende mais bien puoden ser antendidas i anquadradas las refréncias, a la purmeira bista sien sentido, que neilha éntran.” O texto completo, que aqui não reproduzimos pela sua extensão, pode ser consultado em Francisco Niebro, L BENENO DE MORIANA, quelóquio an un ato, em www.quelquios.blogspot.com, arquivo acedido na Internet em 3 de Abril de 2008. 141 A REVELAÇÃO DO SENTIDO lhes estão implícitas. Deste modo, se nos havemos de debruçar sobre o processo narrativo em si, que “conta” determinados incidentes, não poderíamos descurar a procura dos elementos que suportam os seus modos de representação e que carregam a narrativa de significações mais abrangentes, de modo a que haja lugar à revelação do sentido. Será pertinente, agora, retomar o critério de selecção do presente corpus de trabalho, no qual se pressupôs que as histórias de mulheres “adúlteras”, “matadoras”, “vítimas” e “sedutoras” narram episódios reconhecíveis pelas comunidades transmissoras352. Nesta perspectiva, os romances que seleccionámos são romances de 352 Entendemos como reconhecíveis pela comunidade aquelas situações passíveis de se darem no seu seio, tal como o são adultérios, traições, incestos ou casamentos desiguais. Outras composições, que não os romances tradicionais, contemplam também estes e muitos outros acontecimentos, como é o caso dos romances vulgares e das cantigas narrativas. Estas, porém, tendem a situar as histórias que contam num determinado espaço geográfico-temporal e a identificar concretamente as personagens, pelo que são sentidas como ocorrências singulares, a registar como exemplares. Delas dirá Maria Aliete Galhoz que “[A] sua função, das cantigas narrativas, no que de função se pode considerar, é semelhante à do Romanceiro: noticiar ou entreter como objectivo primeiro….” e que “[O] evento torna-se caso, ergue-se a exemplo”. Cf. Maria Aliete Galhoz [1988], “Literatura Popular – Cantigas Narrativas”, Revista Lusitana. Nova Série, 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 151-172. Carlos Nogueira, que faz a distinção entre romance vulgar e cantiga narrativa e define ambos, postula que“[N]um cotejo genérico com o Romanceiro velho, o Romanceiro vulgar (de origem tardia, como dissemos) apresenta temas mais populares, vinculados ao quotidiano do povo das cidades e dos campos, como insucessos amorosos, crimes diversos, suicídios, desastres, acções de bandidos”, acentuando que a cantiga narrativa compartilha as características do gosto pelo trágico, enquanto ”[T]raço típico de toda a estética de massas … revelado em pormenores realística ou hiperbolicamente macabros, sinistros…”. Cf. Carlos Nogueira [2002], O Essencial sobre o Cancioneiro Narrativo Tradicional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. Sobre os romances vulgares (também chamados em Espanha “de ciego”) na literatura de cordel faz Júlio Caro Baroja um estudo e antologia de que ressaltam, grosso modo, aqueles mesmos traços. Cf., respectivamente, Julio Caro Baroja [1990], Ensayo sobre la Literatura de Cordel, Madrid, Ediciones Istmo, 1990 e Julio Caro Baroja [1980], Romances de Ciego, Madrid, Taurus Ediciones, 1980. Além, logicamente, do critério distintivo da estrutura sintáctico-estrófica (a cantiga narrativa ocorre geralmente em quadras, mas também quintilhas ou sextilhas), será este hiperbolismo ou insistência predominante nos pormenores mais trágicos, acentuados pela identificação realista e alongada dos elementos narrativos espaço/tempo/personagens, que diferencia romances vulgares e cantigas narrativas dos romances tradicionais. Estes, embora neles se encontrem situações de grande dramatismo, fixam-se sobretudo num único ou poucos episódios, depurados de elementos circunstanciais, sendo os factores espaço/tempo/personagens facilmente intercambiáveis, como se comprova pela variada onomástica das versões, pelo que os episódios narrados nestes romances funcionam como situações-tipo. Sem aqueles constrangimentos, os romances adquirem uma dimensão mais intemporal e universal que lhes permite, juntamente com a propriedade de abertura, serem produ-transmitidos em comunidades díspares como o serão as transmontanas, as insulares, as galegas, as bascas, as sefarditas, as brasileiras e todas as outras que fazem parte do universo pan-hispânico. A fortuna da cantiga narrativa, embora se possa tradicionalizar, será mais limitada em termos de propagação. Note-se, ainda, que, nesse processo, os elementos que a fixam a um lugar/um tempo/personagens perderão a rigidez documental. Exemplificamos brevemente com um caso verídico de duplo suicídio por amor, passado em 1914 numa pequena localidade beirã do distrito de Castelo Branco, que originou uma cantiga narrativa sobre a qual existe um estudo, com sete versões publicadas. Cinco destas, recolhidas no próprio local, registam a data exacta do 142 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “transgressão”, na medida em que, em todos, há personagens que infringem convenções sociais e morais, nas quais se incluem o adultério (Bernal Francês), a quebra de compromissos (Veneno de Moriana), o incesto (Silvana e Delgadinha) e o sexo prématrimonial (Gerinaldo). No cerne destes conflitos encontra-se a representação da mulher, em relação ao modelo social institucionalizado, uma vez que tem havido, ao longo dos tempos, uma presunção repetida da mulher como “sujeito subalterno” 353 , documentada em textos religiosos, filosóficos e científicos de várias culturas 354 e, acontecimento, atestada em documentos oficiais, enquanto as outras, recolhidas noutro concelho, a alteram (a uma delas junta-se quadra admonitória a todos os pais). Cf. Maria Adelaide Salvado [2001], Em nome do Amor… Mari ela e José Pina – Um caso de Amor e Morte em Sarnadas de Ródão no início do século XX, Castelo Branco, Centro Municipal e Desenvolvimento de Vila Velha de Ródão, 2001. Essa versão é também publicada em outra obra e nela classificada como “romance novelesco da literatura de cordel” (Cf. Natália Maria Lopes Nunes da Graça [2000], Formas do Sagrado e do Profano na Tradição Popular. Literatura de transmissão oral em Margem (Concelho de Gavião), Lisboa, Colibri, 2000). A data é igualmente alterada em mais duas versões publicadas em GRPP, pp.1163-1164 e 1164-1165, recolhidas respectivamente no distrito da Guarda e no de Santarém, esta última alterando ligeiramente o apelido do suicida. O que temos vindo a dizer não obsta, contudo, a que o inverso se produza, isto é, a que a versões dos romances tradicionais sejam adicionados elementos identificatórios que as particularizam. É o caso, por exemplo, que se encontra em versões compósitas de Bernal Francês + A Aparição nas quais, na parte final, são nomeadas diversas localidades onde será enterrada a mulher. É, também, um destes casos o final da versão BF/88 Fontes I (1987) 346-347, que diz: “… João de França, se te casares, casa-te em Vila d'Oím, // com a filha do Pratèro, que se chama Beatriz”. A particularização dos nomes (“Vila d'Oím”, “a filha do Pratèro”, “Beatriz”) fixa e aproxima os acontecimentos de determinada comunidade (que pode ser, ainda assim, ser ficccional). 353 Em 1982, Ranajit Guha, por influência de Michel Foucault, refere-se aos “sujeitos subalternos” a propósito das margens silenciadas dos camponeses, analfabetos, mulheres e castas inferiores (“On Some aspects of the Historiography of Colonial India”). Apud Peonia Viana Guedes [2006], “’Can the su altern speak?’: Vozes Femininas Contemporâneas da África Ocidental”, em www.amulhernaliteratura.ufsc.br., arquivo acedido na Internet na Internet em 28 de Abril de 2006. 354 Diz o Talmud que “é preferível queimar a Torah do que confiá-la a uma mulher. No Corão, os homens têm autoridade sobre as mulheres por causa das despesas a que se sujeitam para as manter”. Buda, interrogado por Ananda sobre a sua opinião sobre as mulheres, diz: “Evitai a sua visão ... não lhe dirijais a palavra...” e o confucionismo chinês anota que “Um rapaz nasceu; cubramo-lo de ouro e de jade. Uma rapariga nasceu; que ela se divirta com pedaços de tijolo”. O cristianismo multiplica as acusações contra as mulheres como, no séc. XV, o faz o dominicano Antonino com todas as letras do alfabeto, de A (avidum animal – animal ávido) a Z (zelus zelotypus – inveja invejosa). Filósofos como Comte e Rousseau (“Toda a educação da mulher deve fazer-se em função dos homens”) e escritores como Balzac (“Emancipar as mulheres é corrompê-las”) partilham deste desprezo. Em 1893, Auguste Strindberg escrevia “A mulher é inferior ao homem... O cérebro da mulher apresenta menos circunvoluções que o do homem... pelo contrário os nervos são mais fortes, como se observa na criança. Daí a sua faculdade de poder suportar mais facilmente certas dores físicas, no que se assemelha ao selvagem.... Alguns antropólogos acharam – o que foi confirmado por exploradores africanos – que o crânio da mulher branca se aproxima do do negro e que o crânio de uma negra é inferior ao de um negro; a conclusão será que o crânio da mulher branca se aproxima de um tipo de crânio que lembra uma raça inferior.” Esta e as anteriores citações encontram-se em Guy Bechtel [s.d.], As Quatro Mulheres de Deus, A Puta, a Bruxa, a Santa & a Imbecil, Lisboa, Multinova, s.d. Os títulos dos capítulos designam as maneiras de a sociedade, nomeadamente a Igreja Católica, estereotipar a mulher, ao longo dos tempos. 143 A REVELAÇÃO DO SENTIDO aparentemente, perpetuada na literatura oral tradicional 355 , vindo outros a ser interpretados como a expressão de protesto e ruptura contra a ordem dominante356. Nem sempre estas e outras avaliações são explícitas ou evidentes nos romances, como já referimos. As personagens agem de acordo com um modelo-padrão social empírico, quer o façam de forma negativa quer positiva, mas a apreciação dos seus comportamentos pode apenas permanecer implícita, modalidade em que se pode revelar, com toda a impunidade, a adesão ou rejeição às regras impostas pelo poder hegemónico357. Diz Fraga de Azevedo o seguinte: “em termos de interacção social, a opção por este modo de expressão [implícito] é funcionalmente muito produtiva, uma vez que possibilita ao falante beneficiar da cumplicidade 355 Veja-se, por exemplo, esta forma breve: - Mãe, o que é casar? - Filha, é fiar, parir e chorar, cujo discurso determinista, que implicitamente atribui ao casamento um valor negativo, não é senão uma projecção dos problemas específicos das mulheres “contadoras de histórias”. Elas são-no, em primeiro lugar, porque foram ouvintes pois, segundo Susan Arndt, “what a listener hears and understands is closely tied to the concrete situation, her current mood and state of mind, her personality, her individual experiences, her age as well as her gender-specific, social, religious and familial background”. Cf. Susan Arndt [1998] A rican Women’s Literature: Orature and Intertextuality, Bayreuth, Eckhard Breiyinger, Bayreuth University, 1998. 356 Cf. Ponto 1. Não postulamos estes romances como textos do feminino, mesmo sendo maioritariamente transmitidos por mulheres, mas sublinhamos que eles revelam uma teia complexa de determinações culturais, cujos valores implícitos advêm de um modelo homocêntrico, apreciado positiva ou negativamente, o que vai ao encontro do que diz Isabel Allegro de Magalhães, em O Sexo dos Textos. A autora, que caracteriza as correntes anglo-saxónicas e francesas da crítica literária feitas por mulheres como ocupando-se de textos literários de autoria feminina nos quais “se viabiliza um protesto ou uma ruptura formal com a ordem social e simbólica dominante”, observa não existirem “pólos distintos definidos pelo sexo de quem escreve” e prefere falar de um “sexo dos textos”. Cf. Isabel Allegro de Magalhães [1995], O Sexo dos Textos, Lisboa, Caminho, 1995, p. 15-20. Embora trate de textos de autor, escritos e não anónimos e orais como os romances, citamos a obra por, precisamente, destacar a existência de um “sistema patriarcal e ditatorial” associado ao masculino e, ao mesmo tempo, a percepção do real (corporal, social e cultural) que se institui nos textos, independente do género masculino ou feminino, em relação ao modelo hegemónico. 357 Mais uma vez, referimo-nos às sociedades baseadas nas tradições judaico-cristãs e clássicas, nas quais se espera das mulheres um comportamento conforme às regras morais e sociais vigentes. Em 2003, um congresso realizado na Universidade Fernando Pessoa, promoveu o tema da representação da “maldade” das mulheres, como transgressoras de tais regras. Os trabalhos desenvolvidos reúnem-se numa trilogia cujo primeiro volume, já publicado, inclui comunicações em diversas áreas, de que destacamos as que se referem ao romanceiro. São elas a de Maria do Carmo Cardoso da Costa [2004], “A maldita serrana no imaginário popular ibérico”, pp. 43-56 e a de Teresa Araújo [2004], “Em torno de algumas mulheres do Romanceiro Pan-hispânico: transgressoras e configuradoras de medos arquetípicos”, pp. 141-158; sobre as características sócio-comportamentais desviantes das mulheres, nomeadamente das “bruxas”, debruçase Francisco M. V. Reimão Queiroga [2004], “As mulheres e as representações do mal em meio rural”, pp. 33-42, todos em Ana Maria da Costa Toscano, Shelley Godsland [2004], orgs., Mulheres Más. Percepção e Representação da Mulher Transgressora no Mundo Luso-Hispânico, Vol. I, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2004. 144 A REVELAÇÃO DO SENTIDO inerente ao dizer, desresponsabilizando-o, concomitantemente, dos riscos ligados à explicitação”358. Os romances fazem largo uso desta opção, deixando no modo explícito a história ou episódio que se narra e confiando os valores que lhes sustentam a razão de ser ao modo implícito. É frequentemente também neste modo que são plasmados sentimentos pró ou contra certos actos das personagens, sejam eles conformes ou entrem em conflito com as normas culturais vigentes. No entanto, há uma notável complexidade neste processo. É ver, por exemplo, como certos princípios parecem ser declarados, pondo-os na boca das personagens (a negrito), neste caso, em Bernal Francês, falando o marido à mulher: 17. “- Mulheres todas são falsas, eu experimentava-te a ti”, BF/102 Ana Martins/Ferré (1988) 71-72. Dá-se o caso de o informante da versão ser do sexo feminino, não sendo de crer que esteja verdadeiramente a exprimir a opinião de que as mulheres são falsas, considerando que a observação do marido não se dirige apenas às adúlteras, mas a “todas as mulheres”. Porém, a versão acaba da seguinte maneira: 38.“Na campa da Francisquinha há um grande pinheiral. 39. quem engana o seu marido morre em pecado mortal.” Como não é possível interrogar a informante a esse respeito, ficará por esclarecer se a introdução destes versos não tradicionais se deve a motivações do foro moralizante (pessoal, social ou até religioso) que prevaleceriam sobre o género do indivíduo. Vistos os romances como apresentando os factos “como sucederam”, os desfechos – castigo ou recompensa – serão a implicação “lógica” do acto cometido e a que é esperada ou promovida por um certo envolvimento sócio-cultural. Ainda no que diz respeito aos comportamentos femininos, diz Oro Anahory-Librowicz, embora ressalvando que se refere especialmente à tradição judeo-marroquina, que “El desenlace 358 Cf. Fernando José Fraga de Azevedo, “O Implícito e o Não-dito. A sua Relevância na Construção do Sentido”, em Linguística e Didáctica das Línguas. Actas do Fórum Linguística e Didáctica das Línguas, 26-28/04/1995, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, pp. 303-308. 145 A REVELAÇÃO DO SENTIDO nos proporciona la clave para averiguar el grado de tolerância o severidad com que se trata a la mujer” 359 . No caso de Gerinaldo, o habitual casamento implica uma certa tolerância para com a jovem “desonrada”, indicando que esta pode realizar o seu desejo sensual sem castigo, ao contrário dos desfechos trágicos para as adúlteras (o que ocorre em Bernal Francês), que indicam um maior rigorismo. Contudo, certos comportamentos que implicariam uma sanção em sociedade nem sempre a sofrem explicitamente no conteúdo narrativo do romance (caso de Veneno de Moriana, cuja protagonista, que mata um homem, não sofre castigo), podendo só ser expressa apenas nas mensagens moralizantes dos remates finais (tal como para o pai/família, em Delgadinha), o que leva a que um dos paradoxos mais evidentes nos romances seja a maneira como certos valores parecem sobrepor-se a outros. Para que o sentido dos suportes significantes indirectos que adiante se proporá se revele360, há que lhe procurar os elementos que o sustentam. Tendo-se já traçado um esboço generalizado do padrão dominante de valores que rege o espaço sócio-cultural em que vive o romanceiro, identificar-se-ão os espaços em que se movem as personagens dos romances do corpus e definir-se-ão, também, as várias relações de Poder que entre elas se estabelecem, considerando que a representação dos modelos sociais é executada de através dos núcleos temáticos Amor/Ódio, Vida/Morte, Fidelidade/Traição, que se interpenetram; a sua esfera de acção é a Família e a Sociedade, que, igualmente, não se podem desligar, uma vez que mesmo o que se desenrola no foro mais íntimo da primeira irá repercutir-se na segunda. É por essa razão que, nos actos cometidos, por vezes aparentemente de cariz apenas familiar, se encontram oposições e relações de poder complexas. 359 Cf. Oro Anahory-Librowicz [2005], La honra femenina en el romancero sefardí, www.ucm.es/BUCM/revistas/fll/02122952/articulos/DICE9090110031A.PDF, arquivo Internet na Internet, em 2 de Junho de 2005. 360 Na Parte II. 146 acedido na A REVELAÇÃO DO SENTIDO Núcleos temáticos interligados Amor/Ódio, Vida/Morte, Fidelidade/Traição Esfera de acção - Família: Esfera de acção - Sociedade: Fidelidade no matrimónio: Honra: Infracção feminina: - adultério (Bernal Francês) Infracção masculina: - sedução e abandono (Veneno de Moriana) Laços entre pais e filhos: - leis cavalaria (Veneno de Moriana) Infracção parental: - incesto (Silvana e Delgadinha) da Infracção feminina: - sedução pela mulher (Gerinaldo) Hierarquia: Infracção: - quebra da ordem social (Gerinaldo) Justiça: Infracção: - a morte (Bernal Francês, Delgadinha, Veneno de Moriana, Gerinaldo) 2. A construção do espaço físico e social Os romances, dada a sua característica de condensação significante, dispensam descrições longas ou detalhadas, pelo que o sentido da componente do espaço, físico ou social, por sua vez interligados, procurar-se-á nos escassos elementos apresentados. Nestes, os elementos não humanos têm uma função complementar à dos humanos (ou proporcionam-na) pelo que a sua caracterização faz parte da análise do modo como o sentido se revelará361. 361 A interacção entre os espaços (físico, temporal e humano) nos romances (no caso os leitianos) é objecto de um estudo de Andreia Cavaleiro que, entre outros, cita, dos romances do nosso corpus, Bernal 147 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Quanto ao espaço físico, poder-se-á, basicamente, distinguir entre o exterior e o interior. Este é representado pelo espaço humanizado e engloba a habitação e as divisões que dela fazem parte (quarto, sala, cozinha, corredores), podendo ser particularizada (torre, castelo, palácio) e abrangendo ainda o jardim, ou, ainda, a própria aldeia. O espaço exterior é o bosque, o campo (vales, serras, rios, mar) quer em estado selvagem quer já domesticado/controlado pelo homem (a segada, a feira, a romaria) ou, ainda, o local de conflito (a guerra). Igrejas e cemitérios são um espaço intermédio, semi-humanizado, semi-divino362. Os caminhos são o espaço que une ou separa todos os outros espaços. Todos estes elementos, com os outros a eles ligados, não são meros adornos da narrativa nem a sua escolha aleatória em situação de variação, que tenderá, sobretudo, a substituí-los por outros com o mesmo valor operacional, semântico ou simbólico, sob pena de uma completa modificação desvirtuar o sentido do romance. Nos romances de que nos ocupamos em particular, a mulher desenvolve a sua acção no espaço interior da casa363 e o homem no exterior364. O ambiente é o da família nuclear (marido/mulher, pai/mãe/filhos), acontecendo a intervenção de outros parentes e mesmo de criados, que são sobretudo coadjuvantes, função igualmente desempenhada Francês, Delgadinha e Gerinaldo. Cf. Andreia Cavaleiro [2004], “Romanceiro: O Humano no Espaço e no Tempo”, em Ana Paula Guimarães et alii, organização de, Falas da Terra. Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa, Lisboa, Colibri, 2004, pp. 167-176 362 Assim também o “convento”, onde a protagonista de Delgadinha pode, em algumas versões, ser encerrada. Este espaço, divino porque aí se acolhiam as “virgens de Deus”, adquire o significado adicional de local de encerramento com sentido de castigo, para onde se enviavam as filhas rebeldes à vontade dos pais; lembramos o paradigmático caso de A freira no subterrâneo, em tradução de um autor que tantas vezes relatou casos de amores punidos com o convento. Cf. Camilo Castelo Branco, A freira no subterrâneo [s.d.], Porto, Lello & Irmão, s.d. 363 Virtudes Atero e Nieves Vasquez, baseando-se num corpus de romances de Cádiz, Espanha, delimitam dois tipos de cenários nos quais se movem as mulheres do romanceiro – o espaço da civilização, no interior da casa, no qual situam a maioria das representações do feminino e o exterior, para o qual as mulheres apenas no desempenho de funções domésticas; o outro espaço é o do selvagem, considerado excepcional, no qual domina o tema de La serrana de la Vera (IGR 0456), a Serrana na tradição portuguesa, que inverte o modelo feminino, pela sua ferocidade. Cf. Atero, Vasquez [1998]. Não estão contempladas, neste estudo, figuras como a da Donzela Guerreira e outras, como a Infantina, que igualmente fogem ao estereótipo do espaço fechado da casa. 364 Assim no dito português: “Mulher em casa, homem na praça”. 148 A REVELAÇÃO DO SENTIDO por entidades celestiais que possam aparecer (como as que rodeiam Delgadinha na sua morte). A caracterização física das personagens é, geralmente, sumária. Quando existe, foca-se na qualidade genérica dos atributos (ser gentil, ser bonita) e raramente há uma descrição física concreta (altura, cor dos olhos ou da pele, etc.)365. Em Bernal Francês, pouco ou nada se sabe do aspecto da protagonista, se não que há-de ser, di-lo o “amante”, de corpo bem feito: 1. “- Francisquinha diligente, vosso corpo bem gintil, 2. Abri essas vossas portas a quem costumais abrir.” BF/52 Lemos (1961-1962) 171-173 Do aspecto físico de Moriana, também pouco se sabe; havia de ser bonita, a crer nas palavras de “D. Jorge”, que lhe refere o “corpo apertado” e a trata por “minha rosa”: 6. “- Deus te salve, ó Juliana, com teu corpinho apertado.” […………..] 8. - É verdade, ó minha rosa; eu te venho convidar. “ VM/20 Leite (1960) 110 365 Em ensaio que reúne algumas das conclusões gerais da Tese de Doutoramento intitulada Formas y funciones del personaje mujer en el romancero tradicional (sobre el ejemplo del romancero de Gran Canaria), apresentada à Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, 2001, Juana Robaina esboça uma tipologia da representação física e moral feminina no romanceiro, e diz: “En efecto, dominan en los textos los primerísimos planos que apenas sobrepasan el busto de la mujer pero que se ofrecen uniformemente idealizados, si bien, verdaderamente camaleónicos a los oídos del auditorio. Éste, tan pronto se hallará ante metáforas femeninas terrenales (flores como la rosa, el clavel, el jazmín...; metales preciosos como el oro y la plata) como verá alzar el vuelo a ligeras aves (sobre todo palomas) y, más arriba aún, a deslumbrantes astros y toda suerte de luceros, a ángeles o a enigmáticas deidades (sol, luna, estrella, Venus, Minerva...). El resultado, que casi todos los que miran pierden la cabeza: ¿galantes? amantes (La venganza de Don Juan de Lara, La casada abandonada, El novio que mató a su novia, Proposición amorosa, Carmela y Rogelio...) hermanos (Tamar, El hermano incestuoso), cuñados (Blancaflor y Filomena, La doctora peregrina) padres (Sildana, Delgadina, El pescador Pedro Marcial...). La mujer es, también, víctima de su belleza y a piropear la misma dedica el Romancero innumerables elogios. Los piropos más frecuentes se expresan con los adjetivos pertenecientes al campo semántico de la belleza y hermosura en general: bella, hermosa, bonita, guapa, linda, preciosa, fina, pulida, compuesta y pueden referir el entusiasmo hacia el conjunto de la figura femenina”. Cf. Juana Rosa Suárez Robaina [2010], “Protagonismo de la mujer en el Romancero”, disponível na Internet em http://literaturamedievalipa.blogspot.com/search/label/Protagonismo%20de%20la%20mujer%20en%20el %20Romancero, arquivo acedido em 28 de Março de 2011. 149 A REVELAÇÃO DO SENTIDO As protagonistas de Silvana e de Delgadinha serão, certamente, bonitas, mas as versões, de modo geral, não se alongam em pormenores sobre as características físicas concretas de cada uma. De Silvana, percebe-se que é a atitude desenvolta que atrai o pai e as versões simples do romance pouco mais dizem que é “bela” e que, ao pai, mesmo vestida de roupa simples, lhe agrada mais que a mãe: 1. “Andava a bela Silvana pelo corredor acima”, S/16 Ferré (1982) 207-208 3. “- Melhor me pareceis, D. Silvana, com vestido de cada dia, 4. do que vossa mãe, rainha, com quanto ouro havia.” S/24 Fontes (1983a) 121 De Delgadinha diz-se um pouco mais, visto que não ser só a juventude (quando nas versões é a mais nova das filhas), mas, sobretudo, a sua beleza que há-de atrair o pai; por isso, a afirmação de que a jovem é bonita (é a mais bonita das irmãs, com as quais é comparada) é recorrente no romance: 1. “Era um homem tinha três filhas, todas três mais lindas que a prata, 2. a mais nova delas todas Valdevina se chamava.” D/19 Nunes (1928) 231-232 O próprio nome, Delgadinha, sugere a elegância da protagonista, que se torna explícita nalgumas versões: 1. - “Dilgada, ó Dilgadinha, da cintura delicada”, D/112 Marques (1982) 210-211 Por vezes, a descrição torna-se mais detalhada e saberemos que traz “ouro” no cabelo (cabelo louro) e tem olhos azuis: 3. “o ouro qu’ela trazia a seu pai le namorava”, D/42 Leite (1960) 54-55 1. “Silvana de olhos azuis a toda a gente encantava”, S+D/12 Leite (1960) 64-66 150 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Também em Gerinaldo não se fornece a descrição física das personagens, pois o que mais interessa, para os caracterizar, é a sua condição social, embora as próprias designações, “infanta” e “pajem”366, tragam implícita a juventude de ambos. Dada a enorme variação onomástica nas versões, a questão dos nomes das personagens aparenta ser de somenos importância. Geralmente, só as principais são identificadas com um nome e nem sempre, nem todas elas. Em Bernal Francês, nunca saberemos o nome do marido, mas conhece-se sempre o do amante, e, por vezes, o da mulher; se, nas versões do tipo A de Veneno de Moriana, o protagonista masculino tem nome (tal como a jovem), nas do Tipo B é, apenas, o “cavaleiro”; em Silvana sabe-se o nome da filha, mas não o dos pais, ambos personagens principais, embora se conheçam os dos irmãos, que a mãe enuncia, mas nem intervêm na intriga; também de Delgadinha se sabe o nome e por vezes o do pai, mas não os da restante família. A infanta e o rei, em Gerinaldo, não têm nome. Deste modo, parece trata-se de dar primazia a categorias, mais do que a pessoas concretas. Não importa saber o nome do “marido” e da “mulher” em Bernal Francês, mas sim que o primeiro é “um marido enganado” e a segunda “uma adúltera”, em importa quem é o pai de Silvana ou de Delgadinha ou qualquer título que tenha367, mas 366 Infante: do lat. infans, antis ‘que não fala, que tem pouca idade, criança’. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa [2003], 6 vols., Círculo de Leitores, 2003, Tomo IV, p. 2090. As diversas acepções para a entrada “pajem”, também no mesmo dicionário, Tomo V, pp. 2727-2728, indicam que se trata de um jovem. 367 Muitas versões referem ao pai como “o rei” (1.”O rei tinha três filhas todas três afidalgadas”, D/201 Carvalho Rodrigues (1990) 89-90), “um rei” ou, mais concretamente, “o nosso rei” (1.”O nosso rei tinha três filhas, brancas nem de prata fina”, D/198 Fontes (1989-1990) 61). Outras, como as seguintes, identificam-no como “conde” ou “conde de”: O conde da Vila-Flor, nas D/1 Braga (1867) 181-183, D/88 Miguel de Oliveira (1981) 212-213, D/186 Ana Martins/Ferré (1988) 83-84, D/187 Ana Martins/Ferré (1988) 84-85; O conde das três Marias, D/13 Basto (1914) 59-60, D/32 Leite (1960) 44-45, D/33 Leite (1960) 45-46, D/34 Leite (1960) 46-47, D/36 Leite (1960) 49 e D/37 Leite (1960) 50; O conde Margarida, D/23 Carneiro (1945) 167-168; O Conde de la Flor, D/52 Leite (1960) 69-70; O conde d'Ila Flor, D/53 Leite (1960) 71-73; Rei Branco, D/139 Cortes-Rodrigues (1987) 335-336; O conde D. José, D/185 Ana Martins/Ferré (1988) 82-83; Conde São José, D/190 Ana Martins/Ferré (1988) 87-89; O conde José Albino, D/191 Ana Martins/Ferré (1988) 89-90. 151 A REVELAÇÃO DO SENTIDO o facto de “ser pai”; em Gerinaldo, as duas categorias, “rei” e pai” estão interligadas, sendo a primeira, porém, imprescindível ao sentido do romance. No entanto, verifica-se que os nomes, quando os há, não são aleatórios, antes ajudando à caracterização dos seus portadores. Os diminutivos, e muitos são eles além de Delgadinha (como Delgadita, Aldidinha, Teresinha, Alvininha, Alvarinha, Balbeninha, Galdoninha) ou nomes terminados em -ina (como Adelina, Faustina, Gualdina, Claudina, Deladina) ou em –eta (como Malgaveta) no romance de incesto Delgadinha são muito utilizados, de modo a frizar a pouca idade mas também a inocência e a fragilidade da protagonista 368 . Também a personagem feminina de Bernal Francês, por vezes, se chama “Francisquinha”, o que sugere juventude, que não inocência, pois sabe-se que esta mulher se prepara para cometer adultério; porém, quem assim lhe chama é o “amante”/marido, o que implica um sentido amorável, se bem que simulado: 1.“[……………….] - Francisquinha, Francisquinha, 2. abre-me a tua porta, ò a tua janelinha.” BF/78 Fontes (1983 b) 79-80 Quando este romance continua com A Aparição, o nome da protagonista torna-se, com certa frequência, “Ana”, o que parece dar-lhe uma feição mais grave, visto que se trata já de uma defunta369. Nomes com esta sonoridade ocorrem também em Veneno 368 Ou sentidos como “fidalgados”, como é o caso de “Faustina”: 1. 2. 3. 4. “O conde da Vila-Flor, por ser o conde maior, de três filhas que ele tinha, clarinhas como o sol, uma se chamava amada, outra se chamava querida; outra se chamava Faustina por ser a mais fidalgada.” D/1 Braga (1867) 181-183 369 Cf. Isto segundo, por exemplo, o que deste nome disse Luis Chaves: “’Ana’” é nome de maior categoria [comparativamente ao nome ‘Maria’], semi-aristocrático: se todas as mulheres são ‘marias’, poucas são as ‘Anas’”. Cf. Luís Chaves [1963], “Perfil de Mulher no Folclore Português”, em Actas do 1º Congresso de Etnografia e Folclore. Promovido pela Câmara Municipal de Braga (De 22 a 25 de Junho de 1956), Vol. III, Lisboa, Plano de Formação Social e Corporativa, 1963, pp. 59-69. 152 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de Moriana (Juliana, Laureana, Moliana 370 ) e em Silvana (Selivana), cujas protagonistas, se bem que jovens, serão menos inocentes que Delgadinha. Por sua vez, o nome da personagem masculina de Bernal Francês aponta para a sua condição de estrangeiro, até mesmo quando se lhe chama “Françoilo” (ex. BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204) ou “D. Francesco” (BF/6 Azevedo (1880) 145-150). Outro nome sugestivo é o que o marido chama à adúltera, como “falsa Nera”(BF/9 Braga (1887-1889) 105-107), clara referência à maldade geralmente associada ao imperador romano Nero. 3.A rede familiar – actividades, estatutos e relacionamentos A construção do espaço social nos romances é também traçada através das funções que as personagens desempenham, pelas actividades a que se dedicam e pelos lugares nos quais se movem, bem como pelas formas de tratamento utilizadas entre si. Bernal Francês O estatuto social das personagens marido e mulher não é explicitamente mencionado 371 havendo, no entanto, uma implicação de poder, social e familiar, em vários indícios. A mulher, ao tentar afastar os temores do suposto amante, refere-se a “criados” e mesmo a “vassalos”, que só famílias de um certo estatuto social possuiriam: 10. “Meus criados e vassalos, por altas torres a dormir.” BF/34 Leite (1958) 401-402 Há, por outro lado, uma sugestão da actividade militar do marido, presente nas pragas que a mulher roga lhe roga (ex: 9. “Anda matando os Mouros…”, BF/46 Leite 370 Mas também ocorre o nome “Eugénia” e semelhantes, precedidos pelo honorífico “Dona”, que lhes confere a mesma gravidade. Quanto ao nome do protagonista e às implicações do seu nome e título, referir-nos-emos noutros locais. 371 Por vezes, o estatuto do marido é especificado, como na BF 20 Dias (1911) 49-51, v. 19, na qual a mulher se dirige ao marido por: “ó meu bom conde”, pedindo-lhe perdão. 153 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (1958) 418-419), bem como na resposta que aquele dá à observação (“Se tens medo àquelas armas, eu as vou tirar dali”, v. 13) feita por ela: 16. “Não tenho medo àquelas armas, que eu mesmo as ali prantí” BF/20 Dias (1911) 49-51 As armas, mas sobretudo as espadas, armas brancas conotadas com um certo estatuto social372, estão presentes logo no início de certas versões: 1. “Estando eu na minha cama, estando no melhor dormir, 2. Espadas ouvi bater, espadas ouvi tenir.” BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38 Noutras versões, ele declara expressamente não temer a justiça (v. 17: “não me temo da justiça, que a justiça é por mim, BF/2 Braga (1867) 34-36), podendo a afirmação ser interpretada como achando ele que esta está do seu lado, como parte ofendida que é, ou porque, muito simplesmente, o seu estatuto o colocaria acima da comum “justiça”, enquanto qualquer patrulha que andasse pelas ruas. Também a cor vermelha das diversas peças mencionadas pelo marido como oferta, além da evidente metáfora da morte sangrenta373, revela, na sua ironia, o espaço social das personagens, pois o uso desta cor no vestuário, segundo Oliveira Marques374, está associado à nobreza. Certos adereços “prometidos”, como uma “gargantilha [colorada]” ou “contas de coral”, remetem mais directamente para a degolação (ou decapitação)375, mas este tipo de morte, tendo neste romance um sentido de castigo376, 372 Ver, na Parte II, o Capítulo II, dedicado aos motivos. Ver, na Parte II, o Capítulo II, dedicado aos motivos. 374 O autor refere que a camisa ou o gibão se trabalhavam em seda ou veludo, citando João Afonso de Aveiro, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – “Meu gibão de seda rasa de mui fino carmesim”. Refere, igualmente, a pragmática de 1340, que reservava aos nobres o uso da escarlata, tecido tingido em tons de vermelho carmesim, tal como a “camisa degolada/decotada” usada por uma senhora nobre, no painel do Infante e, ainda, a “gargantilha”, como “pequenos véus transparentes para disfarçar o decote da camisa”, usados no século XV. Cita, entre outras, os colares de contas de âmbar e coral usados pelas senhoras. Cf. A. H. Oliveira Marques [1971], A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1971 (Capítulo II, O Traje, pp. 23-62). 375 Degolar e decapitar são sinónimos. Cf. Dicionário Houaiss de sinónimos e antónimos [2007], Rio de Janeiro, Lisboa, Instituto António Houaiss, Círculo de Leitores, 2007, p. 173. 373 154 A REVELAÇÃO DO SENTIDO indicia o estatuto social elevado377 daquela que o vai sofrer que apenas se aventa pela sua persistência na maioria das versões de Bernal Francês378. Veneno de Moriana Se há uma infracção de Moriana, que mata, parece também havê-la por parte do cavaleiro, que não cumpre com a promessa de casamento. Importa pois procurar neste romance se existe uma diferenciação explícita de classe de ambas as personagens, dado que uma condição social assimétrica agravaria a infracção cometida pelo protagonista masculino. O homem que Moriana mata é um cavaleiro, condição explícita no epíteto das versões com o incipit “Apeia-te, ó cavaleiro” (Tipo B) ou implícita no honorífico associado ao nome (D. Jorge), nas versões do Tipo A. Mesmo quando não existe essa informação e o protagonista é referido apenas pelo nome, percebe-se que é pessoa de “representação”, ou seja, de classe alta: 5. “- Lá vem o Jorge a cavalo, muito bem arrepresentado.”, VM/41 Fontes (1979) 124-125 Quanto à condição social de Moriana, não explicitada nas versões do Tipo B, é indiciada nas do tipo A, pela menção às actividades em que se ocupa. Estas são 376 No romanceiro há referência a outras decapitações como a (não concretizada) em Conde Alarcos, mas, neste caso, sem o sentido de castigo, mas de prova (o conde deve matar a mulher e levar a cabeça ao rei, para o comprovar). Através da expressão “cão estoque”, corrupção evidente de “com um estoque”, presente nos versos de versão deste romance (“Não me mates cão estoque que é muito à tirania, //Afogame com uma toalha que é mais à fidalguia.” - versão de Felgar, c. Torre de Moncorvo, d. de Bragança, reeditada em RPTOM, Vol. II, p. 348, com o nr. 671), constatamos que o uso desta arma branca, pontiaguda mas sem o fio cortante necessário à decapitação, dá a entender que esta só se realizaria depois da morte da condessa, mas sobretudo que a execução com o estoque, ao invés de uma espada, mais própria para alguém de alta jerarquia, como o é a condessa, para mais inocente, seria então sentida como infamante. Por isso, o uso da toalha, aqui considerado “mais à fidalguia”, é preferido por ela. 377 A decapitação era, em países como a Inglaterra, reservada aos nobres; em Portugal, em 1759, foi decapitada a Marquesa de Távora, condenada com a família por crime de alta traição (Cf. Dicionário Enciclopédico da História de Portugal [1985], II, Publicações Alfa, 1985, pp. 268-269). Até à abolição da pena de morte em 1867, no nosso país, o método oficial de execução dos criminosos vulgares era o garrote. Cf. Richard Clark [2004], The garrotte, www.richard.clark32.btinternet.co.uk/garrotte.html, arquivo acedido na Internet na Internet, em 23 de Dezembro de 2004. 378 Referimo-nos à generalidade das versões da tradição portuguesa, sendo de notar que em versões leonesas o marido mata imediatamente a mulher, com três punhaladas. Cf. Catalán, Campa [1991], pp. 57-59. A variação faz, também, com que surjam outras soluções, ao que adiante nos referiremos. 155 A REVELAÇÃO DO SENTIDO variáveis, pelo que Moriana tanto pode ser apresentada como de estatuto elevado ou baixo. Por vezes, acontece que é o próprio “estado” que, mais explicitamente, indica uma classe social alta: 1.“- Salve Deus, ó Moliana, no vosso estado real!”, VM/21 Leite (1960) 111 Os estatutos de ambos os protagonistas parecem, neste caso, ser equivalentes: 1.“- Bom dia, ó Boliana, senhora do vosso estado. 2. - Bom dia, ó D. Abrunho, senhor do vosso cavalo.” VM/73 Ferré (1982) 193 O próprio local onde Moriana se encontra indicia um certo nível social: 1.“- Deus te salve, Brobiana, nesta varanda reale.”, VM/42 Fontes (1979) 125 1.“- Deus te salve, Laureana, nas tuas altas varandas”, VM/40 Fontes (1979) 124 2.“ - Viva também, Juliana, no seu palácio assentado”, VM/97 Ferré (1987) 66 Frequentemente, encontra-se simplesmente “sentada” ou “encostada”, o que indicaria possuir uma certa posição social que lhe permitisse não ter de trabalhar: 5.“Deixa-t'estar, Juliana, no teu camarim sentada”, VM/18 Leite (1960) 109 2. “lá estava a D. Julieta no seu sofá encostada”, VM/101 Ferré (1987a) 48 Alguma vez está desempenhando tarefas de índole doméstica: 1.“ - Deus te salve, Laureana, na tua linda varanda, 2. Sacudindo os teus lençóis, cobertores da tua cama.” VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263 Acontece que esteja a bordar, actividade considerada senhoril, mas que pode também ser entendido como tendo a profissão de bordadeira: 1.“- Deus te salve, Laureana, costurando teu bordado.”, VM/5 Mendonça Dias (1922) Outras ocupações de Moriana entender-se-ão mais claramente como o desempenhar de um ofício, no caso seguinte o de tecedeira: 4.“Deus te salve, Juliana no teu tear a trabalhar”, VM/17 Leite (1960) 108-109 156 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Ora como se disse acima, o homem que a engana é um cavaleiro e diz O Livro da ordem de cavalaria379que “… se o cavaleiro não cumpre com o ofício de cavalaria…. tal cavaleiro é mais vil que o tecelão e o trompeteiro que seguem com o seu ofício” (nosso sublinhado). Diz o Livro, ainda, que o cavaleiro não podia ser “homem vil de linhagem” além de que “É mandamento de lei que o homem não seja perjuro” e que não deve “enganar e forçar as viúvas e outras fêmeas”, pois “roubar honra é dar vileza e má fama”. Deste modo, havendo uma marcada diferenciação social entre os dois protagonistas, subentende-se haver mais honra em ser tecelã do que em ser mau cavaleiro, o que justifica, no romance, a ausência de castigo judicial para esta mulher que mata aquele que não cumpriu com o seu dever. É de notar que, no Tipo A, raramente a protagonista feminina é tratada pelo honorífico “D. ou Dona”, enquanto, no Tipo B, muitas vezes, este lhe precede o nome (D. Eugénia, ou corruptelas), com a situação inversa no que diz respeito ao protagonista masculino. No entanto, não é concludente, no conjunto de todas as versões, que Moriana tenha um estatuto social mais baixo do que o do seu sedutor, embora, a sustentar a ideia de um desnível social, estão certos locais onde Moriana vai buscar o vinho, como sejam o lagar ou a taberna, aonde, fosse ela de classe alta, não seria tão natural que se deslocasse. Também a facilidade com que o cavaleiro desrespeita o 379 Cf. Costa [2005]. O “cavaleiro” é uma figura a que determinados modelos comportamentais, virtudes e valores, nomeadamente a honra, ficaram associados. A respeito da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, refere António José Saraiva a memória deixada por cavaleiros como o Cid Campeador, o conde Fernão Gonçalves e outros referidos na Crónica Geral de Espanha de 1344, como modelos de comportamento que se implantaram, fazendo menção à “penetração na vida pela literatura”, em particular da influência do romance arturiano, no episódio em que D. João, cercando Coria, deseja ter a seu lado os cavaleiros da Távola Redonda. Cf. António José Saraiva [1993], O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, 3ª ed., Lisboa. Gradiva, 1993, pp. 202-205. Para a evolução da qualidade de cavaleiro em Portugal e dos seus deveres e atribuições, cf. José Mattoso [1982], Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII, Lisboa, Guimarães & C.ª Editores, 1982. 157 A REVELAÇÃO DO SENTIDO compromisso matrimonial assim o indicia, conhecendo-se, sociologicamente, que o Poder também se exercia, nesse aspecto, pelos mais fortes sobre os mais fracos380. Quanto à rede familiar, note-se que entre mãe e filha há uma conversa inicial que revela partilharem confidências e que o pai ou outros parentes não intervêm na intriga, embora a invocação final dos respectivos familiares, por ambos os protagonistas, venha a revelar a importância da família 381 . É de notar que, ao contrários das versões portuguesas de Veneno de Moriana, existe em várias versões brasileiras, a possibilidade de parentesco entre os próprios protagonistas, como nesta que reproduzimos parcialmente e na qual Juliana e D. Jorge são primos382, razão que é invocada para que entre eles não haja “falsidade”383: “Eu lhe peço, Juliana, que não haja falsidade; Olhe que somos parentes, prima minha de minha alma”384. Silvana Em Silvana, a posição social da família não é explicitada no incipit, contrastando com a sequência narrativa inicial Delgadinha, do tipo “Um rei/ o conde de tal tinha x filhas…”; o protagonista de desejos incestuosos é muitas vezes referido, simplesmente, 380 Há versões nas quais, com todo o desplante, D. Jorge anuncia a Moriana que vai casar, explicitamente, com “a filha da rainha”. Ver, por exemplo, a VM/99 Ferré (1987) 67: 11.” É verdade, Juliana, com a filha da rainha.”. 381 Moriana refera as esperanças goradas de um casamento, por parte da família, e D. Jorge lamenta a sua, que o vai perder. 382 Lembramos o sentido íntimo que se dá às relações entre primos, um tanto pícaro no adágio português “Quanto mais prima, mais se lhe arrima”, ou mais adoçado, em quadras como esta: “Ó priminha, ó priminha, // Ó priminha da varanda! // és um relógio fechado // Onde o meu coração anda”. Cf. José da Silva Vieira [1917], Cancioneiro Minhoto, Espozende, Livraria Espozendense, 1917, p. 28. 383 Note-se que, o pedido para que “ não haja falsidade” expresso antes de beber o vinho e sem que seja justificado, implica que existe uma desconfiança por parte do homem. 384 Versões de Pernambuco e do Ceará. Cf. “Romance de Juliana e Dom Jorge”, pp. 32-58, em Guilherme Santos Neves [1983], Romanceiro Capixaba, Espírito Santo, Fundação Nacional de Arte, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1983. Maria de Fatima Batista, na sua tese de doutoramento, na distribuição em oito grupos que faz das versões brasileiras do romance, refere que o terceiro grupo “inocenta Dom Jorge, retirando a sedução e a promessa de casamento. É Juliana que está apaixonado por ele, enquanto ele não demonstra nenhum interesse por ela, a não ser a amizade de primo”. Cf. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista [1999], O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica, Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-graduação em Linguística da USP, Tomos I e II, São Paulo, 1999, p. 35. 158 A REVELAÇÃO DO SENTIDO como “o pai”. Todavia, as marcas de um estatuto social elevado estão presentes ao longo do romance e são explícitos ou procurar-se-ão em certos indícios. Quanto aos primeiros, o pai é identificado como “rei”: - 12. “Irei aonde o rei estava, pois muito bem no sabia”, S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193) - 11.“Lá pelo meio da noite o rei à porta batia”, S/7 Soromenho (1963) 55 - 9. “- Ó senhora, é el-rei, mê pai, que por sua esposa me queria.”, S/33 Fontes (1996) 120-121 - nos apartes do informante: “E nisto a mãe vestiu os fatos dela e vai c'o rei, c' o pai. Chega ao quarto do rei; e o rei diz-lhe:”, S/13 Purcell (1976b) 66-67 - em versões compósitas de Silvana e Delgadinha, nas quais, por influência deste, o estatuto real é declarado logo no início: 1.“Um rei tinha três filhas, alvas como prata fina,”, S+D/2 Braga (1869)/Braga (1982) 193-196 1. “Um rei tinha três filhas, todas três com'as flores belas;”, S+D/19 Fontes (1983a) 119-120 - em didascálias, segundo nota do editor na S+D/4 Azevedo (1880) 112-115: (”Omitimos as seguintes didascálias: entre 11 e 12 El-rei nã reconheceu la rainha e disse; entre 13 e 14 Deu-se la rainha a conhecer e respondeu; entre 15 e 16: Então, cramou elrei; entre 16 e 17 E la rainha respondeu; entre 29 e 30 E disse; depois de 31: E recolheuse a um mosteiro, onde se meteu a monge e acabou lá arrependido”). A mãe é rainha, o que se sabe das seguintes maneiras explícitas: - di-lo o pai: 6.“- Bem me pareces, Silvana, em véstias de cada dia, 7. do que tua mãe, rainha, com quanto ouro havia.” S+D/3 Braga (1869)/Braga (1982) 197-200 3.“- Melhor me pareceis, D. Silvana, com vestido de cada dia, 4. do que vossa mãe, rainha, com quanto ouro havia.” S/24 Fontes (1983a) 121 159 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 13.“ - Mal pensa a rainha de Hungria que Silvana está perdida.” 385 S+D/6 Pires (1902)/Pires (1982) 14-15 - é ela que o diz: 13. “ - Aqui nu stá i a Silvana st' à paixão da rainha.”, S+D/11 Reinas (1957) 423-425386 Outras vezes, a identificação faz-se por indícios: a) - Silvana toca guitarra/viola de ouro/de prata (o que não seria habitual em classe menos favorecida, com os metais preciosos a denotar o seu valor); b) - Silvana é nomeada com o honorífico “Dona”; c) - Silvana passeia-se “por corredores” (presume-se que os corredores onde é possível passear serão longos, o que não acontecerá em habitações modestas, onde estes serão curtos ou inexistentes); d) - o pai é tratado pela mulher pelo honorífico “D.” ou “Dom: 21.“enquanto falei contigo, ó D. Pedro de Castila,” S+D/3 Braga (1869)/Braga (1982) 197-200 17.“E q'anto t'eu queria bem, D. Pedro da Eucaristia;” S+D/18 Fontes (1983a) 118-119 16.“Pois quando estive D. Silvana de D. Pedro de Castilha”, S/25 Fontes (1983a) 125 e) - nas versões com a contaminação de Queixas de D. Urraca, pelo assunto deste387, fica implicada a condição real do pai, por vezes explícita: 18. “Deus vos salve, D. Pai rei, baixo a coroa real”, S/22 Ferré (1982) 209-210 f) - a mãe invoca implicitamente um estatuto superior: f.1) - ao jurar por sangue real388: 385 Versão classificada como Delgadinha em BRPTOM (2000), nr. 261. Versão classificada como Delgadinha em BRPTOM (2000), nr. 266. 387 Este será abordado posteriormente, mas adiantamos que se trata de um rei moribundo, que esqueceu a filha da distribuição dos bens. 388 As versões em que a mãe jura pelo sangue real (“Pelo sangue d' Aragão e da rainha da Castela”) são do mesmo concelho da Madeira, Santa Cruz, de informantes diferentes: S+D/20 Fontes (1983a) 121-123 - Versão da Achada de Cima, Gaula, recitada por Júlia de Sá Vieira, 61 anos e Virgínia de Sá Vieira, 55 anos. S/31 Xarabanda (1995) 27-28 – Versão do Pico Norte, Gaula, cantado por Maria Júlia Quental, no dia 18/03/90. 386 160 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 11. “Pelo sangue d'Aragão e da rainha da Castela,”, S/20 Ferré (1982) 210-211 15. “Pelo sangue d' Aragão e da rainha da Castela”, S/32 Xarabanda (1995) 28 f.2) - ao anunciar a nobreza dos outros filhos que teve: 18.“Foi D. João de Castelo, foi D. Pedro de Castilha,” S/14 Ferré (1982) 204 19. “Um foi Dom Pedro de Castro, outro Dom João de Castilhas”, S/11 Purcell (1976b) 39-41 13.“Um foi D. Carlos, senhor, e outro D. Pedro seria,”, S/29 Marques (1989) 388390 19.“também pariu D. Alardo, senhor da cavaleria, 20. também pariu a D. Pedro, senhor da infanteria,”, S+D/1 Garrett (1828) 107-113 11.”Sou a mãe de D. José e também de D. Maria,” 389 , S+D/30 Ana Martins/Ferré (1988) 80 Esta enunciação dos títulos dos filhos denuncia um orgulho heráldico, que pode levar à presunção de que esta mulher poderia ter uma condição social tão ou mais elevada do que a do marido, ressalvando embora a incongruência de uma “rainha” poder casar com um seu inferior, o que é de somenos importância para o tipo de comunidade que produz/transmite o romanceiro. Seria esta circunstância que lhe permitiria não temer mais represálias do que as maldições daquele, ao urdir um estratagema, que é, afinal, uma aliança com a filha contra o pai. É certo que a alusão aos filhos pode ser apenas um meio de realçar a sua condição de mãe, que, obviamente, nunca poderia ser a virgem que o marido esperava encontrar. Assim, basta-lhe citar-lhes o nome sem qualquer honorífico ou apenas o número, como nas versões seguintes, respectivamente: 16.“Tenho um filho Manuel, tenho outra qu'é Maria, 17. Tenho outra qu'é Silvania, filha a quem eu mais queria.” S+D/37 Cruz (1995) 208-209 S/32 Xarabanda (1995) 28 – Versão de Achada de Cima, Gaula, recitado por Maria Vieira Poita no dia 1/04/90. 389 Refere-se também a ela própria como “D. Maria” e a Silvana como “D. Silvana”. 161 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 10.“- Como pode ‘tar honrada quem cinco filhos teria?” S/20 Ferré (1982) 210-211 Quanto à constituição em si da família, note-se que os irmãos referidos variam em número e não têm qualquer intervenção na intriga, ao contrário dos de Delgadinha, sendo de crer que já não habitarão na casa paterna ou que Silvana sentiria não poder (ou não dever) recorrer a eles, pela própria natureza da sua possível provocação ao pai. O que ela lamenta, isso sim, é não ter irmãs a quem se confiar, numa alusão à rede de alianças que se estabelece entre membros da família: 14. s'ê tivesse outras manas, segredos lhes contaria.” , S/20 Ferré (1982) 210-211 7. S' eu tivesse outra mana segredos me encobriria.”, S/30 Xarabanda (1995) 27 O lamento de ser filha única é também feito pelo próprio pai, mas aqui a rede de alianças não seria a fraterna, mas outra, indiciando uma natureza também ela incestuosa: 8.”- Oh! maus raios partam a filha, segredo do pai descobriria, 9. s'eu tivesse outra filha, segredos m'encobriria.” 390 S/19 Ferré (1982) 210 Note-se que, no caso do pai de Delgadinha, sabe-se logo de início que, tendo várias filhas, é desta que se agrada, implicitando que qualquer uma das outras poderia ter sido escolhida para sua “namorada”. Já o pai de Silvana só a ela requesta, em certos casos, provavelmente por, dos filhos, só uma ser rapariga, segundo declaração da mãe391: 15. “Não tive senão dois filhos, Dom Pedro e a Sylvaninha!” S/1 Braga (1869)/Braga (1982) 191-193 390 Nesta versão não há a enumeração dos filhos pela mãe. Na maioria dos casos, quando os filhos são três, dois são homens e a filha é Silvana (ver, além dos exemplos dados, a S/9 Purcell (1976a) 166-167, vv.18-19; a S/12 Purcell (1976b) 57-59, vv. 15-17, a S/18 Ferré (1982) 208-209, vv. 15-17 ou a S/23 Ferré (1982) 211, vv-5-6). A mãe, na sua enumeração, refere por vezes outras filhas; ver a S+D/37 Cruz (1995) 208-209, no exemplo acima dado (16.“Tenho um filho Manuel, tenho outra qu'é Maria, // 17.Tenho outra qu'é Silvania, …”). Na S/16 Ferré (1982) 207-208 fala da descendência no feminino, mas como “reis”: “Como te posso eu trazer honra se já três filhas eu tinha? // Uma foi rei de Castela e outra foi rei de Castilha, // outra foi bela Silvana, filha tua e anja minha.” 391 162 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 19. “- Eu como hei de estar virgem se três vezes hei parido? 20. Uma do rei de Castela, outra do rei de Sevilha 21. e outra da nossa Silvana, da nossa filha mais querida.” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 15.“- Como eu hei-de estar honrada sendo três vezes parida, 16. Parida de rei Ingrama, parida de rei Ingria, 17. Parida da nossa Silvana a quem tanto eu queria.” S/7 Soromenho (1963) 55 Delgadinha Neste romance, a família é alargada, com o pai, a mãe, a filha, os irmãos e, por vezes, outros parentes. A condição social familiar é elevada e, ao contrário de Silvana, o estatuto do pai (rei ou conde), de que decorre, logicamente, o da família, sublinha-se logo na sequência inicial, se esta for narrativa. Quando não explícita, subentende-se, mesmo assim, que a família é poderosa, por determinados indícios, um dos quais é o facto de aparecerem os criados a encerrar Delgadinha e, depois, a levar-lhe água. O encerramento de Delgadinha quase sempre é numa torre/palácio e os jarros em que o pai lhe envia a água são de ouro, prata ou vidro, embora se note que a preciosidade dos materiais possa ser simbólica do valor da própria água392. A mãe e as irmãs da Delgadinha encontram-se no espaço doméstico (sala, cozinha, jardim) ocupadas em actividades que, na sua generalidade, não sugerem um trabalho servil (passear/estar recostada, encostada à varanda, a coser numa almofada, à janela, a lavar num jarro de ouro, “a andar”com bolas de ouro, a bordar em ouro e prata). Já os homens, pai e irmãos, se encontram no exterior, mas igualmente em actividades 392 Mesmo o vidro em copos ou jarros, hoje em dia banal, representaria um artigo não usado quotidianamente em meios rurais. Ressalve-se, por outro lado, o simbolismo do vidro associado à água, pela sua transparência e limpidez. 163 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “nobres” (como no jogo da bola, da barra, da espada, da “imbocada”, das canas393, a tocar na guitarra, a caçar, a estudar na livraria, ou simplesmente “assentados”), embora, por vezes, se denuncie um menor estatuto social - estão, por exemplo, numa “roçada” (corte do mato), numa “segada” (ceifa) ou a coser uma “cabeçada” (componente dos arreios do gado equino ou muar), que são trabalhos braçais que reis ou fidalgos não desempenhariam. Gerinaldo Este romance é, no conjunto do corpus, aquele cujo espaço social é bem explícito e que nunca oferece dúvidas sobre o estatuto das personagens, sendo deste que decorre a razão de ser da intriga. Tudo se passa num ambiente real e as personagens são referidas pela categoria – a Infanta, o Pajem, o Rei. A infanta, que não se ocupa em coisa nenhuma senão em reparar em Gerinaldo, estabelece logo de início entre ele e si própria uma clara marcação da diferença hierárquica, ao referir-lhe explicitamente a categoria quando o chama para dormir com ela. “Pajem”, “vassalo”, “criado” ou mesmo sendo “conde” 394, a sua condição social é entendida como inferior à dela e, nas versões, como plebeia (é filho de “moleiro”, na G/160 Fontes I (1987) 511-512, v. 27, ou de “porqueiro”, na G/40 Leite (1958) 312313, v. 29), embora noutras se declare nobre, equivalendo o seu estatuto ao da infanta (27. “Sou filho do rei de Espanha e neto do rei d’Hungria”, G/41 Leite (1958) 313-315), mas isto numa variação de sentido a que nos referiremos posteriormente. Ver-se-á, no 393 Este, que ocorre em uma versão de Mértola (“por la que vió a sus hermanos jugando un juego de canas”, D/5 Pires (1885d) XII), era jogo simulando torneios, habitual nas cavalhadas de S. João, segundo Veiga de Oliveira, que cita diploma do século XV descrevendo tal usança em Santiago do Cacém: “o peticionário … ‘chegara ao Ressio do dito logo, honde se os cavallos corem e jogam as canas’”. Cf. Ernesto Veiga de Oliveira [1984], Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984, p. 160. O jogo das canas, como próprio de cavaleiros ou nobres, é descrito em José Deleito y Piñuela [1988], …Tam ien se divierte el pue lo, Madrid, Alianza Editorial, 1988, p. 84-86. 394 “Vassalo”: 1.“- Gerinaldo, ó Gerinaldo, d'el-rei vassalo querido”, na G/9 Leite (1881) 62-64; “criado”: 1.” Gerinaldo, Gerinaldo, criado do rei mais querido”, G/27 Frias (1956) 567-568; “conde”: 1.”Gerinaldo, Gerinaldo, lindo conde meu tão querido”, G/6 Azevedo (1880) 66-68. 164 A REVELAÇÃO DO SENTIDO capítulo dedicado aos motivos (Parte II, Capítulo II), como as informações dadas por Gerinaldo ao rei, sendo conotativas das suas relações amorosas com a infanta, são igualmente denotativas das actividades próprias de um pajem ao serviço de uma casa real. Bluteau indica que o termo “pajem” designava também “o servo ou doméstico do Príncipe”; Cunha Soares, que o cita, esclarece que o serviço no Paço era “predicado especial de fidalgos”, embora tenham ocorrido diferentes formas de “filhamento” por diversos reis, ou tomada ao serviço real, de filhos de gente de linhagem e plebeus e note-se que Gerinaldo, nobre ou plebeu, foi criado pelo rei “de pequenino” (28.”- Para matar o Girinaldo... Criei-o de pequenino!”, G/90 Afonso (1985) 30-31 e 142), o que corresponde àquelas circunstâncias; diz também Cunha Soares que os moços fidalgos, a partir dos quatorze anos, “não podiam servir entre as mulheres” 395 , pelo que, embora sendo ainda novinho (1.”- Gerinaldo, Gerinaldo, Gerinaldo, meu menino;”, G/160, Fontes I (1987) 511-512), a idade do pajem já não lhe permitiria aproximar-se muito da infanta e, na verdade, é sempre ela que o chama; por isso, ele responsabilizá-la-á pelo acontecido (8.”- Mas s'ê dormi co'a bela infância, sua honra nã le devia, // 19.qu'um menino de quinze anos bem pouco ou nada entendia.”, G/73 Ferré (1982) 238-240). De qualquer forma, o estatuto do pajem é inferior ao da infanta e o desnível é tão evidente que desperta a incredulidade do rapaz à sugestão que lhe é feita (3.“- Eu, como sou seu criado, senhora, mangais comigo.”, G/47 Leite (1960) 506-507), o que pode igualmente revelar uma certa crítica (moral e social) de um homem de condição social “inferior” a uma mulher de condição social “superior”. O rei, por sua vez, desempenha cabalmente as funções que lhe competem: vela pela segurança do castelo (reino) e também da filha. Na dúvida, consulta os conselheiros, mas tem capacidade de decisão - é, indubitavelmente, o 395 Cf. Sérgio Cunha Soares [1997], “Nobreza e Arquétipo Fidalgo. A propósito de um Livro de Matrículas de Filhamentos (1641-1724)”, A Cultura da Nobreza, Revista de História das Ideias, Vol. 19, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1997, pp. 403-455. 165 A REVELAÇÃO DO SENTIDO detentor do Poder. De todos os romances do corpus, Gerinaldo é o que menos realce confere à problemática das redes familiares, embora o rei a invoque para não matar a filha ou o pajem, privilegiando a questão da hierarquia. O relacionamento entre as personagens condiciona o modo como se tratam entre si, uma vez que as formas de tratamento são actos de linguagem que indiciam actos sociais; a sociolinguística faz o estudo do uso das expressões linguísticas que denotam os diferentes graus de deferência entre interlocutores, de acordo com diversos factores, de situação, estatuto e sexo, abordando o padrão das variantes em termos de “poderautoridade vs. solidariedade-camaradagem”. O registo simétrico ou assimétrico, salvo idiosincrassias individuais, será escolhido de acordo com determinados códigos que regulam as relações de estatuto pessoais e sociais 396 . Deste modo, as formas de tratamento usadas pelas personagens dos romances entre si tornam-se, também, um dos processos de procurar a, por vezes, intricada teia de relações que os unem ou separam, sobretudo naqueles maioritariamente dialogados, nos quais não são imediatamente explícitados os laços de parentesco e os seus estratos sociais397. Encontra-se o tratamento simétrico por tu entre personagens do mesmo grupo etário e familiar (irmãos: Delgadinha; marido e mulher: Bernal Francês e Silvana) ou entre amantes (Bernal Francês) e o tratamento assimétrico (tu/vós 398 ) nos estatutos diferentes, quer familiares (pais/filhos: tanto em Silvana, Delgadinha como no Tipo A 396 Sobre níveis de deferência, registos, uso simétrico e assimétrico de níveis de fala, formas honoríficas e de delicadeza e outras questões tratadas em sociolinguística, cf. Marques [1995]. 397 Sobre a complexidade das formas de tratamento em português e evolução deste sistema, cf. Luís F. Lindley Cintra [1986], So re “Formas de Tratamento” na L ngua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1986. Embora o estudo aborde as “formas de tratamento” principalmente numa perspectiva histórica, Lindley Cintra, que aponta já um “sistema em crise, em que não é difícil descortinar os sinais de uma transformação em marcha”, refere que o sistema português “parece ligar-se intimamente, por um lado, a uma sociedade fortemente hierarquizada; …”. 398 Usamos aqui o pronome “vós” apenas para marcar o contraste com a familiaridade do “tu”, pois o tratamento de cortesia ficou, de há muito e citando Lindley Cintra, “entregue ao domínio das formas nominais e da 3ª pessoa verbal”. Cf. Cintra [1986], p. 30. 166 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de Veneno de Moriana) quer sociais (amantes: Veneno de Moriana e Gerinaldo)399 . Enquanto em Delgadinha tais usos não suscitam reparos, por tidos como correntes400, já em Bernal Francês e Veneno de Moriana surgirão algumas diferenciações. Ainda que aqui não tenha sido efectuado o estudo percentual de tais formas de tratamentos, parecenos, pela leitura das versões, ser observável a tendência para o registo simétrico (“tu”/”tu”) entre a mulher e o presumível amante, que continua quando este se revela como o marido, em Bernal Francês, e uma oscilação, com tendência para o tratamento assimétrico, em Veneno de Moriana (“tu” do cavaleiro para Moriana e “vós”, de Moriana para o cavaleiro); o cavaleiro usualmente trata Moriana deste modo, enquanto esta se lhe dirige por “D. Jorge”401 embora o tratamento que muitas vezes lhe dá, na 2ª pessoa, implicite a intimidade entre os dois: 1. “- Deus te salve, Juliana, sentada no teu estrado, 2. - Deus te salve a ti, D. Jorge, em cima do teu cavalo.” VM/1 Braga (1883) 197 Há, evidentemente, casos em que há tratamento mútuo por “vós” e alternância do tratamento por “tu” ou serem usados os honoríficos D. (D. ou Dona) mas haver o tratamento por tu. A versão a seguir, assim o demonstra – o cavaleiro usa o honorífico 399 Diz Kerbrat-Orecchini, reportando-se a Maingueneau, 1981, p. 19, que cita (“Avant toute chose le vouvoiement et le tutoiement sont des actes): “le tutoiement … connote, confirme ou institue un ‘lien’ particulier (familiarité, intimité…) entre les interactants”. Cf. Kerbrat-Orecchini [1986], p. 62. 400 Delgadinha pede água às irmãs, tratando-as às vezes por tu (“- Se tu és minha irmã, dá-me uma pinga d'água”, D/45 Leite (1960) 57-58), mas outras por vós. Na versão abaixo, é assim que trata a irmã e esta dirige-se-lhe por tu: 14. “- Deu'la salve, minha mana, Deu'le salve a minha alma! 15. Peço-le por amor de Deus que me dê um copo de água. 16. - Como t'hei-de dá'la água, ó Faustina desgraçada ? 17. A primeira que desse a água era a que o pai degolava!” D/33 Leite (1960) 45-46 Como, nesta versão, Delgadinha/Faustina é a mais velha (“O conde das três Marias, por ser o conde maor, // Tinha tres filhas solteiras, todas lindas coma o sol. // Faustina, por ser mais velha, de todas mais engraçada, …”) e havendo, em certos meios rurais, o hábito de tratar os irmãos muito mais velhos por vós, dá-se uma inversão de estatutos assumida pela jovem, quer porque queira comover a irmã, quer porque reconhece que a sua situação a inferioriza. 401 Note-se, contudo, que nas versões do Tipo B o tratamento é mais familiar “- Apeia-te”, ainda que o vocativo “ó cavaleiro” lhe indicie a categoria social. 167 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “D. Ausênia” mas trata-a por tu, e ela, que mantém a forma usual de tratamento no incipit deste tipo, na 2ª pessoa, passa depois, no terceiro verso, a dizer lhe (“para lhe dar”), que corresponde ao uso corrente de tratamento de deferência na 3ª pessoa, por vós: 1. “- Apeia-te, ó cavaleiro, vamos daí merendar. 2. - Tu que tens, ó D. Ausênia, guardado para me dar? 3. - Tenho vinho d'há sete anos guardado para lhe dar.” VM/2 Leite (1883a) VII Estas variações poderão originar interpretações paradoxais. Rodrigues Lapa observa que, em certas regiões nortenhas, o tratamento entre rapazes e raparigas mudava do tu para o vós, quando o namoro estava “pegado”, para “dar a entender aos outros que não havia entre si familiaridades comprometedoras”402. Parece-nos, pois, que, no romance, estas assimetrias subentendem simultaneamente as relações íntimas e a diferença social dos dois. Quanto a Gerinaldo, logo de início, a infanta trata o pajem por tu, acentuando implicitamente a condição subalterna do rapaz (“pajem del-rei”), enquanto Gerinaldo lhe dá o tratamento deferente de vós, a ela se dirigindo como “minha senhora” ou expressão equivalente, mesmo após a intimidade das relações403. Em raras ocasiões o não faz e, nessas, a mudança na atitude de Gerinaldo, que fora anteriormente respeitosa mas passa do vós para o tu logo que a infanta confirma a veracidade do convite404, torna-se uma implicitude subtil de que este retira à infanta o direito de se considerar 402 Cf. M. Rodrigues Lapa [1984], Estilística da Língua Portuguesa, 11ª edição, Coimbra Editora, 1984, p. 154-155. 403 Ver, como exemplo, na versão G/143 Fontes I (1987) 499-500: 16.“- Acorda, acorda, ó Gerinaldo, que meu pai já o é sabido. 17.- Que será de mim, minha senhora, de mim, que já estou perdido?” 404 Veja-se a G/150 Fontes I (1987) 504-505: 3. “- S'eu não fosse seu criado, não estava a brincar comigo. 4. - Erinaldo, Erinaldo, eu bem ao sério to digo. 5. - S'isso me dizes ao sério, diz-me à hora que hei-de vire.” 168 A REVELAÇÃO DO SENTIDO superior, como se o pajem sentisse um nivelamento que lhe permite tratá-la de forma mais ligeira. Já no diálogo final entre o rei e o pajem, a forma de tratamento é sempre assimétrica – o rei trata o pajem por tu e este ao rei por vós. 4.As relações de Poder Vimos como a questão do parentesco é complexa, dado que a família tece entre si toda uma rede de alianças, de confrontos e de influências, a que não são alheias certas condicionantes sociais. Citamos, a propósito, o que diz Ignacio Ceballos Viro: “También se establece dentro de todo grupo doméstico, como complemento de lo anterior y al margen de todas las posibles predisposiciones cooperativas, una jerarquía de poderes (que no siempre es la misma en cada una de las esferas de la vida doméstica) que ejercen su fuerza coercitivamente por los más diversos medios: peso de la tradición, violencia verbal, violencia física, restricciones a la libertad o a la independencia económica, etc. Y derivadas de esa jerarquía, son necesarias también unas lealtades de poder: el establecimiento o la conquista de aliados en el grupo doméstico puede llegar a ser una buena estrategia para hacer prevalecer la voluntad de uno sobre la de los demás.” 405 Nos romances do corpus, insinuam-se, pois, relações de poder que configuram hierarquias familiares e sociais, mas também a oposição masculino/feminino, pelo tema comum que neles se encontra - o Amor, nas suas diversas manifestações - numa bipolarização que não se exclui mutuamente, antes se completa. O poder que é exercido pelo mais forte sobre o mais fraco, cruzando o nível social e o familiar 406 , pode, contudo, inverter-se. 405 Ignacio Ceballos Viro [2009], El romancero tradicional y las relaciones de parentesco: la suegra malvada, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Filologia da Universidade Complutense de Madrid, 2009, disponível na Internet em http://eprints.ucm.es/10606/1/T31862.pdf, arquivo acedido em 28 de Março de 2011. 406 Ambos os níveis são indissociáveis, visto que a família tem uma natureza eminentemente social e a instituição do casamento, “… é um paradigma de sociedade que existe e se desenvolve no âmbito de uma sociedade maior…”. Cf. Almeida Langhans [1970], Antropologia Luso-Atlântica. Estudo das “Maneiras de iver” do Homem Português, Lisboa, A. M. Pereira, 1970, p. 49. 169 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Oposição Poder Desenlace Homem/Mulher/Hierarquia Familiar Bernal Francês – amor adúltero Do marido sobre a mulher Morte da adúltera Silvana – amor incestuoso Do pai sobre a filha Logro do pai Delgadinha – amor incestuoso + Do pai sobre a filha Morte da vítima Do homem sobre a mulher Morte do perjuro Da mulher sobre o homem Casamento perseguição Social e de género Veneno de Moriana – amor vingador Gerinaldo – amor atrevido Bernal Francês Neste romance, a oposição homem/mulher traduz-se pelo poder que o marido exerce sobre a mulher e sobre a família e que é sancionado pela sociedade. Ele tem, mesmo ausente durante longo tempo, o direito de manter a sua autoridade inalterada sobre a estrutura familiar, o que inclui a mulher, os familiares, os criados e até os vizinhos, como se comprova: 15.“- Eu não temo a teu pai que ele sogro é de mim”, BF/2 Braga (1867) 34-36 18. “nem tenho medo a teus irmãos, que cunhados são de mim,” BF/8 Pires (1885g) XXI 14.“- Eu nã tenho medo dos teus filhos, porque os teus filhos são meus;”, BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38 15.“Não tenho medo de seus criados, que eles criados são de mim.”, BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 15.“- No me temo dos vezinhos, qu’eles vezinhos são de mim 16. No me temo da familha, q’i-elas familha é de mim”. BF/51 Buescu (1961) 209 Mesmo a morte da adúltera não traz consequências para o matador, o que implica o seu Poder; ele, aliás, como já dissemos, declara explicitamente não temer a Justiça, sugerindo ter o direito de não cair sob a sua alçada: 170 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 13.“nem tenho medo à justiça, que a justiça é por mim”, BF/94 Fontes I (1987) 352-353 Veneno de Moriana O que à primeira vista ressalta, neste romance, é o poder da mulher sobre o homem, visto que é este que sofre a morte. Há, contudo, uma forte implicação de que a verdadeira oposição é devida a que o cavaleiro/D. Jorge se tenha servido da sua condição de mais forte (social e de género) para “enganar” a rapariga e à posterior quebra das promessas de casamento. Em estudo sobre uma sociedade rural alentejana nos anos sessenta, José Cutileiro anota que os homens das classes mais abastadas sempre encontraram amantes entre as mulheres das famílias pobres, iniciando-se estas relações, em certos casos, quando as raparigas eram ainda solteiras e trabalhavam para eles como criadas, situação devida, na maioria dos casos observados, à necessidade de estas colherem benefícios materiais 407 . O que interessa aqui ressaltar é a relação de poder exercida, a lembrar a conduta desses outros fidalgos do Cruzeiro, em Os Fidalgos da Casa Mourisca, que andavam “pondo em confusão as lavadeiras moças que ensaboavam nas presas, abraçando à força na estrada as raparigas” e que, nas palavras do Tomé da Póvoa, “andam por aí zunir aos ouvidos das raparigas e a fazê-las doidas”408. Se as raparigas tinham poucas probabilidades de vir a casar, caso abandonadas pelo namorado e havendo suspeita de terem mantido com este relações sexuais, tal não se aplicava aos rapazes, cujas opções eram mais alargadas409. A morte do presumível sedutor é, então, a consequência do poder que o cavaleiro havia primeiramente exercido sobre Moriana e este desenlace exprime, da parte da 407 Cf. José Cutileiro [2004], Ricos e Pobres no Alentejo (uma Sociedade Rural Portuguesa), Lisboa, Livros Horizonte, 2004, p. 125-131. 408 Cf. Júlio Dinis [1979], Os Fidalgos da Casa Mourisca, Lisboa, Círculo de Leitores, 1979, p. 135 e 141. 409 Cf. Cutileiro [2004], p. 83-87. 171 A REVELAÇÃO DO SENTIDO abandonada, uma atitude de não conformismo, pelo que o romance apresenta, em última instância, uma inversão dos termos “naturais” do poder. Silvana e Delgadinha Em ambos os romances, o poder exercido tem a ver com a hierarquia familiar e não social, pois o estatuto socioeconómico dos intervenientes não afecta a intriga propriamente dita. Verdade é que, em Delgadinha, o castigo da filha consta do encerramento numa torre ou em locais por vezes mandados fazer expressamente para o efeito pelo pai (castelo ou palácio), o que estaria somente ao alcance de alguém poderoso como um rei (“Ma nd o u faz er u m c as te lo p o sto na mara v il h a, / / para meter a Silvana dez anos e um dia.”, D/146 Fontes I (1987) 445-446, vv. 7-8 ou “Mandou fazer um palácio dos mais altos que havia; // E Faustina dentro dele sete anos e um dia”, D/36 Leite (1960) 49, vv. 6-7); porém, noutras versões, um mais modesto “quarto” (10. “Mandou-a fechar num quarto, sem comer, nem beber nada.”, D/178 Galhoz (1987) 373-374), no qual a jovem é confinada pelo pai, cumpre as mesmas funções da “torre”, o que demonstra que o poder de que é detentor no seio familiar sobreleva-se à relevância do estatuto social. Em Silvana, como adiante se verá, o pai o poder do pai é limitado, uma vez que apenas sugere o incesto e não há castigos para a filha recalcitrante ou para a sua mãe; é esta, aliás, que parece deter o Poder nesta família. Em Delgadinha, pelo contrário, o pai é o todo-poderoso chefe da família, que não só tem o direito de castigar a filha que se lhe opõe, como de escolher de entre as que tem (a negrito): 1.“O conde das três Marias, por sê'lo conde maior, 2. Ele qu'ria outras meninas, todas lindas como o sol. 3. A sua filha Faustina, por sê'la mais afidalgada, 4. Foi a que seu pai escolheu para sua namorada.” D/34 Leite (1960) 46-47 172 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O poder de dispor de todas elas torna-se também muito claro no momento em que envia a água a Delgadinha, pois a recompensa prometida ao mais célere em lhe obedecer é uma das filhas, como nos seguintes exemplos: 24. “o que lá chegar primeiro casará com filha minha!”, D/16 Landolt (1917) 83-84 12. “O primeiro que lá chegar casará com uma filha minha”, D/171 Galhoz (1987) 360 Note-se que, por vezes, o prémio oferecido é a própria Delgadinha: 27.“o primeiro que chegar Silvaninha tem ganhada,” D/18 Nunes (1928) 229-230 26.“O que cá chegar primeiro tem Silvaninha ganhada.” , D/55 Leite (1960) 76-77 Quanto à recusa da água por parte da família, o episódio pode ser analisado à luz das relações de Poder no seio da família e do tipo de adesão que cada um dos seus membros demonstra quanto à hierarquia e ao seu peso relativo nos laços familiares. A mãe acusa frequentemente a filha de a fazer “malcasada”, chegando a insultá-la: 23.“- Vai-te dai, pérola negra, pérola negra encantada 24. Há sete anos que aqui andas, fazes-me andar mal casada” D/178 Galhoz (1987) 373-374 A acusação alude implicitamente ao desinteresse conjugal do marido, o que representa uma ameaça ao seu próprio estatuto dentro da hierarquia familiar; epítetos como “perra traidora”410 e semelhantes denunciam afinal o receio de ser substituída pela filha no lugar que lhe pertence, o que fica subentendido pela presença do condicional, no exemplo abaixo, em que a mãe demonstra alguma vontade de ajudar, não fosse isso provocar, uma inversão dos respectivos papéis dentro da família: 12. “- Sim, ta dava, Delgadinha, se não me fizesses mal casada”, D/43 Leite (1960) 56 A hierarquia de poderes dentro da família está bem patente na versão abaixo, a S+D/23 Cortes-Rodrigues (1987) 346-348, na qual a irmã a quem Delgadinha pede água lamenta não lha poder dar, mas sugere que peça a quem o poderá fazer, o irmão: 410 D/132 Mourinho (1984) 154-155, v. 13. 173 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 22.“Chega-te à outra varanda onde nosso irmão está; 23. Se tu água lhe pedires, pode-te a mandar.” Este faz exactamente o mesmo e diz a Delgadinha que peça à mãe: 26.“Chega-te à outra varanda onde nossa mãe está; 27.Se tu água lhe pedires pode-te a mandar.” Esta, por sua vez, manda a filha pedir ao pai, único que tem, na verdade, o poder de a salvar: 34. “Chega-te à outra varanda onde teu pai está; 35. Se tu água lhe pedires pode-te a mandar.” O mais humilde, neste transe, procurará sempre remeter para o que o antecede na cadeia hierárquica e é assim que, noutra versão, as criadas, a quem a jovem ama pede água, sabem que esta é a última desta cadeia e não detém qualquer poder; por isso, como a lamentam, aconselham-na a dirigir-se à mãe, julgando que o “querer” desta equivale a “poder fazer”: 22.“As criadas le disseram: - Minha Silvana da minh'alma, 23. vai ter com tua mãe, qu'ela ta há-de querer dar.” S+D/21 Fontes (1983a) 123-124 Que a mãe e o resto da família temem o pai é bem certo, parecendo agir (ou melhor dizendo, não agir) em bloco: 25.“Tem-nos prometido a todos, pelas cruzes da sua espada, 26. que aquele que te der água terá a cabeça cortada!” S+D/5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V Ele, de facto, poderá matar qualquer um, por isso recusam a ajuda, mesmo que a acompanhem de expressões de simpatia por Delgadinha: 13.“- Eu a água bem ta dava, ó mana do coração, 14. mas o papá deixou dito que alguma de nós matava.” D/242 Marques (1996) 157-158 174 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A família, se habitualmente exprime o receio das represálias (serem enforcados, degolados, amaldiçoados ou ter cabeças e mãos cortadas), também não deixa de apresentar como motivo da recusa de dar água a sua convicção de que Delgadinha desobedeceu ilicitamente ao pai. A obediência, de resto, numa relação de poder, é dever dos filhos, di-lo a Bíblia: “- Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, porque isto agrada ao Senhor”,Col. 3, 20. A negação de ajuda pela família, que no romance se destinará a acentuar os padecimentos e também a integridade moral da jovem, revela não só uma certa condescendência em relação ao incesto como demonstra falta de solidariedade para com a desobediência de Delgadinha. Põe-se a questão, uma vez que a jovem em algum momento se queixa à mãe (como faz Silvana) ou refere à família a proposta de que foi alvo, de desconhecerem as intenções incestuosas do pai e não a ajudarem, levando o castigo à conta de qualquer outra razão, mesmo na sua crueldade. No entanto, eles sabem perfeitamente o que se passara, como se deduz do o teor de certas respostas ao pedido de auxílio, que implicam que a família não hesita em sacrificar um dos seus membros à omnipotência do seu chefe. O preceito, religioso e social, que impõe aos filhos o dever de obedecer aos pais, levado ao extremo, parece implicar que a protagonista de Delgadinha, em certa medida, é culpada por resistir ao pai411. Irmãos há que nem compreendem a resistência da irmã, o que, por vezes, é muito explícito: 27.“- Vai-te daí, irmã minha, cara de filha salgada, 28. Porque não fazias tu o que o nosso pai te mandava.” S+D/27 Galhoz (1987) 387-389 Uma outra irmã realça mesmo as vantagens que aquela obteria se cedesse: 49.“Porque não fazias o que teu pai te pedia, 411 O que, de alguma forma algo retorcida, explicaria o prolongamento do romance de Silvana com o castigo do encerramento. 175 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 50. Hoje serias da mais alta senhoria” S+D/28 Galhoz (1987) 390-392 Em algumas versões, Delgadinha invoca os laços familiares para pedir água aos irmãos e à mãe, fazendo-o com a proposição “Se [tu és minha irmã, meu irmão, minha mãezinha], então [dá-me uma pinga d'água]”, equivalendo a primeira parte ao sentido de é porque [tens comigo laços familiares] e a segunda a que deves [auxiliar-me]412. Irmãos e mãe, negando-lhe a água, subvertem a obrigatoriedade de prestar auxílio a um membro da família que se permite desobedecer ao seu chefe. Contudo, diferenças de opinião podem também coexistir entre irmãos. No caso da S+D/29 Galhoz (1987) 394-395, esta expressa-se segundo a idade de cada um. O mais velho, na sua condição de futuro representante da família, matá-la-ia por ter causado dor a “todos”, implicando, com este colectivo, que a família se vê como um bloco prejudicado pela desobediência da irmã: 23.“Respondeu o mais velhinho: ah quem fosse caçador, 24.Mesmo daqui te matava que encheste todos de dor. O do meio, se bem que gostasse de ajudar a irmã, acaba por não o fazer e solidariza-se implicitamente com a mãe, abandonada pelo pai: 25.“Respondeu o da metade: à mesma hora eu te ajudava, 26. Por causa tua, Silvana, está nossa mãe desgraçada.” Apenas o mais novo, talvez por a idade o aproximar da irmã, também ela “a mais nova”, demonstra liricamente, vontade de a ajudar413: 412 Ver, por exemplo, a D/45 Leite (1960) 57-58 (“v. 10: - Se tu és minha irmã, dá-me uma pinga d'água,”, v. 17:” - Se tu és meu irmão, dá-me uma pinguinha d'água.”, v. 20: “Se você é minha mãezinha, dê-me uma pinguinha d'água,”, v. 26 “- Se você é meu paizinho, dê-me uma pinga de água,”). 413 Note-se a semelhança, na dureza dos mais velhos e na compaixão demonstrada pelo irmão mais novo, com a atitude dos irmão de Aliarda (IGR 0149) ao ouvir o Conde gabar-se de ter dormido com a irmã; enquanto os mais velhos propõem matá-la, o mais novo responde que o melhor será casá-la. Damos, como exemplo, a versão 85 deste romance em RPTOM, p. 209: “Disseram uns para os outros: - Irmãos, vamos a matá-la? 176 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 27.“Respondeu o mais novinho, cheio de pena e de mágoa: 28.- Ó quem fosse passarinho que no bico ta levava”. O conjunto das versões apresenta uma diversidade de respostas da família a Delgadinha só possível de explicar pelo conflito moral entre a repugnância pelo acto incestuoso e a natural obediência ao poder paternal, que impede o auxílio à vítima. O conflito é de tal ordem que não há hipótese de ser resolvido humanamente, restando apenas a solução prodigiosa de fazer a personagem morrer para evitar que, finalmente, obedeça ao pai e cometa o incesto. O facto é que Delgadinha não morre por falta de água, pois esta é-lhe enviada; todavia, ela não pode bebê-la, pois se o fizesse seria obrigada a cumprir o compromisso que tomara de ceder ao pai em troca de poder saciar a sede, o que é o mesmo que dizer que teria de obedecer aos desejos dele. Ora isto Respondeu o mais novinho: - Irmão, vamos a casá-la? Muito ouro e muita prata temos nós para lhe dar; Co’a fama de um grande dote alguém a há-de aceitar.” Não nos parece possível estabelecer uma correlação directa de contaminação formulária (irmãos mais velhos/irmão mais novo) entre esta versão, recolhida em Vinhais, c. de Bragança e editada em 1906 por José Augusto Tavares Teixeira [1906], “Romanceiro transmontano”, Revista Lusitana, IX, 1906, pp. 277323 e a compósita de Silvana e Delgadinha do nosso corpus, recolhida em Tafe, c. de Tavira, em 1983 e editada por Vanda Anastácio em 1988: Respondeu o mais velho: 36. “- Ó minha mana Silvana, minha mana da minha alma, 37. se eu fosse caçador mesmo daqui te tirava. Respondeu o mais mocinho: 38 - Ai, quem fosse passarinho, quem no biquinho t'alevava! S+D/36 Anastácio (1988) 81-83 No entanto, a correspondência semântica existe nas duas versões, tão separadas entre si por tempo, espaço e tema, pelo que a entenderemos como um motivo (os motivos, como havemos de tornar a referir, podem viajar entre contextos diferentes) que empresta o mesmo sentido a ambas: os irmãos mais velhos sacrificam a irmã à “honra” familiar (tal como os irmãos de Claralinda a querem matar, ao saberem que o Conde Claros se anda a gabar de ter dormido com ela; cf. Conde Claros gabarola, em RCTOP, Vol. I, 5.4.2.4, pp. 337-339), enquanto o mais novo se inclina à clemência. Note-se, ainda, e porque falamos de padrões sócio-culturais, que mesmo este irmão mais novo de Aliarda, se não quer matar a irmã, apenas encontra a solução de lhe resgatar a honra por um casamento, cujo sentido último é a de a vender a quem esqueça o desaire por “muito ouro e muita prata”, ouro e prata esses que também, em certas versões destes romances de incesto, se oferece às visadas (Como em Delgadinha: 5.”queres tu, ó Baldebina, ser a minha namorada? // 6.Que eu de ouro te vestia, e de prata te calçava.”, D/14 Lima (1914) 294-295). 177 A REVELAÇÃO DO SENTIDO traduzir-se-ia numa obediência antinatural que contrariaria a obediência às leis superiores, que não o permitem. Estas leis, por sua vez, podem ser do foro religioso, e mais restritivamente, cristão, com a intervenção explícita das entidades divinas (Deus, a Virgem, os anjos) que levam a jovem para o Céu, ou mais pagão, representado este pela fonte de água clara. Uma vez que Delgadinha não bebe, no sentido prosaico, desta água, entende-se que ela tenha a mesma funcionalidade de representação de um poder superior ao humano que impede a prossecução da prometida (mais ou menos explícita) obediência ao pai. Na verdade, a tentativa de incesto é coisa do Diabo, que fica “raivoso” com a morte de Delgadinha, logrado que fica por não se ter concretizado semelhante infracção: 33. “[Mas Galdina era morta, quando água lhe chegava,] 34. la Virgem la abençoou, anjo do céu la guardava. 35. Lo diabo, de raivoso, no Inferno praguejava.” D/3 Azevedo (1880) 109-112 Nesta perspectiva, a morte será a única possibilidade que se oferece a Delgadinha para resistir ao poder do pai, enquanto em Silvana os traços incesto/poder estão dissociados, não se opondo a jovem directamente ao progenitor, pelo que não sofre o castigo do encerramento e da sede. Neste romance, aliás, o pai não adopta o tom impositivo como o faz o pai em Delgadinha, pelo que a questão da “obediência” se põe neste e não em Silvana. A rede de oposições em Silvana é mais complexa do que em Delgadinha, facto tanto mais notável por se tratar de apenas três intervenientes. Mais do que traduzir a natural protecção de uma mãe a sua filha, o romance reflecte o sentido da união de duas mulheres contra um homem (oposição de género) que tem Poder sobre ambas, frustrando-o nos seus intentos; mas essa mãe poderia ter alcançado o mesmo fim sem deixar que a relação sexual com ela própria se concretizasse, pelo que o que fica 178 A REVELAÇÃO DO SENTIDO implícito é que, permitindo (ou, dir-se-ia, incentivando) essa forma de desmascarar o marido, pode humilhá-lo e, dessa maneira, retirar-lhe autoridade. Com essa atitude, ademais, afirma os seus direitos não só sobre o marido como sobre a própria filha, que, de certo modo, foi sua rival. O poder paternal, de qualquer forma, sai, afinal, logrado nos dois romances, uma vez que ambas as filhas acabam por evitar a consumação do incesto, ainda que uma o consiga pela astúcia e a outra pela morte. Gerinaldo Os amores da infanta e do pajem vão começar por centrar o romance no poder da mulher sobre o homem, visto que é ela que o seduz414. De Gerinaldo diz Pratt Ferrer: “El romance de Gerineldo contiene una situación inicial que, aunque no está expresada explícitamente en él, representa un orden social establecido y que, por lo tanto, debe ser respetado. Existe una jerarquía que limita y determina el trato que debe existir entre una persona de sangre real y sus criados, y una orden implícita que prohíbe que la infanta tenga relaciones sexuales fuera del matrimonio. No cumplir con estas regulaciones conlleva una alteración del orden social establecido, con lo cual se crea un problema que debe ser resuelto. Por otra parte, el orden social está fatalmente en desacuerdo con la inclinación instintiva al amor. Así pues, desde el principio existe una tensión entre las prohibiciones que la sociedad impone y las fuerzas de la naturaleza, es decir, del amor. Esta tensión es esencial para el desarrollo del argumento. La ruptura de un orden, la desobediencia ante una prohibición exige un castigo, pero si esta desobediencia se debe a unas fuerzas determinadas por leyes de otra índole entonces, se crea un dilema.”415 Por nossa parte, entendemos que o facto de a sedutora ter um estatuto social mais elevado do que o do seduzido vai deslocar o núcleo de interesse que, em primeira 414 Na versão G/114 Fontes I (1987) 477-478 é muito claro que este sentido é compreendido plenamente pela informante, que assim o explica: “Ameaçava-a ela. Ela é que ameaçava o Gerinaldo. Era o criado do pai. Ela gostava dele.”. Repare-se que usa a expressão “ameaçar” por “assediar”, frisando que é “ela” [a infanta] a responsável, dizendo embora que é por gostar dele. 415 Cf. Juan José Pratt Ferrer [1988], “GERINELDO, GERINELDO”, em Revista de Folklore, nr. 93, Tomo 08b, pp. 86-98, Fundación Joaquín Díaz, 1988, http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=871, arquivo acedido na Internet em 15 de Dezembro de 2009. 179 A REVELAÇÃO DO SENTIDO instância, sustenta o romance, do campo da moralidade para o campo das hierarquias. Esta deslocação deve-se ao facto de o pai que intervém ser um rei, o que introduz relações de poder mais complexas que as decorrentes da oposição amorosa Homem/Mulher ou familiar Pai/Filha. Tal evolução temática há-de revelar-se nas considerações que o rei faz ao descobrir os dois infractores adormecidos lado a lado matar o pajem e a filha. O simples facto de, para o rei, isso constituir um dilema, prova a implicitude de que o “deveria” fazer como pai e o “poderia” fazer porque rei (13.”O rei se pós a pensar o que havia de decidir.”, G/180 Carvalho Rodrigues (1990) 203-204). Todavia, ao pajem, não o quer matar porque o criou de pequenino e o ama como a um filho (13.”Se mato a Gerineldo, criei-o desde pequenino”, G/204 Armistead/Fontes (1998) 110-111). Em relação à própria filha, porém, não invoca o amor paternal para não a matar (7.”Ou se mato a infanta fica o reinado perdido!”, G/171 Galhoz (1987) 407-408), mas declara explicitamente que o reino fica “perdido”, o que suscita algumas questões. No romance, esta filha de rei é referida como “a infanta”, mas também “princesa”: 16.”- Se te mato, ó princesa, fica-me o reino perdido;”, G/8 Leite (1881) 58-61 O facto é que se a protagonista de Gerinaldo é designada como “infanta” nos “pliegos sueltos” do século XVI, o termo coexiste com “princesa” já na versão factícia de Garrett, segundo ele composta por versões oriundas de Alentejo, Estremadura, Beira Baixa, Douro Litoral, Ribatejo, Beira Alta e Minho. 7.” - Pois quando quereis, infanta, que vá pelo prometido? […….] 30. Tira el-rei seu punhal de oiro, deixa-o entre os dois metido, 31. o cabo para a princesa, para Reginaldo o bico.” G/1 Garrett II (1851) 158-167 180 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Ora “infante” é termo que designa “em Portugal e Espanha filho de reis, porém não herdeiro do trono” 416, dizendo Bluteau que este título se dá nos reinos de Portugal e Castela aos filhos do rei, dando-se o de “príncipe” ao primogénito417. Esta designação, todavia, surge aplicada exclusivamente ao herdeiro do trono 418 , em Portugal, pela primeira vez ao infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V, quando este se torna rei, aos seis anos de idade, por morte do pai, D. Duarte, tendo-o sido até que o Africano teve sucessor, aquele que viria a ser D. João II. Até ao nascimento deste, foi sua irmã mais velha a “princesa herdeira” e as preocupações com a garantia da sucessão haveriam de, por muito tempo, pôr entraves à entrada na vida religiosa daquela que ainda hoje é conhecida por “Princesa Santa Joana”419. Por outro lado, no “pliego” de 1537, Desesperaciones de amor, o rei só pondera matar o pajem e não a filha: 1.”Levantóse Gerineldo que al rey dejara dormido: 2. fuése para la infanta donde estaba en el castillo [……………] 15.Él quisiéralo matar; mas crióle de chiquito;” 416 O Dicionário Houaiss, Tomo IV, p. 2090, na entrada respectiva, dá-o com origem no séc. XIII. Diz Paulo Merêa que D. Afonso Henriques “nos primeiros anos, e ainda depois da morte da mãe, intitulou-se apenas «infante» (infans), como filho da rainha D. Teresa, e às vezes príncipe, palavra de significado vago aplicada genericamente aos indivíduos que governavam algum território e que já fôra usada por seu pai D. Henrique.” Cf. Paulo Merêa [1926], “Quando começou D. Afonso Henriques a intitular-se Rei?”, Revista de estudos históricos, Vol. 3, Num. 1/3, 1926, pp. 62-67, disponível na Internet em http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id112id224&sum=sim, arquivo acedido em 6 de Maio de 2011. 417 Cf. Raphael Bluteau [1712-1728], Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ..., Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v., (entrada para “infante” no Tomo segundo, p. 122), disponível na Internet em http://books.google.com/books?id=4FkSAAAAIAAJ&printsec=frontcover&hl=ptPT#v=onepage&q&f=f alse, arquivo acedido em 6 de Maio de 2011. 418 É sabido que, na actual Espanha, o filho do rei Juan Carlos tomou o título de “Príncipe das Astúrias” ao ser reconhecido como herdeiro da coroa, sendo suas irmãs, ambas mais velhas, infantas de Espanha. 419 Cf. Saul António Gomes [2006], D. Afonso V, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006. 181 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O mesmo acontece na sua reprodução com variantes na Tercera parte de da Silva de vários Romances, de 1551, mas o dilema aparece no “pliego suelto” s. a., colocado por A. Durán, vagamente, entre os impressos no séc. XVI420: 29.“Mataré yo a Gerineldo al que cual hijo he querido? 30. Si you matar ela infanta mi reino tengo perdido!” 421. Torna-se evidente que a filha é a herdeira da coroa porque o rei não tem outros filhos para lhe suceder. Não deixa de ser de notar que, numa versão, na qual os laços de sangue aparentam ser a razão invocada para não a matar, o rei refira a “princesa” (22.”p'ra ir matar la princesa, meu sangue vai-me perdido;”, G/6 Azevedo (1880) 66-68), enquanto noutra, que fala explicitamente da “filha”, menciona com clareza as razões (21.”se mato minha filha, fica meu reino perdido.” G/16 Pedroso (1902) 464-465) e estas são de Estado - a morte da filha acarretará problemas sucessórios: 11.” para matar a infanta, meu reino fica perdido.”, G/205 Alves Ferreira (1999) 125-126. Assim, no romance, o termo “infanta” é facilmente intercambiável com “princesa” 422 , reforçando a ideia de que a morte da única herdeira existente (e reconhecida enquanto tal) acarrateria grande prejuízo ao reino. Não se refere, assim, ao sistema que, na lei sálica 423 , exclui as mulheres da sucessão à herança (e 420 Por se iniciar com a proposta da infanta, este “pliego” também se distingue do de 1537 , que começa com o levantar do rei: 1.”Gerineldo, Gerineldo, el mi paje más querido, 2. quisiera hablarte esta noche en este jardín sombrio” 421 Em Romancero General, I, BAE X, P. lxxiv. Cf. Catalán, Cid [1975], Vol. I, p. 25. Como dissemos, “infanta” aparece nos “pliegos” (noutros, como o da Canción nueva del Gerineldo e refundições, os amores são entre um “oficial russo” e a “sultana favorita del Gran Señor”) e em grande número de versões pan-hispânicas, embora seja substituído ou coexista, noutras, com “princesa”. Cf. Catalán, Cid [1975, 1976]*, ** e ***. 423 A lei sálica (lex Salica) é, na verdade, um conjunto das leis que governavam os francos sálios e que excluíam as mulheres da herança. Cf. a entrada “Salic”, em William Little [1969], prep. by, The Oxford Universal Dictionary Illustrated, Vol. II, London, New York, Melbourne, Toronto, Wellington, Oxford University Press, 1969, p. 1781. Sobre a questão da herança feminina, transcrevemos, do inglês: “But of Salic land no portion of the inheritance shall come to a woman: but the whole inheritance of the land shall come to the male sex”. Cf. Salic Law, em Internet Medieval Sourcebook, Online Reference Book for Medieval Studies, disponível na Internet em http://www.fordham.edu/halsall/source/salic-law.html, 422 182 A REVELAÇÃO DO SENTIDO consequentemente ao trono), mas aponta para o da primogenitura agnático-cognática, que permite às mulheres reinar, na ausência de herdeiros masculinos424, o que é evidente na versão na qual os conselheiros425 não se querem comprometer nem descontentar o rei ou a infanta, pois sabem que esta viria a governar: 29. “El-rei rei chama o seu conselho, que se quer aconselhar, 30. Mas los grandes de palácio, falavam sem desatar, 31. Nem el-rei, nem la infanta queriam descontentar, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. A lei sálica, codificada no séc. V, tendo alegadamente constituído as bases para as leis de Carlos Magno, dizia respeito à posse da terra, mas não à dos bens móveis, e foi, a partir do séc. XV, invocada por algumas monarquias hereditárias como coerciva do direito das mulheres à sucessão ao trono, tendo, por analogia, tomado o mesmo nome. 424 Na Idade Média tardia, o aumento da esperança de vida dos herdeiros veio a originar um decréscimo da necessidade de as mulheres assegurarem a continuidade das linhagens, surgindo então uma preferência pelo sistema agnático de sucessão. Cf. André Burguière [1997], dir. de, História da Família, 2. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente, Lisboa, Terramar, 1997, p. 15. O espírito das leis da sucessão seria quase sempre adaptado ao sabor dos diversos interesses políticos e a aplicação da lei sálica (ou sua interpretação) está na base de muitos conflitos europeus, como a Guerra dos Cem Anos e a Guerra da Sucessão espanhola, neste caso a contestação da subida ao trono da primogénita de Fernando VII por seu tio Carlos. Em intenção daquela que seria Isabel II, fora publicada a Pragmática Sanção, que anulava o Auto Acordado de 1713, o qual excluía a sucessão feminina ao trono e restabelecia o direito castelhano durante o reinado de Afonso X conhecido por Las Siete Partidas; segundo este, acederiam ao trono as mulheres no caso de o rei morrer sem descendentes varões. Cf. Rosa Ana Gutiérrez Lloret, Los Borbones, Isabel II (1833-1868), disponível na Internet em http://bib.cervantesvirtual.com/historia/monarquia/isabel2.shtml, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. Segundo Bernardo Vasconcelos e Sousa, “[A] adopção do sistema linhagístico, de base agnática, segundo o modelo de Georges Duby, fez integrar no meio nobiliárquico português alguns dos decisivos elementos que lhe são inerentes. Entre estes, podemos considerar a tendência para a transmissão hereditária de certos cargos políticos e administrativos de primeira grandeza, ou o surgimento de signos identitários da linhagem, como o nome de família e as armas heráldicas (que se constituem, em Portugal, a partir da segunda metade do século XII e na centúria seguinte). Mas, importa sublinhá-lo uma vez mais, nem a subalternização dos secundogénitos ou das mulheres assumiu uma expressão absoluta, nem o património material da linhagem foi transmitido hereditariamente ao primogénito varão, em exclusivo. Pelo contrário e como vimos, os filhos segundos e as filhas participaram equitativamente na partilha dos bens materiais da linhagem, já em pleno século XIV. Cf. Bernardo Vasconcelos e Sousa [2007] “Linhagem e identidade social na nobreza medieval portuguesa (séculos XIII-XIV)”, Hispania, Revista Española de Historia, 2007, vol. LXVII, núm. 227, septiembre-diciembre, págs. 881-898, disponível na Internet em hispania.revistas.csic.es/index.php/hispania/article/download/.../65, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. É de notar que só em 1777 haveria, em Portugal, uma rainha por direito de sucessão. Foi ela D. Maria I, logo à nascença nomeada “princesa da Beira” por seu pai D. José I, e não teve irmãos varões; tendo casado com seu tio D. Pedro, este apenas seria “rei consorte”. Cf. Luis de Oliveira Ramos [2007], D. Maria I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007. 425 Trata-se da G/7 Azevedo (1880) 69-71, de Câmara de Lobos, Madeira. Na G/15 Nunes (1900-1901) 183-185, de Lagos, o rei invoca o conselho (vv. 21-24), mas a versão não contempla a resposta. Numa versão brasileira de Gerinaldo, que reproduzimos após as do nosso corpus, com a identificação GRPP 364 (pp. 419-422), o conselheiros são de opinião que a infanta e o pajem devem casar-se, visto que este é de “família real” (“Mandei chamar os consilheiros // Para consilhiar // Os consilheiros me disse // Que podiam se casar // Que Reginaldo também era // De uma família real.”). Esta condição social do pajem é uma variante a que nos referiremos no Capítulo III da Parte II. Quanto à ocorrência dos “conselheiros”, é de notar que se dá em versões, muito poucas e de tão diversas geografias, que conservam o incidente da lenda renana atrás citada sobre os amores de Emma e Eginhard, também ele um “conselheiro” de Carlos Magno (cf. Wilhelm Ruland, Legends of the Rhine); a versão algarvia conserva essa circunstância (35.” - General, General, meu conselheiro atrevido,” G/15 Nunes (1900-1901) 183-185). 183 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 32. Que se el-rei então reinava, viria a filha a reinar.” G/7 Azevedo (1880) 69-71 Por esse motivo, a solução 426 de fazer casar o pajem e a infanta, que aparentemente é da ordem do poder moralizador, esconde a questão mais profunda da detenção do poder dinástico; o casamento faria ultrapassar a menos desejável questão de uma mulher reinar, pois legitimaria Gerinaldo como herdeiro 427 . Será essa razão, porventura mais forte que ter criado o pajem “de pequenino”, que levará o rei a atribuir ao futuro genro os mesmos direitos de um filho de facto, o que é patente em versões como a G/159 Fontes I (1987) 510-511: “21. Casarás com a princesa, // ficarás como sendo filho”. A possibilidade de as mulheres reinarem está, de facto, presente no romance, mas visto que “[A] elevação ao poder do genro na ausência de um filho é uma prática antiga” 428, a ordem do casamento sugere um presumível desejo do rei de ver no trono um herdeiro masculino, tanto mais que, como pajem que era, estaria preparado a vir a desempenhar funções militares de protecção ao reino. Quanto a Gerinaldo, a pronta cedência ao 426 Em análise psicocrítica de Gerinaldo, José Luís Hernandéz encontra neste final uma significação diversa da nossa. O autor sugere a existência de relações complexas (homossexual, do rei com o pajem e ciumenta e incestuosa, com a filha) e tratar-se-ia de uma oposição do Poder patriarcal com o Não-Poder dos filhos. O rei conformar-se-ia com a situação, propondo o casamento. Cf. José Luís Alonso Hernandéz [2006], An lisis psicocr tico del “Romance de erineldo”. Actas del IX Congreso de la Associación Internacional de Hispanistas (1986), http://cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/09/aih_09_1_027.pdf, arquivo acedido na Internet na Internet, em 8 de Maio de 2006. Em Gerinaldo, porém, não encontrámos sugestão de sentimentos incestuosos do rei, que, muito claramente, se preocupa com o problema da sucessão, pelo que nos parece que o tipo de envolvimentos neste romance é mais próprio das oposições temáticas que Bengt Olbek desenvolve, a partir do modelo dos papéis actanciais elaborado por Köngas Maranda, sobre as categorias das crises e conflitos que aparecem nos contos tradicionais (na vertente dos Ordinary FolkTales, designação de Stith Thompson [1987], The Types of the Folktale, A Classification and Bibliography, FF Communications No. 184, 4th printing, Helsínquia, Academia Scientiarum Fennica, 1987, p. 19-20). Estas categorias são de estatuto social (Hight/Low), de idade (Young/Old) e sexo (Male/Female). Cf. Holbekt [1990]. 427 Embora não a propósito de Gerinaldo, mas de “Sylvana”, numa versão coligida nos Açores, (“- Que mulher é esta aqui, / Que tanto está enfadada? / É vossa filha Sylvana, / Que a deixais desherdada”, no Vol. I, p. 477), Teófilo Braga cita a “lei sálica”, provando a antiguidade deste último pela “allusão ao costume bárbaro da deserdação da mulher”. Comenta, ainda, que “no romance insulano o barão moribundo deixa à filha um punhal de ouro”, acto que, segundo Teófilo, simbolizaria que a filha deveria procurar “a sua riqueza” no casamento, como nos esponsais lombardos, formalizados pela espada e guante. Embora tratando-se, na realidade, de uma contaminação de Delgadinha e Queixas de D. Urraca, não deixa de haver analogias com Gerinaldo, na ideia de que o “punhal ou espada” deixado pelo rei entre a filha e o pajem, associado ao casamento do desfecho, irá resolver problemas ligados à questão dinástica. Cf. RGP, Vol. III, p. 453. 428 Cf.André Burguière [1997], dir. de, História da Família, 2. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente, Lisboa, Terramar, 1997 p. 15. 184 A REVELAÇÃO DO SENTIDO convite da infanta, dissipados os escrúpulos iniciais, e as desculpas inconsistentes que dá ao ser descoberto, poderão indiciar uma tentativa de ascensão ao trono através da ligação com a infanta429. É deste modo que, como na versão abaixo, o pajem passa de Gerinaldo a “D. Gerinaldo” e se torna, explicitamente, “rei coroado”. 28. “Oh! Quem tivera a ventura que teve D. Gerinaldo! 29. Era filho dum porqueiro, agora é rei coroado.” G/40 Leite (1958) 312-313 De qualquer modo, a decisão final mantém o sentido do Poder que é exercido, pois o rei ordena explicitamente o casamento (sentido inverso ao de consentir) e o pajem só será herdeiro porque serve intentos políticos. 5. Os actos de transgressão 5.1. Adultério – Bernal Francês “Não cometerás adultério”, Ex. 20, 14; Dt. 5, 17 O matrimónio é um dos sacramentos da Igreja Católica, que o interpreta como uma “unidade indefectível das duas vidas”, de acordo com a Sagrada Escritura, devendo ser “exclusivo e fiel”: “Portanto, já não são dois, mas uma só carne” (Mt. 19, 6) 430. Por isso, a falta de fidelidade ao matrimónio constitui uma infracção grave, à luz das leis de Deus e dos Homens que as seguem. A sua simples suspeição poderia acarretar consequências funestas, sobretudo à mulher, como se comprova no bíblico Livro dos Números, que prescreve que a mulher suspeita de infidelidade seja levada à presença do sacerdote, a quem prestaria juramento de inocência. Este administrar-lhe-ia a água sagrada, advertindo-a de que esta a mataria, em caso de perjúrio e diz o Livro: “E 429 Exceptuando as versões em que o pajem jura não se casar com mulher com quem dormiu ou aquelas em que se queixa ao rei de ter sido assediado pela infanta. 430 Cf. Catecismo da Igreja Católica [1993], versão oficial portuguesa sob orientação de D. Albino Mamede Cleto, Coimbra, Gráfica de Coimbra, Libreria Editrice Vaticanna, 1993, Artigo 7. O Sacramento do Matrimónio, pp. 356-368. 185 A REVELAÇÃO DO SENTIDO a mulher responderá: Amén! Amén!” 431 , significando a sua plena aceitação das consequências. Se bem que o Sexto Mandamento não distinga géneros na condenação do adultério, não é raro que às mulheres se atribua a responsabilidade da infracção. Pela analogia que apresenta com a situação inicial de Bernal Francês, transcrevemos parte do que uma Adúltera diz a um Jovem, em Provérbios, com o ónus da sedução e do incitamento ao pecado a recair claramente sobre a mulher: “16. Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto. 17. Perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo… 18. Vem! Embriaguemo-nos de amor até ao amanhecer, gozemos as delícias do prazer, 19. porque o meu marido não está em casa; partiu para uma longa viagem, …”432. Também nas leis humanas, o severo castigo aplicado às mulheres que o cometem revela o próprio conceito da sua gravidade. O mesmo se aplica, implicitamente, à desculpabilização social do marido enganado que faça justiça por suas mãos, mesmo que este se salde pela morte da adúltera. No romanceiro e ao contrário do que acontece nas baladas europeias, segundo Menéndez Pidal 433 , o adultério não é usualmente tratado de forma cómica nem os maridos enganados demonstram complacência434. Os romances da tradição portuguesa, a este respeito, são, na generalidade, conformes aos da tradição espanhola, nos quais, 431 Nm. 6, 11-31. “As seduções da Adúltera”, Prov. 7; 16-20. 433 RoH I, cap. IX, p. 331. 434 Dos Romances de Mulheres Adúlteras registados em RPTOM, apenas em As bodas em Paris, com uma única versão, o marido revela alguma complacência. Em uma versão de Frei João, os versos 13 e 14, que aparentemente expressam a bonomia do marido, poderão, na realidade, ser interpretados como um sarcasmo dirigido a maridos complacentes: 432 “- Deixa-t’istar, mulher minha, na tua cama descansada Para descanso teu, ‘inda te vou barrer a casa”. Cf. J. J. Dias Marques e Maria Angélica Reis da Silva [1984-1985], Para o Romanceiro Português, Separata da Revista Lusitana, Nova Série, Nr. 5, Lisboa, 1984-1985, p. 105. Nos Romances Vulgares registados em GRPP, o marido consentidor existe no único romance de Adúlteras, Mulher Ingrata, com três versões (GRPP, pp. 987-990). 186 A REVELAÇÃO DO SENTIDO igualmente, aqueles vingam a afronta, ao contrário do que acontece em outros géneros, nos quais são objecto de escárnio435. Em Bernal Francês, a condenação ao acto de adultério é, por vezes, subentendido pelo pedido da morte como coisa merecida, feito pela adúltera: 13.“- Mata, mata, meu marido que a morte bem a mereci”, BF/101 Galhoz (1987) 290-291 Na verdade, o assumir ter cometido um delito grave está também implícito nas versões em que a mulher pede perdão ao marido, ao contrário daquelas em que o tenta ludibriar, dizendo-lhe que tudo foi um sonho ou que o ama436. No entanto, em Bernal Francês, também não deixa de haver uma condenação ao marido que deixa a mulher sozinha por muito tempo 437 , o que faz com que ela se “desinteresse” dele e não lhe deseje o regresso, tal como na canção: “Llorava la casada por su marido, y agora la pena de que es venido. Llorava la casada por su velado, y agora la pesa de que es llegado” [Correas, Vocabulario, p. 578b]438 Este sentido revela-se claramente na explicação que precede a versão BF/79 Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 138-139: “Um homem oi para o Brasil 435 A entrada 2 para os Tipos Morais, “El cornudo”, relaciona diversos modelos e antecedentes literários de maridos enganados, distinguindo os que são ridicularizados por estúpidos, patéticos ou consentidores daqueles que despertam admiração e temor por vingarem a afronta recebida. Cf. Joaquín Álvarez Barrientos, Mª José Rodríguez Sánchez de León [1997], Diccionario de Literatura Popular Española, Salamanca, Ediciones Colegio de España, 1997, pp. 335-336. Em relação aos que não retaliam, e apenas para acentuar a reprovação social que o consentidor sofre através da literatura oral, refira-se o provérbio português - “O homem que a molher não guarda, merece de trazer albarda”, citado por Carolina Michäelis de Vasconcelos [1996], A Saudade Portuguesa, Lisboa, Guimarães Editores, 1996, p. 66. Fica bem patente o sentido colectivo desta forma breve, sendo os provérbios “veículos de uma experiência e de um saber colectivos, onde se plasmam as representações simbólicas, as verdades socioculturais e as normas de conduta que alicerçam a vida da comunidade”, segundo Ana Cristina Macário Lopes [1992], “Provérbios: o ‘eterno retorno’”, em Manuel Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 269-280. 436 Ver Anexos. Grupo B. B.4. BERNAL FRANCÊS - Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação. 437 Na Parte II, Capítulo III – As intervenções na enunciação e no enunciado, veremos como a junção de A Aparição a Bernal Francês opera este sentido. 438 Nr. 549 em Margit Frenk [1990], Lírica española de tipo popular, Madrid, Catedra, 1990. 187 A REVELAÇÃO DO SENTIDO e deixou ficar a mulher na terra. Escrevia-lhe, mas não recebia resposta. É que ela tinha arranjado um amigo e por isso se desinteressara dele.” O tema é abordado frequentemente em Literatura e Gil Vicente, no Auto da Índia, representado à “muito católica Rainha D. Leonor”, fá-lo de forma bem mais jocosa do que nos romances de adultério, mas nem por isso menos elucidativa das consequências da partida dos maridos a buscar fortuna, deixando as mulheres sozinhas 439. Mais tarde, dizia D. Francisco Manuel de Melo “duas palavras a uns certos casados” que se ausentavam por longo tempo “deixando as mulheres 440 moças, e às vezes bem desamparadas de todo o resguardo que lhes é devido” . Em Delgadinha, o argumento de fazer a mãe “mal-casada”, atrás citado, é também um modo de lembrar o sacramento do Matrimónio. De facto, os laços matrimoniais parecem sobrepor-se aos maternais e a mãe, numa versão compósita de Silvana e Delgadinha (S/4), insinua lamentar ter ajudado a filha (em Silvana), o que a levou a essa condição de “mal casada”: 18.“Vai-te por aí Galdina, Galdina desgraciada, 19. por amor de ti, Galdina, sete anos de mal casada.” D/2 Azevedo (1873) 767 439 Diz à criada a Ama, cujo marido vai partir para a Índia: “estará bem graciosa quem se vê moça e fermosa esperar pola ira má. [……….] Quem há tanto d’esperar? [………] pera que é envelhecer esperando polo vento? [……..] Partem em Maio daqui quando o sangue novo atiça parece-te que é justiça?” Ao Castelhano é que a situação agrada, pois lhe dirá “que la India hizo Dios 145 // sólo por que yo con vos // pudiese pasar aquesto.” Cf. Camões [2002], Índia, Vol. II, pp. 171-186. 440 A esse propósito, conta a história de um certo Mosen Gralha, fidalgo casado de pouco que, deixando sua mulher para acompanhar Carlos V a Itália, recebeu dela o seguinte recado: “Mosen Gralha, Mosen Gralha, mon amor non manja palha”. Não entendendo estas palavras, mostrou-as ao Imperador e este tanto lhes entendeu o sentido implícito que logo mandou para casa o pouco previdente marido. Cf. D. Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados, Porto, Editorial Domingos Barreira, 1963, p. 139140. 188 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 5.2. Incesto – Silvana e Delgadinha “ Não profanes a tua filha, fazendo-a prostituir-se; para que a terra não se prostitua e não se torne incestuosa» Lev. 19, 29. “Quem planta a bananeira tem direito a comer o primeiro fruto". (dito entre certas populações ribeirinhas da Amazónia441) Os laços naturais entre pais e filhos desintegram-se quanto é cometido um incesto, razão pela qual este é uma infracção, condenada tanto pela sociedade como pelas leis divinas442 : “Desde la Antigüedad, el incesto há sido considerado un crimen de los más execrables, digno de la peores maldiciones y de los mayores castigos. Creencias y relatos documentados en muchas épocas y tradiciones muestran como a esa falta condenada en casi todas las culturas se le puede asociar muchas veces el castigo a los parientes incestuosos…” 443. O incesto é considerado um pecado cujas implicações se revelam nas falas das personagens de Silvana e de Delgadinha. Assim o entende a protagonista deste último, que invoca as leis divinas para não ceder ao pai e lembrando “Deus do Céu” e a “Virgem Maria” como entidades que não querem tal crime. De facto, estas alegações têm um tal valor normativo que o pai fica sem argumentos e só lhe resta fazer valer a sua autoridade pela força. Já Silvana, que hesita, também alega recear as “penas do Inferno”, ao que o pai ainda replica que pode haver perdão, embora se reconheça nas 441 Segundo Maria do Carmo Modesto, que nessa zona coordena acções sociais, a prática do incesto com filhas é tida como uma "tradição", apud Geraldo José Ballone, “Incesto”, PsiqWeb, disponível em http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=307, arquivo acedido em 30 de Novembro 30 de 2009. 442 No entanto, algumas passagens do Velho Testamento parecem justificar certas formas de incesto, como o das filhas de Lot, que, crendo não haver homens na região onde se haviam refugiado depois de fugirem de Sodoma e temendo não terem geração, se deitam com o pai embriagado. Em comentário a este episódio, porém, explica-se que “a causa desta tão grande perversidade moral deve-se aos nefastos exemplos e desmandos morais naquela corrompida cidade”. Cf. Bíblia Sagrada (Gn19.30-38). 443 Cf. José Manuel Pedrosa [2005], “Por qué vuelan de noche las lechuzas, por qué murió joven Roldán, por qué se llama una novela Cien años de soledad: exclusión, soledad y muerte en los relatos de incesto”, em Manuel da Costa Fontes e Joseph T. Snow, ‘Entra mayo y sale a ril’: Medieval Spanish Literary and Folklore. Studies in Memory of Harriet Golberg, Newark, Delaware, Juan de la Cuesta, 2005, pp. 259279. 189 A REVELAÇÃO DO SENTIDO suas palavras o implícito de que a grandeza do pecado é tal que só um papa o pode perdoar: 5.“- Serei uma, serei duas, serei toda a minha vida, 6. mas as penas do inferno, mê pai, quem nas passaria? 7. - Ê as passo, minha filha, a todas horas do dia. 8. Lá está o Santo Papa em Roma, perdoa o pai p'r'uma filha.” S/16 Ferré (1982) 207-208 A filha, mesmo tentada, é que tem as suas dúvidas e argumenta: 5. “O padre santo não assolve pecados de pai com filha.”, S+D/18 Fontes (1983a) 118-119 Na verdade, o fenómeno, que costuma interessar a disciplinas como a Antropologia, a Sociologia ou a Psicologia, também se manifesta na Literatura Oral e Tradicional, em grande diversidade de discursos significantes e abrangendo situações que vão do incesto consciente ao involuntário e do efectivamente cometido ao evitado por determinação de um dos intervenientes444. Nestas narrativas encontram-se pais que não hesitam em sacrificar as filhas aos seus desejos, filhas que fogem, que enganam, que resistem e famílias que, perante a situação, ajudam a vítima a escapar ou, pelo contrário, ficam indiferentes ao sofrimento, podendo mesmo, em certos casos, revelar condescendência para com o agressor. Certos comentários de irmãos chegam mesmo a acusar uma desvalorização do incesto: 23. “- Eu não te posso dar água, ó grande perra judia. 24. Porque não fizeste tu o que o nosso pai pedia?!” D/215 Cardigos/Marques (1994a) 15 444 Sobre este assunto, estabelecemos uma relação entre estes romances e outros relatos de incesto, não só na Literatura Oral e Tradicional como na comunicação social recente e debruçamo-nos sobre os mecanismos da “Memória, Tradição, Oralidade e Sabedoria”, em Ana Maria Paiva Morão, “Um discurso significante sobre o incesto na Literatura Oral e Tradicional (Silvana e Delgadinha)”, em José Pedro Serra, Helena Carvalhão Buescu, Ariadne Nunes, Rui Carlos Fonseca, Memória & Sabedoria, Centro de Estudos Clássicos, Centro de Estudos Comparatistas, Edições Húmus, 2011, pp. 471-482. 190 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Note-se que quem fala é uma irmã de Delgadinha, ela própria amante do pai, na explicação prévia da informante da respectiva versão: “Era um pai que tinha duas filhas. Já era amante duma, da mais velha, e queria ser amante da mais nova, mas ela não assinou”. Outros deste género reflectem ainda mais uma moralidade um tanto dúbia, como se ser a mãe “bem casada” e a paz da família dependessem da filha cometer incesto: 32.“Por uma ridicularia fazes a mãe mal casada”, S+D/16 Leite (1960) 86-87 Embora considerado um tabu, o incesto será encarado, naqueles casos, como um direito paterno, dando origem a ditos como o da Amazónia, que colocámos em epígrafe com o preceituado em Levítico, de modo a cotejar os sentidos contraditórios para a mesma questão. Silvana e Delgadinha reflectem sentidos diversos no modo de encarar o incesto, originando diferenças no desenvolvimento das respectivas intrigas e, consequentemente, nos desfechos. Na verdade, não chega a ser consumado, pois as duas jovens recusam-se a cometê-lo, embora, como já se viu, encarando a questão com atitudes diferentes. No caso de Silvana, o incesto parece ser visto com alguma ligeireza, pois a filha, parece algo tentada com a proposta, deixando o pai pensar que lhe vai ceder e só depois se queixando à mãe; em Delgadinha, a filha nega de imediato. Por isso, não há em Silvana vislumbre de violência física sobre a filha e a sanção exerce-se sobre o pai, traduzindose pela humilhação que sofre frente à mulher e à filha ao ver-se descoberto e logrado, enquanto em Delgadinha, dá-se o cruel castigo do encerramento e da privação de água e o resultado é trágico. Neste caso, a apreciação social e moral reside na própria morte da jovem, pelo implícito de ser preferível morrer a cometer incesto, o que se comprova pelo facto de o romance não ter outro desfecho, qualquer que seja a posição final de Delgadinha, ceder ou não. A morte pode ser encarada como uma consequência lógica da resistência dela (não recebe água porque não cede, logo morre), ou, pelo contrário, a sua 191 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “salvação”, já que a jovem, como acontece em muitas versões, se decide a ceder ao pai, embora se trate de uma salvação moral. A presença junto da jovem, em certas versões, de anjos, santos ou da Virgem, que são entidades cristãs, salva-a, pois, do incesto mas não de morrer, nunca havendo uma intervenção “divina” que produza o milagre de salvar a vida da vítima. De facto, a água que tais seres lhe trazem terá o sentido metafórico cristão da água da vida eterna, o mesmo que é desempenhado pela “fonte sagrada” (29.“Encontraram-na morta ao pé duma fonte sagrada”, D/44 Leite (1960) 56-57) ou do mais prosaico “tanque de água clara” (33.“À cabeceira ela tinha um tanque de água clara, D/45 Leite (1960) 57-58) de outras versões, desprovidos estes elementos do sentido cristão mas com a mesma função de sacralidade e purificação 445 . Segundo Rina Benmayor, a morte por “intervenção divina” é própria da tradição peninsular e americana, mas não da sefardí oriental, na qual a filha morre de sede sem nunca se comprometer em ceder ao pai446. Se bem que a “presença de seres divinos” junto da jovem já morta seja uma representação da visão cristã, a moral judaica coincide com esta no factor “evitar o incesto”. Acontece até que uma Delgadinha “sefardi” de Tetuan possa invocar Nossa Senhora na sua repulsa ao convite do pai, ainda que, no final da mesma versão, tal entidade cristã não se encontre junto da jovem morta: “- No lo permita Dios Padre ni la Virgen Soberana, // que en vida de la mi madre sea tu serica mala”. A versão, 445 Em estudo sobre a oração dos quatro “pilares”, “esquinas” ou “cantos”, José Manuel Pedrosa menciona o grupo tipológico que refere um número variável de anjos que guardam a cama de quem se vai deitar, e também diversos ritos de protecção dos recintos sagrados, da casa e da cama e de exorcização dos demónios ou espíritos, entre os quais a aspersão com água. Cf. José Manuel Pedrosa [1995], Las dos sirenas y otros estúdios de literatura tradicional, Madrid, Siglo XXi de España Editores, 1995, pp. 187220. Destas orações, exemplificamos com as dos “Anjos Guardiões” (ex: 051: “Nesta cama me deito, // nesta cama me deitei // e sete anjos encontrei: // quatro aos pés // e três á cabeceira, // e Nossa Senhora na dianteira. // E Ela me disse // que dormisse descansada, // pois estava toda a noite // na minha guarda”, pp. 58-60) e dos “Quatro cantos” (ex: 075: “Esta casa tem quatro cantos, // quatro Anjos guardem nela, // São Marcos, São Lucas, São Mateus // e o Senhor meu Deus”, p. 68) em Orações da Noite, em Idália Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz, Isabel Cardigos [2008], Orações. Património Oral do Concelho de Loulé, Vol. III, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2008. 446 Cf. Rina Benmayor [1979], ed. crít., Romances Judeo-españoles de Oriente, Nueva Recollección, Cátedra Seminario Menéndez Pidal, Editorial Gredos, 1979, pp. 139-146. 192 A REVELAÇÃO DO SENTIDO logo após o pai ordenar o envio da água, finaliza com o verso: “… Ellos en estas palabras, Delgadina el alma entregara” 447 . A proibição absoluta das relações sexuais incestuosas é também, segundo Anahory-Librowicz, um princípio ético dos judeus, que todavia faz notar que o incesto pai-filha não parece suscitar a indignação do narrador de Delgadina (não o narrador individual ou informante448), o que confirma a sua convicção, que partilhamos, de que “el cantor de romances actua, en la mayoria de los casos, como transmisor de una materia poética de la cual se distancia”449. O tabu, de resto, tem também as suas graduações de apreciação e encontra-se, no nosso corpus, uma versão que reza assim: 6.“- Lá tá Santo Pap' em Roma que tudo dispensaria. 7. - Dispensa irmão com irmão não dispensa pai com filha.” D/238 Xarabanda (1995) 35-36 O sentido é explícito – o incesto é perdoável entre irmãos, talvez por se acreditar poder ser consensual450, mas não entre pai e filha. Note-se, porém, que neste romance, a filha, que invoca as leis divinas, mas também a felicidade conjugal da mãe para não ceder ao pai, sofre maus tratos da família (insultos verbais e negação de auxílio) precisamente por se ter negado, o que leva a crer que todos teriam preferido que o incesto fosse perpetrado, o que deixa em aberto a questão – porquê morre a vítima, mas não o perseguidor, ou seja, o castigo do pecado parece exercer-se sobre a vítima. Em termos de apreciação de um código moral, dir-se-ia que se trata de uma visão realista – 447 Versão de Alicia Bendayan (Tetuan) - Ashqelon, 13.2.1984 - NSA Yc 2255/36, em Susana WeichShahak, http//: parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, arquivo acedido na Internet em 22 de Novembro de 2006. 448 Por isso, a apreciação ditada pela pela moralidade judaico-cristã quanto à atitude de Delgadinha será feita sobretudo como post-scriptum. Refira-se que, ao utilizar o termo “judaico-cristão”, acentuamos o conceito de moralidade e não de religião. Cf. Anahory-Librowicz [2005]. 449 Cf. Anahory-Librowicz [2005]. 450 Em Tamar, o incesto entre irmãos não é consensual, mas uma violação, na qual se dá como que uma transposição do Poder paternal, visto que o pai associa-se ao filho na transgressão, a que a filha está sujeita. Amon finge-se doente e diz ao pai que só se curará com algo cozinhado pelas mãos de Tamar; o pai envia esta ao quarto do irmão, que a viola. O acordo do pai às recomendações (ela deve ir só: “Comera eu um guisado, se Tomásia o gisara, // se Tomásia o trouxera, venha só, sem camarada” – cf. RPTOM, p. 410) revela o seu tácito sancionamento às intenções do filho. 193 A REVELAÇÃO DO SENTIDO os culpados nem sempre são castigados. A questão é complexa, pois além de incestuoso, dir-se-ia que tal pai é pedófilo, hipótese que se põe até muito explicitamente: 1. “Delgada, ó Delgadinha, ó Delgadinha, ó Delgada; 2. ainda só tinha doze i-anos, já seu pai a namorava….” D/153 Fontes I (1987) 452-453 Noutras versões, sendo, muitas vezes, a mais nova das filhas, a sugestão põe-se implicitamente. Na D/77 Fontes (1979) 142-143, estando já Delgadinha presa na torre, avista o pai a “brincar com uma donzela” (23.“A Silvana subiu, subiu ao alto daquela janela, // 24. e ela avistou o seu pai brincando com urna donzela”) sendo o “brincar” um eufemismo das relações sexuais. A ideia de que pai parece tentar com outra das filhas o que não conseguiu com Delgadinha é subtilmente insinuada: 21.“Subiu-se a outra janela que a mesma torre tinha; 22. encontrou lá o seu pai com a mana mais novinha.” D/15 Lima (1916) 43-44 19.“Chegou-se a outra janela que essa mesma torre tinha 20. Avistou o seu pai com a filha mais novinha”. D/40 Leite (1960) 53 O pai incestuoso de Delgadinha é um mau carácter, que desagrega a ordem familiar; por isso a jovem, ao recusar-se, dirá que ser filha daquele homem já é suficientemente mau, quanto mais ceder-lhe: 5.“- Valha-me Deus e os céus e a hóstia consagrada, 6. Não basta ser sua filha senão sua namorada!” D/237 Xarabanda (1995) 34-35 Deveria, pois, ser punido, em termos de intriga, mas, na verdade, não o é; o prolongamento é o único espaço ao qual se confia a sua penalização e, ainda assim, apenas às entidades divinas451. A explicação só poderá encontrar-se na “neutralidade” 451 Em muitas versões, diz-se que o pai vai para o Inferno (e Delgadinha para o Céu). 194 A REVELAÇÃO DO SENTIDO do género, embora esta se dissipe na natural tendência de apreciação, positiva ou negativa, pelos produtransmissores. Quanto a Silvana, já o referimos, encontra o seu castigo na humilhação sofrida ao ser desmascarado pela mulher; a punição, embora do foro moral, dá-se dentro da narrativa do romance, que dispensa aditamentos do foro religioso do tipo dos de Delgadinha. 5.3. Actos contra a honra A honra, segundo o Dicionário Houaiss, e para apenas generalizar, é o “princípio ético que leva alguém a ter uma conduta proba, virtuosa, corajosa, e que lhe permite gozar de um bom conceito junto à sociedade”452. O que é a honra terá diversas interpretações nas diferentes civilizações, mas pode afirmar-se que o conceito está usualmente ligado a sentimentos de vergonha pela sua perda, pelo que as infracções às normas ou uma conduta considerada desonrosa levarão a actos, pessoais ou colectivos, conducentes ao seu desagravo453. Nas acções que são praticadas nos romances do nosso corpus, encontram-se implícitos diversos aspectos de “honra”, quer, em termos mais abrangentes, ligados à esfera social, quer, em termos mais particulares, à esfera familiar. A honra pessoal parece, nestes casos, subordinar-se às anteriores, razão pela qual a onomástica, que Clara Pimentel traça a tipologia das imagens do Céu e do Inferno na poesia tradicional, o primeiro “um lugar aberto, onde correm rios frescos e límpidos, os próprios anjos embelezam os eleitos, não existe o tormento da sede ou da fome, o ambiente é requintado, há luz, e a própria Virgem Santa dispensa os seus carinhos de mãe” enquanto no Inferno os espaços são fechados e de dor. A autora, que se serve de Delgadinha (e também de A Aparição) para exemplificar o paralelo que estabelece entre os lugares do Outro Mundo e os meios ambientes “reais”, enquadra o Céu na categoria dos ecossistemas perfeitamente equilibrados e o Inferno no dos grupos que impossibilitam a criação da vida. Cf. Clara Pimentel [2004], “Romanceiro: Qualidade de Vida, Qualidade de Sobrevida”, em Ana Paula Guimarães et alii., organização de, Falas da Terra. Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa, Lisboa, Colibri, 2004, pp. 129-136. 452 Dicionário Houaiss [2003], Tomo IV, p. 2009. 453 Cf. a este propósito, por exemplo, J. G. Peristiany [1988], Honra e Vergonha. Valores das Sociedades Mediterrânicas, 2ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. 195 A REVELAÇÃO DO SENTIDO serve para identificar concretamente os indivíduos, pode sofrer variação por substituição sem que o sentido geral perca eficácia. - A honra conjugal - Bernal Francês Já atrás referimos a questão do adultério face às leis divinas e sociais. O marido, enquanto tipo social, faz residir a sua honra no comportamento da mulher, pelo que, ao ser enganado por esta, parece não ser alternativa senão matá-la, dado cujo sentido sustenta o desfecho de Bernal Francês. No romance, a própria mulher o reconhece, mas há uma certa diferença entre a declaração da mulher que diz merecer a morte porque foi adúltera (a) e que, portanto, aponta mais directamente para uma infracção social/moral e as versões (b) e (c): (a) :13.“- Mata, mata, meu marido que a morte bem a mereci”, BF/101 Galhoz (1987) 290-291 (b):18.“- Mata-me, mata-me, marido, que eu a morte te mer’ci”, BF/34 Leite (1958) 401402 (c) :19.“- Morte! Morte! Meu marido, pois que tanto ta mereci”, BF/37 Leite (1958) 406407 A expressão usada, em (b) e (c), é “te” ou “ta [mereci]”, significando “merecida vinda de ti” é, assim, indicadora do direito que a mulher atribui ao marido, mais explicitamente, de desagravar a honra conjugal, ou seja, é a condição de marido que lhe dá o direito de a matar. Por outro lado, como já referido, a morte da adúltera dá-se por decapitação, processo naturalmente sanguinário, o que vai ao encontro da expressão “lavar a honra com sangue”. Este modo de execução implica, por sua vez, que o conceito de “honra” seja aplicado ao ofendido, mas também à ofensora: “… o direito a ser executado dessa maneira [por decapitação], embora a execução em si seja uma desonra, reconhece ainda a honrosa posição social da vítima, derivada do seu nascimento, que a conduta desonrosa pela qual foi condenada não chega a obliterar 196 A REVELAÇÃO DO SENTIDO completamente por se tratar de apanágio não só do indivíduo mas da linhagem. A decapitação reconhecia a existência de qualquer coisa que ainda valia a pena cortar”454. Ora nem sempre é explícito, no romance, se o marido o faz pessoalmente ou se encarrega alguém de o fazer, nem se a mata em privado ou se, pelo contrário, o facto de adiar a execução para “de manhã” implique a vontade de que tal acto seja testemunhado, mais explícitas no segundo e terceiro exemplos: 20.“Deixa tu vir a manhã que eu te darei de vestir, 21. te darei saia de gala, roupinha de cramesi; 22. gargantilha colorada pois que tu o queres assi.” BF/2 Braga (1867) 34-36 24.“- Cal'-te daí, falsa traidora, que isso não vem por aí. 25. vai chamar tuas vizinhas, que tomem exemplo de ti, 26. que não façam aos seus maridos o que me fizeste a mim.” BF/10 Braga (1887-1889) 108-110 23.“Deixa tu vir a manhã, que negra será p'ra ti! 24. Vou chamar minhas cunhadas, que se despeçam de ti, 25. que não façam a seus maridos o que me fizeste a mim.” BF/22 Mendonça (1911) 12-14 O castigo pode, também, ser endossado a poderes mais altos, que chancelam este “lavar da honra” conjugal, de que pai e irmãos serão testemunhas: 1. “Mata-te Jesus do Céu que tem poderes em ti, 2. mas deixa-m'amanhecer, vou tratar de te prevenir. 3. Vou mandar chamar o teu pai para se vir 'espedir 4. e mandar chamar os teus irmãos pa' t'ajudar a carpir” BF/66 Ferré (1982) 164 Há casos em que um marido mais pusilânime endossa a responsabilidade ao sogro, sobre quem faz recair, portanto, o ónus da honra da filha: 454 Cf. Julian Pitt-Rivers [1988], “Honra e posição social”, em J. G. Peristiany, coord. de, Honra e Vergonha. Valores das sociedades mediterrânicas, 2ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 11-60. 197 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 16. “- Ah! Eu matar não te mato, mate-te quem te criou, 17. levo-te a casa de teu pai p’ra ver que filha me deu.” BF/25 Martins (1928)/Martins (1987) 197-198 A resposta dela indicia uma consciência consentânea com um conceito de honra mais convencional: 19.“- Que culpa terá meu pai os males que a filha causar ? 20. Enquanto fui de meu pai, muito bem me regulou 21. dês que vim p’rà tua mão, o mimo me derramou.” BF/17 Tavares (1906) 298 18.“- Olha, em casa de meu pai boa filha era eu, 19. mas nas tuas mãos, cavaleiro, o mimo me derramou…” BF/25 Martins (1928)/Martins (1987) 197-198 A mulher assume a culpa do que fez e, implicitamente, parece preferir a morte à vergonha de ser devolvida ao pai, mas, sobretudo, assaca ao marido as culpas do adultério, pelo bom tratamento dele recebido, dizendo-lhe que, afinal, a culpa até foi dele, o que implica que a aplicação do castigo a ele pertencerá; por outro lado, a resposta pressupõe que uma boa conduta, de filha ou esposa, apenas adviria do controlo masculino (do pai/do marido). - A honra perdida por sedução e abandono - Veneno de Moriana “Rapariga enganada Perde a honra, ganha fama; Quantas vezes ela chora Aos pés de quem a engana”455 Em Veneno de Moriana, a razão que leva a rapariga a matar o homem pode ser consequência de ter “perdido a honra”, tendo sido abandonada pelo homem que a seduziu e quebrou a promessa matrimonial, como é explícito na versão abaixo: 455 J. Leite de Vasconcellos [1975], Cancioneiro Popular Português, I, Coimbra, Acta Universitatis Coninbrigensis, 1975, p. 330. 198 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 10.”- Pa que sabas cabalheiro, lo que teníês purmetido: 11. Palabra de casamento muito bien ancubrido.” VM/179 Mourinho (1987) 23 Embora ela tenha infringido o pressuposto social da proibição do sexo antematrimonial456, haverá, nesta situação, justificações de outra ordem. Oliveira Marques refere-se ao acordo simples entre duas partes, a furto ou na pública forma, com valor de casamento mas sem o ritual religioso, ainda corrente no século XV457. A primeira forma era adoptada pelos amores clandestinos, mas, não havendo testemunhas, facilmente uma das partes podia furtar-se às obrigações do casamento. Também Maria Benedita Araújo diz ter o povo guardado “vestígios dessas práticas antigas”, “ritos de prometimento” de casamento futuro feitos em segredo pelos noivos, em especial nas regiões entre Douro e Minho458. Mesmo não se tratando de um destes casos, o abandono da rapariga tornar-seia um estigma que impossibilitaria um seu futuro casamento. A esse propósito, diz José Cutileiro: “Às raparigas abandonadas pelos namorados e das quais conste terem tido relações sexuais com eles ou ligações amorosas com outros homens está vedado o acesso a um casamento digno. Casos houve de tentativas de suicídio” 459 . Moriana não se suicida, mas envenena o traidor oferecendo-lhe um copo de vinho e a expressão “vinho de há sete anos”460 revela a extensão temporal das relações entre os dois, o que pode indiciar a possibilidade de ter havido o uso antigo dos casamentos a furto e que provoca a indeterminação do estatuto de Moriana: 456 O motivo da rapariga seduzida e abandonada é, segundo Elisabeth Frenzel, “una consequência de la monogamia Cristiana, que se basa esencialmente en San Pablo…”. A autora esclarece que só no Século de Ouro (em Espanha) o motivo adquiriu importância literária, pois, “en la Literatura de la Edad Media y comienzos de la moderna desempeñaba el motivo todavia un gran papel. Además las diferencias de clase, muy acusadas, contribuían a que la seducción de una muchacha que no era de ‘case’ no tiviera importância literária….”. Cf. Elisabeth Frenzel [1980], Diccionario de Motivos de la Literatura Universal, Madrid, Gredos, 1980. (Motivo Seductor y seducida, pp. 328-337). 457 Cf. Marques [1971], pp. 105-129 (O Afecto). 458 Cf. Maria Benedita Araújo [1997], Superstições Populares Portuguesas, Lisboa, Colibri, 1997, pp. 3334. 459 Cf. Cutileiro [2004], p. 86. 460 Trataremos a questão do “vinho” na Parte II. Capítulo II. Os Motivos na Revelação do Sentido. 199 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 15.“- Que me dirá minha mãe, ao ver-me desta maneira, 16. Sua filha Laureana nem casada, nem solteira.” VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263 Até mesmo o convite para ser madrinha, presente em algumas versões, além de sentido como afrontoso para a rapariga traída 461 , limitaria as suas hipóteses de ela própria vir a casar-se. Com efeito, para que nada obstasse a um futuro matrimónio, as raparigas solteiras deveriam observar certos preceitos, como o de não amadrinhar nenhum casamento 462 . O convite não só impediria Moriana de vir a contrair matrimónio, como também anularia qualquer esperança que esta tivesse de vir a casar com o próprio sedutor (isto, obviamente, se a noiva viesse a falecer), dado que o compadrio era impeditivo de matrimónio. Embora noutra situação, veja-se o caso de Inês de Castro, a quem D. Constança terá convidado para madrinha de seu filho 463, na esperança de impedir os amores daquela com seu marido D. Pedro464. 461 Encontram-se no Cancioneiro certas quadras que, pelo seu sentido implícito, se aproximam da mesma situação – um homem convida a “namorada” para ser madrinha do seu próprio casamento. Vejam-se as seguintes, de Tolosa, concelho de Nisa, em Vasconcellos [1975], p. 244: “Não quero que vás à monda, // Não quero que vás sozinha, // No dia do casamento // Não vou ser tua madrinha. Não vou ser tua madrinha, // Não te vou acompanhar, // Não quero que vás à monda // Não quero que vás mondar”. […] Sendo estas quadras de estrutura dialógica, entendemos que os primeiros versos da primeira serão uma exigência de um namorado cioso, que não quer que a amada vá à monda, onde certamente se encontraria com outros homens. Nos dois versos seguintes (e, inversamente, na segunda quadra, pois elas são de tipo paralelístico), o sujeito poético, que é feminino, afirma que não acompanhará o interlocutor no dia do casamento nem será sua madrinha, resposta que parece um despropósito, não fosse a pressuposição de ele a ter convidado. Ora, se um amante com direitos a fazer tal pedido vai casar (obviamente não com ela, que, nesse caso, seria a noiva e não a madrinha), o convite torna-se uma afronta para a rapariga convidada. 462 Nas superstições relativas ao casamento, informa José Maria Adrião que “se não casa aquella quer fôr madrinha de um casamento”. Cf. José Maria Adrião [1900-1901], “Tradições Populares colhidas no Concelho do Cadaval”, Revista Lusitana, Vol. VI, Lisboa, Antiga Casa Bertrand, 1900-1901, pp. 103. A mesma informação é citada por Benedita Araújo [1997], p. 35, e aparece, quase ipsis verbis, no conjunto de conhecimentos fornecidos a Alberto S. Pimenta, no Algarve, pelo curandeiro Eugénio Cardoso e relacionados no capítulo “Coisas que Atraem a Sorte ou a Má Sorte”, na p. 12-15, relativo a Noivados e Casamentos. Cf. Eugénio Cardoso [1999], Panaceias para Livrar de Angaranhos e Más-Sortes. Amuletos, Nóminas e Talismâs. Rezas e Defumadoiros. Prognósticos e Adivinhações, 2ª Edição, Portimão, Edições Contramargem, 1999. 463 A respeito dos impedimentos canónicos que impediriam o casamento de D. Pedro e Inês de Castro, diz Fernão Lopes: ”Mas venhamos a um grande impedimento além dos outros com que o Papa não dispensa, por cousa que avir podesse, por o qual ella não podia ser sua mulher per nenhuma guisa, e este é: Que sendo el-rei D. Pedro infante, casado com D. Constança, houveram ambos um filho que chamaram D. 200 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A honra de uma rapariga deveria ser paga. As populações do Antigo Regime recorriam aos tribunais diocesanos para resolverem problemas decorrentes da falta de cumprimento de promessas matrimoniais, o que prova o papel vinculatório que para elas tinham os “esponsais”, prática social habitual de convivência matrimonial sem consagração sacramental. Esta, aliás, era um obstáculo ao empenho da Igreja em ser a única instância legitimadora do matrimónio 465 , o que fazia daquela prática, em si, também uma infracção. Em todo o caso, visto que o casamento do cavaleiro com outra mulher impedia o desagravo social, Moriana faz justiça por suas mãos e mata o cavaleiro. Todavia o romance não refere sanções para ela, como seria de esperar se o objectivo do género fosse moralizador e o acto não tem consequências punitivas na intriga, para ela. O que se verifica, nas versões de Veneno de Moriana, são pontos de vista sociais que se revelam nas apreciações às situações narradas e aos actos das personagens e que se manifestarão de diversos modos; uns justificam o acto de Moriana, o que implica uma certa complacência social face à infracção cometida pela mulher traída e ultrajada, outros imputam ao cavaleiro o dever de reparar o mal feito. Nestes casos, estão em causa conceitos de honra, que se sobrepõem à Justiça, enquanto outros, que prolongam a intriga com incidentes que no romance não existem, como a afirmação de que Luiz, e quando ordenaram de o baptisar em esta cidade, foi esta D. Ignez madrinha d’este moço, e comadre d’el-rei D. Pedro, salvando-a depois a infante D. Constança por comadre, e humilhando-se a ella como é de costume. Ora vede como podia el-rei ser lidimo marido de sua comadre, madrinha de seu filho; certamente não podia ser”. Segundo o cronista, D. Pedro, “tendo vontade de dormir com ella”, recomenda a D Inês que, ao levar o menino à igreja, “não dissesse as palavras que os padrinhos costumam a responder em nome do afilhado”; como ela assim teria feito, não era, portanto, “sua comadre, que podia casar com elle sem peccado”. Cf. pp. 193-194 em Fernão Lopes [1897-1898], Chronica de El-Rei D. João I, Vol. III, Bibliotheca dos Clássicos Portuguezes, Lisboa, Escriptorio, 1897-1898. 464 Diz Cristina Pimenta que D. Constança “terá favorecido a escolha de D. Inês para madrinha do seu primeiro filho, D. Luís, numa tentativa de estreitar os laços familiares entre eles, que o baptismo favorecia”. Cf. Cristina Pimenta [2005], D. Pedro I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, p. 82. Cf. também, s.a., D. Constança Manuel, em Infopédia [Em linha], Porto: Porto Editora, 2003-2010, Disponível na Internet, em www: <URL: http://www.infopedia.pt/$d.-constanca-manuel>, arquivo acedido em 15 de Junho de 2010. 465 Cf. Palomo [2006], pp. 114-125. 201 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Moriana será presa, fazendo, então, prevalecer o sentido inverso – a consequência lógica seria o castigo daqule “mulher matadora”. - A honra e as leis da cavalaria - Veneno de Moriana “cavaleiro luxurioso e cavalaria são contrários” 466 Há implícito, em Veneno de Moriana, um outro acto de infracção à ordem social por parte do homem, pois se este é “cavaleiro” deveria acatar e seguir as leis de cavalaria, que aliam os deveres cívicos aos morais. Com efeito, pertencem àquele as virtudes da “justiça, sabedoria, caridade, lealdade, verdade, humildade, fortaleza, esperança, esperteza” 467 , devendo também usar da “temperança”, de que nenhuma das quais este cavaleiro parece ser dotado. Nem foi leal às promessas, nem caridoso no convite que faz à rapariga para ser madrinha no casamento com outra, nem tão-pouco muito esperto na aceitação de um vinho “guardado há sete anos” e que bebe rapidamente, o que ajuíza pouco da sua temperança. Por vezes, Moriana chega a dizer-lhe antecipadamente o que deitou no vinho468 sem que ele perceba. Veja-se esta versão: 2.“- O que é que tens, ó D. Helena, que me tens p'ra me dare? 3. - Tenho trigo e tenho vinho e tenho resalgare.” VM/144 Fontes I (1987) 383 Esta pouca “esperteza” é bem explicitada pela informante da versão VM/161 Fontes I (1987) 393-394, que comenta: “Ele tam ém oi urro”. Em algumas versões, dá-se uma variação por substituição do lexema “cavaleiro” por “cavalheiro” (ex: 1.“- Apeia-t'ó cavalheiro, bamos aqui a merendar.” VM/3 Leite (1883b) XIV; 1.“- Apeia-te ó cavalheiro, que haveis de merendar!”, VM/4 Tavares (1906) 313314), mas ambos os termos são equivalentes no sentido, segundo entrada no Dicionário 466 Cf. Ricardo da Costa [2005], tradução de, Raimundo Lúlio. O Livro da Ordem de Cavalaria (12791283), disponível em www.ricardocosta.com/textos/livrocav.htm, arquivo acedido na Internet em 15 de Outubro de 2005. 467 Virtudes essas relacionadas no Livro da Ordem de Cavalaria. Cf. nota anterior. 468 Voltaremos a esta questão na Parte II, no Capítulo II, dedicado aos motivos. 202 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Houaiss469 que define “cavalheiro” como “s.m. 1 ant. homem da nobreza; cavaleiro” mas também qualifica “… aquele que possui bons sentimentos; gentil, nobre, digno ”, qualidades que estão conotadas com a honra. Não é, pois, honrado este homem, que infringe todo um código de conduta, implícita na sua condição de cavaleiro ou cavalheiro, pelo que a morte perpetrada pela rapariga que se sente enganada será sentida como um desagravo e não passível de castigo legal, mas, quando muito, de reprovação moral e esta apenas em Post-scriptum. - A honra e a virgindade - Silvana e Delgadinha Ainda que o incesto seja o tema motivador da intriga de ambos os romances, aquilo que despoleta o seu desenvolvimento é, em Delgadinha, sobretudo a resistência da filha enquanto, em Silvana, o interesse na narrativa reside na astúcia que o evita. Em termos de padrões culturais, a honra de uma donzela reside na sua virgindade e ambas as jovens, Silvana e Delgadinha, a defendem. Pese embora a diferença de como o fazem, ambas cumprem o seu papel de donzelas, consequentemente “honradas”. Por isso, em Delgadinha, a mãe, quando demonstra alguma simpatia pela situação da filha, refere-se ao incesto no implícito de este constituir uma desonra e chama-lhe, então, “honrada”: 22.“Como t’hei-de dar a água, ó Faustina tão honrada?”, D/33 Leite (1960) 45-46 Porque o é, a donzela deve ser louvada, ainda que na morte: 19.“D. Faustina morreu, mas morreu por ser honrada. 20.O seu pai está no Inferno, já tem a alma queimada.” D/23 Carneiro (1945) 167-168 Enquanto a negação de Delgadinha é peremptória e claramente de natureza moral e religiosa, já Silvana, que parece agradada com a proposta embora manifeste ao pai 469 Dicionário Houaiss, Tomo II, p. 854 e 855. 203 A REVELAÇÃO DO SENTIDO alguns pruridos ou receios de um castigo divino, refere sobretudo á mãe a sua “honra” ameaçada, o que aponta para que a negativa provenha de condicionantes de ordem social: 14.“- P'ra onde vais, bela Silvana, minha filha tão querida? 15. - O triedor de mê pai a honra me roubar queria. “ S/16 Ferré (1982) 207-208 4.“- Donde vais, bela Silvana, donde vindes, filha minha? 5.- Venho fugida de mê pai qu'honra me roubar queria.” S/18 Ferré (1982) 208-209 Honra e virgindade estão tão ligadas que valem a vida e são uma exigência, ainda que de tortuoso sentido, do pai para com Silvana, que se escapa à prova ao ser substituída pela mãe, mas se vê ameaçada se não se apresentar “honrada”: 15.“- Oh, bem vinde vós, Silvana, oh, bem vinde, filha minha, 16.se me vieres honrada, uma tença eu te daria 17.e se não vieres honrada, a vida t' eu tiraria.” S/9 Purcell (1976a) 166-167 Resistir ao pecado pagando com a vida é sinónimo de santidade e, assim, aparecem versões nas quais se declara explicitamente que o martírio de Delgadinha a torna santa. Certos informantes assim o entendem e comentam: “Logo chegaram ao pé dela. Já 'tava amortalhada com uma fonte d'água à cabeceira. Era uma Santa.”, S+D/36 Anastácio (1988) 73-74 “Quando le oram dar a auga j 'stava morta e santinha... “, D/222 Cruz (1995) 215-216 Outros até fazem o pai reconhecê-lo: “Foi quando ele reconheceu qu'ela qu'era santa ...”, D/219 Cruz (1995) 212-213 A presunção desta santidade é tão forte que passa para o enunciado, com o narrador (a), ela própria (b), ou o pai (c), a declará-lo: (a): 25.“Quando o criado foi co'a água, Aldina santa estava …”, D/101 Ferré (1982) 221 (b): 48.“Eu, santa, vou p'r'ó céu, meu pai cá fica pensando”, D/190 Ana Martins/Ferré (1988) 87-89 204 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (c): 24.“A tua alma stá santa, a minha'arde no Inferno”, D/71 Pereira (1970) 246-247 Até Silvana, que não se coibira de condicionar a decisão de perder a honra ao receio do Inferno, não deixa de ser “santificada”, embora porque a versão em que tal ocorre seja compósita com Delgadinha: 1.“Vindo a Santa Silvana do sê corredor um dia”, S+D/25 Galhoz (1987) 385 Este pai de Delgadinha, como o de Silvana, realça o valor da virgindade da filha e a ela se refere como “donzela”: 7.“- Vão depressa homens todos, dar água aquela donzela”, D/181 Galhoz (1987) 387 A honra significa virgindade, já o vimos relativamente à filha, e também a mãe em Silvana assim o declara, embora se refira a ela própria, ao desvendar a identidade ao marido; afinal, sendo mãe não pode ser virgem/”honrada”470: 14.“- Como posso estar honrada quem cinco filhos teria?”, S/32 Xarabanda (1995) 28 Paradoxalmente, os mesmos filhos que lhe “tiraram a honra” são a razão da sua própria, agora noutro sentido, o do orgulho de casta. A “honra”, aqui, reside no alardear da nobreza da descendência: 19.“Eu já pari a D. Pedro e a D. Carlos de Castilha”, S+D/16 Leite (1960) 86-87 Por vezes, um remate final da mãe, em jeito de post scriptum intradiegético, valoriza a honra da filha e dela própria, em contraste com a pouca que o pai tem: 19. “ - Tãobém honra a tua cara e a honra da nossa filha 20 E também honra os meus ossos debaixo da terra fria.” S/32 Xarabanda (1995) 28 470 Também pode recorrer a um conhecido eufemismo (“flor) para se referir à virgindade perdida: 16.“Pois quando estive D. Silvana de D. Pedro de Castilha, 17. perdi minha flor que era enflorecida.” S/25 Fontes (1983a) 125 205 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - A honra e a sedução feminina - Gerinaldo “Muito bem parece o ouro No pescoço da donzela Melhor parece a honra, Menina, faça por ela”471 A honra feminina está ligada às noções de castidade, pureza e fidelidade e instituise em oposição ao conceito da honra masculina, recaindo o ónus da sua infracção sobre o marido e a família, tal como acontece, de um ponto de vista antropológico, nas sociedades mediterrânicas ditas “tradicionais”472, nas quais se valoriza a castidade da mulher, para a qual as relações pré-matrimoniais são um interdito. José Mattoso, que aponta estas, na Idade Média, como “uma recomendação e um ideal e não como um pecado grave”, salienta também que “as damas” eram excluídas da tolerância para com este tipo de infracções; diz, ainda, que os homens buscavam as suas aventuras amorosas com “mulheres de categoria inferior” e que a “disparidade entre os participantes” era encarada como inadmissível ou escandalosa473. Por sua vez, Maria Carmen Sarceda, ao analisar a representação da “donzela” nas Cantigas de Santa Maria, sublinha que, com o incremento da devoção mariana, se desenvolve a exaltação da castidade, fixando rigidamente nesses moldes a figura da “’donzela’ e da mulher em geral474. 471 Cf. A. L. Pinto da Costa [1997], Alto Douro. Terra de Vinho e de Gente. A vida quotidiana altoduriense no primeiro terço do século XX, Lisboa, Edições Cosmos, 1997, p. 76. 472 Anahory-Librowicz perfila as seguintes categorias femininas, no romanceiro: mulheres não-castas (as consentidoras, as sedutoras e as adúlteras), virtuosas e malcasadas e distingue os conceitos de honra masculina e feminina como termos opostos: a desonra da mulher advém da sua sensualidade e a do homem da ausência desta. Cf. Anahory-Librowicz [2005]. 473 Cf. José Mattoso [2004], “A Sexualidade na Idade Média Portuguesa”, Estudos Medievais. Quotidiano Medieval; Imaginário, Representações e Práticas, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pp. 13-42. 474 Cf. Maria Carmen Seijas Sarceda [1993], “A Figura da ‘Donzela’ nas Cantigas de Santa Maria” em Aires A. Nascimento, Cristina Almeida Ribeiro, organiz. de, Literatura Medieval, Vol. IV, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições Cosmo, 1993, pp. 41-44. 206 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O modelo perdurou, com estes valores ligados à honra, pelo que a sedutora do homem não é a imagem que uma jovem, de qualquer estrato social, deva dar de si475. Assim, a castidade e o recato feminino são valores cuja infracção se insinua em Silvana, como já referido, mas se expressa mais claramente em Gerinaldo. A infanta, neste romance, perde a honra ao dormir com o pajem, o que é altamente indesejável para a sua condição de rapariga solteira, pelo que solução do casamento encontrada pelo pai, para além da que mencionámos atrás e que tem a ver com a questão dinástica, torna-se consentânea com os parâmetros de uma sociedade orientada por esses valores, visto que a situação da mulher fica moralizada. Gerinaldo, em certas versões, é que parece fazer pouco caso da honra da infanta, e haverá versões em que se recusa a casar, porque já dormiu com ela, assunto a que haveremos de voltar. No entanto, no caso deste romance, a questão da sedução feminina ser conotada com uma infracção, é ultrapassada por outra mais grave, que é a infracção à hierarquia. 5.4. Actos contra a hierarquia - Gerinaldo “Cada pardal com seu igual”476 González Troyano encontra no romanceiro uma preferência reiterada por situar a mulher sedutora num plano social mais elevado do que o do homem seduzido, o que se presta a duas leituras: ou essa mulher teria, dada a sua condição, maiores possibilidades para o fazer ou só nessa classe se encontrariam mulheres que se permitissem tais excessos 477 . Em Gerinaldo, a sedutora é uma infanta, que induz o pajem do pai a transgredir uma subtil regra que sustenta a hierarquia social – os casamentos de 475 A imagem da mulher como tentadora do homem, levando ao pecado o mais santo, é constante também na hagiografia, de acordo com Ana Maria da Silva Machado [1993], “A Mulher e a Representação do Mal na Hagiografia Medieval Portuguesa – Alguns Aspectos”, em Aires A. Nascimento, Cristina Almeida Ribeiro, organiz. de, Literatura Medieval, Vol. II, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições Cosmo, 1993, pp. 111-120. 476 Nas comunidades, ”[P]or sua iniciativa ou por conselho ou pressão dos pais, cada qual procurava par do seu nível social”. Cf. Costa [1997], p. 69 (Testemunho oral). 477 Cf. Alberto González Troyano [1989], “Algunos rasgos del arquétipo de la mujer-sedutora en el romancero tradicional andaluz”, em Piñero [1989], pp. 549-551. 207 A REVELAÇÃO DO SENTIDO herdeiros com indivíduos de condição social inferior não são desejáveis para a manutenção do prestígio e fortuna da família. Por isso, certas modificações finais que ocorrem nas versões do romance têm origem nas atitudes particulares dos produtransmissores quanto à pertinência de tal união. Citamos a observação de Susana Weich-Shahak sobre as diferentes opiniões que os casamentos desiguais suscitavam nas senhoras marroquinas que cantavam o romance: “cuando terminaban de cantar el romance de Gerineldo (El paje y la infanta), las señoras tangerinas, o de Alcazarquivir o de Larache cotejaban, si efectivamente Gerineldo se casó con la infanta o si no (porque, en fin, si bien había dormido con ella, había una insuperable diferencia de rango, ella era princesa, y el no más que un paje) demostrando, en ardientes discusiones, que veían la situación del romance como un dato verídico y como si esta situación tuviera una cierta 478 relevancia en su propia experiencia” . Mas “manda quem pode e obedece quem deve” e, de facto, ainda que Gerinaldo comece por exprimir incredulidade face à proposta da infanta, acaba, na realidade, por não se fazer muito rogado e prontamente aquiesce. A ilação possível é a de que, conhecendo bem o rei, o pajem esperasse dele o consentimento para o casamento. A procura de ascensão social e económica através do casamento não é apanágio de uma única época ou sociedade e esse tema e os conflitos decorrentes encontram-se largamente representados na Literatura, mas, também na História. Na nobreza medieval portuguesa, procuravam-se consórcios que pudessem perpetuar as linhagens, mas documentam-se matrimónios de nobres de categoria média ou inferior com herdeiras de linhagens de maior prestígio, com o fim de ascenderem a níveis superiores da 478 Susana Weich-Shahak começa por dizer que “[E]s de señalar la particular actitud de los usuarios del repertorio ante los textos de los romances, tal como se revelan en sus comentarios y discusiones en cuanto al grado de credibilidad del texto…”, referindo-se às discussões entre as suas informantes sobre os diferentes desenlaces das respectivas versões. Cf. Susana Weich-Shahak, http//: parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, 22 de Novembo de 2006. 208 A REVELAÇÃO DO SENTIDO aristocracia479. Esse intento poderia ser o de Gerinaldo e a apoiar esta suposição está o facto de a desculpa que dá ao rei (no motivo “caçar a rola”) ser uma clara alusão à relação sexual que teve com a infanta, menos susceptível de ser perdoada, e não outra com que mais facilmente o pudesse enganar. A conjectura de que Gerinaldo casa de boa mente torna-se explícita na versão abaixo, logo após o rei ordenar o casamento (com a alternativa da morte para o pajem), surgindo os seguintes versos, enunciados pelo narrador: 21.“Gerineldo que ouviu, que isso era o que queria, 22. casou-se co' a infanta com prazer e alegria.” G/23 Martins (1928)/Martins (1987) 183-184 Verdade seja que, por vezes, o pajem acusa a infanta de o ter “cometido”, dando a entender que apenas obedeceu a alguém que lhe era hierarquicamente superior e, noutros casos, proclamará o seu próprio estatuto, ao que voltaremos na Parte II. 5.5. Feitiçaria – Veneno de Moriana “não deixarás viver a feiticeira”, Êxodo, 22.17. Em Veneno de Moriana, encontra-se uma conotação com a feitiçaria no acto da morte do cavaleiro por Moriana, embora as versões da tradição portuguesa não estabeleçam uma relação explícita entre esta e o envenenamento, uma vez que o romance não menciona palavras rituais que acompanhariam os actos de feitiçaria480 e que a confirmassem. No entanto, o uso que a protagonista faz dos ingredientes que junta ao vinho, como referiremos ao tratarmos os motivos, e sabendo-se que os feitiços 479 Cf. José Mattoso [1998], “Perspectivas Actuais Sobre a Nobreza Medieval Portuguesa”, A Cultura da Nobreza. Revista de História das Ideias, Vol. 19 - 1997, Coimbra, Instituto de História das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1998, pp. 7-37. 480 Referimo-nos aos “Géneros de intenção mágica e religiosa”, segundo a classificação de Pinto-Correia [1993a]. 209 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de morte eram elaborados com venenos481, pode sugerir essa hipótese, tanto mais que ela está presente noutras tradições. Numa versão sefardi oriental, a mãe do cavaleiro havia-o alertado, explicitamente, para a fama de Moriana, dizendo-lhe: “Por puertas de Moliana que no fuerais a passare; Moliana es fechicera, no vos haga algún mal”482 Nas versões consultadas da tradição portuguesa, não se encontra o pedido do cavaleiro a Moriana para que esta o cure, como acontece numa versão asturiana, na qual a sua condição de feiticeira está implícita, por nela se entender que quem preparou o veneno conheceria também o seu antídoto: “Sáname, buena Mariana, que me casaré contigo”483 . Não o sendo explícito nas versões portuguesas, Moriana poderia ser ela própria feiticeira, ter recorrido, simplesmente, aos serviços de uma ou, ainda, possuir os conhecimentos suficientes para a utilização mortal dos ingredientes misturados no vinho. Na verdade, não é muito clara a distinção entre feiticeiras, bruxas e outros agentes associados a práticas mágicas e Francisco Bethencourt, em O Imaginário da Magia, refere a necessidade de definição dos termos usados neste campo para referir as características dos seus intervenientes484 e refere a observação de Leite de Vasconcellos, que distingue bruxas e feiticeiras dizendo que “[S]er bruxa é um fado. A feiticeira é um 481 Cf. Francisco Bethencourt [1987], O Imaginário da Magia. Feiticeiras, saludadores e nigromantes no séc. XVI, Lisboa, Projecto Universidade, 1987, p. 101. 482 Cf. Xosé Ramón Mariño Ferro, Carlos L. Bernárdez [2002], Romanceiro en Lingua Galega, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 2002, p. 186. 483 Cf. Díaz-Mas [2001], p. 277. Note-se, ainda, que a crença no poder que Moriana tinha para reverter o feitiço era tal, que o cavaleiro se dispõe a casar com ela. 484 Bethencourt reporta-se a Vasconcellos (José Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa [1980], vol. VII, organizado por M. Viegas Guerreiro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1980, p. 116) para a percepção da “enorme complexidade e flutuação das acepções populares nesta matéria”. Cf. Bethencourt [1987], p. 13-32. Não sendo aqui o lugar para aprofundar esta questão, remetemos, de entre outros possíveis e para além do mencionado de Bethencourt, para o estudo de Julio Caro Baroja [s.d.], As Bruxas e o seu Mundo, Lisboa, Vega, s.d., para Maria Benedita Araújo [1994], Magia, Demónio e Força Mágica na Tradição Portuguesa, Lisboa, Cosmos, 1994, para José Carlos Duarte Moura [1997], Histórias e Superstições na Beira Baixa, Coimbra, A Mar Arte, 1997, para Maria de Lurdes Soares [2004], B.I. das Fadas e das Bruxas, Colecção Bilhetes de Identidade, 11, Lisboa, Apenas Livros, 2004, para Claude Lecouteux [2005], Hadas, brujas y hombres lobo en la Edad Media. Historia del Doble, Palma de Mallorca, José J. de Olañeda, 2005 e para Maria Teresa Meireles [2006], Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras, Lisboa, Colecção Redes & Enredos, 4, Apenas Livros, 2006. 210 A REVELAÇÃO DO SENTIDO modo de vida, é preciso ter arte”485. “Arte”, pelo menos, tinha-a Moriana, pela destreza em manipular os venenos. Neste romance, e no pressuposto de uma ligação a práticas de feitiçaria, quer seja directa ou indirecta, as versões nas quais Moriana vai ao jardim486, que pode pertencerlhe ou aos seus parentes (pai/tio), buscar determinadas plantas (e a presença destas naquele local implica a existência de determinados propósitos para o seu cultivo, dado o tempo e os cuidados necessários ao seu crescimento), sugerem o conhecimento das suas propriedades venenosas; o seu uso, neste caso o de “dar feitiços” ao homem que quebrou uma promessa de casamento, está de acordo com a ameaça relacionada na Inquisição de Coimbra, uma das fontes de documentação de Bethencourt, que transcreve o pedido ao cura das Sé da Coimbra para que avisasse “Luiz das Quintas estudante que se gardasse de Isabel Castanheira porque lhe avia de dar feitiços pera o matar porquanto dizia que elle lhe tinha prometido de casar com ella e que se hia desta terra e a deixava” 487. A feitiçaria é, pois, uma infracção, como se vê pela citação em epígrafe, que diz claramente que os seus praticantes devem morrer e, a tê-la Moriana praticado, torna-se uma infractora das leis de Deus e também das leis humanas. No entanto, o romance omite sanções para Moriana, da justiça terrena ou divina, embora, em certos Prolongamentos, ela vá presa, revelando-se então uma ambivalência de aprovação/rejeição quanto à reputação das feiticeiras, que a comunidade considerará “benéfica/maléfica, virtuosa/iníqua, agente de Deus/agente do Demónio”488, o que se poderá justificar por alguma “brandura” por parte da justiça eclesiástica, inquisitorial e secular para os crimes julgados, como Bethencourt faz notar em relação às diferenciações dos 485 Cf. Bethencourt [1987], p. 13-32 e Vasconcellos [1980], p.109. Trataremos o motivo “jardim” e a sua ocorrência no romance na Parte II, Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido. 487 Cf. Bethencourt [1987], p. 101. Note-se a semelhança com a situação de Veneno de Moriana. 488 Cf. Bethencourt [1987], pp. 13-32 e pp. 193-198 (3. A ambiguidade das atitudes). 486 211 A REVELAÇÃO DO SENTIDO ritmos de repressão da feitiçaria, bruxaria e magia489. Note-se, também, que talvez seja uma certa visão mágica do mundo que, nas versões madeirenses, faça intervir o sobrenatural na figura do homem morto que aparece à sua matadora, para se redimir de lhe ter roubado a honra490. 5.6. O Quinto Mandamento “Não matarás”, Ex. 20, 13 Embora o Quinto Mandamento, que deixámos para analisar em último lugar, seja uma infracção clara às leis e normas sociais e religiosas, a morte infligida nos romances do corpus parece ser objecto de uma valorização menor que qualquer um dos outros valores que são infringidos pelas personagens. Há, neles, três mortes causadas, mas nenhum dos matadores é castigado. Em Bernal Francês, exceptuando algumas versões nas quais o marido enganado resolve devolver a mulher ao pai491, a regra é que morra a adúltera, mas a questão tornase complexa, pois a infracção, como vimos, é cometida pela mulher e o castigo implicado é executado. No entanto, esta morte poderia considerar-se um homicídio, visto que a pena não é ditada pelas instâncias civis ou religiosas, a que o marido se substitui. É ele, de facto, quem se encarrega de a julgar e também de aplicar a sanção, subentendendo-se que o faz por suas mãos, o que se comprova pelo emprego da primeira pessoa em “dar-te-ei [saia/gargantilha vermelha]”. Em nenhuma versão consultada há, sequer, a sugestão de que o marido venha a sofrer qualquer penalidade - 489 Cf. Bethencourt [1987], Cap. VIII. Ainda que este possa ter uma função moralizadora, como postula Dias Marques em artigo a que adiante nos referiremos repetidamente, não deixa de ser uma figura sobrenatural que intervém em uma narrativa onde a sua interlocutora é feiticeira (ainda que arrependida, pois lhe reza junto à campa). Cf. J. J. Dias Marques [1992], “O Veneno de Moriana com Final Madeirense em Trás-os-Montes”, em Manuel Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 303-338. 491 Quanto a estas versões, entendemos que tal desfecho se deve a uma contaminação de Claralinda, romance no qual o marido aparenta ser menos sanguinário. 490 212 A REVELAÇÃO DO SENTIDO nem a lei de Deus nem a lei dos homens o castigarão. Se o Quinto Mandamento preceitua que não se deve matar, o homem tinha, ainda assim, o direito de submeter a mulher à ordália 492 pela água sagrada, mesmo por simples suspeita ou ciúme; diz a Bíblia que “O homem ficará isento de culpa, e a mulher suportará a sua iniquidade” (Nm 6, 11-31). Quanto às leis dos homens, a Lei de Afonso IV, para os casos em que o marido matasse a mulher adúltera, estabelecia “que não morra por ende, nem haja outra pena de justiça” 493, e em época mais recente, o código penal da Espanha franquista absolvia o marido que “lavava a sua honra” com sangue494. Em Veneno de Moriana, a rapariga mata o cavaleiro perjuro por vingança e nada sofre por isso, com excepção de algumas versões com Prolongamento, como veremos. Em Delgadinha, o pai é o responsável pela morte da filha, mesmo que se entenda que esta seja uma solução divina para evitar o incesto, mas não sofre qualquer sanção, senão a predição de que irá para o Inferno. Em Silvana não há morte alguma, nem em Gerinaldo; neste romance, se bem que, em certas versões, o pajem seja condenado a morrer, acaba por casar com a infanta. Enquanto factores da procura do sentido, delimitámos o espaço físico e social no qual se movem as personagens e configurámos os modelos sócio-culturais que determinam os modos de actuação em Bernal Francês, Veneno de Moriana, Silvana, Delgadinha e Gerinaldo, considerando, desde logo, que as infracções cometidas nestes romances o são porque disfóricas das normas de comportamento reconhecidas como desejáveis pelo Poder hegemónico. 492 Sobre as ordálias pela água ou pelo fogo impostas como prova de virgindade, castidade ou fidelidade, cf. o estudo de Paloma Gracia [1993], “Algunas Ordalías a Propósito del ‘Arco de los Leales Amadores’”, em Aires A. Nascimento, Cristina Almeida Ribeiro, org. de, Literatura Medieval, Vol. IV, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições Cosmo, 1993, pp. 215-218. 493 Cf. Marques [1971], p. 126. 494 Cf. Paço Mancebo Perales [2001/2002], “El Romance de La Adúltera en Hispanoamerica. Análisis de variantes”, Revista ELO, nr. 7-8, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 2001/2002, pp. 187-206. 213 A REVELAÇÃO DO SENTIDO PARTE II A REVELAÇÃO DO SENTIDO 215 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO I OS SUPORTES SIGNIFICANTES DO SENTIDO Na Parte I, tratámos de relacionar e analisar, mais generalizadamente, os factores a serem considerados para uma procura de sentido. Tendo já identificado as sequências de cada um dos romances do corpus que são discursivamente actualizadas e a que chamámos “explícitas”, passaremos, nesta segunda parte, ao modo de revelação do seu sentido, começando, no presente Capítulo, pelos suportes significantes da narrativa organizada em sequências. 1. Suportes significantes directos e indirectos Os “suportes significantes directos” da narrativa são constituídos pelas sequências chamadas explícitas, sendo através da sua análise que poderemos aceder às sequências implícitas, ou “suportes significantes indirectos”495. Uma vez que, como atrás dissemos, o processo da procura do sentido será de maior ou menor complexidade dependendo da natureza narrativa ou dramática das sequências e do seu posicionamento na ordem da narrativa, também a revelação dos seus suportes significantes indirectos estará sujeita às mesmas condicionantes. As sequências iniciais necessitarão, geralmente, de um maior grau de pressuposições do 495 Os estudos consultados para a análise do explícito e implícito ocupam-se, sobretudo, dos “enunciados breves” enquanto trocas verbais entre interlocutores. Contudo, mesmo que a metodologia fosse aplicada aos actos de fala das personagens dos romances, na perspectiva em que estas, efectivamente, dialogam entre si, o objectivo deste estudo é a revelação do sentido de composições comparativamente longas e de características específicas, pelo que houve que adaptar as terminologias e os conceitos a esta circunstância. Deste modo, adoptamos, também neste caso, a terminologia e conceitos de Catherine Kerbrat-Orecchioni, quando diz que “toute unité de contenu susceptible d’être decodée possède nécessairement dans l’énoncé un support linguistique quelconque” (p.13) e que “Toute unité de contenu, explicite ou implicite, possède un ancrage textuel direct ou indirect, donc en dernière instance certains supports signifiants sur lesquelles repose prioritairement son emérgence” (p. 16). Cf. Kerbrat-Orecchioni [1986]. Com a expressão “suporte significante directo”, referir-nos-emos às sequências discursivamente manifestadas, nas quais se procurarão os elementos que servirão à encatalisação, recorrendo à expressão de Greimas, das sequências que constituirão o “suporte significante indirecto”. 217 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que as intermédias, que são o seu desenvolvimento, e as finais deverão constituir a natural implicação de ambas. De um modo geral, adianteremos já que, em Gerinaldo, não são quaisquer acontecimentos prévios à proposta da infanta ao pajem que há a pressupor para justificar o interesse do seguimento da narrativa, mas sim as circunstâncias em que ela decorre e que têm a ver com o estatuto de cada um dos intervenientes, embora, logicamente, elas sejam anteriores à situação criada. Dir-se-á, então, que é a condição social das personagens que constitui um pressuposto de interdição para estes amores, que se actualizam como uma infracção. Já em Silvana e Delgadinha, o que prevalece como pressuposição lógica de haver uma infracção é da ordem moral, devido ao tabu do incesto, seja qual for a posição social dos intervenientes. Quanto a Bernal Francês e a Veneno de Moriana, ainda que condicionamentos morais e sociais estejam implícitos, ambos envolvendo a instituição do matrimónio, são, em grande parte, os factos anteriores não narrados no corpo das respectivas narrativas que constituem os suportes significantes indirectos do seu sentido, no primeiro caso o adultério cometido e, no segundo, as expectativas matrimoniais goradas. Por se tratar de textos constituídos por uma multiplicidade de manifestações, os suportes significantes directos de cada sequência apresentam numerosas formas de expressão, nas versões. Por esse motivo e não recorrendo à elaboração de uma versão factícia de cada romance, como dissemos na Introdução, mas procurando uma operacionalidade demonstrativa, optámos por utilizar versos de versões que considerámos suficientemente ilustrativos da situação-chave correspondente 496 . Sabendo-se que os começos e os finais dos romances são os elementos mais sujeitos a 496 Lembramos que as palavras ou frases-chave que as identificam descrevem sucintamente o seu conteúdo narrativo, conforme se pode verificar, mais à frente, no “modelo-virtual” de cada romance. 218 A REVELAÇÃO DO SENTIDO modificações 497, apresentamos aqui também alguns suportes significantes directos de variantes, deixando embora um maior aprofundamento da questão da variação e sentido para o Capítulo III. Quanto aos suportes significantes indirectos, a sua revelação assentará nos elementos procurados na Parte I e, por vezes, no exercício da chamada competência enciclopédica; aos motivos, também eles suportes significantes indirectos, dedicaremos o Capítulo II. 1.1. BERNAL FRANCÊS Sequência I – A mistificação 1) Suporte significante directo A sequência que abre o romance apenas dá conhecimento de que alguém está a bater a uma porta e alguém vai abrir. Esta situação, nas versões, estrutura-se em suportes significantes directos muito variáveis: o diálogo é iniciado por um ou outro dos intervenientes, há uma muito breve introdução narrativa da situação ou, ainda, esta é apresentada monologicamente. a) – Diálogo a.1.) - iniciado por alguém 1.“- Quem bate à minha porta, a esta hora de dormir? indagando quem lhe bate à 2.- Sou Bernal Francês, senhora, p'ra vos bem querer e servir porta. Após ouvir dizer que 3. - Pois que és Bernal Francês, minha porta vou abrir.” BF/5 Azevedo (1880) 141-145 é Bernal Francês, diz que vai abrir. a.2.) - iniciado por alguém 1.“- Francisquinha, Francisquinha, desse corpo tão gentil, 2. abri-me lá essa porta, que ma costumais abrir. 497 Sobre a “abertura” dos significados nos vários “níveis” de articulação do relato, diz Diego Catalán não ser de estranhar “que las alteraciones de la fábula ocurran, fundamentalmente, en dos lugares semanticamente privilegiados: el comienzo y el final de los romances”, que atribui à reacção dos “receptores-emisores” às questões focalizadas pela história contada. Cf. Catalán [1997], p. 178. 219 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que pede que lhe abram a porta e respectiva resposta 3. - Não abro a minha porta, que são horas de dormir. 4.- Abri ao homem de França, que lha costumais abrir. 5. - Se é outro no seu lugar, digo que não quero ir,…” (que pode começar por ser BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204 negativa). b) - Introdução narrativa Um narrador indeterminado conta que alguém está a bater a uma porta: - identificação de quem 1.“Rosmanino bateu à porta.” BF/9 Braga (1887-1889) 105-107 bate - identificação de quem 1.“Estando D. Margarida no melhor do seu dormir, ouvindo bater à porta”. ouve bater BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76 - representação espaço- 1.“Era meia-noite em ponto, a uma porta batiam.” BF/8 Pires (1885g) XXI temporal c) Monólogo Uma personagem declara 1.“- Estando eu na minha cama, no melhor do meu dormir, 2. espadas ouvira tocar, espadas ouvira tenir. que está a ouvir bater à 3. Se ele é Bernardo Francês minha porta vou abrir, porta e irá abrir se, e só se, 4. Se ele é outro cavaleiro, já se pode despedir. 5.- Sou Bernardo Francês, senhora, sua porta vinde abrir.” for Bernal Francês. (A outra personagem afirma BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 428-429 ser Bernal Francês). 2) Suporte significante indirecto O suporte significante indirecto deste romance assenta na questão do adultério e nas relações de Poder, nos seus pressupostos morais e sociais, tal como postulado 220 A REVELAÇÃO DO SENTIDO anteriormente, mas também em ocorrência anteriores pressupostas. O seu enredo baseiase no logro de uma mulher que julga acolher em sua casa o amante, quando, na realidade, se trata do próprio marido, mas este facto não é desvendada senão quase no final do romance. O suporte significante directo inicial, qualquer que seja a sua estrutura, e uma vez que não contém elementos explícitos indicativos que identifiquem o marido, veicula um equívoco que, afinal, sustenta o sentido do romance, pelo que a revelação daquela circunstância assenta num intrincado jogo de implícitos e pressuposições, que se faz interna e externamente, e quase em simultâneo. Em primeiro lugar, a estrutura do suporte significante directo, dialógica ou monológica, pouco revela do “quem, quando e onde”. A expressão interrogativa simples “quem bate à minha porta?” do exemplo a.1.) estabelece como pressuposição estrutural um encadeamento lógico anterior (“alguém que está dentro de casa está a ouvir bater à porta”) mas que nada adianta à identificação de quem interroga; o mesmo acontece se o diálogo for iniciado pela voz de quem pede que lhe abram a porta, pois, como em a.2.), o verbo “abrir [a porta]”, mesmo enunciado no imperativo, tem o valor de um pedido perfeitamente corrente, visto que remete para um acto social reconhecido como “alguém quer entrar numa casa” e o ouvinte-leitor apenas fica a saber que alguém está fora e chama/pede a determinada pessoa que lhe abra a porta. Em resumo, no diálogo, a identificação dos intervenientes deixa-se num semi-anonimato498, no qual nem sempre é imediatamente perceptível o género a que pertence o primeiro a falar e, na introdução narrativa, a ser muito sumária. Quem bate à porta usa frequentemente o vocativo “senhora” ou “minha senhora”, porém, “quem” fala torna-se perceptível, tanto mais 498 Pelo contrário, quando a Bernal Francês se junta A Aparição, neste último é muitas vezes referido o nome da defunta. Quanto à identidade do marido , note-se que a mulher, ao dar-se este a conhecer, não o trata pelo nome, chamando-lhe antes “meu marido” e até “maridinho”, quando o quer ainda enganar e este também não a trata usualmente pelo nome, preferindo dirigir -se-lhe por apodos como “falsa traidora” e similares. 221 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que o vocativo “Francisquinha” do exemplo de a.2.) ou a auto-identificação “Sou Bernal Francês” do exemplo de a.1.) tornam óbvio tratar-se de uma mulher e um homem. Quanto ao “quando” e “onde”, no caso de diálogo, a segunda parte do verso “a esta hora de dormir”, como em a.1.), executa a localização temporal “ser de noite”, tratando a expressão de fazer também reconhecer dois espaços – o exterior, onde se encontra quem bate à porta e o interior, onde se encontra quem ouve bater – o que corresponde à introdução narrativa “Era meia-noite em ponto, a uma porta batiam.”, em b). Desta forma, o suporte significante directo constituído pelo par pergunta/resposta assume o carácter de indicação cénica de uma determinada acção (bater à porta), com uma determinada finalidade (entrar em casa), protagonizada por um homem e uma mulher (identificados onomasticamente ou não), a que se junta a circunstância de um ambiente nocturno. O suporte significante directo que sustenta o acto de bater à porta é uma estratégia narrativa que supre a audição do som de bater. Há versões que vão mais longe, pois narram o facto e, por redundância, reproduzem-no numa onomatopeia: 1.“À minha porta troparam: Truz, truz! Quem está aí?”- BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 4042; noutro caso, é a própria fórmula de chamamento que é explicitada: 1.“Estando D. Margarida no melhor do seu dormir, // 2. ouvindo bater à porta: - Oilá, oilá! Quem lá está?”BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76 (nossos sublinhados). No caso do suporte significante ser como em c), também a personagem narrador se encarrega da didascália situacional, que permite ao ouvinte/leitor saber que, estando a dormir, portanto durante a noite, um ruído a acordou ( 2 .“espadas ouvira tocar, espadas ouvira tenir”). Ainda neste caso, o monólogo reflexivo condicional (3.“Se ele é Bernardo Francês minha porta vou abrir”) substitui a pergunta explícita dos outros modos (“Quem bate à minha porta?”) pois é articulada em voz suficientemente alta para ser ouvida do lado de fora, uma vez que o interlocutor dá a resposta lógica (5.“- Sou Bernardo Francês, senhora, sua porta vinde abrir.”). 222 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Vimos que, como em a.1.), é referido com frequência que a acção se passa à “hora de dormir”, que equivale a “estar escuro”, pelo que o suporte significante directo vai sobretudo ter a função de remeter para a condição fundamental que propiciará a fase seguinte da intriga; além disso, o termo “a tais [horas]” do exemplo acima insinua, desde logo e com mais acuidade, que a situação, que nesse momento narrativo ainda não está esclarecida, será um tanto inapropriada (durante a noite, uma mulher dispõe-se a abrir a porta de casa a um homem). A pergunta, de resto, nem sempre aguarda resposta e pode ser logo seguida pelo conectivo se, que levará a compreender que “se e só se for Bernal Francês quem bate à porta – então a porta será aberta”. A afirmação subentende o sentimento de desejo de que o barulho ouvido seja indicador da presença desse homem, mas, também, a intenção de afastar qualquer outra pessoa: 1.“- Oh quem bate à minha porta, às horas do meu dormir! 2. Ai se é Bernal Francês, a porta lhe vou abrir! 3. Se outro é o cavaleiro já se pode despedir.” BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198? 46-49 Dissemos que o jogo de pressuposições se faz internamente, ou seja, no próprio enredo, porque a personagem feminina acredita ser verdadeira a resposta “sou Bernal Francês”, pelo que lhe abre a porta a desoras. Na verdade, muitas vezes não o faz sem que se certifique de que se trata dele, o que é bastante explícito, como já se disse (5.“- Se é outro no seu lugar, digo que não quero ir”, em a.2.). Mesmo que a identificação não se faça com um nome próprio, mas por insinuação499, através do por vezes usado motivo das flores (2.“São cravos, minha senhora, rosas vos trago aqui”- BF/2 Braga (1867) 34-36 ), a 499 Usamos o termo “insinuar” de preferência a “aludir”, visto que, embora sejam ambos do domínio dos subentendidos que fazem referência a factos conhecidos dos protagonistas da troca verbal, há, na insinuação, um conteúdo de natureza malévola, que se adequa ao que sabemos ser a intenção de quem o profere. Com efeito, à pergunta “quem bate à minha porta”, o homem responde que são “cravos”- motivo de significação amorosa implícita -, mas aqui quem o diz é um marido que, apresentando-se no aspecto romântico que se atribui a um amante, o faz com o objectivo de lograr e castigar a mulher. A distinção dos conceitos de alusão e insinuação é feita na nota 6, p. 39, em Kerbrat-Orecchioni [1982]. 223 A REVELAÇÃO DO SENTIDO mulher parece compreender o seu simbolismo500, daí inferindo501 que se trata do amado. Externamente, o ouvinte/leitor faz a mesma inferência da protagonista, pois “sabe” que quem bate a coberto da escuridão e não possui a chave da porta não tem o direito natural de entrar em casa sem se anunciar. Ora, o código social atribui implicitamente esse direito a um marido e uma certa suspeição de ilicitude estava já presente em determinados indícios iniciais; visto que a mulher declara que abrirá a porta apenas a determinado homem e, presumindo-se que não é, certamente, o marido (que não bateria à porta), chega-se à conclusão de que se trata de um amante. Em alguns casos, as relações entre os protagonistas são indiciadas pelo tratamento amoroso no vocativo (a negrito): 1.“- Quem bate à minha porta, estas horas de dormir? 2. - Meu amor, sou D. Francesco, só agora pude vir.” BF/6 Azevedo (1880) 145-150 Noutros casos, a intenção amorosa é mais clara, embora eufemisticamente expressa com os termos “querer” e “servir”: 2.“- Sou Bernal Francês, senhora, p'ra vos bem querer e servir” BF/5 Azevedo (1880) 141-145 A solicitação para entrar alicerça-se, com frequência, em circunstâncias idênticas anteriores – espera-se que a porta seja aberta, porque já o foi, como em (a), o que é um indicador de continuidade, ou porque houve um acordo anterior, como em (b): (a): 1.“- Francisquinha, Francisquinha, desse corpo tão gentil, 2. abri-me lá essa porta, que ma costumais abrir” BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204 (b): 3.“- Eu sou João de França, eu aqui ficara de vir.”, BF/27 Rodrigues (1933) 15-16 500 Assunto que será tratado no Capítulo II. “A inferência é o processo pelo qual uma suposição é aceite como verdadeira ou provavelmente verdadeira pela força da verdade ou da verdade provável de outras suposições”. Cf. Dan Sperber, Deidre Wilson [2001], Relevância: Comunicação e Cognição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 119. 501 224 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A inexistência de quaisquer sequências introdutórias informativas obriga, pois, o ouvinte/leitor, que começa por se deparar com uma situação para a qual não são fornecidos dados que dêem a conhecer explicitamente nem os antecedentes nem as relações entre os protagonistas, a um exercício de interpretação das implicaturas, como a de que existe um marido, a de que este está ausente, e a de que o visitante nocturno é um amante habitual. O contrário converte uma estrutura narrativa baseada na surpresa numa estrutura comum 502 , o que acontece na recriação processada em versões mexicanas, que cria uma sequência inicial que explica o estratagema do marido. Assim, o Corrido de Elena, após uma primeira sequência admonitória às “senhoras honradas”, segue com a seguinte sequência (vv. 5-8): “Notícias tuvo su esposo que Elena era preferida: cuando se encontraba sola de un francés era querida. Un viage fingió su esposo para poderlos hallar agarrallos en el lecho y poderla asesinar”. De facto, mesmo sendo possível executar a pressuposição da situação anterior através dos indícios presentes, a ocultação premeditada dessas informações destina-se sobretudo a suscitar o suspense da narrativa, pelo que a sua veracidade só será confirmada aquando da recepção de informações a posteriori 503 . Deste modo, e ao contrário do que acontece na “reconstrução” de Bernal Francês por Garrett504, a intriga, no romance oral tradicional, elide três sequências iniciais pressupostas: # 1) - Um marido encontra-se ausente de casa há muito tempo # 2) - A mulher tem Bernal Francês como amante # 3) - O marido toma conhecimento do adultério 502 Cf. Roig [1997], pp. 318-319. Segundo Mercedes Diáz Roig, Bernal Francês possui uma estrutura peculiar, somente partilhada com poucos mais romances, que faz com que o público seja enganado, tanto como a personagem feminina, até ao final. Cf. Roig [1997], pp. 54-55. 504 Garrett [1983] I, pp. 123-130. 503 225 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Admitindo, ainda, que o marido não tenha confiado totalmente na eventual informação recebida na terceira destas sequências, pressupor-se-ia, igualmente, uma quarta sequência - # - o marido conhece a identidade do amante da mulher -, que integra o encaixamento das seguintes outras sequências implicadas: # - decide confirmar a veracidade da informação, # - congemina uma armadilha que confirme a informação. É a pressuposição desta sucessão lógica que desencadeia a intriga, vindo a parte manifestada do romance a começar in media res, no seguimento de uma implícita sequência lógica: # - O marido regressa a casa Subentendendo-se que o faz disfarçado, de modo a assemelhar-se a Bernal Francês (o que levaria a outra hipotética sequência encaixada em que o marido teria observado Bernal Francês, de modo a poder assemelhar-se a ele), a Sequência I é primeira a nível do discurso, mas a quinta a nível da estrutura da fábula505. Sequência II – O encontro amoroso 1) Suporte significante directo: 3. “- Ao descer da minha cama rasguei o meu farandil; 4. ao descer da minha escada, me caiu o meu chapil, 5. e ao abrir da minha porta se me apagou o candil. 6. peguei nele em meus braços, levei-o p'r'ó meu jardim, 7. lavei-lhe os pés e as mãos com aguinha de alecrim. 8. e também lhe lavei o rosto com aguinha de jasmim, 9. levei-o p'r'à minha cama, deitei-o ao pé de mim.” BF/13 Pedroso (1902) 463-464 505 Catalán, a propósito da sucessão lógico-temporal dos acontecimentos na narração, oferece como exemplo Bernal Francês, cujo “romance-objecto”, segundo o autor, se elabora mediante uma violenta distaxia na fábula, começando na 4ª sequència, a que chama “el ARDID”, na continuação das sequências 1ª. PARTIDA DEL MARIDO, 2ª. ADULTERIO e 3ª. REGRESO DEL MARIDO; seguindo-se ao ardil, haverá as sequências 5ª. COMPROBACIÓN DEL DELITO, 6ª. REVELACIÓN DE IDENTIDAD e 7ª. CASTIGO O VENGANZA. Cf. Catalán [1997], pp.149-153. 226 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A mulher, depois de se assegurar de que se trata de Bernal Francês, vai abrir a porta. Em termos temporais, realiza várias acções, condensadas em três segmentos sequenciais. No primeiro, desce as escadas e, simultâneamente, dão-se alguns incidentes: deixa cair o chapim (sapato) e apaga-se o candil que leva. No segundo segmento, a mulher abre a porta, introduz o homem no jardim, perfuma-o e, finalmente, no terceiro segmento, deita-se com ele. 2) Suporte significante indirecto: Esta segunda sequência é essencial ao desenrolar da narrativa, visto que é nela que se materializam as condições que ajudam ao equívoco da personagem/mulher, i.e., o apagar do candil que gera a escuridão, mas, mais do que isso, o seu carácter semi-lírico, semi-erótico (mesmo que encurtada em algumas versões) comprova ao ouvinte-leitor a já suspeitada ilicitude destes amores. Esta é, também, a sequência na qual o sentido mais deve à carga simbólica dos motivos que nela ocorrem – a entrada no jardim e as abluções perfumadas que aí ocorrem constituem suportes significantes indirectos da relação amorosa506 que se afirma discursivamente no terceiro segmento sequencial; o suporte significante directo de que ambos se deitam juntos raramente sofre elipse, quer seja expressa de maneira sucinta (a) ou mais alongada (b): (a) : 7. “Levou-o p'r'à sua cama, deitou-o ‘ó par de si” BF/26 Martins (1928)/Martins (1987) 224-226 (b) : 7. “Levara-o para o seu quarto, ajudara-o a despir; 8. deitara-o na sua cama, ajudara-o a cobrir. 9. Deitara-se ao par dele, para ambinhos dormir.” BF/17 Tavares (1906) 298 506 Pela complexidade dos também suportes significantes que são os motivos, desenvolvê-los-emos em lugar próprio. Cf. Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido. 3.Motivos não-indexados. 227 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Se a elipse do segmento ocorre na versão, a existência do diálogo que se segue, na Sequência III, faz com que o facto fique implicado. A razão de ser desta constância nas versões reside no facto de o adultério constituir o tema e o sentido global do romance. Assim, havendo já nos incidentes que precedem esta última cena um subentendido de ilicitude, a assertação “homem e mulher deitam-se juntos” destina-se a não deixar dúvidas sobre o que tal circunstância implica. Entre esta sequência e a seguinte e para que, nesta, a interpelação da mulher (6.“D. Francisco, tu nã falas nem te viras para mim”, BF/71 Ferré (1982) 168 ) faça sentido, há uma sequência implícita: # O homem não inicia uma relação sexual. Sequência III – O cair da máscara 1) Suporte significante directo: (a) – Perguntas/respostas intercaladas 7. “- Tu que tens, ó Francisco? Dantes não era assim. 8. Já deu meia-noite em ponto sem te virares para mim. 9. Se temes os meus filhinhos, meus filhinhos são por ti. 10. - Não temo os teus filhinhos, que alguns serão de mim. 11. - Se temes os meus criados, meus criados são por ti. 12. - Não temas os teus criados, porque andam pagos por mim, 13. - Se temes o meu marido, meu marido não está aqui; 14. as balas por lá o matem, que não volte mais aqui. 15. - Cala-te, ó fera traidora, teu marido vê-lo aqui.” BF/93 Fontes I (1987) 351-352 (b) - Perguntas/respostas em série 7. “Era meia-noite em ponto sem se virar para mim. 8. - Ó tu tens amores novos, ó tu desgostas de mim? 9. tens medo aos meus criados? Meus criados são por mim, 10. Ó tens medo ao teu marido, qu'inda se lá está para o Brasil? 11. Tantas novas haja dele que nunca mais torne a vir. 12.- Nem tenho medo aos teus criados, também já foram de mim; 13. nem tenho medo à justiça, que a justiça é por mim; 14. nem tenho medo ao teu marido, que o tens ao par de ti.” BF/94 Fontes I (1987) 352-353 228 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Esta sequência é constituída por três segmentos sequenciais, evoluindo desde o expressar da estranheza da mulher a respeito da passividade do “amante” (1º segmento) até ao desvendar da verdadeira identidade deste (3º segmento), que afinal é o próprio marido, podendo qualquer dos segmentos, nas versões, ser mais sucinta ou alongar-se narrativamente pelo jogo de perguntas/respostas (2º segmento sequencial) que configura o núcleo fulcral do romance e que é o desfazer da mistificação. O 1º segmento pode ser enunciado por interpelação directa, como em (a) ou narrativamente, como em (b), e o 2º pode decorrer intercaladamente, como em (a), ou a série dos “não temas” ser enumerada de uma só vez, a que ele responde da mesma forma, como em (b). 2) Suporte significante indirecto: A primeira indicação de que algo está errado numa situação em que dois presumíveis amantes se encontram já deitados reside na pergunta da mulher sobre o que se passa com o homem, a qual subentende uma passividade sexual, muitas vezes eufemisticamente expresso pelos termos “virar para”: 7. “Que tens, Bernardo Francês, que te não viras para mim?” BF/29 Joaquim Lima/Pires Lima (1943) 38-39 O espaço de tempo decorrido sem que o “amante” demonstre o comportamento amoroso que dele se espera, chega a ser especificado: 10.“- Que tendes, Bernardo Francês, que tanto pensas em ti, 11. que meia hora é passada e sem te virares para mim?” BF/8 Pires (1885g) XXI A observação da mulher, em algumas versões, é alongada com uma outra, que implicita que o homem tivera um comportamento bem diferente noutras ocasiões; se já anteriormente se havia pressuposto um relacionamento amoroso prévio, percebe-se 229 A REVELAÇÃO DO SENTIDO agora (em sublinhado nosso) que este não é o primeiro encontro nem a relação é platónica: 9.“- Que é isso, Bernardo Francês ? Da outra vez não era assim!” BF/49 Leite (1960) 511-512 Noutras versões, é ainda mais evidente a continuidade e a intensidade de tais amores: 11.“Estas mais noites passadas não me deixavas dormir, 12. Com beijinhos e abraços, eram mais de trinta mil” BF/44 Leite (1958) 415-416 5. “Tu que tens ó D. Francisco, dantes num eras assim,” BF/96 Galhoz (1987) 281- 282 María Teresa Ruiz, em artigo sobre Bernal Francês e com base em sessenta e uma versões das tradições espanhola e hispanoamericana, entende dividir o romance em variantes segundo o tipo de adultério, que cataloga em distintos níveis (efectivo ou explícito, implícito, falhado ou hipotético). A autora faz depender o tipo de adultério da temporalidade em que a forma de expressão se associa, efectivo se no pretérito (dá como exemplo o verso “Yoy soy aquel don Francisco con usted solía dormir”) e implícito se no presente (“que soy aquel don Francisco a quien tú sueles abrir”); nesta tipologia, associando-o ao tempo presente, coloca ainda como “fallido” o adultério que não chega a realizar-se, visto que o marido se dá a conhecer507. É a presença nesta sequência de versos deste género que legitima a pressuposição de um adultério anterior, embora se dê um curioso paradoxo. Os versos acima são a confirmação da infracção já cometida, mas, neste momento narrativo, o adultério é 507 Cf. María Teresa Ruiz [2005], “Bernal Francés: romance de adulterio fallido”, Acta Poetica 26 (1-2), Primavera-Otoño, 2005, disponível na Internet em http//:132.248.101.214/html-docs/acta-poetica/26-12/261.pdf, arquivo acedido em 20 de Dezembro de 2009. A autora retoma uma tipologia sobre a infidelidade delineada na sua tese de doutoramento La infidelidade en el romancero (México, UNAM, 2004), que não pudemos consultar. 230 A REVELAÇÃO DO SENTIDO apenas moral, visto que, tecnicamente, não é cometido, tanto porque a relação não é consumada, o que está implícito no teor daqueles, como porque o homem, de facto, é o marido. O facto é que a mulher está convencida de ter o amante deitado consigo e as perguntas especulativas que a seguir vai fazendo destinam-se a tentar perceber a razão de tal indiferença, seja ter ele outra ou ter ela sido difamada: 12.“ou tendes dama em França, a quem querais mais que a mim?” BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204 8.“Conta-me cá, D. Francesco, disseram-te mal de mim?” BF/6 Azevedo (1880) 145-150 Visto que as respostas dele lhe asseguram que não se trata de tal, a mulher, então, alonga-se numa série de especulações de possíveis temores do homem, apresentando as respectivas razões para o tranquilizar (“se temes a [filhos, pais, criados…]”, “não [os] temas”). Uma vez que ela, efectivamente, procura inteirar-se do que lhe provoca tal passividade, esta série equivale a uma interrogativa indirecta, razão pela qual se torna um jogo de perguntas/respostas. A cada possibilidade apresentada, o homem vai dando sempre uma justificação no sentido de que nada pode temer e as respostas aludem implicitamente ao facto de ser o senhor natural da casa: 14. “Não tenhas medo aos teus criados, qu'os teus criados são de mim;” BF/81 Fontes I (1987) 341-342 10. “- Não tenho medo às aias, que elas também são de mim.” BF/116 Alves Ferreira (1999) 117-119 Alude, igualmente, à sua própria identidade (no exemplo abaixo “quasi pai” é, obviamente, o sogro): 17.“Nã me temo de teu pai, quasi pai ele é de mim.”, BF/5 Azevedo (1880) 141-145 231 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Dada a componente fortemente dialógica dos romances, é neste jogo de perguntas/respostas que se encontra implícita a informação não narrada. De tal jogo afirma L. Spitzer: "el juego de preguntas y respuestas es algo esencial en los romances españoles, y no solamente en cuanto a la técnica, sino en cuanto al ritmo de pensamiento, que presenta un estado de alma compuesto de elementos contradictorios... como si las fuerzas contrarias hubieran adquirido voces y viviesen su debate bajo la forma de la palabra... diálogos polémicos originados en acciones anteriores y antecedentes, a su vez, de nuevas acciones."508. Em outros romances de mulheres adúlteras, nomeadamente Frei João, O Gato do Convento e Claralinda, há também uma série de perguntas/respostas, mas que, nestes casos, representam uma espécie de teste feito pelo marido e que as respectivas protagonistas tentarão vencer com respostas astuciosas, pelo que se pode dizer que, neles, a “máscara” que o jogo faz cair é a de “mulher virtuosa”. Sobre as várias baladas europeias nas quais a mulher adúltera usa a palavra para esconder a culpa, diz Louise O. Vasvári: “The narrative core of the ballad is a reiterative ‘testing dialogue’, in which the husband questions his wife about the signs of her infidelity and through a smokescreen of cunning semiotic ruses she attempts to manipulate all the signs of her guilt by relocating them in a new context created entirely by her parole feminine” 509. Em Bernal Francês, a “máscara” é a do amante, construída pelo marido510 e aqui, no jogo perguntas/respostas, as perguntas não constituem um teste à mulher, pois quem as faz é ela, que nem desconfia com quem está falando, tratando-se antes de uma preocupação genuína com o comportamento dele. O seu teor é que vai confirmar o 508 Cf. L. Spitzer, "Notas sobre romances españoles", Revista de Filología Hispánica XXII (1935), 153174, p. 163, apud Susana Weich-Shahak [2006], Observaciones sobre el romancero sefardí de tradición oral - motivos míticos y foco temático, Nota 8 a La partida del esposo (á) (CMP I6), em http//: parnaseo.uv.es.Lemir/Revista, 22 de Novembro de 2006. 509 Cf. Louise O. Vasvári, “Cunningly Lingual Wifes in European Ballad Tradition”, Destiempos, México, Distrito Federal, Julio-Agosto 2008, Año 3, Número 15, em http://www.destiempos.com/n15/vasvari1.pdf, arquivo acedido na Internet em 12 de Fevereiro de 2009. 510 O motivo da “máscara” em Bernal Francês será retomado no Capítulo II. 232 A REVELAÇÃO DO SENTIDO adultério ao marido, ao mesmo tempo que o faz ao ouvinte-leitor, externamente à intriga. O jogo perguntas/respostas torna-se aqui uma armadilha bem mais subtil do que a dos outros romances, visto que o teste, em Bernal Francês, é indirectamente feito pelo marido, ao deixá-la ir enredando-se nas próprias perguntas, que a denunciam. As respostas do marido vão, também interna e externamente e de forma mais ou menos velada, sugerindo a sua identidade, mas a mulher não compreende tais alusões e indícios. Da adúltera de Bernal Francês, em contraste com as dos outros romances, dirse-ia que “pela boca morre o peixe”, uma vez que insiste em perguntas que não fazem senão confirmar que tem um amante. Não percebendo que as respostas que o marido lhe vai dando indiciam quem está, na realidade, deitado com ela, parece pouco astuciosa no seu próprio jogo. Só em alguns casos, e já na sequência seguinte, pretende enganá-lo, dizendo ter tido um sonho. Na última das perguntas ao “amante”, ou seja, se teme o marido, a mulher alega que tal receio não se justifica, porque ele está longe de casa; esta informação só agora é dada explicitamente e embora haja uma certa variação nos locais onde aquele se encontrará, infere-se, em qualquer dos casos, que já está ausente há muito tempo. 11.”Se tens medo ao meu marido, meu marido está no Brasil, 12. As novas que venham dele sejam nunca mais cá vir.” BF/98 Galhoz (1987) 283 As pragas que lhe roga pragas parecem ser a gota de água que faz transbordar a taça e, finalmente, o suposto amante revela que é o marido; este desvendar da identidade constitui o culminar da tensão dramática e uma evolução na narrativa, pelo que se seguirá o desfecho do romance, na sequência seguinte. 233 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência IV – A punição 1) Suporte significante directo: (a): 18.“Deixa vir a manhana, que eu te darei de vestir: 19.darei-te saia de grana colete de carmesim. 20. gargantilha de cutelo, pois o quiseste assim.” BF/13 Pedroso (1902) 463-464 (b): 20.“- Dá-me a morte, meu marido, dá-me a morte agora aqui, 21. dá-me a morte, meu marido, também sei que a mereci. 22. - Deixa lá vir a manhã que eu te darei de vestir, 23. darei-te saias de holandia e roupinhas de camirim” BF/102 Ana Martins/Ferré (1988) 71-72 (c): 23.“- Ai que sonho, feio sonho, eu sonhei agora aqui, 24.'inda bem que és meu marido, mais te quero do qu' a mim.” 25.Ergamo-nos já da cama, deixa-me vestir daí. 26.- Cal'-te lá, mulher treidora, que não me inganas assim, 27.antes do nacer do sol, eu te visto de cetim, 28.gargantilha de corais, que hão-de sair de ti.” BF/5 Azevedo (1880) 141-145 (c.1.): 21. “- Perdoai-me, ó meu marido, isto foi sonho que sonhei. 22. - Deixai vós amanhecer, levarás saia de malha 23. e gargantilha colorada quando por amor de ti,” BF/110 Falcão/Ferré/Morna (1988) 222 Na última sequência de Bernal Francês, o suporte significante directo limita-se ao anúncio feito pelo marido de que, pela madrugada, dará certos objectos à mulher (a). Em alguns casos, a mulher, ainda antes disso, pede a morte (b) como coisa merecida ou tenta desculpar-se, dizendo ter tido um sonho (c) e, nalguns casos, pedindo perdão (c.1.). 234 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2) Suporte significante indirecto: O desfecho deste romance é a morte da mulher, mas, de facto, a narrativa omite a sua concretização explícita, pelo que o sentido da sequência reside em suportes significantes indirectos. Por um lado, a axiologia implícita511 implica-o, uma vez que este tipo de desenlace fatal faz parte da “ordem natural das coisas”, dependente como é do pressuposto de que, numa sociedade conservadoramente organizada, a morte é o castigo do adultério. Por outro lado, não sendo a execução discursivamente explícita, é comunicada de modo implícito, pois o marido, empregando o futuro do indicativo, anuncia à adúltera512 a oferta de alguns objectos (peças de vestuário, gargantilhas e similares) de cor vermelha e estes constituem uma metáfora, a da morte sangrenta que a mulher vai sofrer de madrugada513. O seu referente é tão claro que ela logo o entende como a implicação inevitável daquilo que fez. Chega mesmo a pedir a morte como coisa merecida (b), se bem que possa tentar protelá-la: 16.“- Antes de morrer, deixai-me a Sã Gil uma vez ir; 17. lá me estão já pai e mãe, deles quero me espedir” BF/6 Azevedo (1880) 145-150 Outras vezes, pelo contrário, parece querer acabar rapidamente com o sofrimento de esperar que chegue a alvorada514: 24.“- Ó lua, que vas tão alta, que não quer amanhecer, 25. para esta triste coitada acabar de padecer.” BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204 511 Cf. na Parte I, o Capítulo IV - Para uma perspectiva axiológica dos romances. Com algumas excepções em que exprime a intenção de a devolver a casa do pai. 513 No Capítulo II. Os Motivos na Revelação do Sentido, tornaremos a abordar as questões do sentido metafórico dos objectos prometidos e do protelamento da morte para a manhã seguinte. 514 A invocação à lua ocorre em várias outras versões, de origem açoriana, como as BF/9 Braga (18871889) 105-107, BF/58 Fontes (1979) 113-114, BF/73 Fontes (1983a) 89-90, BF/74 Fontes (1983 a) 90-91, BF/76 Fontes (1983a) 92-9, BF/77 Fontes (1983 b) 78-79, BF/78 Fontes (1983 b) 79-80, BF/101 Galhoz (1987) 290-291. 512 235 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Alternativamente a esta aceitação imediata, ela tenta ainda salvar-se, dizendo que tudo não passava de um sonho e tentando assim induzi-lo a crer na inexistência do adultério. Acontece o “sonho” tome o sentido de “desvario” e ela, invocando-o, rogue a morte (a) ou o perdão (b) : (a): 17.”- Matai-me, senhor, matai-me, que isto foi sonho que eu sonhei.” BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 (b):10.”- Ai! Perdoa-me, meu marido, foi um sonho que eu sonhi 11. Malvado este meu sonho, que a morte me causa a mim.” BF/108 Anastácio (1988) 61 Casos há em que demonstra mais sagacidade que anteriormente e faz-se desentendida, perguntando ao marido que prenda lhe traz: 22.“Oh que sonho seria este, que agora sonhei aqui? 23. Se tu és o meu marido, que me trazes para mim?” BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208 Outras vezes, diz-lhe que é a ele que ama (a) ou chama-lhe “maridinho” (b), a querer talvez aplacar-lhe a ira515: (a): 22”- Se tu és o meu marido, eu te quero mais que a mim.” BF/9 Braga (1887-1889) 105-107 (b): 15.” Cala, cala, maridinho, qu'isto é o modo d'eu sonhare.” BF/87 Fontes I (1987) 346 Deste modo, há na intriga narrada apenas uma promessa/ameaça de morte à adúltera, que se pressupõe seja actualizada, mas a nível da fábula, na qual a execução está implicada. 515 Nas versões, podem ocorrer as várias situações em simultâneo, o que indica que ela pode tentar defender-se, mas acabar por aceitar o inevitável. Ver Anexos. Grupo B - B.4. BERNAL FRANCÊS Desculpas (Sonho – Prenda) ou aceitação. 236 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1.2. VENENO DE MORIANA Este romance centra-se, dramaticamente, no envenenamento de um homem por uma mulher. Desenhada a acção quase inteiramente na forma dialogada, a intriga decorre num espaço temporal muito curto, que medeia entre a chegada de um cavaleiro junto de uma jovem e a turvação dos sentidos que aquele experimenta logo após beber um copo de vinho que esta lhe oferece. Ainda que tal enredo seja muito simples, as razões do incidente não são igualmente explicitadas nos dois tipos que propomos (A e B), que apresentam divergências de estruturação. Como este é um ponto importante na revelação do sentido do romance, analisaremos alternadamente os suportes significantes directos e indirectos dos dois tipos. Tipo A - As sequências iniciais Sequências I, II e III: Nas versões do Tipo A, qualquer das três primeiras sequências que definimos para este tipo estrutural de Veneno de Moriana e que correspondem às situações a), b) e c), pode ocorrer como abertura, cada uma delas suportada, logicamente, pelo respectivo suporte significante directo. (a) Sequência I - Diálogo mãe/filha: Dá-se um diálogo entre mãe e filha, na modalidade pergunta/resposta, apresentando uma determinada situação: a filha está a chorar e a mãe pergunta porquê. (b) Sequência II - Anúncio da chegada do cavaleiro: Normalmente constituída por um único verso, a sequência anuncia a chegada de um homem montado a cavalo. (c) Confirmação do casamento – Sequência III: Um diálogo é iniciada pela pergunta de Moriana a “D. Jorge” sobre se é verdade que vai casar, seguindo237 A REVELAÇÃO DO SENTIDO se a confirmação deste e o convite para o casamento; por vezes o diálogo é precedido de um outro, de saudação entre os dois intervenientes. As modalidades de abertura e os respectivos suportes são: 1) Suportes significantes directos: Versão iniciada com a sequência I, seguida das sequências II e III VM/76 Fontes (1982) 88-89 Suporte significante directo I 1. - “Tu que tens, ó Juliana, qu'andas tão triste a chorare? 2. - É o D. Jorge, ó minha mãe, ele com outra vai casar. 3. - Bem t'avisei, minha filha, não me quisestes ouvir, 4. qu'o D. Jorge tem por hábito das meninas iludir. II Suporte significante directo 5. - Anda, lá vem no meu D. Jorge montado no seu cavalo. Suporte significante directo III 6. - Como estás, ó Juliana? Como estás, como tens passado? 7. - Hoje mesmo foi que eu soube que andavas p'ra te casar. 8. - É verdade, ó Juliana, que te venho convidar.” Versão iniciada com a sequência II, seguida da III VM/153 Fontes I (1987) 388 II Suporte significante directo 1. Lá abaixo vem o D. Jorge no seu cavalo montado. 238 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Suporte significante directo III 2.- Deus te guarde, ó Juliana, no teu país assentada. 3.- Ouvi dizer, ó D. Jorge, que andavas para te casare. 4. - É verdade, ó Juliana, que te venho a convidare. Versão iniciada com a sequência III VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115 Suporte significante directo (com saudação mútua) III 1. - Deus te salve, Laureana, costurando teu bordado. 2. - Deus te salve, Leonardo, em teu cavalo montado. 3. Já cá me chegou a nova que te havias casado. 4. - Quem te disse não mentiu, mas foi talvez apressado, 5. já se passaram escritos, vai-se passar o mandado. 2) Suportes significantes indirectos: A honra é o suporte significante indirecto que sustenta o sentido deste romance, no que diz respeito a ambos os protagonistas, perdida por Moriana “enganada”, mas também pelo cavaleiro incumpridor; este binómio vai provocar uma outra infracção, a do assassínio. (a) Sequência I - Diálogo mãe/filha A sequência do diálogo mãe/filha, presente apenas no Tipo A, constitui, segundo Ferré da Ponte, uma ”estratégia dramatizadora” introduzida para reforçar o carácter “donjuanesco” do cavaleiro 516 , pelo que actua como prólogo destinado a explicitar a razão de ser da intriga. No caso de este diálogo ocorrer como abertura, que é também 516 Cf. Ponte [1987], p. 106. 239 A REVELAÇÃO DO SENTIDO uma indicação cénica - uma jovem está a chorar -, a observação da mãe dá a conhecer que a atitude de tristeza da filha não é pontual mas prolongada no tempo (1.“- Tu que tens, Juliana? Passas a vida a chorar.”, VM/17 Leite (1960) 108-109). A resposta da filha à pergunta faz saber que um tal “D. Jorge” vai casar e que o choro é a consequência desse facto. A abertura com a sequência I destina-se, pois, a informar desse casamento e a dar conta dos sentimentos de Moriana em relação a isso. O ouvinte/leitor, como ser social, reconhece uma implícita manifestação de ciúme na tristeza de uma jovem por tal razão517. O ciúme, contudo, não é a única causa do seu choro, o que se saberá pela implicação contida, no decorrer do diálogo, na referência feita pela mãe aos seus próprios avisos anteriores (“eu bem te dizia…”) sobre o costume de D. Jorge “enganar” donzelas: 3.“- Bem te disse, Juliana, não quisest'acraditar: 4. João Jorge tem por costume de toda a moça enganar;” VM/18 Leite (1960) 109 Este factor informativo faz subentender que, tal como as outras “moças”, também a filha foi “enganada”, o que significa ter sido seduzida com promessas de casamento, pelo que se entende que, ao ciúme (a que D. Jorge, em verdade, poderia ser alheio, tratando-se acaso de uma não correspondida paixão de Moriana), se junta a desilusão. Neste caso, haverá que considerar a existência de uma sequência implícita: # - D. Jorge tinha prometido casamento a Moriana. 517 Também em uma versão galega, a filha responde à mãe, explicitamente, que chora “por don Xorxe”: “- O que tês, o Xuliana, que estas disposta a chorar? - Miña nai, é por don Xorxe que con outra vai casar”. Versão 0172:43, ficha nº: 801, com a indicação: “Loureiro (parr. Santiago de Loureiro, ay. Cotobad, ant. Puente Caldolas, p.j. Pontevedra, Pontevedra, España). Recogida 00/00/1946. Publicada en Fraguas Fraguas 1946, "Dous romances de Galicia", Revista de Guimarães, p. 117. Reeditada en Carré Alvarellos 1959, Romanceiro popular galego de tradizon oral, p. 133, nº 46. 024 hemist. Música registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. O diálogo mãe/filha ocorre em versões portuguesas e brasileiras e nesta galega, a avaliar por aquela base de dados. 240 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A inconstância amorosa do protagonista comprovar-se-á ao considerarmos igualmente outras tradições que não apenas a portuguesa, como é o caso da versão argelina, mas que ocorre igualmente em versões de Tânger, Tetuan e Larache (Marrocos)518: “Siete amigas tiene Bueso, que siete amigas tenía, y a todas las iba a ver día de Pascua florida, 519 si no era Moriana, que se le olvidaria.” (b) Sequência II - Anúncio da chegada do cavaleiro O conteúdo narrativo desta sequência não parece, à primeira vista, servir muito para o desenvolvimento da intriga, em especial se constituída por um único verso, como no exemplo acima dado, ou mesmo no caso abaixo: 1. “- Lá vem o Jorge, lá vem no seu cavalo montado, 2. Visitar a Luciana no seu palácio sentada.” VM/201 Carvalho Rodrigues (1990) 220 No entanto, na sua extrema condensação, a sequência é portadora de informações pertinentes para o sentido do romance, assumindo também aspectos diferentes consoante a sua posição na abertura da versão. Se esta for a primeira sequência da versão, ela terá, antes de mais, uma função formulária, pela expressão “lá vem”, que denota a situação espacial dos protagonistas – um homem a cavalo é avistado a aproximar-se pela mulher que se encontra no limiar da casa. No caso de a aproximação desse homem ser anunciada durante o diálogo Moriana/mãe, a sequência II tem, também, a função de “dizer” ao ouvinte que alguém vai entrar em cena e, consequentemente, de anunciar uma evolução na intriga. 518 Cf. Versões de Veneno de Moriana em Proyecto del Romancero pan-hispánico. 519 Versão 0172:64, ficha nº: 9018, de Orán (Argelia), com a indicação: “Recitada por la señora de Coriat y Esther Coriat y Camila de Levy. Recogida en Buenos Aires, Argentina por Paul Bénichou, (Colec.: Bénichou, P.). Publicada en Bénichou 1946, nº XXXV, pp. 97-9. Reeditada en Bénichou 1968b, pp. 156159. 054 hemist. Música registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. 241 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Internamente a esta, se ainda no interior desse diálogo (1.“- Minha mãe, lá vem D. Jorge no seu cavalo montado”, VM/7 Martins (1928)/Martins (1987) 251-252), a função da declaração de Moriana seria a induzir a mãe a afastar-se, presumivelmente para a jovem poder envenenar o cavaleiro sem testemunhas; não sendo difícil de deduzir que “D. Jorge” não agrada à mãe, Moriana saberia que o simples anúncio da sua chegada a levaria a afastar-se. Parece-nos ser esta a razão, pois presumindo-se que também a mãe teria visto o cavaleiro, a relevância da informação dada por Moriana perder-se-ia. Notese, no entanto, que, por se tratar de um terceiro protagonista, deverá sempre ter lugar a saída de cena da mãe, para que se cumpra a já citada “Lei de Dois em Cena”, segundo Axel Olrik. Outra função da sequência, é revelar, desde logo, o estatuto social elevado da personagem masculina, uma vez que o nome deste homem é geralmente precedido pelo honorífico “Dom” (equivalendo, em termos de estatuto, ao “cavaleiro” no Tipo B) e nesta condição estão implícitos valores e deveres que se inferirá, posteriormente, terem sido transgredidos520. Também questão de peso no sentido é a própria expressão “[lá] vem”, que indica claramente que o cavaleiro se dirige à casa de Moriana e não deve ir a passar ao longe e por acaso. Assim, surgem versões que alongam a sequência com um verso que não só explica o motivo presumido da visita (vai escarnecer dela) como, no comentário do segundo hemistíquio, introduzem o que é, pragmaticamente, reconhecível como uma ameaça, que se confirmará no seguimento da intriga: 1.”- Lá baixo vem o D. Jorge, montado no seu cavalo, 2. veio escarnecer de mim, mas ele vem enganado.” VM/106 Ferré (1987a) 50-51 520 Cf. Capítulo IV - Para uma perspectiva axiológica nos romances, na Parte I. Voltar-se-á, adiante, a este aspecto, nesta Parte II , no Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido. 242 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (c) Sequência III - A confirmação do casamento Quando, nas versões, a sequência I precede a III, haverá uma maior compreensão das razões do acto que se segue, mas no caso de a sequência de abertura ser o diálogo Moriana/D. Jorge, portanto sem o diálogo com a mãe, não existe a informação prévia fornecida por este (Moriana está triste, porque D. Jorge vai casar), pelo que não se estabelece logo a relação causa/efeito que corresponde a “expectativas goradas de casamento > envenenamento”. Note-se que em outros casos que não contêm o diálogo mãe/filha mas o de Moriana/cavaleiro, esta relação causal é mais clara. A abertura com o diálogo Moriana/D. Jorge torna-se então um caso de implícito extratextual em relação às já citadas circunstâncias anteriores, com a inferência das razões do assassinato a ser adiada para o final, em geral nos comentários de Moriana às lamentações de D. Jorge. O grau de encatalisação será, pois, mais elevado com a ausência da Sequência I. Na sequência III, se em modo de abertura, está implícito que Moriana já sabia antecipadamente do casamento, uma vez que declara que “ouviu dizer”; logo, o que pretende é confirmar521 (a) e ele assim o faz (b): (a): 3.“ Cá me vieram dizer que vós estáveis para vos casar.”, VM/21 Leite (1960) 111 7. “- Tu vens aí, ó João Jorge? Dizem que te vais casar...”, VM/18 Leite (1960) 109 (b): 4. “- Quem vo-lo disse, senhora, falou-vos muito a verdade; 5. Amanhã, por essa hora, se me quereis acompanhar.” VM/21 Leite (1960) 111 ” 5. - Quem te disse isso, Celeste, que não te quis enganar. 6. Venho-te dar a saber que amanhã irei casar.” VM/242 Firmino (1996) 129 521 Este detalhe aparece também no que foi a Jugoslávia: “Mi an dichu, il Dumbueso, qui vus quiréx casar”.Versão 0172:66 ficha nº: 9020, com a indicação:”Versión de Monastir (Yugoslavia). Recogida por Max A. Luria, 00/07/1927 publicada en Armistead 1975,"Rare Judeo-Spanish Ballads from Monastir (Yugoslavia), collected by Max A. Luria", The American Sephardi), 7-8 (1975-76), pp. 227-228 (nº 14). 059 hemist. Música no registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. 243 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Percebe-se agora que “D. Jorge” andará a fazer convites para o casamento, como compete a um noivo em certas zonas rurais, de acordo com Silva Picão: “Oito dias antes da boda, o noivo tem de passar pelo incómodo de ir pessoalmente avisar os padrinhos, o pároco e os convidados, do dia e hora em que tenciona casar. Aos convidados, é da praxe, repetir-lhes que conta com eles, que não lhe faltem a acompanhá-lo, que leva muito em gosto que tomem parte no ajuntamento, etc.”. 522 O detalhe é explícito noutras tradições, como esta, jugoslava (a) ou a seguinte, leonesa (b): (a): “Dispusadu istá Dumbueso qui si queríe casar 523 a primus y a parientis d` oy va ir a cumbidar” (b): “Madrugaba don Alonso dos horas el sol salido, para invitar a su boda a los parientes y amigos; a las puertas de Mariana paraba el su rocino: - Buenos días, Mariana. - Don Alonso, bienvenido. - Vengo a brindarte, Moriana, para mi boda el domingo”524 Moriana estará, pois, no rol dos convidados e será essa a razão pela qual o cavaleiro vem a casa dela, tanto mais que, como a sequência II indica, se aproxima deliberadamente, o que se torna bem explícito no excerto da versão leonesa e neste exemplo: 8. “ - É verdade, ó Juliana, venho-te cá convidar.”, VM/18 Leite (1960) 109 O que já não se sabe com certezas é se a visita é “inocente”, ou seja, se não haverá qualquer compromisso anterior e é apenas Moriana que está apaixonada por D. Jorge, sem que este o saiba, ou se a visita é “provocatória”, isto havendo a presunção de 522 Cf. José da Silva Picão [1983], Através dos Campos. Usos e costumes agrícola-alentejanos (concelho de Elvas), Lisboa, D. Quixote, 1983, p. 177. 523 Versão atrás referenciada, de Monastir. 524 Versão 0172:4, ficha nº: 828, com a indicação: “ Versión de Cabornera (ay. La Pola de Gordón, p.j. León, ant. La Vecilla, comc. Gordón, León, España). Recitada por Prudencia Flecha Mieres (65a) y Manuel Morán Flecha (45a). Recogida por Diego Catalán, Teresa Catarella, Flor Salazar y Jane Yokoyama, 17/07/1977 (Archivo: ASOR; Colec.: Encuesta NORTE 77; cinta: `Cabornera-Noceda` A9). Publicada en AIER 2 (1982), nº 53:1, pp. 63-64, y TOL I 1991, pp. 229-230. 036 hemist. Música registrada.” Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. 244 A REVELAÇÃO DO SENTIDO compromisso, não se importando “D. Jorge” com os sentimentos dela. A segunda hipótese é mais credível, dado o teor do diálogo mãe/filha que indicia as expectativas de Moriana, mais tarde confirmadas quando há um Prolongamento, ou na versão espanhola: “Las tus bodas, don Alonso, yo entendí que eran conmigo”525. De qualquer forma, numa perspectiva de interpretação psicológica, a confirmação do casamento de D. Jorge explicaria a rápida passagem do estado de tristeza de Moriana para o desejo de vingança e, logo, para a sua concretização. Tipo B: Sequência I – O convite 1) Suporte significante directo: 1.“- Apeia-te, ó cavaleiro, são horas de merendar” VM/10 Leite (1960) 104 O suporte significante directo da sequência inicial deste Tipo consiste em um único verso, que, na realidade, dirige dois convites por alguém não identificado a um cavaleiro – que se apeie e que merende. 2) Suporte significante indirecto: No Tipo A, como atrás vimos, os suportes significantes directos que são as sequências iniciais (I, II e III) contêm informação suficiente para se ir compreendendo a razão do acto que Moriana praticará na sequência IV (o envenenamento de D. Jorge), que implicará determinado desfecho (a morte daquele); o despeito de saber que D. Jorge vai casar com outra e a implicação de um compromisso anterior com ela própria são factores dados a conhecer logo de início. 525 Versão 0172:6, ficha nº: 830, com a indicação: “Versión de Puebla de Lillo (ay. Puebla de Lillo, ant. Lillo, p.j. Cistierna, ant. Riaño, comc. Riaño-La Reina, León, España). Recitada por María Díaz. Recogida por Matías Martínez Burgos, 25/07/1910 (fecha deducida) (Archivo: AMP; Colec.: María Goyri-Ramón Menéndez Pidal). Publicada en TOL I 1991, p. 231. 022 hemist. Música registrada”. Cf Proyecto del Romancero pan-hispánico. 245 A REVELAÇÃO DO SENTIDO No Tipo B, pelo contrário, o característico incipit do Tipo B (“- Apeia-te, ó cavaleiro, são horas de merendar” ou semelhante) e que constitui a sua sequência inicial, não possui elementos que permitam pressupor quaisquer circunstâncias anteriores ao diálogo, nem, tampouco, saber a identidade de quem faz a interpelação; há apenas, antecedendo esta curta sequência, uma pressuposição lógica, que corresponde ao verso mais comum no outro tipo “Lá vem o D. Jorge” e similares: # Alguém vê que um cavaleiro se aproxima Deste modo, toma-se apenas conhecimento, através deste verso, de que alguém convida um cavaleiro que se aproxima a apear-se e merendar, num acto que aparenta ser de pura cortesia. Segue-se outro implícito lógico (# - o cavaleiro desmonta e aproxima-se) e a inferência de que este aceita. Todo o resto, ou seja, uma explicação para o envenenamento, que neste tipo é explícito, dependerá do conhecimento do outro tipo, ainda que com restrições. De facto, sem o diálogo mãe/filha do Tipo A, que justifica que Moriana envenena o homem porque este a traiu, o ouvinte/leitor, no fim da enunciação, fica predisposto a crer num acto gratuito de maldade da jovem, pelo que o cavaleiro aparenta ser vítima sem culpas e ela uma mera assassina. Sequência IV do Tipo A e Sequência II do Tipo B – A oferta do vinho 1) Suporte significante directo: Tipo A Tipo B 6.“Espere, D. Jorge, espere, que eu vou ao 2.“- Que tens ó dona Eugénia guardado p'ra [sobrado 7.Buscar um copo de vinho que p'rò senhor [me dar? 3.- Tenho vinho de há sete anos, para te dar a [tenho guardado.” [provar. 4.- Deita cá um copo dele, que me quero [refrescar.” VM/17 Leite (1960) 108-109 VM/6 Martins (1928)/Martins (1987) 197 246 A REVELAÇÃO DO SENTIDO No Tipo A, Moriana diz a D. Jorge que espere enquanto vai buscar um copo de vinho, que para ele tem guardado. No Tipo B, uma vez que lhe foi feito um convite explícito para merendar, é o cavaleiro pergunta em que consiste essa oferta; Moriana responde ter um copo de vinho (“há sete anos”) guardado para ele. O cavaleiro pede então que lho dê a provar. 2) Suporte significante indirecto: Os suportes significantes directos destas sequências equivalem-se, em termos de funcionalidade de intriga, mas o mesmo não se aplica inteiramente aos suportes significantes indirectos dos tipos A e B. Em ambos, a oferta do vinho representa uma armadilha a D. Jorge/cavaleiro, mas este sentido apenas se confirma na sequência posterior, quando se saberá que ele se sente mal depois de beber; na verdade, só no tipo B se há-de explicitar que a bebida estava envenenada, enquanto no tipo A, o mal-estar do cavaleiro permanece inexplicado; deste modo, o suporte significante indirecto da sequência IV, no tipo A, reside no suporte significante directo (sequência III) do outro tipo, o que significa que são interdependentes526. Acontece que Moriana diga ao cavaleiro, explicitamente, o que pretende fazer: 1.“- Assuba, D. João, assuba p’a descançar, 2. que eu vou ao jardim de meu pai, ervas vir vou-l’apanhar, 3. daquelas mais venenosas pr’a no vinho le deitar.” VM/43 Fontes (1979) 126 Todavia, os versos 2 e 3 poderiam constituir um aparte da protagonista em exclusivo benefício do auditório, interpretação possível pelo sistema português de cortesia, pois o emprego da 3ª pessoa propicia a ambiguidade; as expressões “voul’apanhar”/”no vinho le deitar” poderão referir-se “a vós” ou “a ele”. Em qualquer dos casos, fica o leitor/ouvinte ciente do que se vai passar, anulando-se o efeito dramático 526 Vimos, atrás, que há versões que apresentam versos dos dois tipos (A+B), o que comprova que a revelação do sentido é interdependente. 247 A REVELAÇÃO DO SENTIDO final. O seu interlocutor é que não parece ter ouvido, pois bebeu o tal vinho, como se depreende pelo seguimento (4.“- O que me deste, Diana, deste cálix do bom vinho?”) Há ainda outros implícitos a considerar nos dois tipos; no Tipo B, pressupõe-se que Moriana já tinha envenenado o vinho quando o cavaleiro chega, pois lho dá imediatamente, o que subentende uma premeditação. Na versão abaixo, ela não só especifica os ingredientes como a sua preparação, com o facto de o “rosalgar” ser sido “bem fervido”, a revelar que gastou tempo e cuidado prévios na mistura: 8.”- Deitei-lhe sangue de cobra, o do lagarto moído. 9. entre o meio disso tudo, o rosalgar bem fervido.” VM/52 Caufriez (1998) 133 A premeditação, não sendo tão clara no Tipo A, é explícita em certos casos: 13.”- Tu bebeste, Leonardo, um copo de rosalgar, 14. Que eu já tinha preparado, que te dei p'ra te matar,” VM/95 Cortes-Rodrigues (1987) 259-260 Noutra versões, embora diga ter um vinho “guardado” para ele, Moriana pede ao cavaleiro que “espere” enquanto o vai buscar, o que pode sugerir que, se bem que possa ter ponderado a questão, só nesse momento se decide e envenena a bebida. Na versão argelina abaixo527, esta situação é muito clara: “Como esso oyó Moriana, fuese al vergel de su padre, cortara siete hojitas de aquel fino solimanes; majólas y bien majólas, y en el vino las fue a echare y al caballero don Bueso se lo fuera a convidare” Outras vezes, mais parece um impulso ditado pela raiva que a assola ao confirmar a “traição”; na versão leonesa adiante, Moriana, logo após declarar julgar 527 Versão 0172:64, ficha nº: 9018), com a indicação: “Versión de Orán (Argelia). Recitada por la señora de Coriat y Esther Coriat y Camila de Levy. Recogida en Buenos Aires, Argentina por Paul Bénichou, (Colec.: Bénichou, P.). Publicada en Bénichou 1946, nº XXXV, pp. 97-9. Reeditada en Bénichou 1968b, pp. 156-159. 054 hemist.”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. 248 A REVELAÇÃO DO SENTIDO serem as bodas com ela, vai à horta, enfurecida, apanhar o veneno com que matará o cavaleiro (a negrito): “Se pasea don Alonso de a caballo en su rocino. - Bien hallada seas, Mariana. - Don Alonso, bienvenido - Te brindo para unas bodas, para unas bodas te brindo. - Esas yo, don Alonso, juzgué que eran conmigo Ya se fue para la huerta como león furecido coge una, coge dos, coge cuatro y coge cinco, sangre de cuatro culebras y la de lagarto vivo. Ha entrado para dentro, se lo ha dado en el vino” 528 Nas versões portuguesas nas quais Moriana vai colher as folhas venenosas, fá-lo de modo mais calmo (a) ou até com ares de grande alegria, mas percebe-se que a decisão foi tomada nesse momento : 6. “Levantou-se Moliana com seu modo real, 7. Foi colher três folhas a seu lindo rosal.” VM/21 Leite (1960) 111 12.”Adriana de contente pinchos dava no quintal. 13.Foi escolher uma rosa do mais fino rosalgar. 14.Para lhe deitar no vinho para lhe dar a provar.” VM/258 Terreiro (1999) 80-81 Sequência V do Tipo A e Sequência III do Tipo B – A morte do cavaleiro 1) Suporte significante directo: Tipo A Tipo B 11.“- Que fizeste, Juliana, a este copo de vinho ? 12.Ainda o agora bebi, já num inxergo o [caminho.” 528 5.“Consoante bubeu o vinho começou-se a [desmaiar. 6.- Que deitastes ao teu vinho que me fezo Versão 0172:5, ficha nº: 829, com a indicação: “ Versión de Lugueros (ay. Valdelugueros, p.j. León, ant. La Vecilla, comc. Los Argüellos, León, España). Recogida por Narciso Alonso Cortés, 00/00/1920 (Archivo: AMP; Colec.: Alonso Cortés, N.). Publicada en Alonso Cortés 1920, pp. 21-22 (212-214) y TOL I 1991, p. 230. 034 hemist. Música registrada”. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. 249 A REVELAÇÃO DO SENTIDO [tanto mal? 7.- Deitei-lhe sangue de cobra, pós de [lagarto moído, 8.Entremeios disso tudo foi um ressalgar [metido.” VM/18 Leite (1960) 109 VM/19 Leite (1960) 110 A acção final é rápida e, em ambos os tipos, o cavaleiro bebe o vinho, sente-se mal e pergunta a Moriana o que lhe deitou. Apenas no Tipo B, obtém uma resposta explícita descritiva dos ingredientes deitados no vinho, informação omitida no Tipo A. 2) Suporte significante indirecto: Na sua brevidade, só agora a intriga do romance apresenta o seu ponto fulcral, ou seja, o acto de matar. Que este é uma vingança perpetrada por uma mulher que se sente traída por um homem529, deduz-se facilmente no Tipo A, no qual o ouvinte-leitor podia já ter atribuído os motivos que despoletaram o envenenamento às expectativas de casamento goradas de Moriana 530 , como atrás foi dito; nas versões do Tipo B, o ouvinte/leitor permanece, até ao final, no seu desconhecimento e assim, o sentido de vingança por falta de cumprimento das promessas matrimoniais, neste tipo, só pode inferir-se pela existência do Tipo A. No Tipo B, apenas se houver um Prolongamento no qual Moriana declare explicitamente que o acto que praticou foi uma vingança (“Agora já me vinguei que com outra não casou” – VM/20 Leite (1960) 110, v. 16) ou com as 529 Esta vingança de mulher não é do tipo épico, como o é a do Rico Franco, no qual a donzela mata o sedutor para vingar as mortes do pai e irmãos. Cf. RoH, p. 330. Aqui, trata-se unicamente da sua própria honra. 530 Berta Beça fundamenta a existência de dois romances diferentes nesta circunstância, como atrás já referimos. Um deles, Juliana, no qual o homem é solteiro, corresponderá, pelo incipit “Apeia-te, ó cavaleiro…” ao nosso Tipo B e o outro, Eugénia, ao Tipo A, cujas versões apresentadas pela autora incluem os versos que indicam ser o cavaleiro um homem casado, não podendo, portanto, casar-se com Moriana (“Coitada da minha mulher, que fica sem o seu marido!”). Cf. Beça [1988], p. 239, versão 48, v. 15. Contudo, consideramos que os versos deste género não correspondem a um outro romance, mas são um dos aspectos do Prolongamento das Lamentações de Veneno de Moriana, nas quais, em outras versões, é a amada e não a mulher que é mencionada (14.“Coitadinha da minha amada, pensará que 'inda sou vivo.”, VM/17 Leite (1960) 108-109, v. 14). 250 A REVELAÇÃO DO SENTIDO declarações finais da jovem, do tipo “também a mãe pensava que tu casavas comigo”, poderá ser executada a inferência de que Moriana sabe que o cavaleiro vai casar com outra e que explica (ou até justifica) o acto praticado (# - O cavaleiro tinha prometido casamento a Moriana)531. A intriga, em rigor, finaliza com a informação de que o cavaleiro se sente mal após ter bebido o vinho ao qual foram adicionados certos ingredientes, apenas mencionados e descritos no tipo B e que, muito claramente, são venenos 532 . Daí se inferirá que o cavaleiro morre. Seria de esperar que o acto de Moriana implicasse a continuidade da intriga, expectavelmente o castigo da assassina, visto que, na ordem social normal, um crime implica uma sanção. No entanto, tal não acontece e o romance deixa as consequências em aberto, embora certas versões tentem colmatar a sua falta, em Prolongamento, que analisaremos no Capítulo III da Parte II. A ausência de um fecho “lógico” (castigo de Moriana) parece deslocar significações – a morte do cavaleiro justifica-se porque a infracção/traição cometida por este é maior que a infracção perpetrada pela mulher, sentido este que tem o seu suporte significante indirecto nos modelos sócio-culturais, de acordo com o Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances, da Parte I. 531 Em versão de Orán (Argelia), recolhida na Argentina, dá-se uma variante que modifica substancialmente o desfecho; o cavaleiro declara que vinha, de facto, para casar com Moriana e esta, ao ouvir isto, sabendo que tinha envenenado o seu amor, cai morta: “Contigo eran las bodas, contigo eran las fiestas. Como esso oyó Moriana, muerta al suelo se cayera.” Versão identificada da seguinte forma: “0172:64 Veneno de Moriana (estróf.) (ficha nº: 9018) Recitada por la señora de Coriat y Esther Coriat y Camila de Levy. Recogida en Buenos Aires, Argentina por Paul Bénichou, antes de 1942. (Colec.: Bénichou, P.). Publicada en Bénichou 1946, nº XXXV, pp. 97-9. Reeditada en Bénichou 1968b, pp. 156-159. 054 hemist. Música no registrada. Cf. Proyecto del Romancero pan-hispánico. 532 Cf. Capítulo II - Os motivos na revelação do sentido. 251 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1.3. SILVANA E DELGADINHA Estes dois romances têm um tema que lhes é comum, ou seja, trata-se do propósito incestuoso de um pai, o que faz com que por vezes sejam confundidos ou mutuamente se contaminem, como já dissemos, embora uma análise mais detalhada comprove as divergências nas intrigas. Quanto aos suportes significantes indirectos, serão consideradas, para ambos, as relações de Poder no seio das relações familiares, conforme postulado no Capítulo IV da Parte I, mas que fazemos assentar, desde já, no princípio mais geral dos conflitos entre pai e filha, que podem assumir vários aspectos. Cláudia Pereira refere as duas vias, escrita e oral, que tratam o tema, reportando-se, para a literatura geneológica, ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e, para a dramática, a King Lear de Shakespeare, ambas estabelecendo um “teste de amor” pelo rei a suas filhas e que estaria ligado à repartição do reino entre elas, vindo a resposta da mais nova, que o amava nem mais nem menos do que era devido533, a resultar em que o pai, desagradado, não a casasse; da tradição oral, a autora refere as “inúmeras versões em que a princesa mais nova diz gostar do pai ‘como a comida gosta do sal’”, tendo como castigo a sua expulsão do palácio e as humilhações sociais que sofre antes do pai reconhecer a injustiça e de poder casar. A autora, que apenas cita a existência de propostas de análise que atribuem um cariz incestuoso à relação entre o rei Lear e Cordélia, privilegia a questão do amor filial como dever a cumprir enquanto paradigma do amor entre parentes, bem como do código de vassalagem, valores ambos veiculados pela obra de D. Pedro e dirigido aos fidalgos da Espanha; o mesmo dever de conduta moral seria 533 “I love your majesty according to my bond; nor more nor less” é a resposta de Cordélia ao pai, que lhe pergunta o que pode ela dizer que suplante as palavras das irmãs. Cf. William Shakespeare [1970], King Lear, em Hodek Bretislav, introduction and glossary by, The Complete Works of William Shakespeare, 12th ed., London, New York, Sidney, Toronto, The Hamlyn Publishing Group, 1970. 252 A REVELAÇÃO DO SENTIDO exemplificado no conto tradicional534. Na proposta de leitura dos contos do ciclo de O Sabor dos Sabores (Love Like Salt, AT 923 535 ), João David Pinto-Correia refere o registo do episódio, ainda sem referência ao sal, por D. Pedro, Conde de Barcelos no Livro de Linhagens. Da narrativa transcrita, retemos aqui a resposta da filha mais nova ao Rei Leir, que inquiria as filhas sobre o amor que lhe tinham: ”e disse a terceira, que era a meor, que o amava tanto como deve d’amar a filha a padre” 536. Desta e da que sai da pena do dramaturgo inglês (“I love your majesty according to my bond; nor more nor less”) facilmente se depreende que a jovem entendeu a exigência de um amor desmesurado como antinatural, que poderá ser entendido como de cariz incestuoso; a afirmação de um amor puramente filial vale-lhes a exclusão da herança paterna e, a Delgadinha, o encerramento na torre. As relações de Poder entre pai e filha geram discursos 534 Cf. Cláudia Sousa Pereira [1993] “Rei Lear: Percurso de uma Lenda”, em Aires A. Nascimento, Cristina Almeida Ribeiro, Literatura Medieval, Vol. II, Actas do IV Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Outubro 1991), Lisboa, Edições Cosmos, 1993, pp. 289-293. Já Maria Helena Paiva Correia faz também o paralelo entre a peça de Shakespeare, a narrativa medieval e uma versão do conto publicada por Teófilo Braga em 1914 (O sal e a água), mas sem mencionar, em qualquer delas, uma sugestão de intenção incestuosa do rei, antes pondo a tónica nas questões políticas e geneológicas, para as duas primeiras, ausentes da terceira. Cf. Maria Helena Paiva Correia [1998], “The Leir story”, Anglo-Saxónica, Série II, nºs 8 e 9, Lisboa, Edições Colibri, 1998, pp. 95-102. O que nos interessa aqui sublinhar, porque tratamos de Delgadinha, é o Poder discricionário do pai, que no romance como nas outras duas narrativas, castiga as filhas que não correspondem ao esperado, ou seja, que não demonstrem uma total submissão, através da expressão de um amor sem limites. Interessa-nos, também, reter outras questões apontadas no artigo de Maria Helena Paiva Correia, mas porque estas se ligam a outro romance que analisamos, Gerinaldo – não só a falta de um herdeiro masculino, numa sociedade em que poder e herança são transmitidos à descendência patrilinear, provocará uma crise, como a divisão do reino (no caso pelas três filhas) é inevitável, passando-se a história do Livro de Linhagens e do dramaturgo inglês antes de estabelecido o direito de primogenitura (à época de Shakespeare, a procura do herdeiro masculino acabaria por provocar o cisma com a Igreja Católica, com Henrique VIII a não reconhecer a filha do primeiro casamento; suceder-lhe-ia, não obstante, a do segundo, aquela que seria Isabel I, a quem, não tendo filhos, sucederia Jaime I, este, por ironia, por via feminina, uma vez que era neto da irmã mais velha de Henrique VIII e que, por ter irmãos, não beneficiara do direito à coroa). 535 O mesmo número de classificação é adoptado por Hans-Jörg Uther [2004], The Types if International Folktales, 3 vols., FF Communications 284-6, Helsinki, Academia Scientiarum Fennica, 2004 (sigla ATU) e Isabel Cardigos [2006], Catalogue of Portuguese Folktales, Helsinki, Academia Scientiarum Fennica, 2066 (sigla APFT), mas Francisco Vaz da Silva entende a classificação absurda, “como se nada tivesse a ver com o ciclo da Gata Borralheira”, uma vez que este e os temas de “Maria Peluda” e de “Amor como o Sal” são “variações sobre um tema único”, porque “O eixo temático do ciclo é a identidade entre a mãe morta e a filha que a substitui entre os vivos, da qual decorre tanto o ódio da madrasta (em Gata Borralheira) como o amor do pai (em Maria Peluda e, tacitamente, em Amor como o Sal)”. Cf. Francisco Vaz da Silva [2011], Gata Borralheira e Contos Similares, Lisboa, Círculo de Leitores, 2011. 536 Cf. João David Pinto-Correia [2010], “Conto Tradicional. O Sabor dos Sabores”, em Maria Isabel Rocheta, Margarida Braga Neves [2010], coordenação de, O Conto na Lusofonia. Antologia Crítica, Porto, Edições Caixotim, pp. 15-40. 253 A REVELAÇÃO DO SENTIDO significantes como os de Silvana e Delgadinha, cujo sentido ora se aproxima, ora diverge, tanto entre si como dos que brevemente citámos. Continuando a cotejar os romances, tal como na Parte I, começaremos por comparar os suportes significantes directos (com prólogo e dramatizado) da sequência inicial de ambos para, de seguida, analisarmos o seu seguimento, já em separado. Silvana e Delgadinha: Silvana - Sequência I. A Proposta Delgadinha – Sequência I. A Imposição Incestuosa 1) Suportes significantes directos: Silvana Delgadinha 1.“Bem se passeia Silvana pelo corredor acima, 1.“Três filhas tinha o rei, todas lindas como á 2.o magano de seu pai d' amores a pretendia. [prata; 3.- Dá-me o teu corpo, Silvana, dá-me o teu corpo, 2.A mais novinha de todas Delgadinha se [filha minha. [chamava. 4.- Meu corpo sim eu lho dera, meu corpo sim lho 3.- Delgadinha, Delgadinha, serás minha namorada. [daria. 4.- Isso não, ó meu pai, é coisa que Deus não quer, 5.- Pois eu sou a sua filha, não sou a sua mulher.” 5.mas as penas do Inferno, meu Deus, quem as [passaria?” S/3 Martins(1938)/Martins (1987) 37-38 D/43 Leite (1960) 56 As versões destes dois romances, bem como as compósitas, abrem geralmente com um prólogo narrativo (a negrito) ao modo dialogado. A sequência inicial de Delgadinha pode também apresentar-se totalmente narrativizada: 1.“O conde das três Marias, por ser o conde maor, 2. Tinha três meninas lindas, todas lindas coma o Sol. 3. Faustina era a mais velha, era a mais assenhorada, 4. Era a que seu pai pretendia para sua namorada. 5. Le pediu a mão direita e ela jurou qu'l'a não dava.” D/36 Leite (1960) 49 254 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2) Suporte significante indirecto: O tipo de significante directo da sequência inicial condiciona o grau de pressuposição necessário à determinação das circunstâncias anteriores ao começo da intriga. Por isso, uma sequência inicial incluindo um prólogo narrativo, e que pareceria, à primeira vista, ser meramente introdutória vem, afinal, a indiciar certas informações que a mesma sequência, se apenas dramatizada, não contém. O suporte significante directo inicial de Delgadinha constituído por uma introdução narrativa seguido de diálogo, começa por limitar-se a apresentar as personagens – como no exemplo acima, quantas filhas tem, todas são bonitas, o nome da mais nova “Três filhas tinha o rei, todas lindas como á prata; // A mais novinha de todas Delgadinha se chamava.” Deste modo, a situação-tema não será imediatamente percepcionada, mas o teor do diálogo que se segue, dado que o parentesco dos intervenientes está já identificado, logo faz perceber que se trata de um incesto. Quando totalmente narrativizada, enunciada por um narrador extradiegético e omnisciente, a sequência inicial de Delgadinha equivalerá à fórmula de abertura do conto tradicional “era uma vez [um pai que se enamorou de uma das filhas]”, pelo que tem também como função (não menos importante) de demarcar o sujeito enunciador de uma situação considerada altamente reprovável e corresponderá à noção de desembraiagem537, ao desencadear o afastamento das ligações do “eu” com o contexto, instituindo um “não eu”, “não aqui”, “não agora”: 537 Os procedimentos de embraiagem e desembraiagem são inseparáveis, segundo Greimas, Courtés [1990], p. 141, e o segundo é anterior ao primeiro. Não sendo nosso objectivo principal fazer a análise linguística das versões, mas saber como se revela o sentido dos romances, adaptaremos as noções de Greimas e Courtés à presente análise, entendendo a desembraiagem como o procedimento, executado pelo sujeito da enunciação, de demarcação do “eu” em relação ao que narra e a embraiagem como o seu inverso. Assim, as sequências narrativas do tipo “era uma vez …” e as sequências prosificadas, sendo em si processos embraiadores de ficcionalidade, são, simultânea e implicitamente, desembraiadores, na medida em que demarcam o sujeito empírico do que vai narrar, tal como o são didascálias simples como “ele disse”/ele fez”, simples “efeito do real”. No mesmo sentido, os apartes valorativos dos informantes e 255 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em Silvana, pelo contrário, a introdução narrativa contida no suporte significante directo, antes do diálogo, já contém alguma informação relacionada com as intenções do pai, mais explícita (2.“o magano de seu pai d' amores a pretendia”, S/9 Purcell (1976a) 166167), ou um tanto velada, como nas versões nas quais o pai a “olha”, não sendo de crer que o faça com a natural afeição paterna538: 1.”Passeava a Silvana por os corredores acima; 2. sê pai a 'tava mirando, com muita atenção a mira.” S/17 Ferré (1982) 208 Sendo o início dialogado, a identificação dos intervenientes é executada, em ambos os romances e nas versões compósitas, através dos vocativos qualificativos utilizados (“minha filha/ meu pai”) 539. É o teor da fala de um deles, mesmo através de eufemismos como “brincar”, “ser namorada” e outros equivalentes, que revela o cariz sexual da situação e é a relação familiar o factor que torna esta incestuosa: Silvana: 1.“- Ó Silvana, ó Silvaninha, ó Silvana, minha filha, 2. Bem puderas tu, Silvana, comigo brincar's um dia”. S/5 Leite (1960) 47-48 Delgadinha: 1.“- Galdina, minha Galdina minha rica prenda amada, 2. tu tens sido minha filha, vais ser minha namorada.” D/3 Azevedo (1880) 109-112 os prolongamentos post scriptum, serão “embraiadores”, revelando adesão ou rejeição do sujeito da enunciação ao conteúdo narrado. 538 Também em A infanta pejada (IGR 0469, PBI R4) o pai olha a filha com grande “atenção”, mas porque o aspecto físico desta lhe denuncia a gravidez. 539 Há versões nas quais a personagem masculina se dirige à feminina pelo nome, sem que a relação familiar se conheça senão quase no fim, quando a jovem o trata por pai e este reafirma a proposta (a negrito): 1. “- Delgadinha, Delgadinha, Delgadinha, la Delgada; 2. queres tu, ó Delgadinha, ser a minha namorada? 3. - Não permita Deus do céu de eu ser sua namorada! [………………………………………….] 17.- Ó meu pai, se o sondes, dai-me uma pinguinha de água! 18.- Muito ta daria eu, se fosses minha namorada! 19- Não permita Deus do céu, de eu ser sua namorada! [………………………………………….]” D/10 Tavares (1906) 303-304 256 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Havendo elipse total da sequência inicial, como na versão abaixo, de Delgadinha, não é possível saber qual a razão da punição com a qual abre, nem tampouco se percebe a relação entre as personagens tanto mais que a narrativa se inicia na primeira pessoa: 1.“Mandei fazer uma torre muito bem à maravilha 2. para meter a Faustininha sete anos e um dia” D/39 Leite (1960) 52 No exemplo dado, apenas no segundo hemistíquio do verso final da versão se subentenderá, por encadeamento lógico, que a razão do castigo era uma anterior recusa da jovem em ser namorada de alguém: 22.“[Para dar água à Faustininha] – que já é minha namorada”. Que esse “alguém” é o pai, apenas se deduz do medo que a família exprimirá, negando ajuda a Faustininha. Em versões nas quais há a imposição do pai, mas se dá a elipse do segundo segmento sequencial, no qual a filha recusa, esta negação pode sempre ser subentendida pela ocorrência do castigo na sequência seguinte, que, doutro modo, não se justifica. Nestes dois romances, e ao contrário do que acontece em Bernal Francês e em Veneno de Moriana, a razão de ser da intriga desenvolvida não depende tanto da existência de acontecimentos passados como do subentendido moral de que os pais não se enamoram das filhas. Ainda assim, havendo, tanto em Silvana como em Delgadinha, a mesma intenção incestuosa, há uma circunstância prévia à proposta paterna que é divergente nos dois romances e tem a ver com a possibilidade de uma atitude provocatória ou não das protagonistas, questão já atrás abordada540, o que se reflecte também na estrutura dos prólogos narrativos de ambos os romances. Este vêm a diferir, na medida em que, em Silvana, há uma maior focagem na acção da protagonista filha 540 Cf. Parte I, no Capítulo III - A organização da narrativa. 257 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (encontra-se a passear-se e/ou a tocar) e, em Delgadinha, no pai541, com a filha a ser apresentada como sujeito passivo: Silvana: 1.”Bem se passeia Silvana pelo corredor acima, 2. o magano de seu pai d' amores a pretendia.” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 Delgadinha: 1.“O Rei tinha quatro filhas, o Rei tinha quatro amadas, 2. A mais nova delas todas Delgadinha se chamava. 3. Um dia estavem ao jantar, o seu pai p'ra ela olhava:” D/178 Galhoz (1987) 373-374 1.“Nosso rei tinha três filhas, todas lindas como o sol; 2. a mais bonitinha delas Baldebina se chamava. 3. Entrou o seu pai um dia ao quarto donde ela estava.” D/14 Lima (1914) 294-295 Aurélio González Pérez, que constata a escassez de versões puras de Silvana no corpus do romanceiro nas Américas hispano e luso falantes, distingue os dois romances pela substituição da filha pela mãe como motivo mais importante, mas também pelo que chama “paseo provocativo de Silvana bailando e tocando un instrumento musical”542. Também Gutiérrez Estévez se debruça sobre as diferenças de “tom” destes romances de incesto, referindo, em Silvana, as “mui reducidas alusiones a la violencia y 541 Na maioria das versões com prólogo narrativo, o pai é o primeiro protagonista a ser apresentado, com uma que outra excepção, do tipo das seguintes: 1.“Delgadinha, Delgadinha, Delgadinha bem delgada, 2. De tão linda que era o seu pai a namorava.” D/44 Leite (1960) 56-57 3.“Vindo Andina da fonte, seu pai à'cometeu.” D/48 Leite (1960) 62 1.”T'ando a D. Selivana, na sua sala assentada, 2. Seu pai, qu'aí chegava; a convidava p'ra namorada.” D/51 Leite (1960) 68-69 542 Cf. Aurélio González Pérez [2003], El Romancero en América, Madrid, Editorial Síntesis, 2003, p. 108. 258 A REVELAÇÃO DO SENTIDO tensión próprias de una situación de marginación moral”, ao contrário do que acontece em Delgadinha, levando esse tom a crer que a protagonista de Silvana aceitaria com agrado os elogios do pai, enquanto passeia e canta e só não cede por receio das penas do Inferno, recorrendo à ajuda da mãe543. Quanto a José P. da Cruz, para quem, como atrás se disse, o encerramento da jovem faz parte dos dois romances, faz notar, ainda assim, a divergência na atitude das protagonistas: “A Silvana é de tema mais escabroso que a Delgadinha na forma como se desenvolve o diálogo inicial entre o pai e a filha. Ele quer que a filha seja sua amante e claramente lhe manifesta o desejo de dormir com ela uma noite. A filha responde ao pai que isso faria se não 544 fosse o medo do inferno…” . Sendo a atitude das protagonistas, muitas vezes, circunstância não explícita mas sugerida, definiremos então, de seguida, os critérios de “provocação/não provocação”, cuidado especialmente premente nos casos de contaminação dos dois romances, pois a análise da sequência inicial nas várias versões de Silvana, de Delgadinha e nas compósitas mostra que o fenómeno gera uma como que “contaminação de atitudes”, ou seja, ocorrem nelas, sem prejuízo da narrativa subsequente, qualquer dos binómios ordem/pedido, recusa/complacência545. Fazendo, então, a paridade daquelas atitudes com cada incipit dos romances antigos (Silvana, “Paseábase Silvana/[por un corral que tenía”] e Delgadinha, “Estábase la Delgadita”), atribuir-lhes-emos os seguintes sentidos: 543 Cf. Manuel Gutiérrez Estevéz [1978], “Sobre el sentido de quatro romances de incesto”, em António Carreira et alii., reunido por, Homenage a Julio Caro Baroja, Madrid, Centro de Investigaciones Sociologicas, 1978, pp. 551-579. 544 Cf. Cruz [1995], p. 207. 545 Por sua vez, o incipit de Silvana apresentando uma personagem um tanto exibicionista como abertura de outro romance de tema diferente, Conde Alarcos, há-de imprimir a este um clima passional de amores ilícitos, diverso daquele que se apresenta em versões nas quais a infanta atribui ao conde responsabilidade por compromissos anteriores: (“- Casai-me, meu pai, casai-me, que a idade mo declina, // quero casar com conde Verde que é amor da minha vida // quando éramos pequenos d’amores me pretendia”, versão de Vinhais, cf. RPTOM, II, pp. 353.354). Sobre a carga semântica que a abertura com Silvana para Conde Alarcos, cf. Vanda Anastácio [1982], “Os incipit de ‘Silvana’ no romance do Conde Alarcos: considerações”, em Quaderni Portoghesi, 11-12, Primavera-Autumno, Pisa, Giardini Editori, 1982, pp. 227-239. 259 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A) Movimento: qualquer tipo de actividade que chame a atenção como passear-se, tocar instrumento musical ou pentear-se546 = Provocação. B) Atitude estática: estar sentada [na sala/no jardim]; a jovem nada faz para se fazer notada e é a condição de “ser” (a mais bonita/mais nova/mais velha das irmãs) que a distingue e desperta a atenção do pai = Ausência de provocação. É esta dicotomia movimento/atitude estática das respectivas protagonistas (movimento = provocação de Silvana e atitude estática = ausência de provocação de Delgadinha) que estabelece a diferenciação de cada romance e que há-de reflectir-se no seu sentido. Note-se que tanto a “provocação” como a sua ausência, que equivale a “complacência”, são geralmente comunicadas por uma economia narrativa profunda, apenas implícita, a primeira, através do motivo “passear-se”, no caso de haver uma introdução narrativa, e a segunda na resposta evasiva da filha. Há que esclarecer que esta interpretação que relaciona movimento com provocação se faz com o pressuposto de que a contenção do gesto feminino é objecto de valorização positiva em diversas áreas. É voz corrente que “muito riso, pouco siso” e diz Ana Rodrigues Oliveira que, entre as virtudes ideais para as “donas do passado”, os cronistas encontravam “discrição, sisudez e prudência”, as quais “implicam a repressão dos gestos femininos que visam expressividade de acção e movimento e a valorização da gestualidade fixa e imóvel…”547. Daí se infere que o contrário se associa a uma atitude provocatória para com os homens, logo implicitamente ilícita e condenável. Assim, quando, em Silvana, existe um prólogo narrativo, diz-se geralmente nele que a jovem se passeia pelo corredor, frequentemente tocando guitarra ou viola, penteia- 546 Estar a pentear-se é uma actividade conotada com sentimentos amorosos ou com o erotismo, em especial se for com “um pente de ouro”, cuja cor se associa também ao cabelo loiro, associado, por sua vez, à beleza, que, neste caso, se realça para chamar a atenção sobre si. 547 Cf. Ana Rodrigues Oliveira [2000], As representações da mulher na cronística medieval portuguesa (sécs. XII a XIV), Cascais, Patrimonia, 2000, Capítulo 3. Identidades. 260 A REVELAÇÃO DO SENTIDO se, etc., em suma, movimenta-se ou pratica qualquer acção, no momento em que o pai repara nela, o que insinua que a jovem atrai propositadamente as atenções deste e sendo-se levado a crer que a motivação paterna para o desejo incestuoso está nessa circunstância. Em Delgadinha não há tal sugestão de atitude provocativa da filha; ela apenas “é” ou “está”548, não “faz” - é a sua beleza (ou juventude) que a destaca das outras irmãs e desperta as atenções do pai549. Note-se que o motivo da beleza é, em si próprio, ambivalente; se, por um lado, é uma manifestação de pureza e santidade, pode também ser fonte de tentação, como o revelam certos textos hagiográficos550; a beleza feminina explorada pelo demónio para tentação dos homens torna-se temática que aqui, também, considerámos como suporte significante indirecto destes romances de incesto. Por outro lado, as poucas vezes em que Delgadinha está a fazer qualquer coisa, como bordar 551 , o sentido do que faz é inocente, face aos critérios de provocação/não provocação; noutros casos, o sentido pode apresentar-se ambíguo, como o prova os factos seguintes. Dentro de uma das variações situacionais que é “estar no jardim”, ocorrem variações de acção, com Delgadinha a pentear-se (com pente de ouro, na D/55 Leite (1960) 77-80 ou na D/56 Leite (1960) 80-81) ou a passear e neste caso, ainda, uma outra, 548 Como nas versões abaixo: 1.”Três filhas que Deus le deu, todas mais lindas que o sol, 2. Faustina por ser mais nova, por ser a mais engraçada, 3. foi a que seu pai escolheu para sua namorada.” D/189 Ana Martins/Ferré (1988) 86-87 1.”Nosso rei tinha três filhas, todas lindas como o sol; 2.a mais bonitinha delas Baldebina se chamava. 3.Entrou o seu pai um dia ao quarto donde ela estava.” D/14 Lima (1914) 294-295 549 A diferença de sentido dos dois motivos, provocação e beleza, será novamente abordada no Capítulo II. Os motivos na revelação do sentido. 550 Cf. O artigo de Machado [1993], já citado no Capítulo IV da Parte I. 551 Como acontece na D/6 Nunes (1900-1901) 171-173: 1.”Estando dona Silvana no seu quarto bordando,” 2.seu pai que lhe aparecia, d' amores a acometia.” 261 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que contraria a habitual modéstia da jovem – Delgadinha cobre o rosto para não ficar queimada, sinal evidente de vaidade: 1.“Andava Malgaveta no jardim a passear, 2.com o seu véu pelo rosto para o sol não na queimar.” D/65 Pestana (1965) 91-92 Em certas versões, Delgadinha é “acometida” pelo pai quando vai ou vem da “fonte”: 1.“Vindo D. Claudina à sua fonte buber, 2. Lá veio ter seu pai, para a mal acometer. 3. - Nunca Deus há-de permitir, nem a Virgem Sagrada, 4. De sé'la sua filha a sua filha namorada.” D/4 Leite (1881) 72-74 1.“Vindo Andina da fonte, seu pai à'cometeu. 2. - Que não permita Deus do Céu e a Virgem Consagrada 3. D'eu sê'la sua filha, d'eu sê'la sua namorada.” D/48 Leite (1960) 62 A presença do motivo “fonte” é, aqui, de sentido ambíguo, visto que o seu simbolismo é plural, como sejam o do perpétuo rejuvenescimento, o da regeneração e purificação, do conhecimento e da Memória 552 , mas o motivo tem também uma conotação sexual553. Há, porém, uma certa diferença nas versões acima. Na primeira, a 552 Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant [1994], Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1994, pp. 334-335. Diz Eugenio Asensio que “[P]ara el folclore y la poesia de los siglos XIII, XIV y XV la fuente es un símbolo cargado de intrincadas sugerencias en las que domina la idea de renovación y fecundidad”. Cf. Eugenio Asensio [1970], Poética y Realidade en el Cancionero Peninsular de la Edad Media, Madrid, Editorial Gredos, 1970 (p. 240). 553 É da “fontana fria”, na cantiga de Pero Môogo, que volta a rapariga a quem a mãe questiona repetidamente sobre a razão pela qual tanto lá se demorou e a quem ela responde que “os cervos do monte a áugua volviam”, sendo o “cervo” um símbolo sexual masculino. Stephen Reckert cita o estudo de Asensio (Asensio [1970]) sobre o tema da fonte e resume, a partir de Méndez Ferrín (Xosé Méndez Ferrín, O cancioneiro de Pero Meogo, Vigo, Editorial Galaxia, 1966): “o encontro amoroso naquele sítio pertence ao património comum romântico, assim como os motivos [...] da lavagem do cabelo ou roupa e da explicação à mãe (ou ao marido) da demora na ‘fria fontana” e “a fonte mágica da juventude, do amor, da fecundidade e da vida, é uma herança popular ainda mais universal que a Igreja fez prudentemente questão de cristianizar [...]”. Cf. Stephen Reckert, “A variação subliminar na poética da cantiga” e Stephen Reckert, comentários de, “Cinquenta Cantigas de Amigo”, em Stephen Reckert, Helder Macedo [1996], Do Cancioneiro de Amigo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996. 262 A REVELAÇÃO DO SENTIDO rapariga vem “beber à fonte” onde o pai vai ter, pelo que, considerando o sentido erótico do motivo, a resposta que dá (versos 3 e 4) poderia ser interpretada como uma espécie de desabafo lamentoso, ou seja, que apenas a falta da permissão de Deus é causadora da recusa em ceder ao pai, como acontece em Silvana. No segundo exemplo, a rapariga apenas “vem da fonte”, o que pode ser compreendido como uma tarefa doméstica, quando o pai a encontra, razão pela qual, no apelo que faz a Deus (verso 2), embora semelhante ao da outra versão, há uma rejeição clara e terminante ao assédio paterno, como obriga o sentido do Delgadinha. A ambiguidade da primeira versão explicar-se-á, cremos, pela contaminação de Silvana e Delgadinha, não só na estrutura narrativa como também no sentido. Também no modo como o incesto é apresentado às filhas apresentam os dois romances diferença substancial de sentido. Em Delgadinha, o tom do pai é impositivo na maioria dos casos, como nos suportes significantes directos “serás minha namorada”/”vais ser minha namorada” ou neste outro, abaixo (a negrito): 1.“Um pai tinha três filhas, todas lindas como a prata; 2. A mais linda delas todas Aldininha se chamava. 3. - Aldininha, ó minha filha, tu hás-de ser a minha amada!” D/202 Carvalho Rodrigues (1990) 90-91 É certo que, em certas versões, o pai não ordena explicitamente, mas pergunta à filha se “quer” ser sua “amada” ou “namorada”, a troco de vesti-la e calçá-la de “ouro e prata554”: 1.“- Idalina, Idalina, queres ser minha namorada? 2. De ouro te vestia e de prata te calçava.” D/195 Anastácio (1988) 79 554 Revela-se, também aqui, o sentido do Mal associado ao Diabo e a este pai, pois “o diabo enganava os humanos com promessas de ‘ouro e prata’”. Cf. A. L. Pinto da Costa [1997], Alto Douro. Terra de Vinho e de Gente. A vida quotidiana alto-duriense no primeiro terço do século XX, Lisboa, Edições Cosmos, 1997, p. 145. 263 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Noutras, o tom é ainda amenizado, com o pai a sugerir ou tentando convencer: 2.“- Bem puderas, D. Aldina, ser a minha namorada!” D/184 Galhoz (1987) 396-397 3.“ Sua filha a Delgadilha, por ser a mais engraçada, 4. seu pai a convencia para ser sua namorada.” D/186 Ana Martins/Ferré (1988) 83-84 Apesar do tom mais ligeiro destes exemplos, o valor implícito dos avanços do pai, mesmo se despojados do tom imperativo dos anteriores, equivalem à mesma ordem explícita; por isso, ao contrário de Silvana em que, claramente, há uma proposta, em Delgadinha a proposta torna-se uma imposição. Por outro lado, a muitas vezes usada expressão “ser namorada/amada” do pai de Delgadinha, encontra-se longe da ocasionalidade de uma noite ou uma hora sugerida pelo pai em Silvana, cuja proposta parece mais pontual e sem indicação de pretender continuidade; ao invés de fazer-se obedecer, como em Delgadinha, este pai pretende convencer a filha: 4.“- Bem puderas, Solivana, seres uma noite minha.”, S/16 Ferré (1982) 207-208 O prólogo narrativo pode ainda integrar as circunstâncias em que o pai se lhe dirige555 e algumas delas, como o estarem à mesa ou a existência de várias outras filhas, tantas vezes referida em Delgadinha, mostram claramente que a imposição se dá no seio de uma estrutura familiar, que facilmente se inteiraria dela, mesmo que o pai, tente, nalguns casos, manter segredo: 3.“- Anda cá, ó minha filha, anda cá, que te vou dizer: 4. hás-de ser a minha amada sem a tua mãe saber...” D/26 Frias (1956) 570-571 555 Estas serão apontadas no “modelo-virtual” adiante proposto. 264 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sendo desde modo difícil que a restante família se alheie dos desejos do pai, a posterior recusa de auxílio à jovem adquire um sentido complexo, a que nos referiremos adiante mais detalhadamente. Quanto à resposta dada pelas protagonistas aos respectivos pais, desenha-se nelas, com maior clareza, a diferença de sentido da sua reação face aos avanços dos respectivos pais, que se traduzirá nas respectivas intrigas. A protagonista de Silvana, parecendo complacente, vai dizendo que “dormir [com o pai]… dormiria”, sendo o uso do condicional que deixa subentender algum agrado por tal proposta, apenas não concretizado pelo temor do castigo divino: 4.”- Meu corpo sim eu lho dera, meu corpo sim lho daria. 5. mas as penas do Inferno, meu Deus, quem as passaria?” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 A outra jovem, em Delgadinha, que nada fez para provocar o pai, nega categoricamente ceder-lhe, o que acirra a ira deste e desencadeia o consequente desenvolvimento da intriga, na sequência seguinte, que se traduz pelo imediato encerramento desta filha: 3.“ - Eu não quero, meu pai, não quero, que isso é que ninguém quer, 4.é melhor que vá fazendo caso da sua mulher. (Sequência II): 5. O papá da Idalina não mandou fazer mais nada, 6. mandou fazer altas torres pa'Idalina ser fechada.” D/195 Anastácio (1988) 79 A sequência inicial de Silvana apresenta ainda outros segmentos sequenciais, que não aparecem em todas as versões e de que apresentamos os seguintes suportes significantes directos: 265 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3º segmento sequencial: 6.“- Cala-te lá, ó Silvana, que isso remédio teria, 7. o Padre Santo em Roma tudo nos perdoaria.” 4º segmento sequencial: 8.- Deixe-me ir vestir outra roupa, que esta é de todos os dias, 9. para que não caiam manchas na roupa de todos os dias.” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 A réplica do pai aos temores da filha não suscita grandes problemas interpretativos, sendo ainda assim duvidoso se estará genuinamente convencido de que o incesto não é pecado que não possa ser perdoado (embora, repare-se, suficientemente grave para o ser apenas pela mais alta autoridade da Igreja) ou se apenas pretende vencer os escrúpulos da filha. Quanto à declaração da jovem (vai lavar-se e vestir outra roupa), poderá ser alvo de interpretações díspares. Ou pretende ganhar tempo e ter oportunidade para chamar a atenção da mãe (o que realmente faz) ou dá continuidade à possível tentação de ceder ao pai, tornando-se ainda mais desejável; a cena passa-se, presumivelmente, durante o dia e o pai prefere adiar o encontro para a noite, implicitamente de modo a que ninguém mais saiba556 (8. “Logo a mandou-a esperar no quarto donde dormia.”, S/20+QdU Ferré (1982) 209-210), ou, tomando em conta aquela declaração da filha, entende que vale a pena aguardar. Em certas versões, o tipo de cuidados que diz que vai ter parece indiciar uma escondida vontade de substituir a mãe: 10.“vou lavar as minhas pernas, vestir as alvas camisas 11. p'ra fazer com'a mamãe quando c'o papai drumia.” S/16 Ferré (1982) 207-208 556 Neste caso, note-se o contraste com Delgadinha, cujo pai parece nada importar-se se alguém sabe ou não, tanto que chama os criados, ou quem quer que seja, para encerrarem a filha, numa demonstração de Poder sobre todos, ou de desvergonha. 266 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Por outro lado, o pai chega a comparar as duas, embora a filha saia favorecida: 6.“- Bem me pareces, Silvana, em véstias de cada dia, 7. do que tua mãe, rainha, com quanto ouro havia.” S+D/3 Braga (1869)/Braga (1982) 197-200 Esta comparação entre mãe e filha revela uma analogia de sentido com o conto AT 510B The Dress of Gold, of Silver and of Stars557, no qual a mulher moribunda de um rei lhe faz prometer que só tornará a casar com alguém tão belo quanto ela (ou a quem sirva um adorno seu); este apaixona-se pela filha, por ser esta a preencher os requisitos 558 . Reproduzimos um pequeno excerto de uma versão portuguesa daquele conto, A p r i n c e s a q u e n ã o q u e r i a casar com o pai: “Era uma vez um rei e uma rainha, e depois a rainha morreu e deixou um anel em cima da mesa e disse, que a quem aquele anel servisse, é que havia de casar com o rei. A princesa por um acaso foi a cima da mesa, viu aquele anel e meteu-o no dedo. Depois foi dizer ao rei: - Real senhor, não sabe? este anel que aqui achei em cima da banca, nem que fosse para mim... serve-me tão bem!... O rei disse: - Ai! filha, tens de casar comigo, que a tua mãe disse que a quem esse anel servisse é que eu havia de casar! ……….”559. O incesto, já eufemizado na forma “casar”, é ainda disfarçado pela obrigação de cumprir a vontade imposta pela mulher defunta: visto ser à própria filha que o anel serve, a implicação é de que o pai tem, absolutamente, de casar com ela, o que, de certa forma, tende a desculpabilizá-lo. Já as implicações de a filha pôr o anel da mãe e de apresentar-se ao pai com ele posto (tal como Silvana, que já se “exibira” ao pai, passeando-se ou tangendo e, mesmo, anunciando que se vai ataviar), podem suscitar interpretação psicanalítica que não nos cabe desenvolver, mas nos parecem ter o sentido 557 Cf. Thompson [1987], p. 177-178. Nos contos do Ciclo O Sabor dos Sabores já atrás referidos, as implicações incestuosas do conflito serão menos evidentes, mas, mesmo assim, implícitas. 559 Consiglieri Pedroso [1978], Contos Populares Portugueses, Lisboa, Vega, 1978. 558 267 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de esta desejar substituir a mãe junto do pai, mesmo sexualmente (embora no conto se desconheça se ela sabia a quem pertencera o anel), dando-se um fenómeno de transposição; neste caso, a “culpa” passa do pai para a filha. Silvana Sequência II. A intervenção da mãe 1) Suporte significante directo: 10.“Foi-se deitar a sua cama para fingir que dormia, 11.os soluços eram tantos que todo o quarto termia [sic] 12. ouvira-a sua mãe do quarto em que ela dormia. 13.- Tu que tens, ó Silvana, tu que tens, ó filha minha? 14. - O magano do meu pai d' amores me pretendia. 15.- Cala-te lá, ó Silvana, que isso remédio teria, 16.eu vou deitar-me à tua cama e tu vai deitar-te à minha.” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 Silvana afasta-se, a mãe ouve-a e pergunta-lhe o que se passa; face à resposta da filha, manda-a trocar de cama consigo. 2) Suporte significante indirecto: As variações nesta sequência apresentam sentidos diferentes, nas versões, e a este respeito voltaremos no Capítulo III. As intervenções na enunciação e no enunciado, mas aqueles poderão agrupar-se em dois sentidos básicos: ou ela, de facto, teve uma atitude de “provocação” e se sentiu tentada, mas se arrependeu (alternativamente, venceu o medo das penas do Inferno), caso em que as versões apresentarão uma Silvana que se afasta, a chorar, ou então a resposta ao pai foi um meio de o enganar até poder obter ajuda. Em qualquer dos casos, subentende-se que o pai não se demove dos seus intentos, o que implica uma sequência não explícita (# O pai insiste na proposta), mas deixa-a partir, informação fornecida condensadamente (“foi-se dali”), embora adie a 268 A REVELAÇÃO DO SENTIDO concretização do incesto para a calada da noite, no próprio quarto da rapariga560, ou pelo natural secretismo que tal acto exigiria, ou pela expectativa de a encontrar melhor ataviada. Na verdade, as condições do encontro entre pai e filha estão apenas implícitas na natureza do ardil da mãe, que manda a filha trocar de cama e de roupa consigo, o que indica que o encontro só pode realizar-se no quarto de Silvana e na escuridão da noite561. Sejam quais forem os sentimentos da rapariga, o que ela faz é chamar a atenção da mãe sobre si, quer chorando, falando alto ou até praguejando (como na da S/31 Xarabanda (1995) 27-28, v. 6), até esta lhe perguntar o que tem. Na verdade, com esta atitude, faz afastar qualquer suspeita de conivência com o pai e pode queixar-se à mãe562. O suporte significante directo da sequência dispensa a indicação implícita de que Silvana acata a sugestão da mãe. Sequência III. O estratagema salvador 1) Suporte significante directo: 11.“Lá pelo meio da noite o rei à porta batia, 12.Deitou-se co'ela na cama sem nem uma cortesia. 13. - Que é isto, ó Silvana? Que é isto, ó filha minha? 14. Julgando que estavas honrada estás tão descolorida! 15. - Como eu hei-de estar honrada sendo três vezes parida, 16. Parida de rei Ingrama, parida de rei Ingria, 17. Parida da nossa Silvana a quem tanto eu queria. 18. - Bem haijas tu, ó Silvaria bem haijas tu, filha minha. 19. Tu salvastes a tua alma e eu condanei a minha! 20. Perdão, ó minha esposa, perdão, ó esposa minha. 21.Não julgavas que em mulheres que tanta desteza havia.” S/7 Soromenho (1963) 55 560 Na Adozinda de Garrett é bem mais explícito este adiamento por promessa: “… para a noite seguinte, // Quando tudo em paz jazesse // Em seu leito o recebesse”. Cf. Garrett [1983], I., p. 92. 561 No capítulo seguinte, dedicado aos motivos, referir-nos-emos de novo à natureza deste estratagema. 562 Note-se que, em certas versões de Delgadinha, o pai acusará a filha à mãe de o ter tentado seduzir. 269 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O pai vai ao quarto da filha e deita-se com quem que lá se encontra, censurando-a por não ser virgem; a mulher revela, então, a sua condição de mãe de outros filhos e da própria Silvana. O pai demonstra admiração pelo estratagema urdido, quer porque foi salvo de cometer um pecado, quer porque foi descoberto e a intriga finaliza aqui. 2) Suporte significante indirecto: Esta sequência pressupõe que foi posto em prática o estratagema da troca563, ou seja: # A mãe deita-se na cama da filha. O acto sexual não é referido explicitamente, mas através do eufemismo “deitar-se com”. Mesmo no caso de a versão elidir totalmente a informação de que foi consumado, a própria fala do pai, na recriminação à “filha”, ao descobrir que a mulher com quem se deitou não é virgem, assim o implica. Logo, # A relação sexual é consumada. A condição de virgindade, nalguns casos, é explícita (a) e noutros é referida em termos mais ou menos eufemísticos, mesmo com um vago “algo” (b). O que importa, como suporte significante indirecto, é o tom de censura paterno, que se prende com a presunção de que a filha seria virgem, como implicitamente o deveria ser uma rapariga solteira: 563 Outro tanto fez Maria de Montpellier a seu marido Pedro III de Aragão, ainda que as razões fossem diferentes. A rainha, desejando a descendência que o marido não lhe proporcionava por preferir outras mulheres, tomou de noite o lugar de uma delas na cama do rei, tendo chamado testemunhas, na manhã seguinte, para se proteger da acusação de adultério. Cf. Oliveira [2000], pp. 143-144. A conclusão que se tira da facilidade com que se davam estes equívocos, e veja-se também o caso de Bernal Francês no qual a mulher não reconhece o marido deitado com ela, é que não haveria grande convivência entre os cônjuges, pois o pai de Silvana não percebe que ali está a própria mulher, mesmo já tendo tido vários filhos dela. Adicionalmente, o facto de julgar ainda tratar-se de Silvana, após a relação íntima com a mulher, permite pressupor que esta mãe mantinha uma certa juventude, embora os filhos fossem já crescidos. 270 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (a): 18. “Tu não estás virgem, Silvana, tu não estás virgem, filha minha”, S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 (b): 17.“Eu cuidei que tinhas algo, tu algo não no tenias”, S+D/16 Leite (1960) 86-87 A virgindade da filha está claramente associada à honra, mesmo nos termos eufemísticos, equivalentes a essa condição - ser virgem = estar honrada, não ser virgem = estar “descolorida”: deste delicado assunto 13. “Que é isto, ó Silvana? Que é isto, ó filha minha? 14. Julgando que estavas honrada estás tão descolorida!” S/7 Soromenho (1963) 55 Não é casual a invocação dos nomes dos filhos pela mãe, ao desvendar a identidade ao marido; ela está, através deles, a reivindicar a sua legitimidade de esposa, o que, naturalmente, serve também para acentuar a humilhação daquele, mas também, ao alardear os títulos que usam (“rei Ingrama, “rei Ingria”), está a usá-los para realçar o seu próprio estatuto social frente ao marido. No desfecho deste romance, as implicações não são extremistas como o são a morte das protagonistas em Bernal Francês e Delgadinha, o casamento em Gerinaldo ou a execução de uma vingança, em Veneno de Moriana, que encerram a intriga. Aqui, o pai limita-se a comentar, positiva ou negativamente, a esperteza do ardil de mãe e filha, culminando a intriga com o desvendar da identidade da mãe, sem mais complicações, o que torna Silvana num romance de cariz verdadeiramente fragmentário, deixando as implicações em aberto. 271 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Delgadinha Sequência II. O castigo 1) Suporte significante directo 5.“Ele mandou fazer uma torre das mais altas que havia 6. Para meter a Balbeninha por dez anos e um dia. 7. O comer é poderoso e a água por medida, 8. Bacalhau é às arrobas para lhe acabar com a vida.” D/24 Dias Martins (1954) 297-298 Esta sequência narra a reacção do pai à recusa veemente da filha em ceder aos seus desejos: a filha será fechada, com pouca comida e água não potável. 2) Suporte significante indirecto Sendo uma constante na maioria das versões analisadas, trata-se aqui da consequência lógica da sequência anterior, ou seja, da recusa da filha. Nela não há grande apelo a suportes significantes indirectos de pressuposição ou inferência, excepto no que respeita à natureza do castigo imposto pelo pai à filha, cujo sentido mais profundo será abordado adiante, ao tratarmos dos motivos, e que consta do seu encerramento (geralmente numa torre, mas também em outros locais fechados, como um “quarto”, um“convento”, um “palácio”, um “quarto”). A informação relativa ao tempo em que está fechada pode ser dada ou não; o período de tempo, que é muito variável nas versões, é de alguns dias a vários anos, mas sempre entendido como excessivo, a par da privação de água, tormento agravado pela ingestão de comida salgada. Por outro lado, a mesma natureza de tal castigo reflecte-se em termos de intriga, pois determina as consequências (a debilidade física e mental de Delgadinha) que a farão evoluir – ela irá pedir ajuda à família. 272 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência III. O apelo à família: 1) Suporte significante directo: 7. “Assubiu uma vintena bem alta, desmarsiada: 8. - Lá vi 'star os meus manos jogando o jogo da bola. 9. Deus vos salve, ó meus manos, Deus me salve a minh'alma! 10. Pel'amor de Deus lho peço que me dê um jarro d'água! 11. - Como t'hei-de dar água, ó Faustina, filha mal aventurada, 12. Pois o nosso pai jurou, na ponta da sua espada, 13. Quem desse água à Faustina que morria degolada? 14. - Valha-me Jasus do Céu, mais a (da) Virgem Sagrada! 15. Meu coração se me quita e á minh'alma será salva. 16. Assubi outra vintena bem alta, desmarsiada, 17. Lá vi 'star as minhas manas a coser num'almofada: 18. Deus a salve, ó minha mana, Deus me salve a minh'alma! 19. Pelo amor de Deus lhe peço que me dês um jarro d'água. 20. - Como t'hei-de dar água, ó Faustina, filha mal aventurada, 21. Pois o nosso pai jurou, na ponta da sua espada, 22. Quem dessa água à Faustina que morria degolada? 23. -Valha-me Jasus do Céu mais a (da) Virgem Sagrada! 24. Meu coração se me quita e a minh'alma será salva. 25. Assubi a outra vintena bem alta, desmarsiada, 26. Lá vi 'star a minha mãe recostada na sua sala: 27. Deus a salve, ó minha mãe, Deus me salve a minh'alma! 28. Pelo amor de Deus lhe peço que me dê um jarro d'água. 29. - Como t'hei-de dar água, ó Faustina, filha mal aventurada, 30. Pois o vosso pai jurou, na ponta da sua espada, 31. Quem desse água à Faustina que morria degolada. 32. - Valha-me Jasus do Céu, mais a (da) Virgem Sagrada! 33. Meu coração se me quita e a minh'alma será salva. D/52 Leite (1960) 69-70 Delgadinha vai avistando, sucessivamente, os diversos membros da família; a cada um pede água, em nome dos laços que os unem, mas todos lha recusam, explicitando as suas razões. 273 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2) Suporte significante indirecto: Entre a sequência anterior e esta dá-se a inferência lógica de que as ordens do pai foram integralmente cumpridas e Delgadinha foi fechada. A jovem reaparece, num salto temporal narrativo564 no caso de o prazo imposto ser longo, geralmente movimentandose em sentido ascendente 565 , isto é, vai subindo pela torre e assomando às janelas. Ligando-se, então, à sequência anterior, dão-se as seguintes situações: - o prazo foi especificado e Delgadinha reaparece findo este: 5.“Mandou fazer um convento dos maiores que havia 6. para meter Faustina dentro sete anos e um dia. 7. Ao fim desses sete anos, Faustina veio à sacada;” D/23 Carneiro (1945) 167-168 - o prazo foi especificado e Delgadinha assoma à janela logo a seguir: 3. “Mandou fazer uma torre com as mais altas maravilhas 4. e mandou-a meter nela por trinta i-anos e um dia. 5. Silvaninha entrou p'ra dentro muito mais triste qu'estava, 6. subiu à torre mais alta só p'ra ver quem avistava.” D/124 Fontes (1984) 369-370 - o prazo de encerramento não foi especificado e ela assoma à janela após um número variável de tempo: 10.“Outro dia por a manhã e à janela se deitava,”, D/237 Xarabanda (1995) 34-35 6.“Ó fim d'estar lá dois dias já a sede lhe obrigava”, D/241 Custódio/Galhoz (1996) 41-42 15. “Ao fim de três dias Silvaninha clamava”, D/9 Tavares (1906) 280-281 5. “Esteve lá dezoito dias, sem comer nem boer nada. 6. Lá ao fim dos dezoito dias, já a sede l'apertava,” 564 Pela regra de contracção de Holbek [1990], pp. 126-162. José Manuel Pedrosa estabelece o paralelismo simbólico da movimentação ascendente ou descendente no espaço de reclusão das vítimas de conflitos de incesto em relatos tradicionais, entre os quais Delgadinha e também o conto indiano de Sona e Rupa, o conto ruandês de Byalbuti e o mito greco-latino de Mirra, relatado nas Metamorfoses de Ovídio. Cf. José Manuel Pedrosa, “Mirra en su árbol, Delgadina en su torre, la mujer del pez en su pozo: el simbolismo arriba/ abajo en los relatos de incesto”, Revista de Folklore, nr. 312, Tomo 26b, 2006, pp, 183-194, Fundación Joaquín Diaz, disponível na Internet em http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=2350, arquivo acedido em 30 de Dezembro de 2009. 565 274 A REVELAÇÃO DO SENTIDO D/229 Vilhena (1995) 124-125 9.”Ao fim de sete anos e um dia, Delgadina, enfadada, 10.assomou-se a ‘ma janela, uma janela mui' alta,” D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168 Como no castigo está implícito o isolamento e as janelas simbolizam um elo de ligação com o exterior, o seu aparecimento na narrativa significa uma abertura à possibilidade de reparação do mal, por aqueles a quem recorre. Quando reaparece, vem física e moralmente debilitada e o desespero da sede parece decidir a jovem a tentar que a família a auxilie, pedindo água às irmãs, aos irmãos e à mãe, podendo a sequência alongar-se com a inclusão de outros parentes e, até, de criados, no pressuposto de que a família seria o natural apoio contra um tão cruel procedimento paterno. No entanto, cada um deles, na sucessão de janelas que se vão abrindo a Delgadinha, nega a ajuda à vítima, e nenhum tenta sequer reparar a injustiça de que esta é alvo, mesmo nos casos em que a lamentam. Mais uma vez, o suporte significante indirecto reside nas relações de Poder dentro desta família, que o pai domina, com poder de vida ou de morte; nesta hierarquia de poderes, seguir-se-ia a mãe, cujo papel de protectora é anulado ora pela sua fraqueza, na incapacidade de se opor ao poder do pai, ora por sentir a possibilidade de uma inversão de papéis, vendo na filha uma rival. Equiparados em termos de poder estão os filhos, e os irmãos de Delgadinha aceitam o seu papel de sujeição ao pai, podendo declarar expressamente a sua adesão ou receio, por isso nada fazem para ajudar Delgadinha, nem mesmo as irmãs, a quem poderia suceder o mesmo. A própria jovem apenas pede à família que a ajude a suportar a sede, mas não pede que a liberte nem que interceda por ela, o que indica que, embora se tivesse oposto ao pai, o fez porque a proposta incestuosa ultrapassou os limites do Poder paterno, parecendo aceitar a reclusão como castigo da desobediência, mas não a falta de água, cujo simbolismo tem outras conotações, a que nos referiremos mais adiante. 275 A REVELAÇÃO DO SENTIDO As respostas são sempre negativas, ressalvando-se que, no conjunto das versões de Delgadinha, se verifica grande variação nas respostas ao pedido de água, a que voltaremos no capítulo III desta Parte. Sequência IV. A cedência 1) Suporte significante directo: 23. “Desceu à janela do fundo, do fundo que a torre tinha; 24. avistou o seu papá do quintal para a cozinha. 25. - Ó papá que Deus me deu, dê-me uma pinguinha d'água; 26. a água alimenta a vida, o coração e a alma. 27. - Eu a água não ta dou, eu a água não ta dava; 28. pedi tua mão direita, disseste que ma não davas. 29. - Aqui tem minha mão direita, faça dela o que quiser; 30. bem se pode ir gabar que sou filha e mulher.” D/73 Alberto Correia/António Nunes (1978a) 329-330 Delgadinha avista o pai, a quem pede água, nos mesmos termos com que o fez à restante família. Este continua a negar e ela informa-o que cederá em troca de água. 2) Suporte significante indirecto: Tal como a anterior, também esta sequência não carece de um processo de identificação de pressupostos, sendo narrativamente explícita. No entanto, deve articular-se com a seguinte, uma vez que se trata agora de um pedido dirigido ao interlocutor que é o detentor do Poder de o fazer, bem como da disposição de Delgadinha, numa relação causa/efeito. No eixo pedido/envio, os elementos do primeiro implicam a natureza do segundo, ou seja, a água é enviada, porque Delgadinha declara que já está disposta a cometer incesto com o pai, como acontece na versão que nos serve de suporte significante directo e ele fá-lo, obviamente, porque conseguiu o que queria, o que implica que se apressa a fazer a água chegar à filha, na sequência seguinte. Se, pelo contrário, houver na versão elipse da cedência 276 A REVELAÇÃO DO SENTIDO explícita da filha e o pai mesmo assim envia a água, o arrependimento deste acaba por ser insinuado. Há, pois, várias alternativas dos segmentos sequenciais, nesta sequência, a ditar divergências de sentido nas razões pelas quais a água é enviada, e preferimos retomar esta questão no Capítulo III, porque nele se abordarão os efeitos no sentido provocados por elipse ou substituição das sequências e segmentos sequenciais. Sequência V. O envio da água 1) Suporte significante directo: 22. “- Vão criados e criadas levar auga à Aldininha, 23. O primeiro que cá chegar terá uma prenda minha 24. E o último que lá chegar terá a cabeça cortada.” D/123 Correia (1984) 293-294 O pai ordena que a água seja imediatamente levada a Delgadinha, geralmente com promessas de prémios para o primeiro e ameaças para o último que lá chegar. 2) Suporte significante indirecto: Esta sequência é narrativamente muito rápida e poucas vezes deixa de estar presente nas versões. O seu suporte significante indirecto reside na sequência anterior, ou seja, na razão por que o pai manda a água, e não faz mais do que concretizar a relação causa/efeito atrás mencionada. Sequência VI. Morte de Delgadinha 1) Suporte significante directo: 25. “Quando eles lá chigaram, Aldininha estava morta, 26. c' um reguinho d' água ao pé, com sete anjinhos à porta.” D/125 Marques/Silva (1984-1985) 113-114 277 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Quando a água chega, Delgadinha está já morta. Junto dela encontra-se uma fonte milagrosa de água ou/e entidades celestiais. 2) Suporte significante indirecto: Depois da implicação lógica do imediato cumprimento da ordem dada pelo pai no momento anterior (# A ordem do pai é imediatamente cumprida), a sequência final é rápida e sucinta e a sua importância está na própria brevidade, o que serve à intenção do romance. Deduzindo-se que o fazem a toda a pressa, os portadores da água mesmo assim já não chegam a tempo de salvar a vida de Delgadinha; caso o desfecho não fosse a morte da jovem, que é imediata e por isso narrada com toda a rapidez566, perder-se-ia o dramatismo do romance, tanto mais que, se ela sobrevivesse, pôr-se-ia a questão de ter de ceder realmente ao pai, desvirtuando o sentido global de Delgadinha. Assim, o suporte significante indirecto desta sequência é intrincado; são forças superiores (cristianizadas ou não), exteriores à intriga e únicas que o podem fazer, que intervêm para resolver o conflito instaurado na família – o Poder do pai frente à resistência da filha. Por outro lado, assenta também noutra questão que dá ao romance um realismo cru - é que a resistência humana tem limites e Delgadinha encontrava-se prestes a ceder; visto que a família, quaisquer que sejam as razões invocadas, coloca-se ao lado do agressor e não a apoia, o incesto só é evitável, narrativamente, à custa da morte da vítima. Moralmente, a solução é proporcionada pela intervenção de poderes superiores, o que fica implícito pela presença das entidades divinas junto de Delgadinha e assim é entendido por certos informantes, como o comprova o comentário à versão D/215 Cardigos/Marques (1994a) 15, que atribui a solução à intercessão de Nossa Senhora: “Morreu. Nossa Senhora deu-lhe a morte, para o pai não se gozar com ela.” Aprofundando 566 Ressalve-se que, embora refiramos a brevidade narrativa do incidente, nas versões a sequência pode ser muito alongada, fundindo-a com um Prolongamento, com a descrição das mais diversas entidades celestiais que acompanham Delgadinha na morte e as penas do inferno destinadas ao pai. 278 A REVELAÇÃO DO SENTIDO este sentido, diremos que a morte vem, na verdade, gorar o intento do pai, mas, sobretudo, impedir a quebra moral de Delgadinha no momento preciso em que ela se dispõe a ceder. 1.4. GERINALDO Sequência I – A Sedução 1) Suporte significante directo: 1. “Leonardo, Leonardo, pagem d'el-rei tão querido, 2. Bem podias ó Leonardo estar duas horas comigo. 3. - Não rias de mim, Senhora que sou um vosso cativo. 4. - Eu não rio ó Leonardo é verdade o que te digo. 5. - Senhora, quando mandais que venha em vosso serviço? 6. -Vem às dez ou vem às onze, que meu pai steja dormindo 7. Traze capa e capuz para não seres conhecido; 8. Traze sapatos de lã para não seres cá sentido.” G/7 Azevedo (1880) 69-71 A primeira sequência do romance, por norma, é um diálogo entre a infanta e Gerinaldo 567 , repartido por cinco segmentos sequenciais: 1) A infanta propõe a Gerinaldo que passe a noite com ela; 2) Gerinaldo duvida da veracidade da proposta; 3) A infanta reafirma a proposta; 4) Gerinaldo pergunta quando deve ir; 5) A infanta marca a hora do encontro, com instruções para não ser ouvido ou reconhecido. 2) Suporte significante indirecto: A fala que abre o diálogo poderia, numa leitura menos atenta, ser entendida como uma proposta espontânea, partindo de uma qualquer jovem, um tanto livre de costumes, sim, mas enamorada de outro jovem. Este convite da infanta tem feito com que o romance seja classificado, por vários editores, no grupo dos romances de “mulheres 567 Este diálogo falta no folheto de 1537. Cf. Pidal [1973], pp. 224-256. 279 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sedutoras”, conotado que é habitualmente como uma forma de assédio sexual feminino 568 sobre um jovem pajem e que este não deixa de fazer notar, na quase canónica réplica equivalente a “Troçais de mim porque sou um criado”. Há até um agravamento desta disparidade numa variação lexical que faz de Gerinaldo um “cativo” (4.“- Mangareis, minha Senhora, porque sou vosso cativo?”, G/184 Lacerda (1994) 27-30). Contudo, esta interpretação não é consensual. Manuel Viegas Guerreiro, sobre a inclusão de Gerinaldo naquele grupo, diz que o pajem terá sido o sedutor, resultando a proposta de um relacionamento anterior entre este e a infanta e, note-se, “na parte da história que não se conta”, o que equivale a um suporte significante indirecto: “Atrevo-me a pôr em reserva tal classificação. Se versões há em que o pagem do rei é amado sem o saber e cai seduzido, inundado de volúpia, nos braços da infanta, em outras, na 568 Uma imagem de um Gerinaldo perseguido e, até, atormentado, neste caso não por uma infanta, mas pela rainha, é apresentada no seguinte poema de uma das figuras do modernismo em Espanha, Manuel Machado (1874-1947): GERINELDOS, EL PAGE Del color del lirio tiene Gerineldos dos grandes ojeras; del color del lirio, que dicen locuras de amor de la reina. Al llegar la tarde, pobre pajecillo, con labios de rosa, con ojos de idilio; al llegar la noche, junto a los macizos de arrayanes, vaga, cerca del castillo. Cerca del castillo, vagar vagamente la reina le ha visto. De sedas cubierto, sin armas al cinto, con alma de nardo, con talle de lirio. Manuel Machado, Alma-ars moriendi, Madrid, Catedra, 1988. O romance Gerinaldo e a figura do pajem têm inspirado outras manifestações literárias, sendo o seu aproveitamento ora simbólico ora burlesco, ou como protótipo positivo ou negativo, logo no século XVI, no Siglo de Oro espanhol e depois, no pós-romantismo e no modernismo, em outros romances, em poemas ou no teatro. Consultar, para este assunto, o Capítulo III do vol. VIII (***) de Catalán, Cid [1975, 1976]. 280 A REVELAÇÃO DO SENTIDO parte da história que não se conta, aceita-se que o motivador do desafio possa ter sido Gerinaldo. Ou nem uma coisa nem outra; o amor nasce de encontro, gera-se um afecto recíproco, sem que haja rigorosamente sedução”. 569 No artigo, Viegas Guerreiro analisa a versão brasileira na qual um “príncipe” se apaixona pela “princesa” e tenta aproximar-se dela, disfarçando-se de jardineiro 570 . O autor acrescenta então: “O que, de qualquer modo, mal se aceita é que decisão tão perigosa se tenha tomado sem outros antecedentes”. O autor, que dá a tradição antiga como prova de um “Gerinaldo galanteador”571, encontra indícios que denunciam “anterior intimidade” do pajem e da infanta nas versões que cita572; transcrevemos os versos que terão feito o autor chegar àquela conclusão: 1.“- Gerinaldo, ó Gerinaldo, pajem d' el-rei mais querido, 2. porque num me falas d' amor quando te encontras comigo? 3. - Eu sou vosso vassalo, sou vosso pajem querido!” G/19 Tavares (1906) 279 Também Enrique Baltanas vê na proposta da infanta um desígnio que, embora apaixonado, não é erótico, apoiando-se nas versões em que ela manifesta o desejo de casar. Segundo o autor, o romance triplo Conde Niño + Gerineldo + La condesita desenvolve o que já estava no romance simples, ou seja, a infanta é um tanto atrevida, mas não caprichosa, sendo capaz de lutar pelo seu amor; o caprichoso é Gerinaldo, que se negará a casar (ou dificultará o casamento indo para a guerra) tanto quanto é pusilânime no confronto com o rei. A problemática do romance seria, então, mais a das 569 Cf. Guerreiro [1988]. A versão em causa está transcrita após as versões do corpus e identificada como G/GRPP 364, em Grupo A de Anexos, Versões de Gerinaldo. 571 Viegas Guerreiro refere, como outras evidências de que o pajem é um “galã”, o pliego suelto de 1537 e outras versões de Gerinaldo, bem como a existência da expressão ou sua equivalente “ser más galán que Gerineldos”, registada em 1627 pelo Maestro Gonçalo Correas, utilizada por Quevedo relativamente ao Cid e também por Lope de Vega, a um “gracioso”, na comédia El Alcalde Mayor. Cf. Guerreiro [1988] e Guerreiro [1997]. 572 O autor cita as versões de Garrett, de Teófilo Braga (de S. Miguel, que será a nossa G/3 Braga (1869)/Braga (1982) 265-267), de Pere Ferré (de Porto Santo, que será a nossa G/67 Ferré (1982) 232234) e numa de Vasconcellos (de Torre de Moncorvo, que na verdade foi primeiro editada por José Augusto Tavares Teixeira e é a nossa G/19 Tavares (1906) 279). 570 281 A REVELAÇÃO DO SENTIDO relações sexuais pré-matrimoniais do que a da sedução, da oposição mentira/verdade ou do poderoso frente ao mais fraco, ainda segundo Baltanás, que, todavia, não descarta a atracção inicial dos dois jovens, de estirpe semelhante573. Sendo a atracção mútua uma circunstância a ser levada em conta, já a possível “anterior intimidade”, embora lógica574, terá uma importância menor na razão de ser da intriga, cujo interesse reside não tanto nos antecedentes do encontro amoroso dos dois jovens como no desenrolar dos acontecimentos que se lhe seguem, com a intervenção do rei. Em Gerinaldo (qualquer que seja o primeiro a seduzir), o convite, em si, não carece de antecedentes a pressupor. É a própria identidade das personagens e a relação entre elas que constituem a razão de ser da intriga. O suporte significante indirecto será, então, uma oposição de género, visto que a proposta é feita por uma mulher, ao contrário do que é socialmente aceite. A resposta do rapaz, que se representa um tanto relutante, em muitas versões, é reveladora de que situação não é tão simples como se os dois tivessem o mesmo estatuto. Estas circunstâncias são implicitamente fornecidas pelas próprias personagens, em primeiro lugar pela infanta, no tradicional incipit (“- Gerinaldo, Gerinaldo, pajem do rei…”), que identifica o interlocutor e lhe refere a qualidade social. A réplica do pajem, por sua vez, mesmo não nomeando a interlocutora, fornece não só elementos que a identificam socialmente como também indicam a relação entre ambos (“criado, “cativo” ou “vassalo”), ficando desde logo inferida a disparidade de estatutos. É, aliás, da “fala” de Gerinaldo que se depreende que a personagem feminina é a filha do rei, pois tal não se diz explicitamente, embora na versão usada como suporte significante directo, quem 573 Cf. Enrique Baltanás [1996], “Una Heroína Anonima del Romancero. La princesa de Gerineldo”, Revista de Folklore, Tomo: 16b, nr.187, 1996, Fundación Joaquín Díaz, pp. 14-20, disponível em http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=1535, arquivo acedido na Internet em 15 de Dezembro de 2009. 574 Esta “anterior intimidade” dos dois é circunstância a ser já pressuposta porque saber-se-á, na sequência do Dilema do Rei, que o pajem foi por ele “criado de pequenino”, indiciando uma convivência prolongada com a infanta. 282 A REVELAÇÃO DO SENTIDO fala adjective o pai como “rei tão querido”575. Deste modo, o que importa, em Gerinaldo, é outro tipo de pressupostos, não sendo tanto a natureza sexual do convite que está em causa, mas antes certos condicionamentos sociais, em cujas normas está subentendido que aos indivíduos de condição servil é interdito manterem relações amorosas com as filhas dos seus superiores hierárquicos; neste caso, a infracção agrava-se por se tratar de alguém que é inerentemente a herdeira do reino, subentendido este que, por sua vez, origina o Dilema do Rei, no qual reside o ponto fulcral do romance. O próprio Gerinaldo entende estas implicações e fará a inferência - é porque é um criado que o convite da infanta para dormir com ela (que é um acto interdito à sua condição) só pode ser uma brincadeira ou insanidade daquela: 3.“Como eu sou vosso criado, senhora, mangais comigo.”, G/31 Leite (1958) 302 3.“- Ou a senhora está louca ou está para zombar comigo.”, G/103 Ferré (1987a) 67 Por isso, o pajem chega a recusar, por vezes apresentando explicitamente a razão (em sublinhado): 3. “- Isso não, minha senhora, que não me é permitido”, G/35 Leite (1958) 306 Contudo, as hesitações do pajem não o impedirão de, com menor ou maior rapidez, anuir ao solicitado: 4. “mas se isso é assim, dizei a hora a que hei-de vir”, G/11 Dâmaso (1882) 235-236 A infanta é que é determinada, tanto que reafirma a proposta, em certas versões: 4.“- Leonardo, eu não zombo, deveras falo contigo.”, G/64 Ferré (1982) 229-231 575 Com esta expressão, a protagonista pode especulativamente referir-se ao pai (que lhe é querido) ou ao “[para si] mais querido dos pajens do rei”. Só a seguir (a negrito) se entende que fala do pai (6.“- É das oito para as nove; o rei, meu pai, é adormecido.” – G/52 Pestana (1965) 93-94). 283 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Não deixa, apesar de tudo, de ser cautelosa e dá-lhe instruções precisas quanto à hora a que há-de apresentar-se e, até, ao que há-de trazer vestido e calçado para não ser reconhecido nem fazer barulho: 4.“- Traz o teu capote em volta p'ra nã seres conhecido, 5. sapato d'holanda fina para nã seres sentido 6. e deita a mão àquela chave, vai ao quarto ter comigo.” G/65 Ferré (1982) 231 O secretismo é, pois, essencial. Mesmo que, na Sequência I, tenha havido elipse destes segmentos sequenciais, far-se-á a inferência lógica de que Gerinaldo acaba por se convencer. Sequência II – O encontro amoroso 1) Suporte significante directo: 7.“Inda as dez não eram dadas, já Gineraldo era vindo. 8. Chega ao quarto da princesa deu um ai, deu um gemido, 9. E ela de lá respondeu: Quem será o atrevido? 10. - (E) é o Gineraldo, senhora que vou p'ra ser cupido.” G/173 Galhoz (1987) 413-414 Nesta sequência, Gerinaldo está já à porta da infanta e faz-se anunciar. Ela pergunta de quem se trata e ele identifica-se. 2) Suporte significante indirecto: O pajem, num salto temporal narrativo, dirige-se já ao quarto da infanta, sendo a informação geralmente explícita e não necessitando de um exercício de pressuposições para o entender576. Como Gerinaldo ora bate à porta ora se limita a suspirar, fica a infanta na dúvida sobre “quem é o atrevido”, até porque lhe mandara que não fizesse barulho e por isso 576 O que há, nas versões, é alguma variação de sentido quanto à presteza com que o faz, o que abordaremos no Capítulo III. 284 A REVELAÇÃO DO SENTIDO dirá: 13.“- Cala, cala, Gerinaldo, entra por este postigo.”, G/13 Pires (1899)/Pires (1982) 157; de qualquer modo, como sabe que o risco é grande, certifica-se, perguntando de quem se trata. O pajem identifica-se, dizendo ao que vem, com o último dos exemplos abaixo a denunciar que o faz um tanto forçado: 9.“- Gerinaldo sou, senhora, que venho ao prometido.”, G/ 9 Leite (1881) 62-64 8.“É General, senhora, que vem ao vosso serviço.”, G/11 Dâmaso (1882) 235-236 9.“Gerinaldo sou, senhora, que ao vosso mandado vinha.”, G/31 Leite (1958) 302 Finalmente, o pajem entra no quarto da infanta, que, por vezes, reforça o convite: 9.“ - Dá-me a mão, General, vem-te aqui deitar comigo.”, G/11 Dâmaso (1882) 235-236 O suporte significante indirecto da narrativa, até aqui, reside na sedução feminina constituir uma infracção, o que representa uma oposição de género, mas esboçando já a questão da hierarquia, implícita no tom de quase ordem da infanta. Sequência III – O delito 1) Suporte significante directo: 12.“Toda a noite estiveram brincando só pela manhã dormindo” G/26 Dias Martins (1954) 294-296 O suporte significante directo desta sequência, na maior parte das vezes, limita-se a uma breve informação sobre o que se passou no quarto. 2) Suporte significante indirecto: Entretanto, a questão da hierarquia, nesta sequência, parece ficar em suspenso e, narrativamente, serve a não deixar dúvidas sobre a consumação das relações dos dois amantes, embora sempre de forma eufemística, quer pelo lexema “dormir” (a), quer por recurso a um termo comparativo (b): 285 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (a) : 10.“Foram-nos dois para a cama, foram-nos dois a dormir.”, G/169 Galhoz (1987) 406 (b) : 14.“Foram-se deitar na cama como mulher e marido.”, G/21 Mendonça (1911) 2-4 Beijos e abraços é o mais que se diz desta relação: 11.“(E) ela numa mão agarrou-o e p'ra sua cama o levou, 12. Tantos beijos e abraços (e) arregalado ficou.” G/173 Galhoz (1987) 413-414 A eufemização vai ao ponto de apresentar os amantes a apenas conversarem: 9.“Tanto conversaram ambos que pela manhã eram dormidos.”, G/12 Pires (1885l) [X]XL Se objecto de elipse, o facto apenas poderá ser pressuposto, quer por recurso à lógica narrativa da sequência anterior, constituindo uma sua implicação, quer por se encontrar subentendido em versos como estes: 12.“- Anda cá, ó Gerinaldo, podes-te deitar comigo. 13. Já era quase sol-fora e Gerinaldo dormido.” G/22 Thomás (1913) 8-11 Outras vezes, só a existência da sequência V, na qual o rei os encontrará dormindo juntos “como marido e mulher”, dá essa informação. Mesmo que também esta falte, como na versão seguinte, ainda se revela que os dois passam juntos a noite, pois, imediatamente a seguir à apresentação de Gerinaldo à porta da infanta, a “fala” desta permite essa dedução lógica: 9. “- Acorda, Gerinaldo, acorda! Ai de nós! 'Siamos perdidos! ... 10. A espada de meu pai entre nós os dois metida!” G/179 Carvalho Rodrigues (1990) 203 286 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência IV – O despertar do rei 1) Suporte significante directo: (a) - O rei tem um sonho e desperta: 11. “El-rei tivera um sonho que bem certo lhe saiu: 12. Que dormiam co'a infanta ou tinha o reino perdido. 13. Levantou-se el-rei da cama, mal calçado, mal vestido. 14. Pegou em seu 'spadim d'ouro, e foi rondar o partido. 15. Incontrou braço com braço, como mulher e marido.” G/207 Eira (1999) 63-64 (b) – O rei desperta naturalmente: 11. “Acordou o senhor rei, do sono qu'era dormindo, 12. Chamara por Leonardo, não lhe fora respondido. 13. - Ou Leonardo está morto, ou ca infanta adormecido. 14. Foi à cama de Leonardo, por ali não o acharia, 15. Foi à cama da bela Infanta, .................................... 16. Ambos estavam abraçados, um com outro, como a mulher com o marido.” G/175 Galhoz (1987) 415-416 Nesta sequência, o rei acorda e procura Gerinaldo, a quem encontra deitado com a filha. 2) Suporte significante indirecto: Daqui em diante, a intriga passará a ser sustentada ainda mais claramente pela desigualdade da condição dos intervenientes, sendo esta a sequência que desloca a focagem da narrativa para as implicações da infracção cometida. O suporte significante indirecto alarga-se às relações de Poder; a infanta e o pajem perdem protagonismo e o rei passa a ser dominante na narrativa - é o “despertar” do rei que permite a esta personagem passar a controlar os acontecimentos. 287 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Enquanto os dois amantes se encontram no quarto, o rei acorda, quer naturalmente quer após ter tido um sonho577. Este é já premonitório e tem o sentido da percepção que o rei toma de duas ameaças implicitamente equivalentes - a segurança do “castelo” e a honra da filha – que tem de defender de igual forma: 11.“O pai sonhou um sono, bem certo l'há saído: 12. Ou me dormiam com a infanta ou me roubam o castelo.” G/131 Fontes I (1987) 489-490 No segundo segmento sequencial, o rei procura Gerinaldo. No caso de ter tido o sonho, quererá confirmá-lo; no caso de despertar naturalmente, começará por chamar o pajem, como é certamente seu hábito, para que cumpra as funções que lhe cabem e o ajude a vestir-se; revela-se a proximidade de ambos, mas também a condição de servidor de Gerinaldo: 15. “Lá pela noite adiante chama el-rei o seu criado. 16. que lhe desse o seu calçado, que lhe desse o seu vestido.” G/21 Mendonça (1911) 2-4 Gerinaldo não responde: 14.“Acorda o rei de repente, chama o seu pajem querido. 15. Mas Gerinaldo não vem p'ra lhe trazer o vestido.” G/22 Thomás (1913) 8-11 13.“(E) eram (n) as dez da manhã e el-rei se queria vestir. 14. Bradava pelo Gineraldo Gineraldo sem acudir.” G/173 Galhoz (1987) 413-414 Quer tenha sonhado quer despertado naturalmente, o rei estranha a ausência do 577 Pidal faz notar que, aparte dos detalhes do despertar do rei, por sonho premonitório ou natural e que já citámos na Parte I, as versões da tradição moderna no Sudeste e do Noroeste da Península são muito semelhantes e faz sobre este romance um estudo sobre os traços comuns e as variantes dessas regiões, advertindo que ambas se juntam ou sobrepõem. O autor regista, no capítulo dedicado ao romance de “Gerineldo”, as características da versão mais difundida nas duas regiões (SE e NO), com os detalhes próprios de cada uma, bem como das variantes, mais ou menos difundidas e das suas ligações aos “pliegos”. Cf. Pidal [1973], pp. 224-256. Assinalamos no “modelo-virtual”, mais à frente, as variantes observadas no nosso corpus. 288 A REVELAÇÃO DO SENTIDO pajem que o serve e pondera as razões, tentando saber onde aquele se encontra 578. Ao procurá-lo por todo o castelo, o rei adia a confirmação da traição revelada pelo sonho ou suspeitada quando o pajem não acode ao chamamento. De qualquer forma, acaba por encontrá-lo deitado com a filha, o que constitui a prova da infracção cometida. Sequência V – O dilema do rei 1) Suporte significante directo: 6.“Para matar Gerinaldo, criei-o de pequenino, 7. Para matá-la infanta meu reino fica perdido. 8. Meteu-le a espada no meio que lhe sirva de castigo.” G/174 Galhoz (1987) 414-415 O rei, perante os amantes adormecidos, confronta-se com o dilema de matar a filha ou o pajem. Decide-se por deixar a espada entre os dois. 2) Suporte significante indirecto: Esta sequência tem um sentido complexo, que se prende com as relações de Poder; o rei vê-se obrigado a dar uma solução ao acontecido, e a única que se lhe afigura adequada é a de castigar a filha e o pajem com a morte, isto porque, implicitamente, a infracção cometida por ambos afecta o Poder real, para além do paternal, dada a sua dupla condição, a de pai e a de rei. No entanto não o faz; no que diz respeito ao pajem, ao ponderar as consequências de o matar, parece prevalecer, no dilema, um amor do tipo paternal (“criei-o de pequenino”), mas as de matar a filha transferem o sentido de uma questão sentimental, de honra familiar ou meramente social para o de uma questão dinástica, que se torna, assim, o suporte significante indirecto 578 O incidente é objecto de variação, que abordaremos no Capítulo III . As intervenções na enunciação e no enunciado. 289 A REVELAÇÃO DO SENTIDO desta sequência, de acordo com o que ficou dito na Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances. O rei decide, então, deixar a própria espada entre os dois, declarando que o faz para que lhes sirva de castigo, embora, na verdade, o motivo “espada” e o acto de a colocar impliquem um simbolismo que será novamente tratado no Capítulo II, dedicado aos motivos. Sequência VI – A descoberta da espada 1) Suporte significante directo: 31.”Con la friúra de la espada, la infanta ha 'stremecido, 32.Y lhamó por Gerineldo: - Gerineldito pulido, 33.Que la espada de mio padre entre nós se ha dormido.” G/89 Mourinho (1984) 161-163 Com alguma variação nas versões sobre quem acorda primeiro e sobre as medidas a tomar, esta sequência relata o acordar dos dois jovens e a descoberta da espada do rei entre ambos. 2) Suporte significante indirecto: Quando os dois amantes acordam, descobrem a espada entre si, constatando imediatamente que o rei os viu. Ambos compreendem de imediato que a espada simboliza o Poder real, que tem poder de vida e morte sobre os infractores. A infanta, certamente por estar mais habituada a mandar, toma a decisão de fazer o pajem procurar o pai (27.”- Corre, corre, General, aos pés de meu pai querido,”, G/95 Cortes-Rodrigues (1987) 172-174), com as variações, nas versões, de lhe pedir perdão, ou de lhe aplicar o devido castigo. O sentido da sequência é o de que o envio do pajem ao encontro do rei descarta a infanta de ser ela a enfrentar directamente o pai, assacando a responsabilidade a Gerinaldo. Deste modo, fornecem-se os elementos que fazem a ligação entre a sequência anterior (a infracção cometida) e a sequência seguinte - a 290 A REVELAÇÃO DO SENTIDO implicação é a de que o pajem deve submeter-se à decisão do rei, o que se prende ainda com a questão do Poder e da hierarquia. Sequência VI – O encontro do pajem com o rei 1) Suporte significante directo: 22. “- Donde vens, ó Gerinaldo, donde vens tão espavorido? 23. - Venho de regar o jardim que já estava esmerecido. 24. - Não me mintas, não, Gerinaldo, pois nunca m'havias mentido. 25. - Venho de dar de beber ao cavalo qu'ainda não tinha bebido. 26. Não mintas, não, Gerinaldo, pois nunca me tinhas mentido. 27. Venho de caçar a rola das bandas d'além do rio. 28. - A rola que tu caçastes, criei-a eu com o meu trigo; 29. estima-a como tua mulher e ela a ti como marido.” G/113 Fontes I (1987) 476-477 Gerinaldo encontra-se com o rei, que o inquire sobre as razões de vir tão perturbado. O pajem vai dando respostas que o rei vai contradizendo, até que determina o casamento com a infanta. 2) Suporte significante indirecto: A primeira “fala” do rei, nesta sequência, corresponde, antes de mais, a uma indicação cénica de que Gerinaldo se apresenta apressado e desalinhado (ver v. 22 do suporte significante directo apresentado), o que é uma indicação do seu estado de espírito. O rei vai-lhe perguntando de onde vem, e as respostas do pajem, cujo sentido referiremos no Capítulo seguinte, dedicado aos motivos, destinam-se a enganá-lo; Gerinaldo enreda-se numa teia de mentiras, e o rei, que lhes percebe o implícito, faz-lhe finalmente ver que bem sabe o que se passou, ao retomar com ironia os subterfúgios do pajem (“A rola que tu caçastes, criei-a eu com o meu trigo;”). O facto é que o casamento é o 291 A REVELAÇÃO DO SENTIDO desfecho tradicional de Gerinaldo – o rei manda o pajem, literalmente, casar com a infanta, mas a questão que se põe é o sentido desta decisão. As razões porque o faz poderiam ser entendidas como do foro moralizador, como fruto da compaixão real ou tomar uma feição punitiva, com um fundo de vingança da afronta recebida, se não radicassem numa parte crucial da Sequência V, ou seja, por ter ponderado as consequências da eliminação dos infractores. Se, anteriormente, a simples colocação da espada entre os amantes subentendia o perdão real, a ordem de casamento parece ratificá-lo579, ao mesmo tempo que lhe confere a feição moralizante. É assim que, em versões que sofrem elipse do dilema do rei, o casamento é imediatamente decidido por este, como reparação do que acaba de ver: 13.“Levantou-se a ver o rei, não viu nada remexido; 14. o Gerinaldo na cama como mulher e marido. 15. - Não te mato, Gerinaldo, nem te dou nenhum castigo, 16. pois casas co'a minha filha, ficais mulher e marido.” G/156 Fontes I (1987) 508 É verdade que, à primeira vista, o rei parece achar graça às respostas evasivas do pajem e ficar aplacado com a sua humildade, apenas dizendo, implicitamente, que de bom grado lhe daria a mão da filha sem o artifício de lhe dormir com ela: 24.“A rola que tu caçaste já ta tinha prometido”, G/43 Leite (1958) 316 No entanto, a solução algo romântica vem subverter a implicação lógica das sequências anteriores, visto que as infracções cometidas pelo par (contra a moral e contra a hierarquia) implicariam uma sanção mais pesada, não deixando o atrevimento de ser comentado: 23.“- Leonardo, Leonardo, tu fostes muit'atrevido, 579 Diz Pidal que “el rey tradicional perdona al paje desde el momento en que deja en el lecho su espada” e que as versões modernas acabam com o reconhecimento da culpa e pedido de castigo por Gerinaldo, “al que lo rey contesta ratificando el perdón ya antes concedido, y mandando al paje que se case com la infanta”. Cf. Pidal [1973], pp. 224-256. 292 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 24. te deitares com uma menina, tu sendo dela cativo!” G/67 Ferré (1982) 232-234 A ordem do rei revela-se então como uma forma mitigada de castigo para o pajem, por vezes explicitamente, remetendo o termo “pois”, na versão abaixo, para o subentendido “foi cometida uma infracção”, equivalendo a “já que [o foi]… então…”: 19.”- A rola que tu caçaste, bem na caçaste no ninho. 20. Pois casarás com ela, que te sirva de castigo” G/31 Leite (1958) 302 Neste e noutros casos, o rei não parece ter a própria filha em muito boa conta, nos exemplos que seguem, se, ao invés de atribuirmos uma certa bonomia ao que diz, o entendermos num sentido mais sarcástico – casar com ela é o castigo: 27.“- O castigo que eu te dou fazê-la casar contigo 28. Chamares-lhe tua mulher e ela teu marido.” G/26 Dias Martins (1954) 294-296 24.“Agora hás-de casar com ela, para que te sirva de castigo.” G/44 Leite (1958) 316-317 Outras vezes parece ressentido, dizendo por meias palavras que o faz porque não tem outro remédio e que já tinha outro marido em vista para a filha (v. 21): 19.“- Venho de regar uma rosa que 'tava no jardim ressequida. 21. A rosa que tu foste regar, já outro tinha no sentido; 22. recebe-a por tua esposa e ela a ti por seu marido.” G/131 Fontes I (1987) 489-490 Ordenado ou consentido, de melhor ou pior vontade, o casamento, na maioria dos casos segue-se, como dissemos, ao diálogo prévio, no qual o rei parecera brincar com Gerinaldo, um pouco como no jogo do gato e do rato; dado que o suporte significante indirecto desta sequência assenta na questão dinástica, este jogo revela-se teste ou prova 293 A REVELAÇÃO DO SENTIDO a que submete o pajem, para ajuizar da capacidade deste em lidar com tão grave problema e preparando, então, a decisão final, que será o casamento com a filha. De qualquer forma, a solução encontrada pelo rei resolve duas questões: a ordem moral é reposta, pois salva-se a honra da infanta, e a segurança do reino fica salvaguardada, com a herdeira viva, a legitimar a dinastia, mas com um homem no trono, de acordo com a axiologia implícita580. Veja-se, comprovando-o581, o que o rei diz, na versão abaixo: 9. “- Gerinaldo, Gerinaldo, Gerinaldo amigo; 10. se venceres esta batalha, serás meu genro querido.” G/61 Fontes (1980) 71 2. A elaboração de um “modelo-virtual” dos romances A análise das sequências explícitas de cada romance conduziu à identificação de outras sequências, não actualizadas discursivamente, mas implícitas, quer por pressuposição quer por implicação 582 . Certamente que, nas versões, se observam desvios e variações, quer semânticas quer, até, da narrativa, chegando, em certos casos, a uma alteração de sentido. Contudo, considera-se que, na sua maioria, tais desvios não chegam a denegar a existência de uma invariância do romance, conforme se depreende do afirmado por Maria Aliete Galhoz: “a própria canonicidade fundamental por que se reconhece cada romance admite a adstrinção de variações particulares em alongamentos ou metáforas que não ‘desconhecem’ o romance mas o vivificam com fórmulas paralelas ou sinonímicas (em raros casos surgem aberrantes) reflectoras de uma comunidade específica”583. 580 Ver Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances. O fenómeno da variação, contudo, originará precisamente o sentido contrário numa versão na qual o rei entende que o casamento repara a honra da filha, mas fará perder o reino: 17.”agora casas com ela e o reinado está perdido.”, G/117 Fontes I (1987) 479-480 . 582 Esta identificação de sequências pressupostas ou implicadas distingue-se do processo de verificação de elipse de sequências próprias da narrativa do romance, que acontece nas versões, por razões várias. 583 Cf. GRPP I, p. LVI. 581 294 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Assim, a conjugação das sequências explícitas e implícitas permitiu a reconstituição do programa narrativo completo do romance e pode, agora, ser elaborada uma construção artificial esquemática, a que se chamou “modelo-virtual”584, que visa reproduzir a “canonicidade fundamental” do romance, essa estrutura completa que se entende invariante, sob pena de alterações de fundo virem a transformá-lo em um outro romance diferente. O modelo-virtual que ora propomos para cada romance do nosso corpus585, ao mesmo tempo que dá conta da sua invariância, admite a anotação de variantes encontradas nas versões, assinalando-as como tal586. Um modelo fechado, que apenas se fixasse na invariância fabular, iria depreciar aquilo que, precisamente, é a característica mais marcante da literatura oral tradicional, a sua capacidade de abertura. Cada romance, repetimos, ocorre em versões e, nelas, podem ser identificadas alterações das sequências e segmentos sequenciais587 próprios da narrativa “canónica”. É também nas versões que surgem contaminações com outros romances, soluções diferentes nos desfechos, elipses, acrescentos, prolongamentos ou encurtamentos das cenas, inversão na ordem das sequências, adendas de versos de sentido moralizador ou avaliativo e mesmo junção de composições do cancioneiro e remates de cantigas. Deste modo, a 584 O termo retoma-se da terminologia de Catalán, cuja noção de virtualidade fora já referida ao insistir em que cada romance não é um “discurso” fechado, mas uma estrutura aberta, constituindo “un programa virtual, sujeto constantemente (aunque muy lentamente) a transformación como consecuencia del proceso mismo de actualización o producción que da lugar a cada nueva versión cantada (o recitada)”. Cf. Catalán [1997], p. 113. 585 Um “modelo-virtual” seria, idealmente, constituído pelo conjunto de todas as versões do romance de todas as tradições e espaços, temporais e geográficos. A nossa proposta baseia-se nas versões do corpus, registadas em BRPTOM, que entendemos reproduzirem a invariância narrativa de cada um dos romances em causa, uma vez que verificámos que esta é também coincidente com a do largo número de versões de outras tradições pan-hispânicas que nos foi dado consultar. 586 O nosso objectivo é criar um tipo de modelo aberto, que facilmente acolha novos dados, quer em relação a versões já recolhidas quer àquelas que ainda o venham a ser. As divergências, logicamente, são do domínio do fenómeno da variação, que afecta sobretudo segmentos narrativos, mantendo uma notável constância do modelo de fundo. Não se tratando, contudo, de um estudo exclusivamente sobre a variação, não teremos a preocupação de assinalar de forma exaustiva todas as pequenas variações lexicais encontradas no corpus, mas a de dar conta da variação situacional para poder ajuizar dos seus efeitos sobre o sentido. 587 Cf. Anexos - Grupo B. B7. Exemplificação da divisão das versões em sequências. 295 A REVELAÇÃO DO SENTIDO própria estruturação do modelo possibilita o cotejo de cada versão com a invariância do romance, facilitando a identificação das variantes e dando conta de quais as versões completas ou fragmentadas588. O modelo-virtual proposto divide a narrativa invariante em sequências e estas em segmentos sequenciais, que se descrevem sucintamente, e será indexado da seguinte maneira: - Sequências: São identificadas por numeração romana e intituladas com uma palavra ou frase-chave: Ex: Sequência I – Título, Narração dos sucessos da sequência Sequência II – Título, Narração dos sucessos da sequência ………. - Situações ou ocorrências alternativas 589 , dentro da sequência a que pertencem: São assinaladas com maiúscula: Sequência I - A), B), C)… Ex: Gerinaldo - Sequência IV. O Despertar do Rei: A) O rei desperta porque tem um sonho premonitório. B) O rei desperta naturalmente. - Segmentos sequenciais: Dentro da sequência a que pertencem, são identificados por numerais: Ex: Sequência I 588 Uma vez que, modernamente, as recolhas se fazem acompanhar de elementos extra-textuais de identificação (nomeadamente local, data de recolha e informante), este modelo também facilitará, cremos, os estudos comparativos, relativamente às diversas áreas geográficas nacionais e ao mundo pan-hispânico, bem como a perspectivação dos efeitos da passagem do tempo sobre cada romance. 589 Distinguimos entre “situação” (“combinação ou concorrência de acontecimentos ou circunstâncias num dado momento”) e “ocorrência”, esta como uma possibilidade de “acontecimento, sucesso”. Cf. Dicionário Houaiss, Tomo VI, p. 3348 e Tomo V, p. 2654, respectivamente. 296 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1) Narração do sucesso 2) Narração do sucesso ……….. - Situações ou ocorrências, dentro dos segmentos sequenciais: São precedidas por uma letra minúscula: a), b), c)... Ex: em Bernal Francês: Sequência IV. A punição. Segmento sequencial 1): Ao perceber que se trata do marido, A) a mulher tenta ainda salvar-se; a) diz-lhe que teve um sonho, b) pede perdão…. - Pequenas variantes semânticas: São indicadas em itálico, separadas por barras, (Como em torre/ convento/palácio, espada/punhal, a mais bonita/a mais nova/a mais velha das filhas). - Sequências implícitas/pressupostas: Indicam-se com o sinal #. No modelo-virtual que propomos são ainda assinaladas outras possibilidades. Muitas versões apresentam um acrescento de número variável de versos, que podem ou não afectar a narrativa “canónica”. Se o fizerem no final, serão denominados como Prolongamentos, uma vez que prolongam a intriga sem propriamente a modificar, sendo seus exemplos as lamentações das personagens, em Veneno de Moriana, ou a ascenção ao Céu da jovem, em Delgadinha. Também neste caso estão os ditos e certas composições do cancioneiro que finalizam algumas versões e, que, pelas suas 297 A REVELAÇÃO DO SENTIDO características sentenciosos ou moralistas, são denominados post scripta. Acontece também que algumas versões dos romances apresentam contaminações com outros (ou com parte deles), o que lhes alonga a narrativa, mas em moldes diferentes dos “prolongamentos”, uma vez que não só surgem em situação inicial, intermédia ou final, como introduzem na intriga outras situações. Na perspectiva em que o elaboramos, estes casos são de assinalar no “modelo-virtual”, tanto mais que a possibilidade de uma sua persistência em número considerável de versões pode indiciar transformações estruturais nos romances; certos casos, como o da junção de Queixas de D. Urraca a Silvana na tradição madeirense ou a de A Aparição a Bernal Francês, tornam mesmo conveniente que se assinalem estes fenómenos num modelo deste tipo. Por outro lado, a importação de um ou dois versos de um romance em versão de um outro, não será, necessariamente, registada. 3. “Modelo-virtual” dos romances do corpus 3.1. BERNAL FRANCÊS Sequências pressupostas # - O marido encontra-se ausente # - A mulher tem um amante # - O marido descobriu o adultério Sequências implícitas encaixadas # - o marido conhece a identidade do amante da mulher # - decide confirmar a veracidade da informação # - congemina uma armadilha que confirme a informação # - O marido regressa a casa, disfarçado de modo a assemelhar-se a Bernal Francês 298 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência I – A mistificação: [# lógico encadeado: Alguém dentro de casa ouve bater à porta < Alguém quer entrar numa casa] Modos de abertura: A – Diálogo a) iniciado por voz feminina b) iniciado por voz masculina B – Introdução narrativa C – Monólogo reflexivo A - Diálogo Uma personagem pede que lhe abram a porta e outra, de dentro de casa, pergunta de quem se trata. A primeira identifica-se como Bernal Francês e a outra declara que, sendo assim, vai abrir. a) iniciado por voz feminina: 1) Personagem feminina pergunta quem bate à sua porta/que não a deixa dormir; a) pergunta quem é e declara logo que apenas abrirá a Bernal Francês 2) Personagem masculina responde que é Bernal Francês; a) declara explicitamente ser Bernal Francês; b) anuncia ser/trazer cravos/alecrim [identificação #]; c) faz ameaças se não lhe abrirem a porta. 3) A personagem feminina diz que vai abrir a porta se for Bernal Francês quem bate; a): 1) a mulher começa por recusar abrir a porta 2) o homem identifica-se como Bernal Francês a) # diz ser cravos/ alecrim 299 A REVELAÇÃO DO SENTIDO b) iniciado por voz masculina 1) Personagem masculina bate à porta, pedindo que lha abram; a) identifica-se logo como Bernal Francês b) anuncia ser/trazer cravos/alecrim [identificação #] 2) Personagem responde que, sendo Bernal Francês, vai abrir. a): 1) a mulher começa por recusar abrir a porta; 2) o homem confirma ser Bernal Francês. a) faz ameaças; 3) a mulher diz que, nesse caso, vai abrir. B) - Introdução narrativa Narra que alguém ouviu bater à porta [a) que alguém está a bater/bateu à porta, a determinada hora; b) que Alecrim bate à porta e que Manjerona responde] (Segue-se o diálogo inicial). C) - Monólogo Alguém conta que, estando a dormir, ouviu bater à porta e pondera ir abrir, se for Bernal Francês. Sequência II – O encontro amoroso: Por narrador: A) Extradiegético B) Intradiegético a) a mulher b) o homem C) Forma mista A mulher vai abrir a porta, na convicção de que se trata de Bernal Francês. No 300 A REVELAÇÃO DO SENTIDO caminho, deixa cair um sapato e apaga-se a luz (candil). Introduz o homem no jardim, onde o lava com água perfumada. Deita-se com ele. 1) A mulher, ao ouvir a identificação do homem, vai abrir a porta: a) 1) manda a criada levantar-se e abrir a porta; 2) a criada recusa, alegando que é com a patroa que o homem vem dormir. 1.1) desce as escadas; 1.2) rasga-se-lhe a roupa; 1.3) descalça-se-lhe o chapim; 1.4) apaga-se o candil; [a) desconfia que a querem matar; b) pensa tratar-se de uma brincadeira de Bernal Francês]. 1.5) abre a porta. 2) A mulher leva o homem para o jardim e: a) lava-o com água perfumada; b) lava-se com a mesma água; c) veste-lhe uma camisa; d) faz-lhe uma cama de flores. 3) Deita-se com ele. Sequência subentendida # O homem tem um comportamento sexual passivo. Sequência III – O cair da máscara: A mulher manifesta estranheza perante a passividade amorosa do homem e diz-lhe que não tema os parentes nem o marido, que está longe; o homem revela ser o marido. Modalidades: A) - Perguntas e respostas alternadas B) - Perguntas e respostas em sucessão 1) A mulher pergunta ao homem porque não se vira para ela; 301 A REVELAÇÃO DO SENTIDO a) 1) inquire das razões da indiferença [diferente de ocasiões anteriores]: a) ele terá outros amores; b) disseram-lhe mal dela; 2) ele refuta as hipóteses. 2) 2.1) A mulher diz ao homem que não tema: - os familiares (pai, irmãos, mãe, filhos, filhas, cunhados)/os criados/a justiça/vizinhos) dando-lhe razões; - o marido, que está longe (a combater os mouros; no Brasil, na guerra, na feira). a) roga pragas ao marido ausente. 2.2) O homem responde não temer qualquer dos citados, dando as suas razões. 3) O homem revela ser o marido. Sequência IV – A punição: 1) Ao ouvir o marido dizer que é ele quem ali se encontra, a mulher: A) tenta ainda salvar-se. [a) diz-lhe que teve um sonho; b) pede perdão; c) tenta protelar o castigo; d) afirma-lhe o seu amor; e) pergunta-lhe que prenda lhe traz]. B) pede a morte, explicitamente, como coisa merecida. C) # acaba por aceitar a morte: [a) indica ao marido onde quer ser enterrada; b) pede para se despedir dos pais; c) pede para se despedir do amante; d) pede que a mate com uma toalha; e) pede para se confessar]. 2) O marido [a) diz à mulher que espere pela madrugada] anuncia-lhe lhe dará vestuário e adornos de cor vermelha. [a) diz explicitamente que a matará; b) diz que tem um punhal de oiro, c) diz-lhe que chame por Bernal Francês; d) diz-lhe que chame os pais/os irmãos/as irmãs/o coveiro/o tesoureiro; e) ela deseja que chegue a manhã.] D) Contaminação com Claralinda 302 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1) O marido diz que não a matará, mas que a levará ao pai. a) diz-lhe que chame os pais/os irmãos/as irmãs/o coveiro/o tesoureiro. 2) Ela diz que a culpa não é do pai. # O marido mata a mulher Prolongamento por contaminação com A Aparição: [ Ocorrência de versos de ligação] 1) O amante, ao procurar a amada, é informado da sua morte. 2) Dão-lhe os sinais reveladores. 3) Quer juntar-se a ela na sepultura. 4) A amada aparece e faz-lhe notar a sua condição incorpórea. 5) Diz-lhe: [que a lembre/que dê o seu nome às filhas/que case/não case com uma mulher com o mesmo nome/que dê determinados nomes aos filhos que vier a ter, para que se lembre dos filhos dela/que eduque os filhos, um para militar, outro para clérigo, para que rezem por ela/que os eduque (não os eduque) como ele o foi/ aconselha-o a guardar as filhas, para que não tenham o seu fim]. Post Scriptum 3.2. VENENO DE MORIANA Sequências pressupostas, nos Tipos A e B # - Um cavaleiro/“D. Jorge” prometeu casamento a Moriana # - Moriana sabe já que “D. Jorge” vai casar com outra 303 A REVELAÇÃO DO SENTIDO TIPO A TIPO B Contaminação com Joaquim Caixeiro e Ana Roberta – Um homem enganou uma # Um cavaleiro chega junto de Moriana rapariga, que era séria. Sequência I – O convite Sequência I – O diálogo mãe/filha 1) A mãe pergunta a Moriana a razão da sua Moriana convida o cavaleiro a apear-se e merendar. tristeza; 2) Moriana diz ter sabido que “D. Jorge” vai # - o cavaleiro aceita o convite e desmonta. casar; 3) A mãe/o pai confirma, referindo avisos anteriores (tem por costume enganar donzelas). a) Moriana diz que se vai vingar. Sequência II – Anúncio da chegada do cavaleiro Um cavaleiro chega junto de Moriana. # - o cavaleiro desmonta Sequência III – A confirmação do casamento A): 1) Saúdam-se; 2) Moriana pergunta a D. Jorge se é verdade que vai casar; 304 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3) D. Jorge confirma/convida Moriana para o casamento (a) a noiva é filha da rainha. a) convida-a para madrinha B): 1) Saúdam-se; 2) O cavaleiro convida Moriana para o seu casamento/ noivado; Sequência IV – A oferta do vinho Sequência II – A oferta do vinho Moriana pede a D. Jorge que espere/a) que 1) O cavaleiro pergunta a Moriana o entre no jardim,/ enquanto vai buscar um que que tem para lhe dar; copo/cálice/taça de vinho/licor que tem 2) Moriana diz que tem um copo de guardado para ele. vinho de há sete anos para lhe dar; a) não diz nada e levanta-se; b) vai ao jardim 3) O cavaleiro pede o copo de vinho. colher folhas/resalgar. a) o cavaleiro pergunta se não será tempo demais para ter o vinho guardado Sequência V – A morte do cavaleiro Sequência III - A morte do cavaleiro O cavaleiro bebe o vinho e pergunta a 1) O cavaleiro bebe o vinho e pergunta Moriana o que lhe deitou, pois sente-se a Moriana o que lhe deitou, pois sentedesmaiar. -se desmaiar; # o cavaleiro morre 2) Moriana informa-o dos ingredientes Prolongamento deitados no vinho (veneno). 1) O cavaleiro diz onde quer ser enterrado # o cavaleiro morre Contaminação: Não me enterrem em 305 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sagrado 2) Moriana vai rezar à sua campa Contaminação: Quem dever a honra alheia: cavaleiro aparece-lhe, dizendo que a honra de uma donzela deve ser paga. TIPO A e TIPO B Prolongamento A) Lamentações dos protagonistas: 1) D. Jorge lamenta a mãe, que julga ter o filho vivo [a) o pai; os filhos; a mulher que ficam sem ele). 2) Moriana replica que a mãe dela julgava que a filha iria casar. a) Moriana reafirma a vingança. B) Lamentações do narrador: [a) sobre Moriana; b) o crédito perdido de Moriana; c) os filhos (a esposa)]. C) Moriana confessa-se culpada; vai entregar-se à prisão. Fechos e remates: a) Invoca-se a escrita (tabelião, jornais) como testemunho do mal que fazem as mulheres/os homens b) “Torradas” c) outros 306 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3.3. SILVANA # Antecedentes: Provocação da filha Sequência I – A proposta Introdução narrativa das situações: - Rapariga passeia-se pelo corredor/varanda)/tange um instrumento musical (viola/guitarra)/canta e/ou dança/ penteia-se com pente de ouro. - O pai (que está na cama, na sala, à janela, vem da missa, vem da caça) repara nela (a toda a hora, pela sua beleza). Diálogo: 1) Um pai propõe incesto à filha [ a) compara-a com a mãe]; [a) impõe: contaminação de Delgadinha]; 2) A filha diz que aceitaria, se não temesse o castigo divino; 3) O pai diz que isso tem remédio [ a) ele penará; b) ela penará; c) serão perdoados (pelo Santo Padre)] 4) A filha diz que vai lavar-se e trocar de roupa (para fazer como a mãe). # O pai insiste na proposta; irá ter com ela ao quarto, durante a noite. Sequência II – A intervenção da mãe 1) A filha [a) chorosa, b) praguejando] retira-se [a) vai para o quarto; b) vai procurar a mãe; c) encontra a mãe (dentro/fora de casa); d) chama pela mãe; e) lamenta-se por não ter irmãs a quem confiar o sucedido.] 2) A mãe ouve-a (ouviu os dois a falar) [a) a mãe vem do outro mundo; pergunta-lhe porque chora.] 3) A filha queixa-se do assédio do pai; 4) A mãe manda-a trocar de roupa e de cama consigo. # A mãe deita-se na cama da filha 307 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Sequência III – O estratagema salvador 1) O pai vai ao quarto de Silvana [a) Silvana bate à porta do quarto do pai] e deita-se com a mulher que supõe ser sua filha; 2) Censura-a por não a encontrar virgem [a) ameaça-a antecipadamente se não a encontrar virgem]; 3) A mãe revela a sua identidade; a) nomeia a prole e enuncia os seus títulos. 4) O pai demonstra admiração pelo estratagema. a) agradece à mulher tê-lo livrado do pecado. b) amaldiçoa a mulher/a filha (por o ter descoberto). Contaminações: - Delgadinha – a filha sofre o castigo de Delgadinha. - Queixas de D. Urraca – a filha reclama a herança ao pai moribundo. - A Filha Desterrada (Nave guiada por la Virgen) – a filha é metida numa nau. - Conde Claros em hábito de frade – o conde vem salvar a jovem. 3.4. DELGADINHA # Antecedentes: Ausência de provocação da filha Sequência I – A imposição incestuosa Introdução narrativa das situações: - Um pai (rei/conde) tem várias filhas (três/sete), todas bonitas; o pai enamora-se da mais bonita (da mais nova/da mais velha, da mais fidalga, por causa do nome). - Rapariga é tão bonita que o pai se enamora dela. 308 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - Rapariga está sentada (na sala/no jardim/ no quarto) a) a bordar; b) vem da fonte (vem de beber da fonte); c) vem da missa. d) o pai vem da missa e repara nela; e) o pai vai procurá-la ao quarto (chama-a ao seu quarto); f) estão à mesa (a jantar) e o pai olha-a; ela pergunta ao pai a razão porque a olha (diz que está delgada, porque está enamorada); g) o pai quer casá-la com um mouro. - Sequência inicial Silvana - rapariga passeia-se pelo corredor a tocar viola/guitarra e acorda o pai com o ruído. A) - Diálogo entre pai e filha (Pode encontrar-se narrativizado) 1) O pai impõe acto incestuoso à filha [a) pergunta se quer; b) sugere; c) prometelhe ouro e prata se aceitar]; [a) propõe: contaminação de Silvana]; 2) A filha recusa terminante [a) por ser antinatural; b) por não querer fazer da mãe malcasada; c) porque é contra a lei de Deus; d) porque já é casada]; [a) diz que aceitaria, se não temesse o castigo divino: contaminação de Silvana]; B) – Proposta de um apaixonado - Alguém (um rapaz de quem a jovem gosta) pergunta a uma rapariga se quer ser sua namorada, em troca de a vestir e calçar de ouro e prata. a) o pai (a mãe) soube que a filha namora; b) o pai não deixa casar as filhas e Delgadinha tem um pretendente. Sequência II – O castigo A) O pai manda encerrar a filha (numa torre/quarto/convento/palácio), durante um tempo determinado (variável: x anos/y dias), sendo-lhe impostos: - alimentos salgados/impróprios (bacalhau, sardinhas, pão outros)/escassos; - pouca água/salgada/amarga/salobra (água de pescada e outros). a) escuridão. 309 bolorento e A REVELAÇÃO DO SENTIDO B) 1) O pai diz à mulher que a filha lhe fez propostas incestuosas; pergunta-lhe o que lhe hão-de fazer; 2) A mãe determina o castigo da filha**. C) Ao saber que alguém fez propostas amorosas à filha o pai impõe o castigo **. ** o mesmo castigo de A) Sequência III – O apelo à família Findo o prazo determinado (antes de acabado o tempo do castigo), Delgadinha vai subindo no local onde se encontra e assoma às janelas (vagueia [pela montanha]) e encontra os membros da família). [(a) Delgadinha é solta e procura a família] Sucessivamente: 1) Avista as irmãs/uma irmã (X), os irmãos/um irmão (Y), a mãe (Z), outros (O, como serviçais, tios), que se encontram em várias actividades590; 2) Pede-lhe(s) água [a) pede luz]; 3) As irmãs/irmã (X), os irmãos/irmão (Y), a mãe (Z), outros (O) recusam a água, alegando que [a) receiam o castigo do pai (terem a mão cortada, serem degolados, serem enforcados); b) o pai tem a água fechada]. 3.1) Juntam à recusa [a) expressões de compaixão; b) insultos; c) acusações de fazer a mãe mal casada; d) culpabilizam Delgadinha por não fazer o que o pai queria]. Sequência IV – A cedência 1) Delgadinha assoma a uma janela, donde avista o pai; 2) Pede-lhe água [a) compromete-se, desde logo, a ceder, em troca de água]; 3) O pai nega porque ela não cedeu/não cumpriu a palavra [a) porque ela tinha dado a mão a um homem]; 590 A variação destas actividades é muito grande, pelo que não as assinalaremos aqui; no entanto, de modo geral, as irmãs e mãe estão em casa, na varanda/ na cozinha/no jardim, ocupadas a coser ou a bordar a ouro, enquanto os irmãos e o pai se encontram fora de casa, a passear ou a jogar à bola, às canas, a espada. 310 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 4) Delgadinha promete ceder, em troca de água. Sequência V – O envio da água O pai (a mãe, o irmão mais novo) manda levar água à filha (criados, vassalos, determinada personagem), prometendo recompensas ao primeiro que lá chegar e/ou castigos ao último [a) o primeiro a chegar é o namorado]. # A ordem do pai é imediatamente cumprida Sequência VI – Morte de Delgadinha Quando lá chegam, Delgadinha já está morta; junto dela tem água/fonte cristalina [a) está rodeada de entidades celestiais591]. a) Delgadinha ressuscita. b) descreve-se o funeral de Delgadinha – contaminação com A Aparição. Post Scriptum: Condenação da atitude do pai (da mãe). a) Delgadinha subiu (é levada) ao céu; b) os sinos dobram chamando a sua alma para o céu; c) a mãe está junto dela/louva-a; d) o pai é castigado: vai para o Inferno/está rodeado de demónios/chamas; e) a mãe/as irmãs são castigadas com o Inferno; f) Delgadinha amaldiçoa o pai; g) Delgadinha tem uma carta na mão; não lha conseguem tirar; a mãe lê a carta, que determina que Delgadinha vai para o céu (com a mãe) e o pai para o Inferno; h) o pai reconhece o erro e diz que está condenado, i) o pai chama o filho mais velho, para que fique com o reino, pois vai penar pelo mundo; o filho diz que o pecado será perdoado, por não ter sido consumado. Contaminação com Conde Claros em hábito de frade. 591 A variação destas entidades é também muito grande e, no Capítulo II, dedicado ao motivos, apresentaremos uma sua amostragem, extraída de VRP e GRPP. 311 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3.5. GERINALDO Sequência I – A sedução 1) A infanta propõe a Gerinaldo que passe a noite com ela; 2) Gerinaldo duvida da veracidade da proposta; 3) A infanta reafirma a proposta; 4) Gerinaldo pergunta quando deve ir; 5) A infanta marca a hora do encontro. a) dá-lhe instruções para não fazer ruído/não ser reconhecido. Sequência II – O encontro amoroso 1) À [antes/depois da] hora aprazada, Gerinaldo apresenta-se / bate à porta da infanta [a) com os sapatos na mão para não fazer ruído; b) suspira/dá um ai]; 2) A infanta pergunta quem bate à porta/quem é o atrevido; 3) Gerinaldo identifica-se; 4) A infanta manda-o entrar/pousar as armas e entrar; louva-lhe a pontualidade. a) promete-lhe beijos e abraços, mas nada mais. Sequência III – O delito Os dois passam a noite juntos. Sequência IV – O despertar do rei A): O rei tem um sonho592 1) Sonha que [a) que lhe assaltam o castelo; b) que Gerinaldo está com a filha]; 2) Levanta-se e procura Gerinaldo por vários sítios; encontra-o no quarto da filha. B) : O rei acorda naturalmente593 1) O rei [a) pede que Gerinaldo lhe traga os vestidos; b) chama por Gerinaldo; c) o 592 593 Presente no P.s. de 1537. Presente no P.s. da Tercera parte de la Silva …. 312 A REVELAÇÃO DO SENTIDO rei diz à rainha que Gerinaldo deve estar com a infanta.; d) o rei pondera se este estará morto ou se terá cometido falsidade; e) o rei desconfia que este se encontra com a filha]. 2) O rei procura o pajem [a) alguém (um guarda) lhe diz que o pajem se encontra com a infanta, b) rei levanta-se e b.1) vai dar volta ao castelo, b.2.) vai visitar a filha ao quarto]; 3) Encontra Gerinaldo no quarto da filha. Sequência V – O dilema Ao ver dois adormecidos lado a lado, 1) O rei pondera as consequências de matar a filha ou o pajem; 2) Decide deixar a espada (espadim/punhal/alfange/cutelo/lança/estoque/as armas,banda) entre os dois [a) volta o cabo para a filha e o bico para Gerinaldo]. Sequência VI – A descoberta da espada 1) a) A infanta desperta [vê a espada]. Acorda Gerinaldo. b) Gerinaldo desperta [vê a espada/sente a picada do punhal]. Acorda a infanta. 2) Pensam no que há a fazer: a) A infanta diz a Gerinaldo: a.a) que procure o rei e tente obter o perdão; a.b) que tente enganar o rei; a.c) que não minta ao rei; a.d) que a mate ou se esconda; a.e) que peça ao rei um castigo; a.f) que fuja; a.g) que o pai os casará; a.h) que o rei o matará. b) Gerinaldo diz: b.a) foi ele que trouxe a espada; b.b) vai procurar o rei para obter o perdão; b.c) vai entregar-se ao castigo. c) Escrevem uma carta (Gerinaldo/a infanta) a pedir perdão/compaixão. Sequência VII- O encontro do pajem com o rei a) Gerinaldo vai ter com o rei (encontra-o) e cumprimenta-o; b) Gerinaldo foge; c) 313 A REVELAÇÃO DO SENTIDO o rei encontra Gerinaldo. 1) O rei pergunta-lhe de onde vem tão perturbado; a) o rei, furioso, acusa Gerinaldo de ser atrevido; b) Gerinaldo acusa-se de ter sido atrevido e pede o castigo; c) Gerinaldo pede perdão (pede castigo); d) Gerinaldo acusa a infanta de o ter seduzido. 2) Gerinaldo responde que vem de caçar a rola/ a garça/de dar água aos cavalos/de regar a horta/de regar o cebolinho594. 3) O rei não se deixa ludibriar e diz a Gerinaldo: a) que não lhe minta, b) responde-lhe que a “rola/garça” foi “caçada no seu milho”; c) anuncia um castigo. 4) O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta. a) Gerinaldo responde que prefere casar a morrer; b) Gerinaldo revela ser de condição real; o rei diz que não sabia/pergunta porque não o disse antes. d) o rei ameaça o pajem de morte, se este não casar com a infanta. Outros Desfechos A) O rei ordena a prisão de Gerinaldo 1) O rei manda prender Gerinaldo. a) A infanta cai de paixão. 2) Gerinaldo está preso (Contaminação com O Órfão+O Prisioneiro+Conde Ninho): a mãe pede-lhe que cante, como o pai fazia; ele canta; o rei ouve-o e, comovido, chama a filha para que ouça; a filha diz-lhe que é Gerinaldo quem canta; o rei manda-o soltar. 3) O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta. B) O rei ordena a morte de Gerinaldo. 1) A infanta intercede por ele [a) diz ao pai que quer casar com ele, b) diz que se 594 A tentativa de engano não ocorre no P.s. de 1537 nem no da Tercera parte de la Silva …., mas surge no Pl. S., s.l., s.a., Este es un romance de Gerineldos … e nas reedições Canción nueva del Gerineldo… 314 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Gerinaldo for morto, também ela quer morrer]. 2) O rei pede conselho. 2.a) os conselheiros não o querem descontentar nem à infanta; 2.b) acham que pode haver casamento porque o pajem é de família real. 3) O rei reconsidera e manda soltar Gerinaldo; ordena o casamento com a infanta. C) Gerinaldo recusa casar-se. 1) O rei ordena o casamento de Gerinaldo com a infanta; 2) Gerinaldo jura que não casará com mulher que desonrou; 3) O rei manda prender Gerinaldo; 4) Ao saber da traição, a infanta morre de desgosto. D) A rainha manda matar Gerinaldo e a infanta (Contaminação com O Conde Ninho). Post Scriptum Louva-se/deseja-se a sorte de Gerinaldo. 315 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO II OS MOTIVOS NA REVELAÇÃO DO SENTIDO 1. Os motivos No romanceiro, um dos processos de grande operacionalidade na produção de sentido é o uso dos motivos, aos quais dedicaremos inteiramente o presente capítulo. Dos motivos, faz Stith Thompson a seguinte definição; “A motif is the smallest element in a tale having a power to persist in tradition”, especificando que, na sua maioria, são incidentes singulares595. O autor, em Motif-Index of Folk-Literature596, divide os motivos em três classes: a dos actores na narrativa, a de alguns itens no segundo plano da acção e a dos incidentes singulares 597 . Por sua vez, Joseph Courtés começa por definir o motivo como “une sorte de micro-récit élementaire, comme une séquence discursive de type figuratif…”, que mantém um certo conteúdo próprio, uma invariante específica, mas que, ao mesmo tempo, “est lié à des mises en contextes particulières qui lui confèrent des significations diverses ou, plus exactement, qui le font servir à des fins de significations variées”, para depois reformular a designação inicial como uma configuração discursiva que “regroupe et organise les élements figuratifs y afférents, indépendamment des structures syntaxiques et/ou sémantiques sur lesquelles elle est apte à s’árticuler” 598 . Para Michelle Débax e Bárbara Fernandez, que seguem Joseph Courtès e se referem às diversas acepções de motivo, uma primeira etapa para a sua definição seria a análise narrativa do 595 Thompson [1977], p. 415. Stith Thompson [1955-1958], Motif-Index of Folk-Literature, 6 vols., Copenhaga, Rosenhilde and Bagger, 1955-1958. 597 A sua metodologia é contestada por outros autores; referimo-nos, em particular, a Joseph Courtés e a Claude Bremond. Ver Joseph Courtés [1980a], em “Le motif en ethno-litterature. Le motif selon Stith Thompson” (pp. 3-14) e Joseph Courtés [1980b] em “Le motif: Unité narrative et/ou culturelle” (pp. 4454), bem como Claude Bremond [1980], “Comment concevoir un índex des motifs” (pp. 15-29), artigos em Bulletin du Groupe de Recherches Sémio-linguistiques, Nr. 16, Paris, EHESS, 1980. 598 Joseph Courtés [1980], La “lettre” dans le conte populaire merveilleux rançais. Contribution à l’étude des moti s, Documents de Recherche, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, 1980. 596 317 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “micro-relato” que o constitui, reconhecendo nele um “fazer”, enquanto a segunda seria a análise da sua funcionalidade no “macro-relato”599. Especificamente em relação ao romanceiro, João David Pinto-Correia define os motivos como “pequenas configurações discursivas”, que “representam momentos de aditamento de sentido principal, suplementar ou poético”, fazendo notar que facilmente se deslocam entre romances ou suas versões600. O IGR define os motivos como unidades narrativas que fazem parte da organização paradigmática da “linguagem romanceiro”, sendo uns utilizáveis em múltiplos contextos fabulísticos e outros cabendo num número muito limitado de modelos narrativos; nele se refere, ainda, que os motivos têm uma função narrativa e outra indicial, e que alguns deles possuem valor simbólico601. Por nosso lado, encararemos os motivos numa dupla dimensão: a de unidades narrativas de dimensão discursiva geralmente curta, com o significado literal daquilo que dizem ou contam e correspondendo ao que temos vindo a chamar “explícito” e como unidades significantes culturais 602 , com poder indicial múltiplo e variável e carácter simbólico603, correspondendo ao “implícito”, pois, para escaparem ao ónus da simples narratividade, eles deverão ser entendidos como portadores de um carácter de superação do seu sentido literal604. 599 Cf. Michelle Débax, Bárbara Fernandez [1989], “Motivos Y figuras en ‘Hero y Leandro’” em Piñero [1989 ], pp. 71- 92. 600 ROTP, p. 38. 601 IGR, pp. 128-143. 602 Courtés advoga o carácter simultaneamente narrativo (“micro-récit”) e cultural (“pratique/axiologique”) do motivo. Cf. Courtés [1980b]. 603 O símbolo “transporta para lá da significação, depende da interpretação e, esta, duma certa predisposição”. Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994]. 604 Na entrada para “motivo”, diz Stith Thompson que “in order to become a real part of tradition an element must have something about it that will make people remember and repeat it”, referindo que os motivos, para o serem, devem ser portadores de algo de extraordinário que os distinga do que acontece na vida normal. Cf. Stith Thompson [1984], “Motif”, em Maria Leach, Jerome Fried, Funk & Wagnalls Standard Dictionary of Folklore, Mythology, and Legend, New York, Harper & Row, 1984, p. 753. Courtés considera redutor o conceito de Thompson (referindo-se ao Motif-Index), uma vez que o que é “unusual” em determinado contexto sócio-cultural pode não o ser em um outro. Cf. Courtés[1980a]. 318 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Na acepção em que integram a face explícita da narrativa, os motivos contam ou descrevem determinado incidente ou facto, tal como para as funções proppianas 605 . Harriet Goldberg adaptou ao romanceiro o Motif-Index de Thompson elaborado para os contos tradicionais, num acreditado índice, Motif-Index of Folk Narratives in the PanHispanic Romancero 606 que, por sua vez, foi modificado e aumentado para a sua implementação na Web, numa das bases de dados do Proyecto del Romancero panhispánico607. Designaremos estes por “motivos indexados”608. 2. Os motivos indexados em Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero Apontamos abaixo os motivos do corpus relacionados no Motif-Index de Golberg para cada um dos romances e os acrescentados no Pan-hispanic ballad Project, que assinalamos com asterisco (*), com as nossas observações e exemplos. Em quadro separado, indicamos os motivos de outros romances mais frequentemente presentes nas versões do romance importador, ressalvando que, por vezes, apenas uma parte do motivo é utilizada. Note-se que o citado Motif-Index pode apontar motivos simples, seguindo-se um apontamento descritivo da situação que os contém, como no T351.0 “Sword of chastity. 605 Cf. Vladimir Propp [2000 (1928)], Morfologia do Conto, 4ª ed., Lisboa, Vega, 2000. Na Introdução deste, são indicados os vinte e três romanceiros e catálogos examinados para a sua elaboração. Cf. Golberg [2000]. 607 Cf. Trata-se do Index of Folk Motifs in the Pan-Hispanic Ballad (ou Harriet Goldberg's Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero), que pode ser consultado no arquivo on-line do Proyecto del Romancero pan-hispánico (Pan-hispanic Ballad Project), coordenado por Suzanne H. Petersen. 608 Ressalvamos que a indexação ou catalogação de motivos colocará sempre algumas questões, tendo Claude Bremond entendido que “le point de vue de la fonction est la seule entrée pour un classement de motifs”. Cf. Bremond [1980]. Uma vez que estes catálogos se baseiam num número que será mais ou menos restrito de versões, os motivos neles indexados, obviamente, corresponder-lhes-ão, não podendo afirmar-se que todos são próprios de determinado romance. Como a capacidade de abertura das estruturas tradicionais permite a variação, os motivos “viajam” entre composições e outras versões poderão apresentar outros motivos. Idealmente, os índices deveriam ser sempre um trabalho em aberto e ser susceptíveis de acolher actualizações e motivos presentes em novas (ou ainda não consideradas) versões e variantes. 606 319 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A two-edged sword is laid between the couple sleeping together”, em Gerinaldo ou, com maior frequência, os motivos constam de uma “micro-narrativa”; esta descreve uma acção ou acontecimento, de forma mais ou menos alargada, ou abrange mais do que uma situação (T411.1.5. - Father desires daughter sexually. She consents but asks what of divine punishment. She dies, angels carry her to heaven; Virgin shrouds her. ). Outras vezes, o motivo é subdividido, com pequenas diferenças, o que se deverá a terem sido colhidos em diferentes versões de cada romance. Alguns motivos indexados equivalem-se em termos de intriga, enquanto outros resumem o essencial do romance. BERNAL FRANCÊS K1569.0.5 - Wife accepts husband in her bed thinking he is her lover. Husband says he will kill her in the morning (will return her to her father, gives her a red necklaceblood). Obs.: Resume sumariamente a intriga do romance, pelo que a primeira parte do motivo ocorrerá nas versões. O que é indicado entre parênteses engloba variantes, que não ocorrem cumulativamente nas versões. Ex: - “will return her to her father”: “15. Vou-te levar a teu pai veja a prenda que me deu.”, BF/95 Galhoz (1987) 280-281. - “gives her a red necklace-blood”: “20. Assim que veio a manhã, ele fazia assim: // 21.gargantilha encarnada, gargantilha carmesim.”, BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76. *T483.1 - Woman admits husband to house in darkness. Thinks he is lover. Her children are all lover’s except middle child. Husband gives her a red necklace (slit throat). Obs.: Não há, no corpus, menção específica a um “filho do meio”. Nem sempre se 320 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sabe, nas versões, se os filhos são do marido ou do amante. Deduz-se, na maioria dos casos, que serão do marido, pois a mulher diz ao amante que não os tema, presumindose que os filhos, neste caso, constituiriam uma ameaça para o rival do pai. Que o são, di-lo ele próprio (“14.- Não tenho medo de meus [sic] filhos, que eles filhos são de mim.”BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 e “16.- Eu não temo aos teus filhos, que são de entre mim e ti.”, BF/12 Pedroso (1902) 462-463). Outras vezes, a questão é mais dúbia. Na BF/101 Galhoz (1987) 290-291, diz ela “6.Nem temas aos meus filhos, porque eu nunca os tive”, ao que o revelado marido responde que “11. nunca te os conheci”, querendo talvez significar que, mesmo que filhos existissem, nunca os reconheceria como seus por saber da infidelidade da mulher. Na BF/47 Leite (1958) 419-420, v. 16, o marido diz que “filhos serão de mim”, o que, existindo uma elipse do seguimento óbvio da frase, que seria “ou não”, adquire um valor de dúvida, com o subentendido de que talvez não o sejam. Na BF/105 Ana Martins/Ferré (1988) 75-76, o marido manda-a calar e não responde sequer ao “não temas”, podendo inferir-se do seu silêncio que acha que esses filhos são do amante. Às vezes, acha que alguns desses filhos serão dele, o que logicamente quer dizer que outros serão do rival: “8.Não tenho medo aos teus filhos que alguns serão de mim.”, BF/108 Anastácio (1988) 61. Já na BF/50 Leite (1960) 513-514, diz ela ao amante, explicitamente, que os filhos são dele (“16. Se temes os meus filhos, eles filhos são de ti;”), enquanto no segundo hemistíquio do v. 7 da BF/96 Galhoz (1987) 281-282, diz que “meus filhinhos são por ti”, pelo que, uma vez que se sabe que julga falar com o amante, se pode inferir que os filhos seriam de Bernal Francês, sendo de notar que, nesta versão, o marido, subentendendo que sabe que outros serão do amante, replica: “8. Num tenho medo aos teus filhinhos que alguns serão de mim”. A existência de filhos do amante, se nem sempre é explícita no romance, está implícita no prolongamento de A Aparição, através das recomendações da mulher em relação 321 A REVELAÇÃO DO SENTIDO aos filhos. Motivos de A Aparição E214.2. Dead wife (lover) intercepts soldier’s return. He must remarry, and name daughter after her as reminder of his faithlessness. Ex: “32.Eu te peço, cavaleiro, que te cases a caminho. // 33.A mulher com quem casares não lhe queiras mais qu'a mim; // 34.Filha que dela tiveres põe-le um nome com'a mim // 35.C'ando chamares por ela te alembrares de mim”, BF/52 Lemos (1961-1962) 171-173. H1385.3.2. Man (king) seeks his beloved. Told by a stranger that she is dead. Ex: “14.- Pr'onde vais, Bernal Francês? Vou ver don'Ana. // 15.- Não vás lá que dona Ana já morreu. // 16.- Eu hei-d'ir, hei d'ir onde costumava a ir, // 17. tanto hei-de bradar, dona Ana, que ela me há-de acudir.”, BF/109 Anastácio (1988) 62. VENENO DE MORIANA S111.10 - Murder by feeding faithless lover poisoned wine. He has come to invite her to his wedding. T73 - Woman tricks ex-lover into drinking poison. He had returned to marry another. Obs.: Estes motivos equivalem-se em termos de resumo da intriga. Ambos explicam a causa e o T73 explicita a “armadilha” (envenenamento). No entanto, a explicitação de que o vinho está envenenado só ocorre no Tipo B: Ex: “6.- Deitei-lhe sangue de víbora, e por cima um resalgar.”, VM/195 Anastácio (1989) 347. A menção ao convite para o casamento ocorre no tipo A: Ex: “9.- É verdade, ó Juliana, é verdade que me vou casari. // 10.Venho-t’a convidari p’ra ass’stires ò meu jantari.”, VM 229 Cruz (1995) 183-184. 322 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Motivos de outros romances Não me enterrem em sagrado : M258.4. Dying man asks for promise that he be buried in spot he has chosen. Ex: “19.- Laurisberta, s'ê morrer, nã m'enterres em campo sagrado, // 20.enterra-m'ó pé da roseira onde fostes enganada.”, VM/59 Ferré (1982) 184-185 (e outras madeirenses). Quem Dever a Honra Alheia: E413.1. Faithless lover killed, returns to warn other man not to act as he had. His assassin must not pray for him. He spends nights in hell gathering wood to burn his soul during day. Ex: - “15.Eu venho dar bons conselhos a quem nos quiser tomar, // 16.a quem deve a honra alheia não s'espera de salvar, // 17.nem com ouro nem com prata, nem com outra qualquer fazenda, // 18.senão corpo com corpinho ond'a su'alma não pena.”, VM/64 Ferré (1982) 187-188. - 25.“Eu venho do outro mundo, Beliana, te falare //26.Quem dever a honra alheia, que à trate de pagare // 27.Não se paga com dinheiro, nem tão-pouque com fazenda // 28.Paga-se corpo com corpo, p'a qu'a su'alma não pena // 29.P'a qu'a su'alma não pena, com'a minha está a penare // 30.Todo dia acarto lenha, à noite vou-a queimare”, VM/222 A. Sousa/D. Sousa/F. Oliveira (1993) 47-48. SILVANA K1227.1.1 - Incestuous father puts off until daughter bathes and dresses. Obs.: Surge em algumas versões. Ex: “10. vou lavar as minhas pernas, vestir as alvas camisas”, S/16 Ferré (1982) 207-208. T411.1.5 – a) Father desires daughter sexually. b) She consents but asks what of divine punishment. c) She dies, angels carry her to heaven; d) Virgin shrouds her. Obs.: Embora o Motif-Index o relacione para Silvana, o motivo completo só é aplicável 323 A REVELAÇÃO DO SENTIDO às versões compósitas de Silvana e Delgadinha, pois no primeiro a protagonista não morre. Por isso, dividimos o motivo em alíneas: a) “3.- Dá-me o teu corpo, Silvana, dá-me o teu corpo, filha minha. b) 4.- Meu corpo sim eu lho dera, meu corpo sim lho daria. 5. mas as penas do Inferno, meu Deus, quem as passaria?” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 As alíneas c) e d) pertencem ao prolongamento de Delgadinha (cf. motivos em Delgadinha). T411.1.6 - Father desires daughter sexually. If she were to consent, he would reward her richly. Obs.: O motivo é apontado no Motif-Index para Silvana, mas, no nosso corpus, a segunda parte (“he would reward her richly” a equivaler a “vesti-la de ouro e prata”) ocorre apenas em versões compósitas com Delgadinha. (cf. Motivos em Delgadinha). Ex: “5. Bem puderas vós, Aldina, ser a minha namorada, // 6. eu te vestiria de ouro, de prata fina lavrada.”, S+D/2 Braga (1869)/Braga (1982) 193-196 Q260.1609 - a) Father punishes daughter for denouncing his incestuous demands. b) Her mother takes her place in husband’s bed. c) He locks daughter in tower with little food and water. Obs.: O motivo completo só é aplicável às versões compósitas de Silvana e Delgadinha; por isso, dividimos o motivo em alíneas: a) “Father punishes daughter for denouncing his incestuous demands” - Silvana + Delgadinha. Ex: “17.- Chegou-se p'ra sua mãe, que seu pai la cometia. // 18.E logo presa, Gaudina, numa torre gradeada.”, S+D/4 Azevedo (1880) 112-115. b) “Her mother takes her place in husband’s bed” - Silvana. Ex: “15.- Cala-te lá, ó Silvana, que isso remédio teria, // 16.eu vou deitar-me à tua cama e tu vai deitar-te à minha.”, 609 No Motif-Index of Folk Narratives in the Pan-Hispanic Romancero, Index of Ballad Titles (p. 223), a lista de motivos da Silvana indica o Q260.2., o que cremos dever-se a um qualquer erro, uma vez que este não se encontra na descrição geral dos motivos (p. 100), mas sim o Q260.1, que aqui incluímos. 324 A REVELAÇÃO DO SENTIDO S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38. c) “He locks daughter in tower with little food and water” - Delgadinha: “6. Logo o pai prendeu Alvina dentro dua torre fechada // 7. E deu-lhe pedras de pão e de beber água salgada.”, D/235 Xarabanda (1995) 32-33. Motivos de outros romances Queixas de D. Urraca: P17.14. Moribund king divides realm among sons, omitting daughters. Daughter protests; will sell body to pay for father’s masses (She will wander the earth. No man will respect her). Ex: - ”26.- Rei que ‘tás para morrer, Deus te tome parte na alma! // 27. Repartistes os teus bens e a mim não me destes nada.”, S/12 Purcell (1976b) 57-59; - “21.- Ê vou-me por aqui abaixo muito triste e mal fadada; // 22. vou pècurá roca e fuso, que mulhé nã tem outra arma.” , S/33 Fontes (1996) 120-121. Afuera, afuera Rodrigo: T55.1.4. Princess reminds knight of her father’s gifts to him. Reproaches him for taking her property now. Ex: ”29. - Tu nã te lembras, Rodrigues, daquele tempo passado, // 30. qu'o rei era tê padrinho e tu eras seu afilhado // 31. e eu te dei esferas douro para te ver aumentado, // 32. e p'agora vires buscar todo o meu novo estado?”, S/33 Fontes (1996) 120-121. A filha desterrada (D. Maria) ou Nave guiada por la Virgen: S411.5. Woman banished. Daugther banished for faliing in love with lowly captain. King puts her in boat out to sea”. (Terceira parte do motivo) Ex: “13. Mandou fazer uma naua mais alta qu' a maravilha, // 14. para imbarcar Silvana, muito só sem companhia.”, S/10 Purcell (1976b) 17-18. 325 A REVELAÇÃO DO SENTIDO DELGADINHA Q257.1. - Father punishes daughter for refusing his incestuous demands. Locks her in tower with little food and water. R41.2.1.1. - Daughter locked in tower for refusing her father’s sexual advances. Locks her in tower with little food and water. S322.1.3. - Father imprisons daughter when she will not have sexual relations with him. She dies. T411.1 – Lecherous father. Unnatural father wants to marry his daughter. L54.5 – Youngest daughter is victim of father’s incestuous demands. She refuses him. *T411.1.6. - Father desires daughter sexually. If she were to consent, he would reward her richly. Obs.: Estes motivos são equivalentes em termos de intriga; a proposta incestuosa e o castigo da filha (aprisionamento + privação de alimentos e água) estão presentes nos Q257.1. e R41.2.1.1. O aprisionamento e a morte de Delgadinha no S322.1.3. Ex: “1.- Galdina, minha Galdina minha rica prenda amada, // 2.tu tens sido minha filha, vais ser minha namorada. // 3.- Nã permita Jesu Cristo, nem na hóstia consagrada, // 4.ser manceba de meu pai, de minhas irmãs, madrasta. // 5.Mal lo disse, el-rei la prende, numa torre castelada, // 6.um quarto de pão por dia, de beber, água salgada.”, D/3 Azevedo (1880) 109-112. “37.Quando os criados lá chegaram, já estava morta na sala,”, D/186 Ana Martins/Ferré (1988) 83-84. T411.1. – O casamento com a filha está implícito em certas versões: - “pedir a mão direita”: “38. eu pedi-te a mão direita, tu não ma quiseste dar.”, D/1 Braga (1867) 181-183; 326 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - “não querer ser madrasta das irmãs”: “3. - Nã permita Jesu Cristo, nem na hóstia consagrada, // 4.ser manceba de meu pai, de minhas irmãs, madrasta.”, D/3 Azevedo (1880) 109-112. O motivo “filha perseguida pelo pai”, que sustenta a narrativa de Silvana e de Delgadinha, tem o sentido correspondente no Tipo AT 510B, The Dress of Gold, of Silver and of Stars (Cap o’Rushes), no qual o pai quer casar com a filha610. Contudo, ao contrário do que acontece no conto, o romance é “realista”, no sentido em que tal casamento é impossível e, de resto, o objectivo deste pai não é casar com a filha, mas apenas ter relações carnais com ela, pelo que as expressões usadas são, sobretudo, eufemismos para uma situação na qual, em última instância, Delgadinha ocuparia o lugar da mãe, equivalendo a um casamento com o pai. L54.5 - Nas versões portuguesas a filha pode ser a mais nova (a), mas também a mais velha (b) ou, simplesmente, a mais bonita (c). Ex: (a) “1. Era um homem tinha três filhas, todas três mais lindas que a prata, // 2. a mais nova delas todas Valdevina se chamava.”, D/19 Nunes (1928) 231-232. (b) “1. Era um rei, tinha três filhas, mais lindas que a prata // 2. namorou-se da mais velha, que se chamava Galdina.”, D/2 Azevedo (1873) 767. (c) “1. Um rei, que tinha três filhas, todas lindas como a prata, // 2. a mais bonita delas todas Valdevina se chamava.”, D/21 Joaquim Lima/ /Pires Lima (1943) 25-26. 610 De entre os chamados “Ordinary Folktales”, os nrs. 500-559 são, segundo Thompson, os dos “Supernatural Helpers”, nos quais conta os de “filha perseguida”, que são Cinderella and Cap o’Rushes (AT 510), Cinderella (AT 510 A), The Dress of Gold, of Silver, and of Stars (AT 510 B). O “perseguidor” varia entre “a madrasta” e “o pai” que quer casar com a filha. Cf. Thompson [1987]. O tipo 510 B é referenciado, no Index of Portuguese Folktales, que segue Uther [2004], como Peau d’Âne, cuja primeira sequência (e variante que aqui nos interessa) é: I. The persecuted heroine. Girl runs away in disguise, (a) because her father wants to marry her; o 510 B* (classificação de APFT) é The Princess in the Chest, cuja sequência I é: Wishing daughter for wife. widowed king (pope, old man) wants to marry his daughter. [….]. Cf. Cardigos [2006]. Na Introdução à selecção de texto comentados dos contos geralmente conhecidos como “da Gata Borralheira”, Francisco Vaz da Silva divide-os em quarto subgrupos, apresentando o segundo, que faz corresponder ao 510 B, e a que chama “Maria Peluda”, como os da “jovem que é a fiel imagem da sua mãe e pela qual o pai se apaixona. Cf. Silva [2011]. 327 A REVELAÇÃO DO SENTIDO T411.1.6. - O motivo “prometer vestir de ouro e prata” em troca de favores sexuais ocorre com maior frequência nas versões que substituem a proposta do pai pela de um pretendente, mas há algumas que o fazem, como nos exemplos seguintes: - “4. - Baldebina, Baldebina, Baldebina malfadada, // 5. queres tu, ó Baldebina, ser a minha namorada? // Que eu de ouro te vestia, e de prata te calçava.”, D/14 Lima (1914) 294-295. - “1.- Adelina, minha filha, se tu fosses minha amada, // 2. eu de ouro te vestia e de prata te calçava.”, D/192 Ana Martins/Ferré (1988) 90-91. D925.1.0.2. Spring burst forth where wrongfully killed women is buried Obs.: Não ocorre no corpus. E231.6 – Letter in dead woman’s hand assigns evil father to death. Ex: “29. Na sua mão direita tinha uma carta cerrada.”, D/65 Pestana (1965) 91-92. E722.4.1 – Devils come for soul of sinful father. E722.10 - Angels (Virgin Mary, Mary Magdalen) come to take soul to heaven. *E722.10.1 – Angel comes for saint’s soul. She ascends. Obs.: Ocorrência muito variável nas versões. Torna-se problemática a atribuição às versões das subdivisões de determinado motivo indexado, como acontece com o E722. “Soul leaves body at death”. Este motivo, de que pode apenas aparecer parte em algumas versões ou ser narrado de formas diferentes, contém uma vertente informativa, que é a de referir a separação da alma e do corpo, com as subdivisões a assinalar a presença de entidades celestiais junto de Delgadinha ou de seres demoníacos ligados ao destino das personagens; a outra vertente é valorativa, uma vez que associa as primeiras ao Bem e os segundos ao Mal. Estas presenças aparecem em diversas combinações, das quais, dada a diversidade das suas ocorrências no corpus, apresentamos somente, como amostragem, as seguintes, encontradas em VRP e GRPP: VRP: Delgadinha está rodeada de santos, de anjinhos; a alma de Delgadinha no Céu e a do pai está no Inferno; Delgadinha está a cantar com os anjos e o pai a arder nas fornalhas; Nossa 328 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Senhora está a vesti-la e os anjos a acompanhá-la; os anjos trazem a água; a cama está cercada de anjos e a do pai de demónios; tem a Virgem Sagrada à cabeceira; o pai está rodeado de diabos; está enfeitada pelos anjos e alma do pai no Inferno; está alumiada pelos anjos, a alma do pai berra pelos outeiros e a da mãe está condenada; está nos braços da Virgem Santa, de anjos alumiada, a alma no Céu, a do pai fica culpada; está acompanhada de quatro anjos e é guiada pela Virgem da Guia; Nossa Senhora amortalha-a, S. João leva-a para o céu com um tocha e o corpo do pai arde em labaredas; Nossa Senhora amortalha-a, S. João leva-a para a Glória e o pai está em labaredas de fogo; estão presentes sete anjos e a Virgem Maria; Nossa Senhora da Conceição amortalha-a, anjinhos levam-na para o céu e a cama do pai está cercada de demónios; Nossa Senhora leva-a para junto de uma fonte de prata; S. João faz a cova, Nossa Senhora amortalha-a, a cova é cercada de anjinhos e o palácio do pai abrasado em fogo; S. João faz a cova, Nossa Senhora amortalha-a e o quarto do pai fica abrasado em fogo; tem Nossa Senhora aos pés, que lhe beija o rosto, a alma está no céu, a do pai condenada; Santo António era a mortalha, S. Francisco amortalhava, os anjinhos eram as tochas que alumiavam; tem a Virgem Sagrada junto dela, a alma é acompanhada de mil anjos, a do pai é levada por mil diabos. GRPP: Está cercada de anjinhos; tem Jesus à cabeceira; Nossa Senhora veste-a, os anjos alumiam; está rodeada de anjos, há um coro de anjos e no quarto do pai berravam mil diabos; Nossa Senhora está a vesti-la, os anjos a acompanhá-la; rodeada de anjos, a Virgem na dianteira; rodeada de anjinhos; a Virgem a amortalhá-la; anjos acompanham-na; estão cinco mil anjos a rodeá-la; Nossa Senhora amortalha-a, os anjos levam-na para o céu; Nossa Senhora leva-a para o céu, os anjos amortalham-na; a alma é acompanhada de anjos; está cercada de anjos; Nossa Senhora amortalha-a, os anjos acompanham-na; os anjos à roda, Nossa Senhora amortalhada. *E755.0.4. - Heaven’s bells sound for soul ascending. E755.0.5. – Bells of hell sound for soul descending. V115.6. – Church bells toll at moment of woman’s death. Obs.: Os três motivos indicados utilizam o mesmo motivo tópico (sinos) e têm a mesma função informativa - os sinos tocam -, sob designações temáticas diferentes (a série E700-E759 é The soul [A Alma] e a V100-V199 é Religious Edifices and Objects [Edifícios e Objectos Religiosos]). Os dois primeiros apresentam a mesma polaridade da 329 A REVELAÇÃO DO SENTIDO série E722, na qual intervêm entidades sobrenaturais benéficas ou maléficas. A sua função é simbólica ao representar, um, o Bem que ascende ao Céu (E755.0.4.) e o outro o Mal que desce ao Inferno (E755.0.5.). Podem ocorrer simultaneamente, como na versão abaixo: Ex: “35.Já os sinos do Céu chamavam, já os sinos do Inferno bradavam, // 36.- A minha alma vai para o Céu e a sua morre abrasada!”, D/178 Galhoz (1987) 373-374. O motivo V115.6. refere-se, mais especificamente, ao normal dobrar a finados, mas, ao dar-se no preciso momento da morte, torna-se indicial de um prodígio (Delgadinha é imediatamente levada ao Céu): Ex: “ 25.- Corram todos, meus criados, levar água à Adelininha. // 26. O que lá chegar primeiro recebe uma prenda minha. // 27. Tocam os sinos na Sé, ai Jesus, quem morreria? // 28.Foi a D. Adelininha com as paixões que trazia.”, D/49 Leite (1960) 62-63. *T411.1.3. - Mother punishes daughter for being pregnant. Daughter’s father is father of unborn baby. In tower without water, only salty food and drink. Obs.: A primeira parte do motivo não ocorre no corpus. Motivos de outros romances O Quintado: P551.0.1. Compassionate officer permits young recruit to return home to new bride (affianced) W10.4. Kindly captain grants lovesick soldier leave to marry (to be with his new wife, his ailing lover). He must return in seven months [years]) Ex: “1.- Soldadinho pequenino que andas tão triste na guerra! // 2. Ou te lembra pai ou mãe ou alguém da tua terra. // 3. Não me lembra pai nem mãe nem ninguém da minha terra; // 4. só me lembra uma menina que dou a vida por ela. // 5. Sete anos te darei para ires falar com ela, // 6. 330 A REVELAÇÃO DO SENTIDO mas, ao fim dos sete anos, tornarás a vir à guerra.”, D/25 Delgado II (1955) 133. VERSÕES COMPÓSITAS DE SILVANA E DELGADINHA Motivos de outros romances Conde Claros em hábito de frade: K1371.4. Lover in disguise abducts beloved. K1812.21. Count disguised as friar comes to court to rescue princess. Ex: “51. Essa menina que aí vai inda vai por confessar. // 52. - Confessa-a lá, ó frei, enquanto vamos jantar. // 53. - Confesse-se lá, menina, comece-se a persinar, // 54. No meio da confissão um beijinho m'há-de dar.”, S+D/12 Leite (1960) 64-66. GERINALDO T91.8. - Princess invites page (steward) to her bed. Discovered by king. Obs.: Ocorre em todas as versões, excepto se muito fragmentadas. - “Princess invites page (steward) to her bed”: Ex: “1.- Gerinaldo, Gerinaldo, pajem de El-Rei mais querido, // 2. Queres tu, ó Gerinaldo, passar a noite comigo?”, G/205 Alves Ferreira (1999) 125-126. - “Discovered by king”: Ex: “13. Mas levantou-se o bom Rei, do leito que era dormido; // 14. Foi à cama de seu pagem, nela não ‘stava dormido. // 15. Foi à cama da princesa, os dois viu adormecidos; // 16. Abraçados um com o outro, como mulher e marido.”, G/184 Lacerda (1994) 27-30. D1813.1.1.2. - King dreams that someone is sleeping with his daughter or someone is robbing the castle. Obs.: Este motivo ocorre nas versões em que o rei tem um “sonho premonitório”. Ex: “11. El-rei tivera um sonho que bem certo lhe saiu: // 12. Que dormiam co'a infanta ou tinha o reino perdido.”, G/207 Eira (1999) 63-64. 331 A REVELAÇÃO DO SENTIDO J611.0.1. – King considers consequences of killing his daughter who has slept with a page. He might lose his realm. Ex: “18.- Para matar Leonardo, criei-o de pequenino … // 19. Para matar a princesa, fica o reinado perdido …”, G/184 Lacerda (1994) 27-30. T351.0. – Sword of chastity. A two-edged sword is laid between the couple sleeping together. Obs.: Ocorre quase sempre, com variação da arma. Ex: - “20. Meto-lhe a espada no meio para que sirva de aviso.”, G/2 Braga (1867) 18-20. - “18. Aqui fica o meu punhal entre vós ambos metido,”, G/8, Leite (1881) 58-61. - “17. Alfange d'oiro no meio, que se achem pressentidos.”, G/39 Leite (1958) 311-312. M133.1. Man has vowed not to marry any women whom he has had sexual relations. Obs.: O motivo ocorre em localidades perto da frontera com Espanha: - “33. - No lo querra Dios del cielo ni tampoco lo querré // 34. La mujer que yo deshoje ella sea mi mujer.”, G/28 Reinas (1957) 388-389 (Alamedilha). - “44. - Tengo una promesa hecha a La Birgem de la Estrella: // 45. Que mujer que yo gozara, no me casaré con ella...”, G/89 Mourinho (1984) 161-163 (Sendim). - “14. A mulher que ele gozasse não havia de casar co'ela.” G/110 Fontes I (1987) 474-475 (Quadramil). Q411.0.4. - King orders death of man who had sexual intercourse with princess. Forgiven and married to her. Ex: “-25. Ó homens da minha guarda, seja de morte punido.”, “38. Hoje mesmo na igreja, ele e ela hão-de casar.”, G/7Azevedo (1880) 69-71. *Q411.0.4.1. - King orders death of man who had sexual intercourse with princess; man flees; she pursues. T91.6.5. - Princess elopes with lover her father had ordered killed. Obs.: Nas versões portuguesas, não é habitual que Gerinaldo fuja; no entanto, ocorre a 332 A REVELAÇÃO DO SENTIDO fuga em algumas versões, com o rei a mandar prendê-lo: Ex: “22. Já Leonardo fugia, sai-lhe el-rei enfurecido.”, “26.- Ó homens da minha guarda, seja de morte punido.” , G/7 Azevedo (1880) 69-71. Se ele não foge, a infanta não irá, logicamente, atrás dele, mas o motivo ocorre em versão de possível influência espanhola (Gerineldo y la Condesita), com a seguinte nota do editor: “Gerineldo (í-o) + O Conde Sol (á), Sendim, informante viveu em Sevilha”: Ex: “ 30. Ella se dispe de su ropa y se viste de zagal, // 31. se monta en su caballo, en busca de Gerineldo vai.”, G/132 Fontes I (1987) 491-492. Q411.0.4.2. - Lover who had had sexual intercourse with princess, asks king to execute him for his transgression. Refused. Obs.: Gerinaldo pede por vezes um “castigo”, mas nem sempre especifica que este é a morte. Vejam-se os dois exemplos seguintes – apenas no segundo pede a morte como punição: - “26. - Aqui estou, real senhor, dai-me o castigo merecido. // 27. - Toma-a tu por tua esposa e ela a ti por seu marido.”, G/32 Leite (1958) 302-303. - “29. Mandai-me matar, senhor, que eu a morte tenho merecido. // 30. - Já que ela assim o quis, que vos tome por marido.”, G/16 Pedroso (1902) 464-465. Motivos de outros romances O Orfão: N128.1.1. Portentous events occur on St. John’s morning. Q433.5.1. King imprisoned youth because princess fell in love with him. D1275.3. Prisoner urged by his mother to sing father’s song before he is executed. King hears song, pardons him. O Prisioneiro: R51.3. Prisoner’s springtime lament. Cannot see daylight. Even bird who announced 333 A REVELAÇÃO DO SENTIDO day and night is killed (has disappeared). R51.3.1. Prisoner’s springtime lament. All the world is happy (animals in the fields, lovers) except him because he is in prison. Ex: “Sua mãe logo que soube, logo o veio visitar // Com as lágrimas nos seus olhos, seu rosto vinha banhado. // - Tu não sabes, ó meu filho, o que teu pai me vem lembrando, // Quando teu pai morreu, deixou-me recomendado, // Qu'eu te desse a bom senhor, que te desse a bom fidalgo. // Pra eu te ver melhor fim, entreguei-te à mão do rei, // Foste-lhe falso à coroa, fostelhe cruel à sua lei. // Mas filho, pega na viola, filho pega c'onvicção, // Olha co rei está à janela, de ti vai ter compaixão. // E canta aquelas cantiguinhas, ...................... // Que o teu pai cantava às raparigas, na manhã de S. João, // - Ah que Deus tão cruel, mãe de tão duro coração, // Ver o seu filho à morte, o manda tocar serão. // ‘Todos logram nos seus amores, na manhã de S. João, // Uns com cravos, uns com rosas, outras com manjaricão. // Só eu pelos meus pecados, sofrendo nesta prisão, // Já não sei quando é noite, nem quando é madrugada, // Senão pelos passarinhos, quando cantam a arvorada...’”, vv. 33-50 de G/175 Galhoz (1987) 415-416. O Conde Ninho: T41.4. Lover sings to signal his presence. B53.0.1. Lover’s song mistaken for siren’s song. Woman recognizes his voice. O Conde Ninho no início de Gerinaldo não ocorre nas versões portuguesas, excepto se por influência espanhola. Ver a sendinense G/89 Mourinho (1984) 161-163: “1. Fué a dar agua a sus caballos, a las orillas del mar; // 2. Enquanto sus caballos bebian, Gerineldo hecha un cantar. // 3. Que bien canta la serena, a las orillas del mar!... // 4. No es serena, señhor, nin tampoco el su cantar, // 5. Se és Gerineldo pulido, que anda para me engañar.” T84.1. Queen orders death of daughter’s suitor. E631.0.1. – Twining branches grow from graves of lovers. D154.1.1. Transformation: woman to dove. Princess, as dove, leads hero to safety. T86.7. Lovers die, buried in joint grave. Ex: “9. Rainha, como discreta, logo os mandou matar, // 10. Enterrou-o na igreja, a ela ao pé do 334 A REVELAÇÃO DO SENTIDO altar. // 11. Duma nasceu uma roseira, doutra uma árvore frondal, // 12. Um cresceu, outro cresceu, às portas se vão juntar. // 13. Indo um dia a rainha à missa, não a deixaram entrar; // 14. A rainha tão discreta, logo os mandou cortar. // 15. Dum nasceu uma pombinha, doutro um pombo real: // 16. Um boou, outro boou, ao céu se foram juntar.”, G/171 Galhoz (1987) 407408. Tivessem sido todas as versões portuguesas consideradas no Motif-Index e considerando um índice de motivos como um arrolamento de situações ou funções narrativas, haveria ainda que relacionar: Em Delgadinha: - motivos que seriam: - “Pai acusa falsamente a filha de lhe fazer propostas incestuosas; mãe determina o castigo”611. Ex: “9. Ora vinde, mulher minha, ver o que aconteceu: // 10. a nossa filha Faustina de amores me prometeu.”, D/1 Braga (1867) 181-183; - “Pedido de ajuda à família”, uma vez que fazem parte da estrutura narrativa do romance em praticamente todas as versões da tradição oral moderna pan-hispânica que pudemos consultar. - “Aparecimento de água/fonte junto da jovem morta”. Ex: ”26. Delgadina já está morta, [………………..] // 27. ao lado da mão direita tem uma fonte d' água clara.”, D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168); - O motivo C.119.1.4. “Tabu: sexual intercourse during religious festival”, visto que, embora raramente na tradição portuguesa, o pai vem da missa quando faz a proposta incestuosa. Ex: “1. Estando dona Delgadina na sua sala quadrada // 2. e vindo seu pai da missa”, D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168). 611 O que, sendo uma variante, não deixa de poder ser considerado um motivo, pelas funções que desempenha. 335 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em Silvana: - motivo que seria “enumeração dos filhos pela mãe”. Ex: “18. - Como te posso trazer honra quem já três vezes pariria? // 19. Um foi Dom Pedro de Castro, outro Dom João de Castilhas // 20. e a tua filha Silvana, o que queres à tua filha?”), S/11 Purcell (1976b) 39-41. - motivo E323.2. “Dead mother returns to aid persecuted daughter”. Ex: “7. Encontrou a sua mãe que vinha da outra vida” , S/17 Ferré (1982) 208; “10. sua mãe dos altos céus foi valer à sua filha.”, S/22 Ferré (1982) 209-210). Em Veneno de Moriana: - motivo que seria “Lamentações”; as lamentações do cavaleiro ao sentir-se desfalecer estão tantas vezes presentes nas versões portuguesas que poderiam ser consideradas um motivo612. Ex: “10. - Coitados dos meus meninos, que ficam sem meu abrigo! // 11. Coitada da minha mulher, que fica sem seu marido!”, VM/4 Tavares (1906) 313-314. Em Gerinaldo: - motivo que seria “O rei acorda naturalmente”. Ex: “11. Acordou o senhor rei, do sono qu'era dormindo”, G/175 Galhoz (1987) 415-416. - motivo que seria “O pajem acusa a infanta”. Ex: “30.- Senhor não fui o culpado, antes fui acometido”, G/175 Galhoz (1987) 415-416. 3. Os motivos não-indexados Uma vez que entendemos que o uso de motivos constitui um dos processos de conferir de sentido à narrativa, analisaremos o modo como eles assumem a função de 612 Na Introdução do Motif-Index, refere-se ter sido considerado o RPI, que apresenta duas versões de Veneno de Moriana, uma delas incluindo as Lamentações, do nosso proposto Tipo A (Can 150) e a outra do Tipo B, que não as possui (VRP 539). 336 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “detonadores do instante significativo”613 nos romances em que se dá a sua ocorrência e aos quais, por contraste com os arrolados em índices, chamaremos “motivos não-indexados”. Mantendo-lhes o carácter narrativo, estes motivos têm um valor indicial ou simbólico e diz Margit Frenk que, “el conjunto de símbolos que aparecem en las canciones populares constituye un lenguaje, un sistema o código, y tiene que ser entendido por sus usuários”, podendo alguns dos seus elementos ser ambíguos 614 . Simples ou complexos, estes funcionam, então, como processos de significação, radicando num imaginário colectivo que abrange diferentes contextos, embora, numa primeira instância, o sentido lhes seja atribuído pelo grupo social que os usa615. Por outro lado, e apesar da abrangência de usos e funções, as interpretações do seu sentido não serão aleatórias, tal como não deverá, a todos eles e por princípio, ser atribuída uma excessiva carga simbólica. Ainda assim, sendo dotados de uma capacidade plurissignificante, os motivos, que podem ser tópicos (“a rosa”, “o jardim”, “o pente”, “o cavalo”, etc.) ou expressar-se em frases, como “encerrar numa torre/convento” e “não dar água/dar alimentos salgados” para o mais abrangente “castigo cruel”, adaptam-se também ao contexto em que ocorrem, tendo a capacidade de se “moverem” entre narrativas. Diz Clement Legaré que “en tant qu’unité mobile, disponible et réglable, le motif peut s’éngager dans des parcours 613 A expressão é de Nuno Júdice, que encontra uma “condensação dos significados num único significante, a que se chama motivo”. Cf. Nuno Júdice [1991], O espaço do conto no texto medieval, Lisboa, Vega, 1991, pp. 252 e 256-257. 614 Cf. Margit Frenk [1998], “Símbolos naturales en las Viejas Canciones Populares Hispánicas”, em Pedro M. Piñero, ed. de, Lírica Popular/Lírica Tradicional – Lecciones en homenaje a Don Emilio García Gómez, Sevilha, Universidad de Sevilla, 1998, pp. 159-182. 615 Notamos, porém, que, embora a significação primeira dos motivos seja a que lhe é dada pelo grupo social que o usa, tal não significa que atribuamos directamente todas as possibilidades de sentido que adiante apontamos aos produtransmissores das versões, frequentemente iletrados. Entendemos, mesmo assim, que os motivos utilizados nos romances partilham o núcleo de sentido implícito das possibilidades apontadas, mesmo sem que haja uma relação evidente com estes. Assim, preferimos registá-las neste momento e não mais à frente, ao tratarmos dos efeitos da acção dos produtransmissores que se realizam nas versões, por julgarmos que seria mais proveitoso não só para a interpretação dos motivos enquanto processos de significação implícita nos romances em apreço, mas também para servirem como paradigma possível dos procedimentos de análise de outros motivos, em outros romances. 337 A REVELAÇÃO DO SENTIDO narratifs différents au gré de l’imaginaire collectif” 616. O cavalo, por exemplo, tanto pode servir para revelar o estatuto social de quem o monta como, na sua dimensão simbólica, anunciar um acontecimento trágico, como analisaremos em Veneno de Moriana; em certas versões deste romance, o “jardim” é o local maléfico onde existem venenos mortais enquanto, em Bernal Francês, é o locus amœnus onde os amantes se encontram. Concomitantemente, o fenómeno da variação permite que um sentido possa ser expresso por motivos tópicos diferentes; em Gerinaldo, a espada colocada pelo rei entre os dois amantes pode ser substituída por uma adaga ou um punhal sem que se altere o sentido do gesto. Na sua capacidade de se deslocarem entre romances, como nos contos, os motivos poderão também desencadear associações de sentido, levando a que os produtransmissores incluam versos de um ou mais romances que contenham esses motivos em versões de outro romance, sobretudo se forem de tema idêntico ou as situações sejam semelhantes. Veja-se o caso da versão617 que reproduzimos abaixo, na íntegra, e que exemplifica o que foi exposto; nela encontram-se sequências e motivos de três romances (Claralinda, Bernal Francês e A Aparição). Nesta versão, poliassonantada e que começa como Claralinda, são próprios deste romance o motivo da perda das chaves (vv. 12-13) e o interrogatório sobre os vários objectos de uso masculino que o marido vai encontrando pela casa, tentando a mulher adúltera, sucessivamente, ludibriá-lo (vv. 14-15). As pragas rogadas ao marido (vv. 5-6) ocorrem em Claralinda e igualmente em Bernal Francês, sendo deste e não do outro romance o 616 Cf. Clement Legaré [1980], Le statut sémiotique du motif en ethnolittérature. Application à Pierre la Fève, version québécoise du conte type AT563, Montréal, Éditions Quinze, 1980. 617 A versão em causa encontra-se classificada, em GRPP, como Claralinda, pp. 262-263 e, na pp. 286288, a mesma aparece em duplicação, como Bernal Francês. A mesma versão é reeditada como Claralinda, com o número 31 e a indicação “estróf.; i; i”, em Idália Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz, Isabel Cardigos [2006], Romances. Património Oral do Concelho de Loulé, Vol. II, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2006, pp. 68-69 e objecto da seguinte Nota, na p. 252: “ A versão 31 está contaminada com BERNAL FRANCÊS (i) e com A APARIÇÃO (i)”. Em BRPTOM, a versão está classificada como Claralinda. Embora contenha versos de Bernal Francês, a versão não é integrada no nosso corpus, tal como não o fazemos para outros romances em que possa existir a mesma situação. 338 A REVELAÇÃO DO SENTIDO motivo das promessas de morte quando metaforizadas no vestuário vermelho (vv. 1819) 618: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. “- Ó meu cravo, ó minha rosa, meu jardim, minha flor, Dá-me licença, menina, de falar contigo amor. - Vem-te, vem-te, ó D. Carlitos, esta noite até mais não, D. Roberto foi à caça para os campos de Aragão; Más balas d' ombro esquerdo que lh' apasse o coração, Que ele já não venha mais, qu' ele não venha mais não. D. Roberto foi à caça para os campos de Aragão; D. Carlinhos que entrava, D. Roberto que chegava. D. Maria ansiada por D. Carlos se esconder À sorte que D. Roberto não o mais chegasse a ver. - Que é isso, D. Maria, que é isso, ó meu coração? - Fui eu que aperdei as chaves do meu caixão. - Se tu as perdestes de prata elas que d'oiro se farão. Diz-me que armas são aquelas que além àquele canto estão? - É o dole, meu D. Roberto, que me deixou meu irmão. - Cala-te D. Maria, cala-te falsa traidora, Por via da tua acção perdeste o sim de senhora. Vou-te dar saia acicena, vestido de cramelim, Gorlotina e gargolada, já que me mereceste assim. - Eu peço-te, meu D. Roberto, que me não mates aqui; Levarás-me a Campo Verde, darás-me assim a fim. - Inda te faço este gosto de não te matar aqui, Sete condes t' hão-de levar numa tumba de marfim, A coberta que t' há-de cobrir há-de ser dum grão cetim. D. Carlitos pensativo, pensativo sem saber O fim de D. Maria, o fim qu' ela podia ter, Pra disfarçar suas penas esses campos foi correr. Indo já muito cansado duma pedra fez assanto, Apuxou um lenço branco para alimpar suas lágrimas. Viu vir uma velhota, e viu vir ua velhinha. - Donde vens, ó minha velha, donde vens, ó minha velhinha? - Venho de cima desse mundo tirando a minha esmolinha. Conte-me lá o meu menino que paixões as suas são? - Isso é a D. Maria, essa é que é a minha paixão. -Essa mulher já é morta, que matar eu bem a vi, O lugar que ela se enterrou, foi neste lugar aqui. - Abre-te, sepultura abre-te, quero a minha amada ver. - Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim; 618 Quanto ao castigo da adúltera de Claralinda, este salda-se, muitas vezes, por uma devolução à casa paterna, enquanto o da de Bernal Francês é a morte, mas também aquela pode ser morta ou esta ser levada ao pai (Cf., por exemplo, em VRP, I, a versão de Claralinda das pp. 449-450, vv. 23-24: ”matar… eu não te mato, mate-te quem te criou; // levo-te ao pai que veja a prenda que me mandou.” e a BF/48 Leite (1960) 511, vv. 15-16: “- Eu matar-te, não te mato, - que te mate quem te criou, // Levo-te ao pé de teu pai, - veja a filha que me dou.”. 339 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. Os olhos com que t' eu olhava fechei-os por causa de ti; Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim, Que a boca com que t' eu beijava por causa de ti a perdi; Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim, Vai ensinar aos teus filhos melhor que t' ensinaram a ti; Vai-te embora, ó D. Carlitos, vai-te já de ao pé de mim, Se chegares a casar casa com uma Maria como a mim, Pra quando bradares por ela tu t' alembrares de mim. A presença dos motivos “cravo/rosa/jardim” logo no incipit, que se encontram também em várias versões de Bernal Francês, como adiante se verá, poderá ter suscitado uma mistura dos dois romances, tanto mais que ambos têm como tema o adultério 619 , levando o transmissor a fundi-los numa só versão. Esta finaliza com a contaminação de A Aparição, o que sucede frequentemente com Bernal Francês, na tradição portuguesa, mas não com Claralinda620. A análise deste caso, embora sumária, demonstra que certas versões podem resultar da partilha do sentido implícito dos motivos nelas contidos, ou resultar num intercâmbio de significações. Em algumas versões de Bernal Francês contaminadas com A Aparição, como a do exemplo abaixo, o motivo do vestuário como metáfora da 619 A diferença entre Claralinda e Bernal Francês é que, no primeiro, o marido regressa depois de uma ausência breve (foi à caça ou à feira, nesta versão os vv. 4 e 7) e, com a sua própria identidade, surpreende a mulher que tem o amante dentro de casa, enquanto no segundo se apresenta à porta vestindo a máscara do amante. O adultério da protagonista de Claralinda é episódico e não continuado, como o é em Bernal Francês. Em Claralinda, de facto, o adultério é narrado como dando razão ao dito “A ocasião faz o ladrão”. Seleccionamos, como comprobatória, esta versão: “Estando dona Filomena sentada em seu balcão, Passa por ‘li um soldado, logo lh’apertou a mão, - Soldadinho, agora, agora, agora é ocasião, Meu marido foi à caça lá p’ra os campos de Aragão …” VRP, vol. I, pp. 450-452 Também em outras versões deste romance, o amante de Claralinda vai, explicitamente, a passar à sua casa (Cf. RPTOM, Vol. III, pp. 180-210). Já em Bernal Francês, pelo contrário, longe de se tratar de um amante de passagem, dá-se a ideia, no decorrer do romance, de amores fiéis e continuados, ainda que adulterinos. Será esta a razão pela qual, na versão em causa, no v. 2, parece haver um menor à vontade do homem, que pede “licença para falar” e não que “se abra a porta”, pedido próprio de Bernal Francês mas que ocorre também, recorrentemente, em Frei João. Note-se que, neste romance, as circunstâncias do adultério são diferentes dos outros dois; o frade bate à porta, mas, como o marido se encontra em casa, a mulher dá a entender ao amante que não pode abrir e engana o marido, dizendo-lhe que fala com a forneira; logo o manda à caça e assim que o marido vai, a mulher vai encontrar-se no convento com Frei João, mas quando regressa o já desconfiado marido sai-lhe ao caminho, confronta-a e mata-a. 620 Das quarenta e duas versões de Claralinda registadas no RPTOM apenas uma (nr. 961) apresenta esta contaminação, em um fragmento. 340 A REVELAÇÃO DO SENTIDO morte violenta, próprio do primeiro (a), é retomado na parte que corresponde ao segundo romance (b); os sinais da defunta que são dados ao amante que a procura (a negrito) assemelham-se muito à oferta do marido: (a) 15. “- Bau-te dai saia de grama, cordõu d' oiro gramasi, 16. E gargantinha coleirada; bós la causastes assi.” (b) 23. “- A tua Aninha ié morta, ié morta qu' ieu bem na bi. 24. Os sinais qu' iela lebaba, bo-los digo já daqui: 25. Lebaba saia de grama, cordõu d' oiro gramasi, 26. E gargantinha coleirada; bós la causastes assi.” BF/55 Pereira (1970) 243-244 A evidência de que os motivos são plurissignificantes, portadores de um sentido implícito e, mesmo, simbólico, é observável não só neste tipo de associações executadas pelos produtransmissores, mas também pela análise do discurso das próprias personagens, de que se referem dois exemplos. A mulher adúltera, em Bernal Francês, ao ouvir o marido anunciar que lhe vai dar determinados objectos (saia/colete/colar de cor carmesim) compreende imediatamente que o sentido da oferta não é o literal, que se referiria a uma qualquer “prenda” que este lhe trouxesse da viagem, mas o sentido implícito na natureza dos objectos, que é a morte às mãos dele; em Gerinaldo, ao ser inquirido pelo rei de onde vem, o pajem diz ter estado ocupado em actividades cujo sentido literal estaria implicado pela sua condição de servo, mas as réplicas irónicas do rei demonstram que este está a par do sentido implícito das conotações eróticas de certos motivos inseridos nas declarações do pajem, como adiante veremos. Os motivos desempenham, pois, funções denotativas, conotativas e simbólicas. De facto, ainda em Gerinaldo, a infanta e o pajem tanto percebem que a espada do rei colocada entre os dois simboliza o Poder discricionário deste, que logo agirão em conformidade, tentando subtrair-se ao castigo. Os mesmos motivos, com o mesmo 341 A REVELAÇÃO DO SENTIDO simbolismo linear, podem, portanto, ser partilhados por vários romances e neles adquirir funções e, até, sentidos diferentes. É o caso, por exemplo, da “porta” em Bernal Francês e em Gerinaldo. A porta, tanto na lírica como na narrativa, é um bem conhecido motivo de conotações eróticas, associado ao corpo feminino, simbolizando o “bater à porta” do “amante” o desejo de nele entrar. Mariana Masera postula que entre os símbolos amorosos que não de referente naturalístico estão o castelo, o moinho e a porta e, deste último, diz: “El tercer símbolo mencionado es la puerta que es el más destacado por su antigüedad, frecuencia y polisemia. Al ser un símbolo de frontera se ha relacionado con innumerables “ritos de paso” pues señala el límite entre lo privado y lo público, entre lo femenino y lo masculino y, en última instancia, entre la vida y la muerte. Aparece tanto en poéticas cultas como populares, antiguas como modernas”. [……..] “En la lírica tradicional la puerta se asocia con el espacio privado, con la casa que era el lugar donde la mujer realizaba la mayor parte de sus tareas cotidianas. Asimismo ésta representa, en un aspecto más general, la integridad de la familia, la hospitalidad o la violación de las mismas según si se abre o se cierra la puerta” 621 . A diferença entre aqueles romances, é que, em Bernal Francês, o marido subverte deliberadamente este sentido, pois ao bater à porta para entrar, o seu fito não é, na verdade, o desejo amoroso, mas probatório; em Gerinaldo, o pajem apresenta-se à porta da infanta com o intuito de cumprir o desejo anteriormente expresso por ela própria; a réplica desta (“- Ó quem bate à minha porta, ó quem é o atrevido?”, v. 9 de G/2, Braga (1867) 18-20) será entendido como um querer certificar-se de quem se trata ou, até, de exacerbar o desejo do amante, fazendo-o crer que bem poderia ser outro a procurá-la. Deste modo, embora o seu sentido possa divergir, teremos, nos que nos servem de corpus e por ordem alfabética, os seguintes motivos, fazendo notar que alguns se relacionam entre si e, também, com outros: 621 Cf. Mariana Masera [2008], “Tradición y creación en los símbolos del cancionero tradicional hispánico: la puerta”, Destiempos, (Julio-Agosto 2008), Año 3, Número 15, Publicación Bimestral, México, Distrito Federal, disponível na Internet em http://www.destiempos.com/n15/masera.pdf, arquivo acedido em 30 de Dezembro de 2009. 342 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Água: Bernal Francês, Delgadinha, Gerinaldo. Canto: Silvana, Gerinaldo (em contaminação com D. Pedro Pequenino e com Conde Ninho). Cavalo: Veneno de Moriana (em “o cavaleiro”) e Gerinaldo. Dar a mão: Delgadinha. Espada: Bernal Francês, Delgadinha e Gerinaldo. Filha perseguida pelo amor antinatural de um pai: Silvana (antecedente: motivo “provocação”) e Delgadinha (antecedente: motivo “beleza). Ocultação de identidade: Bernal Francês (máscara), Silvana (troca com a mãe), Gerinaldo. Jardim (motivos vegetais): Bernal Francês, Veneno de Moriana, Delgadinha, Gerinaldo. Luz: Bernal Francês, Delgadinha. Mãe: Silvana, Delgadinha, Veneno de Moriana, Gerinaldo (em contaminação com O Órfão). Castigo: Bernal Francês (integra o motivo “oferta”), Silvana (punição moral do pai), Delgadinha (integra “encerramento”, “água”, “luz”, “sal”), Veneno de Moriana (do cavaleiro), versões compósitas de Silvana e Delgadinha, Gerinaldo. Oferta: Bernal Francês (vestuário/adornos de cor vermelha), Veneno de Moriana (vinho). Sapato: Bernal Francês. Sonho: Gerinaldo, Bernal Francês. Passamos a apontar, nos romances analisados, os motivos não-indexados, o micro-relato que lhes corresponde e a sua função. 343 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3.1. BERNAL FRANCÊS Motivo: A máscara. - Micro-relato: Um marido disfarça-se, de modo a fazer crer à mulher que é o amante. - Função no romance: Comprovar a infidelidade da mulher. Parece estranho, à primeira vista, ainda que na escuridão propiciada pelo apagar do candil e mesmo não o vendo há muito tempo, que a mulher não reconheça o próprio marido. Contudo, é de presumir que este teria disfarçado o seu aspecto, vestindo a “máscara”622 de amante. Esta poderia ser constituída pelo próprio vestuário623 ou pela cobertura da cara com barbas e bigodes. Diz Leite de Vasconcellos que “[A] barba é ornato mui sujeito a modas” e que “reinou entre nós barba afonsinha, cara rapada, barba heróica, bigode e pêra, outra vez cara rapada, patilha simples, e assim por diante” 624. Segundo Oliveira Marques, em Portugal a partir de D. Fernando e na Europa, até princípios do 622 O motivo da máscara é recorrente em literatura, com objectivos diversos. No romanceiro, destacamos algumas máscaras: em Donzela Guerreira, cujo disfarce de homem adoptado pela protagonista destina-se a auxiliar o pai, que não tem filhos varões para mandar à guerra, o que naquele contexto social, constituiria uma vergonha; em A Bela Infanta, com função de teste de fidelidade (o marido, ausente longos anos apresenta-se à mulher como um estranho; dar-lhe-á notícias em troco de a ele se entregar); em Conde Claros em hábito de frade (o conde apresenta-se como confessor à infanta que vai a caminho da execução e pede-lhe um beijo); como máscara de engano com o fito de seduzir, teremos A aposta ganha (IGR 0255), cujo protagonista, aconselhado pela mãe, se disfarça de tecedeira para se introduzir no quarto da donzela. Com um objectivo semelhante ao do marido em Bernal Francês, notamos o estratagema do Romeiro, em Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. O Romeiro é também um marido ausente por muitos anos e que se apresenta disfarçado, deparando-se com uma espécie de adultério, ainda que em grau menos “culpável”. Ambos, afinal, “vestem” uma máscara que lhes permite comprovar algo que já saberiam. 623 Refira-se, a propósito, que, em Espanha, o uso de grandes capas e de chapéus de aba larga foi proibido em 1766, por decreto de Esquilache, ministro italiano de Carlos III, pretendendo-se a substituição daquele vestuário tradicional pela capa curta e chapéu de três bicos. O objectivo era o de assegurar a ordem pública, com o argumento de que os delinquentes não eram identificados, escapando à justiça, proibição que desencadeou grandes motins. A série de revoltas, que se estenderia a diversas cidades, estalou em Madrid, radicalizando um descontentamento provocado por uma crise de subsistência e pelas medidas reformadoras de Carlos III, de quem se diz ter comentado “Lloran cuando los lavan”, referindo-se às queixas dos madrilenos sobre as medidas tomadas quanto à implementação da iluminação da cidade. Sobre estas revoltas, cf. Xavier Moreno Lara [1979], “El despotismo ilustrado”, Historia de España. Hasta la Constituición de 1978, Bilbao, Ediciones Mensajero, 1979, pp. 208-213 e também Roberto Fernández, Carlos III, Madrid, Arlanza Ediciones, 2001, pp. 170, 181-183 ou Maria de los Angeles Pérez Samper [2005], “El motín de Esquilache. La Gran Crisis de Carlos III”, Historia y Vida, nr. 446, Barcelona, Mundo Revistas, Año XXXVII, 2005, pp.70-79. 624 Cf. José Leite de Vasconcellos [1996], Signum Salomonis. A Figa. A Barba em Portugal, Lisboa, D. Quixote, 1996 (A Barba, pp. 263-451). 344 A REVELAÇÃO DO SENTIDO século XVI, a moda era das faces glabras, sendo bizantino e muçulmano o uso dos cabelos, bigodes e barbas compridas, moda introduzida no Ocidente pelos Cruzados625. Note-se que o Bernal Francês do romance é associado a uma personagem histórica que combateu os mouros, no século XV 626 , e que esta faceta, tal como o temperamento feroz, poderiam ter sido transpostos para o “marido”. De facto, posteriormente no romance, a mulher referirá ao suposto amante que o marido se encontra longe, por vezes a combater os mouros, de onde poderia ter regressado barbado a uma sociedade onde os homens usassem a face nua. Entre os romances de adultério, o motivo da “máscara” apenas aparece em Bernal Francês; em todos os outros, o marido enganado apresenta-se sempre com a sua identidade real627. Obviamente, todos partilham o mais abrangente motivo “engano” e este é largamente funcional em narrativas de fundo amoroso; visto que nos debruçamos 625 Cf. Marques [1971], p. 60. Cf. Parte I, Capítulo I, Bernal Francês, História Externa. 627 Os “romances de mulheres adúlteras”, segundo o RPTOM, são D. Olívia, O Conde da Alemanha, Frei João, Bernal Francês, Claralinda, A filha do ermitão, A condessa traidora, Landarico, O gato do convento e as bodas em Paris. Partilhando o mesmo tema, em todos se desenha uma teia de amores ilícitos e enganos, mas o sentido de cada um é diferente. Registamos aqui, num muito breve resumo, o modo como constroem um discurso significante sobre o adultério que se afasta do de Bernal Francês: D. Olívia – A adúltera pranteia o amante morto; a sogra adverte o filho, que vai ao local do enterro para matar a mulher; esta confessa o seu desamor por ele, sendo do outro alguns dos filhos que teve. O Conde da Alemanha – A princesa, sabedora do adultério da mãe, acusa o conde ao pai de a tentar seduzir; o conde é condenado à morte e a filha considera que salvou a mãe. Frei João – O frade bate à porta, mas, como o marido se encontra em casa, a mulher dá a entender ao amante que não pode abrir; engana o marido dizendo-lhe que fala com a forneira e manda-o à caça; logo que o marido sai, a mulher vai encontrar-se no convento com Frei João, mas, quando regressa, o já desconfiado marido sai-lhe ao caminho, confronta-a e mata-a. Claralinda – Na ausência do marido, a mulher recebe o amante; quando aquele chega a casa e vê objectos masculinos que não lhe pertencem, a adúltera dá-lhe sucessivas justificações; ao ouvir um ruído emitido pelo amante escondido, o marido repudia a mulher. A filha do ermitão – N/NOTA: embora classificado como de mulheres adúlteras, as duas versões registadas contam que há um clérigo novo que dorme com a“filha do ermitão”, mas não explicitam que esta é casada. A condessa traidora – O conde já velho e a condessa, que é jovem, passeiam e o conde adormece; a condessa tenta mover o amante a matar o marido. Landarico – semelhante ao anterior, a rainha pretende que, já que dele tem filhos, Landarico mate o rei, mas este recusa-se. O gato do convento – O marido, que se esqueceu da aguilhada, volta a casa e descobre um vulto na cama e a mulher tenta convencê-lo de que se trata do gato do cura; o marido quer matar este, mas a mulher falalhe das conveniências (económicas ou religiosas) de não o fazer. As bodas em Paris – A mulher foge com o conde ao marido, a quem teme; vai disfarçada de pastora; no caminho, este encontra os dois e o amante tenta enganar o marido, mas o disfarce cai; ainda assim, o marido diz-lhe que a leve e a torne a trazer. 626 345 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sobre infidelidades femininas, referimos a notável analogia do sentido pressuposto de Bernal Francês com a décima quinta novela da segunda jornada do Heptameron628, cujo resumo, que tomamos da tradução portuguesa629, é o seguinte: “Por mercê do rei Francisco, um simples fidalgo de sua corte veio a desposar uma mulher muito rica da qual cuidou tão mal, quer por ser muito novo, quer por o seu coração se achar ausente, que ela, movida pelo despeito e vencida pelo desespero, depois de ter procurado por todas as formas ser-lhe agradável, resolveu procurar algures reconforto para o dano que seu marido lhe fazia”. O seguinte excerto da novela, encontra, por sua vez, um evidente paralelo no começo do romance - ambos os maridos, suspeitosos das mulheres, vestem a máscara dos rivais e anunciam-se com o nome destes: Heptameron: “Mas o marido, tão tomado de ciúmes que nem conseguia dormir, agarra numa capa e num criado, como ouvira dizer que o outro fidalgo levava, e lá vai ele bater à porta dos aposentos de sua mulher. Esperando ela por tudo menos por ele, ergueu-se logo e tomou uns borzeguins forrados, mais um manto que ali tinha à mão; e vendo que as duas ou três aias que tinha consigo já dormiam, saiu do quarto e foi direita à porta a que ouvira bater. E perguntando quem era, foi-lhe respondido o nome daquele a quem amava”. Bernal Francês: “Era uma senhora que tinha um amante e o amante era o Bernardo Francês. Um dia o marido combinou com ela qu'ia p'ra uma feira, no Brasil, e saiu de casa. Mas ele veio à noite e bateu à porta. E ela disse: 1. - À minha porta oiço bater, à minha porta oiço tunir, 2. s'é o Bernardo Francês, minha porta vou abrir. 628 Esta obra, possivelmente inspirada no Decameron de Boccaccio, é atribuída à rainha de Navarra, que viveu entre 1492 e 1549 e foi editada pela primeira vez em 1558, por Pierre Boaistuau, sob o título Histoires des amans fortunez e, um ano mais tarde, por Claude Gruget, com o título Heptaméron. Cf. Prefácio de Walter K. Kelly [s.d.], The Heptameron of Margaret, Queen of Navarre by Marguerite de Navarre (d'Angoulême) Duchesse d'Alençon (1492-1549), London, published for the trade, n. d. (Translated from L'Heptameron des Nouvelles de très haute et très illustre Princesse Marguerite D'Angoulême, Reine de Navarre Nouvelle edition, publiée sur les manuscrits par la Société des Bibliophiles Français, Paris, 1853, 3 vols.), disponível na Internet em http://digital.library.upenn.edu/women/navarre/heptameron/heptameron.html, arquivo acedido em 9 de Dezembro de 2009. 629 Cf. Margarida de Navarra [1976], Heptameron, Editorial Estampa, 1976. 346 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3. Se é outro qualquer, daí já se pode ir. Ele disse qu'era o Bernardo Francês e entrou. ….” BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37 A protagonista da novela, porém, demonstra menos cegueira do que a do romance; abre um pequeno postigo e pede ao interlocutor que lhe mostre a mão, o que lhe permite reconhecer o marido. Outra das novelas, a sexta da primeira jornada 630 , apresenta maior semelhança com Claralinda, cuja protagonista ainda engana o marido durante algum tempo, mas dela retemos, mais em particular, a analogia com o alegado sonho tido em Bernal Francês pela mulher, ao ser confrontada com a identidade do marido: Heptameron: “- Oh, meu marido, que satisfeita me sinto por terdes voltado! Estava a sonhar uma coisa maravilhosa […]” Bernal Francês: 16. “ - Ah! Que sonho sonhei eu, que sonhei agora aqui, 17. qu'hoje tinha mê marido, que o tinha a par de mim!” BF/62 Ferré (1982) 160-161 Motivo: O sapato. - Micro-relato: Uma mulher vai abrir a porta ao amante e perde o sapato. - Função no romance: Indicar o alvoroço amoroso; prenunciar a fatalidade. Atrás, mencionámos já o simbolismo amoroso/erótico do acto de bater à porta; no romance, ao ir abri-la, a mulher deixa cair o chapim: 4. “ao descer da minha escada descalçou-se-me o chapim,” BF/24 Landolt (1917) 81-82 O resumo desta é o seguinte: “Um velho zarolho, camareiro do duque de Alençon, avisado de que sua mulher se apaixonara por um jovem, e desejando saber a verdade, fingiu que se ausentava uns dias para o campo, de onde veio tão cedo que sua mulher, a quem, julgando que a enganava, queria apanhar na esparrela, o enganou a ele”. 630 347 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O incidente, à primeira vista, parece um tanto inócuo e devido ao tipo de calçado que não facilitaria um andar apressado - o quase sempre mencionado “chapim” é “calçado feminino de sola grossa, de madeira, cortiça, etc. usado para realçar a estatura das mulheres”631. Miguel Herrero refere-se aos chapins, na sua grande variedade, de entre os diversos tipos de calçado usados na época abrangida na obra de Lope de Vega, destacando que a altura de alguns dificultava o andar 632 . Diz também que, segundo autores como Covarrubias, Argensola e Góngora, o chapim, até certa altura, era calçado não de meninas, mas de mulheres casadas e, ainda, que, se postos em casa para alguma visita de cerimónia, havia que tirá-los em caso de ser preciso correr. A descrição vem de encontro à situação em Bernal Francês – ela teria posto os chapins para receber condignamente o amante, mas, na sua pressa amorosa, ter-se-ia esquecido de os tirar para correr à porta. Assim, o cair do sapato633, no seu sentido mais imediato, resulta da pressa de ir abrir a porta, o que, por sua vez, revela que o alvoroço da mulher se deve a uma expectativa. Como o par de sapatos simboliza a harmonia conjugal, a perda de um deles por uma mulher acorrendo ao chamamento de um homem significará que este não é o marido634. Por outro lado, o motivo é indiciário, uma vez que o descalçar simboliza a iminência de uma fatalidade635 e é já um prenúncio da morte que espera a adúltera. Esta crença de que perder um sapato dá má sorte é comum e antiga, nas tradições ocidentais: 631 Dicionário Houaiss, Tomo II, p. 896. Cf. Miguel Herrero [1977], Oficios populares en la sociedad de Lope de Vega, Madrid, Editorial Castalia, 1977. 633 Motivos semelhantes têm funções diferentes; em Gata Borralheira, conto tradicional em que é a heroína que se disfarça para não ser reconhecida, o cair do sapato tem como função permitir que o príncipe o encontre e fique na posse de um elemento de identificação, que servirá depois como prova de reconhecimento. Os motivos relacionados este incidente, em AT 510, Cinderella and Cap o’Rushes e AT 510 A, Cinderella, são: H111. Identification by garment; H36.1.Slipper test. Identification by fitting of slipper; F823.2. Glass shoes. Cf. Thompson [1987], pp.175-179. 634 Tal como em Le Soulier de Satin, de Paul Claudel, Dona Prouhèze, ao partir para tentar encontrar D. Rodrigo, entrega o sapato à Virgem, dizendo: “Mas, quando tentar lançar-me no mal, que isso seja com um pé coxo .....” (apud Chevalier, Gheerbrant [1994] , pp. 585-586). 635 Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 585-586 (entrada “sapato”). 632 348 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “… es asimismo antigua la convicción de que acarrea desgracia echar a andar con un zapato solo, o perder un zapato mientras se camina o se baja una escalera…” 636 . Motivo: A luz - Micro-relato: Ao ir abrir a porta ao amante, apaga-se a luz que a mulher leva. - Função no romance: Propiciar a escuridão e prenunciar a fatalidade. A luz está, simbolicamente, ligada à espiritualidade e é o inverso do caos 637, pelo que, além do facto óbvio de que a escuridão propiciaria o engano da mulher, o seu prévio apagar, por vezes repetidamente como na versão abaixo, torna-se prenúncio de que ela vai mergulhar numa inversão dos valores sociais: 7. “No topo da minha escada, meu candil se apagou, 8. eu o tornei a acender, ele se tornou a apagar.” BF/10 Braga (1887-1889) 108-110 O incidente do apagar da luz que a mulher leva, na maior parte das versões proporcionada pelo “candil” (pequeno aparelho de iluminação), parece ser, geralmente, atribuído ao Destino, como na versão acima e noutras (“apagou-se-me/apagou-se-lhe”), mas pode ocorrer alguma variação638 quanto ao causador, se bem que mesmo as versões que o atribuem a causas naturais, o “vento” na versão abaixo, deixem uma certa insinuação de prodígio: 6.“Ela se levantou da cama, sua porta veio abrir; 7. veio de lá um vento norte lhe apagou o seu candil,” BF/20 Dias (1911) 49-51 636 Cf. Pancracio Celdrán Gomáriz [2000], Creencias Populares (Costumbres, Manías y Rarezas: con su explicación, historia y origen), Madrid, Edimat Libros, 2000; entrada sobre o sapato, pp. 432-433. 637 Luc Benoist [1999], Signos, Símbolos e Mitos, Lisboa, Edições 70, 1999, pp. 57-59. 638 Se bem que, adiante, nos venhamos a debruçar sobre a variação no sentido, preferimos, dada a componente simbólica do motivo, indicar já aqui algumas variações. 349 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Acontece que a mulher não ache explicação ao incidente, se não a que lhe dita a consciência pesada (alguém provoca a escuridão porque a quererá matar), o que funciona também como uma premonição, ou, simplesmente, prefere pensar que o amante se compraz em brincar com ela: 9. “Ou isto vai de aporfia, ou alguém me quer matar, 10. ou isto é Bernaldo Francês, que comigo quer brincar,” BF/10 Braga (1887-1889) 108-110 Na versão seguinte, mais prosaica, diz-se que a luz é apagada a pedido do homem, o que implica o modo ardiloso que este achou para não ser reconhecido: 3.“- Apagai esse candeeiro, que eu não 'stou capaz de ver luz.”, BF/45 Leite (1958) 416418 Revela-se, por vezes, uma certa criatividade poética na variação sobre o incidente e, em outra versão, como se depreende da acusação implícita nas palavras da mulher, é o homem mesmo que apaga a luz: 3.“Apagaste o meu candim pelo canudo de prata. 4.- Que me importa a mim, senhora, se a luz dos seus olhos basta.” BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 Neste caso, o apagar da luz não é de cariz prodigioso, como na maioria dos casos, mas um poético pretexto (“ canudo de prata”) para a escuridão, que se torna simultaneamente irónico, uma vez que a “luz dos olhos”, afinal, é cegueira amorosa e reforço do sentido de acentuar a estratégia de engano adoptada pelo marido. Em uma versão, não deixa de ser significativa a ocorrência de uma interpelação da mulher, acusadora ao próprio candil: 5. “Ó candil de sete luzes, todas sete deste fim!”, BF/44 Leite (1958) 415-416. A referência a “sete luzes” remete para duas significações possíveis. A primeira indicia uma reminiscência das torcidas de linho de sete fios usadas nas “candeias do Senhor” e acesas antes do sol-posto de sexta-feira pelas donas 350 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de casa das comunidades cripto-judaicas639, devendo arder até ao fim640, ou mesmo uma referência à menora641, que tem sete lâmpadas e cuja luz simboliza a presença de Deus, servindo para alumiar a festa religiosa do Shabath. Neste caso, o apagar de uma candeia desse tipo, estando a ser indevidamente usada por uma mulher adúltera, seria indicador de que a luz de Deus a abandonava. O número sete, por si só, está também carregado de simbolismo, com um sentido de mudança cíclica e tem mesmo qualidades mágicas, invocado que é em fórmulas destinadas a mudar o comportamento de uma pessoa (provocar amor, sofrimento ou dominá-la)642. A segunda hipótese possível aponta para uma referência ao momento em que já abriu a porta e os dois estão juntos 5.”Que é isso, Bernardo Francês, que é isso meu querubim? 6. Candeeiro de sete luzes, todas sete deram fim. 7.Pegou-lhe pela mão, levou-o para o jardim” BF/22 Mendonça (1911) 12-14 4.”Chegou ao traço da porta, apagou-se-l'o candil. 5.- Ó candil de sete luzes, todas sete deste fim! 6.Pegou nele em seus braços, levou-o ao seu jardim,” BF/44 Leite (1958) 415-416 O “candeeiro/candil de sete luzes” seria, então, uma menção ao setestrelo, a constelação de sete estrelas643 que deixa de ser visível um pouco antes do alvorecer, ou 639 Arriscamos esta hipótese por se tratar de versões recolhidas em Rapa, freguesia próxima de Belmonte, c. Celorico da Beira, d. Guarda, onde existe, ainda hoje, uma comunidade de judeus. As versão em causa são a do exemplo dado, recolhida em 1910, e a BF/22 Mendonça (1911) 12-14 (“Candeeiro de sete luzes, todas sete deram fim.”). 640 Cf. Samuel Schwarz [1993], Os cristão-novos em Portugal no século XX, reprodução exacta da edição original datada de 1925, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1993, p. 42 e David Augusto Canelo [1985], Os últimos judeus secretos, Belmonte, Jornal de Belmonte, 1985, p. 93. 641 A Menorá é o candeeiro a ser usado no Tabernáculo, cujo modelo, de seis braços e uma haste central, com sete luzes, foi dado por Deus a Moisés: “Farás as suas lâmpadas que serão sete; e acenderás as suas lâmpadas para que dêem luz defronte dele”, Êxodo 25: 31-40; 37: 17-24. Cf. Luís Filipe Sarmento [2003], tradução e introdução de, Tora, Lisboa, Sporpress, 2003. 642 Cf. Antonio Lorenzo Velez, “Simbologia del numero en el folklore y en la cancion tradicional”, Revista de Folklore, nr. 3, tomo 01ª, 1981, disponível na Internet em http://www.fundjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=37, arquivo acedido em 28 de Dezembro de 2009, pp. 27-33. 643 O setestrelo é o nome vulgar da constelação das Plêiades, as sete filhas de Atlas metamorfoseadas em estrelas. As várias quadras ao Setestrelo que Trindade Coelho coligiu associam, tal como em Bernal 351 A REVELAÇÃO DO SENTIDO seja, quando impera ainda um lusco-fusco que propiciaria o engano – ela “vê” o amante, mas a luz é insuficiente para ver o marido. O facto é que o candil se apaga e, ainda que haja alguma variação quando à causa, a ocorrência do motivo no romance é tão importante que o incidente poucas vezes é omitido nas versões. Motivo: Os motivos vegetais. Em Bernal Francês, os motivos vegetais que nele ocorrem têm como função comum estabelecer a existência de um relacionamento amoroso, mas, na sua aparente simplicidade, emprestam ao romance uma mais ampla complexidade significante. Estes motivos são vários e neles incluímos as flores e plantas propriamente ditas, o jardim, por ser o espaço lógico onde estas normalmente se situam 644 e os perfumes florais; assim, ocorrem em vários micro-relatos, que sofrem variantes: 1) Motivos tópicos: a): Cravos e rosas. b): Alecrim e manjerona - Micro-relato: Um homem bate à porta e diz trazer/ser flores/plantas. - Função no romance: identificação dos interlocutores entre si. Francês, os encontros amorosos com o ambiente nocturno, como esta: “Os Setestrelos vão altos, // A Lua já embarcou, // Abra-me a porta, menina, //Que há sete horas que aqui estou.” Cf. Trindade Coelho [1993], O Senhor Sete, Lisboa, Vega, 1993, pp. 25-31. 644 Surgindo com a sedentarização do Homem, e num sentido mais literal, o jardim é, naturalmente, o espaço onde crescem plantas, que aquele utiliza com fins alimentares, medicinais, aromáticos ou de simples fruição estética. Os jardins, qualquer que fosse o objectivo principal do seu uso, são conhecidos na Suméria, no Egipto, na Grécia ou no Império Romano, que os difundiu pela Europa, incluindo a Lusitânia, estando documentado que o estudo das plantas, nos seus vários aspectos, foi sempre objecto do maior interesse. Aqui, mencionaremos o estudo sobre o assunto de Sandra Mesquita, com ampla bibliografia nas Notas e no qual, além dos da Antiguidade, são referidos os jardins árabes (lembrando em especial os jardins do Alhambra), os hortos conventuais, os jardins palacianos e populares medievais, os do Renascimento e a introdução de plantas dos novos continentes, com a menção à obra de Garcia da Orta (Colóquios dos simples e drogas…), bem como o Jardim Botânico de Domingos Vandelli (1767) para educação dos princípes e o de Coimbra (1772), também de objectivos didácticos. Cf. Sandra Mesquita [2004], Breve História dos Hortos de Aromáticas e Medicinais em Portugal, Lisboa, Colecção Ofiúsa, Apenas Livros, 2004. Destacamos também o estudo de João David Pinto-Correia [2008], “O Jardim Medieval: Questão Filológica e Configuração Histórico-Literária”, em José Eduardo Franco, Ana Cristina da Costa Gomes [2008], organização de, Jardins do Mundo – Discursos e Práticas, Lisboa, Gradiva, 2008, pp. 77-90, obra que oferece uma visão ampla e global sobre os jardins, tipos, origens, nacionalidades e dimensão social, histórica e simbólica. 352 A REVELAÇÃO DO SENTIDO a) - Cravos e rosas: Em certas versões do romance, a identidade dos intervenientes é explícita, como nas seguintes, a primeira identificando o homem e a segunda a mulher645: 1.“- Quem bate à minha porta, a esta hora de dormir? 2.- Sou Bernal Francês, senhora, p'ra vos bem querer e servir” BF/5 Azevedo (1880) 141-145 1.“- Francisquinha diligente, vosso corpo bem gintil, 2. Abri essas vossas portas a quem costumais abrir.” BF/52 Lemos (1961-1962) 171-173 Porém, noutras versões, o diálogo inicial menciona determinadas flores, recorrentemente “cravos” e “rosas” e, à primeira vista, essas flores aparentam ser um presente trazido por uma visita: 1.“- Oh quem bate à minha porta, quem bate, oh quem está aí? 2. - São cravos, minha senhora, flores lhe trago aqui!” BF/2 Braga (1867) 34- 36 Uma vez que, nesses casos, se ignora quem são os intervenientes do diálogo, torna-se claro que as flores servem outros sentidos; os motivos preencherão os intencionais vazios do começo, que esconde ainda a identidade dos interlocutores, substituindo os nomes e servindo como senha de identificação ou reconhecimento: 1.“- Oh quem bate a minha porta, oh quem bate e quem está aí? 2. Cravo roxo, minha senhora, Rosa Branca, venha aqui.”646 BF/26 Martins (1928)/Martins (1987) 224-226 Que assim é comprova-se pela imediata compreensão do seu significado que as personagens revelam: 645 Atrás já tratámos da questão da identificação das personagens. Aqui, trata -se da substituição dos nomes próprios, que são identificativos do género, pelo motivo flores ou plantas e do que estas simbolizam no contexto do romance. 646 Na “linguagem das flores”, cravo roxo quer dizer “sentimento” e “rosa branca” significa “silêncio”. Cf. s.a. [1868], Diccionario da linguagem das flores, Lisboa, Typ. Lusitana, 1868, disponível na Internet em http://purl.pt/13929, arquivo acedido em 23 de Junho de 2011. Sentimentos fortes e secretismo são, afinal, elementos essenciais neste romance. 353 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 1.“- Quem bate à minha porta? Quem bate? Quem está aí? 2. - São cravos, minha senhora, rosas vos trago aqui. 3. - Se sois D. Francisco d'Almada, a porta vos irei abrir; 4. Se sois outro cavalheiro, retirai-vos já daí.” BF/32 Leite (1958) 398-399 Ora na simbologia popular das flores, sendo o cravo o homem e a rosa a mulher647, a sua junção constitui o encontro amoroso648, razão pela qual a ocorrência de tais motivos não só é intracontextual como dá ao ouvinte/leitor que conhece tal simbologia a indicação das relações entre os dois falantes. Esse sentido dado ao cravo, por vezes, é reforçado com a menção ao “amor”, como no exemplo seguinte, no qual está implícita a intenção do homem: 2. “Cravo d'amor, minha senhora, Rosa branca, venha abrir.”, BF/50 Leite (1960) 513-514. Este exemplo, de resto, contrasta com o seguinte, no qual a intenção é explícita, ainda que eufemizada pelo termo “dormir”: 1.“- Quem bate à minha porta, quem bate e quem 'stá 'i? 2. - É D. Francisco, menina, que consigo vem dormir.” BF/39 Leite (1958) 408-409 647 Se bem que a propósito da laranja e do limão, diga Luis Chaves da rosa e do cravo: “ Deve notar-se que, assim como na heráldica folclórica da rosa, esta flor se opõe ao cravo, paralelamente à diferenciação de sexo entre as personagens a que se aplica o símbolo da flor (rosa sempre alusiva à mulher, cravo sempre que a poesia amorosa alude ao homem), também a laranja se opõe no mesmo significado ao limão”. Cf. Luís Chaves, “Páginas Folclóricas: Árvores, Flôres & Frutos como o povo as vê, sente e canta”, Revista Lusitana, XXXI, 1933, pp. 276-291. Noutra obra, o autor dedica à rosa várias páginas, ao seu simbolismo e à associação desta flor à mulher e do cravo ao homem, com sentido de oposição e contraste das duas flores. Cf. Luís Chaves [1943], Estudos de Poesia Popular, Porto, Portucalense Editora, 1943. 648 “Rosa” e “cravo”, juntos, referem-se ao par amoroso e, assim, são também a noiva e o noivo, como se comprova nas cantigas que lhes são dirigidas no dia do casamento, como na seguinte, de Penhas Juntas, concelho de Vinhais, em 1983, cantada “pelas raparigas, que pegam os arcos, à porta dos noivos”: “Onde foi, senhora Teresa, onde foi escolher o cravo? Foi ao bairro do Souto, que lá estava bem formado. Onde foi, senhor Manuel, onde foi escolher a rosa? Foi ao bairro da Igreja, que lá estava bem formosa. Donde vens, ó rosa branca, donde vens tão desmaiada? Ainda há pouco eras solteira, já agora estás casada! Oh, que lindo par eu levo aqui à minha direita! Oh, que linda rosa branca, que lindo cheiro deita! Viva lá, senhor Manuel, viva os anos que deseja, Em companhia de uma rosa, que recebeu na Igreja!” Cf. Berta Beça, António José Dias da Costa, “Loas de Casamento do Distrito de Bragança”, Revista Lusitana. Nova Série, 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 109-150. 354 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A rosa, por sua vez, identifica a mulher em contexto amoroso, mas secreto e é um conhecido símbolo do Amor649, sendo ofertada pelo seu apaixonado: 2.“- [São cravos, minha senhora,] e rosas vos trago aqui.”, BF/12 Pedroso (1902) 462-463. Tendo em conta que não é o amante, mas o marido, sabedor do adultério, que as traz650, a oferta de rosas, sendo estas portadoras do simbolismo da regeneração, que “faz com que, desde a Antiguidade, se deponham rosas sobre as campas”651, poderia significar que este dava ainda à mulher a oportunidade de se “regenerar”, se porventura esta se tivesse negado a abrir a porta a outro homem. Ela, porém, logo destrói esta (implícita ou disfarçada) esperança, ao declarar que está disposta a fazê-lo e a alguém a quem basta identificar-se com uma espécie de senha de reconhecimento, o que agrava o delito. No entanto, a cor dar-lhe-á determinados significados652. Por um lado, o branco que em algumas versões faz parte do seu nome (“2. [Cravo roxo, minha senhora,] Rosa Branca, venha aqui”, BF/26 Martins (1928)/Martins (1987) 224-226), sendo a cor que se associa à inocência e à pureza, parece qualificar aquela mulher isenta de pecado, o que, nesta altura do romance ainda é credível para o ouvinte/leitor, que ainda não sabe o que se vai passar. Por outro lado, o branco é também, ainda hoje no Oriente como o foi na Europa, a cor da morte e do luto653. Assim, o sentido da rosa é duplo – ao ser ofertada, e uma vez que a sua função é ser depositada nas campas, torna-se em aviso da morte para a adúltera; o mesmo sentido tem o nome pelo qual é chamada pelo marido em várias versões (“Rosa Branca”). 649 Cf. entrada para “rosa”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 575-576. Nas versões que seguem com A Aparição, será o amante a interpelar a campa da amada, para que se abra, referindo-se ainda às “rosas”: 26.”- Abre-te, ó campa de rosas, que eu nela me quero meter,” BF/104 Ana Martins/Ferré (1988) 73-74. 651 Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 575-576. 652 O significado das diversas variedades e cores da rosa é especificado em Diccionario da linguagem das flores, que esclarece previamente que se modifica a mensagem das flores consoante são apresentadas. Cf. s.a. [1868]. 653 Cf. entrada para “branco”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 128-130. 650 355 A REVELAÇÃO DO SENTIDO b) - Alecrim e manjerona: Em um pequeno número de versões de Bernal Francês, o diálogo inicial atribui às personagens os nomes não de “cravo” ou “rosa”, mas de “Alecrim” e “Manjerona”; são elas: Versão Localidade 1.“Alecrim bateu à porta. Manjerona: - Quem está aí? Rosais (concelho de Velas), 2.É um cravo d' Arrochela, ó Rosa, mandai-lhe abrir! Ilha de S. Jorge 3.- Se ele é D. Pedro de França, descalça lhe vou abrir.” BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208 1.“O Alecrim bate à porta. Mangerona: - Quem está aí? Minho 2.- É Cravo, minha senhora, que chegou agora aqui!” BF/24 Landolt (1917) 81-82 1.“Alecrim bateu à porta. Manjerona: - Quem t'á aí? Ilha de S. Jorge 2. É o cravo rosado, Sinhóra, mandai-lhe abrir. 3.Si ele é o Cravo Rosado, discalça lhe vou abrir.” BF/53 Lemos (1961-1962) 174-175 1.“Alecrim bateu à porta. - Manjarona, quem está ai? Beira, Ilha de S. Jorge 2.É o cravo da Rochelle; senhora, mandai-lh'abrir,” BF/74 Fontes (1983a) 90-91 O inusitado destas ocorrências654 remete-nos para uma possibilidade, note-se que não passível de confirmação, de estes nomes provirem do conhecimento que os 654 Noutras versões, a personagem masculina “Alecrim” é substituída por “Rosmanino” e por “Cravo” mantendo o nome da personagem feminina “Manjerona”. Visto que essas são todas dos Açores (uma de S. Miguel e as outras duas de S. Jorge), tal como três das quatro mencionadas e há apenas substituição de um dos no mes, o que acontece frequentemente no romanceiro, cremos poder incluí-las na mesma possibilidade sugerida para aquelas. - Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel: 1.“Rosmanino bateu à porta. Manjerona: - Quem está aí? 2.Se ele é Bernardo Francês, a porta lhe vou abrir; 3.se é outro em seu lugar, digo que não quero ir.” BF/9 Braga (1887-1889) 105-107 - Urzelina, Ilha de S. Jorge (7 d e A g o s t o d e 1 9 7 7 ) : 1.“O cravo bate à porta. - Manjarona, quem 'ta ai ? 356 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2. S'é o cravo d'Arrujela a porta le vou abrir; 3. s'é outro em seu lugar eu escuso de lá ir.” BF/73 Fontes (1983a) 89-90 - Beira, Ilha de S. Jorge (22 de Julho de 1977): 1.“O cravo da Rochela bateu à porta. - Manjarona, quem está aí? 2. - É o cravo da Rochela. Descalça le fora abrir.” BF/75 Fontes (1983a) 91-92 Em algumas destas versões açorianas de Bernal Francês, junta-se ao “Cravo” que bate à porta um qualificativo cuja origem suscita uma explicação, ainda que seja hipotética, por incomprovável, mas que se presta a ilustrar como os motivos são um dos processos de, no romanceiro, significar para além do seu sentido mais imediato. Trata-se do qualificativo do “Cravo” - “d'Arrujela”, “da Rochelle”, “da Rochela”-, respectivamente nas versões acima (BF/73 e BF/75) e na BF/74 Fontes (1983a) 90-91, todas colhidas na Ilha de S. Jorge, em 1977, conforme indicação de Costa Fontes. Com efeito, existem nos Açores localidades com o nome de Arrochela, de onde, por associação fónica ou por deficiente audição na recolha, poderíam provir os citados qualificativos. Porém, as localidades com aquele nome não se situam em S. Jorge (existem várias também no Continente) mas sim no Faial, uma, e outra na Terceira, existindo ainda o Forte de Arrochela naVila da Praia, Ilha Graciosa, o que torna menos plausível essa origem do “Cravo” nestas versões do romance. Cf. s.a. [1988], Atlas de Portugal, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1988 e Instituto Histórico da Ilha Te rceira, Forte de Arrochela, em http://www.ihit/capitulos.php?id=63, arquivo acedido na Internet em 25 de Maio de 2008. Assim, trata-se de encontrar para estes qualificativos uma justificação que tenha a ver tanto com o local de recolha como com o sentido do romance. Parece -nos que o nome do “Cravo/amante” das citadas versões se aproximará do da localidade francesa de La Rochelle, até porque o próprio nome do romance, Bernal Francês, sugere a proveniência francesa do amante (como no v. 3 “ Se ele é D. Pedro de França, …”, BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208, ou o nome de “Pedro Françoilo”, na BF/73 Fontes (1983a) 89-90, o, ainda, no questionar da mulher sobre se o amante teria deixado alguma dama em frança, como na versão de Ponta Delgada, a BF/9 Braga (18871889) 105-107: v. 12 “ou ele tem dama em França, …”). Este nome de La Rochelle, a que em português corresponde o topónimo “Arrochela”, conforme se verifica na notícia mais abaixo, sobrepor-se-á à origem deste capitão dos Reis Católicos (cf. História Externa) por acontecimentos a ele ligados e que poderão ter deixado alguma recordação nos Açores. Entre eles, embora facto já longínquo, estariam os ataques que assolaram as Ilhas, em especial, no caso presente, os dos protestantes franceses (A cidade de La Rochelle foi um dos locais outorgados ao protestantismo pela Paz de Saint Germain, em 1570, quebrada, em 1572, pelos acontecimentos sangrentos da Noite de S. Bartolomeu. Cf. s.a., Les Guerres de la Religion, em http://histoirerochelaise.free.fr.protestants. htm, arquivo acedido na Internet em 25 de Maio de 2008). Já de 1571 nos chega a seguinte notícia: “Havendo notícia em Portugal que se armava na Arrochela uma grossa armada de Luteranos, ordenou El-Rei que, suposto ainda não chegasse o tempo em que por lei geral obrigava os povos a tomarem armas, se prevenissem e exercitassem para a defesa, obrigando ao donatário da Praia, Antão Martins da Câmara, que viesse para a sua capitania, como se manifesta da carta que lhe escreveu; e sobre o mesmo assunto escreveu ao provedor das fortificações, autorizando-o a cortar e derribar algumas casas e quintais na dita vila, que se haviam de pagar a seus donos de dinheiro da finta mandada estabelecer”. Cf. Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, Tomo I (Terceira Época, Capítulo VIII, Série dos acontecimentos que ocorreram na Terceira entre os anos de 1570 e 1580), em http://pt.wikisource.org/wiki/Anais_da_Ilha_Terceira, arquivo acedido na Internet em 25 de Maio de 2008. Sobre os ataques dos corsários, referimos ainda um deles, perpetrado por um francês, René Duguay-Trouin, que se envolveu na Guerra da Sucessão espanhola, foi Cavaleiro de S. Luis e chegou a almirante da Armada Real francesa. Sob o seu comando, no dia 20 de Setembro de 1708, uma esquadra naval, constituída por oito naus de linha e três navios corsários, todos de grossa artilharia, atacou a Vila das Velas, na ilha de São Jorge, tendo à segunda tentativa “lançado em terra mais de 500 homens que saquearam as igrejas e casas da referida vila”. Cf. s.a., informação sobre o autor René Duguay-Trouin, Mémoires de Monsieur du Guay-Trouin, 1788, disponível na Internet em http://www.liberrarus.com.br/documents/me9moires_de_monsieur_du_guay_trouin_1.html, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. Ainda como achega à possibilidade de o qualificativo desse “Cravo da Rochela” nas versões de Bernal Francês de que nos ocupamos ter algo a ver com a localidade de La 357 A REVELAÇÃO DO SENTIDO informantes pudessem ter do texto de Guerras do Alecrim e Mangerona, de António José da Silva. Esta obra do Judeu, de facto, não tem qualquer relação com o romance, excepto na situação em que os dois fidalgotes vão embuçados a casa de D. Lanzarote, na tentativa de conquistar as sobrinhas deste, D. Clóris do partido do Alecrim e D. Nise do partido da Manjerona, daí resultando uma confusão de identidades. Há também uma personagem, Fagundes, que tem um marido no Brasil há quarenta e sete anos. Do hipotético conhecimento do texto (directa ou indirectamente) e fosse ele por via escrita ou representada 655 , poderia ter resultado uma transposição dos nomes das suas Rochelle, referimos ainda a existência, na Ilha Terceira, da capela erigida de Nossa Senhora das Vitórias, invocação que celebra a derrota dos huguenotes no cerco daquela cidade francesa por Luís XIII. A capela, onde se pode ver a flor-de-lis, símbolo da realeza francesa, data de 1700 e está anexa a Villa Maria, propriedade da família Noronha, profundamente ligada à Ilha de S. Jorge, de onde provêm as versões em causa. Cf. s.a., Capela de Nossa Senhora das Vitórias, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Capela_de_Nossa_Senhora_das_Vit/Ce%B3rias, arquivo acedido na Internet em 25 de Maio de 2008. Em Vila Franca do Campo, ilha de S. Miguel, existiu uma capela dedicada a Nossa Senhora da Vitória. Segundo a lenda (com o número de classificação APL 1287, do CEAO), as duas lindas filhas do Governador de Angra encontravam-se a ser educadas pelas freiras naquela vila, quando uma delas sonhou que iriam ser capturadas por corsários, tendo Soror Boaventura profeciado que Nossa Senhora as salvaria e à vila; antes de fugirem, foram vistas por dois argelinos espiões dos corsários, que por elas se apaixonaram. Logrados pela fuga das jovens para a Terceira, juntaram-se ao feroz ataque dos companheiros que atacavam a vila, tendo a intercessão de Nossa Senhora ajudado os vilafranquenses a rechaçar os corsários, que gritavam “vitória”, pelo que foi erigida a capela com essa invocação. Cf. Ângela Furtado-Brum, Açores: Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999, A Ermida de Nossa Senhora da Vitória, no Centro de Estudos Ataíde Oliveira, disponível na Internet em http://www.lendarium.org/narrative/a-ermida-de-nossa-senhora-da-vitoria/, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. 655 António José da Silva fez representar As guerras do Alecrim e Manjerona em 1737, no Teatro do Bairro Alto, dois anos antes de ser supliciado pela Inquisição. Após a sua morte, as suas obras - D. Quixote (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738) – seriam reunidas por Francisco Luís Almeno em dois volumes intitulados Teatro Cómico Português (Theatro comico portuguez, ou collecção das operas portuguezas, que se representarao na casa do Theatro publico do Bairro Alto de Lisboa …., por Almeno, Francisco Luís, 1713-1793) de que existe cópia digital em JPEG L.85752 P, em http://purl.pt/12184>, <http://opac.porbase.org, arquivo acedido na Internet em 23 de Abril de 2008. Foi grande o sucesso do Teatro Cómico Português, com cinco reedições até ao final do século. O Judeu terá, ainda, escrito as suas peças para marionetas, género de representações de ampla divulgação e gosto popular, como nota João Paulo Seara Cardoso: ” Não deixa de ser extraordinário que o Judeu tenha escrito as suas óperas para marionetas. Como se teria apaixonado por elas, como terá entendido que seriam os melhores protagonistas para o seu teatro, como terá adquirido os conhecimentos técnicos que lhe permitiriam realizar os espectáculos? Já se viu que o Judeu era um espectador atento e assíduo do teatro que passava em Lisboa, tanto mais que vivia no coração da movida teatral lisboeta.” Cf. João Paulo Seara Cardoso [s.d.], Há na gloria padecer. Reflexões sobre a vida e obra de António José da Silva, o Judeu, em www.marionetasdoporto.pt/Paginas/jpsc-esc_05.html, arquivo acedido na Internet em 20 de Maio de 2008. As guerras do Alecrim e Manjerona circularam também na Literatura de Cordel e do Catálogo de Folhetos de Teatro de Cordel da Biblioteca do Instituto de Estudos Teatrais Dr. Jorge de Faria da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra constam os seguintes: 358 A REVELAÇÃO DO SENTIDO personagens para os do romance. A apoiar a hipótese, referimos uma versão, recolhida pelo Abade de Baçal no concelho de Bragança, na qual a personagem masculina se chama “Crovis”, o que nos parece uma analogia fónica com o nome “Clóris” da ópera do Judeu, embora esta seja uma personagem feminina, circunstância que, como se sabe, não embaraça os produtransmissores do romanceiro. 1. “- Oh quem bate à minha porta, oh quem bate ao meu postigo?! 2. Se é Bernardo Francês, a porta l'eu vou abrir; 3. S'é outro cavaleiro, já se pode despedir. 4. - Sou Crovis, minha senhora, rosas 1'eu trago aqui.” BF/38 Leite (1958) 408 Note-se que esta versão transmontana não menciona “alecrim” nem “manjerona”, pelo que a semelhança dos nomes fica também, necessariamente, no campo das hipóteses. Por outro lado, Leite de Vasconcellos regista em Tolosa, no concelho de Nisa, distrito de Portalegre, uma quadra cujos primeiros dois versos não só incluem Nr. 931 – Guerras do alecrim e mangerona [SILVA, António José da] Guerras do alecrim e manjerona: obra jocoseria que se há de fazer na Casa do Bairro Alto neste Caneval [sic] de 1737 – Lisboa: Officina de António Isidoro da Fonseca, 1737. – [16], 143 p; 15 cm. JF [2-7-126]. Nr. 932 – Guerras do alecrim e mangerona [SILVA, António José da] Guerras do alecrim e manjerona: obra jocoseria que se representou no Theatro do Bairro Alto de Lisboa, no Caneval [sic] de 1737 – Lisboa: Offic. De Simão Thaddeo Ferreira, 1788 – p. 157-268; 16 cm. – (Theatro cómico portuguez ou Collecção das operas portuguezas; 2). JF (3-1-53). Cf. José Oliveira Barata, Maria da Graça Perição [2006], Catálogo da Literatura de Cordel. Colecção Jorge de Faria, Lisboa, INCM, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. O longo tempo que medeia entre estas produções e as versões de Bernal Francês aqui em causa tornam, de facto, muito duvidosa uma sua correspondência directa, tanto mais que não há informações sobre a fonte de onde os informantes teriam aprendido as respectivas lições. Sabendo-se que os romances tradicionais são transmitidos oralmente, que “viajam” no espaço e no tempo e que, no processo, podem sofrer variações por contaminação, até de outras composições, torna-se mais plausível que em qualquer altura (não havendo registo escrito de versões contemporâneas das representações de As guerras do Alecrim e Manjerona ou dos mencionados folhetos de cordel) tenha havido um contacto com a peça, quer por via escrita (eventualmente dos folhetos) quer por assistência a uma qualquer representação, sabendose também que pequenas companhias de teatro itinerante percorriam o País, com actores ou fantoches. Neste caso estão os Robertos, com um reportório mais específico, mas também outros teatros de fantoches, cujos “bonecos” poderiam ter “herdado”, de algum desconhecido modo, os nomes de “Alecrim” e “Manjerona”, ouvidos e transplantados para as personagens destas versões de Bernal Francês. Almeida Pavão refere, precisamente, que o percurso do teatro popular (referindo-se ao micaelense) passa, entre outras vias, pela literatura de cordel, sua oralização e retoma da forma escrita. Cf. J. Almeida Pavão [1985], Teatro Popular Micaelense. Aspectos Genéticos e Estruturais, Ponta Delgada, Instituto Cultural Ponta Delgada, 1985. 359 A REVELAÇÃO DO SENTIDO estes nomes como se assemelham à abertura das versões citadas 656, mas que apenas permitem comprovar que géneros diferentes partilham motivos: “Manjerona, bate à porta, // Alecrim, vai ver quem é, // Se é cravo, se é rosa,// Se é o meu amor José.” 657 2) Motivo tópico: O jardim. - Micro-relato: Uma mulher introduz o amante no jardim da sua casa. - Função no romance: Estabelecer o ambiente amoroso/erótico do encontro. O jardim é paradigma do locus amoenus, lugar de encanto e maravilha 658 que corresponde, em quase todas as culturas, ao local paradisíaco, com diversas conotações659, que vão da inocência660 ao erotismo661 e entre as quais se encontra, para o homem, a designação da parte sexual do corpo feminino. É assim que, no Cântico dos Cânticos, ao ser comparada com um jardim fechado de inúmeras delícias, a Esposa diz: “Entre o meu amado no seu jardim, e coma dos seus deliciosos frutos”662. Este simbolismo 656 De notar que uma quadra idêntica (“Mangerona bate á porta, // Alecrim vae ver quem é, // Se é o cravo, se é a rosa, // Se é o meu amor José”) foi colhida nos arredores de Coimbra e registada por Neves e Mello [1872], Musicas e canções populares, colligidas da tradição por Adelino Antonio das Neves e Mello, Lisboa, Imprensa Nacional, 1872, na p. 84. A esta quadra refere-se Teófilo Braga, associando-a ao começo do “romance Bernal francez na versão insulana”, na p. 431 de Teófilo Braga [1987], História da Poesia Popular Portuguesa. Ciclos Épicos, Lisboa, Vega, 1987. 657 Vasconcellos [1975], p. 597. 658 Os perdidos jardins suspensos da Babilónia foram uma das sete maravilhas da Antiguidade. 659 Cf. a entrada para “jardim”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 382-384. 660 No jardim do Éden, criado por Deus, foram colocados Adão e Eva, em estado de “inocência” até comerem o fruto da árvore proibida: “Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha”, Gn 2:25. O jardim pode ser considerado um lugar onde as relações amorosas socialmente consideradas ilícitas se revestem de uma aura de inocência primordial. Recordamos, como paradigmático, o Paradou, em La Faute de l’A é Mouret, de Emile Zola, onde Serge e Albine, despojados do sentido do pecado, se amam até que o jovem abade recupera a memória e abandona a jovem, que aí morrerá soterrada sob um monte de flores perfumadas. Cf. Emile Zola [1972], O Crime do Abade Mouret, Editorial Minerva, 1972. 661 O clássico árabe do erotismo atribuído ao xeque Umar Ibn Mohammed al-Nefzaui, denomina-se, precisamente, O Jardim Perfumado para o Entretenimento das Almas. Cf. Xeque Nefzavi [1976], O Jardim Perfumado, Lisboa, Europa-América, 1976. 662 Cf. Cântico IV do Cântico dos Cânticos. Cf. Bíblia Sagrada, Versão portuguesa preparada a partir dos textos originais pelos Revºs Padres Capuchinhos, Lisboa, 1976, pp. 757-767. Ver, igualmente, José Tolentino Mendonça [2008], tradução do hebraico, introdução e notas de, Cântico dos Cânticos, Lisboa, Biblioteca Editores Independentes, 2008. 360 A REVELAÇÃO DO SENTIDO torna óbvia a intenção da protagonista de Bernal Francês que, antes de levar o homem que lhe bate à porta para dentro de sua casa, o faz parar no jardim: 10.“E lo levei pola mão, à volta do meu jardim, 11. por entre cravos e rosas, fui deitá-lo par de mim” BF/5 Azevedo (1880) 141-145 O episódio da paragem dos “amantes” no jardim ocorre quase sempre nas versões, embora possa ser expresso de forma sumária ou alongada, como, respectivamente, nos exemplos seguintes: 7.“peguei nele nos meus braços levei-o para o jardim, 8. fiz-lhe uma cama de rosas, deitei-o ao pé de mim,” BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 46-49 6.“Peguei no amor pelo braço, levei-o para o jardim, 7. lavei-lhe os pés e as mãos com água do Alecrim. 8. Limpei-o a uma toalha de renda e fino amorim. 9. achei a água ditosa, lavei-me também a mim. 10. fiz-lhe uma cama de rosas e deitei-o ao pé de mim.” BF/24 Landolt (1917) 81- 82 Nas poucas versões que o dispensam, a mulher levará imediatamente aquele que julga ser o seu amante para o leito, logo após lhe abrir a porta: 4.“Se tu era lo João de França a porta te eu vou abrir. 5. Chegou ‘ó meio da escada apagou-se-lh' o candil; 6. puxou-le por uma mão, ajudou-o a subir 7. levou-o p’r’à sua cela, deitou-o ‘ó par de si,” BF/25 Martins (1928)/Martins (1987) 197-198 Em qualquer dos casos, o motivo mantém o mesmo sentido663 e a mesma função, a de deixar subentender a quase impossibilidade que essa mulher encontra em deitar-se 663 Ao motivo “jardim” em Veneno de Moriana, referir-nos-emos adiante, mas com o sentido de local de amores, ocorre em Delgadinha, cuja protagonista, por vezes, aí se encontra quando o pai a assedia: “'1.Stando D. Delgadinha no seu jardim assentada, 361 A REVELAÇÃO DO SENTIDO com o amante sem que primeiro o leve a dar a volta ao jardim, o que, por sua vez, deixa implícito que os sentimentos que por ele nutre, se bem que constituam uma infracção, ultrapassam o simples amor físico. 3) Motivo Tópico: A água. - Micro-relato: Uma mulher lava o amante, antes de se deitar com ele. - Função no romance: Anular a culpa. O motivo “água”, com que a mulher lava o “amante” (e por vezes a si própria) antes de com ele se deitar, se tomado em sentido literal, apresentaria uma feição pragmática – o homem lava-se, porque vem empoeirado da viagem, como na versão abaixo: 4.“Da poeira do caminho, lavou-se no meu jardim, 5. dei-lhe camisa lavada e deitei-lo par de mim.” BF/6 Azevedo (1880) 145-150 Raras vezes, contudo, a cena é um mero preceito higiénico, antes prevalecendo o aspecto simbólico da água. Esta é fonte de vida, meio de purificação e de regeneração; segundo o Dicionário dos Símbolos “As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência”664. O sentido da purificação pela água está também presente na Bíblia: “Derramarei sobre vós 2.Com pente d'oiro na mão Oh! Tão linda! Seu cabelo penteava. 3. Apareceu seu pai-rei, Oh! Tão linda! Por amores a tratava.” D/56 Leite (1960) 77-80 Também no jardim, mas com o sentido de espaço familiar, em algumas versões, estão as irmãs, a mãe ou o pai de Delgadinha, contrastando a amenidade do local com o espaço de encerramento onde aquela se encontra: “10.Subiu à mais alta janela a ver quem ali estava; 11.estava sua irmã mais nova, no seu jardim assentada.” D/21 Joaquim Lima/ Pires Lima (1943) 25-26 664 Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 41-46. Sobre “As Águas e o Simbolismo Aquático”, sintetiza Mircea Eliade o seguinte: “Qualquer que seja o conjunto religioso de que façam parte as águas, a função delas é sempre a mesma: elas desintegram, extinguem as formas, ‘lavam os pecados’, purificando e regenerando ao mesmo tempo.” Cf. Mircea Eliade [2004], Tratado de História das Religiões, Porto, Asa Editores, 2004 (Capítulo IV, pp. 243-275). 362 A REVELAÇÃO DO SENTIDO uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados”, Ez 36:25. Deste modo, o motivo da lavagem no romance adquire o sentido de um rito que é cumprido, pois com estas abluções, a mulher parece, implicitamente, isentar o amante do pecado e da culpa; este sentido, e o de querer tomar para si a responsabilidade do sucedido, torna-se mais evidente nas versões em que o marido declara que não pretende matá-la, mas sim devolvê-la ao pai (“17. - Que culpas tem-no meu pai ao mal que a filha causou?”, BF/48 Leite (1960) 511). À água da lavagem juntam-se flores ou plantas aromáticas665, pelo que o motivo se alarga para “lavar com água perfumada”. A planta mais utilizada para o fazer é o alecrim, que é uma planta um tanto selvagem666, o que lhe confere conotações com uma certa liberdade destituída de peias sociais667, sentido que se adapta bem ao de Bernal Francês, não no que diz respeito ao moralismo implícito no desfecho, mas ao da infracção que constitui a sua razão de ser. De facto, o alecrim é oloroso e estimulante668, 665 “O uso de plantas aromáticas (inteiras ou suas partes como folhas, cascas, sementes e seus produtos extrativos como as resinas), é tão antigo quanto a história da humanidade, sendo empregadas na medicina, na cosmética e em cerimônias religiosas. […] Não eram utilizados os óleos essenciais propriamente ditos e sim soluções aquosas e alcoólicas.” Cf. Vanderlí F. Marchiori [2004], Monografia de Rosmarinus officinalis, Fitomedicina Herbarium – julho / 2004, Fundação Herbarium, Associação Argentina de Fitomedicina, disponível na Internet em http://www.plantasmedicinales.org/archivos/rosmarinus_officinalis_romero___monografia.pdf, arquivo acedido em 23 de Junho de 2011. 666 Como diz o bem conhecido Alecrim aos molhos do Cancioneiro, o alecrim “nasce nos montes sem ser semeado”. Cf. Vasconcellos [1975], p. 121. O alecrim (Rosmarinus officinalis L.) é um arbusto comum na região do Mediterrâneo, cujas numerosas propriedades e aplicações podem ser consultadas em s.a., Rosmarinus officinalis L. (alecrim), disponível na Internet em http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/Rosmarinus_officinalis.htm, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. 667 Na “linguagem das flores”, enviar uma haste de alecrim significa “Quero falar-te”. Cf. s.a. [1868], Diccionario da linguagem das flores, Lisboa, Typ. Lusitana, 1868, disponível Internet em http://purl.pt/13929, arquivo acedido em 23 de Junho de 2011. 668 “O alecrim é usado há séculos como tônico dos nervos, em casos de debilidade, exaustão nervosa e membros temporariamente paralisados. Age em pessoas hipersensíveis. É usado para ajudar a aliviar a depressão e a melancolia, devido ao seu efeito estimulante. É um relaxante mental. [….] É revigorante, agindo como excelente tônico da energia “yang” do corpo, capaz de promover a circulação sangüínea, estimular o fluxo do sangue arterial do coração, regular palpitações, pressão arterial baixa, mãos e pés frios”. Cf. Marchiori [2004]. Muitas outras utilizações poderiam ser referidas para o alecrim, várias vezes mencionado em Ana Gomes de Almeida, Ana Paula Guimarães, Miguel Magalhães [2009], coords., Artes de Cura e Espanta-Males. Espólio de medicina popular recolhida por Michel Giacometti, Lisboa, Gradiva, 2009 e também as que lhe são atribuídas pelo ervanário José Salgueiro [2010], Ervas, Usos e Saberes. Plantas Medicinais no Alentejo e outros Produtos Naturais, Lisboa, Colibri, 2010, pp. 55-57. Destacamos um certo receituário médico, que o utilizava para a enfermidade “dores de cabeça”, para a 363 A REVELAÇÃO DO SENTIDO e a unção com perfumes, em muitos contextos, é associada aos actos de amor 669 ; a sequência que integra o motivo e que descreve os cuidados prestados ao amante, fá-lo, na maioria das vezes, de uma forma que, sendo lírica, não é isenta de sensualidade, parecendo uma preparação do amor carnal que se seguirá, como é notório nos exemplos seguintes, mesmo no quase laconismo do segundo: 6.“Lhe lavara pés e mãos, com bela água de alecrim; 7. uma gota que ficara, lavara também a si. 8. Vestira-lhe uma camisa, como quem vestira a si, 9. fizera cama de rosas, o deitara a par de si.” BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208 6. “lavou-o de mãos e pés em águas d’alecrim, 7. Fez-lhe uma cama de rosas, deitou-o em par de si.” BF/7 Dâmaso (1882) 155-156 No entanto, o alecrim, tal como a água, é um purificador670, o que vem reforçar o sentido de “anular a culpa”; como, em certas versões, também ela se lava, inclui-se a si própria neste ritual de purificação, mesmo que, como no segundo dos exemplos que seguem, tal fique apenas sugerido: 5.“Levei-o p'r'à minha sala, da sala para o jardim; 6. lá lhe lavei pés e mãos, com água de alecrim. qual se prescrevia “um saquinho, coifa ou barrete para trazer continuamente na cabeça em que entrem alecrim, rosmaninho, rosas vermelhas, sementes de coentro, nós moscada, cravinhos da índia metidos num pano de seda vermelha” completando-se o tratamento com defumadouros, sinapismos e banhos. O receituário é de Portugal Médico, de 1726, da autoria de Brás Luís de Abreu, o médico judeu perseguido da Inquisição e cuja atribulada biografia inspirou O Olho de Vidro a Camilo Castelo Branco. Cf. Maria Antonieta Garcia [2006], “O drama de Brás Luís de Abreu – o médico, as malhas da Inquisição e a obra”, em Medicina na Beira Interior da Pré-História ao Século XXI, Nr. 20, Castelo Branco, Cadernos de Cultura, 2006, pp. 5-23. 669 No salmo 45, cântico de núpcias, louva-se o rei com as palavras “Mirra, aloés e cássia perfumam os teus vestidos”. Cf. Bíblia Sagrada, v. 9, SI 45. 670 O alecrim é uma das plantas utilizadas en rituais de purificação, e lembremos o seu uso nas fogueiras de S. João, mas também em templos e igrejas. Além do uso religioso, o alecrim é utilizado nas práticas de Benzer contra as “Pragas Rogadas” e contra o “Mal de Inveja”, acompanhado de ensalmo, conforme é descrito por Aurélio Lopes e cujo processo completo, por longo, nos dispensamos de transcrever, apenas mencionando que integra “quatro pequenos ramos compostos de alecrim, arruda e tasneirinha”. Cf. Aurélio Lopes [1998], “As práticas Mágico Curativas”, em Medicinas Alternativas do Ribatejo. Comunicações apresentadas ao I Congresso/1994, Alpiarça, Garrido Artes Gráficas, 1998, pp. 25-51. 364 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 7. Conforme o lavei a ele também me lavei a mim; 8. levei-o p'r' à minha sala, deitei-o ao pé de mim.” BF/21 Gomes Pereira (1911) 131-132 3.“Se é outro cavaleiro, lá fora não posso ir. 4. que estou lavar os pés com aguinha de alecrim.” BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 40-42 Certo é que ela sabe que é culpada, pelo que o motivo é ambíguo; se, lavando-se, poderá desejar “purificar-se” antecipadamente do pecado que vai cometer, por outro lado, unge o amante, querendo talvez honrá-lo, em contraste com o conhecido episódio bíblico da “pecadora” e Jesus671, embora, ao contrário desta, sem se arrepender – na verdade, ao ser confrontada com a identidade do marido, quer peça a morte quer peça perdão ou o tente enganar, nunca exprime, explicitamente, arrependimento. 4) Motivo tópico: Cama de rosas - Micro-relato: Uma mulher faz a cama com rosas (e outras plantas) para se deitar com o amante. - Função no romance: agravar o sentido da infracção conjugal. O motivo da “rosa”, já presente no início de certas versões, como atrás se disse, reaparece no decorrer na intriga, mas agora num sentido menos platónico, uma vez que a flor servirá para fazer a cama onde a protagonista se deita com o pretenso amante. 7. “peguei nele nos meus braços levei-o para o jardim, 8. fiz-lhe uma cama de rosas, deitei-o ao pé de mim,” BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 46-49 671 A unção com perfumes serviu à “pecadora” para, sem palavras, demonstrar a Jesus o seu arrependimento, como conta S. Lucas: “37. Ora uma mulher, conhecida como pecadora naquela cidade, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com perfume; 38. colocando-se por detrás d’Ele e chorando, começou a banhar-Lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume”. Lc 8; 37-50. Jesus perdoa-lhe os pecados, dizendo ao fariseu, que se mostrara desagradado com a cena, que ele, em sua casa, nem a cabeça lhe ungira com óleo, enquanto ela, a pecadora, o honrara, ungindo-lhe os pés com perfume. Lc 8; 37-50. 365 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A rosa é, como se disse, um símbolo do amor e juntar-se-á ao alecrim, com o qual, aliás, também se faz a cama; ao ritual da purificação junta-se o ritual amoroso, ligado ou não ao acto de lavar, como é observável, respectivamente, no primeiro e no segundo dos casos seguintes: 8.“Ela lhe pegou pela mão, o levou ao seu jardim; 9. lavou-o com água de rosas e depois com alecrim; 10. e levou-o p’r’à sua cama e deitou-o ao pé de si.” BF/20 Dias (1911) 49-51 7. “Pegou-lhe pela mão, levou-o ao seu jardim, 8. cama de rosas lhe fez misturada de alecrim” BF/110 Falcão/Ferré/Morna (1988) 222 Em algumas versões, há ainda a presença de outras plantas, como é o caso do jasmim672: 8.“fiz-lhe uma cama de rosas, rodeada de jasmins; 9. lavei-o em água de flores e deitei-o a par de mim.” BF/1 Garrett (1828) XXVI-XXXII 7.“lavei-lhe os pés e as mãos com aguinha de alecrim. 8. e também lhe lavei o rosto com aguinha de jasmim,” BF/13 Pedroso (1902) 463-464) A junção do jasmim à água das abluções ou à feitura da cama irá fazer desvanecer o sentido da purificação para fazer prevalecer o sentido amoroso, uma vez que a planta está ligada a este, sendo usado em feitiços de amor673. 672 O jasmim é o nome comum pelo qual são conhecidas as espécies do gênero Jasminum, da família Oleaceae. O seu óleo é o usado em perfumaria e considerado por alguns como afrodisíaco. Cf. s.a., Jasmim, disponível na Internet em http://www.plantasmedicinaisefitoterapia.com/plantas-medicinaisjasmim.html, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. 673 Cf. , por exemplo, o que é afirmado em s.a., Jasmin (Jasminum officinale ou Jasminum odoratissimum), disponível na Internet em http://www.astrologosastrologia.com.pt/wicca=temas2/a&ewicca=46=poder_e_magia_das_plantas.htm, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. 366 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Motivo: A oferta de adornos. - Micro-relato: Um marido anuncia à mulher infiel a oferta de adornos de cor vermelha. - Função no romance: Anúncio de que vai ocorrer uma morte. O marido enganado, nos romances orais tradicionais, poucas vezes é complacente ou escarnecido, antes vinga a sua honra674. Se bem que, em algumas versões, se limite a entregar a mulher ao pai ou a remeter a punição para Deus 675, o destino da mulher adúltera, em Bernal Francês, é a morte. Na verdade, o marido não a mata imediatamente, mas adia o momento para a madrugada. Tão-pouco a morte é explicitamente referida, mas anunciada pelo motivo da “oferta”676, que consta de certos adornos (“gargantilha colorada” ou, mais explicitamente, “gargantilha de cutelo”) e roupas de cor vermelha, que não são senão metáforas da degolação e das manchas de sangue provenientes dessa morte violenta: 19.“Deixa vir a manhãzinha que eu te darei que vestir, 20. darei-te saia de lã, roupinha de carmezi, 21. gargantilha encarnada, porque a quiseste assi.” BF/11 Pires (1899)/Pires (1982) 183 Raras vezes acontece a substituição deste sentido implícito por uma declaração explícita, embora esta se possa pode dar, como na versão seguinte: 22.“Manhã que era chegada, ele que a degolava”, BF/7 Dâmaso (1882) 155-156, v. 22 O sentido implícito do motivo é amplamente reconhecido, como já se referiu, mesmo pela protagonista, se bem que a mulher possa começar por não o entender ou 674 A problemática da honra conjugal lavada com sangue foi abordada na Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances. 675 Esta atitude é mais frequente em outros romances de adultério, como em Claralinda, pelo que as versões de Bernal Francês que apresentam esta solução/desfecho tê-la-ão tomado do outro romance, como importação semântica tendente a suavizar um final sangrento. 676 Em Veneno de Moriana, o motivo da “oferta” consta de vinho que, sendo envenenado, é também uma oferta de morte. 367 A REVELAÇÃO DO SENTIDO fazer-se desentendida 677 , apresentando algumas versões a seguinte continuidade narrativa: o marido revela-se, anuncia o dito vestuário, ela diz que não o quer e, logo a seguir, pede a morte, o que indicia não ter compreendido o sentido metafórico da oferta. Na BF/38 Leite (1958) 408, por exemplo, ao marido que diz “Mandarei-te saia de Holanda, roupinha de carmesim” (v.11), responde ela que “Nem te quero saia de Holanda, nem roupinha de carmesim” (v.12), como se julgasse ir literalmente receber esses objectos e, assim, continua: “Quero que me dês a morte qu’eu assi ta mereci” (v.13). O sentido do motivo ultrapassa ainda o do acto passional de matar imediatamente a mulher678, pois as circunstâncias apontadas (cor do vestuário e adornos, hora e tipo de morte) parecem indiciar que se tratará de uma execução de alguém de condição social elevada, levada a cabo por outrem com autoridade para o fazer679. 3.2. VENENO DE MORIANA Motivo: O cavaleiro/O cavalo. - Micro-relato: Um homem a cavalo aproxima-se de uma mulher. - Função no romance: Referenciar estatutos e preconizar o desenlace. O romance Veneno de Moriana, no tipo B, inicia-se com a expressão “Apeia-te, ó cavaleiro” e no tipo A, iniciado com o diálogo mãe/filha, ocorre o verso “- Minha mãe, lá vem D. Jorge no seu cavalo montado”, como em VM/7 Martins (1928)/Martins (1987) 251-252 ou similar; em qualquer dos casos, é claro que o homem que se aproxima é um cavaleiro, mas parte do motivo “o cavaleiro” é, naturalmente, um dos seus atributos - o 677 Lembramos que, em outras versões, a tentativa da mulher de ludibriar o marido passa por dizer-lhe que teve um sonho ou/e perguntar-lhe que prenda lhe traz, sendo então tal vestuário anunciado como essa prenda. 678 Noutro romance de adultério, Frei João, a mulher é morta no momento mesmo em que é descoberta, apunhalada no coração. 679 Sobre o estatuto das personagens, abordaram-se já outras indicações, na Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances. 368 A REVELAÇÃO DO SENTIDO cavalo (também ele um motivo). Assim, na sua aparente simplicidade, ambos condensam várias narrativas e revelam vários sentidos. A sua função mais prosaica é a denotativa, enunciada do ponto de vista da personagem – anuncia-se, na narrativa, que alguém se aproxima de um “eu/aqui/agora”, usando, para isso, um meio de transporte, com o fenómeno da variação a permitir várias categorias de montada, quase sempre o cavalo 680 mas também o mais humilde burrinho681: 1. “- Deus nos salve, Dom António, no seu burrinho montado.” VM/ 240 Xarabanda (1995) 24 Estas variações dependerão sobretudo de factores sócio-económicos, que não afectam o sentido que faz corresponder “homem em transporte” a “cavaleiro”, mas vejase o que diz o Livro da Ordem da Cavalaria: “[C]avalo é dado ao cavaleiro por significado de nobreza de coragem e para que seja mais alto montado a cavalo que outro homem, e que seja visto de longe, e que mais coisas tenha debaixo de si, e que antes seja em tudo o que se convém à honra de cavalaria que outro homem” 682 . Se estar montado a cavalo é estar numa posição que permite ser visto, ao ser mais elevada fisicamente, também o é no plano hierárquico; nas designações “cavaleiro” ou “D. Jorge” reconhece-se um estatuto social elevado, denotando, a primeira, uma 680 Mais adiante no romance, bebido o vinho, o cavaleiro queixar-se-á de já não ver o seu “russinho” ou “rucinho” (conforme transcrição das versões). Carvalho Rodrigues, na VM/199 Carvalho Rodrigues (1990) 218-219 transcreve na primeira opção (“Estava coa rédea na mão, já não vejo o meu Russinho”), anotando: “Russinho deve entender-se como deturpação do termo castelhano «rocino»,[…..] uma vez que há semelhança entre a estrofe castelhana e a nossa.”. Julgamos, no entanto, que poderá tratar-se do diminutivo de “ruço”, cor esbranquiçada da pelagem de certos cavalos. Ver Elwyn Hartley Edwards [2006], Grande Livro do Cavalo, Londres-Porto, Dorling Kinderley-Civilização Editores, 2006. 681 Também Whitaker Penteado transcreve parte de uma versão de Goiás, recolhida por Regina Lacerda, na qual “D. Jorge” monta um burrinho, e outra, pernambucana, de Sílvio Romero, na qual um mais brasileiro “D. Joca” vai a cavalo, bem como uma quadra, sem identificação, que menciona um “rucinho” como montada. Cf. J. R. Whitaker Penteado [1980], O Folclore do Vinho, Lisboa-Porto, Centro do Livro Brasileiro, 1980. 682 Cf. Ricardo da Costa [2005], tradução de, Raimundo Lúlio, O Livro da Ordem de Cavalaria (12791283), disponível na Internet em www.ricardocosta.com/textos/livrocav.htm, arquivo acedido em 15 de Outubro de 2005. 369 A REVELAÇÃO DO SENTIDO possível pertença desse homem à ordem da Cavalaria, cujos membros são obrigados a um comportamento sem mácula. Cumulativamente, o motivo adquire ainda nova dimensão, conforme é enunciado de uma ou outra maneira, ou seja, se “Lá vem [D. Jorge] montado” ou se “Apeia-te, ó cavaleiro”. No primeiro caso, há uma implicação lógica de que um homem que vem montado se vê ao longe, uma vez que o marcador espacial “lá” indica uma certa distância, o que sugere que D. Jorge demorará a aproximar-se, pelo que Moriana tem tempo de se decidir a matá-lo (e até a preparar o veneno), caso se confirme a notícia do casamento com outra. No segundo, percebe-se que o cavaleiro já está junto de Moriana, uma vez que esta fala com ele, fazendo-lhe o convite, quase uma intimação, para se apear e merendar; visto que a “merenda” consta de vinho envenenado e que este lhe é dado imediatamente, infere-se que houve premeditação (matá-lo-á, sem esperar a confirmação do casamento). Note-se que, no universo das versões portuguesas de Veneno de Moriana, o cavaleiro/cavalheiro, no Tipo B, equivale, no Tipo A, ao protagonista geralmente designado por “D. Jorge”, “senhor Jorge” ou “Jorge” 683 , enquanto nas versões espanholas se chama, quase sempre, “D. Alonso”684. Na recorrência do nome “Jorge” nas versões portuguesas, encontramos uma aproximação à figura de S. Jorge, que é, também, um cavaleiro685. Esta hipótese de ligação de sentido do nome deste santo ao do 683 Há outras ocorrências que englobam este nome: “Jorge da Teixeira” (também “Jorge”, dentro das mesmas versões) e “João Jorge”. Também na grande maioria das versões brasileiras que pudemos consultar, o nome do protagonista é “Jorge”. Cf. por exemplo, de entre outros na Bibliografia, Doralice Fernandes Xavier Alcoforado, Maria del Rosário Suárez Albán [1996], Romanceiro Ibérico na Bahia, Salvador – Bahia, Livraria Universitária, 1996, pp. 152-172. 684 Cf. por exemplo, as versões de Veneno de Moriana disponíveis em Pan-Hispanic Ballad (A Database of Ancient and Modern Oral Versions of Ballads). 685 Enquanto cavaleiro, uma das mais referidas proezas de S. Jorge é a morte do dragão: “A versão mais conhecida da Lenda de São Jorge e do Dragão faz parte da Legenda Aurea, segundo a qual um monstruoso dragão aterrorizava a cidade líbia de Selena com o seu hálito pestilento que espalhava a peste. Os habitantes da cidade decidiram então entregar-lhe duas ovelhas por dia para lhe saciarem a fome, impedindo-o assim de fazer mais estragos na cidade. Quando as ovelhas acabaram tiveram de escolher uma vítima humana, calhando a sorte à jovem filha do rei, que em vão ofereceu toda a sua riqueza para evitar a escolha. A jovem, vestida de noiva, foi mandada ao dragão e durante o caminho encontrou São Jorge no seu cavalo que sabendo do seu destino a acompanhou e enfrentou o dragão, trespassando-o com a sua lança, depois de fazer o sinal da cruz. Pedindo a liga da princesa, enrolou-a à volta do pescoço do 370 A REVELAÇÃO DO SENTIDO cavaleiro do romance, poderia residir no facto de a sua imagem ser bem conhecida, por se integrar nas procissões do Corpo de Deus686 em Portugal687, que, como se sabe, eram dragão o que permitiu que a princesa o levasse pela mão, dócil como um cordeiro. De volta à cidade, São Jorge converteu e baptizou os habitantes e, quando o rei lhe ofereceu metade do seu reino, São Jorge recusou mas pediu-lhe que cuidasse da igreja de Cristo, respeitasse o clero e ajudasse os pobres”. Cf. s.a., São Jorge, disponível na Internet em www.infopedia.pt/sao-jorge, arquivo acedido em 20 de Março de 2008. 686 Diz Maria Alexandre o seguinte: “[A] solenidade conhecida pelo nome de Corpus Christi (em Portugal designada Corpo de Deus) ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, só ganha lugar de relevo na Liturgia em 1246, quando o bispo de Liège (Bélgica) instituiu a festa, na sua diocese. Esta primeira ‘festa oficial’ do Corpus Christi surge em consequência das revelações recebidas pela Beata Juliana de Retinne. Pela bula Transiturus (1264), o Papa Urbano IV (que antes fora bispo de Liège) estendeu a festa a toda a Igreja, como solenidade de adoração da Sagrada Eucaristia. A solenidade do Corpus Christi já era celebrada em Portugal no século XIII, desde o reinado de D. Afonso III. Era, à época, uma festa de adoração, não envolvendo a procissão pelas ruas. [… ] Celebrada em Lisboa, a festa do Corpo de Deus incluiu a Procissão, pela primeira vez, em 1389. Eram os tempos da consolidação da autonomia face a Castela e do bom ambiente criado pelas vitórias bélicas de Nuno Álvares e da influência cultural britânica (a ponto de S. Jorge - devoção inglesa, vencedor do Mal, do Dragão - ser considerado Padroeiro de Portugal). Por isso, à solenidade do Corpus Christi juntou-se a festa de S. Jorge. Desta junção, resultou a magnificência da Procissão da capital. A festa chegou a atingir surpreendente grandiosidade no tempo de D. João V, incorporando a Procissão que incorporava [sic], desde logo, as associações socioprofissionais e também as delegações das diversas Ordens Religiosas de Lisboa (Agostinhos, Beneditinos, Dominicanos, Franciscanos, Ordem de Cristo...) e militares. No cortejo, avultava a figura de S. Jorge a cavalo e a Serpe, ou dragão infernal (do tipo chinês, locomovido por figurantes), contra o qual S. Jorge lutava. Havia paragens para representação das famas ou glórias de S. Jorge; e também para uma série de danças.”. Cf. Maria Alexandre, Corpo de Deus, em http://www.verbumdei.org., arquivo acedido em 27 de Maio de 2008. Nos dias de hoje, S. Jorge ainda defronta o dragão, como no Alto Minho, conforme descrição abaixo: “Em harmonia com a tradição, a ‘Coca’ simbolizando o dragão, a que o povo tanto gosta de chamar ‘Santa Coca’, ‘Diacho da Coca’ ou, ainda, ‘Coca Rabixa’, « Por bia da Santa Coca rabixa / perdi o diacho da Missa ». Sai na manhã da procissão do Corpo de Deus, ‘passeando’ pelas ruas de Monção. À mesma hora, S. Jorge adestra o seu ginete, em tempos idos um galego que representava, no auto, o Santo da Capadócia. Na procissão, a que não falta o ‘Carro das Hervas’, cheio de verdura e rapaziada; São Cristóvão, o advogado das crianças ‘biqueiras’; o ‘Boi Bento’, todo enramilhetado de fitas e cores, vão as duas figuras principais do auto – a ‘coca’, arrastando-se vagarosamente pelas ruas e calçadas, um monstro anfíbio de escamas reluzentes, com largas queixadas móveis e uma língua tremulante implantada em cabeçorra que volta à direita e à esquerda, criando um misto de espanto e incredulidade aos inúmeros devotos da ‘rabixa’; logo seguida de S. Jorge, em carne e osso, vestido a rigor, armado de lança e espada, capacete e broquel, e montado em cavalo de verdade. Procissão acabada, toda a gente, se desloca para o Campo do Souto. Aí, ofegante, vaidosa, inchada, pousona, a Santa Coca! S. Jorge media, ao largo, o ‘bicharoco’, enquanto o cavalo, não habituado a multidões, se mostrava inseguro e nervoso. Ao impulso dos ‘comparsas’ que se ocultavam no bojo da ‘bicha’ e que a manobravam a seu bel-prazer, a Santa Coca vai a terreiro para o combate! Começa, então, o terrível combate !”. Cf. s.a., A Festa do Corpo de Deus no Alto Minho, em http://www.rtam.pt, arquivo acedido em 27 de Maio de 2008. 687 S. Jorge é o santo que os portugueses, na batalha de Aljubarrota, invocaram contra os castelhanos, que bradavam por Santiago, padroeiro até então comum aos reinos cristãos da Reconquista. O auxílio foi eficaz e o culto a S. Jorge espalhou-se, até por passar a tutelar numerosos ofícios. Georgina Silva dos Santos dedica a sua tese de Doutoramento, defendida na Universidade de S. Paulo e publicada em Portugal, à Irmandade de S. Jorge, fundada em 1558, que congregava os ofícios ligados ao ferro e ao fogo (ferreiros, sangradores, barbeiros, cutileiros, armeiros), e analisa o vínculo desta Irmandade ao Santo Ofício. A autora refere a antiguidade e as muitas variantes do culto a São Jorge, patrono dos cavaleiros, entre outras profissões e cita Oliveira Martins, para quem a invocação a S. Jorge pelos portugueses se deve à influência dos ingleses, uma vez que D. João I casou com D. Filipa de Lencastre, filha de João de Gaunt; o rei, agradecido a S. Jorge pelo auxílio prestado em Aljubarrota, instituiu o culto ao santo, cuja imagem montada a cavalo (ou incarnado por um personagem) passou, posteriormente, a figurar nas festividades do Corpus Christi, sob responsabilidade dos “homens de ferro e fogo”. Cf. Georgina Silva 371 A REVELAÇÃO DO SENTIDO terreno propício a que o profano se sobrepusesse ao sagrado; em Nisa, naquelas festividades, apareceu, certa vez, “um grosso mancebo, montado em possante cavalo, adornado com seu capacete com muitas fitas, couraça, escudo e lança, representando São Jorge, e ia adiante do clero fazendo trejeitos e gaifonas; o que provocava extraordinária hilaridade, e os motejos dos que o presenciavam, que foram tais no ano de 1694, que passaram a escândalo e motim que ia perturbando a ordem da solenidade; …”688 . Um incidente atribuído a S. Jorge, também aproxima o santo do cavaleiro que, no romance, é tão pouco zeloso das suas implícitas obrigações, e ao qual Moriana, possivelmente feiticeira, dá vinho envenenado, embora o santo, obviamente, não tenha morrido, como aconteceu com D. Jorge. Dá-se o caso de este santo, entre os diversos martírios a que foi sujeito, ter sido obrigado por um feiticeiro a ingerir veneno adicionada ao vinho; em Legenda Aurea, conta-se como o santo resistiu à ordem de os cristãos sacrificarem aos deuses, pelo governador Daciano. São Jorge, que exortava aqueles a não obedecerem, sofreu grandes martírios, mas como os suplícios não o vencessem, o governador chamou um feiticeiro: “lançados os seus esconjuros e invocados os nomes dos seus deuses, misturou veneno em vinho e entregou-o a São Jorge para o beber. O homem de Deus fez sobre ele o sinal da cruz e, depois de o ter bebido todo, não sentiu qualquer mal. De novo, o feiticeiro misturou outro veneno mais forte que o anterior; o servo de Deus, feito o sinal da cruz, bebeu-o todo sem sofrer a menor lesão” 689 . dos Santos [2005], Ofício e Sangue. A irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa moderna, Lisboa, Colibri, 2005. 688 O esplendor destas festas e a cena deste S. Jorge histrião são descritos por José F. Figueiredo, que cita Mota e Moura, de Memórias de Nisa, Vol. I, p. 120 e Vol. II, p. 101. Cf. José F. Figueiredo [1989], Monografia da Notável Vila de Nisa, edição fac-similada de 1956, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Câmara Municipal de Nisa, 1989, pp. 324-326. Cf. igualmente, Teófilo Braga [1994], O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, Vol. II, Lisboa, D. Quixote, 1994, p. 207. 689 Cf. S. Jorge Mártir, Tomo I, pp. 244-246, em Tiago de Voragine [2004], Legenda Aurea, 2 tomos, tradução do original latino de António Maia da Rocha, a partir da edição crítica de Giovanni Paolo Maggioni (Edizioni del Galuzzo, Florença, 1988), Porto, Livraria Civilização Editora, 2004. Na p. 247, encontra-se a reprodução de um fresco de Altichiero da Zevio, São Jorge a beber o veneno, do século XIV, no Oratório de São Jorge, em Pádua. Refere-se, na introdução, que a Legenda Aurea se tornou, com a Bíblia, o livro mais lido e copiado de toda a Cristandade, tendo sido conhecida entre nós desde o início. Usado como forma de doutrinação, é natural que o sucesso narrado fosse sendo conhecido. 372 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Bakhtin faz notar como o riso e o grotesco iam, na Idade Média, a par dos ritos e dos símbolos religiosos da cultura “séria”, oficial 690 . Ademais, as sociedades camponesas, a par de sentirem o sagrado como uma dimensão poderosa, não deixam de estabelecer com os santos que veneram um estatuto de familiaridade, facilmente os despojando do seu primitivo ascetismo, tal como acontece com Santo António ou São João691. Assim, nesta perspectiva, não seria muito de admirar que o protagonista de Veneno de Moriana, que tal como São Jorge era “cavaleiro” e foi envenenado com vinho, tomasse o nome do Santo, vindo o nome de “Alonzo” das versões espanholas692 a ser substituído pelo de “Jorge” nas versões portuguesas693. Quanto ao motivo “cavalo”, longe de apenas indicar um simples meio de transporte ou de tornar mais visível o homem que o monta, a sua função no romance é dual ao, simultânea e implicitamente, estabelecer o estatuto e o destino deste. É conotativa, porque não só relaciona o protagonista com uma determinada classe como também remete para uma problemática social, pois, segundo Manuel Manzano, há no romanceiro uma conexão do cavalo com a classe social poderosa, a qual é “en ocasiones violenta e injusta…”, circunstâncias que “preocupan el pueblo que canta, justo por no estar de 690 Mikhail Bakhtin [2002], A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais, 5ª ed. São Paulo, Hucitec, 2002. 691 A título de exemplo, transcrevemos duas quadras a estes santos, de J. Leite de Vasconcellos [1975, 1979, 1983], Cancioneiro Popular Português, Vol. III, Coimbra, Acta Universitatis Coninbrigensis, (III1983), pp. 331 e 334: “Santo António, por ser santo Não deixa de ser velhaco; Levou as moças à fonte, Levou duas, trouxe quatro!” “São João, por ver as moças, Fez uma fonte de bica; As moças não vão a ela, São João se mortifica.” (Lisboa) (Porto) De entre a bibliografia dedicada à dimensão religiosa e popular de ambos os santos, indicamos, também apenas a título de exemplo, Maria de Lourdes Sirgado Ganho [2000], O essencial sobre Santo António de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000 e Fernando de Castro Pires de Lima [1944], S. João na Alma do Povo, Porto, Portucalense Editora, 1944. É de notar que o local onde ambos os santos pretendem conquistar as “moças” é a fonte, local de amores a que atrás aludimos já. 692 “Alonzo” teria sido, mais facilmente, transformado em “Afonso”, em vez de “Jorge”. 693 Trata-se, obviamente, de uma hipótese de carácter especulativo e que apenas tem como objectivo demonstrar a operacionalidade dos motivos enquanto processos de significação. 373 A REVELAÇÃO DO SENTIDO acuerdo com ello”694. Na sua outra função, o cavalo adquire uma significação simbólica, ao ser montado por aquela personagem específica, pois, sendo um animal oracular, que anuncia a morte e a infelicidade695, é também uma imagem do movimento e que se tornou um símbolo do Tempo, que um cavaleiro montado pode dominar696. Se bem que em relação aos contos tradicionais, Manuela Parreira da Silva faz a associação do par homem/cavalo com a superação da morte e cita o conto “A Bela Felicidade” 697, de que reproduzimos o excerto do pedido feito pela protagonista ao príncipe, ao dar-lhe o seu cavalo branco: “[…] peço-te que nunca te apeies, vejas o que vires, sintas o que sentires, porque se te apeares o Tempo logo te mata”. A autora conclui que “na grande maioria dos contos em que aparece, o cavalo cumpre um trabalho” e que tem como função tornar-se “[…] um parceiro do homem, seu companheiro de viagem, seu conduzido/conduzidor – reflexo da sua dualidade essencial”. Ora, no romance, a primeira coisa que Moriana faz é convidar o cavaleiro a desmontar 698 (“Apeia-te, ó cavaleiro …”) e este, ao fazê-lo, perde a capacidade de controlar o Tempo, o que o deixa vulnerável à Morte, cujo veículo é o vinho envenenado que bebe. Este é o significado mais profundo das palavras que aquele 694 Cf. Manuel Lozano Manzano [2002], “Los Animales en el Romancero Tradicional Extremeño. (Las Primeras Colecciones, 1809-1910)”, em Javier Marcos Arévalo, Los Animales en la Cultura Extremeña, Badajoz, Carisma Libros, 2002, pp. 91-133. 695 Este animal, no Dictionnaire du Symbolisme animal, associa-se igualmente à infelicidade que pode provir dos “invasores estrangeiros” que subjugam a “população indígena” (Cf. Jean-Paul Clébert [1971], Dictionnaire du Symbolisme animal, Paris, Éd. Albin Michel, 1971, pp. 100-110) vindo o “D. Jorge” do romance, montado no seu cavalo, a representar os primeiros e Moriana a “população indígena”, que daqueles recebe infelicidade. Destes confrontos entre povos conquistadores e conquistados surgem por vezes amores, tantas vezes explorados na sua vertente mais trágica, com a temática da jovem “indígena” que se apaixona pelo “invasor” e é por ele abandonada. Lembramos o argumento de Norma, sacerdotisa druída de cuja união secreta com conquistador da sua terra, o procônsul romano Pollione, haviam nascido já dois filhos, quando este a pretende substituir pela jovem Adalgisa. Tal como Moriana, Norma descobre as intenções do romano e engendra uma terrível vingança contra o traidor (“Sangue roman, scorreran torrenti”) mas, ao contrário do que sucede no romance, a sacerdotisa acompanhará o amante na morte. Cf. Vincenzo Bellini, Norma, Libreto italiano de Felice Romani baseado no drama homónimo de Alexandre Soumet, Lisboa, Editorial Notícias, 1987. 696 Cf. Manuela Parreira da Silva [2004], “As Hipóteses do Cavalo nos Contos de Tradição Oral”, em Ana Paula Guimarães, João L. Barbosa, Luís Cancela da Fonseca [2004], organização de, Falas da Terra. Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa, Lisboa, Colibri, 2004, pp. 301-314. Em Veneno de Moriana, o cavalo é, naturalmente, parte do motivo “o cavaleiro”, sendo a sua função dual, ao estabelecer, simultânea e implicitamente, o estatuto e o destino do homem que o monta. 697 Em Leite de Vasconcellos, Contos Populares, Universidade de Coimbra, Vol. I, 1964, p. 599. 698 A cor do cavalo, dissémo-lo atrás, será também esbranquiçada (“rucinho”/ruço), tal como a do cavalo do príncipe do conto. 374 A REVELAÇÃO DO SENTIDO profere no final, onde se retoma o motivo do cavalo, constituindo a expressão “ter as rédeas do cavalo na mão” o significante metafórico de controlar a Vida: 7.“ Tenho as rédeas na mão e já não vejo o meu cavalo”, VM/40 Fontes (1979) 124 O verso em causa demonstra o espanto do cavaleiro em estar a perder essa capacidade, mas a incredulidade implícita face ao que está a acontecer, toma uma ambiguidade de sentido, consoante fique ou não provada a traição cometida contra Moriana; nas versões que incluem explicitamente a menção ao seu próximo casamento com outra mulher, implica uma amoralidade de carácter desse que se julga impune ao quebrar da palavra dada; caso contrário, isto é, se a razão do envenenamento não for explícita, aquelas palavras (ou semelhantes) perdem este sentido e o acto de Moriana fica por esclarecer, o que ocasiona que será a ela que se atribuirá uma maldade gratuita ou uma vingança por razões mesquinhas. Motivo: O vinho. - Micro-relato: Uma mulher dá um copo de vinho envenenado a um homem. - Função no romance: Identificação da vingança e do meio utilizado para a perpetrar. 6.”Espera aí, ó D. Jorge, espera aí um bocadinho, 7.enquanto eu vou ao sobrado buscar-te um copo de vinho.” VM/133 Fontes I (1987) 376 O motivo do “vinho” é, como os outros motivos, plurissignificante. Sendo uma bebida geralmente associada a celebrações e a diversos rituais699, a oferta do vinho ao cavaleiro pela protagonista, em Veneno de Moriana, aparenta, à primeira vista, tratar-se 699 Diz Whitaker Penteado que “[O] vinho está onipresente, nas festas populares, nos provérbios, no cancioneiro, nas lendas e superstições, em todos os movimentos da vida” e assim também em “autos populares”, nos quais o autor inclui os romances A Nau Catrineta, O falso cego (Auto do Cego) e Veneno de Moriana (D. Jorge). Este último, nas suas palavras, é um “auto” a ser representado por um menino e duas meninas, no qual o vinho é “o vilão da história”. O autor faz, também, o paralelo das “predecessoras” da “Juliana”, que usaram veneno no vinho para as suas vinganças. Cf. Penteado [1980]. 375 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de uma cortesia devida a um visitante. Mais prosaicamente, serviria para o dessedentar, uma vez que se depreende que esse visitante vem de longe, como atrás dissemos: 10.“Esperai aqui, D. António, esperai aqui mais um pouquechinho, 11. qu'eu vou à minha sala buscar um jarro de vinho, 12. para te dar a beber que vens seco do caminho.” VM/67 Ferré (1982) 189 É na continuação no romance, mesmo que não se explicite (Tipo A) que este continha substâncias venenosas, que se perceberá que o vinho oferecido tem outras funções que não estas, pois a sua ingestão provoca a morte do cavaleiro. O motivo aponta para efeitos de significação diversos, o primeiro dos quais reside na qualidade, referido como “bom” ou com a expressão “vinho de sete anos” (3.”- Ai, tenho vinho de sete anos guardado para te dar.”, VM/235 Loddo (1995) 80-81) a associar-se ao pressuposto de que um vinho velho é de qualidade superior700, pelo que prevalece o seu sentido simbólico de oferenda ritual. Parece, então, que Moriana deseja honrar o cavaleiro que a visita, oferecendo-lhe do melhor: 8.“- Foi d'adega do me pai, da pipa do melhor vinho.”, VM/68 Ferré (1982) 190 A ênfase posta na qualidade do vinho é não só de Moriana como do próprio cavaleiro: 4.“- Espera-me aí, D. Jorge, espera-me um poucochinho, 5. enquanto te vou buscar uma taça de bom vinho. 6. - Que me deste, Juliana, nesta taça com bom vinho,” VM/1 Braga (1883) 197 Não quer dizer, porém, que aquele não beba qualquer outro, mesmo vinho de taberna, normalmente conotado com uma qualidade inferior: 8.“- Espera aí, ó meu D. Jorge, espera mais um bocadinho, 9. enquanto vou à taberna buscar um copo de vinho.” VM/129 Fontes I (1987) 373-374 700 Notar a diferença entre “vinho de sete anos”, que qualifica o vinho como de qualidade, e “vinho de há sete anos”, (3.“- Tenho vinho de há sete anos guardado para te dar”, VM/109 Fontes I (1987) 364), que remete para a duração das relações entre Moriana e o cavaleiro. 376 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O motivo do “vinho” é recorrente em Veneno de Moriana, com apenas algumas variantes semânticas, ocorrendo a oferta de um “licor”: 10. “- Toma, toma, Leonardo, este copo de licor.”, VM/5 Mendonça Dias (1922) As versões em que aparece o licor são dos Açores, o que não significa que seja uma variação fixada neste Arquipélago 701 , pois em outras versões da mesma região mantém-se o motivo do vinho, mesmo em uma versão micaelense na qual o “licor” alterna com o “vinho”, prova de que, sendo intercambiáveis, são tópicos portadores do mesmo sentido: 9.“Toma lá, ó Leonardo, este copo de bom vinho, 10. Coitado de quem não tem quem lhe faça um mimozinho. 11. - Que me deste, Laureana, neste copo de licor?” VM/95 Cortes-Rodrigues (1987) 259-260 Também uma versão da Ilha de S. Jorge, que apresenta uma variação que refere a oferta de outro tipo de bebida, não alcoólica, faz, imediatamente no verso seguinte, o retorno ao motivo canónico: 3.“- Entra, entra, Lionardo, p'ò meu jardim descansare, 4. que tenho cope de chá que guardei para te dar. 5. - Que me destes, Lauriana, neste copinho de vinho?” VM/78 Fontes (1983a) 100 701 Certa criação poética que introduz um verso de teor sentimental, com o segundo hemistíquio a finalizar com a palavra “amor”, juntamente com a estrutura estrófica de Veneno de Moriana, podem ter favorecido a substituição de “vinho” por “licor”, a rimar com o citado verso. Atente-se na semelhança dos versos destas versões, separadas pelo tempo: 10.“- Toma, toma, Leonardo, este copo de licor. 11.sempre me lembro que foste o meu primeiro amor.” VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115 4.“Entra, entra, Lionardo, e toma um copo de licor: 5. sempre foste e hás-de ser o meu primeiro amor.” VM/40 Fontes (1979) 124 4.“[…………………….] toma lá este copo de licor 5.que sempre foste e hás-de ser a prenda do meu amor.” VM/81 Fontes (1983b) 89-90 377 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Todas estas bebidas são equivalentes, indubitavelmente, em termos de sentido da função veicular do veneno nele misturado, o que é bem explícito no segundo exemplo abaixo: 13.“- Um licor que preparei, somente para te matar, 14. não vives mais que uma hora, que o licor é resalgar.” VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115 9.”- Que me deste, Laureana, nesta taça de bom vinho? 10. - Foi um copo de veneno para te matar assim,” VM/96 Cortes-Rodrigues (1987) 262-263 Seja a oferta de chá ou de licor, seja o vinho bom ou mau, o facto é que o cavaleiro bebe seja o que for que Moriana lhe dê, mesmo que esta lhe forneça indicações tão pouco veladas que deveriam fazê-lo desconfiar: 8.“Bebe, bebe, ó D. Jorge, este vinho de paixão, 9. amanhã por esta hora tu estarás no teu caixão.” VM/101 Ferré (1987a) 48 Efectivamente, ele bebe sempre, mesmo achando algo estranho: 4.“- Vinho d'há sete i-anos não é bom de guardare.” VM/108 Fontes (1987a) 567-568 Assim sendo, poder-se-á encontrar neste cavaleiro uma certa dependência da bebida, como se depreende da adjectivização abaixo, a negrito: 9.“ - Ai! vinho, tirano vinho, qu'esta tirana me deu 10. qu'eu tenho o copo na mão, já não vejo quem m'o deu!” VM/66 Ferré (1982) 188-189 Embora o sentido seja um tanto dúbio, pois a “tirania” do vinho tanto pode entender-se como por ser maléfico, o que se aproxima do epíteto aplicado a Moriana (“esta tirana”), como por ser um vício que o domina e que é do conhecimento da jovem, que o aproveitará para melhor se vingar. Na rede de enganos que o romance tece, o 378 A REVELAÇÃO DO SENTIDO motivo do vinho torna-se então vital: ele “enganara-a” a ela, com promessas de casamento, e ela engana-o a ele, envenenando-o com o engodo do vinho: 3.“- Eu bem te dizia, ó filha, tu não querias acreditar, 4. os passos que o Jorge aqui dava era só para te enganar. 5. - Não se rale, ó minha mãe, nem o meu pai que me criou, 6. que eu hei-de enganar o Jorge conforme ele a mim me enganou.” VM/99 Ferré (1987) 67 a) Os ingredientes no vinho O motivo do vinho contém geralmente outra informação significativa, a dos ingredientes que lhe são misturados702 e que também constituem motivos, quase sempre especificados e em número de três 703 - sangue de cobra, pós de sapo/lagarto e rosalgar704: 7.“- Deitei-le o sangue da cobra, pós de lagarto moído, 8. Lá no meio disso tudo, um resalgar vai metido.” VM/171 Galhoz (1987) 312 Os pequenos animais mencionados (cobra, sapo e lagarto705), que facilmente se encontram no campo, foram muitas vezes utilizados quer como substâncias medicinais quer venenosas: 702 Só no Tipo B o envenenamento é explícito, especificando os ingredientes de modo detalhado, podendo embora sê-lo de forma lacónica, como: “ 6.- Quatro bolas de beleno, a ti te quero matar!”, VM/10 Leite (1960) 104. Nas versões do Tipo A, o envenenamento apenas fica implicado pelas suas consequências, não sendo de regra que Moriana responda à pergunta sobre o que deitou no vinho, embora haja algumas excepções, como a da VM/101 Ferré (1987) 68: 9.“- Que deitaste, Juliana, que deitaste tu 'ó vinho? 10. Inda agora estava bom, já não vejo o cavalinho. 11. - Deitei-lhe pó de joana daqueles que eram mais fininhos.” 703 Segundo Bethencourt, a “simbologia do número estrutura e consagra grande parte dos ritos manuais e ritos orais” e o número três, nas práticas de magia, simboliza a perfeição da unidade divina. Cf. Bethencourt [1987], p. 112. 704 Cf. a entrada 439 da Varia, em Consiglieri Pedroso [1988], Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos, Lisboa, D. Quixote, 1988, p. 204. 705 Estes são os mais frequentes, mas são mencionados outros, até mesmo “peixinhos”: 10.”- Deitei-le cobrinhas vivas, peixinhos d'endar no mar”, VM/151 Fontes I (1987) 386-387. 379 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “Quant aux venins, serpents et crapauds, si on savait que la médecine de l’époque les utilisait dans un but thérapeutique, les sorciers et les empoisonneurs, s’en servaient aussi. [….] Parfois on empoisonnait des crapauds avec du sublimé et de l’arsenic, on les sacrifiait aussitôt afin de recueillir les urines que l’on considérait comme très dangereuses. On se servait aussi du venin de l’animal en putréfaction, dont la virulence était exaltée par l’association à un toxique.”706 Diz ainda o artigo acima citado que, do lagarto, se fazia uma “poudre a aimer, contenant certainement de la cantharide”. A cantárida tem propriedades afrodisíacas707 e os “pós de lagarto”, com grande frequência, fazem parte dos ingredientes usados por Moriana (6.“- Eu botei-lhe resalgar e pós de lagarto moído.”, VM/2 Leite (1883a) VII; 5. “Dei-te o sangue da cobra, pós de lagarto moído,” VM/109 Fontes I (1987) 364), o que levaria à não confirmada hipótese de esta já ter dado semelhante poção ao cavaleiro (sem, obviamente, a adição de veneno), de modo a provocar-lhe reacções amorosas, pelo que este, sabendo ao que se destinava, a beberia de novo sem desconfiança. Contudo, a intenção de Moriana, é seguramente a de matar. Aqueles animais também aparecem em descrições de ritos malfazejos ou de feitiçaria, podendo ser utilizados directamente, adicionados a alimentos (tal como o faz Moriana no vinho), ou à distância (“Metendo dentro da boca de um sapo um bocado de pão já mordido por uma pessoa e cosendo a boca do sapo, conforme ele vai secando, assim também a pessoa)”708. Paradoxalmente, cobras e lagartos também figuram nas Curas Medicinais de Amato Lusitano, que prescreve sangue ou caudas de lagarto para tratamento de “humor acre” e problemas sexuais, e “teriaga” (remédio com carne de víbora) na cura de 706 Cf. Josselin Fleury [2005], “L’Affaire des poisons de 1679-1682 à l’origine de la réglementation relative aux substances vénéneuses”, Histoire de la Pharmacie, Paris XI, disponível na Internet em http://www.ordre.pharmacien.fr/fr/jaune/index3.htm, arquivo acedido em 22 de Outubro de 2007. 707 Cf. entrada para “cantárida”, no Dicionário Houaiss, Tomo II, p. 781. 708 Informação do abade J. Tavares, Carviçais, Moncorvo, 1904. Cf. José Leite de Vasconcellos [1980], Etnografia Portuguesa, Vol. VII., Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, reimpressão fac-similada da ed. de 1980, p.p. 537-538. 380 A REVELAÇÃO DO SENTIDO diversas maleitas, mas da relação dos animais usados neste receituário médico709 não consta o sapo710, o que parece confirmar a afirmação de Bethencourt: “O sapo […] é empregue exclusivamente em ritos de mal querença e morte”711. Outro dos ingredientes mencionados no romance é o rosalgar ou outras denominações (“resalgar”, “ressalgar”): 7.”Lá no meio disso tudo, rosalgar era metido.”, VM/257 Eira (1999) 55 8.”e no meio disto tudo o resalgar vai metido.”, VM/138 Fontes I (1987) 380 8.”Entremeios disso tudo foi um ressalgar metido.”, VM/19 Leite (1960) 110 O rosalgar é o “sulfureto de arsénio monoclínico, de cor vermelha transparente, us. como fonte de arsénio…” 712 , sendo este descrito como mineral venenoso 713 . A sua utilização como veneno deveria ser bem conhecida, pois encontram-se-lhe várias referências em diversos documentos que regulamentam as substâncias venenosas 714 . Pela descrição que dessa substância faz Ambroise Paré, em Des venins et morsures, 1579 (“Le réagal (sulfure naturel d’Arsenic, pour être de nature chaude et sèche, induit soif, échauffaison et ardeur par tout le corp”) 715, não é de admirar que, no romance, o primeiro gole do vinho misturado com rosalgar provocasse ainda mais sede ao cavaleiro, fazendo com que este bebesse até ao fim e, assim, causando a sua morte. 709 Cf. Albano Mendes de Matos [1998],”Os produtos de origem animal na terapêutica de Amato Lusitano”, Medicina na Beira Interior da Pré-História ao Século XX, Cadernos de Cultura nr. 12, Raia, 1998, pp. 13-19. 710 Ver, entre outros, Guilherme Felgueiras [1963], “Os Batráquios no Conceito Popular e na Superstição”, em Actas do 1º Congresso de Etnografia e Folclore. Promovido pela Câmara Municipal de Braga (De 22 a 25 de Junho de 1956), Vol. II, Lisboa, Plano de Formação Social e Corporativa, 1963, pp. 65-92, Maria Teresa Meireles [2003], B.I. da Serpente, Colecção Bilhetes de Identidade, 3, Apenas Livros, 2003 e, também, Maria Teresa Meireles [2003a], B.I. de Sapos e Rãs, Colecção Bilhetes de Identidade, 6, Apenas Livros, 2003. 711 Cf. Bethencourt [1987], p. 129. 712 Entrada no Dicionário Houaiss, Tomo V, p. 3205. 713 Op. cit., Tomo I, p. 397. 714 Nas Ordenações Filipinas é proibida a sua venda (quer o branco, o vermelho ou o amarelo), sob pena de perda de fazenda e degredo para África. Cf. Silvia Hunold Lara [1999], org. de, Ordenações Filipinas, Livro V, S. Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 286-287. 715 Citado em Fleury [2005], op. cit. 381 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Este ingrediente é pois reconhecidamente um veneno, cuja proveniência não é geralmente revelada nas versões portuguesas, ainda que a referência ao seu preço indicie a sua compra, como na VM 173 Galhoz (1987) 313 (4.“[….] trinta réis de ressalgar”) ou na VM/119 Fontes I (1987) 369 (3.“[…..] um vintém de resalgare”). Na tradição madeirense716, porém, diz-se explicitamente que Moriana vai colher o resalgar ao jardim 717 ; neste caso, subentende-se que este “resalgar” é um veneno de origem vegetal, por vezes explicitamente uma planta com folhas718: 716 Cf. as versões madeirenses em Ferré [1982], pp.181-194. O jardim, no caso destas versões de Veneno de Moriana, não tem a mesma conotação do jardim de Bernal Francês. Enquanto neste romance tem uma função simbólica, denotativa de que aí decorrerá uma cena amorosa, no outro, sendo o sítio lógico onde se cultivam plantas, torna mais evidente o pressuposto da feitiçaria de Moriana (ou dos seus parentes - pai/tio), que já referimos na Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances. Em Veneno de Moriana, o jardim é um local maléfico, mas ao mesmo tempo familiar, onde Moriana pode ir buscar o veneno sem fazer o cavaleiro esperar demasiado, o que o faria desconfiar: 717 7.“Moliana levantou-se e foi ao jardim de sê pai 8. e depressa apanhou um ramo de resalgar 9. e deu a D. Bruno a beber, dentro dum copo de vinho.” VM/60 Ferré (1982) 185 Apesar de o “jardim” não ter a mesma função nos dois romances, afinal ambos com desfechos trágicos, pode aparecer em certas versões de Veneno de Moriana como motivo conotado com “local onde se trata de amores”. Nesta versão da Ilha de S. Miguel, na qual há mesmo uma certa justiça poética, Moriana faz entrar o cavaleiro no mesmo jardim onde este lhe jurara amor, para aí o matar: 6.“- Entra, entra em meu portal, por onde tens sempre entrado, 7. no jardim te vou esperar, como outrora, Leonardo, 8. quando juravas que eras meu amor, meu namorado.” VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115 Será por essa razão que o cavaleiro pede para ser enterrado nesse jardim e, já morto, aparecerá a Moriana, também ela arrependida, para se redimir do mal feito: 16.“- Ê te peço, Moliana, que me trates d'enterrar 17. neste jardim de tê pai, debaixo do resalgar. 18. Moliana, arrependida, à cova l'ia rezar; 19. um dia, por ali viu D. Bruno a passear. 20. - Que fazeis aqui, D. Bruno, neste jardim de mê pai? 21. - É venho, Moliana, d'outro mundo te falar; 22. quem deve a honra alheia nunca se pode saber. 23. Ê devo a honra a sete, nunca me posso salvar.” VM/60 Ferré (1982) 185 Trata-se de um pormenor importante na explicação da origem do final diverso que surgirá nas versões deste romance no Arquipélago da Madeira, a que Dias Marques a que chama o final madeirense. Cf. Marques [1992]. O motivo do jardim onde Moriana vai colher as folhas do veneno (noutras versões “horto” ou “vergel”) aparece igualmente noutras áreas geográficas (cf. Proyecto del Romancero panhispánico), mas em nenhuma destas versões há o mesmo prolongamento das madeirenses 382 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 6.“Levantou-se Moliana com seu modo real, 7. Foi colher três folhas a seu lindo rosal.” VM/21 Leite (1960) 111 Tal veneno seria bastante acessível a Moriana, por se encontrar num jardim que muitas vezes se explicita ser o dela própria, como na versão acima, o do pai ou até o de um tio: 6. foi logo 'ó jardim do pai um resalgar apanhar, 7. deitou num copo de vinho para Bombónio tomar.” VM/53 Ferré (1982) 181 6.“- Levanta-te, Boliana, e vai ao jardim de teu tio, 7. e apanha resalgar e deita num copo de vinho ………… 719 e dá a Bombónio a tomar.” VM/56 Ferré (1982) 182-183 Dir-se-ia que o cultivo do resalgar em jardim720 é um assunto familiar, o que dá a Moriana a oportunidade de escolher o de qualidade superior: 2.“Foi ao resalgar do pai, por ser resalgar mais fino, 3. ela le apanha um ramo, deitou num copo de vinho. Leão: “Marianita a la ligera tira un brinco a su jardín Las siete hojas del veneno luego se las trajo alii” Astúrias: “Enseguida Mariana brinco en su jardín florido, Três hojas de resalgar pronta las diera cogido” Marrocos: “Salto diera Moriana hasta el jardín de su padre Cortara siete hojitas de aquel fino solimane;” 718 Não podemos deixar de notar a seguinte coincidência: algumas versões em que se menciona a “colheita” de folhas no jardim e nas quais a protagonista toma o nome de “Moliana” (provenientes da Madeira), a saudação do cavaleiro (“- Salve Deus, ó Moliana, …”, VM/21 Leite (1960) 111 e “- Deus te salve, Moliana, …”, VM/60 Ferré (1982) 185) assemelha-se ao incipit (“Deus te salve, moliana!) de uma “oração” que acompanha a seguinte prática com a erva-moliana, de “grande virtude” - planta-se, juntando um pouco de ouro, prata e cobre; mantendo-se a erva verde, a casa está feliz, se alguém adoecer seca. Cf. entrada 595 em Pedroso [1988]. 719 Nesta versão, ao contrário das outras, em que um narrador extradiegético informa que Moriana foi ao jardim, o episódio desenha-se sob a forma de uma ordem directa, dada por uma voz não identificada. 720 Daí o pressuposto do conhecimento de práticas de feitiçaria por Moriana (ou dos seus parentes pai/tio) ser mais evidente nestas versões, o que já referimos na Parte I, Capítulo IV. Para uma perspectiva axiológica nos romances. 383 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 4. Deitou num copo de vinho e deu a D. Brunho a beber.” VM/64 Ferré (1982) 187-188 Embora nunca mencionado no romance como tal, o rosalgar poderá também ser um cogumelo, pois dá-se o mesmo nome, possivelmente por analogia da cor vermelha e das propriedades venenosas, à Amanita muscaria 721 . Em estudo sobre cogumelos, Francisco Xavier Martins descreve o seu uso como venenos, em Trás-os-Montes, referindo-se ao “resalgar” ou “rosalgar” como sendo este cogumelo722 e, expressamente, à sua utilização em Veneno de Moriana como “componente do veneno que, segundo Amadeu Ferreira, era utilizado para vingar a honra perdida”723. O autor regista os efeitos alucinogéneos deste cogumelo, usado nos rituais de feitiçaria e iniciação na Idade Média e Renascimento e que, tomado sem precaução, poderia causar a morte. A Amanita muscaria apresenta coloração vermelha e ausência de sabor e os sintomas de toxicidade, descritos em literatura da especialidade724 (alterações do sistema nervoso, descoordenação motora, lacrimejamento, entre outros), correspondem aos sentidos pelo cavaleiro do romance que, após beber o vinho, declara “já não enxergo o caminho”. 721 A Amanita muscaria encontra-se não só em Trás-os-Montes, mas por todo o lado, em florestas de folhosas e resinosas e é frequente no Outono, sendo possível a confusão com a Amanita caesarea, que também aparece nesta estação, debaixo de castanheiros, carvalhos ou sobreiros e é referido como “excelente comestível, muito procurado, sendo considerado o rei dos cogumelos”, em Andreia Gama [2005], Cogumelos, Castelo Branco, Câmara Municipal de Castelo Branco, 2005. 722 O uso de um resalgar/cogumelo induz algumas considerações possíveis. De facto, a ser o “resalgar” do romance um cogumelo, é certo que Moriana, pelo menos, conheceria bem as diferenças entre o Amanita muscaria e o Amanita caesarea, pois utiliza aquele que mata. Resta, ainda, saber se é um impulso de momento ou se é deliberado. Se bem que não haja no romance uma localização temporal explícita e sabendo-se que aquele cogumelo é outonal, poder-se-ia inferir que a sua utilização no incidente se teria dado nessa época do ano e que se tratou de um acto não premeditado, pela lógica da sua disponibilidade de momento (tal como nas versões madeirenses, com a ida ao jardim). No entanto, é de notar que as versões do Tipo B de Veneno de Moriana são cantadas nas segadas, que se realizam no Verão, e à hora da merenda, porque esta refeição é referida nesse tipo. Há, pois, uma associação do contexto temporal da performance ao do romance, quanto à hora do dia. Porém, é de crer que os seus produtores-transmissores saibam que no Verão não há aquele cogumelo, o que leva à conclusão de Moriana estar antecipadamente na posse dos ingredientes usados, quer do vinho “guardado há sete anos” quer de um “resalgar”, seja este um cogumelo (talvez conservado de modo a manter as propriedades venenosas) ou outra substância, o que implica que o seu acto é não só deliberado, mas premeditado. 723 Cf. Francisco Xavier Martins [s.d.], Cogumelos, Mirandela, João Azevedo Ed., s.d., pp. 61-68. O autor transcreve uma versão mirandesa do romance (D. Ougenha), da recolha de Serrano Baptista, edição de António Maria Mourinho, Cancioneiro Tradicional Mirandês, Vol. II, 1987, que é, no nosso corpus, a VM/179 Mourinho (1987) 23. 724 Cf. Mário Figueiredo [2005], Amanita Muscaria, disponível na Internet em www.geocities.com, arquivo acedido em 19 de Outubro de 2005. 384 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em qualquer dos casos, a cor vermelha e a insipidez do cogumelo725 torná-lo-iam o ingrediente perfeito para ser misturado num vinho velho de “há sete anos”. Os ingredientes adicionados ao vinho são, como se viu, de origem animal, vegetal ou mineral, todos partilhando propriedades venenosas. O rosalgar, em particular, já mencionado como mineral ou vegetal, pode ser também entendido como de origem animal, sendo sinónimo da osga, como é indicado, em “Benzeduras”, por informante a Berta Beça726: “No Verão é fácil apanhar porque os bichos andam por o chão veneroso. O resalgar (a osga) a aranha e o sapo, são venerosos. [………..]”. 3.3. SILVANA e DELGADINHA Motivo: Filha perseguida pelo amor antinatural de um pai. - Micro relato: Um pai propõe à filha que tenha com ele uma relação amorosa. - Função no romance: sustenta a razão de ser da intriga. O motivo “filha perseguida pelo amor antinatural de um pai” é compartilhado pelos dois romances, razão pela qual colocamos ambos em paralelo, de modo a que possam ser comparadas as semelhanças e diferenças no seu uso. Silvana 1.“Bem se passeia Silvana pelo corredor acima, 2. o magano de seu pai d' amores a pretendia. 3. - Dá-me o teu corpo, Silvana, dá-me o teu corpo, filha minha.” S/3 Martins (1938)/Martins (1987) 37-38 Delgadinha 1.“Um pai tinha três filhas, todas lindas como a prata; 725 Com algumas excepções, em que o cavaleiro se queixa do sabor: 12.” - Que me deste, Laureana, que é de tanto amargar?”, VM/5 Mendonça Dias (1922) 114-115. 726 Berta Beça, “Orações, Cânticos Religiosos, Ensalmos e Benzeduras da Beira Baixa”, Revista Lusitana. Nova Série, nrs. 22-24, Lisboa, Centro de Tradições Populares Portuguesas “Professor Manuel Viegas Guerreiro, UL, FLUL, 2002-2004, pp. 129-179. 385 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2. A mais linda delas todas Aldininha se chamava. 3. - Aldininha, ó minha filha, tu hás-de ser a minha amada!” D/202 Carvalho Rodrigues (1990) 90-91 Antes de mais, referimos que este motivo se insere noutro mais lato, o da “jovem perseguida”, objecto de aprofundada análise semiológica de Veronica Orazi, que lhe encontra raízes em primitivos ritos de iniciação sexual, celebrados no início da puberdade e a cuja realização seriam inerentes provas de carácter repetitivo, incluindo mutilações, carregadas de significado simbólico727. Orazi faz notar que é do despojar do significado sagrado do ritual, quando este se torna em objecto profano, que nasce o motivo; segundo Propp, dá-se um fenómeno de transposição do sentido do rito, que entende como a substituição no relato maravilhoso de elementos do rito quando estes se tornam incompreensíveis, devido a mudanças histórias, por outros elementos mais compreensíveis, sendo a inversão um caso especial deste fenómeno, ou seja, a conservação no relato maravilhoso das formas rituais, mas de sentido ou tratamento oposto728. No caso do motivo específico “jovem perseguida”, Veronica Orazi refere o simbolismo do seu isolamento em qualquer local “terrível e isolado” (floresta, deserto, à deriva no mar ou rio) de onde partirá sofrendo aventuras sucessivas, que correspondem a provas que o iniciado deve superar para vencer a “morte” ritual, após o que “ressuscitará”, com qualidades mágicas. Refere, ainda, que o motivo se multiplicará em numerosas atestações, cujo predicado constante é a perseguição sexual, particularizada 727 A autora analisa o motivo relativamente às suas derivações medievais e lista as suas numerosas atestações na esfera ocidental e oriental, com respectiva bibliografía. Cf. Veronica Orazi, “Die Verfolgte Frau: Per l’analisi semiológica di um motivo folclórico e delle sue derivazioni medievali (con speciale attenzione all’ambito catalano), em http://publications.iec.cat/X.do?method=start&LIST.ID=REVISTESSCIENTIFIQUES&ModuleName, arquivo acedido na Internet em 7 de Janeiro de 2009. 728 Cf. Vladimir Propp [1998 (1946)], Las Raices Historicas del Cuento, Madrid, Editorial Fundamentos, 1998. Assim, a iniciação sexual das jovens pelos mais velhos, por vezes parentes, terá deixado a sua marca naqueles relatos ou, diríamos, ter-se-á transformado no motivo “perseguição das jovens”. 386 A REVELAÇÃO DO SENTIDO em outra de natureza incestuosa, quer seja paterna quer fraterna (sobretudo no que diz respeito á figura do cunhado)729. Relativamente a Silvana e Delgadinha, diremos que partilham o motivo “filha perseguida pelo amor antinatural de um pai”, mas entendemos que o mesmo desdobrase em motivos distintos (“provocação da filha” e “beleza da filha”) que correspondem a antecedentes narrativos diferentes, não obstante ambos cumprirem a mesma função justificar a intriga. É de lembrar que a tradição portuguesa, de uma maneira geral, liga de tal modo os dois romances em versões compósitas, que o motivo da provocação de Silvana se confundirá com o motivo da extrema beleza de Delgadinha. A alteridade dos dois motivos simples, “provocação” e “beleza”, por vezes subtil, fará variar o micro-relato subsequente: Silvana: Motivo: Provocação da filha. - Micro-relato: Um pai agrada-se da filha pelas suas atitudes provocantes. - Função no romance: Justificar as causas do assédio incestuoso. Tendo já definido, anteriormente, os critérios para as situações de “provocação” /”não provocação”, o primeiro como qualquer tipo de actividade que chame a atenção, repetimos que se trata de um motivo que se actualiza mediante outros motivos com conotações ligadas à sensualidade feminina, como “passear-se” ou “andar pelo corredor”, “cantar”, “tocar instrumento musical”, “beber da fonte” ou “pentear-se”. 729 Encontra Orazi, como antecedentes do motivo, os episódios bíblicos de Susana (Dn 13, 1-64) e de José e a mulher de Putifar (Gn 39, 1-20); embora os respectivos protagonistas não sejam efectivamente parentes, mantêm entre eles relações equivalentes, com a categoria paternal a ser atribuída aos anciãos, no primeiro caso, e uma ligação de tipo fraterno de José com Putifar, o que faria da mulher deste sua “cunhada”. Já referimos romances com essa temática, não classificados especificamente como “de incesto”, o Romance Bíblico Tamar (Tamar, IGR 0140) e o Romance Clássico Florbela e Brancaflor (Brancaflor y Filomena, IGR 0184), nos quais o incesto (com violação) se dá, respectivamente, entre irmãos e cunhados. 387 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Assim, se bem que posteriormente saibamos que Silvana é bonita, ou pelo menos ganha na comparação com a mãe, não é essa a razão alegada para que o pai repare nela, mas sim o que faz: 1. “Andava a bela Silvana pelo corredor acima, 2. se melhor canta, melhor baila, melhor romance fazia” S/16 Ferré (1982) 207-208 A “não provocação”, por sua vez, está associada a uma certa passividade, como estar, simplesmente, sentada na sala ou no jardim. De facto, Delgadinha nada faz, apenas “é”. E é bonita, tanto que desperta a atenção e o amor do pai: 1.“Delgadinha, Delgadinha, Delgadinha bem delgada, 2. De tão linda que era o seu pai a namorava.” D/44 Leite (1960) 56-57 Delgadinha: Motivo: Beleza da filha. - Micro-relato: Um pai agrada-se da filha porque esta é muito bonita. - Função no romance: Justificar as causas do assédio incestuoso. A beleza é uma qualificação estética valorativa de Delgadinha, dando-se uma aproximação ao modelo canónico da beleza feminina das artes poéticas medievais730, e a ênfase nesta circunstância tem um grande peso no sentido do romance. Um refrão “Oh, és tão linda/Oh, tão linda/ e ó tão linda”- 730 que surge em certas versões de A “louvanza da dama” é, segundo G. Tavani, um dos campos sémicos que caracterizam topologicamente a cantiga de amor, circunscrevendo uma qualificação estética abstrata e indeterminada ou valoração positiva do aspecto físico e associando a beleza a outras qualidades. Cf. Giuseppe Tavani [1991], A Poesía lírica galego-portuguesa, 3ª ed., Vigo, Editorial Galaxia, 1991, pp.109-110. Por sua vez, Arnaldo Moroldo faz a síntese do belo feminino: “A mulher cantada pelos trovadores é uma mulher loira, de pele branca e faces rosadas, isto é, reúne as características do tipo nórdico que não do mediterrânico. [… e da soma das suas partes deverá emanar] uma impressão de elegância, de delicadeza, …”. Cf. Arnaldo Moroldo, “Le portrait dans la poésie lyrique de langue d’oc, d’oïl et de si aux XIIe et XIIIe siècles”, Cahiers de Civilisation Médièvale, XXVI, 1 e 2: 149-67 e 239-50, apud Paulo Meneses, Trovadorismo galaico-português (vozes & afectos), Cascais, Patrimonia Literária, 1998, nota 65, p. 96. Assim, o motivo da beleza feminina hiperbolizada é partilhado pelos agentes poéticos de ambos os géneros, poesia trovadoresca e romanceiro. 388 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Delgadinha731, realça, pelo seu tom exclamativo e repetitivo, a assunção de que a beleza da filha é o motivo que subjaz ao tema do romance, enquanto em Silvana, cuja protagonista, seguramente, é também muito bonita, prevalece o motivo da “provocação”732. O aspecto físico da rapariga é semelhante ao das irmãs, todas muito belas (1.”Um pai tinha sete filhas mais lindas qu'a maravilha”, D/96 Ferré (1982) 216-217), mas com as quais se faz uma comparação amplificante (é a mais nova, a mais velha, a mais afidalgada, a mais linda); também é comparável ao sol, ao ouro e à prata, com os quais merece ser vestida: 1.“Selibana, se quisesses, eras tu a minha amada, 2. de ouro andavas vestida, de prata andavas calçada.” D/130 Marques/ Silva (1984-1985) 117-118 Acontece, mesmo, ser a beleza da rapariga apresentada como a causa próxima do enamoramento733 e, até, uma fatalidade, como está implícito no verso 2.“De tão linda que era o seu pai a namorava” da versão D/44 Leite (1960) 56-5, que parece insinuar que o pai não tem culpa. Neste caso, a “infracção” às normas sociais e morais residirá apenas no facto de o enamorado ser o próprio pai, vindo o motivo “beleza” a entrar em conflito com o tabu do incesto e o seu axioma “os pais não se enamoram das filhas”, que anteriormente referimos. 731 São elas a D/18 Nunes (1928) 229-230 (como referido pelo editor), a D/56 Leite (1960) 77-80, a D/57 Leite (1960) 80-81, a D/68 Purcell (1968) 149 e também em Silvana, a S/26 Fontes (1983b) 101 (como referido pelo editor). 732 Outra opinião teve Joanne Purcell, que parece atribuí-lo a Silvana. A investigadora considerou a versão que leva a nossa numeração D/68 Purcell (1968) 149 como “Silvana/Delgadinha” e diz: “This refrain emphasizes Silvanas beauty as a motivation for the fathers incestuous desires. The emphasis on Silvanas beauty is characteristic of the Silvana ballad.” [….] . The refrain “oh és tão linda” of my Silvana / Delgadinha variant occurs in only two other published texts of Delgadinha (cf. Vasconcellos, 509, 510 from Nisa). [são as n/D/56 Leite (1960) 76-77 e D/57 Leite (1960) 80-81]. Cf. Joanne Burlingame Purcell [1968], Portuguese Traditional Ballads from California, Tese de Mestrado, Los Angeles, University of California, 1968. 733 Diz Ana Maria da Silva Machado, a propósito da mulher e da representação no Mal na hagiografia medieval, que “a formosura, que na conformação do herói-santo pode ser uma manifestação de santidade, é prevalentemente encarada como fonte de tentação, por vezes involuntária”. Cf. Machado [1993]. 389 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Por outro lado, se a beleza justifica o assédio, dá-se, simultaneamente e segundo o método de interpretação dos elementos narrativos postulado por Bengt Holbek que atrás referimos, uma externalização, com a hiperbolizada caracterização física de Delgadinha (é mais linda que o sol) a representar as suas qualidades morais 734 – sendo excepcionalmente bonita é excepcionalmente virtuosa e, por isso, recusa terminantemente um acto pecaminoso. Motivo: A mãe O motivo “mãe” 735 , é também partilhado por Silvana e por Delgadinha, mas assume aspectos e funções bem diferentes em ambos os romances. Silvana: - Micro-relato: A mãe troca de cama e de roupas com a filha para frustrar os intentos do pai. - Função no romance: Repor a ordem natural da família. Delgadinha: - Micro-relato: A mãe recusa dar água à filha que lha pede. - Função no romance: Associar-se ao poder. 734 Das regras de transformação de Bengt Holbek, aplicam-se, neste caso, a externalização (“Les qualités morales s’éxpriment sous forme d’attributs physiques ou par l’action”) e a hipérbole (L’intensité d’un sentiment est exprimée par l’exagération de ce que le suscite”). Cf. Holbek [1990], pp. 126-162. 735 O motivo “mãe” ocorre também nas versões do tipo A de Veneno de Moriana, nas quais a mãe é confidente da filha e a voz que a adverte do ludíbrio do cavaleiro; por outro lado, este, ao sentir-se morrer, lamenta a mãe, figura que, por sua vez, Moriana invoca como aquela que tinha esperanças no casamento. A mãe, como motivo/entidade tutelar, é ainda a personagem que, nas versões de Gerinaldo contaminadas com D. Pedro Pequenino, aconselha o pajem preso a cantar, para comover o rei à compaixão; nas contaminadas com Conde Ninho, a mãe é entidade nefasta, pois que manda matar os dois amantes. A questão das contaminações será tratada no capítulo seguinte. 390 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Em Silvana, a presença do motivo “mãe” é crucial para a intriga, na qual toma um papel importante, sem o qual a intriga própria do romance não se desenvolveria, pois, ao ouvir a filha queixar-se do assédio do pai, a mãe manda-a trocar de leito e de roupas: 9.“Se isso fora, ó Silvana para isso remédio havia: 10. Eu vou para a tua cama tu te vais deitar à minha.” S/7 Soromenho (1963) 55 11.“- Dá-me cá esse tê lenço, impresta-m' o tê vestido, 12. qu' ê quero ver esse velho, que te quer, que te queria.” S/10 Purcell (1976b) 17-18 A queixa à mãe, que equivale a uma fuga ao pai, bem como a alegação de que este quer casar com ela, aproximam o incidente de parte do ponto b) (“flees in disguise from father who wants to marry her”) de I. The Persecuted Heroine do ciclo conhecido como Cinderella736. O motivo é uma constante em Silvana e, para o desenrolar da intriga, é indiferente que a mãe esteja viva ou morta; a mãe ajudará a filha737, mesmo se, para isso, for preciso vir do outro mundo (motivo E323.2. Dead mother returns to aid persecuted daughter), como nas versões da Madeira, sendo a orfandade o factor a que Maria Aliete Galhoz atribui as razões da contaminação com Queixas de D. Urraca 738 , a que nos referiremos adiante: 13. “encontrou a sua mãe que vinha da outra vida,”, S/16 Ferré (1982) 207-208 A regra , porém, é que a mãe esteja bem viva, o que o pai, de resto, lamenta739: 4.“- Se a rainha já era morta, Silvana, tu eras minha”, S+D/20 Fontes (1983a) 121-123 736 Cf. Thompson [1987], pp. 175-178 e Cardigos [2006], p. 123. Declara-o mesmo ao marido, explicitamente: 12.“venh'aqui por Selivana que te queres namorar dela.”, S/20 Ferré (1982) 210-211. Pode, no entanto, haver a variante segundo a qual a mãe não ajuda a filha, em versões compósitas de Silvana e Delgadinha, questão que abordaremos no Capítulo seguinte. 738 Cf. GRPP, C. Nota pontual a dois romances mais raros, p. LVIX-LX. Há também versões de Silvana em Espanha nas quais a mãe está morta. Cf. Estévez [1981], no Tomo I, pp. . 404, 405, as versões S. 64: p. 574: mi madre que estaba muerta se me representa viva (Tenerife), La flor de la marañuela e S. 11.: p. 521 – Bajó su madre del cielo a consolar a su hija (Leon) – Inedito Arq. M. Pidal. 739 Embora se trate, no exemplo dado, de uma versão compósita de Silvana e Delgadinha. 737 391 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Com a atitude tomada pela mãe, não só esta ajuda Silvana a evitar o incesto como, no fundo, repõe a ordem natural das coisas – quem deve ocupar esse lugar e essa função é ela e não a filha. De facto, as palavras do próprio pai, na comparação que faz entre a mulher e a filha, favorecendo esta, sugerem uma substituição dos respectivos papéis: 3.“- Melhor me pareceis, D. Silvana, com vestido de cada dia, 4. do que vossa mãe, rainha, com quanto ouro havia.” S/24 Fontes (1983a) 121 Mais explícito, ainda, é o que Silvana diz á mãe: 9.“- Ó senhora, é el-rei, mê pai, que por sua esposa me queria.” S/33 Fontes (1996) 120-121 Associado ao motivo da mãe, ocorre o do “espelho” e que, embora não seja habitual no romance, surge em duas versões. Numa delas, o motivo intensifica o sentido do ardil materno ao falar com a filha, como se, de facto, o “espelho” lhes trocasse, ou mesmo confundisse totalmente, as respectivas identidades (a); noutra, a mãe fala ao marido, e o “espelho” reporta-se simultaneamente à filha (ele “viu” a imagem da filha na mulher) e à relação entre eles próprios (ela reflecte a honra dele). 12.“Veste tu os meus vestidos que eu os teus vestiria, 13. assoma-te ao meu espelho que eu ao teu me assomaria. 14. deita-te na minha cama que eu na tua me deitaria” S+D/7 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 40-45 14.”[………………….] – Silvana não está perdida 15.pois quem tu tens em teus braços é o espelho onde te vias.” S+D/6 Pires (1902)/Pires (1982) 14-15 392 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Na verdade, parece haver uma inversão do motivo H363.1. (“Bride test: wearing deceased wife’s clothes”)740, pois no romance não é a filha que veste a roupa da mãe. Neste caso, havendo uma troca que é simbólica, esta toma a forma de um ardil. Em Silvana, as roupas são um motivo de grande importância na revelação do seu sentido, não só nesta troca de vestuário que faz confundir a identidade de mãe e filha como também porque, anteriormente, esta última faz o pai crer que anui à sua solicitação incestuosa, dizendo: 4.”Vou lavar minhas carnes, vestir minhas alvas camisas,” S/17 Ferré (1982) 208 Ora, segundo Helder Macedo, embora reportando-se às cantigas de amigo, a “alva”, palavra usada nas cantigas de amigo em vários sentidos, define uma identidade entre a água que lava a roupa e a “virgem”, que é branca e pura. Por sua vez, o contacto da “ camisa” com o corpo nu, “acentua o seu valor mágico de substituição metonímica de quem as usa, que aliás está na base de todos os feiticismos”. Quanto ao “banho” é “um ritual simbólico da expectativa núbil, cujo significado profundo se relaciona com a arquetipal associação entre a água e a sensualidade feminina”741. Também Silvana parece, com aquela declaração, ir preparar-se para umas, ainda que anti-naturais, núpcias, fazendo esperar o pai, à semelhança do poema abaixo: “Tate, tate, caballero, // dejá el amor para manãna: // lavaré mi lindo cuerpo, // me pondré naguita blanca”, [Manuel Alvar (1966), Poesía tradicional de los judíos españoles, México]742 A mãe, em Silvana, de facto, não hesita em pôr em causa o Poder do marido, enquanto chefe de família, mas, de facto, o que está a fazer é a salvaguardar a sua posição nela, o que implica que, no fundo, embora paradoxalmente, está a proteger a 740 Já referimos a condicionante de ser a mulher do rei, antes de morrer, a fazer-lhe prometer que só casaria com outra mulher que a suplantasse em beleza e/ou a quem servisse algum adorno seu; sendo esta a própria filha, o pai tem de casar com ela. 741 Helder Macedo [1996], “Uma Cantiga de Dom Dinis”, em Reckert, Macedo [1996], pp. 61-70. 742 Stephen Reckert, comentários de, “Cinquenta Cantigas de Amigo”, em Reckert, Macedo [1996], pp. 73-248. 393 A REVELAÇÃO DO SENTIDO instituição Família. É este, afinal, o sentido e a função do motivo neste romance, enquanto em Delgadinha o seu papel é, dir-se-á, de sinal contrário. No caso deste romance, a mãe não desempenha função muito diferente da dos outros membros da família a quem a jovem implora água, a não ser pela intensificação dramática implícita que decorre da negação do que se espera da sua condição de mãe, i.e., auxiliar a filha. Na verdade, ela associar-se-á sempre ao marido, negando a água à filha, mesmo que lhe lamente a sorte. O problema, neste caso, é que esta mãe opõe o papel maternal ao conjugal, por sentir a sua situação ameaçada, talvez com mais premência do que a de Silvana. No argumento de “estar mal casada” que dá para não auxiliar a filha, está implícito o seu conhecimento de que esta a substitui no seu papel, o que não pode permitir. É certamente o ciúme desnaturado que move esta mãe que, na sequência seguinte da versão, assim responde à filha: 33.“- Vai-te daqui, ó maldita, vai-te daqui, ‘maldiçoada, 34. por amor de ti, maldita, passo eu tão mal casada.” D/6 Nunes (1900-1901) 171-173 Na verdade, a posição da mãe dentro da hierarquia doméstica é aceite sem reservas por Delgadinha; embora não seja uma constante de todas as versões do romance, um dos argumentos invocados pela protagonista para se recusar a ceder ao pai é, precisamente, não prejudicar a mãe, o que vem a ser o mesmo que defender o papel desta: 4.“- Eu não, senhor pai, que faço a mãe mal casada”, D/45 Leite (1960) 57-58 Neste romance, a “mãe”, enquanto motivo, salvaguarda o seu papel e também a organização familiar, através da associação ao seu chefe, mesmo que isso implique sacrificar a filha. Dir-se-á que o motivo “mãe”, em Delgadinha, é um caso de “resistência passiva” à ameaça a determinada estrutura social, representada pela própria filha. Note-se que há variantes do romance em que a mãe toma um papel activo logo de 394 A REVELAÇÃO DO SENTIDO início, quando é ela que manda encerrar a filha, por causa da acusação do pai de que esta a persegue: 3.“Sabes lá, ó mulher minha, o que vai na nossa casa! 4. Nossa filha Dalgadinha pol'amores me tratava! 5. Diz-me lá; mulher minha, degredo le vamos dar. 6. - Manda-se pôr numa ventana, numa ventana bem alta, 7. Dá-se-1'água por medida, sardinhas a mais salgada.” D/58 Leite (1960) 81-82 Nestas versões, a mãe acredita no pai sem reservas ou estranheza e chega a culpar a filha do sucedido, ou seja, de esta querer subverter a ordem natural das coisas: 40. “O que tu precisavas era ser degolada, 41. Pois t'of'receste a teu pai para sua namorada.” D/51 Leite (1960) 68-69 Estas versões vêm corroborar o contraste já estabelecido com Silvana, a quem a mãe pergunta à filha o que se passa e actua de acordo com o que dela é esperado, enquanto a de Delgadinha, simplesmente, aceita de imediato a palavra do marido. 3.4. DELGADINHA Motivo: Dar a mão. - Micro-relato: O pai pede à filha que lhe dê a mão direita. - Função no romance: Reforçar o carácter simultaneamente ilícito e dúbio da relação proposta. A relação incestuosa geralmente traduzida pela expressão “queres ser a minha amada/namorada” pode apresentar uma variação ainda mais eufemizada, a do motivo “dar a mão [direita]”, podendo as duas modalidades ser conjugadas (a negrito): 1.“O conde das três Marias tinha três filhas lindas como o sol. 2. Faustina, como mais velha, de todas mais engraçada, 3. A que seu pai pretendia para sua namorada. 395 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 4. Pediu-lhe a sua mão direita, ela disse que não lha dava.” D/32 Leite (1960) 44-45 Se o sentido da primeira é óbvio, já a segunda coloca um problema adicional no contexto do romance. De facto, “dar a mão direita” é o mesmo que casar743, o que é uma impossibilidade moral e legal entre pai e filha744, o que tornaria dúbia a utilização deste motivo no romance, não fosse, como atrás se disse, este pseudo-casamento equivaler à substituição da mãe pela filha. Em Silvana, esta proposta é para uma relação ocasional, que se traduz por expressões do tipo: “[brincar] uma noite/um dia/uma hora” ou como na S/9 Purcell (1976a) 166-167: “- Bem puderas tu, Silvana, seres minha sequer um dia.”. Em Delgadinha, pelo contrário, há uma paridade do traço “situação persistente no tempo” com “ser namorada” ou casar, que indica uma substituição permanente, com a consequente desordem familiar a tornar-se maior e a tender para uma desordem já do tipo social. Para esta filha, também os dois estatutos, ser “namorada” e ser “mulher” equivalem-se no horror que lhe causam: 3.“- Delgadinha, Delgadinha, serás minha namorada. 4. - Isso não, ó meu pai, é coisa que Deus não quer, 5. Pois eu sou a sua filha, não sou a sua mulher.” D/43 Leite (1960) 56 No final, Delgadinha toma consciência de que o pai não lhe dará água se não ceder; para a obter, a rapariga promete tudo745, seja “esposa ou “namorada” ou qualquer 743 Sobre o sentido das mãos, esquerda ou direita, cf. o capítulo Tempo 5 … E as Mãos, pp. 169-200, em Ana Paula Guimarães [1992], Olhos, Coração e Mãos no Cancioneiro Popular Português, Lisboa, Círculo de Leitores, 1992. 744 Sobre os vários tipos do tabu do incesto, cf. Joaquim Lino da Silva [1988], “Uma Nota de Etnologia Genética: As Duas Linearidades”, Revista Lusitana. Nova Série, 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 47-66; Joaquim Lino da Silva [1997], “ Achegas para o Estudo das Duas Linearidades”, Revista Lusitana. Nova Série, 16, Lisboa, Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro, 1997, pp. 55-72; Joaquim Lino da Silva [1998], “Algumas Considerações sobre o Tabu do Incesto”, Revista Lusitana. Nova Série, 17-18, Lisboa, Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro, 1998, pp. 119-146. 745 Nas versões com elipse desta resolução, o sentido é de que a rapariga resiste até ao fim sem a promessa de cedência. 396 A REVELAÇÃO DO SENTIDO das situações (a) e, em certas versões (b), o motivo reaparece (“dar a mão direita”, “dar a mão esquerda”, expressão equivalente a ter um amante746 ): (a): “[37.- Ó querido pai dest'alma, dai-me uma gotinha d'água 38.Que se me aparta a vida e se me arranca a alma,] 39.Que eu serei a sua esposa mai-la sua namorada.” S+D/23 Cortes-Rodrigues (1987) 346-348 (b): “[37.- Deus vos guarde, ó Faustina, minha filha malfadada, 38.eu pedi-te a mão direita, tu não ma quiseste dar.] 39. - Aqui tem a mão direita, a esquerda se a quiser!” D/1 Braga (1867) 181-183 Motivo: O castigo. - Micro-relato: Um pai encerra a filha, durante um grande espaço de tempo, dandolhe apenas alimentos salgados e um mínimo de água. - Função no romance: Sublinhar o poder do pai e fazer ceder a filha. O motivo do castigo aplicado a Delgadinha por se negar a manter com o pai uma relação incestuosa consta de uma conjunção de outros elementos e motivos. O sentido mais imediato do primeiro elemento significante do motivo “castigo”, que se traduz por “encerrar a filha [numa torre ou outro local]” é, logicamente, o da privação física de liberdade747, o que lhe confere a função primordial de sublinhar o Poder do pai sobre a família; este exerce-se não só sobre o membro infractor (a filha que 746 Se a mão direita tem um valor positivo, a mão esquerda tem um valor negativo (Ver Guimarães [1992], pp. 169-200); por isso, por contraste, sendo a direita a que se “dá” no casamento legítimo, “dar a mão esquerda” significa a ilicitude de entregar-se a um amante. 747 O motivo “castigo” ocorre igualmente em Bernal Francês e em Gerinaldo; no primeiro, trata-se não de privação de liberdade para a adúltera, mas da sua morte; no segundo romance, é variável – ou o castigo tem o sentido mais literal (o pajem é preso) ou pode traduzir-se pelo casamento ordenado pelo rei. Em Veneno de Moriana também está implícito um castigo, que é a morte do cavaleiro porque faltou ao compromisso do casamento; quanto à protagonista, só em alguns Prolongamentos, se dirá que vai para a prisão. Já em Silvana, há um castigo, sim, mas para o pai e é um castigo moral, que se manifesta na humilhação de ser desmascarado pela própria mulher. Ainda em Delgadinha, o castigo do pai (e outros membros da família) ocorrerá em Prolongamento e é de ordem moral, com carácter divino – o castigo é ir (irem) para o Inferno. 397 A REVELAÇÃO DO SENTIDO se nega a obedecer-lhe) como também sobre todos os outros, como é patente nas razões apresentadas por estes para não socorrer Delgadinha. Todavia, o motivo integra, muitas vezes, a explicitação da sua duração e do tipo de alimentação que deverá ser ministrada a Delgadinha, circunstâncias que lhe imprimem implicações mais complexas, que levam à questão de se tratar de um castigo ou de um meio de a fazer ceder à sua vontade. As versões, por vezes, explicitam que se trata de um “castigo”: 8.“Alevantou-se sê pai da cama, à Silvana’à dar castigo 9. E meteu-a nema torre, às sete tchaves fetchada, 10. Aonde comia por onças e bebia por medidas, 11. Só sardinha salgada e a rodes canto queria.” D/60 Buescu (1961) 213-214 A duração do castigo é longa, de sete anos (havendo variações), e determinada pelo pai assim que ela se nega, pelo que se assemelha a uma pena de prisão ditada em tribunal: 1.“Hei-de fazer ua torre, tão alta cum' ua ... 2. Pra meter Faustina dentro sete anos e um dia.” D/71 Pereira (1970) 246-247 Não é explicitado, no romance, o que pretende o pai fazer com ela após o cumprimento de tal pena, mas o número sete 748 indica uma transformação, uma mudança depois de um ciclo749, pelo que Delgadinha deveria ser libertada após esses “sete anos”. Aos sete anos junta-se um dia, que alonga a pena e serve a acentuar a crueldade do encerramento, por exclusiva vontade do pai. Como não o chega a ser, o tão longo espaço de tempo de encerramento que é anunciado logo de início parece, então, destinar-se mais a aterrá-la e fazê-la mudar de ideias do que simplesmente a punir-lhe a desobediência. Por isso, a comprovação de não se tratar de um simples (ainda que cruel) 748 O número sete é, segundo Trindade Coelho, “muito do agrado popular” e simbolicamente plurissignificativo. Cf. Coelho [1993], p. 17. 749 “[N]os contos e nas lendas, este número exprime os Sete estados da matéria, os Sete graus da consciência, as sete etapas da evolução” e “[A] cada sete anos os servidores são libertados e os devedores perdoados”. Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 603-606. 398 A REVELAÇÃO DO SENTIDO castigo está no facto de o prazo do encerramento ter sido determinado mas não respeitado, como deveria acontecer, se aquele correspondesse a uma pena de prisão. É certo que a outra parte do castigo consta de impor a Delgadinha alimentos salgados e que lhe seja dada pouca água ou insalubre, o que leva a crer que o objectivo do pai é castigar a filha: 10. “Inda para mais castigo nem um copo d'água lhe dava !”, D/32 Leite (1960) 44-45 Em algumas versões, parece mesmo que o faz de forma a provocar-lhe a morte: 11.“Mando-te fazer uma torre no alto à maravilha 12. para meter-te, Silvana, Silvaninha, algum dia! 13.A dar-te pão por onças e água por medida 14. e uma sardinha salgada p'ra te tirar a vida.” D/9 Tavares (1906) 280-281 Todavia, os alimentos são quase sempre administrados, sejam eles muito salgados ou de natureza repugnante (8.“a carne era maur [sic] cebada”, D/13 Basto (1914) 59-60) e, ainda, não comestíveis (8. “dava-lhe pedras por pão”, D/2 Azevedo (1873) 767) ou em pequena quantidade (6.“um quarto de pão por dia”, D/3 Azevedo (1880) 109-112), embora apareçam versões em que a comida é dada em quantidade, mas sempre excessivamente salgada: 8.“Bacalhau aos quintais, sardinha, quanta havia.”, D/35 Leite (1960) 48 4.”A comida que le dava era comida salgada,” D/224 Cruz (1995) 217 A pouca água que lhe dão, por sua vez, é deliberadamente insalubre: 7.“y, si os pide de beber, dadle la hiel de retama.”, D/5 Pires (1885d) XII 8.“o que lhe dava a beber, a água em que se lavava.”, D/7 Pires (1901)/Pires (1982) 168 6.“a bubida que le dava era água de pescada.”, D/10 Tavares (1906) 303-304 8.“a bobida que le mandava era água d' azeda clara.”, D/17 Martins (1928)/Martins (1987) 221-222 9.“A água que bebia era do mar mais amargo.”, D/219 Cruz (1995) 212-213 A morte infligida por privação de alimentos será mais cruel se estes não forem 399 A REVELAÇÃO DO SENTIDO retirados por completo, de modo a retardar intencionalmente aquele fim, representando uma tortura adicional750. Todos exemplos atrás servem para indiciar a vontade não de a matar Delgadinha à fome, mas de a torturar, sobretudo pela sede, finalidade que, muitas vezes, é explícita: 9.“À fome não morria, mas à sede estava a findar;”, D/44 Leite (1960) 56-57 A sede é, na verdade, o que mais atormenta Delgadinha e o que ela implora, sempre, à família, revelando, deste modo, a sua debilidade física, mas, sobretudo, o seu estado emocional: 16. “- Deus vos salve, ó minhas manas, para que sejais bem criadas, 17. mandai-me dar de beber pela hóstia que é sagrada 18. que ou de fome, ou de sede, está-se-me apartando a alma.” D/6 Nunes (1900-1901) 171-173 21.“- Ó madre que Deus me deu, dá-me uma pinguinha d' água; 22. a sede me trespassa a vida, o coração e a alma.” D/8 Pires (1903-1905) 216 Torna-se, assim, o meio mais eficaz de fazer vergar a jovem aos desejos do pai, como ela própria reconhece: 29.“- Ó meu pai, que Deus me deu, dai-me uma pinguinha d' água, 30. que daqui para o futuro serei sua namorada!” D/9 Tavares (1906) 280-281 A conjugação dos aspectos do tormento infligido - inacessibilidade do local de encerramento, insistência no sal dos alimentos e escassez da água 751 - perde então o 750 Considerando este facto como um “motivo” que se manifesta em outros discursos significantes, encontramo-lo numa lenda urbana aparentada, cremos, com Delgadinha, a que nos referiremos no Capítulo seguinte, a propósito das prosificações. 751 Pode haver uma total privação, embora apenas quando o prazo não se mede por anos mas por dias, presumindo-se que algum tempo sem comer nem beber não mataria a jovem: 3.“O papá quando ouviu isto numa torre a pôs fechada, 4. p'ra lá estar sete dias sem comer nem beber nada.” D/12 Gomes Pereira (1910) 98 400 A REVELAÇÃO DO SENTIDO sentido de mero castigo e toma o carácter de uma estratégia paterna para fazer ceder a jovem ao desejo incestuoso. A água que lhe é fornecida faz parte do motivo “castigo”, por ser pouca e insalubre, adquire, no romance, uma dimensão mais significativa do que os alimentos, pelo seu sentido simbólico. Uma vez que se trata de uma água imprópria, vai desde logo levar a uma associação de sentido com a que lhe é posteriormente enviada pelo pai, logo que Delgadinha declara que está disposta a cometer o incesto: 27.“- Vai Carlos a toda a pressa buscar água a Baldebina; 28. trá-la num cálice dourado, num copo de prata fina.” D/14 Lima (1914) 294-295 Se bem que esta água seja, agora, limpa e enviada em recipientes “nobres” (ouro ou prata), ela é, metaforicamente, uma água inquinada pelas más intenções do pai . Deste modo, no romance, o motivo da “água” é dotado de duas dimensões de sentido. Tanto a água que é dada durante o encerramento como a que é enviada pelo pai, está associada à materialidade, ao corpo, com um sentido implícito de ligação ao Mal, visto que a primeira é “suja” pelas suas características insalubres, e a segunda, embora “limpa”, é também “suja” porque, a ser recebida por Delgadinha, concretizaria a sua degradação. De sinal contrário é outro sentido do motivo “água” – o da que a jovem, à sua morte, tem à cabeceira. Nas versões, raramente se elide a morte de Delgadinha, mesmo que narrada pelo implícito de a água não ser já precisa (29. “Quando o Barcelos correu já iauga nu' era precisa.”, D/13 Basto (1914) 59-60). E não o é, em primeiro lugar, Note-se que a substituição de anos por alguns dias se dá, preferencialmente, nas versões em que Delgadinha é requestada por alguém que não o pai, embora não como regra. Assim acontece na versão acima e também em outras, como a D/15 Lima (1916) 43-44 (7.“Esteve lá oito dias sem comer nem beber nada”), a D/16 Landolt (1917) 83-84 (5.“Oito dias, oito noites, sem comer nem beber nada”) ou a D/22 Joaquim Lima/Pires Lima (1943) 26-27 (5.“Assim esteve oito dias e oito noites, sem comer nem beber nada.”). Já nos referimos atrás à obra A freira no convento, na qual a protagonista, Bárbara Ubryk, para não casar com o indesejado Zolpki, é enviada pela família para um convento, onde é sujeita às maiores atrocidades e encerrada na escuridão do In pace, apenas lhe sendo dada o pão e a água suficientes para não morrer. 401 A REVELAÇÃO DO SENTIDO pela razão bem prosaica de já não fazer a rapariga voltar à vida; no entanto, também não é precisa porque, junto dela, está a água clara e pura, que está associada à espiritualidade752, o que comportará um sentido implícito de ligação ao Bem. 21.“era ao fim de sete anos, Aldina já morta estava, 22.com uma fonte à cabeceira que Deus do céu lhe mandara.” D/99 Ferré (1982) 219-220 A sua aparição junto da jovem, que é um facto miraculoso, não tem como função fazer o milagre de salvar a vida de Delgadinha, visto que ela morre, mas não por falta de água, como chega a ser bastante explícito (27.”Baldininha se morreu, não morreu por falta de água.”, D/254 Caufriez (1998) 206-207), mas metaforiza a honra que reside na preservação da virgindade, assim representando a salvação, não do corpo, mas da sua alma, pois evita-lhe que cometa o pecado do incesto. Por isso mesmo, esta água facilmente coexiste com a presença junto da morta de diversas entidades celestiais, ou é comutada com estas. O cenário final que enquadra a morte de Delgadinha sofre variações quanto aos elementos que a rodeiam, mas estes equivalem-se em termos de sentido, uma vez que qualquer um deles pertence ao domínio do sagrado, seja de contornos pagãos, no caso da água, sejam eles cristianizados, no caso dos anjos, de Nossa Senhora ou de diversos santos. Vejam-se os dois exemplos seguintes; no primeiro, o motivo da “fonte”, explicitamente referida como sagrada, tem o mesmo sentido do segundo exemplo, que integra Nossa Senhora: 29.“Encontraram-na morta ao pé duma fonte sagrada.” D/44 Leite (1960) 56-57 29.“Nossa Senhora a levou p'ra o pé duma fonte de prata. 30. Duas fontes a correr, um tanque grande cheio d'água.” D/55 Leite (1960) 76-77 752 Cf. Estevez [1978], pp. 551-579. 402 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A simbiose dos elementos sagrados pagão/cristão torna-se evidente: 33.“Aldininha não quer água, Aldininha já está morta; 34. os anjos à volta dela um rego d'água à volta. 35. Aldininha não quer água, ela tem-na à cabeceira, 36. que lha mandou Deus do Céu num jarro de vidraceira.” D/73 Alberto Correia/António Nunes (1978a) 329-330 O motivo a que chamamos genericamente “castigo”, como vimos, conjuga dois aspectos – o do castigo propriamente dito, no sentido em que este é uma pena aplicada à filha desobediente, e o de estratégia, no sentido em que a privação de água, a administração de alimentos salgados e o encerramento são os meios férreos que o pai tem ao seu dispor para a obrigar a ceder à sua vontade. Ademais, em certas versões, a falta de luz junta-se ao tormento imposto: 5.“Mandou fazer uma torre das mais altas que havia, 6. para meter Sulivana sete anos e um dia, 7. aonde não visse ninguém nem tão-pouco a luz ao dia.” D/141 Ferré (1987) 76-77 Estas circunstâncias - a escassez e insalubridade da alimentação dada à jovem e o isolamento a que é sujeita, que a afasta de qualquer pessoa -, representam por parte do pai a negação de um destino dito normal à filha, que se traduziria pela possibilidade do casamento 753 , tanto mais que o “sal” dos alimentos condena Delgadinha, implicitamente, à esterilidade754, como está implícito na expressão “secar a vida”: 753 Este sentido do castigo agrava-se nas versões que levam a crer que Delgadinha é aprisionada por ter sido requestada por um namorado”, ao acrescer ao motivo uma insinuação de ciúmes do pai, pois, nestes casos, traduzir-se-ia por “se não és para mim também não serás de outro”. 754 O sal opõe-se à fertilidade de uma vida normal. Salga-se a terra para a tornar estéril e isso acontece como punição, como no caso das sentenças aplicadas aos acusados de tentativa de assassínio de D. José, em 13 de Janeiro de 1759, no que ficou conhecido pelo Processo dos Távoras. Além das penas sobre as suas pessoas, foram as armas picadas de onde se encontrassem e as casas arrasadas e salgadas para que nunca mais nada aí crescesse. Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, D. José, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006, p. 125. Assim aconteceu à casa que o 8º Duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas da Silva e Lencastre, possuía em Belém, tendo sido erigido, no local que hoje leva o nome “Beco do Chão Salgado”, um padrão com a seguinte inscrição: "AQUI FORAO AS CASAS ARAZADAS E SALGADAS DE JOZE MASCARENHAS EX AUTHORADO DAS HONRAS DE DUQUE DE AVEIRO E OUTRAS E CONDEMNADO 403 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 6.“só lhe dava pão por onça e a água por medida, 7. bacalhau às arrobas para lhe secar a vida;” D/8 Pires (1903-1905) 216 3.5. GERINALDO Motivo: Ocultação da identidade. - Micro-relato: A infanta diz ao pajem o que deve fazer, quando ele for ao seu quarto. - Função no romance: Estabelecer o secretismo do encontro. Após obter o assentimento do pajem à proposta de com ela dormir, a infanta marca a hora do encontro. O sentido do micro-relato é, até, bastante explícito e a hora marcada, por si só, sendo combinada entre uma qualquer mulher e um qualquer homem, estaria desprovida de sentido oculto, não fosse, desde logo, ser tão tardia: 5.“- Vem pela meia-noute em pino, que está el-rei meu pai a dormir.” G/11 Dâmaso (1882) 235-236 Além disso, a infanta trata também de lhe dar indicações precisas sobre o que háde fazer: 7.“Trazes sapatos de lona para não seres sentido; 8. trazes capote de vulto para não seres conhecido.” G/79 Ferré (1982) 245-246 Deve o pajem, então, ir a coberto da noite, quando o rei estiver a dormir e embuçado e calçado de modo a não ser reconhecido ou ouvido, o que constitui o motivo da “ocultação de identidade”. A combinação dos seus elementos constitutivos revela, logo no início do romance, a ilicitude desses amores; o facto de referir o pai e não o POR SENTENÇA PROFERIDA NA SUPREMA JUNTA DA INCONFIDENCIA EM 12 DE JANEIRO DE 1758 JUSTIÇADO COMO HUM DOS CHEFES DO BARBARO E EXECRANDO DESACATO QUE NA NOITE DE 3 DE SETEMBRO DE 1758 SE HAVIA COMMULADO CONTRA A REAL E SAGRADA PESSOA DE EL REI NOSSO SENHOR D. JOZE. NESTE TERRENO INFAME SENÃO PODERA EDIFICAR EM TEMPO ALGUM.". Cf. s.a., Padrão do Chão Salgado, disponível na Internet http://historiaaberta.com.sapo.pt/lib/loc007.htm, arquivo acedido em 20 de Junho de 2011. 404 em A REVELAÇÃO DO SENTIDO marido faz perceber que não se trata de uma mulher casada, caso em que referiria este como aquele que, mais que todos, deve ignorar o que se passa755, mas de uma jovem solteira, para mais filha de rei. Os amores ilícitos usam ser discretos e esses encontros combinados às escondidas de todos e a coberto da escuridão, por isso, há que tomar precauções para não ser visto; por outo lado, e porque a escuridão é traiçoeira, como vimos em Bernal Francês, é preciso fazer-se reconhecer e combinam-se certas senhas, tal como, também, em Gil Vicente. Veja-se o diálogo entre a Ama e o Castelhano, em Índia, 1519: “Castelhano A qué hora me mandáis? Ama Às nove horas e nô mais e tirai ũa pedrinha pedra muito pequenina à janela dos quintais.”756 Na Floresta de Enganos, 1536, diz a Moça ao Doutor: “Ide antre as nove e as dez assoviais vós bem meu rei ou tossi tamalavez que logo vos entenderei.”757 Em Gerinaldo, percebe-se que o pajem não é o requestador, ou que este é menos experiente ou expedito, pois que é ela quem lhe dá as instruções. No entanto, se lhe recomenda discrição, esquece-se, ao contrário do que acontece naquelas obras 755 Assim o fazem as mulheres adúlteras como em Frei João ou em Claralinda, que logo no início referem os maridos aos amantes ( “- Como te hei-de abrir a porta, meu Frei João da minha alma, // se tenho meu filho aos peitos e meu marido à ilharga”, vv. 2 e 3 da versão de Frei João, nr. 886 em RPTOM, pp. 108-109; “”Hoje sim, ó cavalheiro, hoje sim, amanhã não // meu marido não está cá foi para a feira d’Ascenção”, vv. 1 e 2 da versão de Claralinda, nr. 972 em RPTOM, p. 201). A protagonista de Bernal Francês também mencionará a ausência do marido, mas mais tarde na narrativa, como já referimos. 756 Cf. Camões [2002], Índia , Vol. II, pp. 171-186. 757 Cf. Camões [2002], Floresta d’Enganos, Vol. I, pp. 479-515. 405 A REVELAÇÃO DO SENTIDO vicentinas, de lhe dizer explicitamente como o há-de reconhecer. Por isso, quando o pajem não cumpre a hora marcada, a infanta é cautelosa e assegura-se da identidade de quem lhe ronda à porta: 6.“- Venha das dez para as onze quando el-rei já esteja dormindo. 7. Inda as dez não eram dadas, já Gineraldo era vindo. 8. Chega ao quarto da princesa deu um ai, deu um gemido, 9. E ela de lá respondeu: Quem será o atrevido?” G/173 Galhoz (1987) 413-414 É caso para dizer-se que a “ocultação de identidade” foi bem conseguida, o que, na verdade, é a sua função neste romance. O motivo como meio de engano, sendo comum a Bernal Francês e a Gerinaldo, não tem exactamente a mesma finalidade em ambos os romances. No primeiro, trata-se de um sentido de engano, com o marido a ocultar a própria identidade para vestir uma “máscara” ou disfarce de amante com o qual ludibriará a mulher, que o aceita nessa qualidade; no segundo, o motivo tem a função mais literal de estratégia de ocultação – não convém que o pajem seja reconhecido por ninguém. Este é um caso em que um motivo partilhado por dois romances adquire sentidos e funções diferentes. Motivo: O sonho do rei. - Micro-relato: O rei sonha que lhe roubam o castelo ou a filha. - Função no romance: Premonição. O romance tem, já referimos, duas variantes para o despertar do rei – ou este acorda naturalmente, ou porque teve um sonho. É esta modalidade que consideramos aqui como motivo 758 , pela sua função indicial que ultrapassa a função narrativa da primeira: 758 O motivo “sonho” ocorre igualmente em Bernal Francês, mas, mais uma vez, trata-se de um sentido diferente para o mesmo motivo - neste romance, o sonho não passa de uma alegação da mulher, 406 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 10.“El-rei sonhara um sonho que bem certo lhe saíra; 11. Que lhe dormem co'a infanta ou lhe roubam o castilho.” G/31 Leite (1958) 302 A grande diversidade de sonhos foi dividida, pelas investigações psicanalíticas, etnológicas e parapsicológicas, em certo número de categorias – o sonho profético ou didáctico, o iniciático, o telepático, o visionário, o pressentimento e o mitológico 759 - e a sua interpretação tem suscitado inúmeras obras760. Jacques Le Goff refere a divisão dos sonhos premonitórios, dentro dos quais geralmente se inclui o do rei em Gerinaldo, em três categorias: oneiros (somnium) ou sonho enigmático, o horama (visio), ou visão clara, e o chrematismos (oraculum), ou sonho enigmático enviado por divindade. Nas versões do romance, o motivo “sonho” é especificado em duas hipóteses – o rei ou sonha que “lhe dormem” com a filha ou que lhe “roubam” o castelo, ambos os casos bem de molde a fazê-lo acordar e levantar-se. De facto, o rei tem boas razões para temer as duas, que se equivalem no sentido - quando o rei acorda, já o pajem havia, eufemisticamente, “assaltado” a sua propriedade, na pessoa da filha; assim, a natureza da segunda hipótese (roubarem-lhe o castelo) é, afinal, uma metáfora da honra da filha e, consequentemente, da sua própria honra. O sonho do rei pertencerá à categoria visio, uma vez que constitui uma visão clara do acontecido com a filha, mas poderá ser também considerado “enigmático” (somnium), pelo sentido simbólico que representa o “roubo” do “castelo”. Motivo: A espada. - Micro-relato: O rei coloca a espada entre a filha e o pajem adormecidos. - Função no romance: Sublinhar o poder do rei. confrontada com a identidade do marido, para se livrar de apuros; não se trata de um verdadeiro sonho, mas de uma manobra, pelo que a função do motivo é, naquele romance, meramente a de servir como engano. 759 Cf. entrada “Sonho”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 616-621. 760 Cf. Le Goff [1994], p. 291. 407 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Ao encontrar a filha e o pajem adormecidos, o rei confronta-se com o dilema de matar um ou outro, mas resolve-se a colocar a espada entre os dois amantes; o motivo “espada” é um símbolo do seu poder, paternal e real e um aviso para os dois: 15.“Achou-os braça com braça, como mulher com marido! 16. Deitou as mãos à cabeça: - Ai de mim, que estou perdido! 17. Para matar Gerinaldo, criei-o de pequenino; 18 Para matar a infanta, fica o meu reino perdido. 19. Meteu-lh’a espada no meio, como sinal de castigo.” G/32 Leite (1958) 302-303 Esta arma é emblema real que está associado ao poder, no seu duplo aspecto: o destrutivo, que pode tornar-se de sinal positivo ao destruir a “injustiça, a maledicência e a ignorância” e o construtivo, ao estabelecer a paz e a Justiça761. Repare-se como o motivo “espada” ocorre em Bernal Francês. O seu som ouve-se no início (2.“espadas ouvira tocar, espadas ouvira tenir.”, BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 428-429), o que sugere que o seu portador é homem de armas, mas o motivo apresenta-se sobretudo no seu aspecto destrutivo, visto que indicia a morte, a qual se concretiza por este meio ( 15-16. “Ó minha espada d'ouro, bordadinha ò culher, // Hoje mesmo bais a servir, pra matar minha mulher.”, BF/96 Galhoz (1987) 281-282). Também em Delgadinha está presente o motivo “espada”, com o mesmo sentido duplo, Poder/Morte. A “espada de ouro” com que o pai joga 762 remete para o poder, não só da sua condição social, como de “jogar” com a vida da rapariga: 23.“avistou o seu pai rei, com espadas d' ouro jogava.”, D/18 Nunes (1928) 229-230; Por outro lado, a espada é o instrumento sagrado pelo qual se jura, mas também o instrumento que se teme, pois 761 Cf. entrada “Espada”, em Chevalier, Gheerbrant [1994], pp. 299-300. Também os irmãos jogam à espada, uma actividade guerreira, que aqui é lúdica e revela o estatuto e o poder dos “jogadores”: 762 11.“Delgadinha com a sede subiu-se a outra bentana, 12. vira andar os seus irmãos na praça jogando espada.” D/20 Martins (1938)/Martins (1987) 46-48 408 A REVELAÇÃO DO SENTIDO serve para matar (23.“o nosso pai nos jurou pelos copos da sua espada, // 24. que quem desse água à Faustina, sua cabeça é cortada.”, D/1 Braga (1867) 181-183). Em Gerinaldo, o rei não mata os infractores, como implicitamente é seu direito, mas, uma vez que “sabe”, pois inteirou-se da infracção, faz saber que “pode” exercer o “fazer”, mas que, por enquanto, não “quer”. Versões há em que o rei, muito explicitamente, o declara quando o pajem entende que merece a morte: 26.“- Dê-me a morte, ó meu bom rei, que bem vos -la hei merecido. 27. - Se te quisera matar, já agora não eras vivo.” G/37 Leite (1958) 307-308 O acto de colocar a espada entre os dois amantes é simbólico (ou outra arma com a mesma dimensão simbólica), mas também o é o modo como o rei a dispõe. Embora mantendo os argumentos habituais para não os matar (ao pajem, porque o criou e lhe tem amor e, à filha, porque fica o reino perdido), revelam-se os sentimentos que nutre por ambos, numa pequena variação, mais de forma que de sentido: - O rei deixa a arma (no caso o “punhal”) entre os dois com a preocupação de o fazer de modo que nenhum deles fique ferido, o que sugere que têm para ele a mesma importância: 16.“- Eu para matar Girinaldo, criei-o de pequenino 17. e para matar a princesa, fica o meu reino perdido. 18. Aqui fica o meu punhal entre os dois fica metido, 19. [………………………] sem nenhum ficar ferido.” G/45 Pombinho (1958) 123-125 - O rei deixa o bico do punhal virado para Gerinaldo: 17.“Eu se mato Gerinaldo, criei-o de pequenino, 18.e se mato a minha filha tenho o meu reino perdido. 19.E lançou as mãos atrás a um punhal que trazia, 20.voltou os copos p'r'à filha e o bico para Gerinaldo.” G/14 Pires (1899)/Pires (1982) 93-94 409 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Ao fazê-lo, subentende que o Poder caberá à infanta (é pelo punho que se toma a espada, símbolo do poder); por isso, e porque é ela a herdeira, o rei não pode matá-la, razão pela qual não expõe a filha à parte cortante do punhal. Já para Gerinaldo fica virado o bico, a parte que “mata”, o que revela, com maior acuidade, a possibilidade desse castigo que, a aplicar, seria ao pajem, menos importante para a salvaguarda do reino. Revela-se, então, que o sentido de Estado sobreleva-se ao amor paternal que pudesse ter a Gerinaldo e que a infanta tem mais importância como herdeira do que como filha. Cada uma de sua maneira, afinal, as opções da colocação da “espada” correspondem aos argumentos invocados pelo rei. Motivo: As desculpas. - Micro-relato: O pajem justifica a sua atitude sobressaltada ao rei. - Função no romance: Confirmação da relação sexual. Em si, as desculpas que o Gerinaldo dá ao rei que, já sabedor do que se passou, o interroga, não são propriamente um motivo 763 mas uma prova de esperteza que este deve ultrapassar. Assim, à primeira vista, as alegações apresentadas aparentam ser actividades próprias da sua condição e ele dirá que se ocupava em fazer o serviço do rei: 31.“- Em selar os vossos cavalos, em fazer os vossos serviços.” G/45 Pombinho (1958) 123-125 Em versão de Orense, diz Gerinaldo: “veño de cortar as rosas e de rondar o 764 castillo” , a segunda parte a ser uma obrigação militar, tal como nesta: 763 A serem as desculpas, por si só, um motivo, deveriam também sê-lo as justificações que a família de Delgadinha invoca para não lhe dar água, ou as de Silvana para se afastar do pai e poder atrair a atenção da mãe, mas estas constituem, na verdade, uma micro-narrativa sem sentidos implícitos, pelo que optamos por as considerar susceptíveis de serem indexadas como motivos, mas não de terem um sentido mais profundo. 764 Cf. Catalán, Cid [1975, 1976], Vol. VI, p. 99. 410 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 20.”- Venho de ver os soldados, que ainda não tinha bido.” G/194 Armistead/Fontes (1998) 103-104 e 308 No entanto, cada uma das desculpas dadas constitui um motivo, pois o seu sentido ultrapassa tão prosaicas ocupações, que podem ser resumidas em três actividades básicas - tratar dos cavalos, tratar do jardim, caçar - e que ocorrem isoladamente ou conjugadas, como na seguinte versão: 28.“- Venho de dar água aos cavalos que ainda não tinham bebido. 29. - Não me mintas, Gerinaldo, que nunca me tens mentido. 30. - Venho de regar o jardim que por água estava perdido. 31. - Não me mintas, Gerinaldo, que nunca me tens mentido. 32. - Venho de caçar uma rola das bandas d'além do rio.” G/103 Ferré (1987a) 67 Cada uma delas revelará, implicitamente, a natureza sexual do que o pajem andou a fazer, concluindo-se que o que é invocado como desculpa tem, afinal, um cariz semelhante. a) Dar de beber aos cavalos: No romanceiro, segundo Manuel Manzano, os animais são os próprios protagonistas ou ocupam um papel relacionado com a actividade dos humanos 765 e analisámos já, em Veneno de Moriana, o sentido do motivo “cavalo”. Em Gerinaldo, comprovando as diversas funcionalidades que o mesmo motivo pode ter em romances de temática não similar, os cavalos referidos pelo pajem ao rei encontram-se relacionados com a sua actividade normal mas, simultaneamente, têm uma dimensão simbólica. O cavalo é símbolo da “impetuosidade do desejo” e da juventude do homem. Outro dos aspectos simbólicos deste animal é a associação à água, podendo, com uma patada, fazer brotar uma fonte, símbolo do rejuvenescimento e da fecundação. Este motivo torna-se também uma metáfora de conotação sexual, pois o cavalo é um símbolo 765 Cf. Manzano [2002], pp. 91-133. 411 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de virilidade e aplacar-lhe a sede é satisfazer tal desejo766; deste modo, ao declarar que “vem de dar água aos cavalos”, o pajem dá a entender que acaba de cometer esse acto. b) Regar o jardim (flores)/a horta: A mesma conotação tem outro motivo, desta feita utilizando o reino vegetal. No jardim (ou a horta/o linho/o cebolinho, em algumas versões) que Gerinaldo diz ter ido regar, dado o seu conhecido simbolismo, facilmente se adivinha a mesma alusão sexual, adoçada por um valor mais poético. c) Caçar/apanhar a rola (pomba ou garça): O mesmo se passa com o acto de caçar (ou “apanhar”, “dar de comer”, “tirar” e semelhantes) a “rola”, com o pajem, por vezes, a tornar-se um pouco mais explícito: 19.“Venho de caçar uma rola que estava no palácio metida. ” G/42 Leite (1958) 315 Veja-se como o exemplo a seguir inverte ainda mais o processo simbólico e, embora parcialmente, torna o implícito em explícito; se bem que utilizando a metáfora da caça, o simbolismo do objecto caçado, “a rola” da versão acima, é substituído pela realidade (“uma donzela”): 12.“- Que é da caça, Generaldo, a caça que tens trazido? 13. - Eu cacei uma donzela, além, naquele castilho.” G/178 Carvalho Rodrigues (1990) 201-203 Segundo Manuel Alvar, a palavra “rola” é uma variação proveniente de uma modificação em cadeia. Os galegos, ao ouvir a palavra castelhana “ronda” (como em “vengo de cortar las rosas / y de rondar el castillo”), tê-la-iam transformado em “rolla” ou “rola” (“veño de velar a rola”) 767. Na verdade, trata-se de um duplo sentido, pois o “castelo” a que se faz a ronda, tal como a honra da infanta, deveriam ser inexpugnáveis 766 Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], p. 174-175. Cf. Manuel Alvar [2003], El Judeo español I. Estúdios sefardíes, Alcalá, Universidad de Alcalá, La Galeta Ediciones, p. 52, 2003. 767 412 A REVELAÇÃO DO SENTIDO e bem defendidos, tal como a rola (e a pomba, noutros casos: 14. “Venho de ròber ma pomba, inda a lá deixei no ninho.”, G/48 Buescu (1961) 219-220), que é uma ave associada à inocência; a garça de algumas versões (como na G/19 Tavares (1906) 279, v. 18) é símbolo da “amada”768 e nela, sendo ave de grande elegância, adivinha-se a alusão às características inerentes a uma infanta. O duplo sentido, esse entende-o bem o rei, ao dar uma resposta irónica a Gerinaldo – essa rola foi criada com o seu trigo -, dando a conhecer que não se deixa enganar e, implicitamente, a afirmar o direito de posse: rola, filha, castelo e mesmo o trigo, são todos de sua propriedade. Motivo: O canto. - Micro-relato: O pajem aprisionado canta. - Função no romance: Despertar a atenção do rei, possibilitando o casamento. O motivo do canto769 (D1275.3. Prisoner urged by his mother to sing father’s song before he is executed. King hears song, pardons him), aparece em algumas versões de Gerinaldo, nas quais o rei não manda casar o pajem, mas manda prendê-lo. Estas versões são contaminadas com O Órfão, O Prisioneiro e Conde Ninho770, e o motivo do canto vai permitir que o romance, alongado com cenas que dele não fazem parte, retome o desfecho tradicional do casamento com a infanta, das seguintes formas. Em primeiro lugar, quando a mãe viúva do pajem o visita na prisão (O Órfão) e lhe pede que cante: 16. “Cantai, filho, cantai, cantai a vossa canção,”, G/74 Ferré (1982) 240-241 768 Segundo Margit Frenk, a identificação dos amantes faz-se, na poesia tradicional como na culta e semipopular, com elementos da natureza, neste caso com certas aves. Cf. Margit Frenk Alatorre [1978], Estudios sobre lírica antigua, Madrid, Castalia, 1978 e também Margit Frenk [1998]. 769 Também em Silvana aparece o motivo do “canto”, que, junto com o tocar de algum instrumento musical, desperta a atenção do pai. 770 A visita da mãe ao filho aprisionado por ordem do rei é de O Orfão, o que Gerinaldo canta é o romance O Prisioneiro; os versos nos quais o rei chama a filha para ouvir o cantar “das sereias” ou “dos anjos” são de O Conde Ninho. Voltaremos à questão das contaminações no capítulo seguinte. 413 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A mãe refere como pai do pajem cantava, o que constitui uma ocorrência em retrospectiva do motivo: 13. “- Cantai, meu filho, cantai, meu filho, falsão, 14. como o vosso pai cantava, na manhã de S. João.” G/72 Ferré (1982) 237-238 Tão estranho parece o pedido, que o filho acusa a mãe de crueldade, pois toma-o no sentido literal: 17.“- Ai, que mulher ingrata, de cruel ingratidão, 18. que vê o seu filho à morte e manda-lo cantar serão!” G/69 Ferré (1982) 235-236 A mãe insiste no pedido: 17.“- Tomai, meu filho, tomai, conselho da vossa madre, 18. que mais vale um ruim conselho que seguir sua vontade.” G/72 Ferré (1982) 237-238 A justificação que dá ao filho revela que é uma mulher experiente, conhecedora do poder do canto771; bem ciente dele, recomenda ao filho que cante, especificamente, as mesmas canções que o pai outrora cantara e com as quais, presume-se, não só a ela conquistara, mas também às “ raparigas”: 19.”- Filho, pega na viola e canta aquelas cantigas 20. que teu pai, naquele tempo, cantava às raparigas.” G/69 Ferré (1982) 235-236 Por isso, diz que o rei há-de ficar rendido ao seu canto e perdoar-lhe: 18.“Quando o rei t'ouvir cantar, de ti vai ter compaixão.” G/74 Ferré (1982) 240-241 771 O canto com o poder de comover e encantar tem o seu paradigma em Orfeu, filho de Apolo e Calíope, que, para resgatar Eurídice do mundo dos mortos, convenceu Caronte, com o seu canto, a deixá-lo atravessar o Estige, estando vivo, e conseguiu chegar ao mundo subterrâneo, comovendo o cão Cérbero e as Fúrias; ao ouvi-lo, o Senhor do Hades, Plutão e sua esposa Perséfone entregaram-lhe a sua bem-amada. Cf. Edith Hamilton [1979], A Mitologia, Lisboa, D. Quixote, 1979, pp. 146-150. 414 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O pajem canta, então, O Prisioneiro. Em estudo sobre este romance, Sandra Robertson encontra-lhe um sentido de representação metafórica do isolamento (físico/mental) e descreve-o como um exemplo de como uma estrutura narrativa mínima pode revestir-se de um significado máximo772. Neste caso, o teor do canto estabelece o contraste entre a vida anterior do pajem, que se pressupõe vivida com certa despreocupação e liberdade (comparável à dos “passarinhos”, que também cantam: 32.”Nã sei quand'é noite escura nem quand'é claro dia // 33. senão quand'os passarinhos cantam n'alvorada.” G/70 Ferré (1982) 236-237), com a sua triste situação actual: 40. “- A manhã de São João é uma manhã de flores; 41. todos os namorados visitam os seus amores: 42. uns com cravos, outros com rosas, outros com manjaricão. 43. Só eu, p'los meus pecados, 'stou aqui nesta prisão. 44. Não sei quando é manhã, nem quando é meio-dia; 45. só me posso alegrar quando canto uma harmonia.” G/52 Pestana (1965) 93-94 A função narrativa do motivo é, nesta perspectiva, a de despertar a atenção do rei; o conselho da mãe surte efeito e, ao escutar Gerinaldo, o rei chama a filha, para que esta ouça também o que lhe parece ser o canto dos anjos ou das sereias: 26.“- Levanta-te, minha filha, eu oiço tão doce cantar, 27. ou são os anjos do céu ou são sereias do mar.” G/69 Ferré (1982) 235-236 Aplacada a sua ira com o doloroso canto, pode o rei “salvar a face” e consentir no casamento da infanta com aquele a quem mandara prender, precisamente pelo crime de a desonrar. 772 Cf. Sandra Robertson, “The Limits of Narrative Structure: One Aspect in the Study of ‘El prisionero’”, em Diego Catalán, Samuel G. Armistead, Antonio Sánchez Romeralo, edición a cargo de, El Romancero hoy: Poética, 2º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos, 1979, pp. 313-318. 415 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A comparação da canção do pajem com o canto maravilhoso “dos anjos do céu ou das sereias” é um caso de “contaminação formulística” com O Conde Ninho773, embora a operacionalidade do motivo dependa da sua inserção no posicionamento na estrutura narrativa. Segundo M. Pidal, o exórdio que antepõe os versos do poder do canto do Conde Ninho a Gerinaldo é de uma variante muito antiga 774 . Diz Catalán que na tradição leonesa, “el romance comienza, como muchas versiones meridionales de tema doble, com una escena procedente del romance de El conde Niño, enriquecida a menudo com unos versos de El Prisionero” 775 . De facto, no caso do Conde Ninho, o canto faz parte da primeira sequência do romance e desencadeia a acção, enquanto nas versões compósitas de Gerinaldo+O Órfão+O Prisioneiro+O Conde Ninho, é ouvido quase no final e faz retomar o desfecho do primeiro. Se, pelo contrário ocorrer a abrir Gerinaldo, o que não é habitual nas versões portuguesas776, o canto como prólogo fará pressupor que é essa a razão da súbita paixão da infanta pelo pajem. Por outro lado, em O Conde Ninho, o ouvinte-leitor tem conhecimento do som 777 , mas não de eventual letra que o acompanhasse, enquanto, nas versões de Gerinaldo com O Prisioneiro, se conhece o teor da canção, que explicita os lamentos daquele que está privado da liberdade. Além disso, naquele romance, o canto é órfico e prenúncio de chegada do amor778, tornandose agente do encantamento da mulher pelo homem e é assim que a ira da rainha é 773 Embora neste romance o cantor não esteja prisioneiro na altura em que canta. Em O Conde Ninho, quem ouve o canto pode ser o rei ou a rainha e os dois amantes serão punidos com a morte, seguindo-se as transformações de ambos (cf., para este assunto, Maria Aliete Dores Galhoz [1997a],“Transformações não punitivas no Romance Tradicional Conde Ninho na memória do património português”, Revista ELO, 3, Faro, Centro de Estudos Ataíde Oliveira, Universidade do Algarve, 1997, pp. 61-73). 774 Cf. Pidal [1973], pp. 224-256 e Alcoforado, Albán [1996], pp. 138-146. 775 Cf. Catalán, Cid [1975], p. 221. 776 A cena na qual Gerinaldo canta enquanto leva os cavalos a beber, aparecerá, igualmente, em versões recolhidas no Brasil, de informantes oriundas da Galiza, não aparecendo nas versões de informantes naturais da Baía. Cf. Alcoforado, Albán [1996], pp. 138-146. 777 “Lá se vai o conde Aninho, seu cavalo vai banhar, // enquanto o cavalo bebe, forma um lindo cantar”, Leite (1881) 33-35. Cf. as versões de O Conde Ninho em RPTOM II, pp. 149-173. 778 O canto órfico representa, como atrás dissemos, o encantamento que propicia e antecipa os encontros amorosos. Em Conde Ninho, associam-se-lhe três elementos, rapaz/água/cavalo; o jovem canta enquanto está a dar de beber ao cavalo, e lembramos que a fonte Hipocrene, criada pelo cavalo alado Pégaso, “favorecia a inspiração poética”. Cf. Chevalier, Gheerbrant [1994], p. 174-175. 416 A REVELAÇÃO DO SENTIDO despertada, ao perceber que não é a sua destinatária, mas sim a filha, originando a morte final dos dois jovens. Nas versões de Gerinaldo, pelo contrário, a canção do pajem é de tristeza e dirige-se ao rei, como o pode declarar explicitamente a mãe (41.“ Olha co rei está à janela, de ti vai ter compaixão.”, G/175 Galhoz (1987) 415-416), mas não perde totalmente o seu sentido mais profundo de agente de encantamento amoroso, como vimos acima. A infanta, essa, é que bem reconhece o canto, e desvenda a identidade do cantor, parecendo, ao mesmo tempo, recriminar veladamente o pai, em (a), ou pedir-lhe a libertação do pajem (b): (a): 38.”- Ai! papai, nã são sereias nem anjos podem ser, 39. é aquele General qu'o papai mandou prender.” G/70 Ferré (1982) 236-237 (b): 29. “ - Se o papai me dá licença, à pressa le vou contar: 30. não são serenas do rio nem marinheiros do mar, 31. que é canto do vosso preso, bem no podereis soltar.” G/72 Ferré (1982) 237-238 Nesta contaminação com O Conde Ninho estabelece-se, pois, uma ligação à feição encantatória própria deste romance; se, por um lado, porque semelhante ao dos anjos, o canto de Gerinaldo aprisionado promove a sugestão da sua inocência (foi a infanta, afinal de contas, que o seduziu) e suscita a compaixão real, também é comparado ao canto das sereias, que encanta os homens779, pelo que serve para justificar a mudança de atitude do rei: 30.”- Eu não digo que o mate nem que deixe de o matar; 31.se quiseres para marido, eu genro le vou chamar.” G/69 Ferré (1982) 235-236 779 É bem conhecido o perigo que representa o canto das sereias, que atrai irresistivelmente os homens. Lembramos o episódio da Odisseia, no qual só a astúcia de Ulisses e por conselho de Circe, ao amarrar-se ao mastro e fazer os marinheiros do Argos tapar os ouvidos com cera, lhes permitiu escapar. Da atracção fatal só se livravam os que cantavam melhor que elas e assim sucedeu com Orfeu, que, com a sua lira, conseguiu salvar os que com ele procuravam o Velo de Ouro, tal como contado em Os Argonautas por Apolónio de Rodes. Sobre as sereias e seus poderes, cf. Édouard Brasey [2002], Sereias e Ondinas, Lisboa, Publicações Europa-América, 2002. 417 A REVELAÇÃO DO SENTIDO CAPÍTULO III AS INTERVENÇÕES NA ENUNCIAÇÃO E NO ENUNCIADO 1. As intervenções e o sentido Sendo o objecto deste estudo o modo como o sentido se revela nos romances, analisaremos agora os efeitos que certas “intervenções” possam ter sobre aquele. Usamos o termo para nos referirmos, a nível da enunciação, aos comentários que, sendo pessoais, revelam condicionantes sociais ou morais, bem como às didascálias e a certas explicações que vão sendo dadas no decorrer da enunciação da versão780, algumas das quais, nesta perspectiva, se aproximam da prosificação. A nível do enunciado, reportamo-nos às elipses, substituições, acrescento ou prosificação de sequências ou versos, aos prolongamentos, fechos e remates, às contaminações e, de modo geral, à variação, que referimos já, na Parte I, como factor da procura do sentido, tendo ressalvado as limitações de lhe apontar as causas. A este nível, as “intervenções” manifestam-se de diversas maneiras, sobre a semântica e/ou sobre a estrutura narrativa e a sua análise apresenta algumas complexidades. Em relação à semântica e se o corpus for extenso, basta consultar os índices de primeiros versos de qualquer romance, presentes em obras de referência781, para nos darmos conta da amplitude e variabilidade dos modos de expressão. O mesmo se passa com a estrutura narrativa, tendo ainda em conta a inexistência de uma composição fixa original. De facto, cada versão é uma ocorrência única, e assim pode ser analisada, mas o seu sentido está intimamente ao do texto (enquanto conjunto das versões). 780 Ferré distingue entre as didascálias da enunciação (“ele disse, ele fez”) e as do enunciado, estas sequências narrativas que introduzem a sequência seguinte. Cf. Ponte [1987]. 781 De entre outras e exemplarmente, ver GRPP ou as várias de Costa Fontes. Cf. Bibliografia Activa. 419 A REVELAÇÃO DO SENTIDO O tipo de estudos já levado a cabo por Diego Catalán, Suzanne Peterson e outros782, embora essencial para atingir o nosso objectivo, não é o que aqui nos ocupa como finalidade. Entendemos que uma simples apresentação das variações semânticas encontradas no elevado número de versões do nosso corpus, ou quaisquer outras listagens, exaustivas que fossem, resultariam pouco operacionais para o fim em vista, ou seja, de o de determinar os efeitos da variação e das variantes no sentido. Preferimos, então, analisar as chamadas “intervenções” partindo de uma análise comparativa. Para isso, confrontámos a estrutura narrativa apresentada pelas versões com o “modelovirtual”, que reproduz esquematicamente a que é própria do romance, funcionando como uma espécie de matriz, o que permite ajuizar-se de paridades ou de divergências no sentido, que apresentaremos com recurso a casos significativos de exemplificação, extraídos dos romances em análise. Crendo que o sentido se revela nas chamadas “intervenções” e dado julgarmos que o corpus delimitado é significativo para o efeito, este processo facilitará a detecção de variantes e, posteriormente, de determinadas tendências (referindo-nos aqui às variantes regionais) ou anomalias783, mas, sobretudo, constituirá uma amostragem dos processos de significação usados no romanceiro; ao mesmo tempo, a sua análise clarificará, em alguns aspectos, a questão da adesão/rejeição/transformação da narrativa (que subjacerá ao fenómeno de reelaboração dos romances). 782 O Capítulo II do IGR é dedicado á estrutura sequencial do relato e às suas alternativas, fazendo notar a extensa gama de possibilidades proporcionada pela propriedade de abertura. Referimo-nos também a trabalhos como os vários documentados nas comunicações em Diego Catalán, Samuel G. Armistead, Antonio Sánchez Romeralo [1979], edición a cargo de, El Romancero hoy: Poética, 2º Colóquio Internacional, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal, Madrid, Editorial Gredos, 1979. 783 Usamos o termo para nos referirmos, por exemplo, à introdução de versos que não aparecem normalmente na maioria das outras versões do romance. O termo não se aplica a contaminações de outros romances ou a sequências que se regionalizaram. 420 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 2. Apartes e explicações; prosificações parciais e totais Como intervenções na enunciação, começaremos por analisar certos apartes dos informantes784, os quais, tanto quanto expressar empatias, positivas ou negativas, podem ser, também, uma forma de fazer valer a veracidade dos actos narrados, de sublinhar o dramatismo de certos episódios e, ainda, de expressar atitudes mais pessoais de empatia ou de rejeição às personagens e suas actuações. Alguns informantes, à maneira dos contos, deixam um comentário tendente a demonstrar a veracidade do sucedido, como o seguinte, emitido depois da sequência final, na qual o rei manda que Gerinaldo case com a infanta: “E l estão os dois...”, G/86 Marques/Silva (1984-1985) 119-120. Outros, chegam a manifestar incredulidade face ao que está a ser narrado (“Iele, aspois, dízim qui a morta que le falau, mas isso ié que será ua mintira.”, BF/55 Pereira (1970) 243-244) e a imputar a responsabilidade a terceiros indeterminados (“dizem que…”). Note-se, porém, que o demonstrativo “isso”, como anaforizante de “a morta falou-lhe”, implica que se duvida apenas desta circunstância, mas não dos factos anteriores. Entre as categorias pragmáticas do discurso, Elena Wolf encontra a valorização, como caso especial da qualificação, abarcando substantivos, adjectivos e verbos. Diz a autora que a qualificação tem como base os valores semânticos “bom/mau” e “grande/pequeno” e que o sema apreciativo “bom” ou “mau” dependerá do padrão apreciativo da comunidade. Faz notar, igualmente, que só com base na situação ou no contexto se poderá, por vezes, ajuizar do sentido apreciativo de apreciação ou 784 Na Parte I, Capítulo III. A Organização da Narrativa, ao tratar as “falas das personagens”, definimos os apartes destas como “estratégias de uma explicitação do seu ponto de vista em intenção de terceiros, substituindo-se a um narrador omnisciente”. Adoptamos aqui a mesma terminologia, relativamente a estas intervenções dos produtransmissores, visto que estes podem, simultaneamente, narrar e comentar, neste caso expondo o seu ponto de vista. 421 A REVELAÇÃO DO SENTIDO desaprovação das palavras785. Nos romances aqui em análise, realçamos as expressões qualificativas que, em Delgadinha e com o sentido implícito de valorização bom/mau = aprovação/rejeição, a família aplica à rapariga (como “perra moura, malfadada, pérola negra…”) a nível do enunciado, mas também em situação de enunciação se executam qualificações valorativas, por vezes em comentários às personagens ou aos seus actos. Em uma versão deste romance, a D/222 Cruz (1995) 215-216, a informante comenta a resposta da mãe ( 3. -“Vai-te daí, ó maldita, vai-te daí, ó malvada, // 4. Já uns poucos de anos que me fazes mal casada”) ao pedido de água da seguinte maneira: “A ursa da mãe pensava qu’ela era … mas no era … qu’ela andava a fugir do pai, coitadinha…”. O comentário, embora numa versão fragmentada786, denuncia a injustiça cometida pela mãe e revela forte condenação a esta e compaixão pela vítima787, pois, nas expressões utilizadas - “a ursa da mãe” e “coitadinha” -, encontra-se uma forma de implícito na apreciação do falante em relação ao que refere, ou seja, a atribuição dos valores mau e bom, respectivamente, como categorias de valorização. Esta estrutura apreciativa qualifica a mãe negativamente, visto que esta não cumpre o papel protector que dela se esperaria, por oposição com a valorização positiva implícita da filha, que cumpre o seu papel numa estrutura familiar normal, negando-se ao incesto. A esta, que morre e se torna santa, como se explica no comentário final (“Quando le foram dar a auga já 'stava morta e santinha...”), contrapõe-se também a valorização negativa do pai, que também é “urso” (“Apareceu o urso do pai..”, entre os vv. 12 e 13). Também, no exemplo seguinte, a apreciação ao pai é negativa, mas de modo mais subtil. Na versão S+D/17 Fontes (1979) 143-144, após a morte da filha, diz o pai: 32.“785 Cf. Elena M. Wolf [1982], “As Estruturas Apreciativas e Descritivas na Semântica da Palavra e da Enunciação”, Biblos, Vol. LVIII (1982), Coimbra, Universidade de Coimbra, pp. 28-43. 786 A versão consta apenas dos versos do pedido de água pela Delgadinha à mãe, à irmã e ao pai e integra os citados comentários. 787 A elipse do que se seguiria a “ela era” poderia ser preenchida por qualificativos como “provocadora do pai/desavergonhada” e mereceria um estudo psicológico que não podemos fazer mas que entendemos conduzir à hipótese de a informante achar que a acção da mãe se justificaria, caso a filha tivesse uma atitude menos digna. 422 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Cobre-se as ruas de luto, palácios de tafetá, // 33. já que a minha ventura não quis que eu te chegasse a gozar.” . Estes versos serão entendidos como revelando implicitamente que não se arrependeu do mal que fez; por isso o teor do dito pelo pai (“O pai ainda diz que disse mais esta p'a s'acabar de perder.”), facto que é insinuado como possivelmente verídico (diz-se que ele disse) é a gota final, que merece castigo, como se comenta (vai perder-se [a salvação]). Na versão BF/58 Fontes (1979) 113-114, a informante, que durante a recitação fornece explicações simples (” O marido estava embarcado.”), emite outras que se apresentam como juízos de valor, em apartes que demonstram um forte sentido de defesa do marido, pois a seguir ao verso em que a protagonista roga pragas àquele (19.“E cem facadas lhe dêem e novas viessem-m'a mim”), comenta: “ a cara do marido. E era o marido que 'tava ali.”. O comentário assim formulado revela a reprovação sentida não tanto ao acto do adultério como ao desplante da mulher em “atirar à cara” do marido que gostaria de o saber morto. Na mesma versão, as queixas da adúltera, ao ver-se descoberta, são também objecto de comentários condenatórios. A informante começa por fornecer uma indicação cénica: “E ela nã, nã chamou ninguém. Veio p'à varanda. 'Tava fazendo lua. E ela veio p'à varanda e pegou-se”, a que se seguem os versos 31-32 (“- Ó lua que vais tan clara, que estás p'amanhacer // ua triste padecenta, que vai acabar de padecer”). É o epíteto “padecenta” aplicado pela adúltera a si própria no verso 32 do enunciado, que merece o seguinte aparte de enunciação: “Ua triste padecenta? Grande cadela!”. Apesar do evidente moralismo deste aparte, o último comentário da informante (“Ela se não responde mesmo assim ainda se salvava”) acaba por revelar alguma ambiguidade de sentimentos relativamente à adúltera. Não sendo de crer que a “salvação” a que se refere seja espiritual, mesmo que o comentário tenha sido feito depois de serem referidos, no enunciado correspondente a A Aparição, os “demónios” 423 A REVELAÇÃO DO SENTIDO que troçam da protagonista, parece-lhe que a tentativa de engano enunciada no v. 21 (“Ai, se tu és o meu marido, estimo-te como a mim mesma”) seria uma má defesa, pelo que se adivinha, naquele comentário, um certo lamento pela falta de esperteza da mulher. Em Veneno de Moriana também se comenta a actuação das personagens. Na VM/161 Fontes I (1987) 393-394, censura-se principalmente o facto de o cavaleiro vir convidar Moriana para o seu casamento com outra (7.“É verdade, ó Juliana, que eu te venho convidar // 8. p'ra ires ao meu casamento, se me queres acompanhar.”), o que suscita o comentário indignado: “E d -le assim uma tapona nas ventas!”. Logo após, a informante emite a opinião de que o cavaleiro é “burro”, certamente por achar que este vai beber o vinho sem sequer desconfiar da solicitude de Moriana, sabendo que ele vai casar (9.“Espere aí, senhor Jorge, vou subir ao meu sobrado. // Ele também foi burro //Tenho um cálix de vinho, para o senhor estava guardado.”). Para a informante, justifica-se que Moriana mate o cavaleiro e até diz que acha bem: “Matou-o logo. Mas foi bem feito. Arranjou-l'uma.” As apreciações aos actos das personagens são feitas de forma jocosa, como no exemplo seguinte; o informante, após os versos do rei deixando a espada entre Gerinaldo e a filha (v. 14: “Mete-l'a minha espada no meio, que les serva de castigo.”, G/153 Fontes I (1987) 506-507), interrompe o canto com o aparte: “Olha que castigo! Ah! Ah! Ah!”. Dá assim a entender que o simples colocar da espada entre os amantes lhe parece inadequado e mesmo ridículo para o que, implicitamente, considera uma infracção merecedora de maior castigo788. Em situação de enunciação, o informante, sobretudo quando não canta mas recita, pode fornecer indicações de tipo cénico, simples, revelando a preocupação de identificar quem fala no enunciado e a quem fala: 788 Ressalva-se, obviamente, o facto de o informante não ter o cabal conhecimento do simbolismo do acto do rei. 424 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - “Isto é o pai dele.”; “A ilha disse:”; ”Isto é o rei:”, G/75 Ferré (1982) 241-242 - “ E a in anta disse ' erinaldo:”, G/76 Ferré (1982) 242-243 - “E ela diz agora aqui”, D/86 Fontes (1980) 69-70 Outras indicações serão um tanto mais complexas, algumas parecendo um esforço para recordar os versos e outras uma forma de tornar explícitas ao colector as circunstâncias da situação que vai narrando789 ou o modo como a compreende, talvez por julgar que este não esteja de posse do conhecimento de todos os pormenores da história contada. Na verdade, ainda que o informante seja, por via de regra, um produtransmissor, a situação de “recolha” é, de algum modo, artificial, pelo que haveria que saber se, em circunstâncias normais de transmissão/fruição do romance, as didascálias e as explicações seriam dadas. Essas circunstâncias são “a vida quotidiana do povo”, segundo Joanne Purcell, que sobre o seu trabalho de recolha, diz ter encontrado “o romanceiro cantado ou narrado nos períodos de descanso do trabalho”, na companhia dos vizinhos ou “[N]a maioria dos casos, é quando a pessoa fica sozinha” 790, dispensando-se, pois, grandes explicações. Por vezes, enunciação e enunciado completam-se: 6.”- Pai da minha vida, pai do meu coração, 7.eu lhe peço, por favor, que le desse una pinguinha d'água. Ela já estava assim desani mada co' a sede e co' a f ome e el e é que l 'ent ão arrespondeu s’ela prometesse ser namorada dele, que le dave a i-água. E ela então:” D/116 Marques (1982) 214-215 789 Os informantes pretenderão, em certos casos, assegurar-se de estar a ser bem entendidos pelo recolector. Durante uma recolha por nós efectuada, a informante, após recitar sem interrupção uma versão de A Virgem Maria e o Cego (IGR 0226), repetiu-a, mas desta vez intercalando entre os versos várias explicações, como “A Senhora ia a andar para Belém”, “O menino pedia de comer”, “A Senhora disse: …”, “O cego pôs-se a ver, foi um milagre de Nossa Senhora”, insistindo em que se tratava de um milagre (Informante: Carma Gonçalves, 84 anos, em Montalvão, c. de Nisa, d. de Portalegre, em 05.02.2006). 790 Cf. Joanne B. Purcell [1972], “Sobre o Romanceiro Português: Continental, Insular e Transatlântico. Uma recolha recente”, em Diego Catalán, Samuel Armistead, edição a cargo de, El Romancero en la Tradición Oral Moderna, 1º Colóquio Internacional, Cátedra Seminario Menéndez Pidal, Edit. Gredos, Madrid, 1972, pp. 54-64. 425 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Outras, quase se confundem; vejam-se os exemplos abaixo, extraídos de duas versões, ambas da mesma localidade (Machico, Madeira), de informantes diferentes. No primeiro, é enunciado o verso do encerramento de Delgadinha na torre; no segundo, a opção gráfica da transcrição revela tratar-se de uma explicação ao colector, em jeito de substituição daquele verso por uma enunciação que fonicamente o segue de perto (a negrito): 1º) - 8. “logo na mandou esconder na torre mais alta qu'havia”, D/94 Ferré (1982) 215 2º) - (entre os vv. 3 e 4): “ Era numas torres mais altas qu'havia.”, D/95 Ferré (1982) 216 Outras intervenções destinam-se a explicar o enredo ou as circunstâncias em que se dão os incidentes: Bernal Francês: Sequência I: “Ela não queria a rir e ele diz:”, BF/45 Leite (1958) 416-418 Sequência II: “Ela abriu a porta, e levava a luz”; “Ela apagou, e foi-se deitar” BF/45 Leite (1958) 416418. “Foi o homem que l'apagou o candile ”, BF/92 Fontes I (1987) 351. Sequência III: “e ele voltou-lhe as costas.”, BF/45 Leite (1958) 416-418 “Era meia-noite dada, sem se voltar para ela”, BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121. Sequência III: “O marido estava em arcado” (explicação de 18.“se temes a meu marido, lonja terra está de mim.”, BF/58 Fontes (1979) 113-114). Sequência IV: “E ela nã, nã chamou ninguém. Veio p'à varanda. 'Tava fazendo lua. E ela veio p'à varanda e pegou-se:” (explicação de 28.”Chama teu pai e tua mãe p'a te perdoares co'eles; // chama tua vizinhança p'a te perdoares co'eles, // p'a eles nã fazerem aos maridos o que tu fizeste.”, BF/58 Fontes (1979) 113-114). 426 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “E matou a mulher.”, BF/35 Leite (1958) 403-404; “Ele matou-a e enterrou-a no jardim”, BF/112 M.A. Vilhena (1995) 121; “Matou-a”, BF/82 Fontes I (1987) 342. Veneno de Moriana: Sequência I: “Eram os três cabaleiros aí, e depois ela791:”, VM/90 Marques/Silva (1984-1985) 108 Sequências I e II: “Ele enganou-na e disse-le:”, VM/61 Ferré (1982) 186 Sequência III: “Ele então estava a ouvir”, VM/102 Ferré (1987a) 48-49 Sequência IV: “Ela foi a casa buscar um copinho de vinho.”, VM/61 Ferré (1982) 186 Sequência IV com ligação à Sequência V: “E ele o que segue … Ela deu-le o vinho. E ele diss'assim:”, VM/41 Fontes (1979) 124-125 “ Foi busquer um copo de vinho, dou-lo, e começou logo a arrebolari...”, VM/230 Cruz (1995) 184. Silvana e Silvana + Delgadinha: Sequência I de Silvana: “Ela estava tocando e cantando.” - S/22 Ferré (1982) 209-210. Sequência II de Silvana: “Ela vai ter com a mãe conta mãe e a mãe diz:” e “A mãe vestiu-se com os vestidos da filha e foi lá ter co' ele. E ele disse-lhe:” – S/29 Marques (1989) 388-390. Sequência III de Silvana: “'Pois ele noite oi pensava que era a ilha e pediu-lhe um abraço e a mulher disse-lhe:”- S+D/24 Ferré (1987) 77-78. “A cometia o pai, cuidava que era a filha, era a mulher. E depois à mulher respondeu assim:” - S+D/26 Galhoz (1987) 386-387. 791 Os “três ca aleiros” poderão ser, por hipótese, uma importação/contaminação de Os Três Reis do Oriente, cantado nos peditórios dos Reis, que Maria Aliete Galhoz arrumou em Romances Religiosos e Orações Narrativas em GRPP II, no Ciclo do Natal. 427 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “De noite quando estava deitado com ela”. - S+D/27 Galhoz (1987) 387-389. “mas era a mãe, e o pai foi lá imblicar com ela” - S+D/285 Galhoz (1987) 385. Sequência III de Delgadinha: “Quando de l saiu a primeira pessoa que encontrou oi a sua irmã.” - S+D/20 Fontes (1983a) 121-123. Delgadinha:. Sequência II: “E ele raivou e assim disse e mandou-na prender, D/93 Ferré (1982) 214-215. “E depois ele quando sou e isto o rei quando sou e depois mandou:”, D/127 Marques/Silva (1984-1985) 115. Sequência III: “E ela botou-se por aí além e foi onde sua irmã estava.”, D/93 Ferré (1982) 214-215. “Ò depois Silvana su iu. (Senhora: Ó depois é que subiu outro). Subiu mais al... ainda mais alto e ò depois adonde encontrou seus irmãos” e “Ò depois dizia... (Senhora: Ó depois subiu outro.) Ó depois subiu mais alto aonde avistou o seu pai:”, D/148 Fontes I (1987) 447-448. “- ão não dou”. E ò depois sempre le pediu mãe. E a mãe e a mãe disse-le tam'ém que não. E diss'assim:”, D/158 Fontes I (1987) 457-458. Sequência IV: “Passou por ali seu pai.” e “Dou-te a i- gua se me d s a tua mão direita. Diz:”, D/151 Fontes I (1987) 450-451. Sequência V: “E depois ela desistia. Que o seu prometido estava eito.”, D/161 Fontes I (1987) 460-461. Prolongamento: “A mãe começou a ler a carta e ela disse:”, D/80 Fontes (1979) 145-146. Gerinaldo: “E dormiram am os.”, G/67 Ferré (1982) 232-234. As intervenções, a nível da enunciação ou do enunciado, ora precedem a narrativa, ora a interrompem, a ligam ou concluem-na e actuam como didascálias, comentários ou explicações (“Parece que a pôs a bacalhau (...) Saiu a uma janela:”, D/115 Marques (1982) 428 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 213-214), ou mesmo referir a existência de versos que não fazem parte da intriga (“Foi atão quando mandou vir o papel.” diz a informante da versão VM/232 Cruz (1995) 185, ao finalizá-la, obviamente referindo-se aos versos, de que não se lembraria, de invocação à escrita que são um prolongamento de Veneno de Moriana,). Elas podem coexistir com a enunciação dos versos, mas algumas tomam o carácter de prosificações do enunciado, de que certos exemplos atrás já se aproximam. Repare-se que uma mesma situação, que neste serve para dar conta da grande tristeza de uma personagem (Silvana) motivada pela proposta incestuosa do pai, pode ser contada ao nível da enunciação (a) ou ao nível do enunciado, neste caso como por narrador extradiegético (b) ou como fala de personagem (c) 792 , como abaixo se exemplifica: (a) [….] Foi quando a Dona Silvana subiu ao seu quarto e gritou muito por a sua mãe, que lhe valesse a sua mãe, que seu pai, que contando à mãe o que o pai queria fazer naquele grande saluços de desgosto.” S/13 Purcell (1976b) 66-67 (b): 10.“Foi Silvana para o seu quarto, mais triste que a noite o dia. 11. Chamava por su mãe, há sete anos falecida.” S/12 Purcell (1976b) 57-59 (c): 6.“- O que tendes vós, Silvana, que assim vens agoniada?” S+D/5 Pires (1885a) e Pires (1885b) V As prosificações serão devidas ao esquecimento dos versos pelos informantes, que procuram colmatar as lacunas com um relato do que aconteceu (ou terá acontecido, na sua interpretação), mantendo-se ou não fiéis ou não ao sentido do romance. O fenómeno, considerado muitas vezes como efeito da erosão do tempo, que afecta os romances como a outras composições tradicionais, origina versões mais ou menos 792 Comprova-se com este exemplo a grande versatilidade do romanceiro, que pode intercambiar o narrativo com o dialogado ou prosificar, sem necessariamente perder o sentido. 429 A REVELAÇÃO DO SENTIDO fragmentadas, por vezes com um ou dois versos, sendo a falta de memória apercebida pelos informantes (e assim o declaram)793: “E depois ele... Nã sei então o resto. Sei qu'o resto, que vinham do enterro, qu'o amante dela que vinha... Ia de carreira. E o coveiro disse -le qu'ele que nã fosse, porqu'ela, que já a tinha enterrado. E ele disse que não, que não o acreditava. E ele disse: - Olha, aqui vai a pá da enxada com qu'a terra eu a cobri. Mas então j tenho tudo muito perdido dessa.” BF/56 Fontes (1979) 112 Deste modo, e de acordo com o grau de esquecimento, far-se-á a prosificação de alguns versos, de partes do romance ou da sua totalidade, podendo resultar na transformação, em casos extremos, em contos ou lendas794. Em rigor, a prosificação dá- 793 Com a distância, provavelmente, a não ajudar; a versão em causa é do Romanceiro Português do Canadá, recolhida por Costa Fontes de uma informante de 77 anos, natural dos Açores. 794 Neste processo não incluímos outro tipo de prosificações possíveis, que podem resultar do que João David Pinto-Correia sintetiza como “a produção popular no intertexto da literatura institucionalizada” em artigo no qual percorre o “itinerários” de diversos tipos de marcas ou aproveitamentos da composições da Literatura Tradicional, oral ou escrita, em renomados autores da Literatura Portuguesa. Ver João David Pinto-Correia [1988], “A Literatura popular e as suas marcas na produção literária portuguesa do século XX – uma primeira síntese”, Revista Lusitana (Nova Série), nr. 9, Lisboa, INIC, 1988, pp. 19-45 e João David Pinto-Correia [2001], “Tradição, ‘Cultura de Massa’ e Novos Contextos Culturais: Desaparecimento ou Persistência da Literatura Oral Tradicional?”, Actas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, disponível na Internet em http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/TRADICAO_CULTURA%20DE%20MASSA%20E %20NOVOS%20CONTEXTOS%20CULTURAIS.pdf, arquivo acedido em 20 de Setembro de 2011. Embora não se trate de uma “prosificação” nem mesmo de uma reescrita de composições da Literatura Oral e Tradicional, referimos, porque se trata de um dos romances do nosso corpus, dois exemplos das suas “marcas” e/ou registos em obras contemporâneas, de que destacamos, em particular, Mau Tempo no Canal (Vitorino Nemésio [1973], Mau Tempo no Canal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1973). É sabido que Nemésio era bom conhecedor da literatura tradicional, oral ou escrita, e até utilizador, na sua obra poética, das características das “cantigas”, “décimas” e “romances”, sobretudo em Festa Redonda e Poemas Brasileiros (cf. sobre este assunto, João David Pinto-Correia [1998], “Voz e povo na poesia de Vitorino Nemésio”, em António Manuel Machado Pires et alii, Vitorino Nemésio. Vinte anos depois. O Colóquio Internacional Ponta Delgada, 18-21 de Fevereiro de 1998, Lisboa-Ponta Delgada, Edições Cosmos, 1998, pp. 37-52) e também Carlos Nogueira [2006], “A poesia popularizante de Vitorino Nemésio” em AAVV, O fragmento. Forma Breve 4, Aveiro, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro, 2006, pp. 315-338; ambos os autores referem as contribuições de outros investigadores sobre os elos entre a literatura tradicional e a expressão poética de Nemésio). Citando Pinto-Correia, diremos que “’Voz’ e ‘Povo’ são componentes da escrita nemesiana” e, acrescentamos, não só na obra poética como na narrativa. Assim, em Mau Tempo no Canal, a protagonista, Margarida, querendo contar ao tio Roberto a história de Rosinha da Glória, fechada no convento pelo pai, diz que a ama lha contava, mas que “misturava a freira com a décima de D. Silvana no seu jardim assentada…”. Embora este incipit possa também aparecer, mesmo com variações, em O Conde Alarcos ou em A Bela Infanta, cremos que, em Mau Tempo no Canal, esta alusão a um romance tradicional não é casual, mas sim deliberado, pelo que entendemos que se trata de uma versão de Silvana + Delgadinha, de junção muito corrente na tradição portuguesa. Nessas versões, a situação inicial, na qual existe a sugestão de uma certa 430 A REVELAÇÃO DO SENTIDO se ao nível do enunciado, mas o processo coexiste com as pequenas narrativas que temos vindo a analisar, em contexto de enunciação, razão pela qual as tratamos em simultâneo. No nosso corpus, encontram-se casos de substituição de sequências por prosificações, mais ou menos elaboradas, com ou sem fidelidade à intriga tradicional, acompanhando às vezes apartes explicativos e didascálias. Veja-se o que acontece na versão D/196 Anastácio (1988) 84, na qual são evidentes os hemistíquios em falta ([….]) que a edição assinala, atribuíveis a esquecimento total, e na qual se observam as intervenções (a itálico) que fazem substituir aqueles de que há uma lembrança; a última parte da intriga é prosificada: 1. “Silvana se passeava por um corredor que tinha; 2.também cantava, melhor dançava, melhor romances dizia. 3.O seu pai como maroto amores lhe acometia. 4.- Meu pai, as penas do inferno quem é que as passaria? 5.- Passava-as eu, minha filha, uma por cada dia. 6.Ele mandou-a fechar numa torre p'ra estar lá sete anos e um dia, 7.[………………………] ao cabo de sete anos e um dia, 8.a Silvana se assomava à mais alta janela que havia. 9.Via estar a sua mãe a fazer (…) 10.- Deus te salve, ó minha mãe, ó minha mãe da minh'alma, condescendência da protagonista de Silvana à proposta incestuosa feita pelo pai, prossegue com o episódio, de Delgadinha, do encerramento da filha que se nega a ceder aos desejos paternos. O par “condescendência com incesto + aprisionamento”, presente nestas versões, tem uma analogia com a situação em Mau Tempo no Canal. A referência, nesta obra, é a uma forma mais atenuada e subtil de incesto (o casamento com o tio para o qual o pai empurra Margarida) e com o qual também esta jovem parece condescender; os seus sentimentos em relação ao tio, de resto, são de natureza ambígua, uma vez que este casamento vagamente incestuoso parece agradar-lhe, mas também significa para ela a possibilidade de se libertar da prisão social que a vida na ilha representa e em que a própria posição familiar a mantém (também Delgadinha é mantida na “prisão”, não só pelo pai, que é o ordenante, mas pela família que se nega a ajudá-la). Pomos, ademais, a hipótese de o autor estar a citar alguma versão de seu conhecimento directo, com o citado incipit, uma vez que, até à data da publicação do romance de Nemésio, em 1949, não está registada em BRPTOM nenhuma versão de Delgadinha ou de Silvana com um incipit exactamente igual ([Estando] “D. Silvana no seu jardim assentada…”). Citamos, também, outro “incesto”, igualmente não consumado, mas encenado, em Memórias das minhas putas tristes, do colombiano laureado com o Prémio Nobel, Gabriel Garcia Márquez. O nonagenário narrador/protagonista canta à “adolescente virgem” adormecida “a canção de Delgadina, a filha mais nova do rei, por quem o pai se tomara de amores: ‘Delgadina, Delgadina, serás a minha jóia amada’”… Cf. Gabriel Garcia Márquez [2007], Memórias das minhas putas tristes, Lisboa, Dom Quixote, 2007. 431 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 11.[……………………….] dá-me uma gotinha d'água, 12.que eu à fome e à sede, já me está cortando a alma. 13.- Água t’eu dava, ó minha filha, dava-te e não me custava nada, 14.mas se o teu pai jurou-me pela ponta da espada se fosse dar água que a matava. 15.- Irmãos da minha alma, dêem-me uma gotinha d'água 16.que eu à fome e à sede, já me está cortando a alma. No fim viu estar o pai e depois disse-lhe para ele le mandar dar água. 17.que amanhã por todo o dia serei sua namorada. E depois o pai mandou-le dar água, e depois vieram os criados com um jarro de ouro para ela e er gua vieram c e j ela estava morta.” No caso seguinte, verifica-se como as intervenções a ambos os níveis, da enunciação e do enunciado, podem ocorrer na mesma versão, ou seja, intercalam-se explicações da intriga, mesmo da pressuposta (a), com os versos ainda recordados, faz-se a prosificação de parte da intriga (b) e fornecem-se ainda didascálias simples (c) e de ligação com A Aparição (d) : (a) “Era uma senhora que tinha um amante e o amante era o Bernardo Francês. Um dia o marido combinou com ela qu'ia p'ra uma feira, no Brasil, e saiu de casa. (b) Mas ele veio à noite e bateu à porta. (c) E ela disse: 1.- À minha porta oiço bater, à minha porta oiço tunir, 2.s'é o Bernardo Francês, minha porta vou abrir. 3.Se é outro qualquer, daí já se pode ir. (b) Ele disse qu'era o Bernardo Francês e entrou. Tinham lá aqueles candeeirinhos e a luz apagou-se. E foram-se deitar às escuras. (c) Diz ela: 4.- Qu'é que tens, amor, que 'tás agora assim? 5. Já é meia noite dada, sem te voltares p'ra mim! 6. Se tens medo dos meus filhos, eles nã estão aí, 7. se tens medo dos meus criados, eles nã estão por aí, 8. se tens medo do meu marido, ele foi para o Brasil, 9. mais vale qu'ele morra lá, essas novas me venham aqui. (c) Diz ele: 10.- Eu nã tenho medo dos teus filhos, qu'os teus filhos são de mim, 432 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 11.eu nã tenho medo dos teus criados, qu'os teus criados são de mim, 12.nã tenho medo do teu marido, qu'ele está em par de ti. 13.- Oh, valha-me Nossa Senhora, oh que sonho qu'eu assonhi 14.Tenho o meu amor em braços, 'inda agora o conheci. 15.- Oh, espera, deixa tu vir aí a madrugada 16.que hei-de te fazer uma camisa, com gravata encarnada. (d) Depois é que veio o amigo, o Bernando Francês. 17.- Eu venho à da minha amada, que p'ra num há-de ser, 18.Abre-me a porta, amor, qu'eu a ti te quero ter. (c) E diz o marido: 19.A tua amada está morta, está morta qu'eu a mati 20.as facadas qu'eu di em ela, ainda hoje darei em ti.” BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37 Um procedimento esquemático como o que mostramos abaixo pode ser usado para avaliar da conjunção de várias situações que vimos referindo: Veneno de Moriana - VM/186 Anastácio (1988) 67 A informante enuncia 1.“- Minha mãe, aí vem o Jorge no seu cavalo montado. os versos 2. - Boa tarde, ó Julieta, e amor como tens passado? 3. - Eu ouvi dizer, ó Jorge, que ias agora casar. 4. - É verdade, Julieta, e eu venho-te a convindar. 5. - Demora-te um bocadinho que eu vá acima ò meu sobrado, 6. buscar-te um copo de vinho, p’ra ires mais refrescado. 7. - O que deitastes no copo, e o que deitastes no vinho 8. que eu já tenho a vista turva e já não sigo o meu caminho? A informante continua, com a prosificação: Já não segui qu'ele morreu ali e daí ela foi-s'entregar prisão: mas 'tava p’ra cada hora não a tiveram lá quase tempo nenhum, soltaram-na e a mãe dizia assim: Declara ter esquecido J não segui qu'… Final implicado próprio do romance, … ele morreu ali… 433 A REVELAÇÃO DO SENTIDO prosificado Acontecimentos não fazendo parte da e daí ela foi-s'entregar á prisão: mas 'tava intriga do romance p’ra cada hora não a tiveram lá quase tempo nenhum, soltaram-na Didascália simples Introduz versos anómalos ao romance: e a mãe dizia assim: 9. Uma mãe que tem uma filha metida numa prisão, 10.Vai-le a levar de comer e não le pode dar na mão. Introduz, em prosa, acontecimentos não fazendo parte da intriga do romance: Daqui p’ra diante eles mandaram a moça p’ra casa dela nunca a quiseram na cadeia nem nada.” Note-se a declaração da informante (“Já não segui qu'ele morreu ali”) sobre a morte do cavaleiro, que, efectivamente, não é expliciada no romance, mas uma implicação. Ninguém, de facto, tem dúvidas sobre tal desfecho, que é uma implicação lógica do narrado, tanto no Tipo B, que descreve o veneno, como no Tipo A, que não o faz. Por essa razão, na versão VM/3 Leite (1883b) XIV, do Tipo B, o informante finaliza com a constatação “E morreu”. Na versão acima, há uma tentativa, prosificada (que noutras versões será integrada a nível do enunciado, como se verá adiante), de prossecução da intriga, narrando que Moriana se entrega à prisão, o que lhe parecerá uma consequência lógica; por último, narra que “eles” não a quiseram na cadeia, “nem nada”, e estas palavras revelam, implicitamente, o sentido de que a Justiça vai ao encontro do sentimento: o acto de Moriana é compreensível e, por isso, sobrepõe-se à implicação lógica. Nem sempre, com o passar do tempo, a falta de memória resulta em prosificação, pelo menos de forma permanente, podendo o esforço fazer lembrar outros versos (mas 434 A REVELAÇÃO DO SENTIDO também outros esquecimentos). Vejamos o caso da versão G/63 Fontes (1980) 72 e 7273795 de Gerinaldo, que é composta por duas recitações, em duas entrevistas, da mesma informante796, num curto espaço de tempo. Na segunda, em Fevereiro, a informante declara (em itálico, a negrito) que não se recorda da sequência do acordar do rei, lembra-se dos versos 8 e 9 que não enunciara em Janeiro e lhe terão esquecido, mas, desta vez, omite os 12 e 13 desta, substituindo-os pelo verso 14 (ver a nota à versão): 22 de Janeiro de 1978. 19 de Fevereiro de 1978 1. “- Generaldo, Generaldo, pajem dum rei 1. “- Generaldo, Generaldo, pajem dum rei tão querido; tão querido; 2. porque me não falas de amores quando 2. porque me não falas de amores quando estás só comigo? estás só comigo? ………………….. Mas é que agora tem muitos versos que eu não sei. [……] Quando o rei ... É qu'eu não sei agora aqui. Acordou e chamou pelo seu vestido, qu'ele é que vestia, é que lhe ia dar as roupas. 3. Foi de quarto em quarto, de castilho em 3. Ele foi de quarto em quarto, de castilho em castilho; castilho; 4. foi ao quarto da infanta onde nunca tinha 4. foi ao quarto da infanta onde ele nunca ido. tinha ido. 5. Lá os vê ambos deitados como à mulher 5. Lá os viu ambos deitados como à mulher c'o marido. com o marido. 6. - Acorda, tão bela infanta, que nosso mal 6. - Acorda-te, tão bela infanta, que nosso 'tá sabido; mal 'tá sabido; 7. o punhal de vosso pai entre nós ambos está 7. o punhal de vosso pai entre nós ambos 'tá metido. metido. 8. - Donde vens ó Generaldo que vens tão acalorido? 795 796 É considerada, em BRPTOM, como uma única. Maria Soares de Sousa, de 67 anos de idade, natural de S. Pedro, Santa Maria, em Stoughton. 435 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 9. - Venho de caçar à roda da manhã do rocio. 8. - Nã me mintas, Generaldo, Gerenaldo, 10. - Não me mintas, Generaldo, nunca me nunca lhe fostes mentido; fostes mentido; 9. mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido1. 11. mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido. 10. Ainda ontem colheres de prata, já hoje 12. 'Inda ontem colheres de prata e já hoje d'ouro batido; 11. ainda ontem meu criado, d'ouro batido; já hoje meu 13. 'inda ontem meu criado e já hoje genro genro querido. querido; 12. - Generaldo, Generaldo, tu foste muito 14. 'inda ontem separados e já hoje à mesa atrevido; comigo.” 13. mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido.” ----------Nota à versão: “1 Esforçando-se por se lembrar do romance a informadora também recitou a seguinte variante destes versos: - Gerenaldo, Gerenaldo tu foste muito atrevido mas tivera ela juízo p'ra te ter arrecebido.” Apresentamos, de seguida, um exemplo do que pode acontecer, num caso de duas recolhas por diferentes colectores, junto da mesma informante, separadas desta vez por um certo lapso de tempo (onze anos); veja-se, igualmente, como a prosificação é intercalada com a enunciação de versos e integrando apartes explicativos e didascálias : 436 A REVELAÇÃO DO SENTIDO S/13 Purcell (1976b) 66-67 [Ferré (1982) 203-204; Purcell (1987) 53-54; NRAM (2008) 355]797 A) 9 de Junho de 1970 B) 6 de Agosto de 1981 Purcell (1987) 53-54 (reedição de Purcell Ferré (1982) 203-204 - (Classifica como (1976b) 66-67) - (Classifica como Queixas de Silvana) - Recolhida por José Joaquim Dias Dona Urraca) Marques, Pere Ferré e Ana Maria Martins. 29 hemistiquios. 49 hemistíquios. 1.”Passeava Dona Silvana por seu corredor 1.”Passeava D. Silvana por suas corredores acima. acima; 2.Seu pai andava-a mirando a todas as horas do 2.o pai a andava mirando todas as horas do dia. dia. (Mas aqui, ... o que me lembra é que o pai 3.- Bem podias tu, Silvana, seres minha pel'um estava a gostar muito dela, e disse que ela que dia. fosse para o seu quarto se mudar de fato, que 4.- Serei um e serei dois, do papai sou toda a esperava por ela. Que tinha aquela hora vida, marcada, qu' esperava por ela. Foi quando a 5.mas as penas do inferno, papai, quem as Dona Silvana subiu ao seu quarto e gritou passaria? muito por a sua mãe, que lhe valesse a sua 6.- Sou eu, minha filha, que as passo toda a mãe, que seu pai, que contando à mãe o que o vida. pai queria fazer naquele grande saluços de 7.Vai Silvana par'ó seu quarto, mais triste qu'a desgosto. E a mãe apareceu-lhe e disse-lhe:) noite e o dia, 8.chamava por sua mãe que há sete anos era falecida. 9.- O que é que tu me queres, que me queres, filha minha? 3.- Dá-m' os teus vestidos, teus fatos de cada 10.Empresta-m'os teus vestidos, teus fatos de dia, cada dia, 4.que eu quero ir com teu pai, ah, ladrão o que 11.qu'eu quero ir com teu pai, ah! ladrão, o que te queria! te queria! 797 São consideradas a mesma versão em BRPTOM; reproduzimos, na coluna da esquerda, como em Purcell (1976b) 66-67 e, na da direita, como em Ferré (1982) 203-204. A informante é Filomena Oliveira e a versão é do Campo do Cima, c. do Porto Santo, ilha de Porto Santo. 437 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (E nisto a mãe vestiu os fatos dela e vai c'o E a mãe foi p'r'ó pai e o pai disse: rei, c' o pai. Chega ao quarto do rei; e o rei diz-lhe:) 5.S’acaso te conhecer honra, muito a vida te 12.- Se eu te conhecer honra, a vida te guardaria; guardaria, 6.mas se não te conhecer honra, a vida te 13.mas se eu não te conhecer honra, a vida te tiraria. tiraria. (E aqui a mãe disse que já tinha tido três filhos.) 14.- Como me podes conhecer honra (…) 7.- Como é que podia ser ter honra? 15.se sou mãe de sete filhos qu'eu contigo teria? (E o marido responde:) 8.Que vozes são estas que eu oiço tão 16.- Ai que vozes são estas, que vozes tão desmudada? desmudadas? 9.É a nossa filha Silvana, chora qu' está 17.- É a nossa filha Silvana que chora, 'tá desgraçada. desgraçada. (E nisto o rei desmaioua e ficou quas’ a 18.- Rei que 'tás para morrer, Deus vos dê morrer, e a mulher disse-lhe; e ele disse que parte na alma, deixava:) 19.repartistes os teus bens, a mim não me destes nada. 10.- A João deixo-lhe as casas, a Pedro terras 20.- A João deixo as casas, a Pedro terras lavradas. lavradas. 11.E à nossa filha Silvana, a essa tu não deixas 21.- E à nossa filha Silvana, a essa tu não nada? deixas nada? 12.- Lá lhe deixo aquela bóia, aquela bóia 22.- Lá lhe deixo aquelas bóias, aquelas bóias dourada; doiradas, 13.por uma banda corre ouro, por outra prata 23.pel'uma banda corr'oiro, por outra pratas lavrada. lavradas. 14.- Quando eu nasci neste mundo, já a bóia 23.- Quand'eu nasci neste mundo já as bóias era tomada eram tomadas, 15.entre duques e marqueses, todos de espada 25.entre duques e marqueses, todos d'espada dourada.” doirada.” Notas: na prosa, depois do 2b saluços, Variantes: 2a. seu pai; 4b. serei do papai toda ‘soluços’; 8b desmudada, ‘mudadas’, 12a, b a; 6a. Sou eu, Dona Silvana. bóias ‘?’ 438 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Seria de esperar que a versão B), recolhida onze anos após a versão A), tivesse sido esquecida pela informante e apresentasse uma maior prosificação. Tal não acontece, o que se explica por um possível maior esforço de memória da informante798, notando-se a variação mínima dos últimos versos nas duas versões, que correspondem a Queixas de D. Urraca. Embora o número de filhos que a mãe declara ter passe de três, na versão A), para sete, na versão B)799, a prosificação da primeira versão, no que diz respeito ao sentido da narrativa, é fiel aos versos enunciados na segunda. Já o sentido da já referida aquiescência com o pai, implícita nos versos 4 e 5 da versão de Agosto (“Serei um e serei dois, do papai sou toda a vida, / mas as penas do inferno, papai, quem as passaria?”) não encontra equivalente explícito na prosificação. 798 Um esforço de memória pode, na verdade, produzir versões mais completas. É o que se passa com a versão de Delgadinha recitada por Adélia Vieira Serrão, 72 anos na altura, recolhida no dia 11/8/84 em Aljezur (concelho de Aljezur), por Vanda Anastácio e Pere Ferré . (D/197 Anastácio (1988) 85 [Carinhas (1996) 88]): 1. “- Adelina há-des ser minha, há-des ser minha amada. 2. Hei-de te vestir d'ouro, hei-de te calçar de prata. (…) (…) 3. Adelina escada acima, muito triste, apaixonada, 4. viu estar as suas manas a bordar uma almofada. “ (…) (…) No dia 1/9/89, Ana Cristina Carinhas recolherá, no mesmo local e da mesma informante, já com 78 anos, a versão mais completa ([Carinhas (1996) 88], que não considerámos no nosso corpus, por ser considerada reedição): 1. “- Adelina, há-des ser minha, há-des ser a minha amada, 2. Eu hei-de te vestir de ouro, hei-de te calçar de prata. [….] [….] 3. Adelina escada acima, muito triste apaixonada, 4. Viu estar as suas manas a bordar a almofada. 5. - Manas, queridas manas, do coração, da minha alma, 6. Só lhes peço por favor, que me dêem um copo de água. 7. - O pai jurou quem desse água à Adelina, a cabeça degolada. [….] [….] 8. O primeiro que chegou com água, foi o seu amor constante, 9. Adelina bebeu água e morreu no mesmo instante.” 799 Se o número dos filhos tidos difere na parte correspondente a Silvana, já os nomes - “João, Pedro e Silvana” - na parte de Queixas de Dona Urraca são os mesmos, nas duas versões. 439 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Mais ou menos elaborada, as prosificações podem assumir as seguintes características: a) fidelidade à intriga tradicional, substituindo sequências: Bernal Francês: - Sequência II : “Ele disse qu'era o Bernardo Francês e entrou. Tinham lá aqueles candeeirinhos e a luz apagou-se. E foram-se deitar às escuras. Diz ela:”, BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37. Delgadinha: - Sequências I, II, III, IV: “Chegava a aldininha. Era o pai o pai queria o pai queria sa meti c’a ilha e a ilha diss’ que ad’rava a Deus d’ céu que el’ qu’er’ pai dela que qu’ria que se namorava dele. E el’ disse:” [……..] “E ’cando o pai c ’ da reina. Ele mandou-a prinderi. Só pão e áugua. O pai prendeu-a s pão e gua. E ela ‘stava prisa e depõis o pai diss’ par’ela não l’ dar gua s pão. J ‘tava h oito dias a pão é qu’ela pediu mãe que l’ desse gua. E ò pai dissi e mãe diss’:” [……..] “O pai depois qu’a ilha nã quis ir c’o pai a mãe oi maltrat -l’. H sete anos qu’o pai d’sprezava a mãe. Passou a ar i meia e el’ d’ss’:” [……..] “E el’ disse que se le desse gua o pai que le matava. E el’ pediu aos criados e os criados diss’ que não que não podia. Quando ò depois e ela pediu a Deus.”, D/67 Purcell (1968) 142144. “Era um pai que tinha três filhas e ele interessou-se pela mais moça. A filha nã queria ter nada co' pai e ele vai lá mandou prender a ilha num quarto e depois a ilha ‘tava a morrer.”, D/239 Xarabanda (1995) 36. “Um rei tinha três filhas. Uma era mais bonita qu'as outras e ele queria facer pouco daquela filha (chamava-se Delgadinha). E ele, depois, miteu-a numa sala. Nem le dava de comer nem le dava de beber, nem lhe deixava dar de beber nem os criados, nem a mãe, nem os irmãos. Adepois, tanto tempo 'tev' alii, qu'ela, coitadinha, se morria c'a fome e co' a sede. E o cabrão do pai queria fazer pouco dela e ela não se deixava, porque podia [?] morrer naquela sala metida que não se deixou vencer do pai. Ela pedia à mãe que lhe desse de comer e de beber, e ela respondia-le que não le podia dar, qu'o homem qu'a matava. Adepois, sentia falar as su' irmãs, e ela saía a pedir que le dessem de e er e de comer:” D/118 Marques (1982) 216-278. 440 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - Sequência V e Sequência VI: “Quando ela morreu, [...]. Cá morriu. E q’ando vind’ co’a ’ua ‘tava ag no rio aparecida com q’atro velas acisas e um jarro d’ gua um jarro d’ prata ina um jarro de prata ina d’ gua.”, D/67 Purcell (1968) 142144. “E o pai mandou os criados à pressa buscar um copo d' á'ua para dar à filha”, D/239 Xarabanda (1995) 36. “Eles todos dois foram ô mesmo tempo. Quando chegaram lá, já ela era morta com uma onte d’ gua cabeceira, mais clara que nem o leite”, S+D/27 Galhoz (1987) 387-389. “ essa altura todos corriam pra não ser nenhum o derradeiro, e, quando lá chigaram os criados, que estava ela morta num caixão já, muito bonito, assim com raminhos e assim, e parece que com uma fonte d'água à cabeceira.”, D/116 Marques (1982) 214-215. “[Ele, então,] mandou os criados, o primeiro que lá chegasse parece que casava co'ela. Quando lá chegaram, já estava morta, uma nascente d'água a correr ò pé dela (...) Ela morreu de sede. Ela não tinha água, não (...) Ela despois fez-le ver ò pai. Aquilo foi por milagre de Deus.”, D/115 Marques (1982) 213-214. Gerinaldo: - Sequência VII: “Foi iele, lebantau-s' e foi dai um passeio. E o rei foi-1' ò incuontro e depois dixe-1' antõu: ...” , G/53 Pereira (1970) 242-243. - Sequência IV , V, VI: “Grinalde foi o que fugiu co a moça ò rei. O rei sonhau que Grinalde staba co a filha meteu-la spada ò meio e foi-s' imbora. E depois a filha ascordau e dixe: ....”, G/53 Pereira (1970) 242-243. b) conhecimento da fábula, introduzindo pressupostos que explicam as circunstâncias ou que se imaginam: Bernal Francês: - “Uma senhora era casada. O marido foi para a guerra. Entretanto ela foi-lhe infiel. O marido volta, quando o amante estava ausente. (Já estropiado).”, BF/46 Leite (1958) 418-419. 441 A REVELAÇÃO DO SENTIDO - “Um homem oi para o Brasil e deixou icar a mulher na terra. Escrevia-lhe, mas não recebia resposta. É que ela tinha arranjado um amigo e por isso se desinteressara dele. Por artes do diabo, o marido apareceu uma noite na terra e foi à porta bater. A mulher julgou tratar-se do amigo que j h uns dias não aparecia:” BF/79 Campos/Almeida Fernandes/R. Pereira (1985) 138-139. - “O marido oi para a França e quando terminou a guerra veio. A mulher tinha c ficado. Ouviu bater à porta e cuidèva que era o amigo, mas era o home dela. O amigo é que era o Bernal de França. Quando era meia-noite disse ela assim:”, BF/112 M.A.Vilhena (1995) 121. - “Era uma senhora que tinha um amante e o amante era o Bernardo Francês. Um dia o marido combinou com ela qu'ia p'ra uma feira, no Brasil, e saiu de casa. Mas ele veio noite e ateu porta. E ela disse:”, BF/113 Custódio/Galhoz (1996) 37-38. Veneno de Moriana: - “Era um rapaz que namorava uma rapariga e odepois deixaram-se. Estava o casamento todo tratado e ele ausentou. Mas depois regressou lá e ela pensava que ele ia p'ra terminar outra vez o casamento mas era o contr rio.”, VM/177 Galhoz (1987) 316. Delgadinha: “Era um pai que tinha duas ilhas. J era amante duma da mais velha e queria ser amante da mais nova, mas ela não assinou (?). Cantava muito bem essa mocita e andava cantando, fazendo as limpezas em casa800.”, D/215 Cardigos/Marques (1994a) 15. c) fidelidade à intriga, mas com alterações ao sentido: - Alteração do sentido das falas das personagens: Em certas versões de Delgadinha801 dá-se uma variação importante, que mantém a fidelidade à intriga, mas altera o sentido que uma das personagens, o pai, atribui à afirmação da filha, de ser “sua namorada” (16.“- Eu peço a Deus do céu de ser sua namorada.”, D/112 Marques (1982) 210-211), julgando que esta diz que lhe vai ceder. 800 Este pormenor de “cantar bem” e “andar cantando” pode ser influência do sentido de Silvana, que anda tocando pela casa; parecerá à informante que Delgadinha é mais recatada, pelo que a imagina a desempenhar as tarefas do lar. 801 São elas as nossas S+D/18 Leite (1960) 86-87, D/111 Marques (1982) 210-211, D/112 Marques (1982) 211-212, D/113 Marques (1982) 212-213, D/114 Marques (1982) 213-214, D/115 Marques (1982) 214-215, D/116 Marques (1982) 215-216, D/117 Marques (1982) 216-278. 442 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Delgadinha, porém, refere-se a Deus. Dias Marques analisa as versões e atribui a variação a “equívocos”, quer o “lexical baseado na ambivalência do determinante possessivo da 3ª pessoa”, quer o que se “centra não no sentido duma única palavra mas de toda uma frase”, quer ainda num de natureza fonética 802 ; aqui, registamos a interpretação dos informantes: 18.”- Eu prometo a Deus do Céu de ser a Sua namorada!” Mas era a Deus, não era a ele! D/113 Marques (1982) 211-212 24. “- Eu peço a Deus do Céu de ser a Sua namorada.” Era pra Deus do Céu, não era pra ele! D/114 Marques (1982) 212-213 12. “qu'eu já prometi a Deus de ser Sua namorada!” Mas era de Deus qu'ela prometia, não era do pai, mas o pai, pelos vistos, compreendeu qu'era dele (...) Nós interp'tamos pra aí o mal, não é?, podia ser ser doutra maneira, agora nós... Ela queria dizer de Deus (...) mas ele entendeu (pra nós, não é?) qu'era do pai, mas ela não era do pai, não. D/115 Marques (1982) 213-214 8. ”- Eu prometo a Deus do Céu de ser Sua namorada.” Mas prometia a Deus do Céu, não era a ele, e ele, então, quando ouviu esta palavra, julgava que ela dizia que era pra ser namorada dele, é que ele: D/116 Marques (1982) 214-215 16.”- A vontade de Deus seja feita!” A vontade de Deus! Ele entendeu qu'era a dele, mas era a de Deus! D/117 Marques (1982) 215-216 802 Cf. J. J. Dias Marques [1982], “Sobre um tipo de versões do romance de Delgadinha”, Quaderni Portughesi, XI-XII, Primavera-Outono, 1982, pp. 195-225, que cita e refuta o exposto no artigo de Xosé Maria Álvarez Blázquez [1965], O Romance de “Silvaniña” en aliza e Portugal, Separata das “Actas do Congresso Internacional de Etnografia”, promovido pela Câmara Municipal de Santo Tirso, de 10 a 18 de Julho de 1963, Vol. 6º, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1965. Ao invés do defendido por Blásquez, que argumenta com a falta de lógica de tal imoralidade, “incompatibre co esprito abuído e sinxelo da nosa millor literatura popular, onde a prevaricación non foi nunca espiñenta frol que se dese” e para quem, então, precisamente as versões nas quais Delgadinha se promete a Deus e o pai envia a água representam o verdadeiro e original espírito do romance. Para Dias Marques, as versões nas quais Delgadinha cede são o tipo primitivo e, de acordo com Gutiérrez Estévez (e cita Estévez [1978]), demonstra que o romance é, na verdade, a vitória do Bem sobre o Mal, tanto mais que a cedência de Delgadinha não é um pecado mortal, como alegara Blázquez, pois que é fruto da extrema coacção. 443 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Como variante, o pai ouve-a falar com os irmãos, mas o que percebe é o mesmo: 5.”- Irmanos, que soides por cierto, dade-m'uma jarra de água, 6. qu'adepois dela beber, de Deus serei perdonada!” E o cabrão do pai o qu'é que percebeu? Que dele seria enamorada! E depois já mandava os criados e as criadas acudir-le:” D/118 Marques (1982) 216-218 - Alteração do sentido da actuação das personagens: Mesmo que, nalgumas versões, os membros da família de Delgadinha a lamentem, nunca procurarão ajudá-la, excepto numa versão em que a informante entende que o irmão mais novo quer e tenta fazê-lo; é ele que está junto da irmã e anuncia a sua morte ao pai, o que sugere a sua solidariedade; há, portanto, um desvio ao sentido da negação de água a Delgadinha, que é o de que todos os seus membros pactuam com o pai. Este ameaça o filho de morte, pelo que, afinal, o rapaz não dará a água, o que segue o sentido do romance: “Mas o mais novo sempre lhe queria lá dar a i-água à irmã. [18.Avistou o seu irmão mais novo no jardim a passear. 19.- Irmãozinho, se és meu, tua alminha está sagrada.] O rapaz ia a correr com a i-água pra cima, pra le dar a i-água. Chigou lá, o pai pôs-lhe pena de vida ò fundo da escada (ò rapaz). [20- Sim, ta dava, irmã minha, s' o pai não me matasse.] [………….] E depois o irmão mais novo, que le queria dar a i -água, é que l'arrespondeu, que já estava à cabeceira da irmã: [27.- Delgadinha não quer água, nim quer água nim quer nada, 28. ò pé da sua cabeça há um tanque d'água sagrada.]” D/114 Marques (1982) 212-213 444 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Gerinaldo: A prosificação praticamente total, abaixo (a versão apenas consta da censura do rei ao pajem: “Gerinaldo, Gerinaldo, page do rei mais querido, // Tu eras o Gerinaldo que me roubastes o ninho.”), respeita a intriga, mas atribuí o ónus da sedução a Gerinaldo (a negrito), o que modifica o sentido do romance, : “Bem, o Gerinaldo era um criado de servir e namorou a filha do rei e depois dormiu co'ela e o rei pensou que lhe estavam roubando o ninho, quer dizer, quando foi lá encontrou o criado a dormir co'a filha e pôs-se-lhe a espada no meio. E de manhã quando veio acomodar a cria e os cavalos é que lhe disse: ...” G/165 Galhoz (1987) 402-403 d) alteração da fábula: Delgadinha - Elipse do sentido do incesto: Sendo o incesto um tabu social, este pode ser objecto de elipse, o que altera o sentido geral da fábula. Explica-se a perseguição à filha com um namoro indesejado pelo pai, alterando-se o sentido incestuoso, mas não o resto da intriga, como se percebe do seguinte comentário, no final da enunciação: “O pai não queria que se casasse. E depois começou a namorar e o pai ez-le um convento e fechou-a l dentro”, D/84 Fontes (1980) 68-69. A mesma eufemização é executada noutra versão, mas com sentido inverso – a filha não quer casar com um “moiro”, a que o pai a obriga, sendo por isso que é castigada: “Porque queria-la obrigar a casar c’o Moiro. E ela nã queria casar com o Moiro. Por isso o pai deu-le o castigo dela ‘tar aqueles sete i-anos fechada ali naquelas torres.”, D/86 Fontes (1980) 69-70. e) alteração da intriga: Delgadinha 445 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Embora o peso da tradição nem sempre seja de molde a permiti-lo, pode haver tentativas de modificar aspectos que possam não ser do agrado dos informantes, como é o caso da elipse da proposta incestuosa do pai, em Delgadinha, e a introdução de outra personagem, um pretendente da jovem, mas a intriga pode vir a ser modificada. Referimos já, na Introdução, o estudo de Dias Marques sobre o esquecimento propositado ou inconsciente do desfecho infeliz, substituído pelo casamento com o criado, com o comentário final da informante que intitula o artigo: “E acabou tudo em bem” 803. É a condição social do pretendente, neste caso, que origina e explica a sanha do pai contra a filha e o desejo de a salvar que altera o desfecho, o que fica patente nos comentários às diversas recitações, que transcrevemos: pp. 164-166: “A rapariga tinha … parece que tinha um namorado que era criado não sei como era. [……] “Chegam lá, salvam a ra…, tiram a menina do coisa…, do…, de onde estava. O criado casava com ela.” pp. 167-168: “O criado gostou muito da rapariga, e então foram-lhe contar [ao pai] que a Silvaninha que falava muito com aquele rapaz […] O rapaz disse assim: [……] Quando o criado lá chegou, ela deu um suspiro e um ai. O primeiro que lá chegou foi o homem que ela gostava, não é? O primeiro que lá chegou foi o seu namorado, que, ao apanhá-la ao colo, [ela] deu um ai e… morreu… ou era assim…” pp. 170-171: “Ela gostava muito do rapaz, mas o pai não queria(?), porque era um criado. O pai não queria que ela tivesse amores com o criado. Mas, depois, como chegou naquela torre e aquilo tudo, naturalmente, tiveram remorsos, e ela conseguiu casar com o rapaz que ela gostava. E acabou tudo em bem.”. 803 Cf. Marques [1996]. As recitações estão agrupadas na nossa D/243 Marques (1996) 164-166, 167-168 e 170-171. 446 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Nesta versão a informante irá concretizar a mudança no próprio enunciado (17 e 18 das pp. 170-171) “O primeiro que lá chegou foi com ele que ela casou”, assim alterando a intriga e o sentido do romance. Gerinaldo: Numa versão de Gerinaldo, há uma alteração na intriga pressuposta que é prosificada – Gerinaldo fora roubado quando ainda criança e levado para casa do rei. Explicam-se, assim, as circunstâncias tradicionais (é criado pelo rei e é a infanta que o namora), mas há, ao contrário daquelas, uma nivelação do estatuto social do pajem, visto que o menino roubado é de sangue real: “Genaraldo era filho do rei de Espanha e neto de el-rei da Hungria. Roubaram-no o menino e levaram-no para outro reino. O rei daquele reino, gostando muito do menino, puxou-o para casa para o acabar de criar. Criou-se e enducou que chegou a ser vassalo do rei. A infanta que o namorava, mas ele não no sabia. Foi tão grande o amor que ela chamou por ele e disse-le: …”, G/41 Leite (1958) 313-315. Já uma versão brasileira de Gerinaldo 804 apresenta “Reginaldo”, um príncipe pobre, que se apaixona primeiro por “D. Infância” e procura aproximar-se dela, disfarçado de jardineiro do rei; só depois ela vai apaixonar-se por ele, tanto que o provoca a dormir com ela. Assim, as circunstâncias iniciais são diferentes, alterando a intriga e é Gerinaldo o sedutor805, mas respeita-se a semelhança básica de sentido (no caso uma desigualdade social, visto que o “príncipe menos rico” correponde a pajem (a desigualdade, aqui, não é de estatuto mas económica): 804 Cf. a versão 364 em GRPP I, pp. 419-422, que reproduzimos no final do nosso corpus. Utilizamos aqui esta versão por ser nela muito evidente o fenómeno da prosificação, como, aliás, o é na tradição brasileira, de forma geral. 805 Sobre esta circunstância, a que nos referiremos também adiante, cf. o artigo de Manuel Viegas Guerreiro [1988], “Uma Versão Brasileira Inédita e Singular do Romance de Gerinaldo”, Revista Lusitana. Nova Série, 9, 1988, pp. 5-17, artigo reeditado em Manuel Viegas Guerreiro [1997], Povo, Povos e Cultura, Lisboa, Colibri, 1997, pp. 204-214. 447 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “Era um rei um rei que tinha uma filha. Mas ele era muito rico e só queria casamento igual para a filha. Onde tinha um príncipe que era menos rico e era apaixonado por ela. - Meu Deus, como vai ser pra eu me aproximar de D. Infância? Porque D. Infância é uma princesa tão rica e o pai dela muito orgulhoso, não há possibilidade. O príncipe pensou: E eu que vou procurar um emprego no reinado dele? Se vestiu numa pessoa humilde e foi a ele procurar emprego. Ele disse: - Nós estamos com a casa completa. A única vaga que eu tenho aqui é de jardineiro. Você aceita? - Ele disse: - Aceito. Ele queria ficar perto dela. Aceitou a vaga de jardineiro. Quando é um dia ele estava regando o jardim, ela contemplando, contemplando. Quando foi um dia, ela não resistindo mais chegou na janela e cantou”.... Veja-se o contraste com a versão seguinte, na qual o pajem é de condição social inferior à da infanta, com o fenómeno da variação a atribuir-lhe uma outra profissão, no caso a de “militar de faxina” 806, óbvia referência a um militar de baixa patente (“Era um rei que trazia lá um militar de faxina, e depois tinha uma filha, e depois disse-lh’ assim a filha” G/87 Marques/Silva (1984-1985) 120), mas na qual, todavia, a intriga não foi alterada. A versão brasileira pode ser considerada tendente a uma total prosificação, embora mantenha uma boa parte dos versos, funcionando as partes em prosa que precedem os versos como explicitação do que narram, e finaliza com uma fórmula própria dos contos tradicionais (em sublinhado): 806 O “militar de faxina” equivale ao filho de porqueiro de outras versões e, logicamente, ao pajem desprovido de importância. O humilde posto aparecerá como contraste com “General”, simultaneamente militar de alta patente (o que equivale ao filho de reis que por vezes se revela) e corruptela de “Gerinaldo”, que ocorre em algumas versões: 1.“- General, General, vassalo do meu pai querido, 2. Porque não tratas d'amores a meia-noite comigo?” G/95 Cortes-Rodrigues (1987) 172-174 A disparidade social não podia ser maior e serve, precisamente, a sugerir quem pode ou não casar com uma infanta. Note-se, ainda, que nos “pliegos” genericamente denominados por Canción nueva del Gerineldo, no século XIX, o pajem transforma-se em ‘oficial [russo]’, que foge do serralho de Constantinopla com a sultana favorita, a bela Enildas. Cf. Catalán, Cid [1975], Vol. VI, pp. 30-36. 448 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “Aí casaram os dois, fizeram muitas bodas e muitas festas e até hoje estamos comendo. Entrou por uma porta saiu por outra…” Este tipo de finalização remete a narração para um não-real/não presente, ao contrário do que sucede nos romances, que apresentam os actos praticados não os desvinculando da realidade e como perante os nossos olhos. Pela mesma razão, entendese como um indício de prosificação a introdução do advérbio “depois” numa versão totalmente versificada, como a G/128 Fontes I (1987) 487-488, no v. 12 (12.“Depois o rei sonhou um sono, decerto le tem saído…”), a lembrar também a fórmula de ligação dos contos (“ … e depois [acontecer/fazer algo]”), à semelhança do que acontece na versão G/129 Fontes I (1987) 488, que substitui a sequência do acordar dos amantes pela prosificação iniciada por essa forma adverbial, seguindo-se uma didascália com a mesma estrutura: ” E depois, quando viu a espada, e ficou assustado e levantou-se. E depois el-rei, o rei, dizia-le:…”. f) prosificação total: Os romances podem sofrer prosificações motivadas por esquecimento da forma versificada, podendo manter desta alguns vestígios807, ou, ainda, vir a transformar-se 807 Já referimos a versão brasileira de Gerinaldo em GRPP, extensamente prosificada, mas incluindo ainda parte da versificação. Embora o caso seguinte não tenha a ver com o nosso corpus, referimo-lo por ser paradigmático de uma situação que pode vir a generalizar-se, ou seja, um progressivo esquecimento dos versos, mas não da fábula, transformando os romances em composições mantendo elementos daquele. Entre os trabalhos de recolha efectuados por alunos da disciplina de Literatura Oral e Tradicional ministrada pelo Prof. Doutor João David Pinto-Correia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e depositados no Centro de Tradições Populares Portuguesas ‘Prof. Manuel Viegas Guerreiro’, encontrase uma, efectuada em Moimenta da Serra, concelho de Gouveia, que contém uma composição (Ri-1799/00) que o colector considerou um Conto e uma outra (Rc-13- 98/99), recolhida no ano anterior, em Évora, que foi considerada uma Lenda. Ora lendo as duas composições em paralelo, reconhece-se, em ambas, os elementos narrativos que permitem concluir estarmos em presença de outra coisa. São eles: - um conde seduz uma princesa; - um conde gaba-se de ter seduzido a princesa; - a gravidez da princesa é descoberta pelo pai (apenas numa delas); - a princesa é condenada à morte (num dos caso será queimada e no outro enforcada); - o conde disfarça-se de frade e interrompe o cortejo para a confessar; - o conde disfarçado “confessa” Claralinda e pede-lhe um beijo; - a princesa indigna-se e recusa; - fogem os dois; São estes elementos, mais o vestígio dos versos tradicionais que ambas as composições mantêm, a negrito nas transcrições abaixo, que permitiram perceber (e classificá-las correctamente) que ambas as 449 A REVELAÇÃO DO SENTIDO composições são prosificações de unidades sequenciais do ciclo de Conde Claros (João David PintoCorreia organiza uma “sinopse da organização textual” das cento e sessenta versões disponíveis dos romances do “ciclo” do Conde Claros. Sobre ele, cf. RCTOP, Vol. I, particularmente as pp. 291-303, 331-359, 389-412.). Ri-17-99/00 – CONTO: Um Rei tinha uma filha e disse-lhe que se algum dia le desse algum desgosto, que fosse dormir com algum homem, ele que a mandava matar. Foram lá muntos mandados pelo pai. Houve um que lhe jurou em pés de verdade que não dizia. Ainda não tinha o sol nacido e já s' estava a gabar que tinha dormido c 'ua filha do Rei Baltasar. E depois o pai mandou arranjar um tractor de lenha e deitou-o num monte para pôr lá a filha a arder. Ele (o homem que tinha dormido com ela) disse: - Se me fores leal eu caso contigo e deixo-te fugir que não és queimada. Ele vestiu-se de frade e veio a cavalo, e já a levavam na comitiva para a queimarem e ele disse: - Onde vão ó meus senhores, vão queimar essa menina mas ainda vai por confessar. E ópois o pai disse: - Confesse-a o Senhor Padre enquanto nós vamos jantar. E disse-le, quando a' stava a confessar: - Diga, diga menina qu 'é p’ra se salvar, ó meio da confissão um beijinho m 'há-de dar. E ela respondeu: - Isso não é mandado de Deus nem por santos de altar, Onde Conde pôs os lábios não é para padre beijar. Depois tornava: - Diga, diga menina qu 'é p'ra se salvar, ó meio da confissão um abraço m’ 'há-de dar. E ela respondeu outra vez: - Isso não é mandado de Deus nem por santos de altar, Onde Conde pôs os braços não é para padre abraçar. Ele, então, mandou-a subir para o cavalo e fugiram, e quando vieram de jantar não incuntraram ninguém. Rc-13- 98/99 – LENDA (LENDA DO REI DE LERIA): Ele tinha uma filha e era muito ciumento com ela. O nome dela era Mariana. Ele mandou encerrar a Mariana num quarto virado para o mar, pensando que ninguém via a filha. Mas foi vista pelo conde de Mont' alvar e ele gostou dela. Ele disfarça-se de marinheiro vai em direcção à janela de Mariana. Era de noite, ele engana-a mostrando-se triste, então ela pergunta-lhe: -O que tens marinheiro, estás tã triste no mar? E ele respondeu: -Fez-se-me de noite, sózinho nã tenho p'ra onde puxar. E ela voltou e disse-lhe: -Suba p 'ró mê quarto que nele terá lugar. -E o sê pai Dona Mariana nã vos mandará matar? -O que for há-de soar. Então ele entra para o quarto de Mariana. No dia seguinte, quando a gente do reino se reuniu, o conde afirma: - Ai, ai, eu esta noite dormi c 'um a melhor flor qu'havia. Os outros perguntaram-se com quem seria, houve um que disse: - Foi com a Dona Mariana, filha do rê de Leria. Era a melhor flor que havia naquela corte, desta forma o rei fica a saber e dirige-se para o palácio e manda chamar a sua filha: - Paizinho aqui me tendes, o que me queredes? - O que tens tu, Mariana, que já a saia t 'alevanta? - Ah! nã desconfie meu paizinho, nem se ponha a desconfiar. Este pano da saia mal talhada, quê não a soube talhar, mas ao fim de nove meses algum remédio s 'há-de dar. - O que dizes Mariana,qu 'eu mando-te já matar. -Meu pai, amo e senhor, poderá-o fazer depois de mandar entregar uma carta ao senhor conto de Mont'alvar. O pai dela aceitou. O pai mandou reunir os seus vassais e levar a sua filha para a forca. Ela tinha que passar à frente da igreja, mas tinha a ordem do pai de não se poder confessar. Mas o conde de Mont'alvar disfarçou-se de padre e coloca-se à porta da igreja e obrigou a moça a ir confessar-se porque não podia 450 A REVELAÇÃO DO SENTIDO em contos ou lendas, como é, cremos, o caso de uma lenda urbana aparentada com Delgadinha, na qual ressaltam analogias com o romance e que ocorre no México, país onde este é bem conhecido, e que resumimos. Num beco de Saltillo vivia um carniceiro, que casou com Isaura Delgado e a quem, certo dia, encontrou nos braços de um amante. Tendo a mulher desaparecido por uns meses, correu o rumor de ter sido encontrado um monte de ossos envoltos numa pele enrugada e amarelecida. Contou-se, então, que o marido a teria prendido num quarto dos mais escondidos da casa, suspensa pelos cabelos de um gancho de carniceiro, dando-lhe somente migalhas de pão e água, até ela definhar e morrer. O beco tomou o nome “la Delgadina”, não se sabendo se originado pelo apelido da protagonista e que era, precisamente, “Delgado” (ou se, inversamente, derivaria este daquele nome), se pelo estado de extrema magreza com que morreu, o que a colocaria na categoria das lendas etiológicas, ou se, acrescentamos, pelos motivos partilhados com o romance (a prisão num quarto, a escassez de alimentos e água); também, embora aqui se trate de uma situação em que há um adultério, lembramos que há versões de Delgadinha nas quais ela terá um “namorado”, o que provoca a ira de um pai com sentimentos mais semelhantes aos de um marido demasiado zeloso. A lenda que resumimos, classificada como urbana (ou contemporânea, segundo terminologias mais recentes) recombina assim elementos bizarros ou violentos e tidos ir para a forca sem se confessar. Os vassais do rei não tivera outro remédio senão deixar Dona Mariana ir confessar-se. -Confesse-se lá menina e saiba-se confessar qu 'a meio da confissão um abraço m 'há-de dar. -Onde o senhor Conde pôs os braços nã é p 'ró senhor prior apalpar. Ele repete: -Confesse-se lá menina e saiba-se confessar qu'ó fim da confissão um beijinho m'há-de dar. -P'ras palavras que ‘tou a ouvir e as rezões que m'está a dar, está-se-me quase a parecer o senhor conde de Mont'alvar. - Anda p'ra esta sala qu'ali taremos aonde escapar. Trota p'ra este cavalo e saibas t'atromar, diz agora ao teu pai que venha cá te matar. E fugiram. 451 A REVELAÇÃO DO SENTIDO como factuais de narrativas mais antigas, como é o caso de Delgadinha808. Deste modo, não obstante a efectiva perda que representa a prosificação, haverá, optimisticamente, que encarar o fenómeno da prosificação como mais uma capacidade de pervivência dos romances orais tradicionais. g) ligação entre contaminações: As ligações entre romances contaminados são também objecto de intervenções prosificadas, quando parece importante que as circunstâncias narrativas sejam melhor compreendidas. No caso de Bernal Francês + A Aparição as prosificações explicitam o desfecho (foi o marido que matou a mulher) do romance enunciado (Bernal Francês) e simultaneamente de ligação à contaminação que se segue (A Aparição) – Bernal Francês vai procurar a amada e o marido desta, que a matou, encontra-o no caminho: 11. “- Cala-te, perra traidora, deixa vir manhã clara. 12. Tratarei de te vestir gargantilha colorada, 13. (…) levarás saia malhada. E ele matou-a e foi enterrá-la a um vale e logo encontrou o outro amigo dela: 14. - Pr’onde vais, Bernal Francês? Vou ver don’Ana.” [….] BF/109 Anastácio (1988) 62 Deste modo, como nos casos seguintes, é o marido que informa o rival do sucedido: “ Depois o marido encontrou o namorado:” BF/36 Leite (1958) 404-405. “O marido deixou-a por morta no jardim. em Bernardo Francês que diz:…”, BF/41 Leite (1958) 410-412. “De manhã cortou-lhe as goelas e foi-s’andar. Indo l adiante encontrou o Bernardo Francês, mas este não o conhecia”, BF/43 Leite (1958) 413-414. 808 Para a lenda, cf. Agustin Saucedo, El callejón de la Delgadina. Leyenda urbana de Mexico. Saltillo, Coahuila, em http://www.mitos-mexicanos,com, arquivo acedido em 17 de Março de 2009. Para uma definição de lendas contemporâneas, cf. Jacqueline Simpson, Steve Roud [2000], A Dictionary of English Folklore, Oxford, Oxford University Press, 2000. 452 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “Depois o marido matou-a e voltou para a guerra. No caminho encontrou D. Francisco de manhã.”, BF/46 Leite (1958) 418-419. “Iele matau-a. Depois pr autro dia o autro inh’ sa ei diela:”, BF/55 Pereira (1970) 243-244. “Ele depois mandou-a matar.”; “Ele encontrou o Bernardo Francês que vinha a cavalo num cavalo:”; “E diz-le o que ela levava. E o Bernando Francês, na igreja de São Gil, oi alar com ela.”, BF/108 Anastácio (1988) 61. “E ele matou-a e foi enterrá-la a um vale e logo encontrou o outro amigo dela:”, BF/109 Anastácio (1988) 62. “Quando foi de manhã cedo, encontrou o Bernal de França”, BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121. “Depois é que veio o amigo o Bernando Francês”, BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37. Já na parte correspondente A Aparição, certas intervenções actuam como didascálias (“E brádou-lhe e ela respondeu-lhe:”, BF/109 Anastácio (1988) 62 ou“ A riu-se a sepultura e ele escondeu-se. Ela diz:”, BF/36 Leite (1958) 404-405). Há, também, explicações ao enunciado, como no caso seguinte, ao último verso no qual a protagonista se despede do amante (“Adeus, adeus, meu amor, já estão burlando de mim”, BF/58 Fontes (1979) 113-114), para que se perceba bem que ela está enterrada e que são os demónios que a castigam, rindo-se dela: “Já os demónios estão burlando dela, da cova.”. Ligando Veneno de Moriana a Quem Dever a Honra Alheia, procura-se especificar que ela matou, realmente o cavaleiro e, ao mesmo tempo, a explicação dá a Moriana uma feição de arrependida: “’pois ele morreu no quintal dela; ela enterrou-o no quintal dela (…) Ela nunca mais se tirou da cova a rezar-lhe pela alma c’um rosário de contas na mão.”, VM/75 Ferré 453 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (1982) 194. A análise das explicações e comentários pode esclarecer a razão de certas contaminações. É o que se passa nestas versões de Silvana com Queixas de D.Urraca: - “Foi quando ela desapareceu e j não apareceu senão quando o pai ‘tava morrendo, mas o que é seu já o tinha deixado a outro e nunca mais se lembrou da filha. A filha apareceu nessa ocasião e disse:”, S/22 Ferré (1982) 209-210. - “Começaram repartir os bens todos. E nem se lembrou da Silvana, nã lhe deixava nada. Foi lá, a menina Silvana disse:”, S/9 Purcell (1976a) 166-167. - “Depois quando ele estava a morrer ele perguntou quem é que estava chorando e a mulher lhe respondeu:” S/29 Marques (1989) 388-390. Se o núcleo de interesse residia na trama de Silvana, a junção de Queixas de D. Urraca vem agora exprimir uma clara vontade de reposição da justiça para com uma filha que, assediada pelo pai, fora depois esquecida por este (repare-se que, enquanto Delgadinha é presa por resistir ao pai, esta é “esquecida” na distribuição dos bens paternos, episódio de Queixas de D. Urraca); vai, então, fazer-se lembrar junto do pai moribundo, que reparte os bens pelos filhos. Na segunda das versões acima, depois de fazer a ligação dos dois romances, e havendo o conhecimento da repartição dos bens do rei, mas perdido o sentido global deste romance, a informante remata ainda com o comentário “Antão ela ficou mais rica ainda qu’ os outros”. Na sua opinião, a atribuição a Silvana da rica “terra de Birona” (31.”Deixo a terra de Birona, pa’ não ficares deserdada; // 32.numa banda corre o oiro, na outra prata lavrada.”) viria, de alguma forma, a colmatar a falta e a indemnizar a vítima. Referir-nos-emos, adiante, ao que o pai deixa a “Silvana”, nas versões com Queixas de D. Urraca, mas transcrevemos aqui a nota do colector à versão S/29 Marques (1989) 388-390, que diz respeito à interpretação da informante: “ O pai - explica a informante - era um rei, e Sambóia «era um prédio, uma coisa de valor.»”. O mesmo não pensará a informante da S/22 Ferré (1982) 209-210; embora Silvana, neste caso, receba uma “jóia” (“É uma jóia unicamente qu'ele deixa à filha.”), a expressão 454 A REVELAÇÃO DO SENTIDO “unicamente” revela que lhe parece pouco. Ainda na versão S/29 Marques (1989) 388390, a junção deste último romance suscitará os seguintes comentários sobre o v. 25 a 28: «O pai já tinha deixado Sambóia ao outro, ao afilhado. Não era irmão dela nem parente, talvez, era afilhado. Ele era pobre; agora, que tinha a riqueza do coiso, não se lembrava, já não ligava a ela. Nessa acasião, já ele não lhe ligou»” e “«Ele era afilhado e estava lá em casa e, por isso, lhe faziam aquelas ofertas, quando ele fazia anos».”, demonstrando que também não está esquecido o restante sentido de Afuera, afuera, Rodrigo – o “afilhado”, o Cid, a quem é oferecida tão boa “prenda de anos”, agora rico, não se lembrará mais de “Silvana”. Quanto às ligações de Gerinaldo a O Órfão, são lacónicas e informativas da visita que a mãe faz ao pajem: “E a mãe foi-lhe azer uma visita.”, G/667 Ferré (1982) 232-234. “O pai mandou-no prender e a mãe foi assim:”, G/72 Ferré (1982) 237-238. “ isto a mãe dele soube. Foi ter com o filho.”, G/75 Ferré (1982) 241-242. 3. As intervenções no enunciado Entendemos como intervenções a nível do enunciado as elipses, os acrescentos e outras modificações à cadeia lógico-temporal dos sucessos do texto “base” do romance que, de algum modo, afectam esta e/ou o sentido do romance (ou de segmentos da intriga). Definimos, na Parte I, a organização narrativa dos romances em sequências, mas é preciso ter em conta que as versões nem sempre começam com a primeira sequência definida no “modelo-virtual” nem finalizam com a sequência canónica do desfecho da intriga, nem, tão pouco, estão as intermédias isentas de modificações da estrutura narrativa ou no sentido. Procurámos então fazer um levantamento das diversas intervenções nas versões, comparando-as com o “modelo-virtual”, para ajuizar em que medida o fazem, tendo já referido algumas delas, ao abordarmos os suportes 455 A REVELAÇÃO DO SENTIDO significantes do sentido (e até a plurissignificação dos motivos), por considerarmos esse procedimento de maior operacionalidade no momento. Analisaremos agora, em cada romance do corpus, as modificações às sequências iniciais, intermédias e finais, bem como as contaminações que ocorrem, sob a perspectiva da revelação do sentido. Além disso, é frequente, nas versões, haver Prolongamentos, com uma extensão variável de versos, que podem mesmo estruturar-se como uma outra sequência e que dividiremos nos seguintes tipos: - Alongamento da narrativa - Expansão da intriga - Post scriptum - Fechos e remates. No primeiro caso estão muitas versões de Delgadinha, que de certo modo alongam a narrativa com versos sobre quem a rodeia no leito de morte, sobre a sua ascensão ao Céu e/ou sobre as penas do Inferno aplicadas aos que lhe fizeram mal. Como estes versos, afinal, nada adiantam à intriga (sendo mesmo dispensados em certo número de versões, tal como o fazem as sefarditas), considerá-los-emos como um prolongamento de simples feição cristianizante. Também as Lamentações, em Veneno de Moriana não afectam a intriga do romance, apenas sendo um meio de despertar piedade. Já os casos em que Moriana há-de ir presa, são expansões da intriga porque se tratam de uma continuidade narrativa, que parece ter certa lógica (a própria personagem o faz). Podendo estes acrescentos ter como razão de ser o exprimir uma tomada de posição relativamente a determinada acção, e nessa perspectiva serem simultaneamente prolongamento de narrativa e post-scriptum, outros adquirem mais marcadamente esta função. O IGR (p. 119) entende como post-scriptum os comentários introduzidos por 456 A REVELAÇÃO DO SENTIDO um narrador, acabada a história, mas a designação pode também alargar-se às apreciações manifestadas através das falas finais das personagens, quando estas assumem a mesma função, como narradores intradiegéticos. O mesmo se poderá dizer de certos fechos ou remates que, de qualquer forma, comentam a intriga, embora desde já ressalvemos que alguns parecem extrínsecos a esta, sem ligação aparente de sentido. Considerando que, na generalidade, a intriga é contada com uma certa neutralidade, estes prolongamentos “eu/contador/narrador” representam ou do um espaço “eu/personagem” em que a individualizados presença do daquela se transformam num acto de embraiagem do sujeito da enunciação, que pode assim revelar um ponto de vista de associação (pró ou contra) ao acto narrado ou exprimir uma moralização na qual está implícito um conjunto de códigos colectivos, mesmo que os coloque na boca de personagens. Estas “intervenções” a nível do enunciado de que temos vindo a falar ocorrem após o desfecho, havendo outras, menos comuns e nesta ou noutra posição na versão, a que chamámos “criativas”, por não parecerem ter nada a ver com a narrativa que se segue. As contaminações, por sua vez, afectam a estrutura narrativa dos romances e surgem em posição inicial, intermédia ou final das versões, podendo ou não modificar o sentido. Segundo Flor Salazar, a contaminação809 “opera sistemática y abundantemente en los romances, desde sus más remotas orígenes hasta hoy…”, e o seu estudo torna-se relevante, visto que este fenómeno “afecta profundamente a la evolución y desarrollo del género”810. No IGR distinguem-se dois tipos de contaminação, a “intrafabulística” e a “extrafabulística”, a primeira das quais se define como a utilização de uma parte ou de 809 Note-se que o temo “contaminação” pode ter uma conotação negativa de impureza e deterioração, tal como Philip O. Gericke adverte (Gericke [1989], pp. 65-70), mas não é obviamente nesse sentido que aqui o entendemos, mas como um dos processos usados no romanceiro para revelar sentidos, e que pode ter como efeito a alteração ou o reforço do sentido do romance importador. 810 Flor Salazar [1992], “El Romanceiro de Almeida Garrett y la edición de textos contaminados”, em Manuel Viegas Guerreiro, coord. de, Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Lisboa, ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 395-432. 457 A REVELAÇÃO DO SENTIDO toda a intriga de um romance para representar uma (ou parte de uma) sequência do romance importador e a segunda a incorporação inesperada de uma sequência de um romance (sobretudo no início ou no desfecho) na fábula de um outro811. De facto, as contaminações acabam por influenciar a estrutura narrativa própria do romance importador, embora o façam em graus diversos. Neste processo, não só se utilizam versos e hemistíquios de tipo formulário, como também a semelhança dos incidentes narrados num romance (e até de temas), mesmo remota, pode levar à sua integração em outros romances 812, constituindo um “formulismo situacional”, conceito formulado por Philip O. Gericke, que lhe estabelece um paralelo com a situação de contaminação, dizendo que ambos são “aspectos relacionados del mismo proceso composicional basado en un extenso repertório de motivos y patrones verbales que el hábil poeta sabe utilizar” 813. No nosso corpus, encontrámos diversas situações, em posição inicial, intermédia ou final, de “contaminação”, termo que aqui empregamos no seu sentido mais lato, ou seja, referindo-nos à incorporação, em versões de um romance, de um outro, de cantigas narrativas ou de parte(s) deles, que pode limitar-se a apenas alguns versos. Em Gerinaldo, o rei pode mandar prender o pajem e, em uma versão, particulariza o castigo com um verso (a negrito), que é uma contaminação formulária de Delgadinha: 11.“- Eu vou-te mandar prender no baixo duma prisão, 12. vou-te dar bebidas d'água salgada e pedras por pão.” G/66 Ferré (1982) 232 Em versões do mesmo romance, depois de os amantes serem descobertos pelo pai, há a variação de a infanta escrever uma carta; numa delas, em vez de dizer logo a 811 IGR, pp. 143-158. Na p. 111, assinala-se que, em RESU e SUMM, serão inventariadas “secuencias, alternativas de secuencia y fragmentos de secuencia tomados de versiones pertenecientes a corpora textuales ajenos al del romance descrito”. 812 Verificar-se-á, na análise das contaminações encontradas nos romances do corpus, que nem todas as junções de material narrativo importado de outros romances alteram substancialmente o sentido do romance importador. 813 Cf. Gericke [1989], pp. 65-70. 458 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Gerinaldo que a leve ao pai, exprime o desejo de ter um portador, que o pajem se oferece para ser: 26.“- Oh, quem me dera de ter um criado que me fosse leal, 27. que me levasse uma carta para as mãos de meu pai.” 28.“- Escreva lá, ó menina, que eu a irei levar.” G/102 Ferré (1987a) 65-66 Ora esta situação é muito semelhante ao episódio do ciclo de Conde Claros, em que a princesa vai ser punida e quer avisar o conde por carta, ansiando por um portador814: “- Quem me dera um criado que me fosse bem leal, Que me levasse uma carta a Carlos de Montealbar.”815 Estas contaminações não são senão um meio de expandir a intriga, mas outras há que levam a narrativa (e o sentido) por outros caminhos, podendo ou não chegar ao mesmo desfecho do romance importador. A razão de ser de tais intervenções é complexa de identificar, uma vez que poderiam ser devidas a eventual confusão pessoal dos transmissores. No entanto, note-se que estes podem muito bem saber que os versos são contaminação, o que é demonstrável pela nota do editor à versão acima citada: “Os versos 26-28 foram ditos por Sofia Soares Cruz, tendo sido considerados por Maria Joaquina Condenso como não pertencendo a este romance.” As contaminações são, pois, um uso criativo de elementos narrativos romancísticos, resultando do recurso a um fundo comum, do mesmo modo que são usados os motivos, mas não aleatório. Uma vez que analisamos a revelação do sentido, procurámos então inventariar as intervenções no enunciado816, seja a sua posição de inserção inicial, intermédia ou final, 814 Em Conde Claros (cf. RCTOP, Vol. I, Conde Claros enamorado, 5.4.2.3., p. 334-335), há variação nos portadores e, na que nos serve de exemplo, é um irmão (“- Escreve tu, minha irmã, que lha irei levar”). Em outra versão, a nr. 149, p. 286 do Vol. I do RPTOM, de Viana do Castelo, d. de Viana do Castelo, o apelo é a um pajem (mas é um anjo que se oferece). 815 RPTOM, Vol. I, nr. 128, p. 257. 816 Estas reelaborações inventivas, embora nem sempre se generalizem, podem acabar por originar um número suficiente de versões para poderem ser consideradas uma variante. Note-se também que determinadas contaminações podem fixar-se geograficamente, tal como acontece no espaço da tradição 459 A REVELAÇÃO DO SENTIDO em função dos efeitos que provocam no sentido global do romance importador ou de certos pontos em particular. 3.1. BERNAL FRANCÊS Sequência I – A Mistificação: Embora a abertura deste romance apresente grande variação estrutural, como vimos ao tratar os suportes significantes directos, o sentido da situação inicial não é objecto de modificação nas versões; nem mesmo nas que se apresentam fragmentadas, com elipse da primeira sequência, há a implicação de que a sua falta altere o sentido do romance. Em resumo, mantém-se o sentido da mistificação da adúltera pelo marido que regressa a casa, por causa de uma pressuposta suspeição, e que, por isso assume a identidade do amante. No entanto, acontece que o objectivo de reservar a surpresa para o final (que é o desvendar dessa identidade e, afinal, a razão de o romance começar in media res) seja anulado, o que acontece em certas versões sul-americanas, que introduzem uma sequência explicativa das circunstâncias prévias, tal como no corrido mexicano que citámos no capítulo dedicado aos suportes significantes (Corrido de Elena). Se bem que na tradição portuguesa não exista a variante na qual se conta que marido é sabedor do adultério, o caso abaixo, narrativamente, vem-lhe a corresponder, com a introdução de um verso inicial no qual se declara explicitamente que é o marido quem bate à porta (a negrito). O verso longo da versão, de resto, mais parece uma indicação cénica a nível de enunciação, até porque não segue a rima dos outros versos. Note-se, porém, que esta introdução anómala não impede que a versão siga como habitualmente: 1.“Batera-lhe à porta o seu marido e ela respondeu-lhe: 2. - Se tu és o Bernal de França, as portas se vão abrir, moderna portuguesa com Bernal Francês + A Aparição e com Silvana + Delgadinha e, mais restritamente, na Madeira, com Silvana + Queixas de D. Urraca. 460 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 3.se tu és outro cavalheiro, deixe-me cá estando dormir, 4.- Eu sou o Bernal de França, as portas se me vêm abrir.” BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121 Relativamente à questão de ter havido adultério ter sido ou não cometido anteriormente, considera-se poder existir alguma variação: a) Houve outras ocasiões de adultério (2.“abri-me lá essa porta, que ma costumais abrir.”, BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204); b) Não se sabe se o adultério foi anteriormente cometido, mas a intenção de o cometer pode estar: - no modo explícito ( 2.“- É D. Francisco, menina, que consigo vem dormir.”, BF/39 Leite (1958) 408-409); - implicada na combinação prévia (3.“Eu sou o João de França que aqui ficara de vir.”, BF/25 Martins (1928)/Martins). c) A mulher não tinha essa intenção, mas foi pressionada: - Não se sabe se já terá havido relações anteriores nos casos em que a mulher se recusa a abrir a porta (3.“- Não aibro a minha parta, a tais horas de dormir.”, BF/33 Leite (1958) 404-405). Note-se que este facto ocorre nas versões em que o homem não se identifica pelo nome, mas através do motivo “cravo” ou “flores” (2.”- É o Cravo Roxo, senhora, Rosa Branca, venha aqui.”, BF/116 Alves Ferreira (1999) 117-119 ), como referimos; a mulher ou não compreende de imediato a personificação do motivo ou não quer franquear a porta facilmente; neste caso, poderia então encontrar-se um sentido diferente das outras versões, dando à mulher uma feição mais “honesta”, uma vez que parece ceder só após uma certa insistência e, até, chantagem emocional exercida pelo homem: 4.“- Se me não abres a porta, morto m'acharás aqui 5. Eu trago dois homens mortos, a justiça ao pé de mim”, BF/36 Leite (1958) 404-405 461 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 4. - Se tu não m'abres a porta, morto m'acharás aqui. 5. Ela se levantou, a porta lhe foi abrir.” BF/37 Leite (1958) 406-407 4. “- Se me não abres a porta, morro a chorar aqui.” BF/85 Fontes I (1987) 344-345 Sequência II – O Encontro Amoroso: As sequências intermédias nas versões deste romance são notavelmente pouco sujeitas a intervenções modificadoras a nível do sentido geral. O que podem é ser mais sucintas ou alongadas, tal como acontece nas outras sequências. No capítulo dedicado aos motivos, falámos já do aspecto simbólico do apagar do candil e de algumas variações quanto ao causador do incidente, que agora apenas sintetizamos: - o Destino - causas naturais - o homem Quanto à variação na cena do jardim, foi também já abordada nesse capítulo, mas retomamo-la aqui, relativamente a uma determinada versão que elide a sequência, uma vez que se trata de uma alteração a nível narrativo que não é muito frequente; a elipse explica-se porque não é a mulher que abre a porta, como usualmente acontece no romance, mas ordena à criada que o faça817; não sendo com esta o encontro amoroso, o que ela explicita na resposta um tanto insolente que dá à ordem da ama, a cena do jardim não se justificaria: 5.“- Levanta-te, minha criada, as portas lhe vai a abrir. 6. - Levante-se a senhora, com ele vem a dormir!” BF/16 Tavares (1906) 295-296 817 Esta criada, de resto, é uma presença inusitada no romance, onde os servidores só são mencionados indirectamente, na série de “não temas” dirigida pela mulher ao homem que lhe parece indiferente. 462 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Na mesma versão, porém, presume-se que a criada acabe por obedecer, embora contrariada, e leve o homem para junto da ama; este terá ouvido o receio expresso no v. 8, porque lhe responde imediatamente, tranquilizando-a com protestos de amor, fazendo-se assim a ligação à sequência seguinte: 7.”- Quem me apaga mi candil, melhor me matara a mim. 8. - Não a matara, não, senhora, que lhe quero mais que a mim. 9. Agarrou-le pelo braço e deitou-o ao par de si.” Sequência III – O cair da máscara: O sentido de estranheza manifestado pela mulher perante a indiferença manifestada pelo homem deitado com ela não sofre alteração nas versões, embora ocorram variações, como é habitual nos romances, que, neste caso, incidem sobre o tom com que o interpela, a variar da preocupação (a) a uma certa admoestação (b): (a): 1.“- Que tens tu Bernal de França? Tu dantes não eras assim. 2. Vai a meia-noite dada, sem te virares para mim.” BF/112 M.A.Vilhena (1995) 121 (b): 1.“- Que é isto aqui agora, que é isto agora aqui? 2. Já é meia noite dada sem te voltares para mim.” BF/108 Anastácio (1988) 61 Encontra-se um caso curioso de variação, numa versão na qual a mulher trata por “marido” aquele que julga ser o seu amante: 9.“- Tu que tens, ó D. Francisco, tu que tens, ó meu marido?” BF/39 Leite (1958) 408-409 Ressalvando a explicação mais óbvia de se tratar de confusão do informante, dirse-ia que há uma intenção implícita de a mulher considerar aquele que, prolongadamente, tem tomado o lugar do marido legítimo, como seu “marido”. Há também uma certa variação nos familiares a não serem temidos, que já referimos, bem como nos locais onde a mulher diz que se encontra o marido, em 463 A REVELAÇÃO DO SENTIDO algumas versões a combater 818 , outras no Brasil 819 , ou apenas, vagamente, que está longe (12.“Se temes o meu rnarido, longes terras está daqui”, v. 12, BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208 ), que é o sentido que, em nenhumas das situações, sofre variação. Sequência IV – A punição: Também já referimos as variantes segundo as quais, confrontada com a identidade do marido, a mulher pede a morte como merecida ou tenta salvar-se, neste caso variando entre simplesmente pedir perdão ou alegando que tudo não passou de um sonho820. No primeiro caso e numa versão, ocorre uma variante de sentido um tanto diferente das outras – ela alega que também o perdoou. A questão está em saber o que há a perdoar; ou se refere ao abandono a que foi sujeita ou a um adultério dele e a alegação tem o valor de moeda de troca: 15.” Perdoa-me, meu marido, que eu também te perdoei;” BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 40-42 No caso de pedir a morte (a), pode até dizer como a quer (b), pedir para a comunicar por escrito ao pai (c), despedir-se da mãe (d), confessar-se (e). Por sua vez, o marido, que noutras versões a mata ou a entrega ao pai, nas versões abaixo nega-se, remetendo o castigo para o poder divino (f), mas também parecendo afirmar, em versos 818 Explicitamente os “mouros”, mais uma vez lembrando a associação de Bernal Francês ao capitão de Granada, como nas BF/3 Braga (1869)/Braga(1982) 202-204, v.17; BF/7 Dâmaso (1882) 155156, v. 13; BF/ 34 Leite (1958) 401-402, v. 13, BF/46 Leite (1958) 418-419, vv. 9 e 10, BF/51 Buescu (1961) 209, v. 13, BF/111 M.A. Vilhena (1995) 120-121, v. 9, BF/112 M.A.Vilhena (1995) 121, v. 6. 819 Especificamente no Brasil são várias as versões, como as BF/14 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 428-429, v. 19, BF/15 Oliveira (1905)/Oliveira (198?) 46-49, v. 26, BF/18 Braga (1907)/Braga (1985) 40-42, v. 11, BF/24 Landolt (1917) 81-82, v. 18, BF/39 Leite (1958) 408-409, v. 11, BF/ 43 Leite (1958) 413-414, v. 116, BF/50 Leite (1960) 513-514, v. 17, BF/85 Fontes I (1987) 344-345, v. 11, BF/94 Fontes 1 (1987) 352-353, v. 10, BF/98 Galhoz (1987) 283, v. 11, BF/99 Galhoz (1987) 283-284, v. 11, BF/101 Galhoz (1987) 290-291, v. 7 (Maranhão), BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37, v. 8. Noutras, especifica-se que está no Brasil, numa feira, como na explicação à BF/114 Custódio/Galhoz (1997) 36-37. Nas BF/68 Ferré (1982) 165-166, v. 17 ou BF/70 Ferré (1982) 167168, v. 14, sabe-se que aí teria estado, pois a mulher, ao descobrir que é o marido que está junto dela pergunta-lhe que prenda lhe traz do Brasil. 820 Nesta Parte, no Capítulo I. Os suportes significantes do sentido. 464 A REVELAÇÃO DO SENTIDO anómalos no romance (g), que esta a mulher (metaforicamente a “caça”) é de sua inteira propriedade, a que esta não pode escapar-lhe821, nem querendo morrer: (a) - 14.“Matai-me, senhor, matai-me, pois a morte mereci. (f) - 15. Mate-te Deus do Céu que é quem tem poder em ti (b) - 16.- Dá-m'aquela toalha qu’eu mesmo m’afogaria. (g) - 17.- Não, senhora, não, senhora, qu'eu sou caçador real, 18.caça qu'eu pilho à mão, já não a deito a voar. (c) - 19.- Dá-m'aquele tinteiro junto à minha escrivaninha, 20.quero escrever a meu pai a morte de sua filha. (g) - 21.- Não, senhora, não, senhora, qu'eu sou caçador gentil, 22.caça qu'eu pilho à mão, já não a deito a fugir.” BF/61 Ferré (1982) 160 (a) – 17.“- Matai-me, senhor, matai-me qu'a morte ê le mereci. (b) - 18.- Que te mate Dês do Céu qu'ê quem tem poder em ti, (d) - 19.- Deixai-me, senhor, deixai-me, da minha mãe despedir. (g) – 20.- Caça que me vem á mão nunca a deitei a fugir. 821 Os versos do “caçador” ocorrem na versão C.VII(2).171, Xácara do Conde Claros, pp. 155.156, vv. 18-19 (“- Não sabeis, minha senhora, Que sou caçador gentil? // Pássaro que apanho à mão Não o deito a fugir”) de Conde Claros condenado (classificação em RCTOP, Vol. II, pp. 145-157); a mesma versão (nr. 234, pp. 404-406, Leite (1935a) 185-190) é classificada em RPTOM, Vol. I, como Conde Claros preso e é da Madeira. É a resposta do Conde a Claralinda quando, pavoneando-se sob a sua janela, ela começa por mandá-lo embora antes de tomarem amores; do teor da fala, entende-se que se acha irresistível, e que ela não pode escapar. As versões de Bernal Francês com esta contaminação formulária ocorrem apenas em versões madeirenses e são as que nos servem de exemplo, a BF/61 Ferré (1982) 160 de Campo de Cima, Porto Santo e a BF/63 Ferré (1982) 162-163 do Machico. As outras são: Funchal: 18.”- Eu sou mestre caçador, nã me quero desmentir, 19. caça que tenho na mão, nã na vou deixar fugir.” BF/6 Azevedo (1880) 145-150 Campo de Cima, Porto Santo: 22.”- Bem sabes, mulher, bem sabes, qu'ê sou caçador gentil.” [...] 24. “- Bem sabes, mulher, bem sabes qu'ê sou caçador real; 25.caça quê tenho à mão, já não a deito a voar.” BF/62 Ferré (1982) 160-161 Achada de Baixo, Gaula: 20.”- Eu sou caçador real ............ 21. caça que me vem à mão, não a deito a voar. 22.- Deixai-me, senhor, deixai-me, deixai-m'ir a confessar, 23.................. eu sou caçador gentil 24.caça que me vem à mão, não a deito a fugir.” BF/69 Ferré (1982) 166-167 465 A REVELAÇÃO DO SENTIDO (e) - 21.- Deixai-me, senhor, deixai-me, deixa-m'ir à confissão, (g) – 22.- Nunca deitei a fugir caça, que me vem à mão.” BF/63 Ferré (1982) 162-163 Nesta versão, a mulher insiste, sendo de crer que afinal, o marido acabou por fazer-lhe a vontade, uma vez que finaliza, tal como as outras com A Aparição: 23.”- Nã m'importa morrer da morte qu'eu vou morrer; 24.pesa-me é mês filhinhos qu'outra mãe não irão ter. 25.Nã m'importa morrer qu'ê para morrer nasci; 26.pesa-m'é passar caminho em lugares que nunca vi.” BF/63 Ferré (1982) 162-163 A morte é, por norma, o castigo da adúltera, e já mencionámos que esta é uma “morte anunciada”, quer porque se dará na manhã seguinte, quer porque o é através de certos atavios prometidos, onde impera a cor vermelha que metaforiza a degolação, como tratámos no capítulo dedicado aos motivos (19.“Vestido de seda lavrada, corpinho de grarmezim, // 20. gargantilha degolada já que tu queres assim.”, BF/62 Ferré (1982) 160161). Todos estes adornos ou vestes têm o mesmo sentido mortal, embora a variação semântica os transforme em ofertas um tanto insólitas: 12.“Trago-te faca de ganga e cotão de mercancia; 13. trago-te cruais vermelhos para a tua companhia.” BF/57 Fontes (1979) 112-113 A variação ocorre, largamente, na descrição da roupagem, mas também porque, em certas versões, especifica-se o instrumento da morte (ele próprio sujeito a variação lexical): 14.”que te hei-de talhar o vestido de vermelho carmesim; 15. a tesoura que o corta há-de ser o meu espadim.” BF/27 Rodrigues (1933) 15-16 Em versão também ela com variação semântica da arma mortal (a negrito), a morte anuncia-se através da descrição do enterro, começando por ser prometida para a 466 A REVELAÇÃO DO SENTIDO madrugada, mas introduz-se um verso (v.24) que a explicita e faz deduzir que, afinal, o homem decide não esperar e mata a mulher imediatamente: 20.“- Deixa vir a manhanita, que há-des levar que contar: 21. Levarás saia d'holanda, roupinha de carmesim, 22. irás em esquife dourado, varandilhas de marfim, 23. gargantilhas encarnadas, vós as causásteis assim. 24. Puxou pelo seu alfange, tratou de a matare.” BF/91 Fontes 1 (1987) 349-350 Também já falámos nos casos em que o marido não exprime a intenção de matar a mulher pessoalmente, numa espécie de contaminação formulária situacional, com a introdução de versos similares de Claralinda. A variante da solução pode ser devolvê-la ao pai: 14.“- Para que te hei-de eu matar que te mate quem te criou, 15. Vou-te levar a teu pai veja a prenda que me deu.” BF/95 Galhoz (1987) 280-281 A introdução de um termo como “a prenda”, que nesta versão toma um sentido claramente pejorativo, poderia atenuar o sentido dramático e substituí-lo por uma feição quase burlesca, se a mulher não revertesse ao drama, dizendo: 16.“- Que culpa tem o meu pai ao mal que a filha causou”, mas o sentido do termo é também dual, visto que, afinal, é ela própria a “prenda” que, em certas versões, pede ao marido: 18.”Que me trazes, mê marido, que me trazes para mim?”, BF/62 Ferré (1982) 160-161 O pedido merece uma resposta à letra, com variação, no terceiro exemplo, ao habitual vestuário, mas que mantém ainda uma referência à cor vermelha: 17.“- Traigo-te vestido de seda, manto de clamesim, 18. E traigo-te punhal d'oiro que foi feito para ti.” BF/53 Lemos (1961-1962) 174-175 18. - Trago-te um punhal de prata par’o teu peito ê abrir.”, BF/68 Ferré (1982) 165-166 467 A REVELAÇÃO DO SENTIDO 15. “ Trago-t'um punhal de prata p'ra o teu peito abrir 16. e pinguinhas d'água rosada do teu peito vai sair.” BF/70 Ferré (1982) 167-168 Nem sempre a resolução de não matar a adúltera passa pelas hesitações do homem ou pela devolução à casa paterna. É o caso de uma versão, de criatividade poética, que anula aparentemente o carácter vermelho/sangrento da degolação pelo seu contrário – o branco das areias (e da pomba) –, sugerindo a palidez da morte, que, afinal, será causada por um lento esvair do sangue, vindo a contrariar as palavras iniciais do marido: 14.“Eu a morte não ta dou, nem as mãos t' hão -de embarrar, 15. te porei com esta faca como as areias do mar. 16. Nem uma pombinha branca t' há-de poder apanhar.” BF/31 Carneiro (1945) 166-167 Prolongamentos: A condenação social do adultério é dada em prolongamento com carácter de post scriptum enunciado em diversas modalidades, todas com a mesma função moralizadora: - por um narrador extradiegético: 17.“Pedir perdão ao marido e a Deus que lhe perdoasse 18. E que vivesse feliz com a outra com quem casasse.” BF/101 Galhoz (1987) 290-291 33.“Na campa da Francisquinha nasceu grande pinheiral 34. Ela foi falsa ao marido, morreu em pecado mortal” BF/32 Leite (1958) 398-399 33.“Na campa da Francisquinha nasce um grande pinheiral. 34. quem é falsa ao seu marido morre em pecado mortal.” BF/104 Ana Martins/Ferré (1988) 73-74 468 A REVELAÇÃO DO SENTIDO Note-se a diferença entre os dois últimos exemplos, no primeiro dos quais (“Ela foi falsa…”) o tom é apenas narrativo e se refere apenas àquela mulher, enquanto, no segundo (“quem é falsa…), se torna claramente admonitório a todas as mulheres casadas. - por um narrador intradiegético: - o marido: 34.“vai-te dizer às vizinhas que tomem exemplo por ti, 35. que não façam aos seus maridos o que me fizeste a mim.” BF/9 Braga (1887-1889) 105-107 24.“- Se você fosse boa mãe, como devia de ser, 25. Não havera de morrer da morte que vai a morrer!” 822 BF/45 Leite (1958) 416-418 Em modo de post scriptum, não parece justificar-se em Bernal Francês qualquer comentário aos maridos que matam as mulheres, tendente a qualificar o acto, nem pró nem contra; de sinal contrário é o que se segue, implícita que está no apodo “flor da aurora” a simpatia pela mulher que morreu por amor: 15.“Já morreu a flor da aurora, dizendo assim, assim; 16. já morreu a flor da aurora, por um amor já deu fim.” BF/92 Fontes I (1987) 351 Contaminação de A Aparição: Note-se que considerámos estes versos dos exemplos acima como post scriptum, apesar de alguns estarem a meio das respectivas versões, sendo estas compósitas com A Aparição, pois são eles que finalizam a parte correspondente a Bernal Francês. A própria junção dos dois romances pode ser vista como uma modalidade de post scriptum 822 Note-se, no exemplo, o agravamento implícito da condenação derivado do facto de o adultério ter sido ser cometido por uma mãe de família. 469 A REVELAÇÃO DO SENTIDO de Bernal Francês, funcionando como aviso moralizador, se nela virmos implícita a ideia de que a sorte destinada às adúlteras será sempre a morte, mas pode haver outras razões para a contaminação, tão frequente na tradição portuguesa823. O que nos interessa é perceber como é que um romance de infidelidade como este acolhe um romance de Amor Fiel824. Fiel é o cavaleiro825 de A Aparição que, procurando a sua amada, é informado da sua morte826 e dos “sinais” que a confirmam; junto da campa, exprime o desespero que o leva a querer juntar-se-lhe: 41.“- Se a minha dama é morta, à cova lhe vou falar. 42.À entrada da água benta, principiou a soluçar. 43.- Abre-te, campa de flores, que eu me quero enterrar, 44.nos braços duma querida, que me quero sepultar!” BF/9 Braga (1887-1889) 105-107 Também ela lhe permance fiel, como o foi em vida: 23.“Sou a bela Aninha, sete i-anos te servi.”, BF/75 Fontes (1983a) 91-92 823 Na tradição oral moderna portuguesa o romance A Aparição finaliza também O Soldado (ou O Quintado, RPI J4; IGR 0176), tal como nas outras tradições de âmbito hispânico (tanto castelhana como nas Astúrias, Andaluzia, Canárias, América hispânica, sefardita marroquina e catalã). A Aparição é facilmente associada ao aparecimento pós morte das amadas infelizes e do romance foi elaborada uma contrafacção, em 1878, aludindo á morte prematura da rainha Mercedes, mulher de Afonso XII e que cedo passou a integrar o romanceiro infantil: “¿Donde vás, Alfonso XII, / donde vás, triste de tí ¿ Voy en busca de Mercedes que ayer tarde no la perdi Ya Mercedes ya esta muerta muerta esta que yo la vi quatro duques la llevabam por las calles de Madri”. Cf. Rosa Delia Montesdeoca Zamora, Datos de la pervivencia en la tradición oral de Santa Lucía de Tirajana del Romancero infantil, em www.fulp.ulpgc.es, arquivo acedido na Internet em 7 de Maio de 2007. 824 De acordo com a classificação de BRPTOM, A Aparição inclui-se nos Romances de Amor Fiel, pp. 50-51 e Bernal Francês nos Romances de Mulheres Adúlteras, pp. 69-71. 825 Usamos o termo “cavaleiro”, que aparece no folheto de Praga (Cf. Paloma Díaz-Mas [2001], p. 251) para o protagonista de A Aparição, fazendo notar que, nas versões compósitas de Bernal Francês com aquele, este cavaleiro é identificado como Bernal Francês (ou o nome que lhe for dado na versão). 826 O sub-tema da amada morta que aparece ao amante que a procura tem correspondência em baladas italianas e francesas. A versão castelhana mais antiga do romance está incluída no Cancioneiro de Londres do século XV e dele há versões impressas em folhetos de cordel desde o século XVI (um pertença de Hernando Colón, outro [perdido] no Centro de Estudios Históricos, dois na British Library e outros na Biblioteca Nacional de Madrid e de Praga). Os dramaturgos do Siglo de Oro citam versos seus e vinculam-no aos amores de Inês de Castro e D. Pedro. Cf. Paloma Díaz-Mas [2001], edição de, Romancero, “Classicos y Modernos”, Editorial Crítica, 2001, pp. 251-253. 470 A REVELAÇÃO DO SENTIDO A fidelidade é evidente no verso que faz a ligação dos dois romances, na versão abaixo, e cujo teor implica o amor da mulher, prestes a ser morta, ao amante: 19.“Nã me mates, mê marido, sem de D. Francisco m’espedir.”, BF/68 Ferré (1982) 165-166 O cavaleiro vê então aparecer-lhe a imagem da mulher falecida que lhe mostra a inutilidade do gesto, dado que do seu corpo já nada resta. Esta descrição é geralmente detalhada e o apontamento roça o macabro, como no exemplo seguinte827: 44.“Pernas com que te aguentava, já calor não tem em si; 45. braços com que te abraçava, já força não tem em si; 46. boca com que te beijava, já de terra a enchi; 47. olhos com que te mirava, já de terra os cobri!...”. BF/4 Braga (1869)/Braga (1982) 205-208 Contudo, não há, neste romance, a intenção evidente de despertar o terror828 e o espectro não pretende que o cavaleiro se lhe junte na morte, mas sim que viva: 33.“Vive tu, amor querido, vive tu, que eu já vivi;”, BF/23 Thomás (1913) 16-18 Admite até que ele se case (embora a condescendência tenha limites: 33.”A mulher com quem casa