“GLOBALITARISMO”, DOMINAÇÃO E PRODUÇÃO DE SENTIDO
Mohamed Elhajji, prof. ECO/UFRJ, doutorando ECO/UFRJ
Resumo:
O processo de globalização como projeto de ampliação da ideosfera ocidental é sustentado
por uma rede de redes discursivas-ideológicas elaboradas pelos Sistemas Especialistas (um
imenso complexo técnico-neuronal dedicado à produção da cultura e do imaginário globais)
e difundidas pela mídia global (intelectual orgânico dos centros mundiais do poder), cuja
finalidade é a produção de sentido (autoridade e legitimação) da tecno-estrutura global, na
sua empreitada de racionalização-modernização-ocidentalização do mundo. A função dessa
máquina discursiva, é a articulação técnica-semântica dos diferentes mecanismos de
incorporação e de dominação, componentes do processo de globalização: De um lado,
traduzindo os interesses econômicos dos centros mundiais do poder em termos ideológicos
a pretensão universal. Por outro lado, transformando a produção intelectual dos S. E. em
programas tecnocráticos de planejamento e de gestão humana.
Todo corpo analítico constituí, na verdade, um discurso ideológico cuja função
prática é a imposição de uma visão do mundo através do prisma cultural, social ou político
específico a um grupo determinado e vantajoso para seus membros. O que, muitas vezes,
não significa apenas a proposição de uma lente possível para olhar o mundo, mas sim a
determinação do quadro de expressão simbólica no qual se dá o trabalho de conceitualização
ou de “intelegibilização” do real.
Trata-se, portanto, de um conjunto de práticas discursivas que envolvem e legitimam as
relações de poder. Sua ação organizadora consiste em adscrever o status semântico de cada
uma das partes em negociação, estabelecendo a escala de hierarquia que delimita seus
respectivos campos de atuação e define seu valor epistemológico no processo de
interlocução.
Assim, uma das marcas discursivas do globalitarismo é a caracterização de seu corpo de
representações pelo princípio retórico de ex-nominação. Ou seja, a elaboração pelos
Sistemas Especialistas Globais (mídia, centros de pesquisa, universidades...) de um conjunto
de estratégias discursivas responsáveis pela subordinação do fenômeno socio-cultural ao
fato econômico-político-mediático.
Pois, se “todo fenômeno social de largo alcance gera uma prática discursiva pela qual se
montam e se difundem as significações necessárias à aceitação generalizada do fenômeno”
(Sodré: 17), e se toda produção de sentido só se realiza através da prática discursiva que dá
seu sentido histórico aos conceitos, isto equivale no caso da globalização, à legitimação
ideológica1 dessas representações e implica a obtenção de um “aval semântico” por parte do
grupo hegemônico. O que corrobora a idéia segundo qual “o sentido implica um caminho
simbólico, uma direção cultural, que se pretende comum a todos, universal”(idem: 23)
“Caminho simbólico” e “direção cultural”, conceitos chaves do processo de globalização,
tanto no campo discursivo como nos quadros operacionais, remetem inevitavelmente ao
logocentrismo ocidental (as idéias de Verdade e de Razão enquanto aparato persuasivo
discursivo - semântico de uma civilização repressiva e etnocêntrica) e sua pretenção
universalista, totalizante e totalitária. Ou seja, a questão da globalização não pode escapar
da dialética da História e seus desdobramentos ideológicos. O que se tenta “vender” como
fim da História, revolução planetária e panacéia para todos os males de nossa época e de
nossa espécie, não passa na verdade de uma reformulação do mesmo e antigo princípio de
conquista e de dominação do mundo pelo Ocidente. O que se apresenta como ruptura é, no
fundo, continuidade. O que se quer um meio de libertação é, na verdade, uma sofisticação
da sujeição. O estilo e a forma mudaram, mas a finalidade e os objetivos continuam os
mesmos:
“Ao lado de suas concretizações materiais (...), a globalização responde também por uma
forte operação ideológica, que trabalha discursivamente para diminuir o relativismo das
significações a ela correspondentes e reforçar o seu sentido universalista. Este nada mais é
que o velho princípio da ‘universalidade abstrata’, presumidamente válida para todas as
sociedades organizadas pelo capital”(idem: 3)
1. DOS FUNDAMENTOS DO PROCESSO
A globalização, enquanto dinâmica histórica, é o estágio culminante do tripleto civilizatório
‘ocidentalização - modernização - racionalização do mundo’; base do grande projeto da
civilização humana unificada e globalizada, tal como é concebido pelo Ocidente e cuja
realização e concretização, ele acha de sua responsabilidade moral e dever filosófico. Pois,
de fato, o que mais distingue o Ocidente dos outros modelos civilizacionais, é a sua
convicção de não ser apenas um modelo cultural possível, mas sim O modelo cultural - ou
melhor, o metamodelo universal (caminho simbólico e direção cultural únicos e unilaterais)
para o qual todas as culturas e civilizações devem, fatal e inelutavelmente convergir.
A ocidentalização-modernização-racionalização do mundo significa sua submissão aos
parâmetros e critérios científicos, filosóficos e civilizacionais próprios à ideosfera ocidental,
a expansão e a imposição dessa ideosfera ao mundo e a exclusão de todo outro modo de ser
e de agir não conforme a seus princípios. Pretensão universalista totalizante que se traduz na
prática, pela instalação de complexos mecanismos e estratégias de dominação, tanto de
ordem militar e econômica como cultural e ideológica/discursiva.
Este aspecto bélico e eurocêntrico do processo é ressaltado (ainda que positivamente) por
vários autores. Segundo Giddens por exemplo, a globalização seria o fruto do sucesso da
sociedade européia em conjugar produção industrial, organização burocrática eficiente e
ação militar para finalizar seu projeto de dominação do mundo através das conquistas,
colonizações, aniquilação das organizações tribais “não racionais” e a expansão do sistema
capitalista mundial. Modernização, ocidentalização, racionalização ou integração capitalista
1
Ideológico é todo discurso particular com pretensão universalista.
transnacional são facetas complementares e indissociáveis (conceitos, aliás, geralmente
intersubsituíveis no imaginário popular) do mesmo desenho hegemônico-expansionista:
“Obviamente o conceito de globalização é objeto de suspição, porque como a
modernização, conceito predecessor e correlato, ele parece justificar a difusão da cultura
ocidental e a sociedade capitalista, sugerindo que são forças além do controle humano que
estão transformando o mundo (...) Globalização e a conseqüência direta da expansão da
cultura européia através do planeta por meio de conquistas, colonização e mimesis cultural”
(Waters: 3)
Enfim, o próprio conceito de globalização parece como uma narrativa branca européia autoreferente, ao mesmo tempo agente e objeto de enunciação; onde as referências cronológicas
européias de desenvolvimento tecnológico e de complexificação social são projetados sobre
o resto do mundo, num esquema darwinista e etnocentrista. Trata-se portanto, de um
discurso ideológico, parte integrante da metanarrativa hegemônica ocidental, elaboração dos
Sistemas Especialistas Globais responsáveis pela produção de sentido da globalidade e a
imposição de conceitos peculiares ao Ocidente como realidade universal.
1.1. OCIDENTALIZAÇÃO DO MUNDO
O desejo e a vontade de ocidentalizar o mundo, de torná-lo idêntico e uniforme, antes de ser
uma injunção econômica, parece ser mais um imperativo de ordem psicocultural, uma ânsia
de dominação e de subjugação do outro, como meio de negação de sua diferença
ameaçadora. Procurar as raízes desta ‘psicose’ cultural não é tarefa fácil, mas vários
aspectos da gênese da civilização ocidental oferecem uma adequada ferramenta intelectual
para a compreensão de um tal comportamento; o princípio monoteista por exemplo. Pois,
não seria temerário comparar o discurso da globalização a um novo monoteismo que não
admite nem discutir os princípios de seu dogma.
O monoteismo pressupõe a exclusividade e a unicidade absoluta e absolutista da Verdade.
Uma pre-condição inerente à fé monoteista é a negação da alteridade, da diferença,
percebida como anomalia, como monstruosidade condenável e eliminável. Pois, a existência
do outro, do diferente, do anormal (aquele que não compartilha a mesma fé, que não adere à
mesma visão do mundo; ou antes, a Fé verdadeira e a Visão certa do mundo- já que para o
monoteista só existe uma que é verdadeira e que cabe no círculo da razão) representa ao
mesmo tempo uma provocação e uma interpelação para o monoteista. Situação perniciosa
que constituí um problema existencial de difícil resolução para o monoteista (arquétipo do
homem ocidental), considerando a existência do outro imcompatível com a sua própria
enquanto crente (enquanto ser racional - sendo a racionalidade a fé da modernidade
ocidentental).
Isto é, ou ele consegue “con-verter” o outro (fazê-lo voltar a si; o que sugere que antes da
conversão, o sujeito está fora do devido lugar- fora da razão; sendo a razão uma
posição/lugar intelectual e moral), verificando assim a veracidade de seu próprio axioma. Ou
ele tem o dever moral e racional de elminá-lo enquanto aberração, monstruosidade, ser fora
do lugar. Nos dois casos, é a ameaça representada pela alteridade que se trata de corrigir ou
remediar; pelo uso da razão e da persuasão ou pelo castigo e até a eliminação. Sendo o
corpo físico um espaço de expressão da razão, um canal pelo qual a verdade deve se
manifestar. Todo erro na expressão da verdade só pode significar um defeito no medium e
não na mensagem. Já que a veracidade dessa última é de antemão e axiomaticamente
comprovada, e não seria em hipótese nenhuma questionada... É, justamente, na base deste
tipo de relação monológica que se elabora o discurso globalizante: o princípio da
globalização não pode ser errado, e por isso são os povos que devem se adaptar a ele e não
o inverso!
Essa genealogia (metafórica) teológica filosófica do Ocidente nos-serve apenas de guia em
nossa tentativa de compreensão da necessidade vital do Ocidente se apossar do Outro. Pois,
a questão fundamental continua sendo o porquê deste instinto do homem branco em difundir
a sua visão do mundo e querer impô-la a toda a humanidade? Por que que é o Ocidente que
“descobriu” a China e não o inverso e por que essa última não descobriu a América embora
estivesse naquela época perfeitamente capacitada cientifica e tecnologicamente para fazê-
lo?. Por que que os missionários portugueses se empenharam tanto na evangelização da
Ásia, muitas vezes ao risco de suas vidas, enquanto os monges budistas, shintoistas ou
hinduistas nunca saíram em cruzadas contra outras crenças?
Perguntas que desmentem a idéia evolucionista linear, segundo qual o projeto globalizante
unificador da humanidade seria estruturalmente inscrito no processo de desenvolvimento da
espécie, que a humanidade seria preprogramada para a sua unificação cultural civilizacional
e que a globalização de mercados e mentalidades, liderada por uns ou outros, de qualquer
maneira tinha que acontecer. Vários indicadores históricos levam a acreditar que, na
verdade, essa essencialização teleológica do processo seria mais uma estratégia de
dominação do mundo, e que isto sim, seria uma marca peculiar ao Ocidente, estruturalmente
inscrita na sua identidade cultural e na alma da sua civilização. Aliás, a própria ampliação de
um traço psicocultural peculiar à civilização ocidental para toda a espécie, constituí mais um
exemplo de restrição do conceito de humanidade ao grupo branco-europeu...
1.2. MODERNIDADE-MUNDO
Conforme à sua matriz iluminista, o projeto de modernidade é claramente positivista,
racionalista, logocentrista, tecnocentrista, etnocentrista, evolucionista e totalizante, baseado
na fé cega no progresso linear, nas verdades absolutas, na supremacia da civilização brancaeuropéia, no planejamento social e na padronização do conhecimento, da produção e do
modo de vida. Seu objetivo é a “emancipação forçada” dos homens, através da
predominância da ciência sobre a natureza e a substituição das regras tradicionais de
solidariedade por modos racionais de organização. Somente assim, segundo essa visão do
mundo, poderia libertar-se da tirania e das “superstições” (sic), e permitir às “qualidades
universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade [humanidade branca-européia é claro!
]serem reveladas” (Harvey). Mas, cabe observar aqui, que a idéia de modernidade não é
organicamente ligada aos valores democráticos liberais formal e oficialmente difundidos pelo
Ocidente. Pelo contrário, os ideais da modernidade serviram de meta para regimes ditatoriais
e opressores, como o stalinismo ou o nazismo. Le Corbusier, “apóstolo da modernidade”,
não hesitou a se aliar ao fascismo italiano e ao regime colaboracionista de Vichy na França!
Por outro lado, práticas totalmente opostas ao ideal democrático de direitos humanos, de
liberdade e de igualdade eram encaradas com perfeita naturalidade no auge da modernidade,
como por exemplo o colonialismo europeu ou a segregação racial nos Estados Unidos. A
duplicidade era tão bem aceita que ninguém se incomodava em ver o exercito americano que
defendia os nobres valores de liberdade e de igualdade na Europa, ao mesmo tempo aplicar
escrupulosamente as leis segregacionistas entre as suas tropas! Na verdade, o projeto da
modernidade se funda perfeitamente nos valores de liberdade e de igualdade. Mas, ele
restringe esses princípios à categoria ocidental branca-européia, e não vê nenhuma
contradição em aplicar outras leis e outros princípios aos não-ocidentais / não-humanos no
“Esquema Mental de Demarcação Etnocentrista” que rege os mecanismos de recepção do
discurso ocidental (conversão sistemática do conceito natural “humano” em categoria
cultural e étnica “branco-europeu”) (Blondin). Portanto, registramos que, ao contrário do
que sugerem as estratégias discursivas modernistas baseadas no princípio já citado de exnominação, a modernidade não gera necessariamente a democracia.
Assim, é bastante equivocado pretender que a modernização do mundo implica a sua
democratização, através da difusão e sedimentação dos padrões e valores predominantes no
Ocidente. Ou que “a experiência da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e
raciais, de classe e nacionalidades, de religião e ideologia”(Ianni: 76). Se pode até afirmar
que a modernidade ofereceu quadros intelectuais para uma maior separação entre os povos,
as raças e as culturas, e institucionalizou a dominação do mundo por uma elite restrita, em
nome do ideal da modernidade. “A humanidade vai ter de ser forçada a ser livre” avisava
Rousseau; confirmando de antemão as denúncias de Horkheimer e Adorno de que “a lógica
que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma lógica de dominação e opressão”
(Harvey: 23).
A advertência de Rousseau prenunciava grandes mudanças na história da humanidade: a
declaração dos direitos humanos e do cidadão de um lado, e a repartição do mundo em
impérios coloniais do outro; duas faces de uma mesma realidade. A consolidação da
sociedade humana e a sua restrição aos únicos brancos-europeus. A modernização do
mundo não significa a abolição das diferenças sociais, da injustiça e da desigualdade no
mundo. Ela significa, antes de nada, a expansão da ideosfera ocidental e sua imposição ao
resto do mundo. Sim, a humanidade foi forçada de admitir a concepção ocidental de
liberdade como una e única, válida para todos os povos e todas as culturas do mundo. Como
também foi forçada de aceitar os critérios materialistas e tecnicistas como parâmetro de
progresso e de bem estar.
Na visão etnocentrista e evolucionista linear ocidental, o modelo modernizante como
configuração atual da ideosfera ocidental, deve inexoravelmente irradiar para o resto do
mundo, norteado em sua empreitada por um tipo de “mão invisível planetária” que regula o
processo e lhe dá seu sentido histórico universal. Na verdade, se a modernidade não passa
de uma configuração da ideosfera ocidental, o projeto de modernização do mundo é a sua
formulação lógica e técnica-estética, movida pela mesma força evolucionista etnocentrista
suprematista e pelo mesmo desejo psicocultural de aniquilação de toda veleidade de
alteridade diferencial. Ao seu nível propriamente teórico, ele “codifica e estabelece
parâmetros que, simultaneamente, explicam a trajetória das sociedades ocidentais e apontam
as condições e possibilidades da evolução das outras sociedades.” (Ianni: 87)
1.3. RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO
Esse último pilar do tripleto civilizatório que sustenta o processo de globalização,
corresponde à sistematização das relações sociais e de produção, através da imposição do
capitalismo como sistema único e universal de trocas, e a cristalização dessas relações no
mercado enquanto “paradigma voltado para a estruturação das formas de elaboração da
realidade” (Sodré: 6)
Não há dúvida de que o capitalismo é o principal vetor da globalização, na medida que são
suas instituições que possibilitam as trocas sobre grandes distâncias e a unificação de amplos
territórios. Mais! o processo de globalização parece ser inscrito na estrutura genética do
capitalismo, sendo o projeto de um mercado universal inerente ao sistema capitalista, cuja
vocação mundial se encontra contida na sua dinâmica de acumulação e reprodução
ampliadas, e enraizada na natureza colonialista e imperialista da sociedade européia na qual
ele nasceu e se desenvolveu. Evolução lógica essa que já fora pressentida pela maioria dos
teóricos clássicos. Marx, por exemplo, destacava o papel específico da burguesia no
estabelecimento do mercado mundial. Neste sentido, globalização, significa em primeiro
lugar a sistematização econômica do mundo, ou seja, a universalização do sistema capitalista
ocidental.
Assim, a globalização é o fruto de um longo e complexo processo evolutivo do sistema
capitalista e do ambiente político e cultural no qual ele se constituiu. A mundialização do
capital, se explica tanto por fatores de ordem econômica intrínsecos ao próprio sistema
capitalista como pelos fundamentos culturais, filosóficos e civilizacionais do Ocidente.
Trata-se, de fato, de um processo civilizatório, correlato sócio-econômico da
ocidentalização do mundo e sua modernização -o que chamamos de ampliação da ideosfera
ocidental. Pois, o sistema-mundo atual, na verdade, não passa de uma expansão da
economia-mundo capitalista inicialmente localizada na Europa que, por meio de invasões e
“incorporações” políticas, comerciais e militares, se tornou O sistema econômico mundial
global; obedecendo nisto tanto ás regras de produção ampliada do capitalismo, como ás leis
de reprodução exponencial dos princípios de conquista e de dominação do mundo pelo
Ocidente:
“Uma característica importante do sistema unificado (...) é o padrão de estratificação global,
que divide a economia mundial em áreas centrais (beneficiárias da acumulação de capital) e
áreas periféricas (em constante desvantagem pelo processo de intercâmbio desigual)” (Ianni:
37)
Há de reconhecer que, com o fim da guerra fria, a base das relações internacionais não é
mais o poder bélico, mas a força econômica e informacional (Toffler). Como não se deve
ignorar a emergência de novos pólos de poder, a constituição de blocos supranacionais
regionais a caráter político e econômico e a resurgência das especificidades e dos
nacionalsimos locais. Fatores que alteram consideravelmente a dicotomia clássica entre
Norte/Sul, Este/Leste, Centro/Periferia... (Attali) Mas o que não se pode negar, é a
homogeneidade ideológica capitalista ocidental, que não falha quando se trata de defender
os interesses econômicos como as sagradas leis do mercado e do livre comércio, ou
ideológicos que questionam o princípio da supremacia e da dominação branca-européia
(Rufin). Enfim, ao nível teórico,
“há um evidente ocidentalismo, juntamente com o capitalismo, quando as interpretações
[sistêmicas] esclarecem o modo pelo qual as partes, as unidades, os segmentos ou os atores
menos desenvolvidos, isto é, arcaicos, periféricos ou marginais são contemplados na
organização e dinâmica da sociedade mundial (...) São os padrões, os ideais e as instituições
do capitalismo e ocidentalismo, ou vice-versa, que comandam a organização e dinâmica da
mundialização. E mundialização é sempre modernização, mas modernização nos moldes do
capitalismo ocidental”(Ianni: 70).
2.DAS PRÁTICAS TRANSNACIONAIS
Se as bases estruturais do processo de globalização são de ordem cultural e civilizacional,
seus quadros operacionais se articulam em torno da instância econômica, com
conseqüentemente, seus desdobramentos políticos, sociais e culturais que abrangem todos
os aspectos da vida do indivíduo e do grupo. São mudanças radicais que marcam uma
profunda ruptura, tanto nas instâncias de subjetivização e de enunciação da identidade dos
indivíduos e dos grupos, como nas formas organizacionais da sociedade e nos modos de
relacionamento entre os indivíduos e os grupos. São quase em regra geral, mudanças nada
favoráveis ao bem-estar e à realização das pessoas e dos grupos, ou que vão no sentido da
construção de uma sociedade planetária mais justa e mais equilibrada que garante os direitos
de todos e valoriza a diferença e a criatividade. Pelo contrário, a análise lúcida deste
fenômeno social comprova que, na veradade, essas mudanças são o contrário do que
parecem ou pretendem ser. O processo de globalização não é a ante-sala do paraíso
pomposamente anunciado pelo discurso globalizante, mas sim um sofisticado e complexo
aparato discursivo-técnico-ideológico de dominação e de opressão.
2.1. ECONOMIA GLOBAL
Os três motores da máquina econômica global são o seu modo de organização e de
acumulação flexível, a financeirização de suas relações de produção e o seu crescente
controle pelas Corporações Transnacionais (TNCs); enquanto a sua produção é a
desigualdade, a exclusão e a dominação. Pois, o processo de globalização pode ser
considerado como o triunfo do mercado ou a “mercadificação” da sociedade; com ele tudo
(das relações sociais às arte e cultura...) é considerado em função de seu valor de mercado, e
explicado pelas sagradas leis do mercado que, doravante, constituem a verdadeira fé da
sociedade moderna racional, substituindo as leis da natureza e superando o instinto de vida e
preservação da espécie. É o que Sodré chama de “paradigma do mercado, cujos critérios de
lucro e competitividade tendem a substituir a natureza e a História geral das sociedades”
(Sodré: 26)
Em que diz respeito ao modo de acumulação flexível, ele se baseia na agilização das relações
de produção, numa distribuição de tarefas, responsabilidades e hierarquia menos
demarcadas, na extrema qualificação do pessoal e sua polivalência, na disponibilidade da
informação útil e sua acessibilidade, etc. Processo que alguns autores não hesitam em
qualificar de passagem do proletariado ao “cognitariado”. Esse tipo de organização, todavia,
só é operacional na empresa flexível baseada num núcleo forte, constituído de uma
verdadeira elite técnica, enquanto as tarefas subalternas são terceirizadas e relegadas a
pequenas unidades (mal pagas e sem segurança de emprego), muitas vezes localizadas nos
países do Sul. Pois, a nova economia de 3eira onda se organiza “através da dispersão, da
mobilidade geográfica e das respostas flexíveis nos mercados de trabalho e nos mercados de
consumo” (Harvey: 150).
O que, na prática, significa uma efetiva flexibilização das relações sociais, econômicas e
políticas ao nível mundial: um núcleo/centro forte, privilegiado e próspero onde se acumula
capital, tecnologia e informação útil disponível. E uma periferia desorganizada, populosa e
dependente, sem garantias de sobrevivência nem perspectivas de desenvolvimento, onde se
acumula mão de obra barata e abundante, mas sem qualificação nem acesso à informação
necessária para concorrer com as regiões do centro.
É claro que a divisão norte/sul, centro/periferia está sendo cada vez mais superada por um
movimento de “terceiromundialização” de largas fatias das sociedades avançadas, e pela
concentração de riqueza e dos meios de produção entre as mãos de uma minoria poderosa.
Como é evidente que a crescente influência das TNCs no comércio internacional, torna
inconseqüente a tentativa de localizar geograficamente estes centro e periferia. Mas, não há
como ignorar a importância da origem étnica ou racial desta nova distribuição do poder: no
Norte, os miseráveis são os negros, latinos e magrebinos. No Sul, os privilegiados são os
descendentes de europeus ou seus agregados, “burguesia compradora” ou “brancos de
honra”.
Paralelamente, é importante observar que o objetivo da flexibilização não se limita à
restruturação organizacional-funcional da fábrica ou do mercado, mas sim de viabilizar um
novo modo de sociabilidade e de controle social que se acostumou chamar de
“culturalização da economia”. Primeiro pela identificação e o envolvimento afetivo do
trabalhador com os ideais da empresa, através de rituais clânicos bélicos que o isolam do
ambiente cultural de sua sociedade e lhe dão o sentimento de pertencer a uma unidade
específica, contribuindo ao seu desenraizamento do local e a construção de uma
territorialidade existencial global. Por outro lado, pela personalização, simbolização e
conceitualização do objeto de consumo; quando o produto não é mais considerado por seu
valor funcional, mas pelo valor simbólico agregado (o chocolate contem cada vez menos
cacau e mais fantasia, ou melhor ainda, Benetton que não produz roupa, mas vende
controvérsia...). Sendo esse valor simbólico, altamente ideologizado, funcionando ele
mesmo, à maneira do círculo vicioso, como vetor da própria combinação triádica que o
criou: ocidentalização-modernização-integração no sistema capitalista mundial!
2.2. SOCIEDADE INFORMACIONAL
A base organizacional da globalização reside no seu aspecto informacional. É a
característica central da nova sociedade, estruturada, organizada e articulada em torno da
produção, do controle e da distribuição da informação. Ela implica a compressão do fator
tempo ou até a sua aniquilação (pela aceleração dos fluxos informacionais e do tempo de
giro do capital-informação) em nossa maneira de lidar com o real, através justamente da
restruturação das relações sociais, de trabalho e de produção em torno da informação.
Afetando, com isso, os valores culturais e sociais, que se enfocam no imediatismo, no
consumismo instantâneo e na flexibilização das relações do trabalho.
Por outro lado, a informação se torna um bem valioso e disputado, e sua produção,
controle, difusão e acessibilidade viram peças chaves no jogo do poder tanto econômico
como político. Pois, a produtividade e a competitividade do sistema econômico dependem
do posicionamento dos atores interessados com relação aos fluxos de informação (Castells).
Assim, já se nota uma crescente monopolização do saber por parte de certos carteis, tanto
que a formação de novas constelações de poder cuja ligação não é o dinheiro mas sim o
controle da informação, é uma realidade, e o espectro de um monopólio mundial da
informação uma ameaça iminente. Entre países do primeiro e do terceiro mundo, as relações
de dominação e de dependência só podem se agravar por causa da repartição
dramaticamente desigual da informação, causando uma profunda ruptura entre “inforicos” e
“infopobres”:
“A economia informacional, mesmo estando ligando o planeta inteiro numa série de redes
de fluxos, ela o faz de maneira seletiva. Pelo fato que a produtividade et a competitividade
se baseiem cada vez menos nos recursos primários, e cada vez mais no saber e na
informação, a mão de obra barata, não qualificada, e a matéria prima não têm mais o
[mesmo] valor estratégico na nova economia. (...) [o que implica] a inadaptação crescente
de uma grande parte do mundo à economia global e informacional (...) Como a economia
evoluí no sentido de produtos baseados na informação, a forte valor agregado, a acumulação
de capitais se faz cada vez mais no centro, e não na periferia (...) os mercados, a mão de
obra qualificada, os capitais e a tecnologia são cada vez mais concentrados nos países da
OCDE” (idem: 348).
2.3. CULTURA E CONSUMERISMO
Globalização não implica necessariamente a homogeneização de todas as sociedades nem a
sua total integração, mas antes uma maior conectividade caótica entre elas; o que significaria
que seus componentes fossem relativizados e não unificados ou centralizados: “A total
globalização da cultura implicaria a criação de um campo ao mesmo tempo comum e
hiperdiferenciado de valores, gostos e estilos livremente acessíveis por tudo
mundo”(Waters: 126); pelo menos é o que defende o discurso globalizante. Na prática,
todavia, a disponibilidade e a acessibilidade de outros códigos culturais não adianta nada, se
ao mesmo tempo são culpabilizados e inferiorizados diante a metanarrativa ocidental! A
disponibilidade, na verdade, não passa de uma estratégia de desvalorização da cultura do
outro, através da sua inclusão (submissão) num esquema comparativo de categorias
etnicamente hierarquizadas, no qual “o pior dos brancos vale mais do que o melhor dos
pretos”.
Ademais, se teoricamente, os fluxos (de pessoas, objetos e idéias) que interligam as diversas
culturas e sociedades, deveriam força-las (todas) a se relativizarem diante as demais; nos
fatos, O autoquestionamento ocorre dentro de um parâmetro historicamente imposto. Já que
essa relativização ela mesma se dá dentro da própria metanarrativa ocidental: Tudo é
relativo menos o contexto global ou suas vertentes, que constituem as próprias regras e
referências de relativização. O mercado, por exemplo, não pode ser relativizado; já que é ele
mesmo que relativiza as partes em competição e regula as relações de força entre elas!...
“o sistema econômico, por intermédio do mercado, faz da sociedade humana o seu
acessório. A lógica própria da civilização européia arrasta todos os povos do planeta no
empuxo de um mesmo padrão abstrato de desenvolvimento, sob a regência de uma
organização do valor que persegue a exploração racionalizada da natureza e do homem,
aparentemente em beneficio do ‘humano’, mas de fato em benefício de um paradigma, o da
economia de mercado” (Sodré: 10)
Se trata de um verdadeiro integrismo econômico que admite nenhuma outra possibilidade
fora do reino do mercado todo poderoso. Nesse sistema, o consumerismo substituí os meios
tradicionais de representação política: O consumerismo (o consumo como doutrina e
dogma) está substituindo as instâncias democráticas de representação, através de que se
acostumou chamar de “exercício da cidadania pelo consumo”. O que, em outras palavras,
significa que a cidadania (portanto os direitos sociais) se mede em função da capacidade de
consumo.
Assim, as políticas emancipatórias de que fala Giddens, são recuperadas pela ideologia
consumerista: Os grupos particulares passam a reclamar seus direitos e o reconhecimento de
sua identidade através do mercado, pela criação de produtos específicos comercializados
para e por eles, ameaça de boicote aos produtos não-veiculados na sua mídia comunitária,
etc... O problema, como o expressa tão bem Roberto Scwartz, é que esse modo de
representação, quando ainda não se formou uma cidadania forte e com poder aquisitivo,
torna a maioria da população “nem cidadãos nem consumidores, mas sujeitos monetários...
sem dinheiro”!
No regime ditatorial consumerista, o consumo se torna a principal forma de expressão de si
e a principal instância de enunciação da subjetividade do sujeito. E o valor das coisas não é
mais medido estética ou funcionalmente, mas sim com relação ao nivelador universal que é
dinheiro. Por isso que a marca, a griffe é importante nos regimes consumeristas: ela não é
uma indicação nem uma garantia estética (já que uma das bases da cultura global é a
relativização), mas sim do valor de mercado e portanto de estratificação de classe.
O consumerismo teoricamente relativiza e oferece todos os produtos, mas ao mesmo tempo
os estratifica. É verdade que permite a convivência de produtos de todas as origens
possíveis. Não se pode esquecer todavia que os brancos europeus são a tribo que mais lucra
com a globalização, já que a sua cultura e seus hábitos foram levados para todos os cantos
do planeta e são verdadeiramente canonizados como sinônimo de Cultura e de Civilização:
arte, música, culinária, moda são primeiro branco-europeus, o resto é exotismo que não
passa de uma expressão de “racismo que não ousa dizer seu nome”. A mídia por exemplo,
leva, é verdade, culturas da periferia para o centro. Mas o faz de maneira infimamente menor
do que levando o centro para a periferia. E mesmo quando o faz, isso acontece naquele
mesmo esquema hierárquico de supremacia branca e na mesma metanarrativa modernizante
ocidentalizante.
Consumerismo, na verdade, não passa de uma extensão do processo de racionalização
capitalista: eficiência, calculabilidade, previsibilidade, uniformização, controle de movimento
dos indivíduos. Pois, consumerismo quer dizer McDonaldização dos hábitos de consumo da
população (Waters). Mas, o mais impressionante é seu uso de um tipo de “novlangue”
orwelliana. Enquanto o sistema consumerista é fundamentalmente dirigista, ele se apresenta
como símbolo da liberdade: Faça como tudo mundo para provar que você é livre!
McDonald é o símbolo de liberdade de escolha. Forma de subjetivização que se aponta
como “individualismo sem sujeito” ou ainda “individualismo passivo”:
“Nesta forma, esvazia-se progressivamente o discurso do individualismo ativo (participação
política, desejo de propriedade, vontade produtiva), movido por uma consciência social
forte, em favor de um individualismo passivo (consenso gerencial, desejo de informação e
status, vontade de consumo), acionado por valores de eficiência técnica” (Sodré: 5)
Conclusão
O processo de globalização como projeto de ampliação da ideosfera ocidental (do qual
examinamos alguns aspectos), é sustentado por uma rede de redes discursivas-ideológicas
elaboradas pelos Sistemas Especialistas (um imenso complexo técnico-neuronal dedicado à
produção da cultura e do imaginário globais) e difundidas pela mídia global, cuja finalidade é
a produção de sentido (autoridade e legitimação) das instâncias tecnocráticas ou tecnoestrutura global, na sua empreitada de racionalização-modernização-ocidentalização do
mundo. A função política dessa máquina discursiva, é a articulação técnica-semântica dos
diferentes mecanismos de incorporação e de dominação, componentes do processo de
globalização.
De um lado, ela permite “a tradução em termos ideológicos a pretensão universal dos
interesses de um conjunto de forças econômicas, aquelas em particular, do capital
internacional” (Ramonet). Como por exemplo, as idéias relativas às vantagens do livre
mercado, das privatizações, do afastamento do Estado, da necessidade das demissões em
massa, ou associando os ideais da modernidade e do Ocidente ao bem-estar, à felicidade
material, etc... Muitas vezes, aliás, usando de técnicas de persuasão que relevam mais da
manipulação do que da argumentação dialógica. Por outro lado, é essa mesma máquina que
garante a transformação da produção intelectual, técnica e científica dos Sistemas
Especialistas (centros de pesquisa, universidades, publicações, fundações etc...- eles mesmos
geralmente financiados e controlados, direta ou indiretamente pelo capital internacional) em
programas de planejamento e de ação das instâncias governamentais (tipo BNDS) e
internacionais (FMI, Banco Mundial, PNUD, etc...). Alterando, assim, diretamente a
realidade social política e econômica de indivíduos e povos, países e nações. Nos dois casos,
a máquina discursiva é acoplada à mídia global (“intelectual orgânico dos centros mundiais
do poder”), através da qual, o “pensamento único” irradia em todos os cantos do planeta,
criando a ilusão de um imaginário e de uma consciência globais. Enquanto, na verdade, se
trata de uma operação planetária de controle das mentes pelos “novos donos do mundo”.
(Ramonet)
BIBLIOGRAFIA
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HARVEY, David. (1993). Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola.
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RAMONET, Ignacio. (1995). Les Nouveaux Maître du Monde. Paris: Manière de Voir
nº28.
RUFIN, Jean-Christophe. (1991). L'Empire et les Nouveaux Barbares.Paris: Lattés.
SODRÉ, Muniz. (1996). O Discurso da Neobarbárie. ECO-UFRJ. (paper não publicado)
TOFFLER, Alvin. (1991). Les Nouveaux Pouvoirs. Paris: Fayard.
WATERS, Malcom. ed. (1995). Globalization. New York: Routledge.
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“GLOBALITARISMO”, DOMINAÇÃO E PRODUÇÃO DE