O INDIVÍDUO E A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DO PROCESSO
CIVILIZADOR
Luciana Justino de Almeida Silva¹
UFPE
[email protected]
Resumo: Este artigo discute a relação entre indivíduo e educação sob a perspectiva da
reflexão proposta por Norbert Elias. Abordando questões sobre o indivíduo e o processo de
escolarização. Trazendo à discussão problemáticas da educação na contemporaneidade
pensada enquanto elemento de civilidade e os desafios postos a ela enquanto elemento de
ascensão social.
Palavras-chave: indivíduo – educação – civilidade.
Abstract: This paper approaches the relation between individual and education thought in
Norbert Elias. Thinking about the individual and his/her scholastic’s procedure, this
brings afterthoughts about education’s problems on contemporary times while civility’s
element and the challenges put to education as social ascension.
Keywords: indivual - education – civility.
Introdução
A questão do indivíduo e da educação são temáticas de interesse social.
Compreender em quais contextos se forjam os indivíduos na sociedade contemporânea e
que papéis esses indivíduos exercem em seus variados contextos é tema de fundamental
importância para as reflexões relacionadas à educação e a escola
Nesta perspectiva, a instituição escolar terá um papel relevante por representar uma
instituição na qual diferentes papéis são demandados no processo de formação dos
indivíduos. Nessa medida, constroem-se idéias de que a educação escolar é um instrumento
capaz de formar indivíduos moralmente capazes de conviver de forma “civilizada” em uma
sociedade, hábeis para as demandas sociais, políticas, culturais e econômicas.
No processo civilizador, Norbert Elias coloca o indivíduo como um ser capaz de
exteriorizar e absorver comportamentos através de um processo de racionalização que
implica em uma mudança de conduta e de sentimentos. Para isso, ele desdobra o processo
civilizador como um conjunto de diferentes formações sociais que por sua vez, originam
uma nova estrutura de mentalidade na sociedade. Nesse novo modelo de mentalidade
social podemos encontrar os desejos, as aspirações dos indivíduos no tocante à educação e
aí talvez, a necessidade de se diferenciar de outros membros sociais, através do processo de
escolarização. Podemos observar que sobre esse aspecto Norbert Elias destaca a
transformação do comportamento humano, ressaltando a importância dos conhecimentos
científicos e intelectuais, as formas de Estado e organização. 1
Uma outra questão apontada pelo referido autor são os aspectos necessários para se
construir uma sociedade civilizada, dentre os quais destacamos a educação e o seu papel
enquanto instrumento de intervenção pedagógica no processo civilizador. Esse papel pode
estar intrinsecamente relacionado ao controle social, a forma como as pessoas lidam com
as emoções, a construção da personalidade e com a violência. Nessa perspectiva, a escola,
enquanto instituição social cumpre uma função relevante no processo de aculturação
escolar. Isso nos remete ao que afirma HONORATO, (2008:258) quando diz ser
“imprescindível refletir sobre o papel das instituições sociais e como estas interferem nos
processos civilizadores”. Isso é o que tentaremos analisar mais adiante.
O indivíduo e a escola
No livro a Sociedade dos Indivíduos, ELIAS (1994:130) apresenta o indivíduo
como um ser que “consiste em expressar a idéia de que todo o ser humano do mundo é ou
deve ser uma entidade autônoma e, ao mesmo tempo, de que cada ser humano é, em certos
aspectos, diferente de todos os demais, e talvez deva sê-lo”. Como afirma Elias, somos em
alguns aspectos diferentes dos demais e vivemos numa sociedade repleta de mudanças
sociais que, gradativamente, adquire novas configurações. Ainda de acordo com ele, a
mudança de comportamento está no fato de que com o passar do tempo as formas de vida
são modificadas, dando lugar a novos costumes. Vale ressaltar, que de acordo com o
referido autor nós estamos em processo na medida em que os comportamentos são
aprendidos. Ou seja, através de um processo longo e contínuo de mudanças tendo na
emoção um elemento estruturador, um mecanismo, para o nosso controle e autocontrole. E,
que papel assume a instituição escolar nesse processo de mudanças, já que muitas vezes a
importância atribuída à escola e a educação está associada à idéia de identidade e inserção
social? De acordo com Elias, a identidade de cada individuo é incorporada através do
comportamento, tornando-se a “segunda natureza do homem”, nesse sentido, tais
comportamentos assumem uma característica de distinção social através de hábitos que
mostram de forma simplificada padrões de civilização e de aspirações adotados por esses
indivíduos de acordo com sua classe social. Vale ressaltar, que como afirma ELIAS
(1994:152) “O problema conceitual da identidade Humana ao longo da vida é difícil ou, a
rigor, insolúvel [...]”. Em outras palavras, poderíamos classificar esse processo como algo
imbricado nas relações que perpassam os aspectos sociais, culturais, políticos, religiosos,
de gênero e econômicos.
No Brasil², a escola, uma instituição que, até muito recentemente, era privilégio de
alguns, ampliou através de um acesso massificado expectativas e esperanças quanto aos
poderes e possibilidades em transformar para melhor a vida de pessoas e de sociedades.
Essas esperanças se enraízam no imaginário das populações, fazendo com que a educação
passe a ser vista como um instrumento capaz de melhorar as condições de vida de pessoas
e até mesmo o desenvolvimento econômico de um país.
Um outro aspecto que motiva o indivíduo e a sua relação com a instituição escolar
está no fato de que através da educação se almeja posições sociais elevadas, incluí-se aqui,
a questão da dignidade e de cidadania. Nessa perspectiva, podemos observar que as
concepções de escola e de educação estão fortemente relacionadas, pois, as funções
atribuídas a ambas não passam apenas pelo processo de ensino e aprendizagem, mas
¹ Aluna do Programa de Pós Graduação em Educação – Mestrado – UFPE Orientador: Prof. Dr. José Luis
Simões.
também pelo fato de que o acesso à escola possibilite o desenvolvimento do caráter e mais
além, de uma aprimoração da educação doméstica.
Nestes argumentos está imbuído o fato, como coloca CANÁRIO (2006:114) de
que:
[...] a escola, enquanto instituição portadora de valores que lhe eram
imanentes, vem se impor de forma dominante à ação socializadora, até
então desempenhada pela família (ampliada), pela vizinhança e pela
comunidade profissional. Ao se propor transformar as crianças em
alunos para, em seguida, por meio do ensino e da educação, transformálos em cidadãos [...].
Essa idéia de transformar através da educação pessoas em cidadãos aproxima-se de uma
outra questão, a de que através de uma cultura escolar as pessoas podem se tornar mais
educadas, cumpridoras de princípios e valores sociais cultuados pela sociedade. De acordo
com SIMÕES (2003:6), “a educação auxilia na construção de hábitos e padrões de
comportamento e conduta social que nortearam e continuarão a nortear a vida dos
indivíduos e suas relações”. Temos nessa afirmação uma concepção de educação enquanto
forma de reprodução dos valores socialmente constituídos.
Os desafios da educação na contemporaneidade
Numa sociedade marcada pela busca por melhores condições sociais e,
principalmente, pela diferenciação social, enquanto paradigmas socialmente difundidos, a
educação assume um papel fundamental na construção e na viabilização dessas aspirações.
Por isso, ressaltamos a educação e mais especificamente, a educação escolar, como um
mecanismo adotado principalmente pelas camadas mais pobres da sociedade como forma
de mudança social. Ou seja, o processo de escolarização enquanto ferramenta para alcançar
um padrão de civilidade entre os indivíduos. Segundo SACRISTÁN (2001:22):
[...] alguns querem educar seus filhos e a eles mesmos para melhorar
suas condições materiais de vida; outros consideram a educação como
valor para uma vida mais digna; outros como meio para evitar a
humilhação sofrida pelo fato de serem analfabetos e manipuláveis. [...]
É nesse contexto, que vemos um dos grandes desafios postos à educação na
contemporaneidade, o processo de escolarização enquanto forma de distinção social, de
fuga das misérias e das desigualdades sociais. Mas, será que a educação que temos
possibilita esse processo de distinção social tão almejado? Sabemos que muitas das
aspirações construídas pela sociedade podem estar associadas à base material em que os
indivíduos estão inseridos, ou seja, as condições de vida ligada às contradições latentes na
busca diária pela sobrevivência, com isso, podemos inferir que o que esperam os
indivíduos em relação à educação está relacionado às limitações de suas condições
materiais.
Apesar de todo o processo de universalização dos sistemas públicos de ensino, não
há talvez, elementos que possam assegurar que a freqüência à escola irá garantir um
“sucesso” escolar a esses frequentadores. Pois, o imaginário hegemônico, constituído em
relação aos poderes transformadores da escola, não permite no contexto na qual está
inserida, desempenhar as inúmeras funções que a ela são demandadas pelos mais diferentes
segmentos sociais – a Família, a Igreja e o Estado. Com isso, as expectativas de futuros
sociais distintivos esperadas tornam-se um desafio diante da realidade de uma escola 2
“democrática” em um contexto socioeconômico de limitadas oportunidades. E, que muitas
vezes, esses frequentadores não são movidos apenas pelo processo de ensino e
aprendizagem, mas também, pela assistência que os projetos de políticas públicas
desenvolvem no tocante à permanência destes na escola.
Ao tratar das disparidades sociais ELIAS (1994:20) afirma que “[...] a vida social
dos seres humanos é repleta de contradições, tensões e explosões. O declínio alterna-se
com a ascensão, a guerra com a paz, as crises com os surtos de crescimentos”. E, mais
ainda, sobre o indivíduo, que este (ibdem: 21):
[..] por nascimento, está inserido num complexo funcional de estrutura
bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele e,
talvez, desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de escolha
entre as funções preexistentes é bastante limitada. Depende largamente
do ponto em que ele nasce e cresce nessa teia humana, das funções e da
situação de seus pais e, em consonância com isso, da escolarização que
recebe.
Partindo de um ponto de vista elisiano, observamos como o contexto no qual o
indivíduo está inserido transforma-se em um fator até certo ponto determinante para o seu
crescimento e desenvolvimento como um todo, enquanto ser social. De outra forma, os
indivíduos também desfrutam da liberdade de escolha que é limitada, segundo ele, aos
contextos em que estão inseridos e as oportunidades que possam surgir advindas do
processo de escolarização isso está relacionado com a discussão de VEIGA (2002:102)
quando diz que:
2
Ver: Barroso Filho, Geraldo. Entre o futuro incerto e o passado indesejado: A crise de sentido dos
sistemas públicos de ensino. Recife. Edições Bagaço, 2009.
Os processos escolarizados disseminaram a prática de produzir e transmitir
modelos por intermédio de determinadas imagens que traduziram padrões
de comportamento, valores e hábitos, sem dar-se conta de que há outra,
aquela imaginada pelos alunos. Na prática unilateral dessa relação instalouse a obscuridade. Portanto, preservar a visibilidade é não pôr em risco uma
capacidade humana fundamental: a de imaginar, criar fantasias, transgredir
– tornar visíveis os nossos sonhos.
Dessa forma, podemos compreender a partir da idéia de Veiga sobre o processo de
escolarização, como os “padrões de comportamento, valores e hábitos” vão adquirindo uma
configuração que não é plural, mas dependente da capacidade de como cada indivíduo irá
pensar e construir a sua realidade. Para Elias, isso depende também, da “arte” da observação e
da manipulação, características fundamentais para a sobrevivência social e para as
oportunidades de acesso aos mais elevados níveis de poder, determinado pelas relações
existentes entre os indivíduos.
Nessa perspectiva, Elias apresenta o conceito de configurações sociais promovido
através de comportamentos inerentes ao indivíduo e decorrente do meio em que ele está
inserido, determinando que as relações de poder dependem da posição em que os indivíduos
ocupam na sociedade.
Nesse sentido, Elias ressalta que o processo civilizador estabelece uma nova lógica
que se fundamenta pelo aumento da diversidade de comportamentos no interior da sociedade.
Esses comportamentos apresentam um grau considerável de homogeneização, ou seja, de
certa forma, havia um forte grau de convergência quanto ao modelo de comportamento que
segundo Elias (1993: 215) tinha como principais características “o espírito de previsão, uma
autodisciplina mais complexa, uma formação mais estável do superego, fortalecida pela
interdependência crescente”[..]
O autor ressalta ainda fortes mudanças pressionadas pelo Processo Civilizador
destacando o caráter social dos indivíduos no que ele chama de psicologização e
racionalização. Estabelecendo que a sociedade, gradualmente, passou daquele para este
aspecto como mostra a seguinte afirmação: “A gradual racionalização e, mais, todo o processo
civilizador ocorrem sem dúvidas alguma em constante ligação com as lutas de diferentes
estratos sociais e outros grupamentos” (ibdem: 235).
Considerações Finais
Em síntese, a obra de Elias assume papel relevante nas reflexões sobre o processo de
escolarização dos indivíduos e suas implicações nas mudanças de comportamento da
sociedade. Especificamente, no que se refere ao fenômeno da distinção social, que projeta, na
maioria das vezes, na educação escolar a possibilidade de formação e ascensão social,
possibilitando a diferenciação dos indivíduos o interior da sociedade estando, dessa forma,
intrinsecamente relacionada à necessidade de status. Podemos dizer que ao procurar estudar o
que existia no cerne da civilização, nas diversas sociedades, Elias atentou não apenas para as
relações de poder, mas também, para a forma como se estruturam, ou mesmo, se organizam as
sociedades, seus comportamentos, emoções e conhecimentos. Levando em conta a sua
dimensão material, ou seja, a base material em que se assentam os indivíduos, assim como, a
dimensão cultural e simbólica presente nas relações sociais.
Referências
BARROSO FILHO, GERALDO. Entre o futuro incerto e o passado indesejado: A crise
de sentido dos sistemas públicos de ensino. Recife. Edições Bagaço, 2009.
CANÁRIO, RUI. A escola tem futuro? Das promessas às incertezas; Porto Alegre:
Artmed, 2006.
ELIAS. NORBERT, O Processo civilizador vol. II - 2ª edição Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. 1993. ______________ A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar. (1994).
GIMENO SACRISTÁN, j. A educação obrigatória: seu sentido educativo e social;
tradução: Jussara Rodrigues. _ Porto Alegre: ARTMED editora Ltda, 2001.
HONORATO, T. INSTITUCIÓN ESCOLAR Y CULTURA EN LA CIVILIZACIÓN
MODERNA. In: SIMPOSIO INTERNACIONAL PROCESO CIVILIZADOR, XI., 2008,
Buenos Aires. Anais... Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2008. p. 258-270.
SIMÕES. LUIS, JOSÉ. Processo Civilizador, Interdisciplinaridade e Controle da
Violência. In: SIMPOSIO INTERNACIONAL PROCESO CIVILIZADOR XII, Universidade Metodista
de Piracicaba, 2004. p. 1-6.
VEIGA. CYNTHIA, GREIVE. A escolarização como projeto de civilização. In: Trabalho
apresentado na sessão especial realizada na 25ª Reunião Anual da ANPEd, (Caxambu, MG,
29 de setembro a 2 de outubro de 2002). p. 90-170.
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