SALAZAR MONÁRQUICO?
O dilema pôs-se no seu tempo, muitas vezes, na curiosidade geral: Salazar seria ou não
pessoa de convicções monárquicas?
Em rapaz escrevera uma poesia em louvor da bandeira azul e branca - o que não
significa nada. Era na altura a bandeira nacional...
Em 1919 declarou a propósito de um estudante que não sabia se ele era monárquico ou
não:
- Eu sei muito bem o que sou, mas também não lho digo.
Quando houve conhecimento em Lisboa da morte de D. Manuel II, Salazar conversava
à tarde, depois do almoço, com Garcia Pulido, seu antigo companheiro e Coimbra, e
mostrava-se compungido com o facto. Reconhecia as qualidades do monarca deposto e
os serviços que prestara no exílio. Ao levantar-se da mesa a que estavam sentados, teve
esta frase estranha:
- Agora é que eu não sei como é!
Definiu um dia a Monarquia, não como um regime, mas como uma instituição que pode
existir em regimes diferentes. Exige-lhe contudo condições de perdurabilidade. Não
aceita que seja uma instituição a dias ou mesmo a anos... Reconhece-lhe
declaradamente, em situação de emergência, a força de um recurso nacional. Por isso o
seu interesse no casamento do Duque D. Duarte de Bragança com uma princesa
brasileira. Por isso o respeito com que quis acompanhar até S. Vicente de Fora os restos
mortais de D. Manuel II, a deferência com que recebeu a Rainha D. Amélia, as
diligências feitas para que viessem repousar em Portugal os ossos de D. Miguel I e D.
Maria Adelaide.
Não obstante, mandava recado a certos monárquicos tão exigentes como exaltados:
- Diga a essa gente insatisfeita, a esses jovens ansiosos, das diversas correntes do
pensamento, que não contem comigo para qualquer mudança da actual
constitucionalidade do País. Que sou firme na obediência aos princípios e deveres
contraídos, e que, quando me convidaram para vir trabalhar com o Governo, me foi
dito que seria dentro do regime existente, e não colaborarei numa traição. Quando não
tiver responsabilidades na governação, farei votos para que ela continue a abrir aos
portugueses os melhores rumos nos caminhos da sua história
Em 1948 insistiram com ele alguns amigos para que apresentasse a sua candidatura às
eleições para Presidente da República. Chegou a zangar-se.
Alguém que julgava conhecê-lo disse então:
- É um homem coerente. Sendo monárquico, tem a consciência de que, se ocupasse o
lugar de Chefe do Estado, usurparia uma função que de Direito lhe não pode pertencer.
Como Presidente do Conselho está à vontade, da mesma forma que o estaria como
primeiro-ministro numa monarquia, à direita do seu rei. Depois, não tem saúde, nem
feitio, nem tempo para se deslocar aqui e acolá, presidir a cerimónias, receber todo o
bicho careta, cortar fitinhas inaugurais - toda essa maçada a que um Chefe de Estado
está sujeito... Não é possível deixar de associar este comentário à história da estátua de
Nuno Álvares, transferida para a Batalha por sugestão de Salazar e com uma frase que
era muito do seu gosto.
Pelos anos 60 a Câmara Municipal de Lisboa quis erigir uma estátua ao Condestável.
Escolheu para local a Praça da Figueira, onde foi depois levantada a estátua de D. João
I. Houve duas vozes que se levantaram contra a escolha do local: a do deputado
Francisco do Cazal-Ribeiro e a do «Diário da Manhã». Achavam essas vozes que a
praça não tinha a grandeza suficiente para o monumento a uma das principais figuras da
História portuguesa Salazar concordou e, por sugestão sua, a estátua de Nuno Álvares,
que já estava concluída, foi colocada junto ao mosteiro da Batalha.
- Ali é que o herói está bem - dizia Salazar. - À estribeira de seu rei, como em vida
sempre andou.
Nesta frase se revelará porventura uma consciência de monárquico por sentimento, que
servia o seu País não como rei, que legitimamente não poderia ser, mas à estribeira de
quem ocupava, ainda que em usurpação necessária, o lugar do Rei legítimo.
Por sinal que, nas cerimónias de inauguração do monumento, manifestou ao Secretário
de Estado da Presidência o desejo de ler os discursos que iam ser proferidos ali. Excluiu
desse desejo o discurso que Monsenhor Moreira das Neves diria no templo. Fazia parte
da cerimónia religiosa e não da civil. Não se intrometia naquela, como não permitia que
bulissem no poder civil. Em todo o caso fez uma prevenção:
- Diga ao Moreira das Neves que tome cuidado, não vá ele atrás do gosto das pessoas
que fazem comparações. Não gostaria nada que ele fosse comparar-me ao Nuno
Álvares. E muito menos ao cavalo...
Poder-se-ia admitir que fosse monárquico até por inclinação sentimental, mas estava,
como político, ligado às circunstâncias. E além disso, não acreditava nos monárquicos.
«A Voz» era um jornal católico e monárquico, que vivia uma existência difícil. Não
tinha meios para remodelar as suas estruturas e competir com os outros, periódicos.
Além disso, a política de Salazar, no sentido da pacificação da família portuguesa,
arrefecera os ímpetos das forças monárquicas, cujos componentes integrados na unidade
nacional pretendida por Salazar, abandonaram o seu jornal. As velhas famílias
conservadoras da província, que encontravam na «Voz» a expressão do seu pensamento,
quando morria o chefe da casa e reviam despesas, cortavam a assinatura do jornal: a
política interessava-lhes pouco. Para isso lá estava o Governo que sabia o que fazia. E
para a novidade havia o Diário de Notícias ou o Notícias do Porto...
Esteve o jornal em perigo de cair nas mãos de capitalistas inimigos, que já rondavam a
administração. Correia Marques, seu director, estando nessa altura com Salazar, referiuse ao caso. Mas, daí a pouco, falando da força que os monárquicos eram na vida
portuguesa e o que poderiam ser no futuro, surpreendeu um brilho irónico nos olhos do
Presidente:
- Os monárquicos!... Como queria o Sr. Correia Marques que os monárquicos
aguentassem este País, se eles não são capazes de sustentar o seu jornal?...
João Gomes
2009-02-23
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SALAZAR MONÁRQUICO? O dilema pôs