REPRESENTAÇÕES TECIDAS POR MONTEIRO LOBATO SOBRE A
HISTÓRIA DE SEU TEMPOi
Cássia Aparecida Sales M Kirchnerii
Faculdade de Educação – Unicamp – Grupo Civilis
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Palavras-chave: Representação, História da Educação, Monteiro Lobato.
Apresentação
O presente artigo tomou como objeto de análise as correspondências que Monteiro
Lobato enviou ao amigo Godofredo Rangel no período entre 1903 e 1948. Ao final destas
quatro décadas as cartas foram organizadas pelo próprio Lobato e publicadas pela Editora
Nacional em dois tomos intitulados A Barca de Gleyre. O título foi retomado de uma das
correspondências trocadas logo no início dessa metafórica viagem quando Lobato, ao
comentar um artigo escrito por Rangel, diz que o texto do amigo evocou o quadro de
Charles Gleyre Le Soir ou Ilusões perdidas título posteriormente adotado pelo público. O
trabalho aqui proposto buscou localizar nas cartas de Monteiro Lobato traços de sua
preocupação com os rumos da nação, seus projetos, e a visão de mundo que habitava o
ambiente intelectual, político e cultural vivido por ele, considerando em especial seu papel
de escritor, tradutor e empresário do mercado editorial.
Com esse intuito a análise dos dois tomos de A Barca de Gleyre foi organizada do
seguinte modo: primeiramente, observar as cartas como produto do autor, e posteriormente
a organização dessas cartas para publicação considerando o uso de dispositivos editoriais.
Ou seja, no primeiro momento foram focados os dispositivos de produção de sentido
elaborados em uma escrita aparentemente espontânea entre amigos, e no segundo momento
a ação voltada para a organização e preocupação com a sua publicação destas cartas.
A pesquisa buscou apreender os modos como Lobato percebia sua época a partir
das análises feitas sobre inúmeras obras, seus autores, fatos políticos, e demais observações
que tecia nas correspondências enviadas a Rangel. Assim como, identificar as estratégias
que lançou mão no campo editorial, tanto para produção, quanto para distribuição e
consumo de livros, conquistando a adesão de livreiros, autores e comerciantes para o que
considerava ser uma renovação editorial no país. Os traços encontrados nestas
correspondências não devem, no entanto, ser compreendidos como reflexo daquilo que era
vivido socialmente por Lobato e seus contemporâneos, mas como um dos modos possíveis
de se compor uma narrativa.
1. O içar das velas
Companheiros de geração Monteiro Lobato e Godofredo Rangel conviveram numa
república de estudantes, localizada na Rua 21 de Abril, no Belenzinho. O endereço ficou
conhecido como “Minarete”, sede do “Cenáculo”. Além deles, Lino Moreira, Tito Lívio
Brasil, Albino Camargo, Cândido Negreiros, Raul de Freitas e José Antonio Nogueira
compunham o grupo que recebeu novos membros ao longo do tempo. Após o término dos
estudos em São Paulo, os amigos Monteiro Lobato e Godofredo Rangel firmam o
propósito de manter os laços de amizade através de correspondências. Entre 1903 e 1948,
trocaram centenas de correspondências compartilhando confissões pessoais e literárias,
agora, o principal atrativo para esse trabalho.
Godofredo Rangel não autorizou a publicação de suas cartas, assim a A Barca de
Gleyre contém apenas cartas escritas por Lobato. Através destas cartas é possível
acompanhar a astúcia e as críticas ácidas feitas pelo seu autor sobre obras que vão da
filosofia à história da arte. Escreve comentários sobre autores e demais pessoas envolvidas
nos processos de escrita, tradução, produção e distribuição de livros. Com menos
frequência aparecem comentários sobre políticos e outras personalidades. Como essa
correspondência é mantida com certa regularidade é possível acompanhar como a sua vida
vai se constituindo, os períodos de maior euforia e outros que apresentam os desafios
vividos por Lobato.
Essa metafórica viagem tem inicio na carta escrita em São Paulo a 09 de dezembro
de 1903 quando aos vinte e um anos, Lobato faz o convite ao amigo:
Sigo logo para a fazenda e quero de lá corresponder-me contigo longa e
minuciosamente, em cartas intermináveis – mas é coisa que só farei se me
convencer de que realmente queres semelhante coisa. [...] Responda sem
demora se está disposto a ser caceteado à distância – telecaceteado! Pode
dirigir a carta para Taubaté, para onde sigo nestes três dias. (LOBATO,
1955).
Após o convite ser aceito, a correspondência é trocada regularmente tratando de
diferentes assuntos, boa parte relacionada ainda às experiências vividas em São Paulo. Em
15 de novembro de 1904, o quadro de Charles Gleyre foi mencionado por Lobato ao
comentar o ensaio de Taine sobre Gleyre, de onde, provavelmente incidiria o título da
publicação das cartas:
(...) Nunca viste a reprodução dum quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas?
Pois teu artigo me deu a impressão do quadro de Gleyre posto em
palavras. Num cais melancólico barcos saem; e um barco chega, trazendo
à proa um velho com o braço pendido largadamente sobre uma lira – uma
figura que a gente vê e nunca mais esquece (...). O teu artigo me evocou a
barca do velho. Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura
de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre?
Cansados? Rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e
não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas
novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas
ilusões. Que lhes acontecerá? (LOBATO, 1955).
(...)
Estamos moços e dentro da barca. Vamos partir. Que é a nossa lira? Um
instrumento que temos de apurar, de modo que fique mais sensível que o
galvanômetro, mais penetrante que o microscópio: a lira eólia do nosso
senso estético. Saber sentir, saber ver, saber dizer. E tem você de
rangelizar a tua lira, e o Edgard tem que edgardizar a dele, e eu de
lobatizar a minha. Inconfundibilizá-las. Nada de imitar seja lá quem for.
Eça ou Ésquilo. Ser um Eça II ou um Ésquilo III, ou um sub-Eça, um
sub-Ésquilo, sujeiras! Temos de ser nós mesmos, apurar os nossos Eus,
formar o Rangel, o Edgard, o Lobato. Ser núcleo de cometa, não cauda.
Puxar fila, não seguir. O trabalho é todo subterrâneo, inconsciente; mas a
vontade há que marcar sempre um norte, como a agulha imantada.
(LOBATO, 1955).
O último trecho diz muito sobre as características e o contraste das personalidades
visivelmente arquitetadas. De um lado a insegurança de Rangel com os próprios textos e a
escuta respeitosa às opiniões do amigo. Do outro lado a eterna insatisfação de Lobato
sempre polêmico, ousado e buscando concretizar seus empreendimentos. Lobato reconhece
a importância das cartas de Rangel, assim se apresenta ora como o “magister”, ora como
aprendiz:
Tuas cartas me são um estimulante; obrigam-me a pensar, abrem-me
perspectivas. Mas estás um homem cheio de vícios mentais e cacoetes. O
pior é a mania (que acho irônica) de te rebaixares e me pores nas nuvens
(como o Rei dos Judeus), quando na realidade não passamos, os dois de
duas “sedes de saber”, de duas “fomes de expressão” em tudo
equivalentes. Que graça, botar a minha sede acima da tua! Sede é sede.
Outro vício teu é a tal modéstia. Parece que você faz da modéstia
palanque donde melhor regalar-se com a vaidade humana. Seja todo
portas e janelas abertas, homem! (LOBATO, 1955).
Acima das vaidades, modéstias e cerimônias um ponto de interseção se mantém: a
literatura. Ponto fundamental para que as cartas testemunhem à formação do espírito
lobatiano, as inquietações, a busca pelos atributos artísticos e as preocupações em tornar-se
reconhecido.
As primeiras cartas são pautadas por comentários sobre as descobertas de autores e
livros novos; os desafios da escrita literária, e o deslumbramento por planos que levarão a
glórias futuras. No transcorrer da correspondência os comentários tomam diferentes
formatos: desabafos por vezes amargos, sonhos e projeções no período inicial da
correspondência, depois projetos mais estruturados e factíveis vão ocupando o espaço
anteriormente destinado aos devaneios da juventude. Ao final as cartas são marcadas pelo
tom retrospectivo e de avaliação dessa viagem percorrida ao longo de quatro décadas.
2. Mesmo com tempestade, navegar é preciso
A partir das declarações feitas em suas cartas Lobato demonstra o desejo que sua
literatura contribua para uma coesão social e fortalecimento de uma identidade nacional.
Desse modo, buscava mostrar um Brasil próximo ao que convivia em sua fazenda, e que
acreditava apresentar em suas obras, sem idealizações românticas, abordando os problemas
do país e contribuindo no combate aos chamados “males do Brasil”.
Para essa tarefa personifica a figura do Jeca Tatu, figura inicialmente criada a partir
da representação que o jovem fazendeiro tinha sobre a indolência do caipira que
considerava ser produto da formação racial do país. Essa representação está muito aparente
nas primeiras correspondências trocadas com Rangel. O choque de hábitos vivido ao voltar
para a rotina da fazenda em Taubaté após os anos de vida urbana e movimentada na
capital. Nestas cartas reclama inclusive da falta de pessoas cultas para conversar e fala com
saudades do período da faculdade. Anos depois o Jeca Tatu passa a ser Jeca Tatuzinho
considerado vítima das más condições de saúde, higiene e subnutrição. Por último Tatuíra
e Zé Brasil integram um novo contexto econômico e político voltado para a propriedade da
terra, da política agrária em decorrência da exploração socioeconômica.
Todo esse processo de transformação e adequação do Jeca muito se aproxima as
agruras vividas pelo escritor em consequência das mudanças presente no país. Movimentos
nacionalistas em países que foram colonizados caracterizaram-se como movimentos de
afirmação da nacionalidade, de busca pelas tradições, de autonomia política, econômica e
cultural em relação principalmente aos países europeus. Em uma de suas cartas Lobato fala
dos livros franceses: “Minha livraria é duma pobreza incrível em livros, em língua
portuguesa. Quase tudo francês. Uma vergonha.” (LOBATO, 1955).
A quantidade de livros franceses de sua biblioteca nada mais é que o reflexo da
formação característica recebida pela sociedade culta brasileira até aquele momento. Com
uma formação clássica, buscando ser inovador, mas muito ligado às tradições Lobato
oscila entre uma postura adversa às influências estrangeiras no Brasil e a não aceitação de
uma nação com hábitos arcaicos. Marcado por seu tempo e pela sua educação, o protótipo
do caboclo negativo que traz em seus trabalhos desperta o protesto e desagrados com
relação suas características literárias. Assim Urupês é celebrado por nomes como Rui
Barbosa e Gilberto Freyre que chamam atenção para a alienação dos brasileiros do litoral
em relação à realidade do interior do Brasil, mas também é muito criticado por tantos
outros.
Além desses dois polos, como já mencionado, havia a oposição entre interior e
litoral presentes no pensamento social brasileiro como imagens de grande força simbólica,
demonstrando os antagonismos de distintas formas de organização social e cultural. Ao
tratar destas diferenças Lobato destaca a necessidade de pensar um Brasil moderno e ao
mesmo tempo garantir uma identidade nacional. Através de sua literatura regional levanta
as diferenças existentes, mas também busca a homogeneidade pelo processo de formação
da nação. Assim os elementos identitários de sua obra ganham importância e atingem seus
leitores por alimentar o sentimento de pertença à nação.
Nas cartas para Rangel, o autor mostra-se satisfeito com os resultados de sua obra,
acredita que está conquistando seu estilo, seu espaço como escritor, constituindo-se núcleo
do cometa.
Entre os críticos de sua obra estavam o integrantes do Movimento Modernista.
Estes foram construindo aos poucos um discurso que instituía o modernismo como o
momento de ruptura com o passado, incluindo o passado literário nacional. Monteiro
Lobato e sua obra foram eleitos como marco entre o passado e o novo. Desejosos por uma
ruptura drástica, não consideravam uma continuidade no processo de formação de nossa
literatura e viam na obra de Monteiro Lobato um entrave à renovação da arte brasileira.
Para se estabelecer uma nação seria necessário modernizar, assim ao se olhar para a
tradição em oposição ao moderno não estava sendo considerada a tradição, mas os seus
aspectos. Neste caso, consideravam que o Jeca Tatu não representava a nação. Reafirmar
as características de um povo mestiço e indolente atrapalharia a modernização do Brasil. A
oposição fica declarada quando Mário de Andrade publica em 1926 no jornal A Manhã a
morte simbólica de Lobato. Esse episódio colabora para que os líderes do modernismo
estabeleçam que o autor não pertence ao grupo (PASSIANE, 2003).
Não integrar o grupo dos modernistas não rendeu comentários em suas cartas com
Rangel. Lobato já idealizava projetos empresariais dentro desse país que se queria
moderno. O país se modernizava timidamente numa direção capitalista, propício ao
comércio, com uma grande lacuna na produção e distribuição editorial. O autor passa a
dedicar uma atenção especial à literatura infantil, projeto acalentado desde 1916 quando
escreve a Rangel:
As fábulas em português que conheço em geral traduções de La Fontaine,
são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis.
Um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se feito com
arte e talento dará coisa preciosa. Fábulas assim seriam um começo da
literatura que nos falta. (LOBATO, 1955)
Atento às necessidades do público e carência do mercado editorial no país, Lobato
inicia um investimento na produção de uma literatura voltada para o público infantil e
acredita ser esse empreendimento um enriquecimento da literatura nacional:
Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de
Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa
para crianças. Veio-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos
ouvem as fábulas que Purezinha conta. (...) É de tal pobreza e tão besta a
nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos.
(LOBATO, 1955)
(...)
Estou a examinar os contos de Grimm dados pelo Garnier. Pobres
crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos que refazer tudo isso
– abrasileirar a linguagem. (LOBATO, 1955)
Lajolo (2000) ressalta que além de um projeto literário, as obras voltadas para o
público infantil passam a ter cunho pedagógico. O autor transfere sua experiência de editor
para o mercado do livro infantil. Utiliza o papel da escola e do estado na difusão da leitura
e impulsiona sua obra distribuindo livros gratuitamente às escolas paulista. O governador
Washington em visita às escolas percebe o quanto as crianças apreciam a leitura e solicita
que sejam comprados 30 mil exemplares para distribuição nas escolas. Também conquista
a fidelidade de seus leitores através do formato seriado de sua obra, mantendo espaço e
personagens como no Sítio do Pica-pau amarelo.
Além de "fazer seu público" garantia que seus livros chegassem a esse público. O
sucesso de vendas de seus livros está ancorado principalmente no fato de considerar o livro
um gênero de primeira necessidade, uma mercadoria que, como tal, deveria ser vendida em
qualquer ponto comercial para que seu acesso fosse facilitado, assim como, sua venda
deveria gerar lucros aos envolvidos em sua cadeia de produção e comercialização, a fim de
que houvesse mais pessoas interessadas em sua difusão. Para conseguir adeptos enviava
cartas para os proprietários de estabelecimentos comerciais com a seguinte proposta:
Vossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coisas vender,
maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada “livro”? V.
S. não precisa inteirar-se do que essa coisa é. Trata-se de um artigo
comercial como qualquer outro, batata, querosene ou bacalhau. E como
V. S. receberá esse artigo em consignação, não perderá coisa alguma no
que propomos. Se vender os tais “livros”, terá uma comissão de 30%; se
não vendê-los, no-los devolverá pelo Correio, com o porte por nossa
conta. Responda se topa ou não topa (CAVALHEIRO, 1962).
Se for considerado a partir da perspectiva que a crença na ideologia do progresso
rejeita o que considera vestígios do passado, como articular então, na mesma figura, nesse
caso Monteiro Lobato, iniciativas voltadas para a indústria, a mercadoria, a produção,
aspectos característicos do capitalismo e por outro lado aspectos ligados às tradições, a
ruralidade, o dito gosto popular? Uma das possíveis análises inicia com os apontamentos
feitos por Ortiz (2002) no artigo as Ciências sociais e a cultura em que assinala as
diferenças de assimilação e/ou interpretação da modernidade em diferentes países, explica
que países com herança “milenar” como o Japão a modernidade é reinterpretada em termos
da tradição anterior (budismo, confucionismo, grupos de família), na América Latina, as
elites para se distanciarem de seu passado mestiço, tenderam às vezes a pensar que seus
países deveriam “partir do zero”, o que é certamente um equívoco.
Portanto, o que seria considerado um obstáculo pelas elites dominantes seria o
oposto de representarem “resquícios do passado”, sendo de fato forças atuantes do
presente, tornando essas expressões culturais tradicionais uma referência obrigatória. Ao
que parece Lobato trazia para sua obra questões que se articulavam em torno da identidade
nacional, indo das indolências do trabalhador rural até projetos de industrialização. As
cartas mostram que Lobato foi um homem de muitas buscas, até mesmo contraditórias,
mostrava-se revolucionário ao desconstruir falsos ídolos e ideias, mas persegue uma
solidificação de uma identidade social.
Defendia calorosamente que o escritor deve escrever o que pensa independente das
consequências. Uma escrita autêntica, cheia de sentimento e sonhos. Acreditava que a
literatura estava ligada à transformação. Apresentava acentuado compromisso com a
modernidade, mas paralelamente investia no conservadorismo de instituições como família
e escola. Para ele, mudar o país não era uma ação exclusiva daqueles que ocupavam o
poder, mas de todos os sujeitos que compunham a nação.
3. Capitão, timoneiro ou passageiro?
Monteiro Lobato iniciou copiando trechos de autores que apreciava, perseguiu um
estilo próprio, dizia ser preciso lobatear como escrevia a Rangel e parecia não se satisfazer
com sua busca incessante. Em 1939 escreve:
Quando olho para trás fico sem saber o que realmente sou. Porque tenho
sido tudo, e creio que a minha verdadeira vocação é procurar o que valha
a pena ser. Aquela minha fúria literária de Areias e da fazenda: quem
visse aquilo proclamava-me visceral e irredutivelmente “homem de
letras”. E errava, porque o Lobato que fazia contos e os discutia com você
está mortíssimo, enterradíssimo e com pesada pedra sem epitáfio em
cima. O epitáfio poderia ser: “Aqui jaz um que se julgou literato e era
metalurgista.” Porque a minha vocação pela metalurgia é muito maior
que a literária. Jamais conversei com qualquer literato mais atentamente e
mais encantado do que converso com Mr. William H. Smith, o anjo
Gabriel anunciador. Eis a beleza suprema. Perto do “sponge iron”, todos
os livros de Camilo e Machado de Assis só valem materialmente pelo
papel, porque o papel contém carbono e o carbono é necessário à Reação
diante da qual todos devemos nos ajoelhar porque é a mãe da Civilização:
FeO – O + C = FeC (LOBATO, 1955).
Assim como os modernistas também declara sua morte, a morte do Monteiro
Lobato literato. No afã de procurar o que valha a pena ser falhou em diversos
empreendimentos, mas foi vitorioso na literatura. Popularizou a leitura no país e se
estabeleceu entre os grandes escritores nacionais. Mesmo com a falência de sua editora,
sua rejeição pelo grupo dos modernistas e a sua influência no campo intelectual reduzida
drasticamente Lobato se mantém firme. Como responder a capacidade de enfrentamento e
recuperação apresentada por ele? Como conseguia transitar entre posturas conservadoras e
empreendimentos com vistas à modernidade?
O processo pelo qual passava o país era imbricado por relações dinâmicas entre
instituições e agentes sociais posicionados de acordo com sua visibilidade e recursos
disponíveis. A interdependência estabelecida entre essas instâncias e agentes definia os
aliados ou adversários, as continuidades ou rupturas. Assim sendo, acreditamos ser
possível relacionar a circulação, princípio estruturante da modernidade aos deslocamentos
e adaptações que Lobato apresenta em sua trajetória.
Cavalheiro (1962) traz na biografia que fez sobre o autor as seguintes
considerações: homem complexo e instável, muito moderno para ser passadista, muito
ligado à tradição literária para ser modernista, ponto de encontro de duas épocas e de duas
mentalidades, símbolo de transição da nossa literatura, exemplo de labor intelectual e de
consciências literária. Ocupando esse ponto de encontro de duas épocas acreditamos que
Lobato observava “as duas épocas” e atuava de acordo com seus projetos nas lacunas que
conseguia abrir. O não pertencimento de Lobato a esta ou aquela época o colocava no lugar
privilegiado de observador. Vivenciando as duas épocas estava inserido em uma e outra e
conseguia afastar-se de acordo com a análise a ser feita, tornando-o um astuto observador,
desenraizado da percepção imediata das coisas.
Conclusão ou a escolha de um porto para o descanso
A discussão aqui apresentada envolveu os seguintes aspectos: a posição do artista
no campo que atuava; as disputas em busca de legitimidade cultural; e as disposições
socialmente constituídas por ele. Nessa perspectiva as escolhas não seriam uma estratégia
consciente de Monteiro Lobato, mas um tipo de intuição decorrente do lugar que construiu
como literato a partir da experiência no campo. Essa interpretação pode ser reforçada se
considerarmos a dificuldade que teve em obter sucesso em projetos que não estavam
diretamente ligados à literatura. Por outro lado, estas questões retomam o espírito
contraditório de Lobato. Dizendo-se livre como autor, o artista era afeito a proliferação da
imprensa. Editor de sua própria obra utilizava-se dos conhecimentos que tinha da
organização de trabalho de Henry Ford na produção de seus livros. Apesar da lógica do
Fordismo pressupor a anulação do indivíduo, ele mantém peculiaridades de seus trabalhos.
Os empreendimentos de Lobato não ocorrem num vazio de deliberações sociais,
nem são meras funções de alguma movimentação coletiva. A sociedade produz o indivíduo
e este é moldado em contínua ação com outros indivíduos, estabelecendo a própria
dinâmica da sociedade. Por fim, essa relação estabelece um equilíbrio tenso, moldado
conforme o arranjo dos termos em cada sociedade, em cada período histórico.
Na constituição social de sua época, Monteiro Lobato mobilizou um
empreendimento por acreditar que contribuiria para a transformação do país de acordo com
as crenças que tinha. Não se integrou perfeitamente aos modelos sociais, e muitas vezes era
considerado de difícil trato. Não abria mão de suas convicções e sempre primou pela
originalidade de sua obra. Como lembra Elias, as regras da arte seguiam o gosto cortesão.
Realizando habilmente sua arte não apenas de literato, Lobato transpôs os limites de sua
arte e a deu uma finalidade social para modelar uma identidade nacional.
Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja a sua estatura, poderosa sua
vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis
autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles
são dirigidos. Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode [...] deter
mais do que temporariamente as tendências centrífugas [...]. Ela não pode
transformar sua sociedade de um só golpe (ELIAS, 1994).
Lobato atravessou sua vida de modo apaixonado, idealista, contraditório. Por vezes
tomando decisões polêmicas, em outras antecipando seu tempo. Na última carta
endereçada a Rangel em 1948 despede-se: “Não é impunemente que chegamos aos 66
anos. O que eu tive foi uma demonstração convincente de que estou próximo do fim – foi
um aviso – um prepara-teiii. (...) Adeus, Rangel! Nossa viagem a dois está chegando perto
do fim. Continuamos no além?”.
A descrição inicial da Barca de Gleyre foi retomada por Lobato explicando que
havia alterado a tela em sua descrição. A tela na verdade teria outra descrição, a barca está
realmente em um cais melancólico, ao contrario, o barco não chega ele está partindo. O
velho com o braço pendido sobre uma lira não está dentro do barco, ele observa a partida.
Retomando a pergunta feita por Lobato: Em que estado voltaremos, Rangel, desta
nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados?
Rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma
(LOBATO, 1955).
Nessa viagem Lobato tanto esteve dentro da barca quanto fora observando a
travessia sem sair do cais. Firme no propósito de que “o trabalho é todo subterrâneo,
inconsciente; mas a vontade há que marcar sempre um norte, como a agulha imantada”
(LOBATO, 1955).
Referências bibliográficas
CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato: vida e obra. (2 vol.). São Paulo: Brasiliense,
1962.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, jan.abr. 1991, vol. 5, n. 11. p. 173-191.
DANTAS, Paulo. Vozes do tempo de Lobato. São Paulo: Traço Editora, 1982.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato. Um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna,
2000.
LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. Tomo I e II. São Paulo: Editora Brasiliense,
1955.
ORTIZ, Renato. As ciências sociais e a cultura. Tempo Social. Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
14(1): 19-32, maio de 2002.
PAES, José Paulo (org.). Grandes cartas da história. São Paulo: Cultrix, 1968.
PASSIANI, Enio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no
Brasil. Bauru, Edusc, 2003.
TIN, Emerson. Em busca do “Lobato das cartas”: a construção da imagem de Monteiro
Lobato diante de seus destinatários. [Tese de doutorado]. Campinas, SP: [s.n.], 2007.
i
Artigo produzido a partir dos estudos desenvolvidos na pesquisa sobre os livros da Biblioteca da E.E. Carlos
Gomes, Campinas. Pesquisa que integra projeto mais amplo orientado pela professora Maria Cristina Menezes
coordenadora do Grupo Civilis da Faculdade de Educação da Unicamp .
ii
Doutoranda do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp. Orientada da professora
Maria Cristina Menezes.
iii
Em abril teve um espasmo muscular que afeta sua motricidade. Morre em quatro de julho do mesmo ano.
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