O CONCEITO DE AMOROSIDADE EM FREIRE E A RECUPERAÇÃO DO SENTIDO DE EDUCAR NASCIMENTO, Lizandra Andrade1; AZEVEDO, Gilmar2; GHIGGI, Gomercindo3 RESUMO: Este artigo discute o conceito de amorosidade na obra de Paulo Freire. Nosso objetivo é salientar a importância dessa temática em nossos dias. Partiremos da análise dos elementos envolvidos na crise na educação, os quais comprometem a qualidade do processo de ensino e aprendizagem, desenvolvido nas escolas, e exigem a busca de novas respostas diante de questões como a violência escolar, a crise de autoridade dos professores, o baixo desempenho dos estudantes na aquisição de conceitos e pré-requisitos básicos nos distintos componentes curriculares e, consequentemente, na compreensão do mundo, dentre outros. Contra esse pano de fundo, percebemos no conceito de amorosidade de Paulo Freire a possibilidade de recuperação do sentido do educar, enquanto acolhida das novas gerações e a sua inserção na cultura. O conceito de amor mundi, apresentado por Hannah Arendt, corrobora esta concepção, defendendo que o professor precisa responder pelo mundo, dando a ele um novo nascimento, para inspirar nos educandos o amor pelo mundo e a atitude de cuidado com relação às obras das distintas gerações. PALAVRAS-CHAVE: Paulo Freire. Amorosidade. Diálogo. Sentido do Educar. Refletir sobre a Educação como Prática de Liberdade, num fecundo momento comemorativo dos 50 anos da experiência de Angicos, concebendo a educação como ato de amor, supõe recuperar o sentido de educar em um mundo em que a autoridade e a tradição estão em crise, destacando a importância de que o educador assuma a posição de quem apresenta e de quem representa o mundo diante das novas gerações, demonstrando que é necessário preservar o que há de bom, e, o mesmo tempo, tornar-se autor de suas próprias histórias, desenvolvendo a capacidade de pensar, de julgar e de cuidar do mundo. Para Paulo Freire, a “educação é um ato de amor”, sentimento em que homens e mulheres vêem-se como seres inacabados e, portanto, receptivos para aprender, sendo que “não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que o funda [...]. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREIRE, 1987, p. 79-80). A relação pedagógica quando perpassada pela afetividade, pela amorosidade e pela dialogicidade, oportuniza o desenvolvimento da educação como prática de liberdade e de humanização. Tais dimensões humanas aparecem interligadas, uma vez que não é possível exercer a docência, de forma autêntica e comprometida, sem vivenciar o afeto pelos educandos e pelo mundo, sem dialogar com os outros indivíduos (alunos, pais, colegas 1 Aluna do Programa Especial de Formação Pedagógica de Docentes da UERGS – Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] 2 Docente no PEFPD da UERGS. 3 Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel. professores, enfim, com todos) e oportunizar a preservação do legado cultural da humanidade, por meio do acesso ao saber. O relevo atribuído por Freire à amorosidade também está presente na obra Professora Sim, Tia Não (1999, p. 38), em que o autor afirma que [...] é preciso juntar à humildade com que a professora atua e se relaciona com seus alunos, uma outra qualidade, a amorosidade, sem a qual seu trabalho perde o significado. E amorosidade não apenas aos alunos, mas ao próprio processo de ensinar. [...] não acredito que, sem uma espécie de “amor armado”, como diria o poeta Tiago de Melo, educadora e educador possam sobreviver às negatividades de seu que-fazer. A amorosidade e o diálogo constituem-se como elementos indispensáveis para que ocorra, no processo educativo, “o encontro amoroso entre os homens que, mediatizados pelo mundo, o “pronunciam”, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (FREIRE, 1992, p. 43). Caracterizando o amor como uma intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam, onde cada um tem o outro como sujeito, não propriedade, de seu amor, Paulo Freire, relaciona amorosidade e diálogo com outros elementos, tais como o respeito, a humildade, a fé e a esperança, afirmando que é impossível dialogar, em sentido autêntico, sem um profundo amor aos outros homens e ao mundo. Conforme Andreola (2000), a defesa de Freire não se inspira num sentimentalismo vago, mas na radicalidade de uma exigência ética. Não se trata, portanto, de um amor romati zado, permissivo, sufocante. Ao contrário, este amor liberta, sem ser dominador, constituindose como compromisso entre os seres humanos. A amorosidade em Freire, como propõe Andreola (2000) deve ser pensada: [...] sem esquecer as perspectivas da inteligência, da razão, da corporeidade, da ética e da política, para a existência pessoal e coletiva, enfatiza também o papel das emoções, dos sentimentos, dos desejos, da vontade, da decisão, da resistência, da escolha, da curiosidade, da criatividade, da intuição, da estecidade, da boniteza da vida, do mundo, do conhecimento. No que tange às emoções, reafirma a amorosidade e a afetividade, como fatores básicos da vida humana e da educação (ANDREOLA, 2000, p. 22). Amorosidade e diálogo oportunizam aos indivíduos viver em plenitude o processo de humanização e de estabelecimento de sua presença no mundo e na teia de relações com os demais. Isso porque, segundo Freire (1987, p. 79-80), a pronúncia do mundo só é possível quando existe amor, na condição de fundante e decisivo para que a ação humana seja comprometida com o outro. Na educação, a amorosidade se materializa no estabelecimento de relações de ensino e de aprendizagem dialógicas e respeitosas, onde a construção de conhecimentos e a inserção crítica na cultura se conectam com a vivência de valores e com o acolhimento do outro, aliando os processos de humanização e de desenvolvimento cognitivo. Para tanto: [...] é preciso que a escola progressista, democrática, alegre, capaz, repense toda essa questão das relações entre corpo consciente e mundo. Que reveja a questão a questão da compreensão do mundo, enquanto produzindo-se historicamente no mundo mesmo e também sendo produzida pelos corpos conscientes em suas interações com ele. Creio que desta compreensão resultará uma nova maneira de entender o que é ensinar, o que é aprender, o que é conhecer [...] (FREIRE, 2001, p. 73). A construção desta nova compreensão do ato de educar, concebendo ensinar e aprender não como mera aquisição de um conjunto de saberes e de práticas, mas como possibilidade de conhecer e superar visões ingênuas e fragmentadas, ampliando a capacidade de leitura crítica do mundo em interação com as distintas visões dos outros, demanda um duplo compromisso: com a cultura e o mundo e com os educandos. A seriedade e o rigor estão implícitos na prática pedagógica baseada na amorosidade e no diálogo, posto que, dialogar e demonstrar amor pelos estudantes não significa infantizar ou docilizar a educação, nem assumir o papel de ‘bonzinho’. O professor que assume seu amor pelo mundo e pelos educandos, o demonstra por meio da seriedade no planejamento de suas aulas, da busca constante de práticas que promovam a aprendizagem, do estabelecimento de vínculos afetivos saudáveis, em que todos se sintam acolhidos e, portanto, convidados a se expressar. Para Freire (1996, p. 159-160): Essa abertura de querer bem não significa, na verdade, que, porque professor, me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual. Significa, de fato, que a afetividade não me assusta, que não tenho medo de expressá-la. Significa, esta abertura ao querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar meu compromisso com os educandos, numa prática específica do ser humano. Na verdade, preciso descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei tão melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e “cinzento” me ponha nas minhas relações com os alunos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade. A amorosidade, característica da postura do educador, o auxiliará no estabelecimento de uma relação equilibrada e mediada pela afetividade, primando pelo estudo sério dos conteúdos, pela formação humanista, pela convivência saudável, em que os indivíduos são acolhidos e o egoísmo é recusado. Ou seja, o amor se manifesta no desejo de formar pessoas, empenhando-se em fazê-lo da melhor forma possível. É preciso, [...] reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria, prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores ou educadoras. A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje (FREIRE, 1996, p. 161). O processo educativo conduzido com afetividade e seriedade volta-se para a aprendizagem como humanização e como possibilidade de ser mais, oportunizando aos indivíduos avanços em direção àquilo que podem ser, desenvolvendo potencialidades, conhecimentos e capacidade de assumir seu lugar junto aos demais. Para Calado (2001, p. 52): Feito para o ser mais, o ser humano é ontologicamente chamado a desenvolver, nos limites e nas vicissitudes de seu contexto histórico, todas as suas potencialidades materiais e espirituais, buscando dosar adequadamente seu protagonismo no enorme leque de relações que a vida lhe oferece, incluindo as relações no mundo e com o mundo, as relações intrapessoais, interpessoais, estéticas, de gênero, de etnia e de produção. A humanização, enquanto vocação ontológica, oportuniza reinventar o mundo, buscar sua boniteza nas relações consigo e com os demais. Este é, para Freire (2005), o objetivo central da educação libertadora, cujo desafio maior repousa na esperança de reinventarmos o mundo. Tal concepção nos aproxima do conceito arendtiano de amor mundi, posto que, para Hannah Arendt (1972), a educação expressa tanto o nosso amor pelas crianças como pelo mundo, cabendo à tarefa educativa uma atitude de conservação do mundo. O educador precisa responder pelo mundo, dando a ele um novo nascimento. Almeida (2009) salienta que, para Arendt: O amor mundi trata o mundo que se forma como tempo-espaço, assim que os homens estão no plural [...], em que construímos nossas casas, nos instalamos, querendo deixar algo permanente. O mundo ao qual pertencemos, porque somos no plural, em que permanecemos eternamente estrangeiros porque somos no singular, cuja pluralidade, e somente ela, nos permite estabelecer nossa singularidade. A atitude de amor mundi, é definida, por Arendt, como admiração pela obra das gerações humanas passadas e de desejo que tal obra seja “preservada” para as gerações que ainda virão. Essa atitude de preservação e de amor a ele, o educador deverá inspirar em seus alunos na escola, capacitando-os a compreender que este mundo é o lar comum de múltiplas gerações, percebendo a importância de sua relação com gerações passadas e vindouras: “tal relação se dará, primeiro, no sentido de preservar o tesouro das gerações passadas, isto é, no sentido de a geração do presente tomar o cuidado de trazer a esse mundo sua novidade sem que isso implique a alteração, até ao não reconhecimento, do próprio mundo, da construção coletiva do passado” (FRANCISCO, 2007, p. 35). Com o rompimento da tradição, a tarefa do educador encontra-se ameaçada. Por tal razão, torna-se imprescindível que o professor e os adultos, de maneira geral, se reconciliem com o mundo, expressando o desejo de que esse continue a existir para as futuras gerações. a quebra da tradição significa o rompimento do fio que liga as diferentes gerações. A tarefa de preservar o passado sem auxílio da tradição e contra os modelos e interpretações tradicionais é a mesma para toda a civilização ocidental (...). O fio da tradição está rompido e temos que descobrir o passado por nós mesmos – isto é, ler seus autores como se ninguém os houvesse jamais lido antes (ARENDT, 1972, p. 256-257). Sendo assim, o professor deverá permitir o acesso ao antigo, interligando-o ao novo. Como o mundo é sempre mais velho do que aqueles que nele nascem, é preciso ensinar-lhes mais do que lhes inculcar uma arte de viver. Releva, pois, dirigir seus olhares, fascinados pelo presente, em direção ao passado, reintroduzindo o passado no presente através de narrativas (COURTINE-DENAMY, 2004, p. 176). [...] a perda da permanência e da segurança do mundo – que politicamente é idêntica à perda da autoridade – não acarreta, pelo menos não necessariamente, a perda da capacidade humana de construir, preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado à vida para os que vêm após (ARENDT, 2005, p. 132). A atitude de cuidado com o mundo, de admirá-lo e preservá-lo, de exercitar livremente nosso gosto, ou seja, a capacidade de responder pelo mundo, se relaciona com a recuperação da faculdade de agir, de pensar sobre o que fazemos e de produzir histórias e narrativas, uma vez que assumir compromisso com o mundo implica em conhecê-lo e encontrar aspectos merecedores de cuidado e preservação, pensando e agindo em defesa da constituição de uma esfera adequada à vida digna de todos os indivíduos que partilham este espaço. Inspirar nos educandos o amor pelo mundo requer que o professor exerça a tarefa de apresentar, [...] e de representar o mundo diante dos “forasteiros”. Como representante deste, sua tarefa é protegê-lo e conservá-lo, mostrando sua relevância para os novos. Se sua qualificação consiste em seu conhecimento, sua autoridade frente aos recém-chegados reside nesse seu ofício de representante que o autoriza a introduzi-los neste lugar (ALMEIDA, 2009, p. 31). Por mais antagônico que possa parecer a amorosidade vincula-se à autoridade, uma vez que por amor às novas gerações, o educador deverá se posicionar diante deles como alguém capaz de protegê-las da exposição a situações para as quais ainda não estejam preparadas e de proporcionar-lhes o contato com a bagagem cultural da humanidade, apropriando-se dela e introduzindo-se neste espaço-tempo. O exercício da autoridade do educador se alicerça, de acordo com Almeida (2009, p. 32), nos saberes, nos valores e nos princípios do mundo comum e da instituição escolar que ele representa. É o lugar que ele ocupa e a as tarefa específica que lhe conferem autoridade que, contudo, não se estende a outras esferas fora da escola. Freire (1996, p. 99) considera que o estabelecimento da autoridade configura as bases da disciplina em sala de aula, pois: “[...] resultando do equilíbrio entre autoridade e liberdade, a disciplina implica necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assunção de que ambas são feitas de limites que não podem ser transgredidos”. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: - Isso é o nosso mundo (ARENDT, 1972, p. 239). Freire (1996, p. 102-103) acrescenta que a competência técnica, sozinha, não configura a autoridade docente. Além do domínio de conteúdos, das especificidades do processo de esninar e aprender, dos movimentos da Pedagogia e das propostas didáticas coerentes com as demandas educativas atuais, o educador necessita promover a generosidade em sala de aula, estabelecendo um equilíbrio entre autoridade e liberdade, orientando os estudantes para a assunção de responsabilidades, para a tomada de decisões e para a construção da autonomia. Educamos sempre para um mundo que é criado e serve de lar para mortais, e, portanto, deve ser constantemente posto em ordem. Arendt (1972, p. 243) lembra que: “Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta”, mas sem nos basearmos somente nisso sob pena de destruirmos sua trajetória ao tentar ditar sua aparência futura. Por esta razão, educar não é sinônimo de inculcação (ou de domesticação, nos termos de Freire). Por outro lado, a escola não é lugar de recreação, onde não exista disciplina ou tarefas a cumprir. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição (ARENDT, 1972, p. 243). Em virtude disso, Arendt (1972, p. 245-246) considera que o desafio da educação é manter a autoridade e a tradição e, ao mesmo tempo, caminhar em um mundo que não é estruturado pela autoridade nem mantido coeso pela tradição. Isso requer que os adultos (professores e todos os demais) tenham uma relação com a criança diferente da que têm uns com os outros, divorciando o âmbito da educação dos demais, aplicando a ele o conceito de autoridade e o respeito ao passado necessário. A crise da autoridade na educação está ligada à crise da tradição, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado. É difícil ao educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois cabe ao educador ser o mediador entre o velho e o novo, por isso, deve ter um grande respeito pelo passado (ARENDT, 1972, p. 243-244). Nas circunstâncias atuais, torna-se imprescindível buscar novas respostas aos impasses e demandas que chegam à escola, já que as ações decorrentes das teorias modernas da Pedagogia e da Psicologia contribuíram para aprofundar a crise instaurada na educação, implicando na perda da autoridade do educador diante dos alunos e na transformação do ensino em uma prática superficial, onde os conteúdos são negligenciados. Para aprender a criança necessita desse amadurecimento, desse progressivo abandono do comportamento infantil, para que possa se dedicar à tarefa de aprender. Atividade que, conforme Arendt (1972, p. 231), foi seriamente prejudicada pela assunção do paradigma do pragmatismo na educação, segundo o qual só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fazemos, substituindo-se o aprendizado pelo fazer. Disso resultou o empobrecimento do processo formativo dos educadores, relegando-se a segundo plano o domínio em relação à sua matéria, para levá-los ao exercício da atividade de aprendizagem, de tal modo que ele não transmitisse “conhecimento petrificado”, mas, ao invés disso, demonstrasse constantemente como o saber é produzido. Sob a alegação de que a escola tem de inovar e não pode transmitir conteúdos e conhecimentos petrificados, professores e especialistas em educação passam a buscar ‘receitas’ de como ensinar, o que gera “um inflacionamento das criações pedagógicas. Nunca como hoje devem ter havido tantos cursos de psicopedagogia. Nunca como hoje devem ter se produzido tantas dissertações e teses “preocupadas com a educação”, bem como preenchido questionários e provões. No entanto, nunca como hoje alguém pôde chegar e até sair da própria universidade carecendo de toda disciplina intelectual” (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 27). Arendt (1972, p. 232-233) exemplifica a conexão entre a substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar por meio do ensino de línguas, em que a criança deve aprender falando, assim como aprendeu sua própria língua, não através do estudo da gramática e da sintaxe. Esse processo tenta infantilizar a criança. Sendo o hábito de trabalhar o que prepara, progressivamente, a criança para o mundo dos adultos, este é substituído pelo brincar, sob o pretexto de respeitar a autonomia do mundo da infância. A conexão entre fazer e aprender, e, a fórmula pragmática aplicada à educação, ao modo de aprendizagem da criança, torna absoluto o mundo da infância, excluindo-se a criança do mundo dos adultos e mantendo-a artificialmente no seu próprio mundo. Esta retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre crianças e adultos, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta (ARENDT, 1972, p. 233). Certamente, a experiência de escolarização deve ser prazerosa e proporcionar aos estudantes o encantamento necessário para que desejem não apenas ingressar, mas permanecer na escola. Todavia, o objetivo central da escola não é a recreação, mas a aquisição de pré-requisitos para compreender o mundo e a preparação para a vida adulta. Com base no pensamento arendtiano, verificamos que a superação da crise na educação requer a adoção de medidas como: a condução do ensino com autoridade; a interrupção do brinquedo durante as horas de aula; o deslocamento da ênfase das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos pelo currículo; a transformação do currículo dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças. É necessário, pois, reformular os currículos das escolas secundárias e elementares de modo a prepará-las para as exigências inteiramente novas do mundo de hoje. O que importa aqui é a dupla questão: - quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudesse dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso? Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação – não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda a sociedade humana? (ARENDT, 1972, p. 234) Assim somos instigados a pensar nos significados da aprendizagem nos dias de hoje, que longe de visar à mera aquisição de habilidades e competências, como vem sendo defendido amplamente nos discursos psicopedagógicos, implica na capacidade de entender o mundo adulto, inserindo-se nele coerentemente. Portanto, não se pode negligenciar o ensino de conteúdos, a partir dos quais as crianças possam ampliar suas capacidades de compreensão do mundo. São indispensáveis ao educador: uma base sólida de conhecimentos; o domínio da disciplina com a qual trabalha e; acima de tudo, a responsabilidade diante do mundo ao qual trazemos nossas crianças. Isso porque, de acordo com Arendt (1972, p. 247), a educação revela o quanto amamos nosso mundo e desejamos evitar que ele seja destruído pela chegada dos novos e a consequente introdução da novidade. E, ao mesmo tempo, expressa nosso amor pelas crianças, de maneira que possamos acolhê-las em um mundo formado por objetos e fatos dignos de serem cuidados e preservado. Do mesmo modo que, para Arendt (1972) a escola não é local para a recreação, Freire (1999, p.83) diferencia aprender e entretenimento, afirmando que a disciplina permeia a experiência de aprendizagem. Ao estabelecer a disciplina, em sala de aula, cria-se um clima propício ao ato de estudar, de aprender, de conhecer, de ensinar, distinto do puro entretenimento. A prática educativa, conforme Freire (1999), é difícil, é exigente, não pode ter "regras frouxas", no entanto, também não pode ser um ato insosso, desgostoso, enfadonho, deve ser prazeroso. Há alegria embutida na aventura de conhecer, de descobrir, sem a qual o ato educativo pode se tornar desmotivador. Mesmo assim, "Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem faz uma postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a" (FREIRE, 1982, p. 9). É a postura ativa, criativa, crítica, necessária para a construção da autonomia, que a disciplina típica da educação bancária abafa e a disciplina respeitosa da educação dialógica promove. Educar é, portanto, oportunizar momentos de construção de conhecimento, em que professor orienta os alunos em suas interações em sala de aula e no processo de apropriação da cultura e dos conteúdos, os quais permitem que se situem neste mundo e desenvolvem suas potencialidades. Por isso, a autoridade do educador é temporária (ARENDT, 1972, p. 246), cuja duração equivale ao tempo que as novas gerações necessitam para conhecer o mundo, construindo os subsídios de que necessitam para estabelecer sua presença neste mundo e, para que, quando adultos, possam exercer a cidadania, agindo politicamente junto aos demais. Uma relação amorosa e dialógica se embasa no respeito à dignidade dos sujeitos, assegurando espaço para que cada um possa expressar-se, sem, contudo, abrir mão da autoridade, enquanto educador. Trata-se, pois, de constituir um espaço adequado à construção de conhecimentos, sem cair nem no extremo da permissividade e da licenciosidade, nem no extremo do autoritarismo. Este espaço, como descreve Freire (1996, p. 99), baseia-se na disciplina, que “[...] resultando do equilíbrio entre autoridade e liberdade, implica necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assunção de que ambas são feitas de limites que não podem ser transgredidos”. Relações justas e generosas geram um clima em que a autoridade do professor e a liberdade do aluno se assumem em sua eticidade (FREIRE, 1996, p. 102-103). Assim como a escola não pode doutrinar os alunos, formando para a servilidade, ela não pode abrir mão da rigorosidade, da qualidade das práticas, a fim de possibilitar a efetiva aprendizagem e a ampliação dos entendimentos sobre o mundo e sobre a realidade. Nas palavras de Freire (1996, p. 102-103), a educação deverá contribuir para a superação da heteronomia, uma vez que todas as decisões são tomadas pelo professor, sem que os estudantes participem do processo decisório. No outro extremo, se o professor adota uma postura licenciosa, os alunos ficarão por conta própria, sem referenciais seguros para compreender o mundo e nele se situar. O melhor para a promoção da autonomia, é que a liberdade possa se constituir assumindo seus limites criticamente. O confronto com as demais liberdades e com a autoridade dos pais, professores, do Estado, é bom e necessário, pois amadurece a liberdade, ela descobre que não é absoluta, mas é cerceada por outras liberdades e pela autoridade, e sua autonomia não é absoluta ou auto-suficiente. A representação do mundo defendida por Arendt (1972), em Freire ganha o sentido de testemunho, a partir do qual o educar estimula os educandos a tomarem decisões e a assumirem responsabilidades. A construção da autonomia requer a prática do diálogo, por meio da qual se exercita o escutar e o falar com os outros (FREIRE, 1996, p. 127). Arendt (1972, p. 247) alerta que não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia; portanto, degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. É muito mais fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado. A escola precisa, dessa forma, promover o estabelecimento de uma relação de ensino e aprendizagem, na qual o educador conduz o aluno à aquisição de saberes significativos que o auxiliem a compreender a realidade do mundo em que está se inserindo. Ser professor exige a estima e o respeito necessários para dedicar-se ao ensino, esquecendo de si e buscando a promoção do outro, no sentido de contribuir para o seu amadurecimento e aquisição de saberes e competências. Exige, também, que o educador se constitua como um dos referenciais de que as crianças e jovens necessitam para guiar-se em sua inserção no mundo, apreendendo os elementos culturais acumulados ao longo do tempo. Para inspirar confiança, o professor deve demonstrar profundidade em termos de conhecimento e responsabilidade como cidadão. Como afirma Arendt (1972), um dos problemas da educação reside na negligência na formação dos professores em sua própria matéria, “não raro encontrando-se apenas um passo à frente de sua classe em conhecimento”. A fonte legítima da autoridade do professor como a pessoa que sabe mais e pode fazer mais que nós, torna-se ineficaz. “Dessa forma, o professor não autoritário, que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade, não pode mais existir” (1972, p. 231). Amorosidade e autoridade tornam-se as bases de um processo educativo nãoautoritário, que se distingue da permissividade e da licenciosidade. A disciplina organiza as situações de ensino e de aprendizagem sem conduzir ao autoritarismo, mas, ao contrário, garantindo espaço para o diálogo e para a liberdade, para a participação e para a partilha de saberes e percepções. O autoritarismo e a licenciosidade são rupturas do equilíbrio tenso entre autoridade e liberdade. O autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade; e a licenciosidade, a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade. Autoritarismo e licenciosidade são formas indisciplinadas de comportamento que negam o que venham chamando a vocação ontológica do ser humano. Assim como inexiste disciplina no autoritarismo ou na licenciosidade, desaparece em ambos, a rigor, a autoridade ou a liberdade. Somente nas práticas em que autoridade e liberdade se afirmam e se preservam enquanto elas mesmas, portanto no respeito mútuo, é que se pode falar de práticas disciplinadas como também em práticas favoráveis à vocação para o ser mais (FREIRE, 1996, p. 99). O compromisso com a aprendizagem dos conteúdos se expressa numa relação amorosa e dialógica entre professor e estudantes, aliando os referenciais afetivos, humanos, científicos, epistemológicos e éticos. Na realidade contemporânea, a lacuna entre o passado e o futuro, marcada pela ruptura da tradição e da autoridade, nos desafia a buscar a recuperação do sentido do educar, apostando na capacidade humana de iniciar o novo. Essa transmissão revela, também, o compromisso de fomentar a autoria. Isso é, mobilizar nos estudantes a capacidade de assumir a autoria, de emancipar-se pelo conhecimento, posto que, como destaca Arendt (1972, p. 233) não se pode infantilizar as crianças, negando o caráter temporário da infância e a sua importância na preparação para a condição adulta. Bem como, Paulo Freire (1996, p. 121) ressalta o respeito à autonomia e à dignidade de cada um como um imperativo, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser, estimulando a decisão e a responsabilidade. Toniolo (2010, p. 68) indica como fundamental no processo educacional que educador e educando compreendam a relação que envolve o ato de conhecer enquanto abertura ao novo, ao diálogo, à indagação, à curiosidade impulsionadora da busca pelo conhecimento. No entendimento freireano: o fundamental é que o professor e os alunos saibam que a postura deles [...] é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos (FREIRE, 1996, p. 96). Desse modo, educar não é transmitir informações de forma bancária, nem ser licencioso. Educar é, sim, propiciar situações de ensino e aprendizagem, por meio das quais, os educandos possam ter acesso ao conhecimento sistematizado, desenvolver suas potencialidades e ampliar suas compreensões acerca da realidade em que se inserem, tornando-se, assim, progressivamente, capazes de assumir seu espaço no mundo, associandose aos demais, por meio da palavra e da ação, e tradução da consciência do pertencimento ao mundo comum. Numa educação com estes contornos reside nossa esperança na transformação da realidade e na escrita de histórias dignas e felizes. REFERÊNCIAS: ALMEIDA, Vanessa Sievers. Amor mundi e educação. Reflexões sobre o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: USP, 2009. ANDREOLA, Balduíno Antonio. Carta-prefácio a Paulo Freire. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. CALADO, Alder Júlio Ferreira. 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