FACULDADE CÁSPER LÍBERO
Mestrado em Comunicação
Era uma vez ... outra vez
A retomada e a reinvenção dos contos de fada
pelo mundo (des)encantado da mídia
Carolina Chamizo Henrique Babo
São Paulo
2015
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CAROLINA CHAMIZO HENRIQUE BABO
Era uma vez ... outra vez
A retomada e a reinvenção dos contos de fada
pelo mundo (des)encantado da mídia
Dissertação apresentada para a
obtenção do grau de Mestre em
Comunicação pela Faculdade
Cásper Líbero
Orientador: Prof. Dr. Dimas A.
Künsch
São Paulo
2015
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Babo, Carolina Chamizo Henrique
Era uma vez...outra vez: a retomada e a reinvenção dos contos de
fada pelo mundo (des)encantado da mídia / Carolina Chamizo Henrique
Babo. -- São Paulo, 2015
104 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Dimas A. Künsch
Dissertação (mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de
Mestrado em Comunicação
1. Mídia. 2. Produtos Midiáticos. 3. Contos de Fada. 4. Narrativas. 5.
Crepúsculo. Babo, Carolina Chamizo Henrique. II. Faculdade Cásper
Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação. III. Título.
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DEDICATÓRIA
À minha mãe, que sempre me incentivou à leitura e aos estudos, que me contou a
primeira história, que me deu o primeiro livro de contos de fada e que me presenteia
com eles até hoje.
Ao Davi. Meu amor, meu amigo, meu namorado, meu marido, meu príncipe encantado.
O responsável por realizar, todos os dias, meu próprio conto de fada de final feliz.
Ontem. Hoje. Amanhã. Para Sempre.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, Zeus, Odin, Osíris e Ilúvatar. A Hera, Friga, Ísis, Atena e Brigid, pela
vida consciente e inconsciente.
Às fadas e às bruxas pela inspiração, magia e encantamento.
Aos meus “filhos-caninos”, Chanel e Santino que, por estarem sempre ao meu lado, e
ouvirem tantas vezes esta dissertação, podem ser considerados, até mesmo, meus “coautores”.
Aos amigos (vocês sabem quem são) e familiares (vocês também sabem quem são) pelo
apoio, ajuda e compreensão.
A duas crianças bastante queridas com as quais eu tenho o privilégio de conviver,
Guilherme e Isabella. Crianças que ouviram tantas vezes a mesma história, com
redobrada atenção. Que assistiram ao mesmo filme, com total paciência. Que
incentivaram minhas teorias, com suas ideias sempre criativas.
Aos meus colegas de Mestrado que contribuíram direta ou indiretamente para este
trabalho. Especialmente para três garotas que estiveram comigo desde o início desta
jornada: Waleska, Titi e Marcela. A amizade de vocês dentro e fora da sala de aula
tornou este estudo, sem dúvida, mais produtivo e mais divertido.
Aos professores José Eugenio de Oliveira Menezes e Monica Martinez, por aceitarem
fazer parte dessa banca e por terem contribuído, por meio de suas ideias e
apontamentos, para meu exame de qualificação. A ajuda de vocês foi fundamental para
o desenvolvimento deste trabalho.
Ao professor Dimas Künsch, meu orientador, pelas aulas sempre inspiradoras, pelo
incentivo, pela dedicação e pela paciência. Sem seus “objetos mágicos” esta dissertação
não teria sido possível.
Aos demais professores, mestres, mentores do Mestrado, Simonetta Persichetti, Dulcília
Buitoni e Cláudio Novaes Pinto Coelho, que me guiaram com seus importantes
conhecimentos, ensinamentos, ideias e olhares.
Meu muito obrigada a todos vocês.
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“Há sempre um pouco de conto de fada acontecendo na vida”
(Marie Louise Von Franz)
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RESUMO
A proposta desta investigação é identificar o lugar e a importância dos contos de fada
para o ser humano e para a cultura, além de verificar os motivos da transposição dos
mesmos em distintas produções da atualidade (filmes, animações e seriados televisivos),
em um reflexo da indústria cultural em que passaram a ser reproduzidos. Assim, os
objetivos desta pesquisa concentram-se em compreender as razões da retomada e da
reinvenção dos contos maravilhosos, bem como em tecer comparações entre as histórias
“originais” e seus referencias contemporâneos. A hipótese geral apoia-se nos estudos de
Car Gustav Jung e em sua teoria de que possa haver uma espécie de compensação dos
temas arquetípicos de que determinada época mais precise. Nesse sentido, entendemos
que em um mundo fortemente marcado pela razão, o homem possa sentir cada vez mais
necessidade de entrar em contato com seus temas simbólicos, temas oferecidos pelos
contos de fada e pelas narrativas míticas e traduzidos, atualmente, pelos produtos da
cultura de massa. Como quadro de referenciais teóricos, utilizo-me, para o entendimento
dos contos como importantes instrumentos de ensinamentos para o homem, uma
abordagem voltada à linha da psicologia analítica e emprego os estudos de Carl Gustav
Jung e Marie Louise Von Franz. Para o tema correlato dos mitos, recorro a autores
como Joseph Campbell, Karen Armstrong, Mircea Eliade e Vladimir Propp. Na parte
específica do estudo desses contos já transformados em produtos pela indústria cultural,
emprego as teorias de Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Edgar Morin e Roland
Barthes. Para entender as diversas plataformas que esse contos podem assumir (a
oralidade, as páginas dos livros e as telas da televisão), o presente estudo encontra nos
ensinamentos de Harry Pross e Norval Baitello Junior o respaldo necessário. Por fim,
baseada nos estudos de Dimas Künsch, me apoio ainda na temática do pensamento
compreensivo, como aquele que abrange, reconhece e coloca em diálogo as diferentes
áreas, lugares e protagonistas do conhecimento. Além desses autores, me dedico ainda à
leitura dos contos maravilhosos, com destaque para as obras de Jacob e Wilhelm
Grimm, Charles Perrault, Hans Christian Andersen, Jeanne-Marie LePrince de
Beaumont, Joseph Jacobs, Carlo Collodi, Lewis Carroll, L.Frank Baum e J.M.Barrie.
Em termos metodológicos, parte-se da pesquisa bibliográfica, baseada nos autores
acima citados, e se segue adiante com um levantamento em sites especializados, que
possibilitem um mapeamento dessas produções. Além disso, a pesquisa compara os
produtos lançados pelos agentes do entretenimento e seu referencial mais direto, de
modo a compreender de que maneira essas narrativas mágicas e seus personagens se
transformam quando apropriados e modificados pela indústria cultural. Os exemplos
aqui estudados se preocupam em abranger tanto aquelas produções que se apropriam
abertamente de seus conteúdos, quanto as que aparentam ser narrativas distintas, mas
que também reproduzem a temática dos contos de fada. Como é o caso de Crepúsculo,
série estudada mais detalhadamente na presente dissertação por ser considerada como o
auge dessas reinvenções.
Palavras-chave: Mídia. Produtos midiáticos. Contos de Fada. Narrativas. Crepúsculo.
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ABSTRACT
The purpose of this research is to identify the place and the importance of fairy tales for
the human being, as well as for culture, and verify the reasons of their transposition in
different productions (films, animations and television series), as a reflection of the
culture industry in which came to be played. The objectives of this research focused on
understanding the reasons for the recovering and reinvention of the wonderful tales, as
well as on make comparisons between the “original” stories and their contemporary
references. The general hypothesis is supported by studies of Car Gustav Jung and his
theory that there may be a kind of compensation of archetypal themes that a particular
time needs. Therefore, we understand that in a world strongly marked by reason, the
human being can feel increasingly need to contact their symbolic themes, themes
offered by fairy tales or mythic narratives and translated, nowadays, by the mass
culture's products. Among the autors used to understand these stories as important
instruments for the mankind, this study approaches itself of the analytical psychology,
especially on Carl Gustav Jung and Marie Louise von Franz theories. For the related
subject of myths, the research applys the concepts of Joseph Campbell, Karen
Armstrong, Mircea Eliade and Vladimir Propp. In the particular part of the study of
these tales turned into products by the culture industry, have been used the theories of
Teodor W. Adorno, Max Horkheimer, Edgar Morin and Roland Barthes. To understand
the several platforms that stories can take (orality, the pages of books and television
screens), this study found in Harry Pross and Norval Baitello Junior ideas the support
needed. Finally, based on the studies of Dimas Kunsch, I employ the theme of
comprehensive thinking, to embrace, recognize and put in dialogue the different areas,
places and protagonists of knowledge. In addition to these authors, it was essential the
readind of the wonderful tales, especially the works of Jacob and Wilhelm Grimm,
Charles Perrault, Hans Christian Andersen, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont,
Joseph Jacobs, Carlo Collodi, Lewis Carroll, L.Frank Baum and J.M.Barrie. In terms of
methodology, we started with the study on the authors cited above, and followed with a
survey of specialized sites that allowed us a mapping of these productions. In addition,
the research compares the products made by the entertainment agents and their most
directly references, in order to understand how these magical narratives and characters
change when appropriate and modified by the culture industry. The examples studied
here intend to cover both productions: those that appropriate openly of its contents, and
those who appears to be distinctive narratives, but also reproduce the theme of fairy
tales. For this last case, the Twilight saga has been chosen for a deeper study because we
considered it the summit of these reinventions.
Keywords: Media. Media products. Fairy Tales. Narratives. Twilight.
9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
10
INTRODUÇÃO
12
CAPÍTULO 1: O RETORNO DA MAGIA
20
1.1. Eu acredito em fadas e em bruxas. E você?
20
1.1.1. Origens e principais representantes dos contos de fada
23
1.1.2. Importância e declínio dos contos de fada
26
1.2. A(s) retomada(s)
32
1.3. Compensações arquetípicas
39
CAPÍTULO 2: REINVENÇÕES (DES)ENCANTADAS
44
2.1. Dos contos orais aos visuais
44
2.2. Reinvenções
46
2.2.1. O processo de (des)encantamento
50
2.2.2. Reinvenções diretas
54
2.2.2.1. O arquétipo da grande mãe: a rainha má
55
2.2.2.2. O arquétipo do velho sábio: o reino encantado das fadas
58
2.2.2.3.. O arquétipo do herói: Valente
61
2.2.3. Reinvenções indiretas
CAPÍTULO 3: ERA UMA VEZ... OUTRA VEZ
65
70
3.1. Inquietação
70
3.2. Crepúsculo: a reinvenção de um conto de fada
71
3.2.1. Eros e Psique
76
3.2.2. A Bela e a Fera
77
3.2.3. A Pequena Sereia
79
3.2.4. O Patinho Feio
81
3.2.5. A Bela Adormecida
82
3.2.6. Branca de Neve
85
3.2.7. Cinderela
87
3.2.8. Chapeuzinho Vermelho
88
3.3. Desconstruindo Crepúsculo
(DES)CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
91
96
100
10
APRESENTAÇÃO
O reino dos contos de fada é amplo, profundo e alto, cheio de muitas coisas: lá
se encontram todos os tipos de aves e outros animais; oceanos sem praias e
estrelas sem conta; uma beleza que é encantamento e um perigo sempre
presente; alegria e sofrimento afiados como espadas. Um ser humano talvez
possa considerar-se afortunado por ter vagueado nesse reino, mas sua própria
riqueza e estranheza atam a língua do viajante que as queira relatar. E, enquanto
está lá, é perigoso que faça perguntas demais, pois os portões podem se fechar e
as chaves se perder (TOLKIEN, 2013, p. 5).
Acredito que não haja outra maneira de começar esta dissertação sem que
precisemos recorrer a três palavras mágicas. Três palavras que, pronunciadas em
conjunto, são capazes de nos retirar de nosso “mundo real” e nos transportar
diretamente para um reino de magia e fantasia. Um lugar muito, muito distante,
conhecido por diversos nomes. País das Maravilhas. Terra do Nunca. Cidade das
Esmeraldas. Belo Reino. O mundo dos Contos de Fada, que começa com o “Era Uma
Vez”.
Um local habitado por príncipes, princesas, reis, rainhas, fadas encantadas,
bruxas malvadas, feitiços, poções mágicas, florestas, castelos e dragões. Estes e tantos
outros elementos e personagens povoam nosso imaginário desde que somos crianças.
Quantas vezes já ouvimos ou contamos essas histórias? Quantas vezes não torcemos
para o sapatinho caber no pé de Cinderela, para a Fera se transformar em um belo
príncipe ou para a Branca de Neve não morder a maçã envenenada? Mas ela sempre
morde, não é mesmo?
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E pensar que essas belas narrativas, contadas pelos seres humanos desde os
tempos mais remotos, são originadas em nosso interior, em contato direto com a nossa
essência, pois nascem e vivem dentro de nós. Elas podem nos alertar de perigos quando
estes nos são impostos, mostrando de que maneira devemos agir. Elas conseguem nos
propor os mais importantes ensinamentos, sempre de uma maneira espontânea, natural.
Ou são capazes simplesmente de ficar quietas, esperando que sejam chamadas, como a
princesa que dorme e aguarda o seu despertar.
Despertar esse que acontece quando entramos em contato com nossas narrativas,
com nossas imagens primordiais, arquetípicas (JUNG, 2012). Mesmo que elas não
sejam oferecidas em sua forma original, ou que tenham sido modificadas, alteradas.
Ainda assim. Quando reconhecemos algumas dessas estruturas é como se algo falasse
dentro de nós, como se algo mais forte que a própria consciência emergisse, como se
ouvíssemos um chamado.
Dessa forma, quando vi as histórias de que eu tanto gostava serem transformadas
uma a uma em contos reinventados, quando notei que as princesas estavam se
transformando em vampiras, quando desconfiei que os vilões estavam sendo
“perdoados”, e quando percebi que lobos (ou seriam lobisomens?) estavam sendo
adicionados às narrativas, não pude ignorar esses indícios. Algo de muito estranho
estava acontecendo. E precisava ser investigado.
Mas entrar no mundo das narrativas fantásticas é sempre muito perigoso. Há
quem diga que as pessoas que cruzam essa passagem não retornam mais. Ou, quando
retornam, estão mudadas, transformadas. Como se tivessem sido enfeitiçadas por uma
bruxa, ou encantadas pelas bênçãos de uma fada. Cruzar o Belo Reino é uma tarefa para
heróis e heroínas. Eu precisava me arriscar. E me arrisquei. E o que descobri?
Descobri que... ah, não. Não revelarei mais nada aqui. Para participar desta
aventura você precisará ler a pesquisa que está em suas mãos. Acho que já falei demais.
As boas histórias não necessitam de uma apresentação tão longa.
Voltemos então àquelas palavras mágicas do início do texto, o “Era Uma Vez”
que corresponde ao início da maioria dos contos maravilhosos. Mas apenas se quiser, é
claro. Você já foi alertado sobre os perigos dessa caminhada. A decisão de me seguir ou
parar por aqui é sua. Se você optar por parar, garanto que nenhum mal lhe ocorrerá e
que continuará sua vida tranquilamente. Se me seguir, por outro lado, chegará ao Reino
dos Contos de Fada e voltará dessa jornada um tanto transformado. A toca do coelho é
logo ali. Basta virar a página.
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INTRODUÇÃO
Desde o início deste século podemos observar um fenômeno bastante
interessante se voltarmos nosso olhar à produção cultural, em especial aos filmes,
seriados televisivos e animações realizadas nos Estados Unidos, fenômeno este que
pode ser entendido como o retorno da magia. Isso porque, a partir de 2001, uma série de
produções são lançadas baseadas na temática dos contos de fada, quer a referência a
essas histórias seja realizada de maneira direta, quer indireta.
Como exemplos dessa alusão explícita, podemos observar os títulos dos filmes
Branca de Neve; Peter Pan; Uma Garota Encantada; Irmãos Grimm; Encantada; Alice
no País das Maravilhas; A Garota da Capa Vermelha; A Fera; Branca de Neve e o
Caçador; Espelho, Espelho Meu; João e Maria: Caçadores de Bruxas; Oz, Mágico e
Poderoso; Jack, O Caçador de Gigantes; Malévola e Caminhos da Floresta.
Se recorrermos às animações, a lista é ainda maior e conta com Tinker Bell;
Tinker Bell e o Tesouro Perdido; Tinker Bell e o Resgate da Fada; Tinker Bel: O
Segredo das Fadas; Shrek; Shrek 2; Shrek Terceiro; Shrek Para Sempre; O Gato de
Botas; Deu a Louca na Cinderela; Deu a Louca na Chapeuzinho; Deu a Louca na
Chapeuzinho 2; Enrolados; A Princesa e o Sapo; Valente e Frozen, Uma Aventura
Congelante, além dos clássicos que, embora bem anteriores a essa retomada, aparecem,
de tempos em tempos, em sua versão remasterizada. Assim, temos Branca de Neve e os
Sete Anões; Cinderela; A Bela Adormecida; A Bela e a Fera e A Pequena Sereia,
sempre presentes nas prateleiras das lojas. Vale ainda acrescentar aqui, nessa lista de
produções que trazem os temas dos contos de fada de forma bastante explícita em seu
conteúdo, os seriados Once Upon a Time, Once Upon a Time in Wonderland e Grimm.
Além dessa forma de apropriação, em que as antigas narrativas são
transformadas e reinventadas sem perderem seu referencial original, há ainda outra
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forma de aparição dessas histórias a partir de produções que se utilizam das estruturas
ou personagens de contos de fada, sem que, no entanto, o público perceba o que está
consumindo.
Neste último caso, não existem referências diretas às antigas tradições ou aos
contos maravilhosos, em que eles certamente se inspiram ou dos quais se originam. Ao
contrário, são oferecidas novas histórias, ou mitologias contemporâneas, mas que
também apresentam como cenário central um reino, ou melhor, uma “galáxia muito,
muito distante”.
Esse é o caso das produções Star Wars, O Senhor dos Anéis, O Hobbit, Matrix e
Harry Potter, clássicos exemplos que fazem uma releitura de antigos mitos e contos que
os precederam. Ou, ainda, de um fenômeno recente, a saga Crepúsculo, a qual, como a
pesquisa se encarregará de mostrar, pode ser interpretada como o auge da reinvenção
dos contos maravilhosos, por refletir vários de seus personagens e a estrutura que
caracteriza esse tipo de narrativa.
Dessa forma, ao observarmos o retorno da magia ou, mais especificamente, essa
retomada em grande escala da temática dos contos de fada, revelada por meio dos
exemplos anteriormente citados, podemos entendê-la como um fenômeno a ser
investigado e pesquisado. Assim, esta dissertação tem, como tema, a retomada e a
reinvenção dos contos de fada no mundo (des)encantado da mídia.
No aspecto da retomada, a presente pesquisa se encarrega de investigar a
quantidade de produtos lançados desde o início do século relacionados aos contos
maravilhosos. Em relação à reinvenção, a dissertação volta seu olhar para a maneira na
qual esses produtos são oferecidos para o público. Já inseridos na dinâmica da indústria
cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), os contos de fada são modificados
livremente em histórias adaptadas e padronizadas.
Já o encantamento/ desencantamento aqui proposto será relacionado ao conceito
de mídia de tipo ampliado, baseado nas teorias de Harry Pross e em sua releitura feita
por Norval Baitello Junior.
Para Harry Pross, em seu livro Medienforschung (Investigação da Mídia), de
1972, a primeira mídia a que temos acesso é o próprio corpo e suas linguagens. Esse
será o ponto de origem e também o destino final de todo ato comunicativo. Quando o
homem decide comunicar fora de seu corpo, por meio de desenhos e,
consequentemente, por meio da escrita, inventa a mídia secundária. Assim, ele
desenvolve um sistema que amplia a sua mensagem no tempo e no espaço. O advento
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da eletricidade cria a mídia terciária, em que o emissor e o receptor precisam de
aparatos para se comunicar.
Podemos avançar a ideia aqui proposta, como um pressuposto desta pesquisa, e
sugerir que o encantamento dos contos de fada acontece, principalmente, em sua forma
oral, ao passar diretamente de um corpo para outro. Ou seja, para continuarmos
dialogando com Pross, no nível mais básico e elementar da comunicação de tipo
primário. O processo de desencantamento acontece quando essas narrativas são
transportadas para as páginas de livros e, posteriormente, para as telas da mídia
terciária, afastando os corpos, e impondo-lhes suas próprias histórias.
Como objeto, a dissertação se propõe a estudar o conjunto de produções
cinematográficas e televisivas provenientes dos Estados Unidos e lançadas desde o
início deste século, que se apropria da temática dos contos de fada.
Já o problema que deverá ser aqui pesquisado centra-se na investigação das
possíveis razões da crescente retomada e reinvenção dos contos maravilhosos, por meio
de filmes, animações e seriados televisivos. Além disso, os modos como se processa a
reinvenção dessas histórias também serão estudados.
Assim, a importância e relevância desta pesquisa justificam-se pela crescente
quantidade de produtos audiovisuais, baseados na temática dos contos de fada, quer no
título, história ou personagens centrais.
O objetivo geral deste trabalho é tentar compreender os motivos da retomada e
reinvenção dos contos maravilhosos, enquanto seu objetivo específico consiste em
procurar tecer comparações entre as histórias “originais” e seus referenciais
contemporâneos, buscando identificar como essas transposições acontecem e de que
natureza são as diferenças entre umas e outras.
Na tentativa de entender os motivos da retomada e da reinvenção dos contos de
fada, o presente trabalho oferece duas leituras possíveis para a compreensão desse
fenômeno. A primeira delas apoia-se nos estudos de Carl Gustav Jung e em sua teoria
de que possa existir uma espécie de compensação dos temas arquetípicos que
determinada época mais necessite. Para o psicanalista suíço, as obras de arte podem
surgir, muitas vezes, de maneira inconsciente ao artista, como uma forma de equilibrar a
inquietação refletida pela sociedade em que o mesmo vive. Assim, determinados temas
retornam “acalmando” o desejo de uma época.
Alguns dos artistas contemporâneos, no entanto, são representados pelos agentes
da indústria cultural, do entretenimento e, ao nos oferecerem esses contos, o fazem de
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maneira distinta de suas alusões diretas. Ao contrário de fornecerem as histórias mais
próximas possíveis de seus referenciais, as reinventam e transformam em produtos
padronizados.
Obviamente, distantes do propósito original ao qual os contos de fada se
destinavam, trazer ensinamentos sobre o mundo e sobre o próprio ser humano, os
contos reinventados assumem uma nova “missão”, muito mais voltada ao lucro, ao
consumo e à propagação de ideologias. Assim, ao contrário de “compensar” a
necessidade dos espectadores, os novos contos irão fazer com que ele deseje consumir
cada vez mais. E a indústria cultural sempre oferecerá o que ele busca, na tentativa de
impulsionar, ainda mais, o seu desejo de consumo.
Como quadro de referenciais teóricos, a presente dissertação apoia-se,
primeiramente, nos estudos mais aprofundados dos contos de fada e opta por entendêlos a partir dos conceitos da psicologia analítica. Assim, por meio das teorias de Carl
Gustav Jung e de sua amiga e colaboradora Marie Louise Von Franz, é que essas
histórias serão compreendidas como formas de ensinamentos e importantes
instrumentos simbólicos para os seres humanos.
Após a leitura desses autores, mostra-se fundamental a apreciação dos estudos
de Joseph Campbell, já que ele ressalta a importância das narrativas para o homem e
expõe as semelhanças entre diversas mitologias e religiões, mostrando como seus
protagonistas podem representar várias faces de uma mesma história, mudando apenas
as condições sócio-culturais que os rodeiam.
Outros autores que serão utilizados na dissertação e que também voltam seus
estudos às antigas narrativas são Mircea Eliade e Karen Armstrong. Suas teorias em
relação à relevância dos mitos como importantes formas de conhecimento para os povos
ditos primitivos, ou ancestrais, e o descrédito dos mesmos em nossa sociedade atual,
torna-se fundamental para a abordagem do estudo.
Busco ainda nas teorias de Vladimir Propp, um importante instrumento de
auxílio para a compreensão literária dos contos de fada, já que esse autor identifica a
ocorrência dos mesmos esquemas narrativos entre povos que não poderiam ter tido
contato entre si, desvendando, assim, uma sequência de acontecimentos que determinam
como é formado um conto maravilhoso.
Outro aspecto essencial para a pesquisa encontra-se na importante relação entre
as mídias como plataformas que os contos de fada podem ser apresentados. Recorre-se,
portanto, aos estudos de Norval Baitello Junior e Harry Pross, em sua Teoria dos Media
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(já mencionada anteriormente). Assim será explicitada a importância da oralidade
dessas histórias, na mídia primária, quando as mesmas evocavam a memória, a
lembrança e dependiam dos corpos para serem conhecidas. Em sua atual transformação,
promovida pela mídia terciária, esses contos afastam-se de sua ideia original, que é
transmitir conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo, e aproximam-se de um
propósito distinto, buscando impulsionar o desejo de consumo, seja qual for a
mensagem apresentada pela narrativa.
Em relação à apropriação dos contos de fada e sua transformação em produtos
da indústria do entretenimento, encontro nos conceitos de Theodor W. Adorno e Max
Horkheimer, o auxílio necessário para a melhor compreensão da indústria cultural, lugar
no qual essas histórias serão, posteriormente, inseridas.
Ainda sobre essa temática, apoio-me nos estudos de comunicação de massa de
Edgar Morin, para demonstrar que a cultura de massa, um reflexo da indústria cultural,
desenvolve-se em função das necessidades individuais que emergem em cada época.
Dessa forma, cabe a ela fornecer, por meio de seus produtos, os temas, valores e
modelos que correspondam às aspirações de seus espectadores, audiências,
consumidores.
Nesse sentido, recorro ainda às ideias de Roland Barthes em relação aos mitos.
Este autor os compreende como formas de ideologia e reforça a proposta aqui
apresentada de que em nossa sociedade, fortemente marcada pelos produtos da indústria
cultural, as narrativas e, consequentemente, os contos de fada, são utilizados para
propagar o sistema de ideias da época em que são oferecidos.
Por fim, a presente dissertação recorre aos estudos de Dimas A. Künsch, em
especial sobre o que ele chama de pensamento compreensivo, como aquele que abrange,
reconhece e coloca em diálogo as diferentes áreas, lugares e protagonistas do
conhecimento. Assim, ao lado de um saber científico, levanta-se também a importância
dos saberes míticos, artísticos, filosóficos, religiosos e comuns. Inspirada pela ideia de
signo da compreensão, e não da explicação, como distingue Künsch, é que busco
estudar as narrativas, em especial, os contos de fada, como uma forma de entender o ser
humano e seu lugar no mundo.
A ideia de compreensão vincula este trabalho aos esforços teóricos do grupo de
pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia da Compreensão”, do Programa
de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, e ao projeto de pesquisa
que dele deriva, “Conversando a gente se entende”, concluído em dezembro de 2014.
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Ficam claras, também, as vinculações diretas deste trabalho à linha de pesquisa
“Produtos Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento”, desse mesmo Programa.
O estudo que aqui se propõe acerca da retomada e reinvenção dos contos de fada
utilizará, como base metodológica, em primeiro lugar, a pesquisa bibliográfica, uma vez
que importantes autores abordaram esse tema, sob as mais diversas perspectivas. Para
tanto, a investigação de suas teorias torna-se fundamental, como ponto de partida.
Aliado a esse estudo da bibliografia de referência, deve-se também fazer um
levantamento em sites especializados na tentativa de mensurar a quantidade de filmes,
animações e seriados surgidos nos últimos anos que se adequem à perspectiva dos
contos de fada. Assim, o mapeamento das produções que constituem o objeto de estudo
adquire uma importância fundamental para este trabalho.
Outro passo importante para o entendimento das crescentes modificações
propostas em novas histórias, pela indústria do entretenimento, será realizado por meio
de uma comparação entre algumas personagens bastante conhecidas pelo público
(representadas pelos arquétipos da Grande Mãe, do Velho Sábio e do Herói). Assim,
verificaremos como essas figuras eram apresentadas nos contos “originais” e como as
mesmas se manifestam quando adaptadas e transportadas para telas, revelando algumas
das características centrais perdidas, substituídas ou alteradas nesse processo.
Finalmente, por meio da verificação detalhada da série de livros/filmes
Crepúsculo, relacionando-a com seus principais referenciais (os contos de fada), tanto
em sua forma, quanto em seu conteúdo e, principalmente, em relação aos seus temas e
personagens centrais, pretendemos demonstrar como os contos foram condensados para
serem reinventados em um produto típico da cultura de massa a que pertence.
A pesquisa proposta se estrutura em três capítulos. O capítulo primeiro,
intitulado O Retorno da Magia, será o responsável pelo início efetivo de nossa jornada
ao mundo dos contos maravilhosos, discutindo sua aproximação “apenas” com as
crianças e compreendendo-os como fundamentais formas de conhecimento e
ensinamento, sobre o ser humano e o mundo. A importância dos contos e mitos e seu
posterior declínio serão, portanto, relatados nessa primeira parte do trabalho.
Esse capítulo também se propõe a mapear a retomada dos contos maravilhosos,
evidenciada desde o início deste século por meio de filmes, animações e seriados
televisivos, procurando encontrar as razões pelas quais esse fenômeno acontece. Assim,
utilizamos os estudos de Carl Gustav Jung, Marie Louise Von Franz, Joseph Campbell,
Karen Armstrong, Mircea Eliade e Dimas Künsch.
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O capítulo segundo, intitulado Reinvenções Des(Encantadas), propõe uma
reflexão acerca dos contos orais e sua transposição para as telas, em um reflexo da
indústria cultural para a qual os mesmos são reproduzidos e reinventados como
produtos do mercado de entretenimento.
Essa parte da pesquisa procura apresentar os dois tipos de reinvenções
encontrados nesses produtos: as diretas (aquelas que pelo título ou pelos personagens
centrais
reconhecemos os
antigos contos de fada) ou as indiretas (aquelas que
precisamos ler em suas entrelinhas para entender que estamos diante de temas
relacionados aos contos maravilhosos).
Nas reinvenções diretas, ao contrário de escolher uma ou outra história, opta-se
pelo estudo de três importantes personagens, manifestadas pelas figuras arquetípicas da
Grande Mãe, do Velho Sábio e do Herói. Quanto às reinvenções indiretas, voltamos
nossa atenção para as obras de fantasia transportadas para as telas, cuja repercussão em
nosso século tenha sido bastante significativa, em termos de público e arrecadação.
Além disso, por terem sido lançadas, ambas, em 2001 e, com isso, representarem o
início do que estamos chamando de retomada dos contos, nos debruçamos no estudo de
alguns aspectos dos filmes O Senhor dos Anéis e Harry Potter, responsáveis por conter
elementos importantes de contos de fada. Os autores utilizados aqui serão Norval
Baitello Jr, Harry Pross, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Roland Barthes, Edgar
Morin e, novamente, Carl Gustav Jung, Marie Louise Von Franz, Joseph Campbell e
Mircea Eliade.
Intitulado Era Uma Vez... Outra Vez, o capítulo terceiro volta sua atenção para
os quatro livros que constituem a série Crepúsculo (Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse e
Amanhecer), que, posteriormente, deram origem a cinco produções cinematográficas
(Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse, Amanhecer: Parte 1 e Amanhecer: Parte 2). Como
exemplo máximo da reinvenção indireta, proposta no segundo capítulo, esta parte da
dissertação, buscará as possíveis referências da autora Stephenie Meyer ao escrever essa
saga. Tal obra foi a escolhida por acreditarmos que esse seja o ápice das reinvenções
dos contos de fada, até o presente momento.
Na tentativa de relacionar essa série aos contos maravilhosos, comparando-a,
tanto em relação à temática quanto aos personagens centrais, este capítulo procura a
possível fonte de inspiração da autora e tenta mostrar que, ao contrário de uma história
de vampiros, este é um representante dos contos de magia. Para tal tarefa, o estudo
apoia-se fortemente nas ideias de Joseph Campbell e Vladimir Propp.
19
Espera-se, com esse trabalho, que possamos chamar a atenção para a
importância das antigas narrativas como fundamentais formas de conhecimento. Nossa
sociedade contemporânea, fortemente marcada pelo logos e pela razão, parece ter se
esquecido dos ensinamentos que essas histórias são capazes de transmitir. Parece ter
desaprendido a ler os símbolos que os contos de fada são capazes de comunicar. Talvez,
por isso mesmo, vivenciamos uma profunda crise.
A pesquisa proposta pretende ainda contribuir para demonstrar que nossas
histórias ancestrais encontram-se em todas as partes mas, principalmente, dentro de nós
mesmos. Se elas são, constantemente, aproveitadas pelos produtos da indústria cultural,
é porque ainda tentam dialogar conosco, tentam nos dizer algo. Algo muito importante,
que devemos reaprender a ouvir.
20
Capítulo 1
O RETORNO DA MAGIA
1.1. Eu acredito em fadas e em bruxas. E você?
Contos maravilhosos infantis são narrados para que em sua luz suave e pura os
primeiros pensamentos, as primeiras forças do coração despertem e vicejem;
uma vez que sua singela poesia, sua íntima verdade pode alegrar e instruir todo
e qualquer ser humano (GRIMM, 2012, p. 12-13).
Há quem pense que os contos de fada sejam apenas histórias de crianças.
Alegorias narradas aos pequenos antes de dormir ou uma forma de distração para que os
mesmos passem o tempo lendo um livro ou assistindo seu desenho preferido na
televisão, enquanto seus pais, os adultos, aqueles que acreditam não mais precisarem
disso, trabalham ou fazem algo muito importante. Essas pessoas se enganam por pensar
assim, pois, de acordo com os estudos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, os contos
são um dos mais admiráveis meios de comunicação que possuímos com o nosso
inconsciente. Ao lado dos sonhos, eles representam a forma mais pura de diálogo com
esse lado desconhecido de nossa psique, a porta que se abre para o “País das
Maravilhas”.
Mas o que é afinal um conto de fada? Alguns diriam tratar-se de histórias
fantásticas, narrativas que trazem ensinamentos, jornadas que proporcionam
aprendizados aos seres humanos, contos responsáveis por expor a aventura de um herói
que passa por diversos perigos e encontra, após uma virada surpreendente, um final feliz
ou merecido. Tentemos ir além. Mais interessante do que procurar uma explicação
21
fechada e encerrada em definições, o ideal seria senti-los, compreendê-los, deixá-los
fluir livremente em momentos de magia e reflexão.
Como parte fundamental da psique, os contos de fada habitam nossa alma,
dialogando a todo o momento com o que temos de mais valioso dentro de nós: nosso
universo simbólico, nossa capacidade de criar narrativas, inventar histórias e
exteriorizar sonhos. Estudá-los e compreendê-los significa estudar e compreender não
somente a história humana, mas, e principalmente, a história de cada ser humano, uma
vez que eles pertencem aos reinos encantados do inconsciente e refletem diretamente na
nossa mais importante forma de representação simbólica, que é a própria vida.
Essas belas e, muitas vezes, sombrias narrativas, contadas pelos seres humanos
desde os tempos mais remotos, são originadas no interior, em contato direto com a
nossa essência. Jung denomina esse lugar, onde nascem e vivem as histórias,
inconsciente coletivo, sendo essa uma camada mais profunda do inconsciente, habitada
por conteúdos idênticos e compartilhada por toda a espécie humana. O inconsciente
coletivo surge como o espaço responsável por originar as nossas mais diversas formas
de mitologia. É ele o primeiro reino encantado da fantasia.
Povoado por estruturas comuns, denominadas por Jung arquétipos, que seriam,
em suas próprias palavras, “tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, imagens
universais que existiram desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2012, p. 13), o
inconsciente coletivo exibe a força que carrega em si ao oferecer histórias tão simples,
porém, que tocam diretamente a quem as escuta.
Por serem narrativas universais, os contos de fada moldam a vida de homens e
mulheres e refletem nossas alegrias e medos, enquanto nos auxiliam na compreensão de
nosso lugar no mundo. Jung os expõe de maneira inspiradora, quando afirma que: “o
conto, sendo um produto espontâneo, ingênuo, irrefletido da alma, só pode expressar
aquilo que é próprio da alma” (JUNG, 2012, p. 240).
Talvez, a mais bela noção tenha surgido nos estudos de Marie Louise Von Franz,
que compara essas narrativas, em uma poética metáfora, com o movimento realizado
pelo mar: “para mim, os contos de fada são como o mar, e as sagas e os mitos são como
ondas desse mar, um conto surge como um mito, e depois afunda novamente para ser
um conto de fada” (VON FRANZ, 2012, p. 33).
Ainda de acordo com essa autora, os “contos de fada são a expressão mais pura e
mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo (...). Eles representam os
arquétipos na sua forma mais pura, plena e concisa” (VON FRANZ, 2012, p. 9). Assim,
22
podemos interpretar os contos de fada como histórias inspiradas pelo inconsciente
coletivo da humanidade que refletem nossos desejos e medos mais ancestrais.
Responsáveis por nos mostrar sombrios caminhos, inspirar os mais belos sonhos
e ensinar importantes lições, essas narrativas têm como principal “missão” nos guiar
pelos labirintos de nossa vida consciente, sempre com o auxílio do nosso mundo
simbólico, o inconsciente, que alguns aprendem a esquecer e que nós devemos aprender
a decifrar.
Nascidos nas profundezas de nossa alma, “esse ser eólico, de cores cintilantes,
semelhante a uma borboleta” (JUNG, 2012, p. 211), que sonha os sonhos do mundo, os
contos de fada emergem de nosso inconsciente para encantar e colorir a vida humana,
desde o mais remoto tempo. Seus motivos são surpreendentemente semelhantes e
repetem-se entre as mais variadas culturas. Ao contrário do que pensa a maioria das
pessoas, eles não são direcionados apenas às crianças e servem como guias para todos
nós. Por meio de seus símbolos, formam uma linguagem universal, que é compreendida
imediatamente. Por todos. Em todas as épocas. Em todos os lugares.
Infelizmente (ou felizmente) parece não haver combinação alguma de palavras
que represente sua real importância e que tenha condições de defini-los. Porque não se
trata de um apanhado de conceitos. Isso nunca. Trata-se de uma profusão de
sentimentos. Repletos de encanto e magia, os contos de fada devem ser lidos com o
coração. Tentar usar a visão para entendê-los seria um erro muito grave. Traria a
cegueira da alma.
Assim, devemos deixar que eles nos toquem, nos inspirem, nos mostrem seus
ensinamentos, nos encantem ou assustem, com suas belas fadas e terríveis bruxas.
Devemos acreditar nesses seres e, com seu auxílio, viajar para o reino desconhecido,
que habita nosso mais profundo mundo interior . Um mundo cheio de mistérios, os mais
diversos. A chave que abre essa porta parece, para alguns, impossível de ser alcançada
e, para outros, proibida. Mas, como nos alerta Jung, “nada excita mais a nossa
curiosidade do que uma proibição” (JUNG, 2012, p. 237).
Façamos a chave girar, portanto, e adentremos o mundo encantado, buscando as
origens dos contos e entendendo qual a sua verdadeira missão. Certamente, depois dessa
experiência, não mais veremos nessas histórias, narrativas “tolas” ou “infantis”.
Entenderemos sua importância e seus ensinamentos, sua beleza e seu horror. Cada vez
que uma luz brilhar enxergaremos uma fada e cada vez que as trevas surgirem em nossa
vida, saberemos que é obra de uma bruxa. Ah, mas elas não fazem por mal. De jeito
23
nenhum. A luz e as trevas existem dentro de cada um de nós. Às vezes devemos
transgredir algumas regras, ignorar algumas fadas ou nos aliar a certas bruxas para
realizarmos a nossa jornada de aprendizado. Suas manifestações nos orientam. Seus
conselhos nos transformam. Seu pó é mágico e nos possibilita voar. Suas maldições são
necessárias e nos permitem amadurecer. Assim, quando uma voz ressoar, novamente,
bem baixinho em seu ouvido, preste atenção. Pode ser uma delas.
1.1.1. Origens e principais representantes dos contos de fada
Quando pensamos em contos de fada, logo lembramos de histórias conhecidas,
como Branca de Neve, Rapunzel, A Bela Adormecida ou João e Maria, para citarmos
apenas alguns exemplos. Esses e tantos outros contos foram reunidos pelos irmãos
Jacob e Wilhelm Grimm, no livro Kinder-und Hausmärchen (Contos da Infância e do
Lar), lançado, originalmente, em 1812. Os Irmãos Grimm, nascidos na Alemanha,
dedicaram uma boa parte de sua vida na compilação e divulgação dessas histórias,
recolhidas em diversas cidades de seu país e traduzidas, posteriormente, para o mundo.
Antes deles, porém, outro autor já havia aberto as portas para o gênero: o francês
Charles Perrault, conhecido por histórias como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela,
Barba Azul, O Gato de Botas, Pele de Asno e O Pequeno Polegar, entre tantas outras.
Sua obra mais famosa, Contes de Ma Mère l'Oye (Contos da Mamãe Gansa), lançado
em 1697, reunia as histórias que ele havia ouvido nos salões parisienses, época em que
trabalhara na corte do rei Luís XIV, e trazia, ao final de cada conto, uma espécie de
“moral da história”.
Ainda nessa mesma perspectiva, de coletar as narrativas de determinado país ou
cultura, outro importante autor deve ser destacado neste estudo: o australiano Joseph
Jacobs, conhecido por se preocupar em reunir os contos de fada ingleses e celtas,
fornecendo novas histórias ao público que se interessava por esse tipo de literatura.
Assim, ele coletou uma série de contos em quatro edições: English Fairy Tales (Contos
de Fada Ingleses), de 1890; Celtic Fairy Tales (Contos de Fada Celtas), de 1892; More
English Fairy Tales (Mais Contos de Fada Ingleses), de 1894; e More Celtic Fairy
Tales (Mais Contos de Fada Celtas), de 1894.
Dessas obras destacamos clássicos como João e o Pé de Feijão, Os Três
Porquinhos, Connla e a Donzela Encantada e Árvore Dourada e Árvore Prateada.
Destacamos aqui que os contos celtas, um pouco diferentes dos demais, fazem
24
referências à mitologia desse povo, bem como aos lugares em que eles viviam. Assim,
um dos mais bonitos dessas coletâneas, por exemplo, Os Filhos de Lir, reproduz uma
história mitológica bastante conhecida e importante para essa cultura.
Claro que, se pensarmos nos contos dos Grimm, de Perrault ou de Jacobs,
perceberemos que algumas histórias se repetem. É o caso de A Bela Adormecida,
Cinderela ou Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, que aparecem nas obras dos dois
primeiros autores. Alguns detalhes são alterados, mas a base da narrativa e, até mesmo,
seu título permanecem o mesmo.
Ou, ainda, de Branca de Neve e Árvore Dourada e Árvore Prateada,
imortalizadas nas páginas dos livros dos Grimm e de Jacobs, respectivamente, com
algumas alterações, mas com a mesma mensagem central. Típicos exemplos de
manifestações arquetípicas do inconsciente coletivo, migrando entre povos e culturas
distintas e mostrando sua força e importância.
Existem ainda outras narrativas bastante conhecidas que não foram citadas até o
momento. É o caso de A Pequena Sereia, O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo, A
Roupa Nova do Rei, A Princesa e a Ervilha, A Pequena Vendedora de Fósforos e A
Rainha da Neve. Estes contos são um pouco diferentes dos abordados até o momento, já
que não são mais reunidos de acordo com a cultura popular de determinada região. Ao
contrário, eles são escritos por um autor específico, o dinamarquês Hans Christian
Andersen e publicados também nos anos 1800, sob o título de Contos (1835-1872).
Assim, enquanto alguns compilavam, outros criavam suas próprias histórias.
Esse também é o caso de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont (A Bela e a Fera
- 1757), Carlo Collodi (As aventuras de Pinóquio - 1883) Lewis Carrol (Alice no País
das Maravilhas - 1865 e Alice no País dos Espelhos - 1871), L.Frank Baum (O Mágico
de Oz - 1900) e J.M.Barrie (Peter Pan - 1911), artistas responsáveis por escrever suas
narrativas.
Devemos ressaltar que esses contos traziam aspectos relacionados também ao
inconsciente pessoal dos autores. Este corresponde, na visão de Jung, a uma camada
mais superficial do inconsciente e nele estão armazenados conteúdos esquecidos ou
reprimidos, experiências pessoais, lembranças difíceis de serem trazidas à luz e que, por
isso mesmo, são mantidas escondidas do próprio indivíduo. Jung (2012, p.12) expressa
da seguinte maneira a distinção entre inconsciente pessoal e coletivo:
25
Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente
pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre
uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou
aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos
inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de o
inconsciente não ser de natureza individual, mas universal. (...) Uma existência
psíquica só pode ser reconhecida pela presença de conteúdos capazes de serem
conscientizados. Só podemos falar, portanto, de um inconsciente na medida em
que comprovarmos os seus conteúdos. Os conteúdos do inconsciente pessoal
são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a
intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por
outro lado, são chamados arquétipos.
Assim, embora esses contos escritos por determinado autor, e não mais coletados
da cultura popular, tragam temas universais, originados do inconsciente coletivo, eles
também refletem conteúdos presentes no inconsciente pessoal de cada escritor,
acabando por revelar aspectos de sua própria personalidade.
Claro que os contos não se limitam a apenas esses escritores e essas obras. Se
buscarmos em outros países e culturas, também descobriremos novas histórias. Paro por
aqui, entretanto, por serem esses os mais conhecidos em nosso país, em decorrência dos
livros de contos de fada que chegam a nós e das adaptações que nos são oferecidas em
forma de animações, filmes ou seriados televisivos.
Assim, embora tenhamos maior contato com essa forma literária, especialmente
pelos autores citados anteriormente, devemos salientar que a origem desses contos
maravilhosos perde-se no tempo. Seu contorno original compreende histórias contadas
oralmente, havendo registros de sua existência entre as mais antigas civilizações. Marie
Louise Von Franz (2012, p. 11-12) afirma sobre isso:
Pelos escritos de Platão sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas
crianças histórias simbólicas – “mythoi”. Desde então, os contos de fada estão
vinculados à educação das crianças.(...) Mas temos uma informação ainda mais
antiga, porque os contos de fada também foram encontrados nas colunas e
papiros egípcios, sendo um dos mais famosos o dos dois irmãos, Anubis e Bata.
Ele se desenvolve de modo paralelo a todos os outros contos sobre “dois
irmãos” que se podem coletar nos países europeus. Nossa tradição escrita data
aproximadamente de 3.000 anos e o que é mais interessante, os temas básicos
não mudaram muito. (...) Existem indícios de que alguns temas principais de
contos se reportam a 25.000 anos a.C., mantendo-se praticamente inalterados.
Ao contrário do mito, que apresenta uma forma mais elaborada, o conto de fada
oferece uma narrativa direta. Von Franz (2012, p. 35) acredita que essa “parece ser a
linguagem internacional de toda a espécie humana”. Se pensarmos com cuidado, os
26
autores citados anteriormente, responsáveis por escrever ou compilar as mais famosas
histórias a que temos acesso são, em sua maioria, europeus, mas as narrativas que eles
contam são universais. Em qualquer lugar do mundo podemos sentir a dor de Cinderela,
maltratada pela madrasta e por suas irmãs ou a crueldade da Rainha Má, que persegue
sua própria filha, apenas pelo fato de a jovem ser mais bela do que ela.
Ainda relacionando os contos e os mitos, Von Franz acredita que estes últimos
sejam mais específicos e correspondam melhor a determinada cultura. Mesmo que seus
temas se repitam, os deuses e heróis recebem distintos nomes e características físicas de
acordo com o país de seu nascimento. Assim, por exemplo, Zeus, a autoridade máxima
do Olimpo, deus dos raios e trovões, só poderia ser grego, com sua pele branca, cabelos
negros e olhos azuis como o céu; enquanto o ruivo Thor, o deus que empunha o martelo
Mjolnir, e está associado aos trovões, relâmpagos e tempestades, teria uma
descendência nórdica. Portanto, eles estariam ligados “ao consciente coletivo cultural da
nação na qual se originaram” (VON FRANZ, 2012, p. 34). Já nos contos de fada, em
razão da maioria dos personagens não receberem nomes e suas características físicas
serem, raramente, explicitadas, eles parecem mais intimamente ligados a cada um e a
todos nós.
No entanto, fazer uma comparação entre mitos e contos de fada não é a proposta
da presente dissertação. Não há motivos para confrontá-los. Eles são formados pela
mesma essência, originam-se no mesmo lugar, falam para o mesmo ser, utilizam a
mesma forma de linguagem simbólica, comunicam a mesma mensagem e cumprem a
mesma “missão”: a de proporcionar ensinamentos e conhecimento.
1.1.2. Importância e declínio dos contos de fada
O mito não é uma história que nos contam por contar. Ele nos mostra como
devemos nos comportar (ARMSTRONG, 2005, p. 9).
“Era Uma Vez”. Três palavras mágicas capazes de nos retirar de nosso mundo
“real” e nos transportar diretamente para um reino encantado de imaginação e fantasia,
repleto de princesas, príncipes, rainhas, reis e fadas madrinhas. Porém, esse pode ser
também um local sombrio, habitado por bruxas, dragões, maldições e feitiços cruéis.
Um lugar em que abóboras transformam-se em carruagens, trapos em vestidos
de festas, um sapatinho encantado revela o verdadeiro amor, e feras são, na realidade,
27
belos príncipes. Mas esse é também um espaço em que malvadas madrastas desejam
matar suas enteadas, meninas cortam seus próprios pés, pais decepam as mãos de suas
filhas, viajantes jogam boliche com pernas e cabeças humanas, crianças são
abandonadas sozinhas em uma floresta e sapos são arremessados contra paredes.
Esse reino encantado ou sombrio, ou melhor ainda seria dizer encantado e
sombrio, como somos todos nós, não é constituído apenas por histórias contadas para
distrair ou divertir. Esse reino traz uma série de ensinamentos capazes de instruir e
transformar os seres humanos. Ao entrarmos em contato com essas narrativas, desde
muito cedo, aprendemos determinadas lições que de outra maneira não poderíamos
conhecer. E, claro, nos deparamos com um tipo de conhecimento que nos arrebata, nos
prende, já que como poeticamente nos indica Joseph Campbell (2010, p. 31-32):
Nem sequer teremos que correr os riscos da aventura sozinhos; pois os heróis de
todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos
apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma
abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos
o centro de nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos,
estaremos com o mundo inteiro.
Assim, essas narrativas míticas representam ensinamentos sobre a “sabedoria de
vida” (CAMPBELL, 1990, p. 22). Ao seguir a trilha ao lado de um herói, dormir os
cem anos da princesa que recebe uma maldição, adentrar na mais densa floresta ou
enfrentar o dragão, participamos de importantes aprendizados, ensinados pelo
inconsciente, e já realizados por outros seres humanos ao longo de toda a nossa história.
Deparamo-nos com perigos jamais imaginados (mas enfrentados diversas vezes) e
entendemos, simbolicamente, como superá-los. Ao compreender os mitos e contos de
fada compreendemos mais sobre nós mesmos, sobre nossa jornada, sobre nossa vida.
Karen Armstrong (2005, p. 10) afirma que:
Os mitos dão forma e aparência explícita a uma realidade que as pessoas sentem
intuitivamente. Eles contam como os deuses se comportam não por mera
curiosidade ou porque os contos são interessantes, mas sim para permitir que
homens e mulheres imitem esses seres poderosos e experimentem eles mesmos
a divindade.
Enquanto as culturas consideradas “antigas” valorizavam as narrativas míticas e
os contos de fada, a sociedade atual parece não ter tempo para esses ensinamentos.
28
Parece não acreditar neles. A própria palavra “mito” costuma assumir o sentido de
“ilusão” ou “mentira”, enquanto a expressão “conto de fada”, de modo semelhante,
pode ser relacionada a uma situação fantasiosa ou irreal. Uma mulher que espera pelo
“príncipe encantado” é considerada uma sonhadora. O mundo que vivemos não tolera
“finais felizes”. Essa sociedade ainda não aprendeu uma lição muito importante,
ensinada por Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces (2010). Ela não aprendeu a
ler a “gramática dos símbolos” (CAMPBELL, 2010, p. 11).
Mas é claro que os contos de fada, assim como os mitos, não devem ser
interpretados em sentido literal. A beleza deles se encontra, justamente, na carga
simbólica que carregam. É no interior de nossa condição humana que eles se revelam de
maneira mais poética. É com nosso inconsciente, e não com o consciente, que eles
falam. Para Campbell (2010, p. 34):
O sóbrio e moderno julgamento ocidental tem como base uma total falta de
compreensão das realidades descritas nos contos de fadas, no mito e nas divinas
comédias de redenção. Essas formas, no mundo antigo, eram consideradas de
natureza mais elevada que a tragédia, manifestações de uma verdade mais
profunda, de percepção mais difícil, de estrutura mais sólida e de revelação mais
completa. O final feliz do conto de fada, do mito e da divina comédia do
espírito deve ser lido, não como uma contradição, mas como transcendência da
tragédia universal do homem. O mundo objetivo permanece o que era; mas,
graças a uma mudança de ênfase que se processa no interior do sujeito, é
encarado como se tivesse sofrido uma transformação.
E esse tipo de conhecimento deveria ser transmitido a todos os seres humanos,
de qualquer idade, em qualquer época e lugar, pois os temas dessas histórias, sua
bondade e violência, vivem dentro de nós. Associá-los apenas às crianças é um erro
comum e grave com o qual o homem convive já, infelizmente, há muitos anos, como
aponta Mircea Eliade (1963, p. 141):
Embora, no Ocidente, o conto maravilhoso se tenha convertido há muito tempo
em literatura de diversão (para as crianças e camponeses) ou de evasão (para os
habitantes das cidades), ele ainda apresenta a estrutura de uma aventura
infinitamente séria e responsável, pois se reduz, em suma, a um enredo
iniciatório: nele reencontramos sempre as provas iniciatórias (lutas contra o
monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas a serem
solucionados, tarefas impossíveis, etc.), a descida ao Inferno ou a ascensão ao
Céu (ou ─ o que vem a dar no mesmo ─ a morte e a ressurreição) e o
casamento com a Princesa. (...) A dificuldade está em determinar quando foi
que o conto iniciou sua carreira de simples história maravilhosa, decantado de
toda responsabilidade iniciatória.
29
Identificada por Marie-Louise Von Franz como uma “recusa do irracional”
(VON FRANZ, 2010, p. 7), por Joseph Campbell como uma “deficiência simbólica”
(CAMPBELL, 2010, p. 41) e por Karen Armstrong (2005) como o descrédito do mito, a
separação entre o mundo da razão, da ciência e da tecnologia e o mundo das narrativas e
dos símbolos pode ser a chave que Eliade precisava para desvendar em que momento a
importância dos contos começou a decair, perdendo seus contornos originais para ser
transformando em histórias de crianças.
Desde o século XVIII, com o advento do Iluminismo, o homem passou a
defender a ótica da razão e a desacreditar de tudo o que não pudesse ser “explicado” por
ela, como é o caso do pensamento mítico. Desenvolvemos uma visão científica dos
fatos que nos cercam e as narrativas que não se enquadram nesse esquema devem ser
deixadas de lado, como inferiores. O consciente superou, nesse sentido, os temas do
inconsciente, o racional se sobrepôs ao não-racional. E essas histórias simbólicas, que
tanto ajudavam (e ajudam) os seres humanos foram descartadas. De acordo com
Armstrong (2005, p. 13), no entanto,
é um equívoco considerar o mito um modo inferior do pensamento, que pode
ser deixado de lado quando as pessoas atingem a idade da razão. A mitologia
não é uma tentativa inicial de fazer história e não alega que seus relatos sejam
fatos objetivos. Como um romance, uma ópera ou um ballet, o mito é fictício;
um jogo que transfigura nosso mundo fragmentado e trágico e nos ajuda a
vislumbrar novas possibilidades.
Armstrong destaca ainda que essa negação dos temas míticos, em favor da era
do racional, pode ter acarretado uma espécie de embrutecimento da própria
humanidade. Para a autora, “o logos tornou nossa vida melhor de várias maneiras, mas
não houve um triunfo absoluto (...) talvez, devido à supressão do mito, tenhamos até
regredido” (ARMSTRONG, 2005, p. 113).
Dessa maneira, podemos entender que nossa sociedade experimente certo tipo de
esquecimento ou, até mesmo, descrédito pelos temas míticos. Marcada por um modelo
fortemente ancorado nas ideias de ciência e tecnologia, como “dogmas máximos” de
“verdade”, essa sociedade despreza tudo aquilo que não possa ser “provado
cientificamente” (SANTOS, 1989), descartando as grandes narrativas de modelo não
objetivo. Armstrong (2005, p. 15) é enfática ao falar sobre esse assunto:
30
Nossa alienação moderna em relação ao mito não tem precedentes. No mundo
pré-moderno, a mitologia era indispensável. Ela ajudava as pessoas a encontrar
sentido em suas vidas, além de revelar regiões da mente humana que de outro
modo permaneceriam inacessíveis. Era uma forma inicial de psicologia.
Se os mitos foram e são, até hoje, tratados como uma narrativa “falsa” e
“mentirosa”, que deveria ser combatida em favor da ciência e da razão, podemos
imaginar o quanto foram rebaixados culturalmente os contos de fada. Por oferecerem
uma visão mais “pura” do inconsciente, no sentido de “crua” e “primitiva”, eles talvez
tenham sido, por isso mesmo, direcionados também para os seres mais “puros” e
“primevos”, as crianças. Seres simbólicos, que ainda não se deixaram dominar pela
razão e nos quais o lado emocional ainda fala mais alto e mais forte. Von Franz (2010,
p. 7) assim coloca essa questão:
Na sua origem, e até por volta do século XVII, os contos de fada se destinavam
menos às crianças que à população adulta. (...) Progressivamente, no entanto, o
desenvolvimento da corrente racional e seu corolário, a recusa do irracional,
fizeram com que os contos populares fossem vistos apenas como absurdas
histórias de velhinhas, que só serviam para distrair as crianças. Até há pouco
tempo, a maioria dos adultos não se exporia ao ridículo de levar os contos de
fada a sério. Estes, entretanto, já haviam se tornado objeto tanto de estudos
científicos como literários; diversas teorias foram elaboradas sobre o assunto e
as coletâneas dos contos se multiplicaram em diversos países.
Os estudos e teorias mencionados por Von Franz, cujo destaque podemos
observar especialmente nos campos da Psicologia, Antropologia, Literatura e Pedagogia
(ou, em nosso caso, na área da Comunicação), reforçam a ideia da importância dessa
forma literária para os seres humanos. Mircea Eliade (1963, p. 141-142) também
destaca a sua importância:
O conto reata e prolonga a “iniciação” ao nível do imaginário. Se ele representa
um divertimento ou uma evasão, é apenas para a consciência banalizada e,
particularmente, para a consciência do homem moderno; na psique profunda, os
enredos iniciatórios conservam sua seriedade e continuam a transmitir sua
mensagem, a produzir mutações.
Assim, embora alguns ainda “sofram” desse mal, o descrédito pelo mito, nós,
que não fomos contaminados por essa “doença”, podemos identificar nessas histórias
uma das mais importantes formas de conhecimento a que temos acesso. Orientada pelas
31
bases do pensamento compreensivo1 ─ aquele que nega a postura absoluta e
inquestionável da ciência e se aproxima de outras formas de entendimento do mundo,
como a arte, o pensamento mítico, a religião e os saberes comuns ─, acredito que
quanto mais próximos estivermos de nosso mundo simbólico, mais saudáveis estaremos
em relação à vida. Dimas Künsch (2010, p. 21) aponta que:
O pensamento cognitiva e eticamente compreensivo, que avalia como nociva a
compulsão analítico-explicativa, entende-se bem com a ancestral necessidade
humana de contar histórias, tecer sentidos, narrar o mundo e a vida. As
narrativas – em qualquer área do saber e da experiência – , além de lançar luz
sobre os sentidos possíveis das coisas, conseguem revelar o teor das
interrogações que os seres humanos levantam sobre as grandes e às vezes muito
ordinárias questões que os preocupam e ocupam. Articulam sentidos possíveis
em dado momento da história e da cultura. Abrem, não fecham.
Para abrirmos e jamais fecharmos as portas de nosso inconsciente devemos saber
ouvir os contos. Entender quais as mensagem que eles nos transmitem. Compreender a
jornada que eles nos auxiliarão a enfrentar. Proporcionar um diálogo entre o consciente
e o inconsciente, entre a luz e as sombras.
Ter medo da bruxa malvada é uma atitude compreensível, mas, ao absorvermos
essa história até o fim, saberemos como enfrentá-la. Que outro tipo de conhecimento
nos ensinaria isso? A ciência? A razão? A tecnologia? Ora, mas elas nem acreditam em
fadas ou bruxas. Por isso são em geral assim, tão duras, críticas, falsamente assépticas.
Tão tristes. Pensam viver em um mundo sem magia, mas esse lugar não existe. Ou você
pensa que sim? Pois, como os contos nos ensinam, as fadas e as bruxas vivem dentro de
nós. A Era da Razão, em toda a sua infinita sabedoria, parece que ainda não conseguiu
desvendar esse mistério.
1
O pensamento compreensivo é objeto, na Faculdade Cásper Líbero, dos estudos e produções do grupo
de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia da Compreensão”, e base do projeto de pesquisa,
de que esta autora fez parte, até o final de 2014, quando foi concluído o livro “Comunicação, Diálogo e
Compreensão”. Neste livro, a autora contribuiu com o texto “O Diálogo de Pinóquio”, no qual propôs
uma reflexão acerca da importante conversa que realizamos todos os dias em busca de nosso próprio
equilíbrio: o diálogo entre o consciente e o inconsciente.
32
1.2. A(s) retomada(s)
Parece chegada a hora de restabelecer um diálogo, rompido nos últimos séculos
entre logos e mythos. Entre racional e não-racional. Ciência e arte. Ciência e
vida (KÜNSCH, 2010, p. 23).
Desde o início do século 21, podemos observar um fenômeno bastante
interessante se voltarmos nosso olhar à produção cultural, em especial aos filmes,
seriados televisivos e animações realizadas nos Estados Unidos, um fenômeno que se
poderia entender como uma espécie de retorno da magia. O ano de 2001 é marcado pela
estreia de duas das mais importantes franquias (relacionadas a mundos encantados) dos
últimos tempos, já que a primeira parte da trilogia O Senhor dos Anéis, inspirada na
obra do escritor inglês J.R.R.Tolkien, e o primeiro filme da saga Harry Potter, da
também britânica J. K. Rowling, são, ambos, lançados.
Além disso, esse é o ano de estreia de Shrek, a animação que tem como tema
central uma paródia aos contos de fada, mas que nem por isso deixa de citá-los ou
utilizá-los, para criar a sua própria história que também é, na realidade, um conto. E
ainda temos o relançamento, em versão platinum, do DVD Branca de Neve e os Sete
Anões, o primeiro dos clássicos Disney, lançado, originalmente, em 1937. Para
completar, há um filme baseado nesse mesmo conto, intitulado Branca de Neve.
A partir de então, isso que estamos chamando aqui de retorno da magia, ou, mais
especificamente, esse retorno à temática dos contos de fada, um fenômeno a ser
investigado, intensifica-se com outros títulos sendo produzidos ao longo dos anos, como
fica evidenciado nas tabelas a seguir.
As Tabelas 1 e 2 revelam as animações e filmes (respectivamente) que se
utilizam abertamente dos contos maravilhosos como fontes de inspiração. Já a Tabela 3
dedica-se a mostrar as produções cinematográficas que trazem, de maneira implícita,
alguns dos conteúdos presentes nessas narrativas, com destaque para a obra que iremos
estudar mais profundamente no terceiro capítulo, representada pela saga Crepúsculo. A
Tabela 4 indica os seriados televisivos que se apropriam dessas histórias, de maneira
direta ou indireta.
O período compreendido pelas tabelas tem início em 2001 e segue até a presente
data, neste mês de janeiro de 2015, antecipando alguns lançamentos previstos para este
ano.
33
Tabela 1: Contos de Fada com Referências Diretas - Animações (2001-2015)
2001
2002
2003
Shrek
Peter Pan De Volta à Terra
do Nunca
2004 Deu a Louca na Chapeuzinho
2005 Cinderela (Edição Platinum)
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
A Pequena Sereia (Edição
Platinum)
Cinderela III Uma Volta no
Tempo
Peter Pan (Edição Platinum)
A Pequena Sereia: A
História de Ariel
Tinker Bell e o Tesouro
Perdido
Branca de Neve e os Sete
Anões (Edição Diamante)
Tinker Bell e o Resgate da
Fada
A Bela e a Fera (Edição
Diamante)
Deu a Louca na Chapeuzinho
II
Tinker Bell: O Segredo das
Fadas
A Origem dos Guardiões
A Pequena Sereia (Edição
Diamante)
Frozen: Uma Aventura
Congelante
A Lenda de Oz
2015 Aladdin (Edição Diamante)
Branca de Neve e os
Sete Anões (Edição
Platinum)
Cinderela II: Os
Sonhos se Realizam
A Bela e a Fera (Edição
Platinum)
Shrek 2
Aladin (Versão
Platinum)
A Pequena Vendedora
de Fósforos (Curta de
Animação)
Shrek Terceiro
Tinker Bell
A Princesa e o Sapo
Pinóquio (Edição
Platinum)
Enrolados
Como Treinar o Seu
Dragão
Deu a Louca na
Cinderela
A Bela Adormecida
(Edição Platinum)
Deu a Louca na Branca
de Neve
Coraline
Shrek Para Sempre
O Gato de Botas
Valente
Peter Pan (Edição
Diamante)
Tinker Bell: Fadas e
Piratas
Como Treinar o Seu
Dragão 2
Cinderela (Edição
Diamante)
A Bela Adormecida
(Edição Diamante)
34
Tabela 2: Contos de Fada com Referências Diretas - Filmes (2001-2015)
2001
Branca de Neve
A Fábula Moderna de João e
Maria
2002
Peter Pan
2003
João e o Pé de Feijão
2004
A Nova Cinderela
Em Busca da Terra do
Nunca
2005
2006
Uma Garota Encantada
Penelope
Encantada
Crônicas de Nárnia: Príncipe
Caspian
2008
2009 Onde Vivem os Monstros
2007
2010
2011
2012
2013
2014
2015
Irmãos Grimm
O Diário da Princesa
O Diário da Princesa 2
Crônicas de Nárnia: O
Leão, a Feiticeira e o
Guarda-Roupa
Stardust: O Mistério da
Estrela
Crônicas de Nárnia: A
Viagem do Peregrino da
Alice no País das Maravilhas
Alvorada
A Garota da Capa Vermelha
A Fera
Branca de Neve e o Caçador Espelho, Espelho Meu
João e Maria: Caçadores de
Bruxas
Oz: Mágico e Poderoso
Malévola
Caminhos da Floresta
Cinderela
Jack, O Caçador de
Gigantes
Pan
35
Tabela 3: Contos de Fada com Referências Indiretas - Filmes e Animações (20012015)
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Harry Potter e a Pedra
Filosofal
A.I. Inteligência
Artificial
Harry Potter e a Câmara
Secreta
Matrix Reloaded/
Revolutions
Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban
Harry Potter e o Cálice
de Fogo
O Senhor dos Anéis: A
Sociedade do Anel
O Senhor dos Anéis: As
Duas Torres
O Senhor dos Anéis: O
Retorno do Rei
O Fantasma da Ópera
Star Wars Episódio III: A
Vingança dos Sith
Harry Potter e a Ordem
da Fênix
Crepúsculo
Harry Potter e o Enigma
A Saga Crepúsculo: Lua
do Príncipe
Nova
Harry Potter e as
Relíquias da Morte: Parte
1
A Saga Crepúsculo: Eclipse
Harry Potter e as
Relíquias da Morte: Parte
A Saga Crepúsculo:
2
Amanhecer Parte 1
O Hobbit: Uma Jornada
A Saga Crepúsculo:
Inesperada
Amanhecer Parte 2
O Hobbit: A Desolação
de Smaug
Jogos Vorazes: Em Chamas
2013
O Hobbit: A Batalha dos Jogos Vorazes: A Esperança
Cinco Exércitos
Parte 1
2014
Jogos Vorazes: A
A Série Divergente:
Esperança Parte 2
Insurgente
2015
Star Wars Episódio II:
Ataque dos Clones
Encontro de Amor
Animatrix
Menina Má.Com
Ondine
Cisne Negro
Jogos Vorazes
Divergente
Cinquenta Tons de
Cinza
36
Tabela 4: Contos de Fada com Referências Diretas e Indiretas - Seriados
Televisivos (2001-2015)
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
Supernatural: Primeira
Temporada
Supernatural: Segunda
Temporada
Supernatural: Terceira
Tin Man
Temporada
True Blood: Primeira
Supernatural: Quarta
Temporada
Temporada
True Blood: Segunda
Vampire Diaries: Primeira
Temporada
Temporada
True Blood: Terceira
Vampire Diaries: Segunda
Temporada
Temporada
True Blood: Quarta
Vampire Diaries: Terceira
Temporada
Temporada
Grimm: Primeira
Supernatural: Sétima
Temporada
Temporada
True Blood: Quinta
Vampire Diaries: Quarta
Temporada
Temporada
Grimm: Segunda
Beauty and The Beast:
Temporada
Primeira Temporada
True Blood: Sexta
Vampire Diaries: Quinta
Temporada
Temporada
Grimm: Terceira
Once Upon a Time In
Temporada
Wonderland
True Blood: Sétima
Vampire Diaries: Sexta
Temporada
Temporada
Grimm: Quarta
Beauty and The Beast:
Temporada
Segunda Temporada
Vampire Diaries: Sétima Once Upon a Time: Quinta
Temporada
Temporada
Supernatural: Quinta
Temporada
Supernatural: Sexta
Temporada
Once Upon a Time:
Primeira Temporada
Once Upon a Time:
Segunda Temporada
Supernatural: Oitava
Temporada
Once Upon a Time:
Terceira Temporada
Supernatural: Nona
Temporada
Once Upon a Time:
Quarta Temporada
Supernatural: Décima
Temporada
37
As Tabelas 1 e 2 trazem, portanto, referências diretas, pois consistem em filmes
e animações que, em seu título ou em seus personagens centrais, apresentam de maneira
clara uma alusão aos contos de fada. Dessa forma, parece bastante evidente que as
produções Deu a Louca na Branca de Neve ou Espelho, Espelho Meu, por exemplo,
façam uma menção à história de Branca de Neve, enquanto A Garota da Capa
Vermelha, seja uma releitura de Chapeuzinho Vermelho.
A Tabela 3, por outro lado, traz em seu conteúdo uma série de produções
cinematográficas que se referem de maneira indireta a essas narrativas. Isso porque
precisamos ler em suas entrelinhas ou conhecer com mais profundidade a história para
saber que estamos diante de temas relacionados aos contos maravilhosos, como
veremos mais detalhadamente nos segundo e terceiro capítulos desta dissertação.
Já a tabela 4 apresenta os seriados televisivos que se utilizam dessa temática,
tanto diretamente, como nas produções Once Upon a Time e Grimm, por exemplo – que
trazem os personagens de contos de fada conhecidos por todos – quanto indiretamente,
em casos ilustrados por True Blood ou Vampire Diaries, ambas séries de vampiros,
povoadas também por fadas e bruxas. Essas últimas, aliás, bastante semelhantes a
Crepúsculo, trazem o amor de uma jovem mortal por um ser imortal.
O leitor poderia se questionar: de maneira direta ou indireta, os contos não
fazem parte das produções cinematográficas há muito tempo? É claro que sim. Temos
exemplos de histórias que remetem ao início do cinema, como podemos observar, já em
1901, no filme mudo de Georges Méliès, Bluebeard, uma adaptação do famoso conto
de Charles Perrault, Barba Azul.
A lista de produções desde essa época e até o ano 2000 segue ainda com
exemplos bastante relevantes. Se voltarmos nossa atenção para as animações da Disney,
teremos uma lista que conta com inúmeros clássicos da companhia, como Branca de
Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio (1940), Cinderela (1950), Alice no País das
Maravilhas (1951), Peter Pan (1953), A Bela Adormecida (1959), Robin Hood (1973),
A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), Alladin (1992), Pocahontas (1995) e
Mulan (1998).
Devemos ainda nos lembrar de filmes de destaque como Alice no País das
Maravilhas (1933), O Mágico de Oz (1939), O Sapatinho de Cristal (1955), A Princesa
Prometida (1987), Hook: A Volta do Capitão Gancho (1991), A Floresta Negra (1997)
e Para Sempre Cinderela (1998), para citar apenas algumas de tantas produções. Como
exposto anteriormente, os contos também apresentavam além das releituras diretas,
38
algumas reinvenções indiretas. Ora, quem não se lembra de Uma Linda Mulher (1990),
uma nova versão de Cinderela? Ou de Edward Mãos de Tesoura (1990), uma bela e
tocante história de amor ao estilo de A Bela e a Fera?
Esse é o caso também de clássicos como A Princesa e o Plebeu (1953), Sabrina
(1954), Funny Face (1957), Bonequinha de Luxo (1961) e My Fair Lady (1964), filmes
estrelados por Audrey Hepburn e, todos eles, reinvenções do conto de fada Cinderela.
Talvez a própria Audrey fosse, ela mesma, a reinvenção de uma princesa. E por falar em
realeza, como esquecer que foi durante os anos 1950, mais precisamente em 1956, que
Grace Kelly, uma atriz, foi coroada Princesa de Mônaco?
Esse período, portanto, pode também ter sido marcado por uma retomada dos
contos maravilhosos, influenciada pelo cinema. É possível que não tenham existido
tantas produções como na atualidade, mas certamente havia algo de representativo no
espírito da época.
Outro marco que podemos estabelecer ao pensarmos em produções desse estilo
nos conduz à década de 1980. Década de ressurgimento dos estúdios Disney, com o
clássico A Pequena Sereia (1989). Década em que um conhecido seriado, apresentado
no Brasil pela TV Cultura, chamado Faire Tale Theatre (exibido entre os anos 1982 e
1987) foi transmitido. Década de lançamento de filmes como A História Sem Fim
(1984), Splash: Uma Sereia em Minha Vida (1984), O Mundo Fantástico de Oz (1985),
A Lenda (1985), Labirinto: A Magia do Tempo (1986), A Princesa Prometida (1987) e
Willow: Na Terra da Magia (1988). Década em que Diana e Charles se casaram (1981)
e em que Diana ficou conhecida como “Sua Alteza Real”. Mais uma princesa coroando
uma possível retomada desses contos. Mais uma vez a história de Cinderela reinventada
diante de nossos olhos.
Não podemos considerar apenas uma coincidência, portanto, que nosso tempo,
um tempo em que novamente estamos vendo uma série de contos de fada serem
recriados nas telas do cinema, tenha a sua própria princesa. Proveniente da Família Real
Britânica, William (filho de Diana e Charles) se casa, em 2011, com Kate Middleton. A
Cinderela, de “carne e osso”, radiante em seu vestido, faz mais uma aparição ao mundo
e toma a forma de Kate.
Cinderela, a animação, tem sua edição platinum lançada em 2012. E não é que
um dos lançamentos mais aguardados de 2015 seja, justamente, Cinderela, o filme da
Disney? Quantas vezes mais poderá ser Cinderela reinventada?
39
1.3. Compensações arquetípicas
Dessa forma, podemos constatar que, embora esse fenômeno pareça ter se
revelado ou ao menos se esboçado em décadas anteriores, ele se acentua nos últimos
anos, desde a virada de nosso século, de maneira bastante significativa. É o que
mostram as tabelas antes apresentadas e o que podemos sentir se olharmos ao nosso
redor, ampliando inclusive nossa visão para outros campos da produção cultural.
Evidencia-se que tal fenômeno não se restringe ao cinema e à televisão. O teatro,
por exemplo, torna-se também um espaço para essa retomada. Se pensarmos em
espetáculos da Broadway, identificamos a estreia, em 2002, de Wicked, um musical
baseado no romance de Gregory Maguire que narra as aventuras das bruxas de Oz, antes
da chegada de Dorothy. Um prólogo, portanto, para o clássico de L. Frank Baum, O
Mágico de Oz.
Nesse mesmo sentido observa-se, em 2006, a adaptação para os palcos de Peter
and the Starcatcher, uma peça inspirada pelo livro homônimo de Dave Barry e Ridley
Pearson, responsável por fornecer a história de Peter Pan antes de seu encontro com
Wendy e de relatar como este se tornou o líder dos meninos perdidos.
Ainda relacionada com Peter Pan, outra peça teatral, Peter and Alice, cuja
estreia aconteceu em 2013, baseia-se no encontro de uma mulher de 80 anos, Alice
Liddell, e de um rapaz de 30 anos, Peter Llewelyn, em uma exibição para homenagear
Lewis Carroll. Escrito por John Logan, o espetáculo propõe o confronto entre
encantamento e realidade ao estabelecer a reunião desses personagens: ela, a mulher que
inspirou Alice (aquela do País das Maravilhas); e ele, o garoto que não queria crescer.
Ou, ainda, podemos refletir sobre o universo das histórias em quadrinhos e
perceber que, também em 2002, há o lançamento da série Fábulas, distribuída pela DC
Comics, cuja narrativa centra-se nas personagens dos contos de fada que, expulsas de
seu universo fantástico, vivem agora em nosso mundo, mais especificamente, na cidade
de New York.
Dessa maneira, embora o pensamento mítico pareça ter sido desacreditado e sua
importância esquecida pela sociedade atual, como vimos na primeira parte deste
capítulo, é como se essa mesma sociedade estivesse necessitando justamente desse tipo
de conhecimento, como nunca antes. A impressão que se tem é que, acuados, em um
mundo fortemente marcado pelo cientificismo e pela tecnocracia, como apontam os
estudiosos do mito com os quais estamos conversando neste trabalho (Eliade, Campbell,
40
Armstrong e também Jung), chegamos ao nosso limite. Essa retomada, tão forte como
nunca, de conteúdos maravilhosos, revelar-se-ia, neste sentido, o sintoma de uma
deficiência simbólica.
Mergulhados numa crise, sentimos a necessidade da volta aos conteúdos iniciais,
arquetípicos, aqueles que, embora não possam ser comprovados sob a ótica da “razão”,
possuem a capacidade de nos transmitir, justamente por isso, uma importante e valiosa
mensagem. Campbell, no Prefácio da obra O Herói de Mil Faces (2010), fala dessa
verdade e dessa esperança vinculadas ao mundo das narrativas míticas:
A esperança que acalento é a de que um esclarecimento realizado em termos de
comparação possa contribuir para a causa, talvez não tão perdida, das forças que
atuam, no mundo de hoje, em favor da unificação, não em nome de algum
império político ou eclesiástico, mas com o objetivo de promover a mútua
compreensão entre os seres humanos. Como nos dizem os Vedas: “A verdade é
uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes” (CAMPBELL, 2010, p.
12).
Esse tipo de conhecimento, revelado pelas narrativas ancestrais e talvez
escondido em nossa sociedade, em decorrência do perfil assumido pela ciência e pela
filosofia de uma época, deve ser buscado novamente, quase que numa atitude de
desespero, “no círculo básico e mágico do mito” (CAMPBELL, 2010, p. 15).
Nossa época parece ter a necessidade de entrar em contato, novamente, com
essas imagens primordiais, esses arquétipos traduzidos pelos contos de fada. Não que
algum dia tenhamos nos afastado definitivamente deles. Isso jamais poderia acontecer.
Como “animais simbólicos” (CASSIRER, 2013) que somos, dependemos dessas
histórias, dessas narrativas, para o entendimento do mundo e de nós mesmos. Por mais
que a era da “razão”, do “logos”, tenha tentado nos separar do mundo dos mitos, isso
seria impossível, pois eles vivem dentro de nós e, de uma forma ou de outra, retornam a
nós quando mais necessitamos deles, como aponta Campbell (2010, p. 22):
Há nessas imagens iniciatórias algo que, de tão necessário para a psique, se não
for fornecido a partir do exterior, através do mito e do ritual, terá de ser
anunciado outra vez, por meio do sonho, a partir do interior ─ do contrário,
nossas energias seriam forçadas a permanecer aprisionadas num quarto de
brinquedos, banal e há muito fora de moda, no fundo do mar.
41
Assim, nosso inconsciente, mais especificamente, nosso inconsciente coletivo,
aquele que se liga com toda a espécie humana, povoado por arquétipos, inspirou os mais
diversos mitos e contos de fada. Histórias que podem ter sido reveladas por meio de
sonhos ou da imaginação e traduzidas, sem que o indivíduo percebesse, muitas vezes, o
que, de fato, estava contando, o que de fato estava escrevendo. Porque não era seu
consciente quem contava, quem escrevia. Mas seu inconsciente, como fica claro no
trecho a seguir:
Com um poeta aparentemente consciente e em pleno gozo de sua liberdade
pode acontecer o seguinte: que este poeta, apesar de consciente, esteja
absorvido de tal modo pelo impulso criativo, que já nem possa lembrar-se de
outra vontade; assim como o outro tipo que não consegue sentir diretamente sua
própria vontade na inspiração que se apresenta como alheia, embora o si-mesmo
fale claramente por ele. Assim sendo, a convicção do poeta de estar criando
com liberdade absoluta seria uma ilusão de seu consciente: ele acredita estar
nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível (JUNG,
2012, p. 75) .
De acordo com Jung, o momento em que encontramos um arquétipo é
caracterizado por uma “intensidade emocional peculiar” (JUNG, 2012, p. 82). Trata-se,
para o autor, de um momento numinoso, pois, nesse instante, “não somos mais
indivíduos, mas uma espécie; pois a voz de toda a humanidade ressoa em nós” (JUNG,
2012, p. 83). Ele continua:
Toda referência ao arquétipo, seja experimentada ou apenas dita, é
“perturbadora”, isto é, ela atua, pois ela solta em nós uma voz muito mais
poderosa que a nossa. Quem fala através de imagens primordiais, fala como se
tivesse mil vozes; comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que
qualifica de único e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino
pessoal ao destino da humanidade e com isto também solta em nós todas
aquelas forças benéficas que desde sempre possibilitaram a humanidade salvarse de todos os perigos e também sobreviver à mais longa noite (JUNG, 2012, p.
83).
Portanto, parece ser possível imaginar que, justamente por essa falta que
sentimos dos mitos e dos contos é que precisemos tão desesperadamente de sua volta.
Nossa sociedade, mais uma vez, tão fortemente marcada por uma espécie de furor
tecnológico necessita dos conteúdos não-racionais, primitivos. Jung nos fornece uma
interessante leitura acerca deste fenômeno, na obra O Espírito na Arte e na Ciência
(2012), a partir de sua teoria de que possa existir uma espécie de compensação dos
42
temas arquetípicos que determinada época mais necessite2. Nesse sentido, o
inconsciente ofereceria ao consciente os símbolos necessários na busca pelo equilíbrio
psíquico.
Para o psicanalista suíço, as obras de arte podem surgir, de maneira inconsciente
ao artista, como uma forma de equilibrar a inquietação refletida pela sociedade em que
ele vive. Assim, determinados temas retornam à mente do artista, que os reproduz,
“acalmando” o desejo de sua época. As tendências artísticas trazem à tona, despertam
“aquilo de que a respectiva atmosfera espiritual mais necessitava” (JUNG, 2012, p. 84).
Ainda de acordo com Jung (2012, p. 83-84):
Este é o segredo da ação da arte. O processo criativo consiste (até onde nos é
dado a segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e uma elaboração e
formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial
é uma transição para a linguagem do presente artista, dando novamente a cada
um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que,
de outro modo, lhe seria negado. É aí que está o significado social da obra de
arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à
tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação
do presente, a ânsia do artista recua até encontrar no inconsciente aquela
imagem primordial adequada para compensar de modo mais efetivo a carência e
a unilateralidade do espírito da época.
Dentro dessa visão – que, como Jung defende, considera a “unilateralidade do
espírito” de uma época e a necessidade de uma “compensação” –, é possível encontrar
uma resposta, apontando nessa direção, para a retomada atual dos contos de fada. Uma
resposta possível, entre outras com as quais um pensamento de tipo compreensivo é
2
Na obra Um Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu (1991), Jung também aborda a teoria da
compensação, quando tenta compreender o fenômeno dos OVNIs no pós-guerra. Para o autor, a
população da época realmente via essas imagens no céu. Na situação em que viviam, na qual seu mundo
estava ameaçado, eles voltavam-se para o espaço onde os Deuses habitam, provavelmente, em uma
tentativa de encontrar auxílio em outro lugar, fora da Terra. Mesmo a forma na qual as “visões” das
espaçonaves eram relatadas assemelham-se, de acordo com o autor, a uma mandala, isto é, um motivo
que sempre existiu entre as mais distintas e distantes civilizações, um símbolo circular, um símbolo de
totalidade psíquica. Assim, na tentativa de compensar o horror dessa época, o inconsciente encontrava
maneiras de equilibrar o consciente, com símbolos que o “acalmariam”. Jung afirma que “a linguagem do
inconsciente não tem a clareza intencional da linguagem do consciente, porque se compõe da
condensação de muitos dados freqüentemente subliminares, cuja ligação com o conteúdo consciente é
desconhecida. A sua formação não acontece em virtude de um julgamento dirigido, mas segue um
“pattern” (padrão) instintivo, arcaico, que, devido ao seu caráter místico, não é mais aceito pela razão. A
reação do inconsciente é um fenômeno natural, que não se preocupa com a pessoa do homem, de forma
benevolente ou julgadora, mas é regulada exclusivamente pelas necessidades do equilíbrio psíquico”
(JUNG, 1991, p. 41).
43
incitado a dialogar. Se nossa época precisa deles, os artistas, aqui representados de
modo especial pelos agentes da indústria do entretenimento, nos fornecerão esses temas,
como veremos no próximo capítulo.
44
Capítulo 2
REINVENÇÕES (DES)ENCANTADAS
2.1. Dos contos orais aos visuais
Ao fazermos uma reflexão sobre os contos de fada, desde seu surgimento até a
sua atual apropriação, podemos perceber que essa era uma tradição passada oralmente
aos seres humanos e as histórias eram contadas sem a ajuda de nenhum aparato, senão a
própria voz e a imaginação. Enquanto as palavras fluíam, as imagens surgiam na mente
e a história tocava e encantava, tanto aquele que narrava quanto aquele que ouvia.
Reunidos em torno de uma fogueira, brincando em frente a uma lareira, ou,
sendo embalados no colo da própria mãe, os pequenos ou grandes corpos (já que como
vimos anteriormente os contos maravilhosos não são apenas histórias de crianças, mas
existem também para elas) experimentavam momentos inesquecíveis, marcados pela
voz e suas modulações, pelo rosto e suas expressões, pelas mãos e seus graciosos ou
agitados gestos. Enfim, pelo corpo e por sua presença.
Estamos, portanto, no campo a que o teórico da comunicação Harry Pross
denomina, em sua Teoria dos Media, mídia primária. O corpo e suas linguagens
aparecem, assim, como a primeira e mais importante forma de comunicação humana,
seu ponto de origem e também o seu destino final. Norval Baitello Junior, na obra A Era
45
da Iconofagia, assim explica o conceito de mídia primária, desenvolvido por Harry
Pross em Medienforschung (Investigação da Mídia),
O corpo é a primeira mídia, vale dizer, o primeiro meio de comunicação do
homem. Isto quer dizer também, é o seu primeiro instrumento de vinculação
com outros seres humanos. Isto é o que significa mídia primária. O corpo é
linguagem e, ao mesmo tempo, produtor de inúmeras linguagens com as quais o
ser humano se aproxima de outros seres humanos, se vincula a eles, cultiva o
vínculo, mantém relações e parcerias (BAITELLO, 2005, p. 62).
No entanto, com o advento da escrita e, posteriormente, com a chegada dos
livros, essas narrativas encontrariam novas plataformas para serem apreciadas ou
fruídas. Assim, a oralidade que marcava os contos de fada seria substituída por uma
nova forma de “vê-los”. Aqueles dois corpos transformaram-se em apenas um e seu
livro.
As histórias, reunidas ou surgidas da imaginação dos artistas responsáveis por
compilar ou escrever os contos povoaram as páginas dos livros. Uma vez inseridas em
uma plataforma impressa e, sobrevivendo ao tempo de vida de seus criadores, elas se
eternizaram registradas no papel, para que assim possamos admirá-las e jamais esquecêlas. Pois, de acordo com Baitello Junior (2005, p. 33), o tempo da escrita nos permite
isso, a contemplação e a imortalidade:
Ela (a mídia secundária) introduz um fator temporal novo, inventando o tempo
lento que é o tempo da escrita, da decodificação e da decifração. O tempo da
imagem registrada sobre materiais permanentes permite o tempo lento da
contemplação. (...) Quando se tem o tempo de ler um livro, ler um romance,
olhar um quadro, mergulhar numa imagem e contemplá-la, entra-se na realidade
regida por uma temporalidade distinta, aquela da permanência, da perenidade,
da imortalidade.
Resistindo ao tempo e sobrevivendo nas páginas dos livros, essas histórias
continuam a encantar quem as decifra, usando esse “tempo lento” a seu favor. E
continuam a maravilhar quem as lê e relê, até que seus olhos possam ser fechados, uma
vez que as palavras já foram reconhecidas e eternizadas, novamente, em sua mente.
Posteriormente, com o advento do cinema e da televisão, esses contos
novamente sofrem uma mudança em sua forma de serem apreciados. Compreendida a
partir de produções cinematográficas baseadas em antigas narrativas que serão
transformadas e recriadas, em obras de colorido alucinante e roteiros livremente
46
adaptados, essa nova forma de contar histórias pode ser facilmente entendida quando
pensamos na retomada e na reinvenção dos contos de fada lançados em nosso tempo (e
observados nas tabelas apresentadas no primeiro capítulo).
Ainda mais afastadas dos corpos, essas narrativas, agora mediadas por uma caixa
de imagens (BAITELLO, 2005), característica da mídia terciária, propõem algumas
mudanças aos antigos contos. Mudanças cada vez mais profundas.
2.2. Reinvenções
Em nossa época, fortemente marcada pela presença da mídia terciária, alguns
dos artistas responsáveis por nos apresentar essas antigas histórias são os agentes da
indústria cultural (ADORNO, HORKHEIMER, 1985), da indústria do entretenimento.
Uma indústria responsável por padronizar a cultura, apresentando sua busca mais
imediata pelo lucro e pelo consumo, mas também reproduzindo ideologias e
legitimando discursos.
Na tentativa de compensar a nossa carência – na visão junguiana –, os agentes da
indústria do entretenimento propõem-se a nos oferecer esses temas simbólicos.
Entretanto, as versões fornecidas por eles são um pouco (ou muito) diferentes daquelas
da tradição oral, que, posteriormente, foram compiladas nos livros ou escritas pelos seus
autores.
As versões fornecidas pela indústria cultural, às quais podemos chamar de
releituras ou, como prefiro, reinvenções, são alteradas e modificadas, fazendo com que a
carência original jamais seja atendida. Dessa forma, sua principal “missão”, sob o ponto
de vista dos estudos de mitologia, que seria a de refletir ensinamentos sobre o mundo e,
principalmente, sobre o próprio ser humano, é substituída, numa certa ótica, pela
propagação de determinada ideologia e pela procura evidente de lucro e consumo por
parte dos grandes conglomerados de mídia.
Opto, portanto, por usar a palavra reinvenção para me referir a esse tipo de
fenômeno, porque ao contrário de uma adaptação, que modificaria apenas um ou outro
aspecto dos contos, essas histórias trazem, em seus roteiros, algumas novidades bastante
significativas, inventando novamente, re-inventando as narrativas que conhecemos.
Embora façam algumas referências bastante explícitas em relação aos contos, essas
alterações são notáveis. Campbell (2010, p. 242) fornece uma interessante leitura sobre
as modificações que podem ocorrer com os contos:
47
As linhas gerais dos mitos e contos estão sujeitas a danos ou ao obscurecimento.
As características arcaicas em geral são eliminadas ou reprimidas. Os elementos
importados são revisados para se adequarem à paisagem, aos costumes ou às
crenças locais e, no processo, sempre saem prejudicados. Além disso, no sem
número de recontagens de uma história tradicional, é inevitável a ocorrência de
distorções acidentais ou intencionais. Para dar conta de elementos que se
tornaram, por esta ou aquela razão, sem sentido, são inventadas interpretações
secundárias, muitas vezes com uma habilidade considerável.
Ao nos oferecer esses temas arquetípicos, a partir de uma edição específica, a
indústria cultural desconstrói seus conteúdos originais, reelabora suas histórias e
reinventa os contos, apropriando-se de personagens e situações, alterando-os e
formatando-os, muitas vezes, à imagem e semelhança de seus interesses. Ela abastece,
constantemente, nossos anseios e impulsos, com produtos lançados em um espaço de
tempo programado para atingir diversas gerações e com personagens que aparentam ser
diferentes, mas são absolutamente iguais, respeitando a lógica na qual estão inseridos,
aquela que transforma a cultura em mercadoria e o público, em consumidor.
O início dessa reinvenção não é um fato novo, já que acontece desde o primeiro
longa de animação da Disney, o clássico Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937. Se
comparada com seu referencial mais imediato, o conto Branca de Neve, dos Irmãos
Grimm, essa história já apresenta uma série de alterações, propositalmente produzidas.
No conto dos Grimm, é a mãe, não a madrasta da menina, quem a persegue. São
três as tentativas de envenená-la e as vezes em que Branca de Neve confia na mulher.
Entretanto, a mudança principal acontece na maneira como a jovem desperta. O “beijo
do verdadeiro amor” é, na verdade, um tapa que a mesma recebe, após anos dormindo.
Por não aguentar mais carregar seu caixão de vidro de um lado para o outro, o
empregado do príncipe bate nas costas da jovem, que desengasga e acorda. Após esse
incidente, ela se casa com o monarca, convoca um baile real e mata sua mãe, fazendo-a
dançar até que seus pés queimem. A Disney, portanto, suaviza a história. O final feliz
aconteceria de qualquer maneira, mas a menina deveria passar muitos anos sob a
maldição antes de despertar.
Fato semelhante ocorre em A Pequena Sereia, conto de Andersen. Após ver um
belo príncipe e se apaixonar por ele, a menina faz um acordo com a Bruxa do Mar para
trocar sua cauda por pernas. Até aí, a Disney seguiu a história do dinamarquês. No
entanto, a jovem morre na narrativa original, transformando-se em espuma do mar e
brisa do ar. Desfecho bastante diferente, portanto, da animação, na qual o príncipe deve
lutar contra a bruxa e salvar a linda sereia de todos os perigos.
48
E a famosa história do sapo que se transforma em príncipe com um beijo? Mais
uma das reinvenções da indústria cultural. No conto dos Grimm ao qual faz referência,
O Príncipe Sapo, a menina o arremessa contra uma parede por sentir nojo dele e, assim,
o encantamento se desfaz.
O leitor poderia imaginar que essas modificações não sejam, talvez, tão
relevantes para as considerarmos como reinvenções. Entretanto, se pensarmos em
termos psicológicos e mesmo sociais elas são bastante significativas. Há, nessas
histórias reinventadas, uma padronização das mulheres como princesas frágeis e dos
homens como príncipes destemidos que necessitam salvá-las. Já nas narrativas
consideradas ancestrais, as princesas não precisavam de um agente externo. A salvação
vinha de seu interior. De seu mundo inconsciente.
Jung acredita que para o ser humano ser pleno e integrado ele deve realizar o seu
“processo de individuação”, isto é, o diálogo entre consciente e inconsciente que
possibilita que ambos se completem, se integrem e que encontrem, por fim, o equilíbrio
psíquico. Este diálogo pode ser realizado quando prestamos atenção aos nossos sonhos,
quando ouvimos seus recados e quando mergulhamos no mundo das narrativas
fantásticas que chamamos de mitos e contos de fada.
Por isso é importante que essas histórias ancestrais não tenham todos os seus
elementos retocados ou suavizados, como propõem os contos reinventados da indústria
cultural. Claro que alguns de seus aspectos serão alterados, pois a cultura, como um
mecanismo vivo, já carrega em si esse movimento de constante transformação. No
entanto, por mais duras e dramáticas que algumas narrativas possam parecer, sua função
é justamente fazer com que enfrentemos nossos medos, nossas sombras. Que entremos
em contato com um lado que desconhecemos de nós mesmos. Um lado que evitamos.
Mas que também faz parte de nós.
Assim, as personagens dos contos de fada não precisam ser suavizadas ou terem
sua maldade ou bondade justificada, porque elas não representam seres humanos
completos. Elas são figuras arquetípicas que se comportam de determinada maneira, de
acordo com sua função na narrativa, realizando o que Von Franz (2011, p. 24) considera
como “a dança dos arquétipos”. Nesse sentido, a autora sugere que:
Nos contos de fada o herói não é um ser humano normal e não tem reações
humanas: ele não teme o dragão com que se defronta; ele não foge quando a
serpente lhe dirige a palavra; ele não se inquieta quando a princesa aparece à
noite ao lado de sua cama e o tortura ou o perturba. Ele é inteligente ou um
49
boboca – uma pessoa tola, estúpida. Ele é corajoso, mentalmente ágil ou
esperto, ou algo parecido, e isso tudo de modo muito esquemático. E ele apenas
age através da história – deste, desse ou daquele modo, segundo sua natureza.
Se ele é corajoso, enfrenta tudo. Se é espirituoso, faz piada com tudo. Ele não
tem absolutamente psicologia nenhuma, por assim dizer, mas é uma figura
esquemática. Se o observarmos com atenção, veremos uma figura puramente
arquetípica (VON FRANZ, 2011, p.13).
E são exatamente esses arquétipos que aparecem alterados, mudados pela
indústria cultural. Quando a princesa, que antes “apenas” sofria uma maldição passa a
temer a bruxa e a fugir dela, necessitando de um príncipe que a resgate, a história
modifica seu sentido. A figura do herói (antes a princesa, agora o príncipe) é deslocada.
O diálogo entre consciente e inconsciente é também, portanto, transformado. A
mensagem que ele comunica é outra, diferente daquela que a narrativa ancestral
almejava transmitir.
Distantes do propósito original ao qual os contos de fada se destinavam, as
histórias reinventadas à moda da ambiciosa e criativa indústria cultural revestem-se de
outra “missão”, muito mais voltada ao consumo. Consumo do conto transformado em
filme ou animação. Consumo da boneca que representa a princesa. Consumo da pelúcia
criada como o melhor amigo do personagem central. Consumo do vestido que agora é
uma fantasia. Consumo do parque de diversões, o templo da magia.
Nesse cenário, o homem recebe suas narrativas ancestrais pelas mãos da cultura
de massa, que fornece a ele diversos produtos alterados e transformados. Este, enganase e tende a não procurar os conteúdos primitivos no lugar em que esses realmente estão
em sua forma mais autêntica: dentro de si mesmo, de seu inconsciente. Adorno e
Horkheimer explicitam essa relação, quando insistem que “cada espetáculo da indústria
cultural vem mais uma vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia
permanente que a civilização impõe às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo
privá-las disso é a mesma coisa” (ADORNO, T.; HORKHEIMER, M, 1985, p. 132).
Assim, o conto de fada oral, tradicional, original que nos coloca em contato com
nosso inconsciente, com nossos deuses e nossos demônios, aparece, nos produtos da
indústria cultural, com uma nova roupagem, muito mais preocupada com a propagação
de determinado sistema de ideias do que com a transmissão dos ensinamentos
simbólicos de que falamos até o momento.
50
Essas reinvenções aproximam-se, portanto, dos conceitos de Roland Barthes a
respeito do mito, já que este autor o considera como uma forma de ideologia, uma
“linguagem conotada”, na qual os espetáculos fazem transparecer os valores de
determinada época. Em sua obra Mitologias (1980), Barthes aborda o mito como
linguagem, como um sistema de comunicação representado pelo período histórico
correspondente. Ele afirma que “o mito é uma fala. Naturalmente, ele não é uma fala
qualquer (...). O mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem (...). O mito não
se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere” (BARTHES,
1980. p. 131).
Assim, afastados desses temas ancestrais e recebendo-os, de tempos em tempos,
pelas mãos dos agentes do entretenimento, que os oferecem de maneira transformada e
reinventada, não conseguimos realizar esse diálogo entre consciente e inconsciente de
forma plena, integrada, equilibrada, já que os símbolos e arquétipos fornecidos são
alterados.
A própria sociedade também reflete essa crise, esse desequilíbrio, exposto já no
primeiro capítulo, quando falávamos da “compensação” dos temas arquetípicos. Assim,
em um mundo cada vez mais “racional”, necessitamos, para encontrar justamente esse
equilíbrio psíquico, dos conteúdos “não-racionais”, representados pelas narrativas
míticas. Por isso, as consumimos cada vez mais. Mas, ao consumir os contos
maravilhosos de maneira alterada, reinventada, o diálogo que Jung propunha se torna
deficitário e entramos em uma espiral bastante cruel de consumo, engano e privação. O
que gera um novo consumo, um novo engano e uma nova privação. Infinitamente. Ou,
talvez, fosse mais adequado dizermos “para sempre”.
2.2.1. O processo de (des)encantamento
Poderíamos, portanto, sugerir que o encantamento dos contos de fada acontece,
principalmente, em sua forma oral, ao passar diretamente de um corpo para outro, por
meio das histórias ancestrais. O processo de (des)encantamento tem início quando essas
narrativas são transportadas para as páginas de livros e, posteriormente, para as telas da
mídia terciária próprias da cultura de massa, afastando os corpos, bloqueando a
imaginação dos mesmos e impondo-lhes suas próprias histórias. Edgar Morin (2002, p.
109) afirma que:
51
Como toda cultura, a cultura de massa produz seus heróis, seus semideuses,
embora ela se fundamente naquilo que é exatamente a decomposição do
sagrado: o espetáculo, a estética (...). Como toda cultura, a cultura de massa
elabora modelos, normas; mas, para essa cultura estruturada segundo a lei do
mercado, não há prescrições impostas, mas imagens ou palavras que fazem
apelo à imitação (...). Como estão longe as antigas lendas, epopeias e contos de
fada, como estão diferentes as religiões que permitem a identificação com o
deus imortal.
Nas antigas culturas, a importância dos mitos e dos ritos que os reviviam podia
ser considerada gigantesca. Os homens primitivos, como coloca Mircea Eliade em sua
obra Mito e Realidade (1972), entendiam sua própria existência de acordo com os
eventos que haviam acontecido antes de seu tempo, “eventos que se passaram nos
tempos míticos, e que consequentemente constituem uma história sagrada, porque os
personagens do drama não são humanos, mas Entes Sobrenaturais” (ELIADE, 1972, p.
14).
Assim também podemos entender os contos de fada. Os personagens de suas
histórias, como os dos mitos, não são humanos, mas expressões, manifestações
arquetípicas que devem ser, como propõe Eliade (1972, p. 17), revividas por meio de
rituais. Para o autor:
Não basta conhecer o mito da origem, é preciso recitá-lo; em certo sentido, é
uma proclamação e uma demonstração do próprio conhecimento. E não é só:
recitando ou celebrando o mito da origem, o indivíduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolam esses eventos miraculosos. O tempo
mítico das origens é um tempo “forte” porque foi transfigurado pela presença
ativa e criadora dos Entes Sobrenaturais. Ao recitar os mitos reintegra-se àquele
tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, “contemporânea”, de
certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos
Heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao “viver” os mitos, saise do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente
diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente
recuperável.
Ao rememorar os contos, ao “reatualizá-los” (ELIADE, 1972), ao recitá-los,
também podemos repetir o que essas figuras arquetípicas fizeram “in illo tempore”, no
tempo mítico. Ao narrarmos a história de Cinderela, por exemplo, a princesa calça
novamente, nesse tempo mágico, seu sapatinho de cristal, indicando, assim, ao príncipe
encantado que era ela a jovem que ele buscava. Nesse tempo mítico, todas podemos ser
Cinderelas “contemporâneas”. Por isso, os contos deveriam ser revividos, não alterados.
Re-contados, não re-inventados. Nesse sentido é que está se apontando nesse trabalho
para o seu (des)encanto. Quando recitados na oralidade da mídia primária, os revivemos
52
em seu tempo mítico e o conto acontece novamente. Quando reinventados na
visualidade da mídia terciária, os acompanhamos em nosso próprio tempo e um novo
conto acontece, um conto alterado, transformado.
Por vivermos no esquecimento, no vazio, de como era a sua versão ancestral, sua
versão dos tempos “sagrados”, já que quase não mais os recitamos, aceitamos esses
novos produtos e acreditamos nos fascinar por eles. São eles agora os encarregados de
reatualizar, de reviver ou mesmo “recitar visualmente” os antigos contos. E como são
bonitas essas histórias de “finais felizes”, essas “novas versões” e essas imagens, cheias
de cores, nítidas e perfeitas! Ora, mas é claro que elas são lindas e é claro que nos
encantam, nos agradam, nos deslumbram. Mas não podemos esquecer das lições, dos
ensinamentos que as antigas narrativas nos traziam, já que é essa a principal missão de
um conto de fada. Lições que são também alteradas. Porque talvez o homem acredite
não mais precisar delas. Von Franz nos alerta sobre essa questão (2011, p. 28) ao
afirmar que:
Como explicava Jung, isso mostra que os símbolos coletivos do Si-mesmo se
desgastam. Religiões, convicções, verdades, tudo envelhece. Tudo o que foi
objeto de muitas discussões e que dirigiu a sociedade humana por um
determinado tempo é deficiente, no sentido de que envelhece. Esse objeto se
torna mecânico, demasiadamente conhecido, uma posse da consciência. As
pessoas acreditam que, por conhecê-lo, o possuem. Ora, isso afeta acima de
tudo os valores mais elevados, porque temas de menor importância variam
depois de pouco tempo e sem maiores consequências. Mas quando valores mais
elevados se desgastam, quando perdem sua qualidade numinosa de assombrar,
então, sem dúvida, o perigo é grande (...).“Lá vem aquela velha história de
novo; já ouvi isso umas vinte vezes. E daí? ” Uma reação assim provém dessa
qualidade negativa da consciência humana que consiste em desinteressar-se; a
consciência se torna a dona da verdade.
Assim, talvez, nosso tempo não esteja mais disposto aos antigos ensinamentos e
clame por mudanças. Encontre nesses novos contos reinventados, outras formas de
entrar em contato com as antigas narrativas. Não cabe a nós, fazer um julgamento
precipitado, condenando como uma terrível “maldição” ou celebrando como a mais
maravilhosa novidade, essas formas distintas em que os mesmos aparecem na
atualidade. Cabe, sim, conhecermos além dessas, também as narrativas ancestrais. A
grande questão seria, nos parece, recontar essas histórias na cultura contemporânea,
mantendo o nível dos desafios que elas evocam.
53
Podemos entender, portanto, que perdemos algo nessas transposições. Perdemos
o contato entre os corpos. Perdemos ensinamentos antigos. Mas não podemos esquecer
também o que ganhamos. Por meio da mídia secundária, recebemos as histórias escritas.
Agora elas jamais serão perdidas, já que estão imortalizadas nas páginas dos livros.
Como negar que, talvez, se esses autores não tivessem reunido os contos de fada eles
não teriam sido esquecidos?
E na mídia terciária? Também devemos admitir o ganho e a perda. Os opostos
convivem, ou se complementam. Quantas pessoas, especialmente as crianças, não têm
contato com os contos apenas por meio desses produtos lançados pela indústria do
entretenimento? Teriam elas acesso a essas histórias sem as animações Disney? Será
que essas reinvenções também não nos transmitem seu próprio encantamento, seu
próprio ensinamento? Quem nunca chorou ao ver a Bela e a Fera dançando? Quem não
se emocionou ao assistir a cena dos balões de Enrolados? Quem não sabe cantarolar a
música da fada-madrinha de Cinderela ou dos anões de Branca de Neve? Incontáveis
foram as vezes que eu mesma disse que “acreditava em fadas” para ver a Sininho
renascer. E ela renasceu.
A cultura, para além dos formatos e jogos de interesse da indústria cultural,
mostra-se como um tecido vivo, que mistura seus elementos, recriando novos sentidos.
E esses contos, como manifestações do inconsciente que são, agarram-se a esses novos
sentidos, tecidos pela imaginação humana, e continuam aparecendo, se reinventando
para permanecerem ativos em qualquer tipo de plataforma que a humanidade escolher.
O corpo, as páginas dos livros, ou as telas do cinema.
De acordo com Edgar Morin, “uma cultura, afinal de contas, constitui uma
espécie de sistema neurovegetativo que irriga, segundo seus entrelaçamentos, a vida real
de imaginário, e o imaginário de vida real” (MORIN, 2002, p. 81). O autor prossegue
dizendo que “a cultura de massa, que contribui para a evolução do mundo, é evolutiva
por natureza. Evolui na superfície segundo o ritmo frenético das atualidades, flashes,
modas, vogas, ondas; evolui em profundidade segundo os desenvolvimentos técnicos e
sociais” (MORIN, 2002, p. 181).
Dessa maneira, podemos entender que indicar uma volta ao passado das
narrativas seria uma tarefa impossível. Propor uma apologia às histórias “originais” de
uma época oral seria ingênuo. Cabe a nós, como nos ensina o mago Gandalf, um
“mentor”, nascido de uma mídia secundária, “decidir o que fazer com o tempo que nos é
dado” (TOLKIEN, 2001, p. 44). Olhemos, então, esses novos contos com cuidado e
54
deixemos que eles também nos ensinem, nos encantem ou nos assombrem, com suas
novas ou antigas histórias, com suas invenções ou reinvenções, encantadas ou
(des)encantadas.
2.2.2. Reinvenções diretas
Como podemos observar nas tabelas apresentadas no primeiro capítulo desta
dissertação, inúmeras são as produções de nosso tempo que retomam, ou melhor,
reinventam os contos de fada de maneira direta, seja por meio de filmes, animações ou
seriados televisivos. Diretas porque ao vermos seu título, personagens ou sua história,
logo entendemos que se trata de uma apropriação de determinada narrativa.
Podemos nos lembrar, por exemplo, de filmes como Oz: Mágico e Poderoso,
uma espécie de “prólogo” para a história de L.Frank Baum, O Mágico de Oz. Aqui,
conhecemos a jornada do tal mago antes de sua chegada à Cidade das Esmeraldas e
entendemos melhor sua personalidade. Descrito no livro apenas como um “farsante”, a
produção cinematográfica tenta revelar como funcionam os seus “truques”.
Ideias semelhantes a essas, que buscam desenvolver outros lados das histórias,
aparecem também em filmes como Alice no País das Maravilhas ou João e Maria
Caçadores de Bruxas. Ambas propõem que o espectador saiba como estão, atualmente,
as conhecidas crianças dessas narrativas. Alice, agora adolescente, retorna à terra de
magia que visitara em um “sonho”, enquanto João e Maria, já adultos, dedicam-se a
matar as bruxas que encontram em seu caminho.
No entanto, abordar cada uma dessas produções faria com que o estudo se
tornasse exaustivo, assumindo dimensões para as quais não está pensado. Por isso,
escolho me concentrar em algumas personagens bastante conhecidas pelo público,
representadas pelas figuras arquetípicas da Grande Mãe, do Velho Sábio e do Herói.
Embora as histórias sejam modificadas, essas representações sempre estarão nos contos,
não importa a maneira na qual eles sejam oferecidos.
Os temas e personagens das histórias orais ou dos contos reinventados pela
mídia terciária repetem-se, confundem-se, inspiram-se, citam-se. Originados pelo
inconsciente ou apropriados pela indústria cultural não seria, no entanto, a missão
desses conteúdos arquetípicos idêntica? Influenciar, de maneira instintiva, o pensar,
sentir e agir de homens e mulheres? Além de auxiliar na criação das histórias
fantásticas, os arquétipos, imagens de estrutura semelhante, que se repetem em todas as
55
culturas, moldam a nossa jornada, definem quem nós somos, dialogam com nosso
interior e nos alertam para perigos. Ora, não seria por isso que as meninas ainda hesitam
antes de morder uma maçã?
2.2.2.1. O arquétipo da grande mãe: a(s) rainha(s) má(s)
Espelho, espelho meu, existe no mundo alguém mais bela do que eu? (GRIMM,
2012, p. 247)
O espelho. Ponto máximo do encontro com a imagem, esse foi o instrumento
utilizado pela Rainha Má para determinar quem seria no mundo a mulher mais bela. A
mãe (ou nas versões mais recentes, a madrasta) de Branca de Neve e sua obsessiva
busca pela juventude e beleza daria origem, com sua famosa questão, a uma das mais
significativas representações do arquétipo da Grande Mãe encontrada nos contos de
fada.
Nessa história podemos conhecer a faceta mais sombria, oculta e devoradora da
imagem arquetípica, justamente o aspecto que surge com maior destaque nos contos
maravilhosos. Os exemplos são inúmeros, basta que nos lembremos de Cinderela, A
Bela Adormecida, Rapunzel, Irmãozinho e Irmãzinha, João e Maria, Os Três
Homenzinhos na Floresta, A Moça Sem Mãos, Os Doze Irmãos, O Patinho Feio e
Árvore Dourada e Árvore Prateada, para citar só alguns dos mais conhecidos.
Há ainda o lado bondoso dessa imagem, que também pode ser encontrado nas
histórias. Talvez o mais representativo surja em A Protegida de Maria, no qual a
própria Virgem Maria apareça para abrigar e instruir a jovem heroína. Há ainda a mãe
zelosa e protetora dos contos O Lobo e os Sete Cabritinhos e Rosa Vermelha e Rosa
Branca.
Além das já citadas imagens arquetípicas dos contos, os mitos também trazem
uma rica variedade de aspectos que se revelam, ou se escondem dentro de nós. Podemos
nos manifestar em Hera ou Frigga, as deusas principais de seus respectivos panteões,
esposas perfeitas, mas de temperamento por vezes agressivo. Há ainda a possibilidade
de nos identificarmos com as forças criadoras, como Gaia ou Nut. Protagonizar o amor
incondicional aos filhos ou ao marido, em um reflexo de Deméter e Ísis. Proteger a
família e manter o fogo de seu lar sempre aceso, como Héstia e Brigid. Ou ainda sermos
todas ao mesmo tempo. A madrasta e a mãe, a deusa e a santa.
56
Entretanto, se pensarmos na representação desse arquétipo nos produtos da
atualidade, podemos observar um interessante paradoxo. Nos contos ou mitos originais,
a Grande Mãe possui atributos positivos ou negativos sem que isso seja explicado ou
contextualizado. A imagem é boa ou má, porque os arquétipos trazem essas
propriedades inerentes a eles, “estes símbolos podem ter um sentido positivo, favorável,
ou negativo e nefasto” (JUNG, 2012, p. 88).
Como parte de nossa própria personalidade, que também tem em si essa
dualidade, eles refletem-se naturalmente nas histórias fantásticas. Não é preciso
esclarecer nada, pois nosso inconsciente coletivo, o local em que essas imagens irão
comunicar mais profundamente, não necessita de explicações. Em relação ao arquétipo
da Grande Mãe, Jung (2012, p. 88) afirma que:
Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do
feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que
cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, de
fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o
instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o
mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal.
A partir de três exemplos bastante atuais, que recriam justamente o conto de
Branca de Neve, os filmes Espelho, Espelho Meu, Branca de Neve e o Caçador e o
seriado televisivo Once Upon a Time, as Rainhas Más dessas histórias têm sua maldade
justificada por um passado que as transformou. Elas são perversas e cruéis porque
possuem um motivo.
Nossa
sociedade
parece
entender,
portanto,
a
maldade
devido
aos
acontecimentos que marcaram a vida das rainhas em questão. Esse é o principal ponto
de discordância, entre os contos maravilhosos e as contos reinventados de nosso tempo.
Nesses últimos, o belo torna-se mais importante que o bom, o oposto daquilo que o
original tenta retratar. Nele, Branca de Neve é mais bonita que a Rainha, em função de
sua bondade. Essa é a mensagem central da história.
Interpretadas pelas atrizes Julia Roberts, Charlize Theron e Lana Parrilla,
respectivamente, essas personagens, e não Branca de Neve, tornam-se as novas figuras
centrais da narrativa, em um reflexo e mesmo uma nova regra dessa sociedade que tudo
aceita, desde que a imagem que a embale seja prazerosa e desde que o espelho responda
que ela sempre será a mais bela.
57
Outro exemplo bastante atual desse arquétipo pode ser observado quando
pensamos em Malévola. O filme, estrelado por Angelina Jolie, traz a história da bruxa e
não a de Bela Adormecida, na tentativa de justificar o motivo da maldição imposta à
jovem em seu nascimento.
Devemos lembrar aqui que a animação da Disney, de 1959, também já
apresentava uma alteração se comparada à história eternizada pelos Irmãos Grimm.
Enquanto na versão dos Grimm, a princesa sofria uma maldição e dormia durante cem
anos, sendo resgatada pelo príncipe após o fim desse período, na narrativa disseminada
pela Disney, ela despertaria apenas com o “beijo do verdadeiro amor”. Enquanto a
“fada” que lhe impunha a maldição o fazia porque havia sido esquecida, na animação,
Malévola era uma terrível vilã, a quem o príncipe deveria destruir antes de encontrar a
princesa.
Assim, a bela jornada de conhecimento e transformação da heroína seria
reduzida ao maniqueísmo próprio de nosso tempo: o Bem contra o Mal, as fadas e o
príncipe contra Malévola. Mas não é disso que o conto antigo tratava. Muito mais
profunda, muito mais capaz de transmitir ensinamentos, a história de A Bela
Adormecida reflete as “maldições” impostas pela vida (aqui, em especial, às mulheres) e
de que maneira somos capazes de superá-las para, quem sabe, ao fim dessa travessia,
recebermos um prêmio que, nesse caso, é o próprio príncipe.
Se essa reinvenção já parece distante do conto dos Grimm, com o filme
Malévola, qualquer traço da história ancestral é descartado. Aqui, conhecemos a jornada
da bruxa. Assim como no caso da Rainha Má, de Branca de Neve, é Malévola e não a
Bela Adormecida a personagem central da produção cinematográfica. É a história dessa
personagem que o público irá acompanhar, entendendo o motivo do feitiço, torcendo
por ela e emocionando-se quando o lado bondoso da Grande Mãe surge nessa figura.
Apresentada, inicialmente, como uma fada, Malévola apaixona-se pelo pai de
Aurora (A Bela Adormecida), quando este era ainda um jovem, mas acaba sendo traída
por ele. Como uma vingança, portanto, é que Malévola, impõe à jovem o feitiço do
sono.
Arrependida, porém, pela maldição, já que havia se afeiçoado à menina,
Malévola tenta desfazê-la, sem sucesso. No dia em que a jovem completa quinze anos
ela espeta o dedo no fuso de uma roca e cai adormecida. No entanto, a bruxa resolve
ajudar a garota tentando fazer com que o encantamento seja desfeito. Arriscando sua
própria vida, ela leva o príncipe, que Aurora acabara de conhecer, ao castelo para que
58
este lhe desse o beijo do verdadeiro amor. Lá chegando, ele beija a garota que não
desperta de seu sono profundo.
Desesperada pelo que havia feito, Malévola se despede da mesma com um beijo
em sua testa e, para a surpresa de todos, a princesa desperta. Malévola prova, nessa
cena, que o verdadeiro amor realmente existe e que ela o sentia pela menina. O amor
que uma mãe sente pelo seu filho. Assim como nos ensina Jung (2012), ela é morte e
vida.
Dessa forma, os vilões, especialmente as Grandes Mães, parecem, nesses contos
da indústria cultural, nesses contos reinventados, surgirem com muita força para que o
público entenda suas motivações, compreenda sua maldade. Talvez o espectador esteja
um pouco cansado de heróis perfeitos, como nos adverte Campbell (1990, p. 15): “o ser
humano perfeito é desinteressante (...). As imperfeições da vida é que são apreciáveis”.
E se identifique com alguns vilões de nosso tempo. Ora, quem não torce, nem por um
momento, por Darth Vader? Quem não compreende as motivações do Coringa ou do
Magneto? E quem não prefere Loki ao próprio Thor?
E por falar em Darth Vader, não podemos esquecer que George Lucas já havia
lançado, anteriormente, uma trilogia justificando a crueldade de um dos maiores vilões
da história do cinema, antecipando esse movimento. Parece mesmo que eles estão cada
vez mais “na moda”. Se podemos ou não entender suas motivações, isso é outra história.
Literalmente outra história. A história do vilão.
2.2.2.2. O arquétipo do velho sábio: o reino encantado das fadas
Sua voz estava tão fraca que, no início, Peter não entendeu o que ela estava
dizendo. Mas depois conseguiu compreender. Sininho estava dizendo que
achava que ia melhorar se as crianças acreditassem em fadas.
─ Se vocês acreditam, batam palmas ─ gritou Peter. ─ Não deixem a Sininho
morrer!
Muitos bateram.
Alguns não.
Alguns monstrinhos até fizeram careta (BARRIE, 2012, p. 104).
Ora, perguntaria um ouvinte mais atento, por que se chamam contos de fada, se
nem todas as narrativas pertencentes a esse estilo exibem uma fada? Se apelarmos ao
senso comum, aquele que nos orienta em nossa própria experiência, a fada pode ser
descrita como um pequeno ser dotado de magia. Se recorrermos ao dicionário, temos a
59
seguinte definição: “entidade fantástica com poder sobrenatural” (HOLANDA, 2010, p.
394). Em um dicionário de símbolos, podemos encontrar outras noções:
Mestra da magia, a fada simboliza os poderes paranormais do espírito, ou as
capacidades mágicas da imaginação (...) A fada participa do sobrenatural,
porque sua vida é contínua, e não descontínua como a nossa e como a de todas
as coisas vivas desse mundo (...) Por isso, as fadas jamais se deixam ver, senão
de modo intermitente, como os eclipses; embora subsistam, em sua essência, de
modo permanente. Poder-se-ia dizer o mesmo sobre as manifestações do
inconsciente (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 415, 416).
Magia, espírito, imaginação. O reino habitado por esses seres se oferece rico e
misterioso, como é rico e misterioso o mundo do inconsciente, em especial, do
inconsciente coletivo, do qual elas fazem parte, povoando-o, com suas agitadas asas e
experientes varinhas. Poderiam as fadas, então, ter fornecido o impulso que fizesse o ser
humano capaz de exteriorizar as suas próprias fantasias? Teriam elas conversado com o
homem primitivo para que ele contasse suas histórias, narrasse seus sonhos? Seriam elas
as responsáveis pelo surgimento das primeiras aventuras em nosso inconsciente?
Estariam elas nessas aventuras?
A resposta a todas essas perguntas seria sim, pois estamos no terreno do
encantado, do simbólico, do sobrenatural, da essência, da alma humana. Assim, se
chamariam contos de fada, pois todos eles possuem, sim, uma fada. Mesmo que não
apareçam nos contos, são esses seres os responsáveis por narrar as histórias aos seres
humanos. Histórias que, tocadas pela magia, pelo espírito, evocariam nossos mais belos
sonhos, mas também nossos mais profundos medos.
Essa relação das fadas com o espírito sugerem sua importância nas narrativas e
as associam com uma das manifestações arquetípicas mais emblemáticas da obra de
Jung, o Velho Sábio. Para este autor:
O Velho representa, por um lado, o saber, o conhecimento, a reflexão, a
sabedoria, a inteligência e a intuição e, por outro, também qualidades morais
como benevolência e solicitude, as quais tornam explícito seu caráter
“espiritual”. Uma vez que o arquétipo é um conteúdo autônomo do
inconsciente, o conto de fada, concretizando o arquétipo, dá ao Velho uma
aparência onírica, do mesmo modo que nos sonhos modernos (JUNG, 2012, p.
222).
60
Jung continua ao afirmar que:
A frequência com que aparece o Velho como arquétipo do espírito no sonho é
mais ou menos a mesma do que no conto de fada. O Velho sempre aparece
quando o herói se encontra numa situação desesperadora e sem saída, da qual só
pode salvá-lo uma reflexão profunda ou uma ideia feliz (JUNG, 2012, p. 218).
As fadas guiam os homens em seu próprio destino, tecendo o fio de sua vida,
como as parcas gregas, as moiras romanas, as nornas nórdicas, ou as protetoras da Bela
Adormecida, que revertem o feitiço da morte, em um sono profundo, alterando seu
futuro. “Em geral, reunidas em grupos de três, as fadas puxam do fuso o fio do destino
humano, enrolam-no na roca de fiar e cortam-no com sua tesoura quando chega a hora”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 415). Como o fuso é parte fundamental dessa
história, seu simbolismo torna-se claro no movimento de nascimento, vida e morte da
personagem, mostrando que suas fadas sempre a acompanharão e a auxiliarão.
Elas podem ser representadas também pela bela Fada Azul, de Pinóquio,
responsável por revelar a magia presente no inconsciente do boneco de madeira e que,
aliada à sua consciência, o grilo falante, poderá fazer com que ele ganhe vida, em um
dos mais poéticos processos de individuação já representados nos contos.
Ou ainda pela Fada Madrinha, a bondosa mulher que surge para presentear
Cinderela com um lindo vestido de baile e o tão sonhado sapatinho de cristal. Em
comum, essas personagens têm, além da magia, sua missão, pois surgem para ajudar o
herói ou a heroína da história, nos momentos mais difíceis de sua jornada. Portanto, elas
representam também a figura do mentor, que, de acordo com Joseph Campbell (2010, p.
19), pode ser assim descrito:
Presença constante nos mitos e contos de fada, cujas palavras ajudam o herói
nas provas e terrores da fantástica aventura. É ele que aparece e indica a
brilhante espada mágica que matará o dragão-terror; ele conta sobre a noiva que
espera e sobre o castelo dos mil tesouros, aplica o bálsamo curativo nas feridas
quase fatais e, por fim, leva o conquistador de volta ao mundo da vida normal
após a grande aventura na noite encantada.
Além dos contos de fada, no qual esse arquétipo pode ser retratado,
especialmente, pelas fadas, outras de suas facetas também podem ser encontradas nas
antigas narrativas e nos contos reinventados de nosso tempo. Assim, ele pode surgir
como Merlin, nas lendas arthurianas; ou Quíron, o sábio centauro da tradição grega, que
61
teve entre seus principais discípulos os heróis Aquiles e Jasão; além das já citadas “trias
fatas” do destino (as parcas, nornas e moiras, responsáveis pelo fio da vida humana).
Atualmente, essa imagem aparece na forma dos personagens Obi Wan Kenobi e
Mestre Yoda, no clássico Star Wars; de Gandalf, na obra O Senhor dos Anéis; do mago
Dumbledore, ou do elfo Dobby (uma clara referência às “fadas domésticas” ou
“brownies” dos contos celtas), na história do bruxo Harry Potter; de Morpheus, no
filme de ficção científica Matrix; e de Alice, a vampira de poderes paranormais que
prevê o futuro e auxilia a jovem protagonista de Crepúsculo em sua jornada (como
veremos mais detalhadamente no terceiro capítulo desta dissertação).
Semelhantes em relação à missão dada às fadas, os Velhos Sábios dessas
histórias também têm como característica central o destino dos protagonistas. Cabe a
eles o encorajamento necessário na jornada ou aventura desses heróis, que propiciará a
morte ou o sono profundo dos mesmos, como seres comuns, e seu despertar, em um
retorno transformado.
Concebido pela magia e habitando o mundo fantástico, não importa qual a forma
que esse arquétipo possa assumir nas histórias ancestrais ou nos contos reinventados de
nosso tempo, ele sempre surgirá como uma fonte de auxílio nos momentos em que mais
precisarmos dele. Seja para tecer o fio de nossa vida, nos presentear com um vestido de
baile e sapatinhos de cristal ou para nos transformar em seres humanos reais.
2.2.2.3. O arquétipo do herói: Valente
Dizem que o nosso destino está ligado à nossa terra. Que ela faz parte de nós,
assim como fazemos dela. Outros dizem que o destino é costurado como um
tecido. Fazendo que o destino de um se entrelace com o de muitos outros. Essa
é a única coisa que buscamos ou que lutamos para mudar. Alguns nunca
encontram o destino. Mas existem outros que são levados a ele. (...) Alguns
dizem que o destino está além do nosso controle. Que não o escolhemos. Mas
eu sei a verdade. Nosso destino vive dentro de nós. Você só precisa ser Valente
o bastante para vê‐lo.3
Tema mais antigo que a própria descoberta da consciência no homem, o herói
simboliza o desenvolvimento da psique. Suas facetas e os estágios de sua história
podem ser entendidos como os estágios de evolução da nossa própria personalidade. Ele
aparece como um salvador da humanidade (ou de sua própria humanidade), passa por
3
Trechos inicial e final da animação Brave, da Disney.
62
diversas provações, enfrenta os mais terríveis perigos e, por fim, tem um retorno
transformado.
Os exemplos na mitologia são incontáveis, como os gregos Aquiles, Hércules e
Prometeu; o irlandês Cúchulain; o nórdico Sigurd; o egípcio Osíris e o bretão Arthur,
além, é claro, de Jesus Cristo e Buda. Nas narrativas de nosso tempo, também podemos
enumerar alguns conhecidos representantes, como o bravo cavaleiro jedi Luke
Skywalker; o bondoso hobbit Frodo Baggins; Neo, o escolhido da Matrix; Bella, a
humana que se tornará uma vampira, e o bruxo adolescente Harry Potter.
Em relação aos contos de fada, enumerar os heróis de suas narrativas seria tão
difícil quanto enumerar as próprias narrativas. Suas estruturas, simples, puras e prontas
para atingirem qualquer ser humano tratam, justamente, do próprio ser humano. Assim,
cada um de seus personagens centrais é o herói da história, pois eles precisam
comunicar-se com o herói que os escuta.
Príncipes destemidos prontos para resgatar donzelas em perigo, como em A Bela
Adormecida, ou As Três Irmãs. Jovens que não temem o destino, enfrentando-o e
aceitando-o, como nos clássicos A Bela e a Fera e A Pequena Sereia. Garotas
responsáveis por sacrifícios em nome de sua família, como em A Menina Sem Mãos ou
Os Treze Irmãos. Meninas em busca do conhecimento acerca de si mesmas, como Alice
no País das Maravilhas.
Talvez o mais conhecido dos arquétipos seja também o mais simples de ser
compreendido, pois sua estrutura corresponde à nossa jornada; seus feitos, aos nossos
desafios; suas vitórias, às nossas conquistas e suas existências, às nossas vidas. Enfim,
os heróis somos todos nós. Para Von Franz, “identificar-se a esse estilo de personagem
é tão evidente e espontâneo que é difícil manter uma certa objetividade em relação a ele;
nós nos reconhecemos nele, vivemos suas aventuras imaginárias” (FRANZ, 2010, p.35).
Nos contos reinventados de nosso tempo, temos uma novidade bastante
interessante em relação a esse tipo de arquétipo. Sua tradicional faceta masculina,
caracterizada pelos príncipes que salvam as donzelas de suas torres, sofre uma inversão,
e as meninas das histórias é que parecem ganhar maior destaque. Von Franz (2011, p.
56-57) assim entende essa questão acerca do feminino:
Se observarmos com distanciamento, veremos que esses movimentos são
coerentes com o que acontece no inconsciente coletivo. Os movimentos
feministas também. Esses movimentos estão em relação, embora entre um e
outro possam ter pouco em comum. Mas, novamente, se estudarmos esses
63
processos mais profundos que estão em desenvolvimento no inconsciente
coletivo, teremos em síntese o que está essencialmente acontecendo sob a
superfície (...). Essas são ondas de superfície provocadas por algo que está
acontecendo nas profundezas do oceano do inconsciente coletivo. O importante
é que essa imagem feminina quer vir à tona. Quando pesquisamos os contos de
fada, temos condições de ler o que realmente está por trás deles.
Se pensarmos no conglomerado Disney, essa mudança começa em Enrolados e
pode ser notada também em Valente e Frozen, Uma Aventura Congelante. Em
Enrolados, ao contrário da versão oferecida pelos Irmãos Grimm no qual ele se inspira,
o conto Rapunzel, a jovem que havia sido sequestrada por uma bruxa no dia de seu
nascimento não espera que um rapaz destemido a resgate. Ela vai agora em busca de seu
futuro. O príncipe assume as feições de um ladrão procurado na região, mas o final feliz
é, claro, mantido.
Frozen, Uma Aventura Congelante, por outro lado, modifica mais sensivelmente
a história na qual se guia, A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Aqui,
conhecemos a história de duas irmãs, Anna e Elsa, e de seu relacionamento. É pelo
amor delas que o final feliz acontece. Mais uma vez o “príncipe encantado” tem sua
“ideia original” modificada e aparece, até mesmo, como o vilão da história.
Valente, no entanto, parece ir mais longe e quebrar as barreiras impostas pela
própria Disney. Não podemos deixar de salientar que foi esse mesmo conglomerado
quem inventou ou padronizou a ideia de que uma princesa precisaria de um príncipe
para se livrar dos perigos. Quem conhece outros contos, não apenas os reinventados,
sabe que não é bem assim. Valente, um típico produto nascido dessa retomada dos
contos de fada, parece se aproximar muito mais das histórias ancestrais do que poderia
imaginar. Bastante semelhante a algumas narrativas antigas, em Valente, não há um
príncipe encantado. A própria princesa é quem decide sua vida, é ela quem traça seu
destino.
Essa animação representa uma daquelas reinvenções que tocam tão
profundamente que torna-se impossível não se encantar por ela. Pelo fato de não fazer
referência direta a uma ou outra história, mas sim a uma tradição, a uma mitologia, a
uma cultura específica, a celta, o espectador entrega-se a ela sem restrições.
A personagem central, diferente da padronização à qual as princesas Disney
foram submetidas e à qual o público está acostumado, tem longos e desalinhados
cabelos vermelhos. Cabelos que já indicam sua própria rebeldia, sua própria predileção
ao inconsciente, como indica Von Franz (2010, p. 21) no trecho a seguir:
64
Os pelos, em geral, são simbolicamente significativos, mas esse significado
varia de acordo com a parte do corpo em que crescem. Cabelos na cabeça
costumam representar pensamentos e fantasias involuntários e inconscientes; é
por isso que, em sociedades primitivas, o cabelo tem mana. Às vezes, podemos
influenciar nosso ambiente muito mais por meio de nossas pressuposições
inconscientes do que pelos pensamentos conscientes. Por isso, o cabelo - o
poder espiritual de nossos pensamentos inconscientes - é tão importante.
Como se essa diferença na aparência física não fosse um traço suficiente para
sugerir alguma mudança nas heroínas da Disney, sua história evidencia outra importante
alteração. A jornada de redenção de Merida relaciona-se com sua mãe, não com um
príncipe encantado. O entendimento entre elas, o diálogo é que produz o aprendizado e
a mensagem central dessa tocante história.
Valente tem todas as características de um conto de fada. Um conto em que a
personagem principal, a princesa, segue luzes azuis (seu inconsciente) que a levariam a
encontrar seu destino, em que ela encontra uma bruxa (no melhor estilo Baba-Yagá4 das
histórias russas), em que sua mãe sofre uma maldição (transformando-se em um urso5),
em que ela completa sua jornada e encontra o seu final feliz.
Essa animação fala de um dos ensinamentos mais importantes de todos que é o
conhecimento de si mesmo. Não era essa a frase que repousava já há tanto tempo no
Templo de Apolo, em Delfos? Conhece-te a ti mesmo. Ambas devem se conhecer
melhor. Mãe e filha. Consciente e Inconsciente. Junta(o)s. Unida(o)s. Valente propõe o
diálogo. A reflexão. O entendimento. Valente é lindo, é encantado.
A partir dessa produção, a indústria cultural soube quais arquétipos deveria
ativar. Em uma época marcada por heróis masculinos cheios de testosterona, ela nos
apresenta uma menina comum, uma típica adolescente rebelde. Em uma época de
Grandes Mães vilãs, ela nos oferece uma mãe ursa. Com Valente, talvez, a indústria
4
Baba-Yagá representa uma espécie de bruxa bastante comum nos contos de fada russos. Descrita como
uma velha de fisionomia extremamente desagradável e atributos sexuais exagerados, como “seios
enormes”, essa personagem desempenha um papel importante nas narrativas. Ela pode aparecer ligada às
qualidades da maternidade, pode ser representada como intermediadora entre o mundo dos vivos e dos
mortos e, principalmente, se coloca como a senhora dos animais e “tem sobre eles um poder sem limites”
(PROPP, 2002, p.78). Sua função será determinante para o herói da história e ela poderá, ora ajudá-lo,
ora prejudicá-lo, mas sempre influenciará em seu futuro.
5
O fato da mãe de Merida ser transformada em um urso também representa uma simbologia essencial
para essa história. De acordo com o Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, “o urso é, no
mundo céltico, o emblema ou símbolo da classe guerreira (...) simbolicamente marca ainda mais o poder
feminino da classe guerreira (...) Simbolizaria, em suma, as forças elementares suscetíveis de evolução
progressiva, mas capazes também de terríveis regressões” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 924925). Justamente o papel representado pela mãe da heroína, uma rainha celta, que necessita regredir a um
estágio animal para, posteriormente, progredir ao dialogar com sua filha.
65
cultural tenha ido longe demais. Tenha sido tomada pelo espírito de sua época e escrito
sem nem saber o que estava escrevendo. Jung compara os arquétipos com rios que, após
anos represados, voltam “a irromper em seu antigo leito” (JUNG, 1988, p.15). Talvez os
agentes do entretenimento tenham eles mesmos se deixado levar, como o rio. Os contos
de fada genuínos são assim.
Reinvenções como essa mostram que o encantamento e o desencantamento
andam juntos, ligados. Desencantadas são as histórias reinventadas que modificam, em
sua ideia original, o que de mais bonito e profundo aquele conto (ao qual ela faz
referência) trazia. Encantados são esses, como Valente, que apresentam temas e
ensinamentos que os antigos contos nos mostravam, mas em uma nova história.
E se, até agora, eu vinha falando que essas reinvenções eram todas
(des)encantadas, deparei-me com uma que não apenas me encantou, mas que me
arrebatou. Deixemos assim, então, entre parênteses esse (des) e busquemos o
encantamento no lugar que nos parece mais fundamental. Todos temos que saber ouvir
as luzes mágicas de nosso inconsciente e foi Valente que nos recordou disso. A heroína
de um conto inventado. O arquétipo reinventado. A água voltou a correr naquele rio. E o
volume é caudaloso, como o cabelo vermelho de Merida.
2.2.3. Reinvenções indiretas
As reinvenções indiretas, que incluem produções como Harry Potter, O Senhor
dos Anéis, O Hobbit e Crepúsculo, não foram colocadas neste estudo apenas como uma
menção ao tema da fantasia. Existe nessas obras uma alusão aos mais diversos contos de
fada, em relação a suas histórias e aos seus personagens. Ao contrário das reinvenções
diretas, estas escondem suas menções às antigas narrativas. Mas elas também estão
aqui. Só precisamos olhar com cuidado para encontrá-las.
J.R.R.Tolkien, por exemplo, compara, em seu livro Árvore e Folha (2013), os
elfos a fadas, relacionando-os, tanto na etimologia de sua palavra, quanto na aparência e
talentos que os mesmos apresentam. Além disso, esses são seres que habitam o que,
para esse autor, determina o mundo dos contos de fada, o reino encantando, o Faërie.
De acordo com Tolkien (2013, p. 09-10),
os contos de fada não são histórias sobre fadas ou elfos, mas histórias sobre o
Reino Encantado, Faërie, o reino ou estado no qual as fadas existem. O Reino
66
Encantado contém muitas coisas além dos elfos e das fadas, e além de anões,
bruxas, trolls, gigantes ou dragões; contém os oceanos, o sol, a lua, o
firmamento e a terra, e todas as coisas que há nela: árvore e pássaro, água e
pedra, vinho e pão, e nós mesmos, seres humanos mortais, quando estamos
encantados.
Tanto nas obras O Senhor dos Anéis como em O Hobbit podemos perceber,
portanto, que Tolkien dialoga com o Reino Encantado. Seus personagens e sua magia
nos remetem aos contos de fada. Os elfos são apenas um dos exemplos (e talvez o mais
evidente) dessa inspiração. Assim, podemos entender que o mundo criado por Tolkien
contém os elementos de um conto, pois acontece nesse “reino ou estado no qual as fadas
existem”.
Vale ainda lembrar que, para o autor, as fadas não são criaturas diminutas, como
algumas histórias sugerem. Em sua opinião essas são as mais enfadonhas e o
“desagradavam quando criança” (TOLKIEN, 2013, p. 7). Talvez, por isso, suas fadas,
seus elfos, sejam do tamanho ou ainda maiores do que os seres humanos, muito
semelhantes a alguns contos celtas.
Essa relação fica mais clara se olharmos a história Connla and the Fairy
Maiden, parte da coletânea Celtic Fairy Tales (1970), de Joseph Jacobs. Nessa
narrativa, Connla, um jovem guerreiro, encontra uma bela donzela e, quando questiona
de onde ela vem, ele obtém a seguinte resposta:
Eu venho das Planíceis dos Sempre Vivos - disse ela -, ali onde não há morte
nem pecado. Lá sempre é feriado e não precisamos da ajuda de ninguém para
sermos felizes. E em todo nosso prazer não temos brigas. E como temos nossas
casas nas redondas colinas verdes, os homens nos chamam de povo da colina.
(JACOBS, 1970, p. 6)6.
Essa donzela deve ser traduzida como uma fada celta, especialmente por suas
qualidades e pela maneira na qual é chamada, “Hill Folk”. Como os “povos antigos”
acreditavam que pronunciar os nomes das fadas ou simplesmente a palavra fada podia
trazer má sorte, nos países de tradição celta, elas eram conhecidas como “ 'the little
people', 'the hill folk', 'the gentry', 'the strangers' (...) 'themselves', 'them that's in' or
'elves' ” (KERVEN, 2008, p. 164).
6
Tradução nossa do original: I come from the Plains of the Ever Living - she said - there where there is
neither death nor sin. There we keep holiday always, nor need we help from any in our joy. And in all our
pleasure we have no strife. And because we have our homes in the round green hills, men call us the Hill
Folk.
67
A partir dessa descrição podemos, portanto, traçar um paralelo com os elfos de
Tolkien, especialmente pela questão da mortalidade, já que esses seres não envelhecem,
nem adoecem, e apenas se feridos mortalmente ou devido a uma grande tristeza é que
seus corpos podem morrer. Além disso, a Fairy Maiden leva Connla para esse reino,
chamado por ela de “Planície dos Sempre Vivos” e o rapaz nunca mais é visto. Mais
uma referência às obras de Tolkien. Quando Frodo (o herói de O Senhor dos Anéis)
completa sua missão, ele e seu tio, Bilbo (o herói de O Hobbit), vão embora para
Valinor, também conhecida como a “Terra dos Valar”, as “Terras Imortais” e, assim
como Connla, nunca mais retornarão.
Em Harry Potter, temos uma situação bastante semelhante. Há por trás da
história do bruxo mais famoso da atualidade algumas referências que nos remetem aos
contos de fada. Embora a mais óbvia delas seja, justamente, o fato de Harry descobrir
que é um bruxo, é na narrativa central idealizada pela autora que o conto realmente se
esconde.
Quando J.K.Rowling narra a história de um menino órfão criado pelos tios que é
transportado para um universo encantado de bruxas e encontra, em seus amigos, as
forças necessárias para vencer o mal, podemos fazer um paralelo com O Mágico de Oz.
A heroína dessa história, Dorothy Gale, também é órfã, mora com seus tios e é
transportada para um universo mágico de bruxas, encontrando em seus amigos as forças
necessárias para vencer o mal. Histórias muito semelhantes, com uma roupagem
diferente.
Enquanto Dorothy une-se ao Leão Covarde (que precisa encontrar sua coragem),
ao Espantalho (que necessita de um cérebro) e ao Homem de Lata (que busca seu
coração), Harry Potter (uma mescla de Dorothy e do Leão) já tem a coragem do animal
(não é à toa que sua casa é a Grifinória, cujo símbolo é exatamente um leão) e une-se a
Hermione Granger (a menina que sempre usa seu cérebro, sua razão, uma releitura do
Espantalho) e a Ronald Wesley (o garoto que traz os elementos de emoção, o coração,
do trio, uma reinvenção do Homem de Lata).
Até mesmo a cicatriz em forma de raio que Harry possui na testa em decorrência
de sua vitória, quando ainda bebê, contra o terrível bruxo “Você-Sabe-Quem”, pode ser
lida como um paralelo com o beijo que a Bruxa Boa do Norte dá em Dorothy após a
menina destruir, acidentalmente, a Bruxa Má do Leste, como fica explicitado nos
trechos a seguir, retirados dos livros Harry Potter e a Pedra Filosofal (2000) e O
Mágico de Oz (2013), respectivamente:
68
Sob uma mecha de cabelos muito negros caída sobre a testa eles viram um corte
curioso, tinha a forma de um raio.
- Foi aí que...? - sussurrou a professora.
- Foi - confirmou Dumbledore - Ficará com a cicatriz para sempre (ROWLING,
2000, p. 17).
Aproximou-se de Dorothy e deu-lhe um beijo suave na testa. No ponto onde
tocaram a pele da menina, seus lábios deixaram uma marca redonda e brilhante,
como Dorothy descobriu logo depois (BAUM, 2013, p. 29).
Vale lembrar ainda que por meio dessas cicatrizes, adquiridas ao destruírem, por
acaso, seus oponentes, tanto Harry quanto Dorothy tornam-se pessoas famosas e
facilmente reconhecíveis em seus novos reinos encantados.
Em Crepúsculo, as referências são ainda mais densas, já que não apenas um
elemento ou um conto de fada foram utilizados. Temos aqui uma colagem de diversas
histórias. O tema central refere-se a uma jovem que se apaixona por um vampiro e já
nos dá a primeira pista, em uma menção à A Bela e a Fera. Mas muitos outros contos
também serão explorados nessa narrativa, o auge das reinvenções até o presente
momento e, por isso, a série que será melhor estudada no terceiro capítulo desta
dissertação.
Podemos continuar essa busca por alusões indiretas com as outras produções que
também fazem parte da tabela, mas opto por parar por aqui, por acreditar que o leitor já
compreendeu como podemos tecer comparações entre os diversos produtos da
atualidade, buscando seus referenciais nos contos de fada. É claro que, com isso,
corremos o risco de não mais assistir a um filme ou a uma animação procurando apenas
diversão. Entretanto, esse é o preço que pagamos quando entramos no Belo Reino,
como nos adverte Tolkien. O espaço em que nossa alma se encontra encantada.
Passamos a procurá-lo e reconhecê-lo nos mais diversos lugares do mundo. De
Hogwarts à Rivendell.
Seguir o coelho branco, deixar-se levar pelo ciclone, tomar a pílula vermelha,
embarcar na plataforma 9 e 3/4, fazer parte da Sociedade do Anel, entrar na Millenium
Falcon, apaixonar-se pelo vampiro. Variadas são as formas de dialogarmos com esse
mundo mágico. Ancestrais ou modernas, em qualquer maneira que os contos escolham
se apresentar, devemos aprender a ler, ouvir, saber dialogar. Pois quem fala por meio do
Belo Reino é nosso inconsciente. Se ele escolhe a forma de uma fada alada, um elfo
majestoso ou um pequeno ser esverdeado, cujas palavras podem ser um pouco
69
embaralhadas, isso depende de nosso tempo, de nossa época. Saber reconhecer
devemos, jovens Padawans.
70
Capítulo 3
ERA UMA VEZ... OUTRA VEZ
3.1. Inquietação
Apenas àqueles que não conhecem nem um chamado interno, nem uma doutrina
externa, cabe verdadeiramente um destino desesperador; falo da maioria de nós,
hoje, nesse labirinto fora e dentro do coração. Ai de nós! Onde está a guia, essa
afetuosa virgem, Ariadne, para nos fornecer a palavra simples que nos dará
coragem para enfrentar o Minotauro e, depois, os meios para encontrarmos
nosso caminho para a liberdade, quando o monstro tiver sido encontrado e
morto? (CAMPBELL, 2010, p. 30)
Devo, antes de mais nada, alertar que este capítulo nasce a partir de um
sentimento de inquietação surgido após a apreciação de Crepúsculo, série escrita pela
autora norte-americana Stephenie Meyer. Composta por quatro livros (Crepúsculo, Lua
Nova, Eclipse e Amanhecer), que seria transformada, posteriormente, em cinco filmes
(Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse, Amanhecer:Parte 1 e Amanhecer:Parte 2), essa saga
expõe, basicamente, uma história de amor. O amor de uma mortal por um vampiro.
Ora, por que esse tema iria trazer tamanha aflição à minha mente? Por que eu
não conseguia parar de pensar nele? Certamente porque eu já havia ouvido essa história
em algum outro lugar e não conseguia me lembrar. Não conseguia ouvir o chamado de
que fala o mitólogo Joseph Campbell (2010). Eu estava perdida nesse labirinto. Ai de
mim! Mas Ariadne estava lá para me fornecer seu fio condutor.
Como se trata de uma narrativa povoada por seres imortais, procurei,
inicialmente, no lugar que, para mim, parecia mais óbvio. Recorri, dessa forma, a um
dos mais famosos contos de vampiros da literatura mundial, a clássica obra Drácula, do
irlandês Bram Stoker. Busquei ainda algumas referências nos livros de Anne Rice,
71
célebre autora de contos de terror e fantasia, conhecida, especialmente, pelas obras
Entrevista com o Vampiro e O Vampiro Lestat.
Nada. Os vampiros de Crepúsculo não se parecem com os clássicos do gênero.
Eles, até mesmo, modificam muitos dos conceitos centrais dessa literatura. Onde seria
então que essa alusão estaria?
Para tentar decifrar o mistério, eu deveria descobrir o motivo principal dessa
narrativa. Qual é, mesmo, o tema central da história? Trata-se de uma menina que se
apaixona por um vampiro, por uma fera, e altera seu mundo e o dele por conta disso.
Claro. A referência estava dentro de mim todo o tempo.
Por que essa saga havia se tornado tamanho fenômeno mundial? E, por que eu,
mais especificamente, uma mulher de 33 anos, teria me interessado por ela, uma série
de livros e filmes baseados em literatura infanto-juvenil? A resposta a essas perguntas
agora está bem clara. E o motivo é simples. Porque os temas que esses produtos
realmente evocam atingem muito profundamente. E atingem a todos. Pois vivem dentro
de nós. Não, esse não é um conto de vampiros. Trata-se de um conto de fada. E o meu
preferido sempre foi A Bela e a Fera. Não deixa de ser irônico.
3.2. Crepúsculo: a reinvenção de um conto de fada
Se condensássemos essa história e inseríssemos palavras como “Era Uma Vez”
ou “E Foram Felizes Para Sempre”, talvez, a ideia central ficasse mais clara para nosso
estudo. Iremos, portanto, reescrever quatro livros em algumas páginas e tentar captar,
resumidamente, a essência de Crepúsculo. Após essa leitura, pensaremos um pouco
melhor sobre ele.
ERA UMA VEZ, em uma cidade muito distante e ensolarada, uma
jovem extremamente branca, de olhos castanhos e cabelos castanhoavermelhados, que vivia com seu mãe. Seu nome era Isabella Swan,
mas ela preferia ser chamada de Bella. Diferente de seus amigos, a
garota era bastante tímida e desajeitada e, por isso, sentia não
pertencer àquele mundo. Até esse momento, Bella nunca havia vivido
nada de especial em sua vida.
Porém, após sua mãe se casar novamente, Bella vai morar com seu
pai, em um lugar bastante chuvoso e escuro. O oposto daquilo que ela
conhecia. Embora a menina gostasse muito do pai, pensou que jamais
se acostumaria com essa nova vida.
Até que um dia ela conhece um grupo de jovens que mudará a sua
história e o seu destino. Eles eram cinco irmãos. Duas meninas (a
72
delicada Alice, cujo rosto parecia o de uma fada, e a linda Rosalie) e
três meninos (o forte Emmet, o enigmático Jasper e o rapaz de
cabelos e olhos cor de caramelo, Edward). Foi por este último, que
Bella se apaixonou.
A princípio, o rapaz parecia querer se afastar dela, mas, aos poucos,
os dois foram ficando grandes amigos. Até que ele confessou o seu
amor. E com isso, teve que confessar também o seu segredo. Edward
era um vampiro. Ele tentou alertá-la do perigo que a jovem corria
ficando ao seu lado, mas Bella não lhe deu atenção.
A menina não se sentiu amedrontada por aquele ser, tão diferente
dela. Ao contrário. Ao descobrir a verdadeira natureza de seu amado,
sentiu-se ainda mais apaixonada e o único medo que enfrentava era o
de perdê-lo a qualquer momento. Por que um ser imortal se
apaixonaria por ela, uma simples garota humana?
Os dias se passaram e as juras de amor se tornaram mais intensas.
Edward não podia mais viver longe dela, mas temia pela sua
fragilidade. Os vampiros de sua família não se alimentavam de
sangue humano, apenas de sangue animal. Mas existiam outros, por
aí, que não poupariam a vida de sua amada.
Certo dia, quando brincavam na floresta, algo terrível aconteceu.
Outros vampiros apareceram por lá: James, Victoria e Laurent. Mas
esses eram diferentes de Edward e sua família. Eram vampiros muito
malvados. Após conversarem durante um tempo, James percebeu que
Bella era uma humana e decidiu que queria matá-la.
Desesperado, Edward decidiu que Bella precisaria abandonar a
cidade o mais rápido possível. Mas a menina só aceita a fuga após ter
certeza que seu pai ficaria a salvo, por isso bola um plano para
enganá-lo. Após simular uma briga com Edward, Bella deixa a casa,
dizendo que nunca mais voltará. Nessa fuga, ela recebe a ajuda de
Alice, que se oferece para levá-la a um lugar seguro.
Após chegarem nesse local, Alice e Bella precisam esperar pelas
notícias de Edward. Enquanto ele e sua família não destruíssem
James, a garota não poderia retornar. Nesse instante, Alice, que tinha
o dom de prever o futuro, tem uma de suas visões e desenha algumas
linhas em um papel. Bella vê o desenho de Alice e o reconhece como
um antigo estúdio onde a mesma praticava ballet. De acordo com
Alice, seria esse o local escolhido por James para matar a menina.
Após algum tempo escondida, Bella recebe um telefonema, no qual
ouve a voz de sua mãe e, logo em seguida a de James. Ele a havia
sequestrado. Para soltá-la com vida, o vampiro diz que a garota
deveria ir sozinha encontrá-lo. Bella, então, concorda com ele,
engana Alice e foge para o estúdio de ballet.
Lá chegando, escuta novamente a voz de sua mãe lhe chamando e
descobre que, na verdade, ela não havia sido sequestrada por ele. Era
apenas uma gravação. O vampiro havia mentido para Bella. A garota
tenta lutar contra ele, mas James a ataca e morde seu pulso, deixando
uma marca de meia-lua e o veneno dentro de seu corpo. Enquanto a
menina agoniza de dor, Edward e sua família chegam para resgatá-la
e destroem James. Após salvarem sua vida, Bella retorna à casa de
seu pai.
73
Preocupado com a garota, Edward percebe que Bella nunca ficará
totalmente segura ao seu lado e resolve afastar-se dela, para que esta
tenha, novamente, uma vida normal. Mas Bella fica inconsolável com
a partida de seu amado, e, em meio a esse desespero, passa por uma
série de provações e perigos, na tentativa de trazê-lo de volta.
Nesse cenário de dor, a garota encontra o apoio de um antigo amigo,
Jacob, um menino de pele queimada pelo Sol e cabelos negros. Ele
era descendente de uma antiga tribo indígena e também guardava
suas próprias histórias, lendas e segredos. Uma delas dizia que seus
ancestrais tinha um poder especial. Quando ameaçados por um
perigo sobrenatural, alguns deles poderiam transformar-se em lobos.
Essa lenda provou ser verdadeira quando Jacob sofreu a mutação.
A garota que amava um vampiro era, agora, amiga de um meninolobo. Bella não se deixou assustar por isso também. Mas, embora a
amizade de Jacob lhe trouxesse conforto, ela não conseguia esquecer
Edward, sentindo-se cada vez mais e mais triste. O que Bella não
sabia, no entanto, era que o lobo também estava apaixonado por ela.
Pressentindo o sofrimento da garota, Alice procura Bella, que lhe
conta o quanto padece longe de seu amado. Nesse momento, Alice tem
mais uma de suas terríveis visões. Dessa vez com Edward. Ela prevê a
morte do vampiro. Bella parte em busca de seu amor e lá chegando
consegue salvá-lo de seu destino, com a promessa de que eles nunca
mais iriam se separar.
Mas, quando retorna a sua casa, Bella encontra-se novamente em
uma situação de perigo. Dessa vez, porque a namorada de James,
Victoria, havia montado um exército de vampiros recém-criados para
matar a menina, uma vingança por Edward ter causado a destruição
de seu amado. No entanto, a família de Edward se alia com Jacob e
os demais lobos para que juntos possam salvar Bella.
A garota decide, então, que não poderia mais ser uma humana frágil.
Ela deveria se tornar aquilo que nasceu para ser, uma vampira. Mas
Edward, acreditando que Bella iria perder a sua alma se isso
acontecesse, resolve aceitar apenas com uma condição: se ela se
casasse com ele.
Bella aceita e o casamento é celebrado. Todos os amigos e familiares
dos noivos são convidados para essa alegre festa. O único que não
parece feliz é Jacob, o menino-lobo, que ainda nutre um sentimento
muito grande pela jovem e não quer que ela se case ou que se
transforme em uma vampira. Mas já estava decidido. E seria feito em
breve.
Bella e Edward partem para sua a lua de mel, em uma bela ilha
praticamente deserta. Lá, no entanto, a garota, ainda em sua forma
humana, engravida de uma criança mestiça: meio mortal e meio
vampira. Embora essa seja uma gravidez muito complicada, Bella
decide que fará de tudo para preservar a gestação. Nem que isso
custe a sua própria vida.
Após semanas de sofrimento, chega o momento do parto. Apenas
Edward e Jacob estavam com Bella no momento e cabe a eles realizálo. Quando o bebê nasce, uma linda menina, chamada Renesmee, o
coração de Bella para de bater por um instante. Mas Edward injeta
74
seu “veneno” de vampiro por todo o corpo da jovem e a mesma
adormece para renascer transformada.
Jacob, o menino-lobo, antes apaixonado por Bella, descobre estar
enganado o tempo todo. A partir de um “imprinting”, uma espécie de
“amor à primeira vista”, ele se apaixona por Renesmee, a criançamestiça, e promete esperar até que a garota tenha idade suficiente
para se casar com ele.
Após dias dormindo, Bella desperta com uma nova aparência. Ela era
agora uma vampira. Ao abrir seus olhos, pela primeira vez, a jovem
vê seu príncipe Edward e tem a certeza que viverá com ele por toda a
eternidade.
Quando tudo em sua vida parecia, novamente, em paz, um novo
problema surge e, dessa vez, seria o pior que eles já haviam
enfrentado. Uma antiga amiga de Edward, a vampira Irina, vê
Reneesme e, acreditando que a pequena menina seja uma criança
imortal, procura uma das mais antigas e poderosas famílias de sua
espécie, os Volturi, para contar a eles a infração cometida.
Insatisfeitos com a garota, os Volturi decidem que ela precisa ser
eliminada. Mais uma vez Alice prevê o que eles planejam fazer e Bella
e Edward resolvem pedir ajuda para outros vampiros.
Após mostrarem para seus amigos que Reneesme era uma criança
meio humana e meio vampira e não uma imortal, como os Volturi
suspeitavam, Edward e Bella conseguem diversos aliados para os
ajudarem. Quando finalmente os Volturi chegam para destruir a
criança, eles descobrem que Irina havia mentido, matando a vampira
e desistindo do proposto.
Finalmente tudo parecia bem. Após diversas provações, Bella estava
segura ao lado de sua família e de sua filha, que, de acordo com
Alice, cresceria saudável e teria Jacob ao seu lado para protegê-la.
E, é claro, ela e Edward, unidos pelo amor, viveriam felizes,
literalmente, para sempre, em sua imortalidade.
Narrada dessa maneira, acredito que tenha sido mais fácil a compreensão da saga
Crepúsculo como um conto de fada. E, ao contrário do que imaginei à primeira vista,
não foi apenas do meu conto favorito que a autora tomou algumas ideias emprestadas.
Ela parece ter se inspirado em vários contos de fada para narrar a sua mitologia
moderna, uma das mais famosas e lucrativas da atualidade7.
A lenda de uma jovem que se apaixona por um vampiro. A narrativa da garota
que deixa-se envolver por um lobo. O conto da donzela desengonçada que recebe ajuda
de uma vampira-fada-madrinha. O mito da menina que, após muitos dias dormindo,
acorda transformada. Definitivamente, a temática da adolescente que vive feliz para
sempre com seu amor. Descrita assim, parece que já ouvimos essa(s) história(s) antes
7
De acordo com o site <www.imdb.com>, os filmes da saga Crepúsculo ultrapassaram a marca de 1
bilhão de dólares de bilheteria, apenas nos Estados Unidos. Acesso em 19 de janeiro de 2014.
75
também. Não ouvimos? Ouvimos sim. Mas, certamente, não as havíamos reconhecido.
Não até agora.
Disfarçada de uma narrativa povoada por vampiros, aqui parece se esconder um
conto de fada que, possivelmente, pode ter sido inspirado por alguns dos mais famosos
que conhecemos. Nas entrelinhas de Crepúsculo encontram-se traços de A Bela e a
Fera, A Bela Adormecida, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, A
Pequena Sereia e, até mesmo, O Patinho Feio. As personagens nos revelam essas
facetas primitivas, ancestrais, enquanto reinventam uma nova história. Uma história que
simula o que realmente parece ser.
Nascida de tantas faces, a série Crepúsculo surge como o auge das reinvenções
dos contos de fada que temos estudado até o momento. Podemos sugerir que ela é
constituída pelos pedaços de outras conhecidas narrativas, responsáveis por alegrar ou
assombrar nosso imaginário, há muito tempo. Narrativas povoadas por heróis e heroínas
que enfrentam diversos perigos para nos alertarem dos nossos próprios perigos. Assim,
esse novo conto é forjado por diversas partes, fragmentos das histórias ancestrais e, em
seu desejo de ser todas, acaba sendo nenhuma, ou melhor, acaba sendo uma colagem de
muitas outras.
Dessa forma, o conto de fada moderno Crepúsculo parece uma tentativa quase
desesperada
pelo
sucesso
de
uma
franquia
que
usa,
para
atrair
seus
leitores/espectadores, temas profundamente enraizados no inconsciente. Vivemos em
um mundo que necessita de histórias, narrativas, lendas, mitos, contos, mas que não
percebe que esses elementos simbólicos estão em todos os lugares, pois vivem dentro de
nós. Em uma história de vampiros se esconde uma “Fera”. A narrativa do bruxo mais
famoso da atualidade abriga um conto maravilhoso. A busca pelo Um Anel oculta o
reino encantado das fadas. Mas esses temas estão aí. Só precisamos reconhecer quando
um deles é tomado emprestado ou usado como fonte de inspiração.
Tentarei, nas próximas páginas, tecer comparações entre essa história e seus
possíveis referenciais, os contos maravilhosos. Há, certamente, muitas personagens que
possam ser abordadas nesse estudo, mas me concentro em quatro em particular: Bella (a
princesa), Edward (o príncipe), Alice (a fada) e Jacob (o lobo). Inicio nossa jornada
com uma história bastante antiga, narrada por Apuleio em seu romance O Asno De
Ouro.
76
3.2.1. Eros e Psique
Quando Psique terminou todas as suas difíceis tarefas, o próprio Júpiter lhe deu
uma dose do elixir da imortalidade; assim, ela se encontra, hoje e sempre, unida
a Cupido, seu bem amado, no paraíso da forma perfeita (CAMPBELL, 2010, p.
120).
Escrito por Apuleio, no século II d.C., esse conto narra a história de uma bela
mortal, Psique, que, de tão bela, desperta a fúria da deusa Afrodite. Esta manda seu
filho, Eros, fazer com que a jovem se case com um monstro. No entanto, o próprio Eros,
atingido por uma de suas flechas, se apaixona pela garota e leva-a, em segredo, para
viver com ele em um magnífico palácio.
Sem poder ver seu amado, Psique acredita que ele seja uma criatura monstruosa,
mas apaixona-se mesmo assim. Este a alerta de que jamais poderá ser visto. Um dia,
porém, a jovem, influenciada por suas irmãs, resolve espioná-lo e descobre que se trata
do deus do Amor.
Inconformado com a traição de Psique, Eros a abandona. Desesperada, a jovem
vaga pelo mundo na tentativa de reconquistá-lo e Afrodite impõe a ela uma série de
tarefas. Na última delas, Psique cai em um sono profundo e Eros vai a seu encontro,
suplicando a Zeus que conceda a imortalidade para a sua amada. Tornada imortal, a
jovem une-se a Eros na eternidade e, juntos, eles geram uma filha, cujo nome é Prazer.
Acredito que sejam inúmeras as comparações que podemos tecer entre esse belo
conto e a narrativa moderna povoada por vampiros. Aqui, também temos uma jovem
mortal, Bella, que se apaixona por um ser imortal, o vampiro Edward. Ele, assim como
Eros, também a abandona. Ela também passa por uma série de provações. Cai em um
sono profundo e, por fim, torna-se imortal, como a alma de Psique. E, claro, o casal
também tem uma filha.
Embora seja bem clara a identificação de Bella com Psique, é com a relação
Edward/Eros que devemos aqui nos ocupar mais detalhadamente. Se, na série de livros,
essas semelhanças já parecem ser evidentes, já que o vampiro é sempre mostrado em
uma posição superior à da garota, indicando que ele seja uma criatura diferente, um ser
imortal, praticamente um deus, nos filmes elas tornam-se ainda mais precisas.
Em uma das cenas, Edward aparece com um par de asas, uma possível referência
a Eros. Aparentemente, elas pertenciam a uma coruja empalhada, presente na sala de
aula, mas, devido à marcação dos atores em cena, elas se tornam parte do deus dessa
história. Assim, o público vê as asas, mas não sabe a qual anjo ela pertence.
77
Figura 1: Cena extraída do primeiro filme da saga Crepúsculo
Eros e Psique reflete, portanto, a linha central da narrativa moderna e revela a
primeira das faces da heroína Bella e do deus-vampiro Edward. Vejamos, outros
exemplos que possam ter influenciado na construção de Crepúsculo, começando por um
famoso conto de fada inspirado por essa história, A Bela e a Fera.
3.2.2. A Bela e a Fera
A Fera desaparecera e tudo o que a Bela viu a seus pés foi um príncipe mais
belo que o amor, que a agradeceu por ter desfeito seu encantamento. Embora o
príncipe merecesse toda a sua atenção, Bela não pôde deixar de perguntar onde
estava a Fera (BEAUMONT apud MACHADO, 2010, p. 117).
Bella e Bela têm mais em comum do que apenas seu nome. O amor que as
garotas nutrem por um monstro, uma Fera, determina a sua principal característica.
Ignorando a aparência ou a condição do ser amado, ambas descobrem que seus
“príncipes” são diferentes do que aparentam ser e devem aprender a amá-los para que
suas verdadeiras faces possam ser reveladas.
No conto escrito por Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, em 1757,
conhecemos a história de Bela, uma jovem que troca de lugar com seu pai e se torna
prisioneira de uma terrível Fera. No entanto, esse “monstro”, era, na verdade, um
príncipe que recebera a maldição de uma feiticeira e, apenas quando aprendesse a amar
e ser amado, esse encantamento poderia ser quebrado. Com o amor de Bela, a Fera é
78
transformada e retorna à sua forma original. Mas a garota também sofre uma
modificação. Ela passa a amar além das aparências, transforma-se em uma princesa e
vive com seu príncipe, feliz para sempre.
Em Crepúsculo, a saga escrita entre 2005 e 2008, re/conhecemos a história de
Bella, uma jovem que se muda para a casa seu pai, em uma pequena cidade. Deslocada
por ser nova nesse lugar, a garota pensa que jamais irá se adaptar, até que conhece um
vampiro, Edward, e se apaixona por ele. Ignorando o fato de que o mesmo seja uma
criatura perigosa, a jovem inicia uma longa jornada na luta pelo seu amor. Por fim,
acontece a transformação que a torna também uma vampira e possibilita que os dois
vivam felizes para sempre.
No original, A Bela e a Fera, conhecemos, portanto, uma garota que, após o
convívio com um monstro, passa a enxergar por baixo de sua aparência amedrontadora
e descobre que ele é um ser bondoso. Na reinvenção dessa história, Crepúsculo, vemos
a história de uma menina que se apaixona por um vampiro e descobre que, por baixo de
sua condição amedrontadora, ele também é um ser bondoso. Ou seja, temos aqui a
mesma história. Recontada e modificada. Mas a mesma história.
A “linda menina órfã de mãe” é trocada por uma “bela garota, filha de pais
separados”. A “Fera”, um monstro terrível, é substituída por “Edward”, um vampiro.
Descrito como se fosse de outra época, por sua fala, gestos e escrita, Edward, um ser
imortal de 111 anos, esconde as características de um príncipe. Mas a Fera antiga
também não o fazia?
Afinal, o personagem original era um ser muito bondoso e romântico. Após
conhecer e se apaixonar por Bela, o mesmo se declara para a jovem, como fica evidente
no trecho “a amo muito e, seja como for, fico muito feliz por aceitar permanecer aqui.
Prometa que não me deixará” (BEAUMONT apud MACHADO, 2010, p. 112) ou em
“preferiria morrer a fazê-la sofrer” (BEAUMONT apud MACHADO, 2010, p. 112).
O romantismo presente em Edward, nossa Fera moderna, também pode ser
comprovado por inúmeros exemplos. Frases como “agora você é a minha vida”
(MEYER, 2008, p. 249) ou “o tempo todo sem perceber o que eu procurava. E sem
encontrar nada, porque você ainda não estava viva” (MEYER, 2008, p. 240) são apenas
algumas das mais significativas que preenchem as páginas dessa saga.
O que aqui se inverte, no entanto, é a aparência desses personagens. Longe de
ser um monstro horrível, o vampiro é muito atraente, tão perfeito que Bella até mesmo
duvida de sua existência, descrevendo-o como “lindo demais para ser real” (MEYER,
79
2008, p. 208). Uma referência, portanto, ao deus em que o vampiro e a Fera se inspiram,
Eros.
Quanto à maldição imposta sobre os “monstros”, as semelhanças são também
bastante claras. Assim como o príncipe que sofre um feitiço e se torna uma Fera,
Edward recebe uma maldição quando se torna um ser imortal. A alma de ambos parece
apenas ser restituída com o encontro do amor. O amor de Bela pela Fera devolve a sua
alma na forma de sua humanidade. E o amor de Bella por Edward também a restitui, na
essência de sua união, quando Bella se torna uma vampira e os dois permanecem juntos.
Os temas da mudança de forma (humana-vampira) e da conquista da alma,
porém, não se limitam a essa narrativa e nos remetem a outra importante representante
dos contos de fada, uma jovem sereia idealizada por Hans Christian Andersen.
3.2.3. A Pequena Sereia
A Pequena Sereia foi gostando cada vez mais dos seres humanos e ansiava
profundamente pela companhia deles. O mundo em que viviam parecia tão
maior que o seu próprio (ANDERSEN apud MACHADO, 2010, p. 225).
Escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, o clássico conto A Pequena
Sereia narra a história de uma linda e curiosa sereia que deseja conhecer a superfície.
Apenas em seu aniversário de 15 anos, porém, ela consegue realizar seu sonho. Nesse
cenário ela vê um belo príncipe e apaixona-se por ele. Com o desejo de se tornar
humana e, com isso, adquirir uma alma para viver com seu amado na eternidade, a
jovem faz um acordo com a Bruxa do Mar. Em troca de sua voz, a Pequena Sereia
conquista um par de pernas, mas não seu príncipe. Desolada pela falta de amor, a garota
atira-se no oceano, tornando-se espuma do mar e, posteriormente, brisa do ar, com a
missão de espalhar alegria entre os seres humanos e, por fim, conquistar uma alma.
Assim como no conto de fada A Pequena Sereia, em Crepúsculo, Bella também
irá abandonar sua condição original para se tornar uma criatura mais parecida com seu
príncipe. A sereia de Andersen torna-se humana e a humana de Meyer torna-se vampira,
em uma mudança de natureza justificada pelo amor.
A Pequena Sereia precisa assumir a forma humana para ser amada e, com isso,
adquirir uma alma que possibilite a união com seu príncipe na eternidade. Bella não
quer envelhecer e morrer, mas manter-se para sempre jovem ao lado de Edward, seu
príncipe-vampiro. Ambas têm, portanto, um desejo bastante semelhante, baseado no
80
conceito de imortalidade. Enquanto, na primeira, esse anseio parece mais poético,
simbolizado por uma alma, com Bella, a situação é bem mais literal, já que bastaria que
a mesma se transformasse em uma vampira.
Mas essa transformação iria custar justamente a poesia presente no conto que
essa série possivelmente se inspira, já que a alma da humana seria perdida. Se a
Pequena Sereia se transforma em uma humana na tentativa de buscar sua alma, Bella
perderia a sua quando se tornasse um ser imortal. Esse é o ponto crucial que faz Edward
resistir na mudança da garota, justificada pelos argumentos presentes no segundo livro
da série: “Todos dizem que somos amaldiçoados (...) Deus e o paraíso existem... e o
inferno também. Mas ele não acredita que haja outra vida para a nossa espécie (...)
perdemos nossa alma” (MEYER, 2008, p. 40).
Haveria apenas uma condição que faria o vampiro aceitar a mudança de Bella: o
casamento. Se a garota se casasse com ele, o mesmo a transformaria. Mais um ponto de
semelhança entre Crepúsculo e o conto de Andersen, já que para adquirir uma alma o
casamento também seria um passo essencial neste último, como a avó da sereia assim
coloca:
Só se um ser humano a amasse tanto que você importasse mais para ele que pai
e mãe. Se ele a amasse de todo o coração e deixasse o padre pôr a mão direita
sobre a sua como uma promessa de ser fiel agora e por toda a eternidade – nesse
caso a alma dele deslizaria para dentro de seu corpo e você, também, obteria
uma parcela da felicidade humana. Ele lhe daria uma alma e, no entanto,
conservaria a dele próprio (ANDERSEN apud MACHADO, 2010, p. 227).
Dessa forma, o amor do humano pela sereia, simbolizado pela união presente no
ritual do casamento, possibilitaria que ela adquirisse uma alma e que os dois ficassem
juntos para sempre, na eternidade. Em Crepúsculo, a proposta do casamento, a regra
imposta por Edward, é assim proferida: “Isabella Swan? Prometo amá-la para sempre...
a cada dia da eternidade. Quer se casar comigo?” (MEYER, 2009, p. 329).
Parece, portanto, que, na união com Edward, a alma de Bella não seria perdida.
Quem sabe, talvez, não tenha deslizado para dentro dele e o vampiro assim tenha
recuperado a sua própria? Já que, ao contrário do conto clássico, aqui, o final feliz existe
e é idealizado pelas palavras “E assim, alegremente, continuamos aquele parte pequena
e perfeita de nossa eternidade” (MEYER, 2009, p. 567). Não há mais provações
impostas à nossa sereia moderna. Ela conquistou o mundo que desejava, o dos
vampiros, deixando o seu próprio para trás.
81
Mas será que aquele era mesmo o seu mundo? Já que a menina sempre pareceu
tão deslocada e desajustada, podemos considerar que ela nasceu para ser uma vampira.
Esse era o seu destino. Bella é uma garota que não se encaixava em lugar nenhum
porque esse não era o seu verdadeiro ambiente. Não é por acaso que seu sobrenome seja
Swan.
3.2.4. O Patinho Feio
Mas o que descobriu ele na clara superfície da água sob si? Viu sua própria
imagem, e não era mais uma ave desengonçada, cinzenta e desagradável de se
ver - não, ele também era um cisne (ANDERSEN apud MACHADO, 2010, p.
202).
Também de Hans Christian Andersen, a história do patinho que era discriminado
por ser diferente dos demais é bastante poética. Aqui, conhecemos um animalzinho que,
de tão feio, foi rejeitado por sua própria mãe e irmãos. Vivendo sempre viajando, pois
era expulso dos lugares, por causa de sua aparência, o mesmo passa por difíceis
situações, sendo “mordido pelos patos, bicado pelas galinhas, chutado pela criada que
dá comida às aves, ou sofrendo penúria no inverno” (ANDERSEN apud MACHADO,
2010, p. 202). Até que um dia descobre que não era um pato, mas um belo e encantador
cisne. Sua aparência distinta indicava que ele era de outra espécie, talvez, a mais bonita
das aves. E, assim, reconhecendo sua verdadeira natureza, ele sentiu-se muito feliz.
Facilmente reconhecível em Crepúsculo, essa personagem aparece como uma
das facetas de Bella Swan, a jovem que não nasceu para ser uma humana, um patinho;
mas para ser uma vampira, um cisne. Utilizada como uma metáfora pelo fato da garota
também ser distinta dos demais, sempre desajeitada e desastrada, a história do patinho é
aqui recriada indicando que Bella pertence a outra espécie. No primeiro livro da série
isso fica evidente, como no seguinte trecho:
Eu não me relaciono bem com as pessoas da minha idade. Talvez a verdade seja
que eu não me relaciono bem com as pessoas, e ponto final. Até a minha mãe,
de quem eu era mais próxima do que qualquer outra pessoa do planeta, nunca
esteve em sintonia comigo, nunca esteve exatamente na mesma página. Às
vezes eu me perguntava se via as mesmas coisas que o resto do mundo. Talvez
houvesse um problema no meu cérebro (MEYER, 2008, p. 18).
82
Ela precisa se tornar quem nasceu para ser. Encontrar o seu lugar no mundo. E
esse lugar não é entre os humanos, mas entre seus semelhantes, os seres-imortais. Como
vampira, a garota desastrada e apenas bonita, torna-se uma mulher linda, de
movimentos precisos e controle invejável. Quando se olha no espelho, pela primeira vez
após a transformação, Bella assim descreve a sua aparência:
A criatura estranha no espelho era indiscutivelmente bonita (...) Ela era fluida
até mesmo imóvel, e seu rosto imaculado era pálido como a lua, em contraste
com a moldura do cabelo escuro e pesado. Seus braços e suas pernas eram lisos
e fortes, a pele cintilava um pouco, luminosa como uma pérola (MEYER, 2009,
p. 310).
Além disso, após a sua mudança, ou melhor, após descobrir sua verdadeira
natureza, Bella ainda terá poderes especiais e será capaz de produzir uma espécie de
“escudo” com sua mente, capaz de proteger a todos que ama, entre os quais seu
príncipe-vampiro, seu melhor amigo lobo e sua filha-mestiça.
E é essa filha, aliás, que irá fornecer os indícios que precisamos para continuar
tecendo nossas comparações e desfazendo a trama de referências, metáforas e citações
que permeiam essa obra moderna de toque primitivo, ancestral. A filha de Bella e
Edward, Renesmee, será a responsável por fazer a protagonista morrer e renascer. E
esse é um dos temas mais antigos das nossas narrativas, àquele por qual quase todos os
heróis passam: o sono profundo.
3.2.5. A Bela Adormecida
Ainda restava um desejo a conceder para a menina, e, embora a feiticeira não
pudesse suspender o feitiço maligno, podia abrandá-lo. Assim, ela disse: “A
filha do rei não morrerá, cairá num sono profundo que durará cem anos”
(GRIMM apud MACHADO, 2010, p. 122).
Existem diversas versões dessa narrativa, mas voltarei até a de Basílio, chamada
de O Sol, a Lua e Tália para seguir com esse quadro de alusões que a série Crepúsculo
faz aos contos maravilhosos. A história mostra-se bastante semelhante com as versões
de Perrault ou Grimm, mas é a inclusão de filhos que irá nos interessar aqui.
A antiga narrativa trata de uma bela jovem que, no dia de seu batizado é
amaldiçoada por uma malvada feiticeira. Ao completar 15 anos, a garota iria espetar seu
dedo no fuso de uma roca e morreria. Alterado por uma fada boa, o feitiço da morte se
83
transforma em feitiço do sono. Com isso, Bela Adormecida e todo o reino dormiriam
por cem anos e após esse período, despertariam.
Na versão mais difundida, Bela Adormecida acorda, após cem anos, com um
beijo de amor de seu príncipe encantado, mas, no conto de Basílio, a garota só desperta
após ter dois filhos gêmeos (Sol e Lua, uma referência a Apolo e Ártemis, deuses da
mitologia grega). Faminta por sua mãe estar desacordada, uma das crianças suga a farpa
envenenada do dedo de Tália, que renasce de seu sono profundo indo, posteriormente,
ao encontro do pai das crianças, o monarca de um reino distante.
Em Crepúsculo também teremos uma criança. Grávida de um ser mestiço (meio
humano, meio vampiro), Bella espera até o nascimento de sua filha para ser
transformada. Fraca, pelas complicações de sua gestação, a heroína morre, já que seu
coração para por alguns segundos (maldição da morte), sendo reanimada pelo “veneno”
de seu amado, que irá trazê-la de volta à vida após o sono profundo (maldição do sono).
Esse é o momento de morte e renascimento, responsável pelo retorno transformado da
heroína moderna.
Durante esse período, Bella sofre terríveis dores com a modificação imposta a
seu corpo. Aquela humana deveria morrer para a vampira renascer. Após dias
dormindo, embora a jovem não soubesse exatamente o quanto, “poderiam ter sido
segundos ou dias, semanas ou anos” (MEYER, 2009, p. 292), ou, quem sabe, cem anos,
como indica o feitiço original, o “veneno” de Edward faz efeito e a transformação
acontece. Inspirada pela princesa, agora é Bella quem deve despertar.
No entanto, enquanto ainda dorme, a jovem nos fornece mais alguns indícios
que podem comprovar a inspiração da autora e, quem sabe, conduzir o público nessa
jornada pelo reino encantado dos contos de fada. Afinal, a figura de Bella (adormecida),
proposta pelo filme, tão delicada e serena nos faz lembrar de outra imagem, uma
fornecida pela Disney na animação A Bela Adormecida, como pode ser comprovado
pelas imagens a seguir.
84
Figura 2: Cena extraída da quarta parte da saga Crepúsculo: Amanhecer Parte I
Figura 3: Cena extraída da animação A Bela Adormecida
Como podemos verificar nessas cenas, até mesmo as cores e os detalhes parecem
se manter. O azul do vestido, os lábios levemente pintados, os cílios realçados, o cabelo
caindo pelo corpo. Mas isso deve ser, provavelmente, apenas uma coincidência. Para
quem acredita nelas, é claro. Outra coincidência? O termo “veneno”.
85
3.2.6. Branca de Neve
Quem me dera ter uma filha branca como a neve, vermelha como o sangue e
negra como esse batente da janela. Pouco tempo depois ela deu à luz uma
menina, branca como a neve, vermelha como o sangue e preta como o ébano, e
que por isso foi chamada de Branca de Neve (GRIMM, 2012, p. 247).
Imortalizado pela compilação de histórias reunidas por Jacob e Wilhelm Grimm,
o clássico conto Branca de Neve narra a jornada de uma jovem garota que, por ser mais
bonita que sua mãe (ou madrasta, nas adaptações mais recentes), é perseguida pela
mesma. Não suportando a beleza da garota, a Rainha deseja matá-la e, para isso, ordena
que o caçador arranque seu coração.
Sem coragem para executar tal tarefa, o criado retorna com o coração de um
animal, enganando a malvada mulher, e Branca de Neve encontra refúgio na casa de
sete anões. Quando a Rainha descobre que havia sido enganada, resolve ela mesma
matar a menina e vai até o lar dos anões, disfarçada de uma velha senhora. Ao oferecer
alguns itens envenenados, a mulher consegue enganar a jovem que, após morder uma
maçã, cai em um sono profundo. Mas, com a chegada de um belo príncipe, Branca de
Neve volta à vida e o final feliz acontece.
Na descrição da personagem central, já sabemos que alguns elementos desse
conto serão utilizados em Crespúsculo, afinal, Bella é extremamente branca, como
aponta sua descrição: “olhei meu rosto no espelho enquanto escovava o cabelo úmido e
embaraçado. Talvez fosse a luz, mas eu já parecia mais pálida, doentia. Minha pele
podia ser bonita – era muito clara, quase translúcida –, mas tudo dependia da cor. Não
tinha cor nenhuma ali” (MEYER, 2008, p. 18). Isso não seria o mesmo que dizer que a
menina era “branca como a neve”?
Mas as referências não se limitam à descrição física da personagem central.
Existem outros motivos aqui que podem servir de exemplo para a possível fonte de
inspiração da autora Stephenie Meyer. Um observador mais atento poderia perceber que
a capa do primeiro livro da saga Crepúsculo traz uma maçã, ou seja, uma lembrança
desse conto. No entanto, a primeira citação da obra8 nos remete a uma passagem bíblica,
referente à história de Adão e Eva, e do fruto proibido, que costuma ser representado
por uma maçã. Pensemos, então, um pouco mais além.
8
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis
para que não morrais. Gênesis, 3:3 (MEYER, 2008, p. 9).
86
O indício mais claro que liga o conto de fada moderno ao conto de fada antigo
reside no veneno. Três foram as tentativas da Rainha Má, a mãe de Branca de Neve,
para matar a menina. Um cordão envenenado, um pente envenenado e, finalmente, a
maçã envenenada. Na terceira chance, a malvada mulher consegue concretizar seu plano
e a garota cai desacordada, porque se engasga. Todos a julgavam morta, mas graças a
chegada de seu príncipe encantado, a jovem renasce e desperta de seu sono.
Há ainda uma versão celta desse conto, retratada na compilação de Joseph
Jacobs, Celtic Fairy Tales (1970), intitulada Árvore Dourada e Árvore Prateada em que
a mãe da jovem também consegue, depois de algumas tentativas, envenená-la. A garota,
assim como Branca de Neve, desperta anos mais tarde. Sendo assim, é sobre o veneno
que devemos refletir.
Em Crepúsculo, esse é justamente o substantivo escolhido para representar a
transformação da garota em vampira, é ele o “antídoto” para sua morte. Uma vez que
Edward insere seu “veneno” em Bella, a jovem irá sofrer uma mudança, morrendo
como humana e renascendo como vampira.
Mas por que a autora teria escolhido esse termo? Por que a palavra “veneno” e
não outra qualquer? Ora, porque, provavelmente, nossa princesa moderna também
deveria ser envenenada para renascer. Se ela já havia se apaixonado por um monstro e
sofrido a maldição do sono, o veneno também parece um elemento bastante importante
em sua jornada, guiada pelas princesas originais. E, claro, Branca de Neve não poderia
deixar de aparecer por aqui.
Se, no conto dos Grimm, a maçã envenenada foi a responsável por fazer com
que Branca de Neve caísse em um sono profundo, sendo resgatada por seu príncipe
encantado, em Crepúsculo o mesmo teria que acontecer. Após o nascimento de sua
filha, o “veneno” de Edward será injetado em seu coração, sendo o agente
transformador da mudança da garota em vampira, o que propiciará o tão sonhado final
feliz.
Mas essa mudança, aguardada ansiosamente pelo público, já havia sido prevista
por sua fada madrinha. Ou alguém imaginava que essa colagem contemporânea dos
contos maravilhosos não teria justamente uma representante das fadas?
87
3.2.7. Cinderela
Bastou que a madrinha a tocasse com sua varinha, e no mesmo instante suas
roupas foram transformadas em trajes de brocado de ouro e prata incrustados de
pedrarias. Depois ela lhe deu um par de sapatinhos de vidro, os mais lindos do
mundo (PERRAULT apud MACHADO, 2010, p. 24)
De todas as versões de Cinderela, creio que a mais conhecida seja a de Charles
Perrault, já que cabe a este escritor a inserção de um elemento bastante especial para a
narrativa: o famoso sapatinho de cristal. Esse conto expõe a história de uma linda
menina desprezada pelas meias-irmãs e pela madrasta, sendo obrigada a trabalhar como
uma empregada em sua própria casa.
Certo dia, o príncipe organiza um baile para encontrar uma noiva e as irmãs de
Cinderela a impedem de ir. Muito triste, a menina recebe a visita de sua Fada Madrinha,
que lhe presenteia com lindos trajes e um sapatinho de cristal, para que, assim, ela possa
realizar seu desejo. Mas Cinderela deveria voltar antes da meia-noite.
Encantado com a beleza da menina, o príncipe acredita ter encontrado sua noiva,
mas Cinderela foge dele na hora combinada, deixando para trás apenas seu sapatinho.
Será este o responsável por fazer com que ele reencontre a garota e os dois vivam
felizes para sempre.
Em Crepúsculo, não existe uma malvada madrasta. Nem tampouco irmãs
invejosas (embora Bella possua duas amigas que cumpririam muito bem esse papel).
Mas há, sem dúvida, uma fada madrinha nessa história. Seu nome é Alice Cullen, a irmã
adotiva de Edward e a responsável por prever o futuro de todos, alertando-os dos
perigos e salvando-os com seus poderes especiais.
Não há nenhum mistério aqui, já que Alice é assim descrita logo em sua primeira
aparição “a menina baixa parecia uma fada, extremamente magra, com feições miúdas.
O cabelo era de um preto intenso, curto, picotado e desfiado para todas as direções”
(MEYER, 2008, p. 24). Em outra de suas descrições, a fada é comparada a um elfo:
“Alice – o cabelo curto e escuro em um halo desfiado em torno do seu rosto incrível de
elfo” (MEYER, 2008, p. 197).
Dotada de poderes especiais, como prever o futuro, a fada/elfo Alice possui um
fator determinante em toda a narrativa. Em cada uma das obras ela desempenhará um
papel fundamental. No primeiro livro, Crepúsculo, ela é a responsável por salvar a
menina ao descobrir o local de sua possível morte. Na segunda obra, Lua Nova, ao
88
perceber que Bella estava em situações de perigo a mesma vai ao seu encontro, sendo
ainda a responsável por reuni-la novamente com Edward. Em Eclipse, Alice prevê a
volta de uma antiga inimiga e ajuda no treinamento de alguns parceiros inesperados. E,
finalmente, em Amanhecer é, por meio de sua visão, que uma guerra entre vampiros não
será desencadeada.
Além disso, há ainda em Alice o dom comum à fada de Cinderela, de presentear
a menina com vestidos de baile. Assumindo o papel de Fada Madrinha, cabe à vampira
vestir a personagem para a festa de formatura e para seu casamento, a condição exigida
para que a garota deixasse de ser uma simples mortal, uma simples Gata Borralheira, e
virasse uma vampira, uma princesa. Mas Bella não precisaria voltar antes da meia-noite.
Afinal, esse feitiço não poderia ser quebrado.
Assim, essa personagem assume algumas das características que uma fada pode
ter, tanto em sua descrição física, quanto em suas ações, tornando-se uma figura central
para a narrativa. Mas esse não é o único ser encantado que temos em nossa história
moderna. Há aqui também outro personagem bastante conhecido por todos, o lobo mau.
3.2.8. Chapeuzinho Vermelho
Sua avó mora muito longe? ─ perguntou o lobo.
Ah! Mora sim ─ respondeu Chapeuzinho Vermelho ─ Mora depois daquele
moinho lá longe, bem longe, na primeira casa da aldeia (PERRAULT apud
MACHADO, 2010, p. 78).
O conto de fada Chapeuzinho Vermelho narra a história de uma linda menina
que, ao visitar a sua avó, depara-se com um lobo no meio da floresta. Embora alertada
pela sua mãe, a garota conversa com o animal, contando-lhe o caminho da casa da
vovozinha. Chegando antes que a jovem, o lobo mau ilude a pobre velhinha, que é
devorada. Quando Chapeuzinho Vermelho finalmente entra na casa de sua avó nota que
ela está mudada. Seus olhos, orelhas, braços e boca estão maiores e a menina descobre
que foi enganada pelo lobo, sendo engolida por ele também. Na versão de Charles
Perrault, o conto acaba por aqui, mas os Irmãos Grimm acrescentam um caçador que
salva as duas da barriga do animal, trocando-as por pedras e, assim, castigando o lobo.
Mas antes de falarmos deste animal, não podemos deixar de citar a importância
que a floresta (cenário bastante comum nos contos de fada) também desempenha nessa
saga. O estudioso de contos maravilhosos Vladimir Propp (2002, p. 55) afirma que:
89
O herói do conto – seja ele um príncipe, uma órfã expulsa ou ainda um soldado
fugitivo – infalivelmente vai dar em uma floresta, onde começam suas
aventuras. A floresta nunca é descrita com detalhes. Ela é densa, escura,
misteriosa, um pouco convencional, não totalmente verossímil.
Em Crepúsculo, a floresta também se apresenta como um elemento central,
aparecendo como a paisagem para algumas importantes passagens dessa narrativa.
Assim, podemos recordar que Bella vive na frente de uma floresta. Aliás, a cidade em
que ela mora é descrita como extremamente verde e chuvosa. A casa dos vampiros
também se encontra na floresta. É nesse espaço que Edward conta para a jovem o seu
segredo. Ou ainda que ela descobre que Jacob é um lobo. É aqui também que o vampiro
a abandona e que Bella é perseguida e salva diversas vezes.
Devemos ainda considerar que alguns dos mais marcantes eventos dessa história,
representados pelos ritos de passagem da heroína, acontecem na floresta. Nesse cenário,
Bella se casa com Edward. E cumpre, após o nascimento de sua filha, o ritual de morte e
renascimento, transformando-se em vampira. Propp indica a importância desse
elemento nos contos quando afirma que “a ligação entre o rito de iniciação e a floresta é
tão sólida e constante que é verdadeira também em sentido inverso. Toda vez que o
herói se encontra na floresta surge o problema da relação entre o assunto apresentado e
o ciclo iniciático (PROPP, 2002, p. 55)”.
Voltemos, agora, ao lobo. Ao lermos ou ouvirmos a história de Chapeuzinho
Vermelho é comum que nos perguntemos: mas por que a menina deu o endereço de sua
avó para o lobo mau? No entanto, talvez a resposta mais simples, mas também a mais
cruel seja: porque ela quis. Chapeuzinho Vermelho, como bem claro fica a leitura do
poema final de Charles Perrault9, deixa-se seduzir pelo lobo. Assim como Bella.
A princípio Bella é apenas amiga de Jacob, o menino-lobo da história. Ele não
representa um lobisomem, mas um ser humano com a capacidade de se transformar em
um animal, nesse caso, um lobo, como fica evidente na descrição a seguir:
9
“Vemos aqui que as meninas, /E sobretudo as mocinhas /Lindas, elegantes e finas, /Não devem a
qualquer um escutar./ E se o fazem, não é surpresa/ Que do lobo virem jantar./ Falo "do" lobo, pois nem
todos eles/ São de fato equiparáveis./ Alguns são até muito amáveis,/ Serenos, sem fel nem irritação./
Esses doces lobos, com toda educação,/ Acompanham as jovens senhoritas/ Pelos becos afora e além do
portão./ Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,/ São, entre todos, os mais perigosos” (PERRAULT,
apud MACHADO, 2010, p. 82).
90
O lobo mais próximo, o castanho-avermelhado, virou a cabeça devagar ao me
ouvir arfar. Seus olhos eram escuros, quase pretos. Ele me fitou por uma fração
de segundo, o olhar profundo parecendo inteligente demais para um animal
selvagem. Enquanto aquilo me olhava, de repente pensei em Jacob - de novo
com alívio (MEYER, 2008, p. 199).
Inimigo mortal dos vampiros, esse seres são descendentes de lobos.
Representados pela tribo indígena quileute, eles mudam de forma quando necessitam
defender o mundo dos seres imortais. Entre eles, está o vampiro Edward. Assim, já
podemos perceber que há uma tensão entre os personagens desde a primeira obra. Os
inimigos ancestrais desejam a mesma garota.
Após a separação de Bella e Edward (que se afasta da jovem para protegê-la),
esta se aproxima de Jacob e acaba tendo sentimentos mais fortes que somente uma
amizade por ele. Apaixonada pelo vampiro, há algo dentro dela que também deseja o
lobo. Há algo dentro dela que indicaria ao lobo o caminho da casa de sua avó ou que
pediria um beijo apaixonado, como acontece no terceiro livro da saga:
Meus dedos agarraram seu cabelo, mas eu agora o puxava para mais perto. Ele
estava em toda parte. O Sol penetrante tornou minhas pálpebras vermelhas, e a
cor combinava com o calor. O calor estava em toda parte, eu não conseguia ver
nem sentir nada que não fosse Jacob. (...) Jacob tinha razão. Teve razão o tempo
todo. Ele era mais do que apenas meu amigo. Por isso era tão impossível me
despedir dele - porque eu estava apaixonada por ele. Também. Eu o amava,
muito mais do que devia e, no entanto, ainda não era o bastante (MEYER, 2009,
p. 377).
Não. Não seria mesmo o bastante. Decidida pelo vampiro, Bella abandona o
lobo. Mas a autora, sempre em busca de um final feliz, soluciona esse problema, com
uma saída simples e previsível. O lobo sofre um “imprinting”, uma espécie de “amor à
primeira vista” pela filha recém-nascida de Bella, sua ex-amada, e de Edward, seu
inimigo, nascendo, assim, outra história de amor entre Jacob, o lobo, e Renesmee, a
criança. Outra reinvenção de Chapeuzinho Vermelho.
Claro que, a partir de uma das visões da fada Alice, podemos entender que essa
será a nova heroína, de um possível e reformulado novo conto de fada moderno. Afinal,
Bella e Edward já são felizes para sempre, não precisamos saber mais nada a respeito
deles.
Mas e Renesmee e Jacob? O que acontecerá com esses personagens? Bem, essa
já é outra história. Ou será ela a mesma? Afinal o lobo não pode ser interpretado
também como uma Fera?
91
Talvez aquela aflição e inquietação estejam voltando a me assombrar. Mas
agora, ao menos, já saberei onde procurar, pois a resposta se encontra em algum lugar
dentro de mim, bem lá no fundo da minha alma, quando ela se encontra encantada. E,
novamente, Ariadne estará lá para me oferecer seu fio. Ela estará lá para me guiar nesse
novo/velho labirinto.
Aliás, se pensarmos bem, essa inquietação, provavelmente, já voltou a perturbar
a nossa mente. Ou será que ninguém ainda percebeu que um novo fenômeno mundial, o
best seller Cinquenta Tons de Cinza, que este ano ganha uma adaptação para o cinema,
pode ser considerado uma reinvenção de A Bela e a Fera? Ou do Barba Azul?
Poderia uma “ficção erótica” esconder um conto de fada? Claro que poderia. E
claro que escondeu. Ou alguém duvida que o sedutor Christian Grey talvez seja uma
releitura de Eros, Fera e Edward? E que a jovem e inocente Anastasia Steele pode ser
outra das faces de Psique, Bela e Bella?
3.3. Desconstruindo Crepúsculo
Ora, se as personagens nos revelaram diversos aspectos dos contos de fada,
ainda faltaria a estrutura de Crepúsculo para ser desvendada. Responsáveis por perceber
a ocorrência dos mesmos esquemas narrativos em histórias de povos que dificilmente
poderiam ter mantido qualquer tipo de contato entre si, Joseph Campbell, a partir de sua
famosa “Jornada do Herói”, e Vladimir Propp, com suas “Funções dos Contos
Maravilhosos”, aparecem como nomes fundamentais para essa etapa da dissertação.
A personagem central dessa história, Bella representa a típica heroína de um
conto de fada e sua trajetória será a mesma que as das outras tantas que a precederam. A
linha central da saga adequa-se ao tema do Monomito, proposto por Campbell em sua
obra O Herói de Mil Faces (2010), e composto, essencialmente, por três estágios: a
Partida (onde o herói será apresentado), a Iniciação (lugar em que sua aventura irá
acontecer) e o Retorno (simbolizado pela volta transformada do herói).
Para este autor, se procurarmos nas diversas narrativas de todo o mundo, mais
especificamente, nos mitos e contos de fada, encontraremos sempre a mesma história e
o mesmo herói. Os detalhes físicos e culturais podem variar, mas a essência de sua
jornada é semelhante. Assim, temos que:
O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula
representada nos rituais de passagem: separação – iniciação – retorno, que podem
92
ser considerados a unidade nuclear do monomito. Um herói, vindo do mundo
cotidiano se aventura em uma região de prodígios sobrenaturais; ali ele encontra
fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa
aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes (CAMPBELL,
2010, p. 36).
A heroína de Crepúsculo, Bella, também cumpre esse papel. Há o tema da
Separação quando a garota é apresentada em seu mundo, mas percebe não fazer parte
dele. Aqui, ela, assim como indica Campbell, recebe um chamado à aventura, quando
conhece os vampiros e percebe que deverá sair de seu lar para adentrar em um novo
mundo. Também nesse primeiro momento, Bella encontra seu mentor, sua fadamadrinha, Alice, que lhe fornece o auxílio sobrenatural com suas visões. A jovem passa
pelo primeiro limiar ao se deparar com os vampiros do mal e entra no ventre da baleia,
quando enfrenta seu oponente, James.
A Iniciação acontece quando Edward a abandona e Bella, a exemplo de Psique,
enfrenta um caminho de provas para recuperar seu amado. Essas provações irão incluir
uma amizade inesperada com um menino-lobo e mais um duelo com uma antiga rival.
Já tendo passado por esses perigos, virá a apoteose, com o casamento que a unirá para
sempre ao seu amado, e a benção última, simbolizada por sua gravidez.
Chega, portanto, o momento do Retorno da heroína. Após passar por uma morte
e renascimento, Bella desperta como uma vampira, mudando o destino de todos a sua
volta.
Seguindo uma linha de estudo comparativo semelhante à de Campbell, mas
voltada exclusivamente aos contos, Propp também identifica algumas particularidades
pertencentes a essas histórias, que ele denomina como maravilhosas ou “contos de
magia no sentido exato dessa palavra” (PROPP, 2010, p. 1), e determina que devemos
estudar as narrativas a partir das funções de seus personagens.
Em sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso (2010), Propp identifica trinta e
uma funções referentes aos contos, mas ressalta que nem todos precisam conter cada
uma delas. Algumas se apresentam como as mais importantes e necessárias a essas
histórias, mas outras podem ser suprimidas sem que a narrativa perca seu contorno
original. Para o autor, “os contos de magia possuem uma construção absolutamente
peculiar, que se percebe de imediato e que determina esta categoria mesmo sem
tomarmos consciência do fato” (PROPP, 2010, p. 8).
Entendidas como “as partes constituintes básicas do conto” (PROPP, 2010, p.
22), essas funções determinam uma espécie de “fórmula mágica”, responsável por
93
identificar uma narrativa desse tipo. Para o autor, os contos dessa categoria são
caracterizados por um afastamento, seguidos por uma proibição e transgressão dessa
proibição. Após esse momento, verifica-se:
um dano ou um prejuízo causado a alguém (rapto, exílio), ou então pelo desejo de
possuir algo (o czar manda seu filho buscar o pássaro de fogo), e cujo
desenvolvimento é o seguinte: partida do herói, encontro com o doador, que lhe dá
um recurso mágico ou um auxiliar mágico munido do qual poderá encontrar o
objeto procurado. Seguem-se: o duelo com o adversário (cuja forma mais
importante é o combate com o dragão), o retorno e a perseguição. Frequentemente
essa composição torna-se mais complexa. Quando o herói se aproxima de casa,
seus irmãos lançam-no em um precipício. Mas ele consegue retornar, passa por
uma provação cumprindo tarefas difíceis, torna-se rei e se casa, em seu reino ou no
do sogro. Esse é um relato esquemático e sucinto do eixo de composição que serve
de base a numerosos e variados enredos. Os contos que refletem esse esquema
denominam-se maravilhosos (PROPP, 2002, p. 4).
Se entendermos a saga Crepúsculo como um enorme conto de fada também
podemos observar o esquema de Propp nesses livros/filmes. O afastamento é
caracterizado pela saída de Bella da casa de sua mãe e a mudança para a casa do pai,
fato que desencadeará toda a história. A proibição acontece quando a heroína percebe
que não deve se relacionar com os vampiros e a transgressão fica clara no momento em
que a garota começa a namorar com um deles, Edward. A partir de então, ela conhece
os “vampiros do mal”, entre eles seu antagonista (aqui representado por James), e o
dano é revelado quando este ameaça matá-la e supostamente sequestra a sua mãe,
levando Bella diretamente ao seu encontro. A partida da heroína acontece, justamente,
nessa fuga e perseguição à James, enquanto o encontro com seu doador é caracterizado
pela obtenção do objeto mágico, a visão que a “fada” Alice lhe fornece. Sabendo onde
encontrar seu antagonista, Bella vai até ele e o duelo acontece. Por meio do auxílio de
seus aliados a jovem é salva desse conflito, retornando à casa de seu pai.
No entanto, outras provações são impostas à jovem no segundo capítulo de sua
jornada, quando esta é abandonada por Edward. Há ainda uma perseguição no terceiro
livro da saga, quando a namorada de James, Victoria, retorna para se vingar de seu
amado.
O quarto livro, que corresponde ao quarto e quinto filmes, apresenta o tema do
casamento, da tarefa difícil (quando Bella engravida) e de sua morte-renascimento (o
momento do parto), quando morre como uma humana e acorda transformada em
94
vampira. O “felizes para sempre” é representado de maneira literal, pela imortalidade do
casal protagonista.
Assim, podemos identificar certas semelhanças entre os estudos de Campbell e
Propp. Ambos são caracterizados por um esquema que traz, primeiramente, a separação,
afastamento ou partida do herói. Após esse momento, segue-se o encontro com alguém
que lhe propiciará um recurso mágico, chamado pelo primeiro autor, de mentor e por
Propp, de doador. Em seguida, provas serão impostas para testar o herói e, quando o
mesmo for finalmente reconhecido, normalmente após uma morte-renascimento, ele
deve retornar à casa, portando o objeto de sua busca e transformado por essa
experiência.
Personagens e estrutura de contos de fada. “Jornada do Herói”, de Campbell e
“Funções”, de Propp. A saga Crepúsculo se encaixa de forma exemplar nos esquemas
narrativos oferecidos por esses estudiosos de mitos e contos maravilhosos. Ela se
enquadra em seus estágios. Realiza suas funções. Seria esse, então, um conto
maravilhoso? A resposta pode ser sim e não.
Sim, porque ela apresenta a estrutura de um conto. Reflete as facetas de alguns
dos mais conhecidos personagens de todos os tempos. Transmite alguns ensinamentos.
Assim, essa série poderia, nesse sentido, ser considerada, como um “conto de fada
moderno”.
Mas a resposta também é não, porque essa narrativa não parece nascer ou
dialogar com o inconsciente coletivo, como os antigos contos faziam, nem tampouco
refletir a magia, o conhecimento e a poesia dessas narrativas. Pelo contrário. Crepúsculo
surge como uma colagem de diversas histórias, em uma obra que se apropria de
personagens e situações conhecidas. Segue uma receita. E cria um conto artificial,
montado.
Assim, ela surge como o auge das reinvenções dos contos de fada ao narrar uma
história que esconde sua inspiração, mas que re-cria, re-inventa, por meio de diversos
fragmentos, as antigas narrativas. Mas que não se revela à primeira vista, pelo contrário,
simula sua verdadeira origem. E que, em razão disso, pode até enganar os olhos
daqueles que não percebem a magia que as histórias ancestrais são capazes de
transmitir. A magia que brota, que se revela. Que não está voltada ao consumo. Mas ao
encantamento e ao conhecimento. Mas ela não engana os meus. E nem os seus olhos.
Porque agora conseguimos enxergar. As reinvenções estão em todos os lugares, basta
procurá-las para que possamos (re)conhecê-las.
95
Afinal, entre meninas desastradas e princesas encantadas escolho as princesas.
Entre cidades e castelos, fico com os castelos. Entre Feras e seres imortais, prefiro as
Feras. Entre lobos-maus e lobos-meninos... bem, nunca entendi a motivação de
Chapeuzinho Vermelho. Entre fadas vampiras e a Fada-Madrinha? Essa é fácil. Eu
sempre quis aquele sapatinho de cristal.
O final feliz não precisa ser literal para ser eterno. O Felizes para Sempre mora
dentro de cada um de nós. E ele não é manifesto na imortalidade de um vampiro. Mas
na lembrança que apenas essas histórias são capazes de proporcionar. Sejam contadas
pelas mães aos filhos, lidas ou assistidas pelas crianças e adultos ou lembradas, vividas
e coloridas pela própria imaginação. O local em que são mais encantadas. Como nossa
alma, que se revela com aquelas três palavras mágicas que começam as histórias. E que,
uma vez cativada, retorna diferente dessa jornada. Assim como eu. E como você.
96
(DES)CONCLUSÃO
Não há melhor maneira de encerrar esta dissertação do que apresentar ao leitor
minha (Des)Conclusão. Uma referência, é claro, à Festa de Desaniversário do clássico
de Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas. Ora, se quem não faz aniversário faz
desaniversário, eu não poderia encontrar um nome mais adequado para o final deste
trabalho que pode ser, quem sabe, o início de um outro. Como uma “obra aberta”
(Umberto Eco), prefiro não concluir, mas “desconcluir”.
Este estudo pretendeu, basicamente, apontar, como objetivo geral, a retomada e
a reinvenção dos contos de fada, a partir de produtos cinematográficos e televisivos da
atualidade, buscando as causas desse fenômeno e revelando a maneira na qual eles
podem se apresentar. Além disso, como objetivo específico, procuramos realizar
comparações entre as histórias “originais” e seus referenciais contemporâneos.
Assim, na tentativa de compreender esse fenômeno, a pesquisa ofereceu ao leitor
duas possíveis leituras. A primeira delas, baseada nos estudos de Jung, apontou que sua
teoria da compensação dos temas arquetípicos que determinada época mais necessite
poderia oferecer um dos indícios necessários para compreendermos essa retomada dos
contos. Nesse mundo dominado pela razão, pelo logos, o homem necessita também de
seus conteúdos simbólicos, não-racionais, primitivos. Temas que podem ser oferecidos
pelas narrativas míticas e pelos contos de fada.
A segunda leitura tentou demonstrar de que maneira esses conteúdos são,
atualmente, oferecidos aos seres humanos e encontrou nos produtos da indústria cultural
sua principal forma de manifestação. No entanto, a partir de histórias bastante diferentes
de seus referenciais mais diretos, esses produtos não visam apenas transmitir os
ensinamentos que as antigas narrativas possibilitavam. Sua “missão” agora é outra,
muito mais voltada ao consumo, ao lucro e à propagação de ideologias.
97
Nesse sentido, a pesquisa também procurou apontar uma espécie de
desencantamento na qual esses “novos” contos podem estar submetidos. Ao comparálos com as narrativas ancestrais, salientamos que estas eram transmitidas oralmente, em
contato direto entre os corpos. Ao serem transportadas para as páginas dos livros e para
as telas do cinema, elas sofreram algumas modificações que podem ter contribuído para
esse desencantamento. Entre elas, talvez a mais poética, mostra que o afastamento
desses corpos, a falta de rituais que proferissem os contos, os reatualizassem, os
fizessem ocorrer novamente em seu próprio tempo mítico, os tenha feito perder sua
“aura mágica”, seu “encantamento”. Além disso, a partir dessas transposições em
distintas plataformas, as histórias foram sendo modificadas até serem, finalmente,
reinventadas.
Em relação às reinvenções, distinguimos dois tipos distintos: as diretas (aquelas
que pelo título ou personagens centrais percebemos que estamos diante de um conto de
fada) e as indiretas (aquelas que devemos ler em suas entrelinhas para realmente
entender o que elas tentam esconder).
Ao estudarmos as reinvenções diretas, optamos por nos concentrar em
personagens bastante conhecidas pelo público e dedicamo-nos aos arquétipos da Grande
Mãe (representado pelas “Rainhas Más” das histórias), do Velho Sábio (materializados
pelas fadas) e do Herói. Ao observarmos a figura da Grande Mãe, percebemos uma
mudança bastante significativa entre os produtos da atualidade e os antigos contos de
fada. Nas narrativas ancestrais, essas personagens não tinham sua “maldade” justificada.
Nos referenciais contemporâneos, a variação é tanta, que elas se tornam, até mesmo, as
novas heroínas das narrativas.
Em relação ao Velho Sábio, o estudo procurou demonstrar as diversas facetas
que o mesmo aparece não percebendo, porém, nenhuma alteração tão significativa
quanto o arquétipo anteriormente citado.
A figura do herói também apontou uma modificação expressiva. Curiosamente,
no entanto, se aproximando dos antigos contos e não se afastando deles. Ao observar as
animações Disney, percebemos que as meninas, antes simbolizadas como princesas
indefesas, são retratadas, em suas três últimas produções (Enrolados, Valente e Frozen)
como jovens responsáveis por traçar seu próprio destino. Em razão desse fato, até
mesmo reconsideramos a metáfora do (des)encantamento e sugerimos que
encantamento e desencantamento caminham juntos. Precisamos observar cada produção
com cuidado, antes de afirmar que todas são, portanto, desencantadas.
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Ao observarmos as reinvenções indiretas, optamos por escolher algumas obras e
dedicamo-nos a elas com mais atenção. Assim, as mais significativas em termos de
público e arrecadação foram as escolhidas. O estudo apontou, portanto, as semelhanças
entre alguns aspectos das produções O Senhor dos Anéis e Harry Potter e os contos de
fada, destacando que personagens ou situações das antigas narrativas podem ser
reconhecidas nessas produções.
No entanto, foi a partir da saga Crepúsculo, que a presente dissertação teceu
diversas comparações entre os contos maravilhosos, demonstrando como eles se
escondem (e se revelam) em suas entrelinhas. Essa produção foi a escolhida por
representar o auge dessas reinvenções, não apenas fazendo referência a uma ou outra
narrativa ou personagem, mas a uma série delas.
Sugerimos, portanto, que alguns dos mais conhecidos contos de fada podem ter
servido de inspiração para a autora narrar a sua história moderna, de origem ancestral.
Além disso, o esqueleto central dos livros e filmes também segue a estrutura padrão dos
contos maravilhosos, mais um indício da utilização dos mesmos nessa reinvenção.
Esperamos, por fim, ter conseguido cumprir nossa “missão”, demonstrando,
nessa pesquisa, a importância das antigas narrativas como formas de conhecimento. Em
uma sociedade que parece ter se esquecido delas ou mesmo as desprezado como
pensamento inferiores, as “retomadas” e “reinvenções” que apresentamos nesse
trabalho, evidenciam que o ser humano sempre precisará de suas antigas histórias.
Mesmo que elas sejam modificadas, alteradas, transformadas. Devemos aprender a
ouvi-las e dialogar com elas. Conscientemente. Inconscientemente.
Isto posto, porém, devemos salientar que chamar de conclusão esta parte do
trabalho, seria o mesmo que encerrar aqui o mosaico de ideias que o compõe. Nota-se,
contudo, que ele é apenas o início, o ponto de partida, a provocação.
Muito se tem ainda a pesquisar e desvendar a respeito deste tema, cheio de
possibilidades. Podemos e devemos nos aprofundar em seu estudo com a mesma
dedicação e carinho em que este foi escrito. Ou ainda, podemos escolher apenas uma de
suas ramificações e, a partir daí, construir um novo objeto de pesquisa.
Fica em aberto, portanto, para quem mais desejar estudar o tema dos contos de
fada, das narrativas e dos produtos derivados dos mesmos e apropriados pela mídia.
Produtos ora encantados, ora desencantados. De referências diretas ou indiretas.
Conduzidos por princesas comuns ou princesas vampiras, heróis clássicos ou indefesos
hobbits, feiticeiras terríveis ou bruxos queridos, vilões “justificáveis” ou vilões “Que99
Não-Devemos-Nomear”. Produtos assistidos na televisão, lidos com o coração ou
recitados e revividos pela imaginação. Aquele lugar em que as fadas habitam e nos
contam seus segredos. Segredos que nos guiam e nos orientam em nossa jornada. A
vida. Não adianta mais negar ou mesmo se questionar. Se você ainda está lendo esse
texto é porque, como eu, também acredita em fadas.
Sentimos saudade dos contos de fada, dos mitos. Dessas histórias que nos
ensinam, nos preenchem, moldam nosso comportamento, nos humanizam. Há, no
espírito de nossa época uma tristeza aparente por essa saudade, por esse distanciamento.
Precisamos de nossas narrativas novamente. Precisamos das princesas e das bruxas, das
fadas e dos dragões, das maçãs envenenadas e dos sapatinhos de cristal. Precisamos das
migalhas deixadas por João e Maria em seu caminho e iluminadas pela luz do Lua para
sairmos da floresta e voltarmos ao nosso lar.
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JACK, o Caçador de Gigantes. Direção de Bryan Singer. USA. New Line Cinema, 2013. 1
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JOÃO e Maria: Caçadores de Bruxas. Direção de Tommy Wirkola. USA. Paramount Pictures,
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LUA Nova. Direção de Keith Romine. USA. Summit Entertainment, 2009. 1 DVD (122 min),
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Carolina Chamizo Henrique Babo