1 II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte 13 a 15 de setembro de 2010 - Belém (PA) GT 9 - Povos Indígenas, territórios e conhecimento Território, identidade e conflito: descrevendo cenários de fronteira em Santa Rosa do Purus/AC Voyner Ravena Cãnete Nírvia Ravena de Souza Thales Maximiliano Ravena Cañete William Monteiro Rocha Uriens Maximiliano Ravena Cañete 2 Território, identidade e conflito: descrevendo cenários de fronteira em Santa Rosa do Purus/AC Voyner Ravena Cãnete1 Nírvia Ravena de Souza2 Thales Maximiliano Ravena Cañete3 William Monteiro Rocha4 Uriens Maximiliano Ravena Cañete5 Resumo: Atualmente o território nacional abriga aproximadamente 220 grupos indígenas diferentes (ISA, 2006). Isso significa dizer que há 220 formas de compreender o mundo, organizar a vida, relacionar-se com a natureza, transformar o meio ambiente, entre tantas outras atividades humanas, feitas de forma diferenciada. Nesse sentido, as diferentes concepções sobre a utilização do espaço findam por orientar as ações humanas no tocante à ocupação de territórios estabelecendo para o mesmo diferentes significados e usos. Quando aqui se evoca a idéia da significância de um território, busca-se pontuar a correlação entre a cognição originada pela cultura e as determinantes institucionais que ordenam o comportamento dos indivíduos na sua relação com outros indivíduos e com a natureza. Nesse sentido, o município de Santa Rosa do Purus/AC, fronteira com Peru, evidencia um cenário com uma peculiaridade a mais. Apresentando mais de 2/3 da população do município composta por indígenas, os processos eleitorais apresentam intensa participação da etnia Kaxinawá, esta orientada pela experiência política dessa etnia vivenciada em território peruano. Em território brasileiro a busca pela compreensão de processos eleitorais e de participação na gestão municipal marca a retórica e ação das lideranças indígenas locais, o que coloca uma situação em destaque: o fluxo e refluxo de experiências entre uma mesma etnia para o enfrentamento de situações de marginalização impostas pela sociedade maior. Esse movimento evidencia-se como uma estratégia para enlarguecer experiências construindo novos conhecimentos entre os Kaxinawá. À luz do direito à diversidade e à participação cívica, este artigo apresenta resultados de pesquisa sobre esse cenário de interação e participação política marcado por conflitos interétnicos. Explora, ainda, o cenário legal contemporâneo carente de atualizações diante de instrumentos jurídicos incapazes de ordenar as novas realidades originadas na interface entre o Estatuto do Índio (1973) e a Constituição Federal de 1998. Os dados apresentados resultam de entrevistas junto às lideranças indígenas Kaxinawá em Santa Rosa do Purus/AC.6 1 Antropóloga, Doutora em Ciências Sócio-ambientais (NAEA/UFPA), Professora/Pesquisadora do instituo de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará (ICB/UFPA). 2 Doutora em Ciência Política (IUPERJ), Professora/Pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (Unama). 3 Cientista Social, mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará – PPGD/UFPA 4 Graduado em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia (Unama). 5 Acadêmico de Jornalismo da Universidade da Amazônia (Unama). 6 Uma versão preliminar deste trabalho foi encaminhada ao II Encontro de Saberes Indígenas, realizado em setembro de 2009, em Mato Grosso de Sul. Novos conceitos sobre território e cenário amazônico foram incorporados para discutir a questão central do tema. 3 Palavras-chave: Território. Fronteira. Indígenas. Kaxinawá. Rio Purus. 1. Apresentação Este trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa Gestão das águas na Amazônia: peculiaridades e desafios no contexto sócio-politicoregional da bacia do rio Purus. O referido projeto foi inicialmente financiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa-CNPQ/ Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil-PPG7 e posteriormente financiado pela Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia – FIDESA e pela Universidade da Amazônia – UNAMA. Atualmente o projeto “Populações Amazônicas e Meio Ambiente: a dinâmica das relações interculturais entre indígenas e ribeirinhos no médio e baixo rio Purus para o acesso e uso dos recursos naturais” (Universal/CNPq) também vem contribuindo para a construção dos dados que permeiam o conteúdo deste trabalho. A primeira etapa da pesquisa buscou elucidar as questões voltadas à capacidade institucional dos municípios da calha do rio Purus diante dos desenhos das políticas públicas do governo federal que impõem processos de padronizações marcados por uma lógica de gestão que atende a realidades distantes daquela encontrada no cenário amazônico. Essa etapa foi composta por três viagens a campo, nas quais entrevistas estruturadas coletaram dados qualitativos, agregados à estratégia metodológica de grupo focal7 junto ao corpo técnico da administração local. Questionários com perguntas de respostas fechadas coletaram os dados quantitativos. Nessa etapa foi possível usar a técnica da lógia Fuzzy8 para tratar os dados quantitativos e qualitativos buscando construir cenários futuros orientados por respostas não binárias. Passada essa primeira etapa de campo, novas realidades se evidenciaram na pesquisa, entre elas as especificidades de Santa Rosa do 7 Grupo focal constitui-se em uma técnica da pesquisa qualitativa, consultar KRUEGER (2000). A Lógica Fuzzy permite especificar graus de pertinência de um elemento em relação a um conjunto específico. Assim, uma afirmação necessariamente não precisa ser exclusivamente verdadeira, podendo ser um pouco verdadeira, bastante verdadeira, ou muito verdadeira, ou outras variações possíveis dentro de um determinado universo de discurso. Essa é uma forma usual que o ser humano utiliza para expressar suas percepções, não ficando preso a conclusões bivalentes de sim ou não, estendendo o raciocínio bi-valorado para um raciocínio multi-valorado. 8 4 Purus. Assim, identificada sua peculiaridade como um município com população composta majoritariamente por indígenas das etnias Kulina e Kaxinawá, optou-se por uma pesquisa mais aprofundada sobre tal cenário. Nesse sentido, uma nova viagem a campo foi realizada, agora já aplicando instrumentos de coleta de dados específicos para o cenário de participação política e de gestão da etnia Kaxinawá na esfera local. Duas semanas de pesquisa cumpriram essa segunda etapa, com viagens diárias a duas aldeias indígenas em especial: Aldeia Canamary da etnia Kulina e aldeia Nova Mudança, que estava sendo aberta, pertencente aos Kaxinawá. Este artigo apresenta, então, uma descrição preliminar das observações feitas em trabalho de campo sobre o município de Santa Rosa do Purus, no qual interfaces entre a sociedade maior e etnias indígenas são estabelecidas pela gestão local. Na primeira seção encontra-se algumas considerações sobre o cenário de fronteira da área, assim como as questões que envolvem a compreensão de território. Em seguida o Município de santa Rosa é apresentado e com ele as especificidades encontradas no trabalho de campo, assim como são descritas o cenário de mudança indígena frente à vida política foco deste artigo. As considerações finais encerram o artigo. 2. Território e Fronteira: cenários históricos e definições de conceito As concepções sobre a utilização do espaço orientam as ações humanas no tocante à ocupação de territórios estabelecendo para o mesmo diferentes significados e usos. Quando aqui se evoca a idéia da significância de um território, busca-se pontuar a correlação entre a cognição originada pela cultura e as determinantes institucionais que ordenam o comportamento dos indivíduos em sua relação com outros indivíduos e com a natureza. Assim, a Amazônia, enquanto território, adentrou o imaginário ocidental desde o século XVIII como uma área de fronteira marcada pela idéia de um espaço onde o vazio permanece até os dias atuais, tanto nas concepções dos indivíduos que migram para esse território quanto para os tomadores de decisão que operam nas políticas públicas (OLIVEIRA FILHO, 1999; BECKER, 1998; LIMA & POZZOBON, 2005). A materialização dessas concepções se dá na esfera da interação entre os indivíduos e entre estes e as instituições. Dessa forma, a Amazônia, 5 enquanto território, é acessada e ocupada tanto por indivíduos quanto por ações governamentais, como se ainda se constituísse num espaço que requer uma fundação civilizatória. É importante considerar que o acesso e uso desse território se assentam numa assimetria de poder entre aqueles que o habitam. Explica-se. A crença de que há o vazio a ser preenchido, quando associada a informações privilegiadas por parte de alguns indivíduos, promove um desequilíbrio nas estratégias dos diversos atores que ocupam esse espaço. Mais que isso, o critério da ancianidade9 na ocupação da área é desconsiderado e direitos fundamentados nas concepções jusnaturalistas são desrespeitados em uma das vias da interação estratégica. Grupos indígenas inseridos em lógicas culturais e sociais diferentes das que operam nas instituições da sociedade ocidental são olvidados. Por outro lado, esse mesmo critério de ancianidade é evocado nas vias institucionais para a garantia dos direitos individuais de sujeitos com um maior grau de informação que acessam canais de justiça. A ocupação do território por grupos com baixo grau de organização diante da sociedade nacional, mas com comprovada ancianidade no espaço, como é o caso dos indígenas se vê, portanto, desconsiderada. Sobrepõe-se a esse quadro perverso o contato de formas particulares de interação social onde a diferença substancial entre as culturas em contato se estabelece a partir da cosmogonia10 dos atores que se encontram nesse território. Cabe aqui destacar o papel fundamental que a cosmogonia desempenha no contato entre sociedades complexas e sociedades cujo grau de complexificação segue caminhos não convencionados na cultura ocidental. Assim, na Amazônia, quando indivíduos, atores coletivos ou instituições interagem com grupos indígenas, torna-se evidente que a fricção interétnica11 9 O critério de ancianidade é utilizado aqui em sua perspectiva antropológica onde o caráter imemorial é o elemento central. Imemorial é o que está presente a tanto tempo que não se tem noção ao certo de quando surgiu (LEA, 1997a e b). 10 Cosmogonia configura-se como a forma de compreensão de mundo que grupos sócioculturais apresentam. Os indígenas dispõem de um arcabouço cultural diferente daquele compartilhado por indivíduos na sociedade ocidental. A distinção entre estas duas cosmogonias é interpretada por Lima (2004) ao compreender o contato entre estas duas formas de concepção do mundo e da realidade. 11 O conceito de fricção interétnica, cunhado por Roberto Cardoso de Oliveira (1964), permite descrever a situação de contato entre grupos étnicos diferentes interagindo em um mesmo cenário social. Usando categorias como ideologia, identidade e identidade étnica, ele 6 adquire uma escala e uma saliência significativa. Então, retorna-se ao ponto no qual indivíduos não organizados coletivamente concebem a Amazônia como fronteira. O choque entre duas cosmogonias dicotômicas, como a dos migrantes da fronteira e a daqueles que já a ocupavam mesmo antes do contato é muitas vezes letal para grupos indígenas que se apresentam culturalmente numa perspectiva coletiva, mas, no entanto, não possuem expressão de poder na sociedade nacional. Isso ocorre porque esses grupos não dispõem de mecanismos eficientes de representação coletiva no interior da lógica reconhecida pelas instituições formais. A racionalidade nas instituições é tomada como universal para todas as culturas, o que acresce aos grupos indígenas custos de transação no momento em que interagem com a sociedade envolvente, dado que suas concepções sobre espaço e território não se assemelham àquelas estabelecidas pela sociedade ocidental e seus indivíduos. Enquanto atores individuais interpretam o território amazônico como fronteira, grupos indígenas concebem esse mesmo território como uma área imemorial onde os significados relativos a suas práticas sociais e culturais mantêm com o território uma interdependência. Essa interdependência é o elemento que possibilita a manutenção da vida sócio-cultural desses grupos. Uma vez alterado o território, são alteradas de forma estrutural essas relações. É importante destacar que os dois critérios, ancianidade e interdependência, já sustentam que o território seja definido a partir de critérios ligados ao que é imemorial aos grupos indígenas. E mais, os dois critérios, oriundos das discussões teóricas próprias do campo de conhecimento das humanidades, sustentam cientificamente que o direito a esse território seja garantido. Assim, conceitos como fronteira, ancianidade e interdependência configuram uma tríade que permite verificar de que forma o contato entre duas racionalidades pode ser pernicioso para grupos indígenas que se constituem social e culturalmente numa perspectiva coletiva, mas que não dispõem de ferramentas institucionais eficientes para se representar coletivamente, e cuja cosmogonia não se assemelha ao que a sociedade ocidental inscreve em suas instituições como formas eivadas de critérios de validade. Instituições formais demonstra que a identidade construída por um grupo, ou mesmo um indivíduo está diretamente relacionada ao cenário no qual o mesmo está inserido. 7 operam com arcabouços teóricos de compreensão dos indivíduos quando se relacionam entre si e com as regras inscritas nessas instituições, sem incluir nos pressupostos dessa interação os formatos culturais de outros tipos de racionalidade que não são comuns à sociedade capitalista avançada. Em uma perspectiva de compreensão de diferenciados momentos históricos, vale revisitar a compreensão de Euclides da Cunha sobre a Amazônia. Esta, para o autor "ainda sob o aspecto estritamente físico, conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um século de perseverantes pesquisas e uma literatura inestimável, de numerosas monografias, mostram-no-la sob incontáveis aspectos parcelados. A inteligência humana não suportaria, de improviso, o peso daquela realidade portentosa." escreveu Euclides da Cunha, no inicio do século XX, quando nomeado chefe da comissão mista brasileiroperuana de reconhecimento do Alto-Purus, com o objetivo de demarcar limites entre o Brasil e o Peru. Mais de cem anos se passaram desde que Euclides esteve nessa região e o excerto acima ainda se mostra evidente. A região de fronteira a qual o célebre autor foi apresentado em 1905 se mostrava enquanto uma área portentosa e ao mesmo tempo conflituosa. Segundo Kassius Pontes (2005), Euclides dava a “Amazônia uma visão de constante mutação, de construção inacabada, uma espécie de página incompleta do Gênesis12”. Essa página incompleta e quase esquecida a qual Euclides referencia a Amazônia encontra-se ainda no imaginário ocidental desde o século XVIII como uma área de fronteira marcada pela idéia de espaço vazio. Tal compreensão permanece até os dias atuais, tanto nas concepções dos indivíduos que migram para esse território quanto para os tomadores de decisão que operam nas políticas públicas. Mesmo cem anos depois, a realidade dessa região encontra-se pautada em muitos aspectos descritos por Euclides em seus inúmeros ensaios amazônicos. No entanto, existe uma diferença fundamental que caracteriza esse espaço de tempo: os problemas da época de Euclides eram fronteiriços e marcados pela luta do território no que ele considerava como um “conflito inevitável” entre Brasileiros e Peruanos; Já no contexto atual, se evidenciam 12 Vale lembrar que Euclides da Cunha integrava um corpo de intelectuais marcadamente influenciados pelas lógicas evolucionistas que, além de forjar o escopo das ciências naturais, se espraiou para as ciências humanas, especialmente a Antropologia, então em consolidação como disciplina. Daí a idéia de “gênesis”, o cenário inicial da formação da civilização. 8 inúmeros problemas sociais envolvendo as populações tradicionais com a gestão pública, no sentido de acesso de recursos e até mesmo nos processos políticos. O conflito que a expedição de Euclides visava diplomaticamente sanar com a demarcação dos limites de Brasil e Peru, era entre os Caucheiros13 peruanos e os Seringueiros brasileiros. Atualmente, na região em questão inexistem conflitos nesse sentido. Entretanto, problemas sociais são evidentes nos dois lados da fronteira, com outra relevante diferença dos tempos de Euclides, o numeroso contingente de grupos indígenas distribuídos ao longo da região transfronteiriça da qual o sinuoso Rio Purus separa. 2.1 Reflexões sobre o conceito de fronteira para Santa Rosa do Purus Fronteira em seu conceito amplo, diz respeito a uma determinada área de duas partes distintas. Tal conceito foi ao longo da história se consolidando e tanto no período das monarquias nacionais, quanto da Paz de Westphália14, o estabelecimento e delimitação do alcance do poder do Estado necessitavam de uma maior exatidão. No entanto, essa fronteira pode representar muito mais que uma mera divisão ou unificação de partes. Esse conceito pode representar também, o nível de autonomia e soberania de um Estado sobre o outro, dois regimes políticos e/ou ideológicos, duas formas de organização e o que a fronteira que se buscará explicar neste trabalho exemplifica, o de duas realidades distintas. Atrelado, e muitas vezes sinônimo ao conceito de fronteira, o conceito de limite é comumente utilizado. Entretanto, cabe diferenciação. A fronteira, no seu sentido amplo marca e coloca o outro lado como o diferente, ou seja, como o começo do novo, pode-se assim dizer. Já o limite, designa o fim do controle de uma determinada unidade político-territorial. Em outras palavras, fronteira 13 Faz referência ao Caucho, árvore presente na fauna da região e muito explorada na época. Dela é possível extrair uma goma elástica que, alem de ser de qualidade inferior ao látex, não se renova. 14 Foram uma série de tratados, que alem de encerrarem conflitos como a Guerra dos Trinta Anos, inauguraram o moderno sistema internacional ao colocarem consensualmente noções e princípios como o de soberania estatal e o de Estado Nação. Em suma, delimitaram as fronteiras de poder de um Estado com o outro e se transformaram em um marco das Relações Internacionais. 9 diz respeito uma ordem e/ou demarcação natural, geométrica e até mesmo arbitrária, ou seja, de integração; todavia, o limite é uma abstração como fator de separação. Na região foco deste trabalho, a fronteira é natural; na verdade, a fronteira é o próprio rio. O Rio Purus, caracteriza-se por uma sinuosidade peculiar que somado a sazonalidade entre os períodos de seca e de cheia, resulta em uma navegação repleta de desafios em sua totalidade de quase 3.300 Km. É considerado um rio de águas brancas e o aspecto meândrico que é conferido ao mesmo é notado desde sua nascente no Peru, passando pela Bolívia e desembocando nos estados do Acre e do Amazonas, no Brasil. A característica transfronteiriça que também é atribuída ao Purus deve ser atentamente analisada, pois ações voltadas ao desenvolvimento da região não podem se limitar a aspectos meramente geopolíticos e, sim, permear a bacia hidrográfica como um todo, além de respeitarem fatores sócio-políticos e econômicos da região. De toda sorte, pensar em Santa Rosa do Purus significa pensar na fronteira a partir de seu conceito clássico, ou seja, significa pensar no sentido de ocupação de áreas pouco povoadas e que têm nesse processo de ocupação uma dinâmica social própria marcada pela ausência do Estado e das regras institucionalizadas que normalmente orientam as ações dos atores sociais (CASTRO e HÉBETTE, 1989). 3. Santa Rosa do Purus: uma cidade indígena Resultante do desmembramento do município de Manuel Urbano, Santa Rosa do Purus foi constituída através da Lei Estadual nº 1.028 de 28 de abril de 1992. Como município de fronteira internacional (Brasil/Peru), Santa Rosa do Purus encontra-se bastante isolada, pois o acesso ao município restringe-se ao transporte fluvial e a pequenas aeronaves que chegam à pista de pouso improvisada de terra batida mantida pela gestão pública local. A ausência de rodovias perfila um isolamento que marca toda a região do município. As atividades econômicas giram em torno, especialmente, do extrativismo, sendo a pesca de subsistência a segunda atividade mais importante. As atividades agrícolas restringem-se à produção de culturas de consumo local em 10 decorrência do difícil escoamento da produção. Este se dá normalmente por via fluvial, ainda que bastante limitado pelas imposições da dinâmica da cheia e vazante do rio que impedem a navegação de embarcações de grande calado. No que se refere a uma estruturação urbana, a dotação de equipamentos é bastante limitada. Duas escolas de ensino fundamental e médio atendem toda a população local, sendo que apenas uma escola de ensino fundamental (apenas até a quarta série) atende a demanda dos moradores. Como uma cidade jovem Santa Rosa do Purus apresenta baixa densidade populacional, evidenciada nos dados comparativos aos municípios vizinhos apresentados a seguir. Tabela1 : Número de população residente por sexo nos municípios que compõem a bacia do Purus (Acre). Acre Sena Madureira Manoel Urbano Santa Rosa do Purus M 12.47 1 2.764 1991 F 11.72 6 2.563 T 24.19 7 5.327 - - - M 15.28 3 3.375 2000 F 14.13 7 2.999 T 29.42 0 6.374 1.163 1.083 2.246 Fonte IBGE: População (1970-2000). Do total populacional acima apresentado, mais de 50% é constituído de indígenas, já que a sede municipal encontra-se próxima à Terra Indígena Alto Purus onde as etnias Kulina (se autodenominam Madija/Madiha e falam a língua Arawá) e Kaxinawá (se autodenominam Huni Kuin e falam a língua Pano) compõem as 34 aldeias que integram essa TI. A imagem a seguir permite visualizar a presença e proximidade da área indígena da sede municipal. 11 Imagem 1: Terra Indígena Alto Purus Fonte: ISA, 2009 A divisão das terras entre essas duas etnias acontece em um cenário até recentemente ausente de conflito, já que há um consenso sobre o uso e divisão da área entre esses dois grupos. As aldeias contam normalmente com Professor, Técnico de Enfermagem, Agente Indígena de Saúde - AIS e Agente Indígena Sanitário – AISAN. Tal quadro interno de serviços criado para as aldeias origina recursos que garantem uma relação mais próxima de consumo com artigos oriundos da sociedade maior. Agregado a esse cenário as políticas públicas sociais do governo federal, como bolsa família, potencializam ainda mais esse quadro de consumo. Vale ressaltar que os artigos demandados restringem-se basicamente ao rancho15 mensal. No entanto, o recurso recebido volta-se significativamente para a compra de combustível usado para os deslocamentos 15 no rio entre aldeias/aldeias e aldeias/cidade. Esse Rancho é a denominação regional do conjunto de artigos comprados para o consumo mensal de uma família. Normalmente é composto de sabão, sal, açúcar, óleo, margarina, bolacha, charque, arroz e feijão. No caso dos grupos indígenas, o rancho restringe-se basicamente aos quatro primeiros itens mencionados nessa composição. 12 deslocamento merece um destaque, já que as atividades e conexões entre as aldeias representam parte do cotidiano dessas etnias e se inserem de forma intensa no cotidiano. As relações de parentesco, marcadas por uma vida social de visitas freqüentes e mesmo para trabalhos na roça demandam um deslocamento custoso, pois alimentado pelo combustível16 que move pequenas embarcações conhecidas como rabeta. Foto 1: Embarcações indígenas conhecidas como rabeta. Fonte: Pesquisa de campo – Jun/2009. Atividades de pesca e caça em áreas mais distantes também são realizadas através de rabetas. Dessa forma, o consumo de combustível é bastante elevado, o que demanda uma preocupação entre essas etnias com a disponibilidade monetária para a efetivação da compra desse tipo de artigo. É nesse sentido que as relações indígenas de dependência monetária, especialmente Kaxinawá, marcam o cenário da vida de Santa Rosa do Purus, de tal sorte que mesmo na esfera da organização do espaço da sede municipal essa característica se expressa. Assim, há um bairro onde apenas os Kaxinawá residem, lá constroem suas casas, nas quais se estabelecem quando vêm à cidade para receber os recursos oriundos da bolsa família, ou mesmo seus salários. Nesse movimento de ir e vir, os Kaxinawá findam passando parte significativa do mês na sede municipal. Em longo prazo, muitas famílias 16 As rabetas normalmente são movidas à gasolina que pode ser acrescida de óleo para motor buscando maximizar a quantidade barateando o produto final através da mistura. 13 permanecem às vezes por vários meses do ano em Santa Rosa do Purus. As estratégias de sobrevivência entre os Kaxinawá, nesse cenário urbano, voltam-se para a demanda de auxílio junto ao poder público local. Este mostra-se bastante receptivo para esse tipo de atendimento, já que é através dessas relações que situações clientelistas se estabelecem e marcam o cenário da gestão municipal e dos processos eleitorais. Esse cenário de dependência e troca com o poder público local vem desenhando um novo perfil populacional entre os Kaxinawá. Enquanto que na década passada a TI Alto Purus apresentava menos de 15 aldeias somando as duas etnias que compõem a área, após uma década esse número saltou para mais de 30 aldeias. Tal cenário pode ser explicado quando se evoca a estrutura administrativa originada nos serviços de educação e saúde garantidos para os grupos indígenas, pois tais serviços criam uma estrutura que se traduz em recursos monetários para uma aldeia com uma média de 20 famílias. Assim, a abertura de uma aldeia significa a criação de pelo menos três postos de trabalho (AIS, AISAN e Professor Indígena) que podem ser alargados para mais dois postos (Técnico em Enfermagem e Parteira). O fator perverso desse processo pode ser observado apenas a longo prazo. Se grandes aldeias, marcadas por atividades agrícolas perfiladas pelas estratégias de parentesco e mutirão marcaram o cotidiano Kaxinawá até início do séc XXI, esse cenário vem cedendo lugar a aldeias pequenas, originadoras de empregos e recursos monetários, em sua estrutura de funcionamento articulada ao aparato das políticas voltadas aos indígenas. A gestão municipal evidencia-se como a principal interlocutora e operacionalizadora desse processo, já que, às administrações municipais cabe, localmente, implementar e desenvolver tais políticas. A abertura de novas aldeias, no entanto, demanda um aumento populacional que justifique tais criações. Considerando que a divisão geopolítica entre Brasil e Peru não é reconhecida pelos Kaxinawá, a busca pelo aumento dos grupos através da migração dessa etnia da área peruana para o Brasil vem se mostrando como uma estratégia bastante eficaz entre os Kaxinawá para crescer seu contingente populacional. Os desdobramentos perversos se traduzem nas alterações do cotidiano 14 Kaxinawá de trato com a natureza, de esquecimento silencioso de suas técnicas de plantio, de suas regras de reciprocidade e mesmo de suas tradições mágicas17. Mas um outro desdobramento vem perfilando esse cenário. Se por um lado os Kaxinawá, obnubilam suas tradições, seus costumes e mesmo seu conhecimento e técnica de trato com a natureza no contato com a sociedade maior, por outro lado a estratégia de migração Kaxinawá no sentido Peru/Brasil, realimenta essa sistema cultural. É evidente o reconhecimento entre as lideranças Kaxinawá brasileiras da importância da memória de seus ancestrais e que muitas vezes pode ser acessada apenas entre os mais velhos, no caso aqueles que se encontram em território peruano18. Ao mesmo tempo, a experiência em território peruano permite estabelecer comparações entre políticas públicas dos diferentes países. Nesse sentido, tanto os Kaxinawá que migram para o Brasil percebem a disponibilidade de serviços oriundos de políticas públicas específicas para os indígenas, ou mesmo aquelas de redistribuição de renda, como o caso da bolsa escola como uma vantagem do território brasileiro. Por outro lado, e considerando o cenário de participação indígena na vida política em território peruano, os Kaxinawá identificam as possibilidades de aprendizagem de uma lógica do campo político que também pode ser usada nas experiências no Brasil19. 17 Como primeiro resultado de pesquisa este artigo traz apenas dados da última viagem a campo, todavia, novas abordagens deverão compor as etapas seguintes do estudo. O refinamento na análise das mudanças vivenciadas pela atual situação de contato dos grupos Kulina e Kaxinawá e envolvimento com a sociedade maior mostra-se como prioritária. Uma análise comparativa deverá ser empreendida tanto na perspectiva temporal, para o resgate de memória, como entre as formas diferenciadas que essas duas etnias apresentam no processo de interface com a sociedade maior. 18 Nas entrevistas foi possível constatar que em território brasileiro a geração mais velha Kaxinawá, entre 65 e 75 anos, interage de forma conflituosa com as gerações mais jovens negando o repasse, em alguns casos, do conhecimento tradicional Huni Kuin. 19 A cidade de Esperanza, em território peruano, teve no último processo eleitoral um Kaxinawá escolhido para ocupar o cargo de Alcalde, um fincão semelhante ao prefeito, na estrutura burocrática e de gestão brasileira. 15 Foto 2: Processo Eleitoral em Palestina, cidade vizinha em território peruano. Fonte: Pesquisa de campo – Jun/2007. Considerações Finais Em cenários de fronteira, onde dinâmicas diferenciadas muitas vezes se sobrepõem, uma situação chama atenção: o fluxo e refluxo de experiências entre uma mesma etnia para o enfrentamento de situações de marginalização impostas pela sociedade maior. Esse movimento evidencia-se como uma estratégia para enlarguecer experiências construindo novos conhecimentos entre os Kaxinawá. O discurso sobre tal aprendizado como um fator importante na relação com a sociedade do branco, especialmente na esfera política, está fortemente presente entre as lideranças indígenas. Ao construir uma cognição diferenciada resultante de cenários políticos e de gestão variados (Peru e Brasil) os Kaxinawá se fortalecem para momentos futuros que demandarão um posicionamento mais articulado frente às mudanças e imposições da sociedade do entorno. REFERÊNCIAS BECKER, Bertha K. Amazônia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1998. 16 BREHM, John & SCOTT, Gates (1999). Working, Shirking, and Sabotage: Bureaucratic Response to a Democratic Public. Ann Arbor: University of Michigan Press. CASTRO, Edna Maria Ramos de e HÉBETTE, Jean (Org.) Na trilha dos grandes projetos. Modernização e conflitos na Amazônia. Belém: UFPA/NAEA. Cadernos NAEA, nº 10. 1989. CUNHA, Euclides. O Inferno Verde. In Um Paraíso Perdido: Ensaios Amazônicos. Org. Hildon Rocha – Coleção Brasil 500 anos. Brasília: Senado Federal, 2000. INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL - Capturado em 10.8.2009 do sitio – www.socioambiental.org.br KRUEGER, R. A & CASEY, M. A. (2000). Focus groups. A practical guide for applied research. California: Thousands Oaks. LEA, Vanessa R. Kapoto: laudo antropológico. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1997a. ______. Parque Indígena do Xingu: laudo antropológico. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1997b. LIMA, D.; POZZOBON, J. Amazônia Socioambiental: sustentabilidade ecológica e diversidade cultural. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 54, p.45-76, ago. 2005. LIMA, Flavia Pedroza. Observações e descrições astronômicas de indígenas brasileiros. A visão dos missionários, colonizadores, viajantes e naturalistas. 2004. Dissertação (Mestrado em Ciências) – COPPE,Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004. OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Ensaios em antropologia histórica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. PONTES, Kassius Diniz da Silva. Euclides da Cunha, o Itamaraty e a Amazônia. Brasília: Funag, 2005. SHEPSLE, K. e BONCHEK, M. (1997), Analyzing Politics: Rationality, Behavior, and Institutions. New York, W. W. Norton & Company.