1
II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da
Região Norte
13 a 15 de setembro de 2010 - Belém (PA)
GT 9 - Povos Indígenas, territórios e conhecimento
Território, identidade e conflito: descrevendo cenários de
fronteira em Santa Rosa do Purus/AC
Voyner Ravena Cãnete
Nírvia Ravena de Souza
Thales Maximiliano Ravena Cañete
William Monteiro Rocha
Uriens Maximiliano Ravena Cañete
2
Território, identidade e conflito: descrevendo cenários de fronteira em
Santa Rosa do Purus/AC
Voyner Ravena Cãnete1
Nírvia Ravena de Souza2
Thales Maximiliano Ravena Cañete3
William Monteiro Rocha4
Uriens Maximiliano Ravena Cañete5
Resumo: Atualmente o território nacional abriga aproximadamente 220 grupos
indígenas diferentes (ISA, 2006). Isso significa dizer que há 220 formas de
compreender o mundo, organizar a vida, relacionar-se com a natureza,
transformar o meio ambiente, entre tantas outras atividades humanas, feitas de
forma diferenciada. Nesse sentido, as diferentes concepções sobre a utilização
do espaço findam por orientar as ações humanas no tocante à ocupação de
territórios estabelecendo para o mesmo diferentes significados e usos. Quando
aqui se evoca a idéia da significância de um território, busca-se pontuar a
correlação entre a cognição originada pela cultura e as determinantes
institucionais que ordenam o comportamento dos indivíduos na sua relação
com outros indivíduos e com a natureza. Nesse sentido, o município de Santa
Rosa do Purus/AC, fronteira com Peru, evidencia um cenário com uma
peculiaridade a mais. Apresentando mais de 2/3 da população do município
composta por indígenas, os processos eleitorais apresentam intensa
participação da etnia Kaxinawá, esta orientada pela experiência política dessa
etnia vivenciada em território peruano. Em território brasileiro a busca pela
compreensão de processos eleitorais e de participação na gestão municipal
marca a retórica e ação das lideranças indígenas locais, o que coloca uma
situação em destaque: o fluxo e refluxo de experiências entre uma mesma
etnia para o enfrentamento de situações de marginalização impostas pela
sociedade maior. Esse movimento evidencia-se como uma estratégia para
enlarguecer experiências construindo novos conhecimentos entre os Kaxinawá.
À luz do direito à diversidade e à participação cívica, este artigo apresenta
resultados de pesquisa sobre esse cenário de interação e participação política
marcado por conflitos interétnicos. Explora, ainda, o cenário legal
contemporâneo carente de atualizações diante de instrumentos jurídicos
incapazes de ordenar as novas realidades originadas na interface entre o
Estatuto do Índio (1973) e a Constituição Federal de 1998. Os dados
apresentados resultam de entrevistas junto às lideranças indígenas Kaxinawá
em Santa Rosa do Purus/AC.6
1
Antropóloga, Doutora em Ciências Sócio-ambientais (NAEA/UFPA), Professora/Pesquisadora
do instituo de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará (ICB/UFPA).
2
Doutora em Ciência Política (IUPERJ), Professora/Pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA), Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia
(Unama).
3
Cientista Social, mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Pará – PPGD/UFPA
4
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade da Amazônia (Unama).
5
Acadêmico de Jornalismo da Universidade da Amazônia (Unama).
6
Uma versão preliminar deste trabalho foi encaminhada ao II Encontro de Saberes Indígenas,
realizado em setembro de 2009, em Mato Grosso de Sul. Novos conceitos sobre território e
cenário amazônico foram incorporados para discutir a questão central do tema.
3
Palavras-chave: Território. Fronteira. Indígenas. Kaxinawá. Rio Purus.
1.
Apresentação
Este trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa Gestão das
águas na Amazônia: peculiaridades e desafios no contexto sócio-politicoregional da bacia do rio Purus. O referido projeto foi inicialmente financiado
pelo Conselho Nacional de Pesquisa-CNPQ/ Programa Piloto para a Proteção
das Florestas Tropicais do Brasil-PPG7 e posteriormente financiado pela
Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia – FIDESA e pela
Universidade da Amazônia – UNAMA. Atualmente o projeto “Populações
Amazônicas e Meio Ambiente: a dinâmica das relações interculturais entre indígenas e
ribeirinhos no médio e baixo rio Purus para o acesso e uso dos recursos naturais”
(Universal/CNPq) também vem contribuindo para a construção dos dados que
permeiam o conteúdo deste trabalho.
A primeira etapa da pesquisa buscou elucidar as questões voltadas à
capacidade institucional dos municípios da calha do rio Purus diante dos
desenhos das políticas públicas do governo federal que impõem processos de
padronizações marcados por uma lógica de gestão que atende a realidades
distantes daquela encontrada no cenário amazônico. Essa etapa foi composta
por três viagens a campo, nas quais entrevistas estruturadas coletaram dados
qualitativos, agregados à estratégia metodológica de grupo focal7 junto ao
corpo técnico da administração local. Questionários com perguntas de
respostas fechadas coletaram os dados quantitativos. Nessa etapa foi possível
usar a técnica da lógia Fuzzy8 para tratar os dados quantitativos e qualitativos
buscando construir cenários futuros orientados por respostas não binárias.
Passada essa primeira etapa de campo, novas realidades se
evidenciaram na pesquisa, entre elas as especificidades de Santa Rosa do
7
Grupo focal constitui-se em uma técnica da pesquisa qualitativa, consultar KRUEGER (2000).
A Lógica Fuzzy permite especificar graus de pertinência de um elemento em relação a um
conjunto específico. Assim, uma afirmação necessariamente não precisa ser exclusivamente
verdadeira, podendo ser um pouco verdadeira, bastante verdadeira, ou muito verdadeira, ou
outras variações possíveis dentro de um determinado universo de discurso. Essa é uma forma
usual que o ser humano utiliza para expressar suas percepções, não ficando preso a
conclusões bivalentes de sim ou não, estendendo o raciocínio bi-valorado para um raciocínio
multi-valorado.
8
4
Purus. Assim, identificada sua peculiaridade como um município com
população composta majoritariamente por indígenas das etnias Kulina e
Kaxinawá, optou-se por uma pesquisa mais aprofundada sobre tal cenário.
Nesse sentido, uma nova viagem a campo foi realizada, agora já aplicando
instrumentos de coleta de dados específicos para o cenário de participação
política e de gestão da etnia Kaxinawá na esfera local. Duas semanas de
pesquisa cumpriram essa segunda etapa, com viagens diárias a duas aldeias
indígenas em especial: Aldeia Canamary da etnia Kulina e aldeia Nova
Mudança, que estava sendo aberta, pertencente aos Kaxinawá.
Este artigo apresenta, então, uma descrição preliminar das observações
feitas em trabalho de campo sobre o município de Santa Rosa do Purus, no
qual interfaces entre a sociedade maior e etnias indígenas são estabelecidas
pela gestão local. Na primeira seção encontra-se algumas considerações sobre
o cenário de fronteira da área, assim como as questões que envolvem a
compreensão de território. Em seguida o Município de santa Rosa é
apresentado e com ele as especificidades encontradas no trabalho de campo,
assim como são descritas o cenário de mudança indígena frente à vida política
foco deste artigo. As considerações finais encerram o artigo.
2. Território e Fronteira: cenários históricos e definições de conceito
As concepções sobre a utilização do espaço orientam as ações
humanas no tocante à ocupação de territórios estabelecendo para o mesmo
diferentes significados e usos. Quando aqui se evoca a idéia da significância de
um território, busca-se pontuar a correlação entre a cognição originada pela
cultura e as determinantes institucionais que ordenam o comportamento dos
indivíduos em sua relação com outros indivíduos e com a natureza.
Assim, a Amazônia, enquanto território, adentrou o imaginário ocidental
desde o século XVIII como uma área de fronteira marcada pela idéia de um
espaço onde o vazio permanece até os dias atuais, tanto nas concepções dos
indivíduos que migram para esse território quanto para os tomadores de
decisão que operam nas políticas públicas (OLIVEIRA FILHO, 1999; BECKER,
1998; LIMA & POZZOBON, 2005).
A materialização dessas concepções se dá na esfera da interação entre
os indivíduos e entre estes e as instituições. Dessa forma, a Amazônia,
5
enquanto território, é acessada e ocupada tanto por indivíduos quanto por
ações governamentais, como se ainda se constituísse num espaço que requer
uma fundação civilizatória. É importante considerar que o acesso e uso desse
território se assentam numa assimetria de poder entre aqueles que o habitam.
Explica-se. A crença de que há o vazio a ser preenchido, quando associada a
informações privilegiadas por parte de alguns indivíduos, promove um
desequilíbrio nas estratégias dos diversos atores que ocupam esse espaço.
Mais que isso, o critério da ancianidade9 na ocupação da área é
desconsiderado e direitos fundamentados nas concepções jusnaturalistas são
desrespeitados em uma das vias da interação estratégica. Grupos indígenas
inseridos em lógicas culturais e sociais diferentes das que operam nas
instituições da sociedade ocidental são olvidados. Por outro lado, esse mesmo
critério de ancianidade é evocado nas vias institucionais para a garantia dos
direitos individuais de sujeitos com um maior grau de informação que acessam
canais de justiça.
A ocupação do território por grupos com baixo grau de organização
diante da sociedade nacional, mas com comprovada ancianidade no espaço,
como é o caso dos indígenas se vê, portanto, desconsiderada. Sobrepõe-se a
esse quadro perverso o contato de formas particulares de interação social onde
a diferença substancial entre as culturas em contato se estabelece a partir da
cosmogonia10 dos atores que se encontram nesse território.
Cabe
aqui
destacar
o
papel
fundamental
que
a
cosmogonia
desempenha no contato entre sociedades complexas e sociedades cujo grau
de complexificação segue caminhos não convencionados na cultura ocidental.
Assim, na Amazônia, quando indivíduos, atores coletivos ou instituições
interagem com grupos indígenas, torna-se evidente que a fricção interétnica11
9
O critério de ancianidade é utilizado aqui em sua perspectiva antropológica onde o caráter
imemorial é o elemento central. Imemorial é o que está presente a tanto tempo que não se tem
noção ao certo de quando surgiu (LEA, 1997a e b).
10
Cosmogonia configura-se como a forma de compreensão de mundo que grupos sócioculturais apresentam. Os indígenas dispõem de um arcabouço cultural diferente daquele
compartilhado por indivíduos na sociedade ocidental. A distinção entre estas duas
cosmogonias é interpretada por Lima (2004) ao compreender o contato entre estas duas
formas de concepção do mundo e da realidade.
11
O conceito de fricção interétnica, cunhado por Roberto Cardoso de Oliveira (1964), permite
descrever a situação de contato entre grupos étnicos diferentes interagindo em um mesmo
cenário social. Usando categorias como ideologia, identidade e identidade étnica, ele
6
adquire uma escala e uma saliência significativa.
Então, retorna-se ao ponto no qual indivíduos não organizados
coletivamente concebem a Amazônia como fronteira. O choque entre duas
cosmogonias dicotômicas, como a dos migrantes da fronteira e a daqueles que
já a ocupavam mesmo antes do contato é muitas vezes letal para grupos
indígenas que se apresentam culturalmente numa perspectiva coletiva, mas, no
entanto, não possuem expressão de poder na sociedade nacional. Isso ocorre
porque esses grupos não dispõem de mecanismos eficientes de representação
coletiva no interior da lógica reconhecida pelas instituições formais. A
racionalidade nas instituições é tomada como universal para todas as culturas,
o que acresce aos grupos indígenas custos de transação no momento em que
interagem com a sociedade envolvente, dado que suas concepções sobre
espaço e território não se assemelham àquelas estabelecidas pela sociedade
ocidental e seus indivíduos.
Enquanto atores individuais interpretam o território amazônico como
fronteira, grupos indígenas concebem esse mesmo território como uma área
imemorial onde os significados relativos a suas práticas sociais e culturais
mantêm com o território uma interdependência. Essa interdependência é o
elemento que possibilita a manutenção da vida sócio-cultural desses grupos.
Uma vez alterado o território, são alteradas de forma estrutural essas relações.
É importante destacar que os dois critérios, ancianidade e interdependência, já
sustentam que o território seja definido a partir de critérios ligados ao que é
imemorial aos grupos indígenas. E mais, os dois critérios, oriundos das
discussões teóricas próprias do campo de conhecimento das humanidades,
sustentam cientificamente que o direito a esse território seja garantido.
Assim, conceitos como fronteira, ancianidade e interdependência
configuram uma tríade que permite verificar de que forma o contato entre duas
racionalidades pode ser pernicioso para grupos indígenas que se constituem
social e culturalmente numa perspectiva coletiva, mas que não dispõem de
ferramentas institucionais eficientes para se representar coletivamente, e cuja
cosmogonia não se assemelha ao que a sociedade ocidental inscreve em suas
instituições como formas eivadas de critérios de validade. Instituições formais
demonstra que a identidade construída por um grupo, ou mesmo um indivíduo está diretamente
relacionada ao cenário no qual o mesmo está inserido.
7
operam com arcabouços teóricos de compreensão dos indivíduos quando se
relacionam entre si e com as regras inscritas nessas instituições, sem incluir
nos pressupostos dessa interação os formatos culturais de outros tipos de
racionalidade que não são comuns à sociedade capitalista avançada.
Em uma perspectiva de compreensão de diferenciados momentos
históricos, vale revisitar a compreensão de Euclides da Cunha sobre a
Amazônia. Esta, para o autor "ainda sob o aspecto estritamente físico,
conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um século de perseverantes pesquisas
e uma literatura inestimável, de numerosas monografias, mostram-no-la sob
incontáveis aspectos parcelados. A inteligência humana não suportaria, de
improviso, o peso daquela realidade portentosa." escreveu Euclides da Cunha,
no inicio do século XX, quando nomeado chefe da comissão mista brasileiroperuana de reconhecimento do Alto-Purus, com o objetivo de demarcar limites
entre o Brasil e o Peru. Mais de cem anos se passaram desde que Euclides
esteve nessa região e o excerto acima ainda se mostra evidente.
A região de fronteira a qual o célebre autor foi apresentado em 1905 se
mostrava enquanto uma área portentosa e ao mesmo tempo conflituosa.
Segundo Kassius Pontes (2005), Euclides dava a “Amazônia uma visão de
constante mutação, de construção inacabada, uma espécie de página
incompleta do Gênesis12”. Essa página incompleta e quase esquecida a qual
Euclides referencia a Amazônia encontra-se ainda no imaginário ocidental
desde o século XVIII como uma área de fronteira marcada pela idéia de espaço
vazio. Tal compreensão permanece até os dias atuais, tanto nas concepções
dos indivíduos que migram para esse território quanto para os tomadores de
decisão que operam nas políticas públicas.
Mesmo cem anos depois, a realidade dessa região encontra-se pautada
em muitos aspectos descritos por Euclides em seus inúmeros ensaios
amazônicos. No entanto, existe uma diferença fundamental que caracteriza
esse espaço de tempo: os problemas da época de Euclides eram fronteiriços e
marcados pela luta do território no que ele considerava como um “conflito
inevitável” entre Brasileiros e Peruanos; Já no contexto atual, se evidenciam
12
Vale lembrar que Euclides da Cunha integrava um corpo de intelectuais marcadamente
influenciados pelas lógicas evolucionistas que, além de forjar o escopo das ciências naturais,
se espraiou para as ciências humanas, especialmente a Antropologia, então em consolidação
como disciplina. Daí a idéia de “gênesis”, o cenário inicial da formação da civilização.
8
inúmeros problemas sociais envolvendo as populações tradicionais com a
gestão pública, no sentido de acesso de recursos e até mesmo nos processos
políticos.
O conflito que a expedição de Euclides visava diplomaticamente sanar
com a demarcação dos limites de Brasil e Peru, era entre os Caucheiros13
peruanos e os Seringueiros brasileiros. Atualmente, na região em questão
inexistem conflitos nesse sentido. Entretanto, problemas sociais são evidentes
nos dois lados da fronteira, com outra relevante diferença dos tempos de
Euclides, o numeroso contingente de grupos indígenas distribuídos ao longo da
região transfronteiriça da qual o sinuoso Rio Purus separa.
2.1 Reflexões sobre o conceito de fronteira para Santa Rosa do
Purus
Fronteira em seu conceito amplo, diz respeito a uma determinada área
de duas partes distintas. Tal conceito foi ao longo da história se consolidando e
tanto no período das monarquias nacionais, quanto da Paz de Westphália14, o
estabelecimento e delimitação do alcance do poder do Estado necessitavam de
uma maior exatidão. No entanto, essa fronteira pode representar muito mais
que uma mera divisão ou unificação de partes. Esse conceito pode representar
também, o nível de autonomia e soberania de um Estado sobre o outro, dois
regimes políticos e/ou ideológicos, duas formas de organização e o que a
fronteira que se buscará explicar neste trabalho exemplifica, o de duas
realidades distintas.
Atrelado, e muitas vezes sinônimo ao conceito de fronteira, o conceito
de limite é comumente utilizado. Entretanto, cabe diferenciação. A fronteira, no
seu sentido amplo marca e coloca o outro lado como o diferente, ou seja, como
o começo do novo, pode-se assim dizer. Já o limite, designa o fim do controle
de uma determinada unidade político-territorial. Em outras palavras, fronteira
13
Faz referência ao Caucho, árvore presente na fauna da região e muito explorada na época.
Dela é possível extrair uma goma elástica que, alem de ser de qualidade inferior ao látex, não
se renova.
14
Foram uma série de tratados, que alem de encerrarem conflitos como a Guerra dos Trinta
Anos, inauguraram o moderno sistema internacional ao colocarem consensualmente noções e
princípios como o de soberania estatal e o de Estado Nação. Em suma, delimitaram as
fronteiras de poder de um Estado com o outro e se transformaram em um marco das Relações
Internacionais.
9
diz respeito uma ordem e/ou demarcação natural, geométrica e até mesmo
arbitrária, ou seja, de integração; todavia, o limite é uma abstração como fator
de separação.
Na região foco deste trabalho, a fronteira é natural; na verdade, a
fronteira é o próprio rio. O Rio Purus, caracteriza-se por uma sinuosidade
peculiar que somado a sazonalidade entre os períodos de seca e de cheia,
resulta em uma navegação repleta de desafios em sua totalidade de quase
3.300 Km. É considerado um rio de águas brancas e o aspecto meândrico que
é conferido ao mesmo é notado desde sua nascente no Peru, passando pela
Bolívia e desembocando nos estados do Acre e do Amazonas, no Brasil. A
característica transfronteiriça que também é atribuída ao Purus deve ser
atentamente analisada, pois ações voltadas ao desenvolvimento da região não
podem se limitar a aspectos meramente geopolíticos e, sim, permear a bacia
hidrográfica como um todo, além de respeitarem fatores sócio-políticos e
econômicos da região.
De toda sorte, pensar em Santa Rosa do Purus significa pensar na
fronteira a partir de seu conceito clássico, ou seja, significa pensar no sentido
de ocupação de áreas pouco povoadas e que têm nesse processo de
ocupação uma dinâmica social própria marcada pela ausência do Estado e das
regras institucionalizadas que normalmente orientam as ações dos atores
sociais (CASTRO e HÉBETTE, 1989).
3.
Santa Rosa do Purus: uma cidade indígena
Resultante do desmembramento do município de Manuel Urbano,
Santa Rosa do Purus foi constituída através da Lei Estadual nº 1.028 de 28 de
abril de 1992.
Como município de fronteira internacional (Brasil/Peru), Santa Rosa do
Purus encontra-se bastante isolada, pois o acesso ao município restringe-se ao
transporte fluvial e a pequenas aeronaves que chegam à pista de pouso
improvisada de terra batida mantida pela gestão pública local. A ausência de
rodovias perfila um isolamento que marca toda a região do município. As
atividades econômicas giram em torno, especialmente, do extrativismo, sendo
a pesca de subsistência a segunda atividade mais importante. As atividades
agrícolas restringem-se à produção de culturas de consumo local em
10
decorrência do difícil escoamento da produção. Este se dá normalmente por via
fluvial, ainda que bastante limitado pelas imposições da dinâmica da cheia e
vazante do rio que impedem a navegação de embarcações de grande calado.
No que se refere a uma estruturação urbana, a dotação de
equipamentos é bastante limitada. Duas escolas de ensino fundamental e
médio atendem toda a população local, sendo que apenas uma escola de
ensino fundamental
(apenas até a quarta série) atende a demanda dos
moradores. Como uma cidade jovem Santa Rosa do Purus apresenta baixa
densidade populacional, evidenciada nos dados comparativos aos municípios
vizinhos apresentados a seguir.
Tabela1 : Número de população residente por sexo nos municípios que
compõem a bacia do Purus (Acre).
Acre
Sena
Madureira
Manoel
Urbano
Santa
Rosa do
Purus
M
12.47
1
2.764
1991
F
11.72
6
2.563
T
24.19
7
5.327
-
-
-
M
15.28
3
3.375
2000
F
14.13
7
2.999
T
29.42
0
6.374
1.163
1.083
2.246
Fonte IBGE: População (1970-2000).
Do total populacional acima apresentado, mais de 50% é constituído de
indígenas, já que a sede municipal encontra-se próxima à Terra Indígena Alto
Purus onde as etnias Kulina (se autodenominam Madija/Madiha e falam a
língua Arawá) e Kaxinawá (se autodenominam Huni Kuin e falam a língua
Pano) compõem as 34 aldeias que integram essa TI. A imagem a seguir
permite visualizar a presença e proximidade da área indígena da sede
municipal.
11
Imagem 1: Terra Indígena Alto Purus
Fonte: ISA, 2009
A divisão das terras entre essas duas etnias acontece em um cenário
até recentemente ausente de conflito, já que há um consenso sobre o uso e
divisão da área entre esses dois grupos. As aldeias contam normalmente com
Professor, Técnico de Enfermagem, Agente Indígena de Saúde - AIS e Agente
Indígena Sanitário – AISAN. Tal quadro interno de serviços criado para as
aldeias origina recursos que garantem uma relação mais próxima de consumo
com artigos oriundos da sociedade maior. Agregado a esse cenário as políticas
públicas sociais do governo federal, como bolsa família, potencializam ainda
mais esse quadro de consumo. Vale ressaltar que os artigos demandados
restringem-se basicamente ao rancho15 mensal. No entanto, o recurso recebido
volta-se significativamente para a compra de combustível usado para os
deslocamentos
15
no
rio
entre
aldeias/aldeias
e
aldeias/cidade.
Esse
Rancho é a denominação regional do conjunto de artigos comprados para o consumo
mensal de uma família. Normalmente é composto de sabão, sal, açúcar, óleo, margarina,
bolacha, charque, arroz e feijão. No caso dos grupos indígenas, o rancho restringe-se
basicamente aos quatro primeiros itens mencionados nessa composição.
12
deslocamento merece um destaque, já que as atividades e conexões entre as
aldeias representam parte do cotidiano dessas etnias e se inserem de forma
intensa no cotidiano. As relações de parentesco, marcadas por uma vida social
de visitas freqüentes e mesmo para trabalhos na roça demandam um
deslocamento custoso, pois alimentado pelo combustível16 que move pequenas
embarcações conhecidas como rabeta.
Foto 1: Embarcações indígenas conhecidas como rabeta.
Fonte: Pesquisa de campo – Jun/2009.
Atividades de pesca e caça em áreas mais distantes também são
realizadas através de rabetas. Dessa forma, o consumo de combustível é
bastante elevado, o que demanda uma preocupação entre essas etnias
com a disponibilidade monetária para a efetivação da compra desse tipo de
artigo. É nesse sentido que as relações indígenas de dependência
monetária, especialmente Kaxinawá, marcam o cenário da vida de Santa
Rosa do Purus, de tal sorte que mesmo na esfera da organização do
espaço da sede municipal essa característica se expressa. Assim, há um
bairro onde apenas os Kaxinawá residem, lá constroem suas casas, nas
quais se estabelecem quando vêm à cidade para receber os recursos
oriundos da bolsa família, ou mesmo seus salários.
Nesse movimento de ir e vir, os Kaxinawá findam passando parte
significativa do mês na sede municipal. Em longo prazo, muitas famílias
16
As rabetas normalmente são movidas à gasolina que pode ser acrescida de óleo para motor
buscando maximizar a quantidade barateando o produto final através da mistura.
13
permanecem às vezes por vários meses do ano em Santa Rosa do Purus.
As estratégias de sobrevivência entre os Kaxinawá, nesse cenário urbano,
voltam-se para a demanda de auxílio junto ao poder público local. Este
mostra-se bastante receptivo para esse tipo de atendimento, já que é
através dessas relações que situações clientelistas se estabelecem e
marcam o cenário da gestão municipal e dos processos eleitorais.
Esse cenário de dependência e troca com o poder público local vem
desenhando um novo perfil populacional entre os Kaxinawá. Enquanto que
na década passada a TI Alto Purus apresentava menos de 15 aldeias
somando as duas etnias que compõem a área, após uma década esse
número saltou para mais de 30 aldeias. Tal cenário pode ser explicado
quando se evoca a estrutura administrativa originada nos serviços de
educação e saúde garantidos para os grupos indígenas, pois tais serviços
criam uma estrutura que se traduz em recursos monetários para uma aldeia
com uma média de 20 famílias. Assim, a abertura de uma aldeia significa a
criação de pelo menos três postos de trabalho (AIS, AISAN e Professor
Indígena) que podem ser alargados para mais dois postos (Técnico em
Enfermagem e Parteira).
O fator perverso desse processo pode ser observado apenas a longo
prazo. Se grandes aldeias, marcadas por atividades agrícolas perfiladas
pelas estratégias de parentesco e mutirão marcaram o cotidiano Kaxinawá
até início do séc XXI, esse cenário vem cedendo lugar a aldeias pequenas,
originadoras de empregos e recursos monetários, em sua estrutura de
funcionamento articulada ao aparato das políticas voltadas aos indígenas. A
gestão
municipal
evidencia-se
como
a
principal
interlocutora
e
operacionalizadora desse processo, já que, às administrações municipais
cabe, localmente, implementar e desenvolver tais políticas.
A abertura de novas aldeias, no entanto, demanda um aumento
populacional que justifique tais criações. Considerando que a divisão
geopolítica entre Brasil e Peru não é reconhecida pelos Kaxinawá, a busca
pelo aumento dos grupos através da migração dessa etnia da área peruana
para o Brasil vem se mostrando como uma estratégia bastante eficaz entre
os
Kaxinawá
para
crescer
seu
contingente
populacional.
Os
desdobramentos perversos se traduzem nas alterações do cotidiano
14
Kaxinawá de trato com a natureza, de esquecimento silencioso de suas
técnicas de plantio, de suas regras de reciprocidade e mesmo de suas
tradições mágicas17.
Mas um outro desdobramento vem perfilando esse cenário. Se por
um lado os Kaxinawá, obnubilam suas tradições, seus costumes e mesmo
seu conhecimento e técnica de trato com a natureza no contato com a
sociedade maior, por outro lado a estratégia de migração Kaxinawá no
sentido Peru/Brasil, realimenta essa sistema cultural. É evidente o
reconhecimento entre as lideranças Kaxinawá brasileiras da importância da
memória de seus ancestrais e que muitas vezes pode ser acessada apenas
entre os mais velhos, no caso aqueles que se encontram em território
peruano18. Ao mesmo tempo, a experiência em território peruano permite
estabelecer comparações entre políticas públicas dos diferentes países.
Nesse sentido, tanto os Kaxinawá que migram para o Brasil percebem a
disponibilidade de serviços oriundos de políticas públicas específicas para
os indígenas, ou mesmo aquelas de redistribuição de renda, como o caso
da bolsa escola como uma vantagem do território brasileiro. Por outro lado,
e considerando o cenário de participação indígena na vida política em
território
peruano,
os
Kaxinawá
identificam
as
possibilidades
de
aprendizagem de uma lógica do campo político que também pode ser
usada nas experiências no Brasil19.
17
Como primeiro resultado de pesquisa este artigo traz apenas dados da última viagem a
campo, todavia, novas abordagens deverão compor as etapas seguintes do estudo. O
refinamento na análise das mudanças vivenciadas pela atual situação de contato dos grupos
Kulina e Kaxinawá e envolvimento com a sociedade maior mostra-se como prioritária. Uma
análise comparativa deverá ser empreendida tanto na perspectiva temporal, para o resgate de
memória, como entre as formas diferenciadas que essas duas etnias apresentam no processo
de interface com a sociedade maior.
18
Nas entrevistas foi possível constatar que em território brasileiro a geração mais velha
Kaxinawá, entre 65 e 75 anos, interage de forma conflituosa com as gerações mais jovens
negando o repasse, em alguns casos, do conhecimento tradicional Huni Kuin.
19
A cidade de Esperanza, em território peruano, teve no último processo eleitoral um Kaxinawá
escolhido para ocupar o cargo de Alcalde, um fincão semelhante ao prefeito, na estrutura
burocrática e de gestão brasileira.
15
Foto 2: Processo Eleitoral em Palestina, cidade vizinha em território
peruano.
Fonte: Pesquisa de campo – Jun/2007.
Considerações Finais
Em cenários de fronteira, onde dinâmicas diferenciadas muitas vezes se
sobrepõem, uma situação chama atenção: o fluxo e refluxo de experiências
entre uma mesma etnia para o enfrentamento de situações de marginalização
impostas pela sociedade maior. Esse movimento evidencia-se como uma
estratégia para enlarguecer experiências construindo novos conhecimentos
entre os Kaxinawá. O discurso sobre tal aprendizado como um fator importante
na relação com a sociedade do branco, especialmente na esfera política, está
fortemente presente entre as lideranças indígenas. Ao construir uma cognição
diferenciada resultante de cenários políticos e de gestão variados (Peru e
Brasil) os Kaxinawá se fortalecem para momentos futuros que demandarão um
posicionamento mais articulado frente às mudanças e imposições da sociedade
do entorno.
REFERÊNCIAS
BECKER, Bertha K. Amazônia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1998.
16
BREHM, John & SCOTT, Gates (1999). Working, Shirking, and Sabotage:
Bureaucratic Response to a Democratic Public. Ann Arbor: University of
Michigan Press.
CASTRO, Edna Maria Ramos de e HÉBETTE, Jean (Org.) Na trilha dos
grandes projetos. Modernização e conflitos na Amazônia. Belém:
UFPA/NAEA. Cadernos NAEA, nº 10. 1989.
CUNHA, Euclides. O Inferno Verde. In Um Paraíso Perdido: Ensaios
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Fronteiras, indígenas e gestão pública: os Kaxinawá em Santa Rosa