INFÂNCIA E INACABAMENTO: UM ENCONTRO ENTRE PAULO FREIRE E GIORGIO AGAMBEN Elydio dos Santos Neto1 Marta Regina Paulo da Silva2 Resumo Este estudo pretende, através de uma pesquisa teórica, aproximar os conceitos de inacabamento de Paulo Freire e infância de Agamben, no intuito de contribuir para a construção de uma pedagogia que respeite a infância. Demonstra como a política neoliberal tem sufocado o quanto de beleza nossa condição infantil pode expressar no processo de construção de nós mesmos como seres humanos. Aposta então numa concepção de infância mais afirmativa, entendida como condição da existência humana, contrapondo as imagens de infância como minoridade, inferioridade, dependência... tão presentes em nossa sociedade. Trabalha com a hipótese de que a infância, no sentido agambeniano, é uma das manifestações do inacabamento do ser humano, portanto, uma de suas expressões de esperança. Reconhece a esperança como desafio a dimensão política da educação. Conclui em defesa de uma Pedagogia da Infância Oprimida que seja capaz de favorecer uma relação libertadora com o conhecimento, relação que nos torne abertos ao mundo, curiosos, inquietos, criativos, capazes de pensar uma outra realidade, de construir uma outra História, uma outra sociedade, mais justa, mais acolhedora e mais feliz. Palavras-chave: inacabamento – infância – pedagogia da infância oprimida Introdução Vivemos um tempo no qual o capitalismo se expande e se reproduz sob a sua mais recente aparência: o neoliberalismo e a globalização da economia. Esse movimento que proclama o “fim da História” traz, por meio das palavras daqueles que o defendem, a afirmação da inutilidade e do vazio das utopias, e diz não ser possível outra ação a não ser a de aperfeiçoar o sistema capitalista. Para os defensores destas idéias, não há como pensar a 1 Doutor em Educação pela PUC/SP. Docente e pesquisador do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. Atua na formação de educadores e educadoras em instituições públicas e privadas. E-mail: [email protected] 1 transformação da sociedade: o futuro será necessariamente o capitalismo melhorado ou não será, ou seja, não há nada de novo pela frente. E, portanto, não há mais lugar para o sonho, a utopia e a esperança, sobretudo, quando estes têm por objetivo transformações radicais, como é o caso da transformação da sociedade capitalista. Esse modo de ver e pensar o mundo tem efeitos devastadores sobre os educadores que construíram suas práticas a partir da intencionalidade da mudança e da transformação. Muitos, já cansados e exauridos pelas enormes exigências das rotinas cotidianas de trabalho, terminam por sucumbir diante da pretensa “evidência” de que não é possível fazer mais nada e que, nos confrontos ideológicos que alimentam a construção da sociedade, o modo de pensar capitalista saiu definitivamente vitorioso. Será mesmo assim? Não haverá mais lugar para a utopia, o sonho, o desejo de transformação e a esperança? De onde nasce a esperança e qual a sua importância para os educadores? É possível sustentá-la nas práticas de ação e formação docentes? A esperança pode ser um antídoto contra uma certa “síndrome de desistência” que ameaça as pessoas em geral e os educadores em especial? Encontramos em Paulo Freire e Giorgio Agamben contribuições que iluminam os aspectos antropológicos desses questionamentos. Os conceitos de inacabamento em Freire e de infância em Agamben ajudam a compreender os fundamentos do processo de construção do si mesmo humano e, por isto, possibilitam uma crítica radical à vida e aos processos formativos na maneira como vêm determinados pelo neoliberalismo. Este trabalho, de natureza teórica, num primeiro momento explicita o empobrecimento da experiência humana pelo neoliberalismo, e em seguida apresenta e correlaciona os conceitos de inacabamento e infância defendendo uma Pedagogia da Infância Oprimida. O empobrecimento da experiência humana Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência. (Giorgio Agamben) A sociedade contemporânea, marcada pela política neoliberal, tem dificultado nossa experiência; haja vista a força do seu discurso que busca roubar de nós nossa própria humanidade. Discurso que afirmando ser o capitalismo a única forma possível de relações econômicas e sociais, prega o fim da História, o fim das utopias, querendo nos fazer acreditar 2 que somos apenas seres de adaptação e que é preciso permitir o curso “natural” da História. Discurso que cria o sonho do consumo, onde o sentido de pertencer está atrelado ao acúmulo das coisas, sejam elas bens materiais ou informações. Ter cada vez mais. Acumular e rapidamente descartar para então consumir novos produtos. Eis o sentido criado por esta política: o de “ter”, da novidade, do descartável, da substituição e inovação das mercadorias, do supérfluo. Larrosa (2004) em texto sobre o saber da experiência manifesta sua preocupação com a mecanização da vida, nesta rotina cotidiana à qual muitas coisas passam por nós sem que sejamos tocados por ela, sem que olhemos para nós mesmos tentando compreender o que significa para cada um de nós aquilo que estamos vivendo, sem perceber o que isto nos provoca. Nesta sociedade marcada pela lógica do mercado, já não há tempo para ser tocado pelo que nos acontece, já não há tempo para a experiência. Na cultura do espetáculo perdemos a visão da totalidade, ficamos presos a imagens que escapam ao nosso controle e que nos afastam do mundo vivido, há um empobrecimento da vida cotidiana; “imagem é tudo”, como nos afirma insistentemente a mídia. Aqui muitas coisas se passam sem que nos afetem, entre elas as pessoas, já que também as relações sociais são mediatizadas pelas imagens. Tudo é muito rápido e, dentro da lógica capitalista, “tempo é dinheiro”, não podemos perder tempo. Corremos atrás de um tempo que nunca chega: o amanhã, depois, mais tarde, agora não dá..., não vivemos o tempo presente. No presente corremos atrás das informações e novidades, que nos chegam cada vez mais velozes e que terminam por não serem apreendidas por nós, o que as torna quase sempre descartáveis. Consumimos as novidades, engolimos o que nos chega sem apreciar o seu sabor e, com a mesma facilidade com que engolimos também as eliminamos, para então ingerir novas informações. Não há tempo para a digestão. Ainda contra a experiência, Larrosa (2004) aponta o excesso de opiniões; pois, além de informados, devemos opinar sobre todas as coisas, sobre tudo o que se passa e, caso não tenhamos um julgamento sobre isto ou aquilo, nos sentimos mal, como se algo nos faltasse, e então nos cobramos por isso. E o que dizer do excesso de trabalho? Trabalho não significa, necessariamente, experiência, afinal, podemos, como Sísifo, rolar pedra montanha acima, descer a montanha e subir novamente sem, no entanto, viver a experiência, sem observar o que se passa conosco enquanto estamos nesta atividade, sem nos reconhecer nela, sem nos permitir deixar levar pelo desconhecido, pelo imprevisível: 3 O sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade. Sempre se pergunta sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo, consertar algo (...). E nisso coincidem os engenheiros, os políticos, os fabricantes, os médicos, os arquitetos, os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os pedagogos e todos aqueles que projetam sua existência em termos de fazer coisas. (Larrosa, 2004, p. 159) Vivemos agitadamente o mundo, aligeiradamente a vida. Não podemos parar. Estamos “ligados”, constantemente excitados e, justamente por isso, nada nos acontece. Benjamim, em 1913, dizia que a máscara do adulto chama-se “experiência”, sendo ela impenetrável, inexpressiva, sempre igual (1984, p. 23); e hoje, não continuamos a nos esconder com tal máscara? Falas como: “eu tenho vinte anos de experiência”, “sempre fiz assim e deu certo”, “eu sei o que estou dizendo, já passei por isto”... não mascaram o medo que temos de nos permitir o desconhecido, o imprevisível? Não teria tal máscara a função de nos proteger de nós mesmos pela falta de sentido da vida, pelos sonhos não realizados, pelas paixões não vividas, pelo isolamento, pela infância não respeitada? Tirada a máscara o que realmente experimentamos? A modernidade capturou-nos com sua pretensa objetividade em detrimento de nossa subjetividade; exaltou a razão, desprezou a paixão, o corpo; a ciência transformou experiência em experimento, a quantificou; a infância silenciou sua voz, acreditou ser ela inferior, inútil. A modernidade consagrou a maioridade, entendida como racionalidade, maturidade, emancipação e liberdade. Estamos fadados a fazer necessariamente este caminho? A experiência como constitutiva do modo humano de ser está para sempre destruída? Ou existirão outros modos de ver o mundo e a vida que nos permitam retornar às origens infantis da experiência? A infância como possibilidade de experiência: condição para a existência humana. Agamben (2005), tomando como ponto de partida as idéias de Benjamim, afirma a insuportabilidade da existência cotidiana pelo empobrecimento da experiência: É esta incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável – como em momento algum no passado – a existência cotidiana, e não uma pretensa má qualidade ou insignificância da vida contemporânea confrontada com a do passado (aliás, talvez jamais como hoje a existência cotidiana 4 tenha sido tão rica de eventos significativos). (Agamben, 2005, p. 22) Embora marcada por uma multiplicidade de eventos, pouco ou quase nada da atual existência cotidiana se constitui em experiência, ou seja, muitas coisas passam por nós sem que sejamos tocados ou afetados por elas. Estamos alheios ao que nos passa, ao que nos afeta. A experiência, como um modo de ser e de estar no mundo, supõe disponibilidade e abertura ao que a ela se oferece, ao mesmo tempo em que permanece sujeita às influências do desejo, das necessidades, da imaginação e da paixão. Por isto a experiência ser caracterizada também pela singularidade, pela heterogeneidade, pela imprevisibilidade, pela incerteza e pelo des-controle. Daí decorre a ciência moderna ter se empenhado tanto em cercear a experiência. Para Agamben (2005, p.25-26) a expropriação da experiência estava implícita no projeto de tal concepção de ciência, uma vez que ela nasce de uma desconfiança em relação à experiência. Imprevisibilidade e incerteza não cabem no discurso desta ciência. É preciso medir, quantificar, prever, encontrar um caminho seguro, criar instrumentos de medição e um método que quantifique com exatidão as impressões sensíveis. Experiência transformou-se assim em experimento, cuja lógica é a do consenso, da homogeneidade, do genérico, daquilo que pode ser repetido, do previsível. Ao contrário do experimento que se fecha, que cerceia o homem em sua singularidade, a experiência implica em abertura ao novo, ao desconhecido, àquilo que é dado a conhecer. Isto faz com que Agamben aproxime o conceito de experiência à idéia de infância. E como se dá esta aproximação? Através da noção de sujeito. Apoiado em Benveniste, afirma que é na linguagem e através dela que o homem se constitui como sujeito. Com este autor acredita que a subjetividade é fruto da linguagem: Esta subjetividade, quer a coloquemos em fenomenologia, quer em psicologia, nada mais é que o emergir no ser, de uma propriedade fundamental da linguagem. É ‘ego’ aquele que diz ‘ego’. É este o fundamento da subjetividade que se determina através do estatuto lingüístico da pessoa... A linguagem é organizada de modo a permitir a cada locutor apropriar-se da inteira língua designando-se como eu. (Beneviste, apud Agamben, 2005, p. 56) Embora seja a linguagem que defina a constituição do sujeito, o homem não nasce sabendo falar. Ele aprende a falar. Há, portanto, um determinado momento em que ele é nãofalante; é aquele-que-não-fala; infante: 5 A idéia de uma infância como uma ‘substância psíquica’ présubjetiva revela-se então um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. (Agamben, 2005, p. 59) Sendo assim, a ausência de voz – enfant – não significa uma falta, e sim uma condição, uma vez que é na infância que nos constituímos como sujeitos na e pela linguagem.O ser humano é o único animal que aprende a falar, e não o faria sem a infância, pois é nela que se introduz a descontinuidade entre aquilo que é natureza e aquilo que é cultura, entre língua e discurso. Agamben não entende, pois a infância apenas como etapa cronológica da existência humana. Ela, em verdade, é uma condição para que o próprio homem continue a viver, transformando, no cotidiano, a não-fala em língua e discurso capazes de colocá-lo na situação de criador de cultura: (...) a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito. (Agamben, 2005, p. 59) Para Agamben a língua é anistórica, isto é, é natureza, não necessita de uma história. Se o homem nascesse falante seria já natureza, não haveria algo do qual devesse se apropriar. Seria um homem sem infância, nada tendo a aprender ou construir, ou seja, um homem sem história. Eis aqui o fundamento da historicidade do ser humano. Porque somos não-falantes e nos construímos como falantes há história. E porque os falantes continuam infantes e continuam também, permanentemente, aprendendo a falar e a serem falados, a historicidade do ser humano segue fazendo-se. Isto, para Agamben, é a experiência. Portanto o homem é fundamentalmente experiência, isto é, se constrói na medida em que está aberto e disponível a sair da condição de não-falante para condição de falante, de transformar língua em discurso, de designar-se como “eu”, de ser sujeito, de construir cultura. Infância e inacabamento se encontram aqui. 6 Inacabamento, esperança e leitura do mundo: a visão de Paulo Freire. Com Freire compreendemos o ser humano como inacabado e, portanto, aberto; como um ser de desejo (Freire, 2001, p. 37); como um ser social e político que se constrói nas relações com os outros seres humanos; como um ser singular que cria sua peculiar maneira de ser, embora faça parte, com os outros, da mesma espécie humana; como um ser que tem uma história, se constrói na história e constrói história; como um ser que interpreta o mundo; como um ser que se empenha em atribuir sentido às experiências que vive; que age no mundo; que precisa aprender para construir a sua maneira de ser; que apresenta em sua condição humana, um tecido de elementos diferentes inseparavelmente associados, como é o caso da racionalidade, da corporeidade e do mundo da emoção. Para este autor, inacabamento e esperança estão presentes de forma conjunta na condição humana: A matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou consciente. Seria uma agressiva contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse num permanente processo de esperançosa busca. (Freire, 2000, p. 114) Somos seres de intervenção, nossa vocação ontológica é a de “ser mais”, de transgredir, de fazer rupturas, de movimentar a História. História compreendida aqui como possibilidade, isto é, o amanhã é problemático e é construído mediante a ação transformadora no hoje (Freire, 2000, p. 40). Somos seres políticos; capazes de desvelar a beleza escondida nas coisas do mundo, seres poéticos, capazes de amar, de criar, de sonhar, de lutar, seres utópicos; um projeto ilimitado. Mas também capazes de explorar o outro, de “matar” o sonho, de negar a liberdade, de desumanizar. Desta forma, se a humanização é uma possibilidade de nossa condição de ser inconcluso, seu contrário também o é, ou seja, uma outra possibilidade é a desumanização. No entanto, e aqui concordando com Freire apenas a humanização seria nossa vocação ontológica; vocação esta negada na opressão, na injustiça; mas afirmada no desejo de liberdade e de justiça. É preciso reinventar o mundo, buscar sua boniteza. Boniteza que passa pela nossa capacidade de imaginar, de criar, de agir, de transgredir... de nos comprometer com a existência humana, alimentados aqui pela esperança. Esperança que faz parte da condição humana, pois sem ela não haveria História. É ela que nos motiva a resistir e enfrentar os 7 obstáculos que impedem nossa alegria, que instiga nossa curiosidade na busca da compreensão e transformação do mundo. Mundo que reivindica hoje, mais do que nunca, nossa opção por uma educação libertadora. Talvez aqui tenhamos o maior desafio da educação, o desafio da esperança, da crença em nossa possibilidade de reinventarmos o mundo. Crença cada vez mais sufocada frente ao discurso fatalista do neoliberalismo: Constituir-se como sujeito e como educador em meio à sociedade neoliberal é uma tarefa difícil, que exige capacidade de resistir a todas as formas de agressão que o sistema faz no sentido de tirar, de cada sujeito, o direito de construir a própria identidade com liberdade e autonomia de tal forma a ser autor da própria história e a participar, solidária e criativamente, da construção da história coletiva. A esperança estará presente, como antídoto e como estímulo, se estiver presente nas práticas educativas: no momento da construção do projeto políticopedagógico da escola; (...) na reflexão crítica da prática individual; na reflexão crítica da prática coletiva; na análise do contexto no qual a vida se faz e refaz; nas maneiras de fazer a formação continuada dos educadores. (Santos Neto, 2004, p. 61) A partir destas concepções a leitura do mundo para Freire ganha contornos especiais: é através dela que o sujeito pode afirmar-se no mundo com autonomia e capacidade de autoria. Na Pedagogia Libertadora ou Pedagogia da Esperança o diálogo entre educador e educando tem especial importância, uma vez que é um dos elementos fundamentais para superar a pedagogia autoritária, que impõe sua visão de mundo e impede a construção da autoria e da autonomia. Diálogo compreendido aqui como encontro entre mulheres e homens para “serem mais”, na perspectiva de sua humanização. Ninguém se educa sozinho e sim em comunhão, e o diálogo é a forma que nós, seres humanos, historicamente, criamos para comunicar o mundo e assim modificá-lo; é, portanto, um ato de criação e recriação. O diálogo solicita de nós o aprendizado da escuta, o que só é possível fazer quando reconheço o outro como sujeito, quando não discrimino, quando estou aberto a aprender com ele; somente escutando é que aprendemos a falar com o outro e não para o outro. Inacabamento e infância: aproximando Freire e Agamben Experiência e infância se identificam em Agamben. É nelas que o ser humano se constrói na história. Pela experiência está aberto ao mundo e disponível a modificar-se, transformar-se. É também o caminho pelo qual o sujeito, no momento que assume sua fala a partir do mundo e sobre o mundo, também pode modificá-lo. Movimento semelhante se 8 observa no pensamento freireano: a condição de inacabamento nos torna abertos ao mundo e autores da história. É possível, pois dizer que se para Agamben há história porque há infância, para Freire há infância devido à condição de inacabamento do ser humano. Assim, a infância no sentido agambeniano, é uma das manifestações do inacabamento do homem e, portanto, uma das expressões de esperança. Talvez aí esteja a raiz crianceira da infância: nosso inacabamento. Raiz que nos torna abertos ao mundo, curiosos, inquietos, criativos, capazes de pensar um outro mundo, de construir uma outra História; de sermos sujeitos da experiência. Experiência compreendida aqui como aquela na qual somos tocados pelas coisas do mundo, afetados por elas, e de onde saímos transformados. Experiência como infância. Uma infância que não nos abandona, que insiste em nos acompanhar por toda a vida. “Ela é condição. Não há como abandonar a infância, não há ser humano inteiramente adulto. A humanidade tem um sôma infantil que não lhe abandona e que ela não pode abandonar. Rememorar esse soma infantil é, segundo Agamben, o nome e a tarefa do pensamento.” (Kohan, 2003, p. 245); para este autor pensamento chama-se política. Assim a infância assumida como condição da existência humana – em seus aspectos de enfrentamento do não-falar, da criação, da transgressão, afirmação da vida – deve ser resgatada do exílio que terminou por completar-lhe o sistema capitalista e, dentro dele, a ideologia neoliberal. À doutrina neoliberal não interessa que os seres humanos sejam autores, digam sua palavra, transformem o mundo, afirmem a vida, criem beleza e sejam abertos à experiência. Importa sim sufocar a experiência e apagar a consciência do inacabamento, impondo no lugar a idéia do fim da história: não há o que fazer a não ser manter o sistema capitalista e aperfeiçoá-lo. É preciso um gesto de ruptura. Por uma Pedagogia da Infância Oprimida Como vimos, o sistema no qual vivemos tem submetido e oprimido duplamente a nossa infância, seja aquela entendida como primeira etapa da vida humana, seja aquela compreendida como condição da existência humana. A infância, das elites ou das classes populares, das crianças ou adultos tem sido duramente combatida por quem deseja ver mantida a sociedade assim como está. Os combates se dão nas escolas, nas academias, nas agendas superlotadas, na violência, na fome, nas drogas, na exploração infantil, na exacerbação do consumismo capitalista... 9 Contudo, somos seres da intervenção, seres políticos, e é esta nossa condição infantil, marcada pela curiosidade, pela paixão, pela nossa capacidade de sonhar, de imaginar, de criar, de transgredir... que tem possibilitado a nós humanos construirmos a História, e acreditamos ser ela que nos possibilitará resgatar nossa humanidade, tão esquecida nos dias atuais, resgatar nosso direito de “ser mais”, de ser sujeito e não objeto, de encontrarmos um sentido para a vida, para a existência humana, de sermos sujeitos da experiência. Experiência e infância que aqui se encontram. Uma experiência, como diz Kohan, amiga da infância. Uma experiência aberta à infância. Uma infância aberta à experiência da novidade, do imprevisível, da diversidade, da busca, da ruptura, da transgressão. Uma infância da infância, e não uma fase a ser abandonada. Mas tememos a infância; tememos nos reconhecer inacabados. A sociedade capitalista exige de nós “competência”. Competência muitas vezes entendida na perspectiva de tudo saber, de ter todas as respostas, de saber lidar com todas as situações... Pensamos numa outra competência: ser competente é reconhecer-se inacabado e por isso mesmo aberto a novas aprendizagens, a novas experiências. Eu acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui, em mim. (...) Sexagenário, tenho sete anos; sexagenário, eu tenho quinze anos; sexagenário, amo a onda do mar, adoro ver a neve caindo, parece até alienação. Algum companheiro meu de esquerda já estará dizendo: Paulo está irremediavelmente perdido. E eu diria a meu hipotético companheiro de esquerda: Eu estou achado, precisamente porque me perco olhando a neve cair. Sexagenário, eu tenho 25 anos. Sexagenário, eu amo novamente e começo a criar uma vida de novo. (Freire, 2001, p. 101) Freire nos ensina aqui sobre a experiência, sobre a infância defendida neste trabalho. Uma infância que nos acompanha por toda vida: “sexagenário, tenho sete anos... tenho quinze... tenho 25 anos”. Perdendo-se ele se acha, avança para o começo, como nos diz o poeta Manoel de Barros (1997). Ensina a pensarmos num tempo que não é linear, mas onde passado e presente se cruzam; todos inacabados, pois o passado não precisaria ter sido o que foi, o mesmo com o presente, o futuro é possibilidade. Ao pensar uma história que não está acabada, cria de novo: “começo a criar uma vida de novo”. Ensina, sobretudo, que criança e adulto podem dialogar, conviver na mesma casa que é o sexagenário; o diálogo é permanente. Não é preciso matar o menino para que o sexagenário viva. Matar o menino é também matar o sexagenário. Matar o menino é matar a infância. Matar o menino é matar nossa condição 10 humana de sermos afetados pelo mundo. Matar o menino é matar a experiência; é matar o próprio homem. Deixemos então o menino viver e assim conviver com o adulto; pois como bem nos ensina Milton Nascimento e Fernando Brant: “há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração, toda vez que o adulto balança ele vem pra lhe dar a mão”. Assim, encontramos uma outra infância, mais afirmativa, entendida como condição da existência humana. Infância que traz o germe da criação, da ruptura, da transgressão, da paixão, da expressão de vida. Infância como experiência. Infância que nos possibilita repensar o caráter estetizante3 da educação. Educação, em sua grande maioria, marcada pela superficialidade do conhecimento, pelo fazer, pelo pragmatismo da atividade docente; pelo programa pautado nas metodologias de ensino em detrimento das dimensões políticas-ideológicas. Educação marcada pela mecanização da vida, por uma rotina na qual muitas coisas passam por nós sem que sejamos tocados por ela. É preciso desacelerar, suspender o automatismo de nossas ações, ater-se aos detalhes, estar aberto ao que se passa conosco e com os outros, estar disponível. Pensando no contexto em que vivemos, tal tarefa parece impossível, mas se assim o fosse, estaríamos aqui concordando com a posição determinista e fatalista dos neoliberais, com a qual não concordamos. Como Freire, acreditamos que somos seres da intervenção no mundo e não da adaptação, e se agimos assim hoje, não significa que o faremos no amanhã. O amanhã é possibilidade, o que implica em agirmos no presente. Por isso defendemos aqui uma Pedagogia da Infância Oprimida. No limite deste artigo, no entanto, queremos orientá-la na perspectiva da infância entendida como condição da existência. Para tanto, acreditamos que alguns aspectos podem auxiliar na construção de tal pedagogia, entre eles: assumir como referência antropológica fundamental o nosso inacabamento; superar a cisão, que historicamente se construiu, entre razão e sensibilidade, razão e corpo, razão e paixão...; ter no diálogo o reconhecimento dos diferentes discursos e uma forma de acolhimento e partilha das várias maneiras de ler o mundo; resgatar as narrativas individuais e coletivas na perspectiva do encontro entre a tradição e o novo, com suas exigências de abertura e disponibilidade; ser capaz de gestos de interrupção diante do “O caráter estetizante tipifica a existência desenraizada e, por isso, furtiva, a que se aceite como acidente efêmero, sem a certeza de que vale a pena ter um projeto sólido e realizá-lo. Trata-se, por outro lado, de uma existência que percebe a realidade, mas uma realidade entre aspas, porque forjada por um conjunto de aparências.” (Morais,1989, p. 126) 3 11 excesso de informações, de opiniões, de trabalho e da falta de tempo, permitindo-se a experiência; resgatar a nossa poiesis, nossa capacidade de imaginação e criação, através de diferentes linguagens; assegurar o direito a formação cultural através da dança, da literatura, do cinema, da música, do teatro...; elaborar o próprio discurso e a própria história, na perspectiva da autoria, tendo o registro e a reflexão como uma forma possível desta construção. Os pensamentos de Freire e Agamben sugerem que é possível a construção de outro mundo, de uma outra sociedade, de uma outra educação. Educação que passa pelo saber da experiência. Saber este povoado de mistério, de realidade, de sonho, de paixão, de alegria, de dor, angústia, dúvida...de vida. Saber que, segundo Larrosa, é finito, pois “revela ao homem singular sua própria finitude; saber que é “particular, subjetivo, relativo, pessoal”; que “não pode se separar do indivíduo concreto no qual se encarna”; saber que tem “a ver com vida boa, entendida essa como a unidade de sentido de uma vida humana plena, uma vida que não só inclui satisfação da necessidade senão, e sobretudo, inclui aquelas atividades que transcendem a futilidade da vida mortal.” (Veiga-Neto, 2002, p. 142) Saber que implica em voltar-se para si mesmo e para o mundo, buscando romper com rotinas mecânicas e repetitivas. Saber que solicita que “a subjetividade humana se torne visível e que as instituições estejam aí auxiliando na possibilidade de transformação deste seraí que comparece.” (Martins, 1992, p. 91) Saber que possibilite o encontro, o diálogo entre adulto e criança. Saber que recupere a infância, nossa e a do mundo. Assumir esta posição é assumir a defesa da vida, contra a cultura da manipulação e da morte. Bibliografia AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. BARROS, Manoel. Livro sobre nada. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. (Novas buscas em educação; v. 17) FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. 12 _____________. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001. KOHAN, Walter O. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Educação: experiência e sentido, 3) LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. (Educação: experiência e sentido) MARTINS, Joel. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como poiesis. São Paulo: Cortez, 1992. MORAIS, Regis. Cultura e educação: ser e projeto. 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