XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE E PRÉALAS BRASIL
04 A 07 DE SETEMBRO DE 2012, UFPI, TERESINA-PI.
GRUPO DE TRABALHO 03 - SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA DAS
EMOÇÕES
TÍTULO DO TRABALHO - ENTRE O CHORO E O RISO: A SOCIABILIDADE
EM RITUAIS FÚNEBRES
AUTORES: JOSÉ FELIPE DE LIMA ALVES (UNIVERSIDADE REGIONAL DO
CARIRI) E-MAIL: [email protected]
DOMINGOS SÁVIO DE ALMEIDA CORDEIRO (UNIVERSIDADE REGIONAL
DO CARIRI) E-MAIL: [email protected]
ENTRE O CHORO E O RISO: A SOCIABILIDADE EM RITUAIS FÚNEBRES
José Felipe de Lima Alves1
Domingos Sávio de Almeida Cordeiro2
RESUMO:
O objetivo desse trabalho é apresentar estudo sobre rituais fúnebres a partir de
dados produzidos em pesquisa com observação participante. O campo de
aproximação empírica foi construído na cidade de Campos Sales – CE,
acompanhando o traslado de um velório como cena primordial. Realizamos
entrevistas com familiares e registramos nuances de interações acontecidas
durante o evento. Observamos que os velórios vêm sofrendo mudanças, mas
ainda permanecendo como momento de sociabilidade em que no evento além
de manifestações de sofrimento são praticados diversos atos com caráter de
festa, com conversas íntimas entre amigos e consumo de bebida alcoólica.
Fazem parte desses rituais diversas formas da manifestação de emoções,
sobressaindo neles o choro, e às vezes o riso dependendo de fatores
relacionados à idade do defunto, sua inserção social e a importância da família
na sociedade local.
PALAVRAS-CHAVE: VELÓRIOS; EMOÇÕES; RITUAIS; SOCIABILIDADE.
1
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail:
[email protected].
2
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor adjunto da
Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: [email protected].
Introdução
Os sentimentos são expressos pelas pessoas no seu cotidiano diário,
sendo eles de tristeza, alegria, bom-humor etc. A partir da observação de um
velório na cidade de Campos Sales-CE, pudemos perceber diversos
sentimentos manifestados naquele momento. Foram diversas formas de
expressão, choro, nervosismo e até risos e gargalhadas. O ritual de passagem
foi acompanhado em todo o seu translado, desde o deslocamento do corpo de
uma cidade para outra até seu sepultamento.
Antecipadamente, nos inspiramos em material bibliográfico a respeito da
sociologia das emoções e de rituais fúnebres. Em seguida, com o objetivo de
analisar os sentimentos expressos no ritual, acompanhamos um funeral e
realizamos entrevistas com familiares do falecido.
Um dos fatos mais importantes que fazem parte do cortejo em funeral é
a expressão de sentimentos que permeiam a cena. Podemos perceber isso
observado e a partir da descrição desse momento nos conteúdos das
narrações feitas por familiares onde há também expressões de performances
que permeiam o ritual. A pesquisa foi feita a partir da proximidade do
pesquisador com a família do morto com relações de amizade.
Construção do cenário e atores sociais
No dia 11 de junho de 2011, completava exatamente dezesseis dias que
o paciente Adalberto3 havia dado entrada no hospital São Raimundo na cidade
de Crato. Nesse mesmo dia por volta das cinco horas da manhã o paciente
veio a óbito, segundo o laudo médico a causa da morte foi cirrose hepática. Já
era manhã do sábado quando recebemos um telefonema que avisava o
acontecido. Seguimos os familiares e o corpo que se deslocariam para a
cidade de Campos Sales. Eram mais ou menos umas onze e trinta quando o
carro que levava a filha e o genro do falecido passou para nos apanhar. Ela ia
3
No decorrer do trabalho trocamos os nomes verdadeiros das pessoas por nomes fictícios, pois não
tivemos autorização dos familiares para usar seus verdadeiros nomes. O falecido tinha 51 anos e era
comerciante.
no banco de passageiro e ele dirigia o carro. Mais a frente ia o carro da
funerária que levava o corpo.
Passamos duas horas na estrada até chegar ao local do velório. Fomos
até a funerária para pegar os castiçais e o suporte para o caixão, depois nos
deslocamos para a casa da filha do Adalberto. Quando chegamos lá já se
encontravam a esposa, três irmãs, sobrinhos e amigos do falecido. O caixão foi
aberto e foi enorme a demonstração de desespero dos familiares. Eles se
abraçavam olhando para o corpo. Com pouco tempo o irmão do falecido
chegou e houve mais gritaria. Pediram para verificar a pressão arterial dele e
constataram que estava alterada. Deram-lhe um remédio. O defunto continuou
sendo velado e eu fui em casa almoçar e tomar um banho. Quando voltei
outras pessoas já haviam chegado ao local, algumas trazendo coroas de flores.
Estavam todos sentados ao redor do caixão de defunto, quando a neta
do falecido chega com uma mensagem que ela tinha escrito para ele que dizia
mais ou menos assim: “Vovô Adalberto, que papai do céu te dê uma boa casa
no céu por todas as coisas boas que você fez na terra. Lembra quando a gente
ia para o seu bar e você colocava água para o passarinho na gaiola e ele se
molhava todo? Vou sentir saudades, pois sei que não vou mais te ver com os
meus olhos mas te verei nos meus sonhos”. Todos os presentes se
emocionaram e desataram a chorar. A filha dele colocou a mensagem dentro
do caixão, junta com outras duas escritas por crianças, uma de um neto, a
outra de uma sobrinha. Logo depois, uma das irmãs do falecido pediu para que
todos ali presentes se juntassem para rezar um terço para a alma dele. As
pessoas ficaram todas de pé e fizeram uma roda em volta do caixão. Rezaram
o terço pedindo proteção para alma dele. Em seguida desfizeram o circulo e
ficaram sentados nas cadeiras.
As horas foram se passando e as pessoas fazendo a visita no velório.
Enquanto isso alguns familiares passavam com bandejas servindo, café, chá,
caldo de carne, refrigerante e bolo. Por volta das vinte e três horas as pessoas
foram indo embora e ficando só os familiares e amigos mais próximos. Fizeram
uma roda na área da casa na qual estávamos mais o genro e quatro amigos do
falecido. Mais atrás outra roda com a esposa, a filha, a irmã e uma prima do
Adalberto. Dentro da casa havia algumas pessoas dormindo. Quando já era
madrugada, os amigos do falecido começaram a beber.Trouxeram uísque para
seu José, cachaça para Antonio, Pedro e João. Esse João é surdo e uma figura
muito engraçada. O resto da noite foi passando e João tomou conta do velório
contando suas piadas e lorotas, fazendo o povo achar graça. Amanheceu o dia
e o caixão foi colocado no carrinho da funerária, todos saíram em cortejo
fúnebre que passou pelas principais ruas da cidade até chegar ao cemitério. Na
frente ia alguns familiares e amigos levando arranjos de flores, logo atrás o
carrinho da funerária que era conduzido pelo irmão e outros familiares do
falecido. Mais atrás iam as pessoas a pé, motos e carros. Quando chegamos
no cemitério foi celebrada a missa de corpo presente e o sepultamento.
Rituais fúnebres
Considerando que um ritual é composto de um conjunto
de comportamentos mais ou menos previstos, com trajetória padronizadas em
começo, meio e fim, como afirma Gomes (2010, p. 147), identificamos um ritual
nessa cena. Tais comportamentos se diferenciam-se daquilo que é corriqueiro,
ainda que o cotidiano também aconteça em padrões estabelecidos por
indivíduos e pela sociedade.
O velório é um ritual que inicia quando o corpo é levado para o local
onde vai ser velado e de quando começam as primeiras visitas aos familiares
do falecido. Tem meio, que é onde acontece a reza do terço e as conversas
paralelas e tem fim, que é o cortejo fúnebre, a celebração da missa e o
sepultamento.
Podemos
dizer
que
nesses
rituais
acontecem
os
comportamentos padronizados e que eles têm uma estrutura mais ou menos
padrão. Essa padronização acontece na maioria dos velórios. Em conversa
com a filha do falecido ela descreve como seria a estrutura desses rituais:
As estruturas dos velórios são muito parecidas de acordo com cada
cultura, seguem uma espécie de ritual. Em pequenas cidades
nordestinas, como Campos Sales, percebemos que o velório ocorre
nas casas dos mortos ou de familiares próximos. É importante que o
velório dure no mínimo 24 horas, se não, despertará comentários
maldosos. Outro ponto comum são os “espetáculos”: gritos, choro,
lamentações, desespero, desmaios, loucura, tudo em exagero. Isso
atrai curiosos e pessoas que parecem até apreciar a cena. O
interessante é que depois as pessoas se calam e agem normalmente,
até entram nas famosas rodas de contação de histórias e mesmo
piadas que varam a noite. Outro ponto marcante também são as
comidas (caldos, biscoitos, bolos, café, chás e etc.) que são servidas
durante o velório, elas atraem as pessoas e é uma preocupação a
mais para a família do morto. Também há os amigos, visinhos e
parentes solidários que auxiliam na organização do velório. Depois do
velório ocorre o cortejo, nele os arranjos de flores com (coroas e
arranjos) com mensagens trazidos por familiares e visitantes (amigos
da família) ficam a frente do cortejo depois temos o caixão e logo
após as pessoas a pé e em carros e motos que acompanham o
enterro. O cortejo passa pelas principais ruas da cidade até a igreja,
onde é rezada a missa de corpo presente e o padre recomenda o
corpo (extrema unção). E o cortejo segue até o cemitério onde se dá
o enterro de fato em túmulo ou cova. E então, se dá, em minha
opinião, o momento mais difícil para os familiares, à volta para casa,
sem o ente querido. Muitas pessoas lavam suas casas achando que
esse ritual deixa energias negativas que devem ser lavadas. Em sete
dias pode haver a missa de sete dias e a visita de cova, geralmente,
quando ocorre missa de corpo presente não há a missa de sete dias,
haverá apenas a missa de um mês, nessas missas distribuem-se
lembranças que possuem foto da pessoa falecida e mensagem,
algumas famílias fazem camisetas com a foto do parente perdido. O
velório é um momento, ritual social também. (Ana Kelly, Professora,
4
31)
Os velórios para acontecerem necessitam da apropriação de um espaço
que se torna o cenário dos acontecimentos. Na montagem do cenário são
colocados os castiçais para segurar as velas, o suporte para colocar o caixão,
logo atrás do caixão é colocado um tecido como planos de fundo que contém a
imagem de Jesus Cristo, na entrada colocam um livro para assinatura dos
visitantes e no espaço que sobra e no terreiro da casa são colocadas as
cadeiras para os familiares e visitantes. As pessoas começam a chegar para
prestarem suas ultimas homenagens ao falecido e para dar apoio aos
familiares, elas chegam, sentam e começam a conversar, depois são servidas
as comidas, café, chá e etc. É de costume ser rezados terços durante o velório,
esses que são acompanhados por todos os presentes. Passam a noite velando
o corpo e no dia seguinte seguem em cortejo para o cemitério onde é rezada a
missa e acontece o sepultamento.
4
As referências de entrevista são: nome, idade e profissão. Os nomes utilizados são fictícios, pois o uso
do nome verdadeiro não foi autorizado.
Os ritual fúnebre é um evento onde as pessoas se despedem de um
ente querido, expressando seus sentimentos de tristeza através dos choros e
gritos. Os familiares são os mais atingidos com essa perca, passando dias de
luto em memória do falecido. Podemos perceber que a hora do sepultamento é
o momento mais difícil para eles, pois estão presenciando um ente ser
enterrado em baixo do chão. É nessa hora que eles choram mais e lamentam a
perda, fazem também suas últimas homenagens, na maioria das vezes com a
leitura de mensagens, esse é ato final do ritual.
Esse momento final se torna o mais importante acontecimento do ritual,
é o momento onde acontece a última despedida. A filha do falecido faz menção
a esse momento:
A despedida é um momento de sofrer com a separação do ente
querido, sem escândalos, principalmente quando não são sinceros,
respeito a dor e a forma como cada um expressa a sua, mas muitas
vezes percebemos o exagero e a falsidade. Então mais importante é
o sentimento sincero. (Ana Kelly, Professora, 31).
A despedida para ela é o momento mais difícil, pois se concretizará a
separação total do morto com as pessoas. É o momento onde todos sofrem, i
indicando de maneira normativa, fala que o sentimento deve ser expresso com
sinceridade e sem escândalos, de preferência todos expressando sua dor e
tristeza com discrição. A partir da separação física total dos familiares com o
morto começa o intenso processo de luto
O luto, diferente da noção de perda [...], parece possuir um sentido
mais integrativo, ligado ao processo de reintegração do individuo à
sociedade, através de uma introjeção da perda, sentimentalmente,
dentro de si. A perda, por sua vez, [...], parece informar o sofrimento
imediato, provocado pela ausência ou desaparecimento de um objeto
ou pessoa queridos, e a recusa de aceitar o fim. (KOURY, 2003, P.
115).
Acompanhado o tempo do luto há na maioria das situações um processo
de reclusão social, onde os familiares interiorizam a dor, a tristeza e o
sofrimento e, além de eventuais dificuldades emocionais, as pessoas podem
marcar uma nova e temporária ou permanente conduta social, na qual se
excluem de eventos que tenham caráter festivo. É a partir dessa despedida que
começa o previsto sofrimento do enlutado.
Velórios locais de hoje em dia
Os velórios de hoje em dia em ambientes e culturas semelhantes a aqui
descrita mudaram sua forma de como se procedia a cerca de 20 anos. Uma
fala de entrevistada indica essa mudança:
Antes as pessoas iam aos velórios com toalhas para secar as
lágrimas, um exagero. Esse exagero também ocorre nos lamentos
dos parentes que protagonizavam um verdadeiro espetáculo de muito
choro, gritos, lamentações, declarações e desespero. Às vezes esse
momento era sincero, mas outras vezes não, era apenas uma
espécie de satisfação para a sociedade. Antes quanto mais choro e
gritos mais querido era o defunto. Algumas pessoas até chegam a
comentar que ninguém chorou ou chorou muito pouco pelo morto,
serve de fofoca. (Ana Kelly, Professora, 31)
As pessoas mudaram também sua forma se comportar nos velórios, não
agem com muito exagero, só agem com mais expressão na hora do
sepultamento. Antes as pessoas passavam a noite ao lado caixão com suas
toalhas e lenços para enxugar as lágrimas. Na observação desse velório
específico pude perceber as pessoas chorando ou se lamentando de uma
forma que não era exagerada, mostravam através dos seus atos a importância
do falecido nas suas vidas e reclamavam a perca. Era um sentimento de
tristeza e dor que se materializava no meio daquele cenário.
No entanto, com toda a tristeza que permanecia no local algumas
pessoas bebiam bebidas alcoólicas, contavam piadas e lorotas que descontraia
os demais fazendo-os rir e até, soltar gargalhadas. Só não para a filha do
falecido que via isso como um ato de desrespeito à dor dos outros.
Infelizmente essa prática vem ocorrendo cada vez mais nos velórios.
A bebida alcoólica vem invadindo cada vez mais espaços nas vidas
das pessoas. Principalmente os homens bebem com a desculpa de
se manterem acordados durante a noite do velório. Não concordo
com esse costume, acho um desrespeito a dor dos outros, a perda da
família, mas o que me assusta é como se tem considerado comum
consumir bebida nos velórios. (Ana Kelly, Professora, 31)
Com essa fala da entrevistada podemos perceber uma indignação
pessoal, por associar essas práticas de descontração à uma falta de
solidariedade prestada pelos que a praticam.
A bebedeira e as rodas de conversa permaneceram durante todo o
velório, e os sentimentos eram alternados entre choro e riso, por sua vez essas
rodas tinham em alguns momentos mais importância do que o próprio defunto.
Percebemos que os familiares se sentem desrespeitados com esses atos de
descontração, por isso corroboramos com a seguinte afirmação de Koury
(2004), segundo o qual tratar os mortos com dignidade e respeito é uma forma
primeira de referenciá-los e é também uma forma de referenciar a si mesmo,
enquanto cidadão e enquanto indivíduo que tem família, religião, laços de
amizades e vizinhança.
O respeito aos mortos é o mais almejado pelos seus familiares, pois
vêem o velório como um momento de despedida. Nesses rituais é a hora de
colocar para fora a sua tristeza e a sua dor.
Nessa cena específica pudemos observar que o corpo foi velado na
residência da filha do falecido, entretanto, na maioria das cidades os velórios
não acontecem mais nas residências e sim em locais específicos chamados de
centros de velórios que são disponibilizados para isso pelas funerárias. Muitas
vezes o corpo é velado no próprio cemitério.
Deixou-se progressivamente de velar o corpo na casa onde viveu o
morto; do hospital se vai para uma casa de velórios próxima ao
hospital, se não no próprio hospital, ou próxima ao cemitério. Deixouse também de praticar o longo cortejo fúnebre; hoje, quando
presente, se situa no próprio cemitério onde se irá enterrar o corpo do
morto, e o cemitério tende a deixar de ser um local da morte para
vender a idéia de um lugar para o bem-estar dos vivos. (KOURY,
2003, p. 54-55).
Além disso, os velórios atuais firmam uma ruptura com o passado e não
se realiza mais todas práticas que eram feitas anteriormente.
Sobretudo, grande parte dos atos rituais saem das casas e passam a
acontecer em ambientes contratados a uma empresa. Isso por um lado
contribui para diminuir o sofrimento das pessoas que perderam o ente querido
e para um desapego mais rápido com a convivência entre os mesmos, por
outro introduz novas formas de se encarar a morte e o morrer.
A relação da morte e do morrer sofreram alterações após a segunda
metade século XIX:
O processo da morte passa também por uma reconfiguração e um
distanciamento das práticas e costumes comuns até então de
acompanhamento público do moribundo até a sua morte, do seu
velório, cortejo fúnebre e sepultamento, talvez motivados pelas
epidemias e mortes acentuadas, tornando cada vez mais técnico e
racional o trato e o lidar com a morte e o morrer. (KOURY, 2003,
p. 65).
O modo de tratamento da morte também vem sofrendo alterações ao
longo das décadas e por muitas vezes são tratadas com mais normalidade
entre as pessoas que sofrem as percas e o meio social. Acontece assim uma
reconfiguração das práticas e uma ruptura com os costumes antes
desenvolvidos.
O sentimento enlutado
A perda de um ente querido ocasiona um sentimento de saudade e
tristeza entre as pessoas que a sofreram. Essa relação sentimental tem um
processo de manifestação, denominado luto, e tem duração de um mês. A
partir do momento em que a pessoa morre, começa esse processo,
inicialmente há o velório descrito anteriormente, onde acontecem as
despedidas para com o ente perdido. Após sete dias da morte é realizada uma
missa, onde os familiares mandam confeccionar lembranças do falecido. Essas
lembranças são cartões com mensagem e foto, algumas possuem imã para
serem afixadas a geladeiras. Muitas pessoas mandam confeccionar camisas
também, por sua vez, essas lembranças são distribuídas entre os familiares,
parentes e amigos. Durante um mês, contado a partir da data da morte, os
familiares enlutados se resguardam e não participam dos acontecimentos e
eventos realizados com caráter de festa, a maioria das pessoas preferem não
usar roupas de cores chamativas e alegres, e muitos passam o mês ou usando
roupa preta ou colocam um pedaço de tecido preto no peito que é segurado por
um broche.
Podemos perceber que esse processo de construção do luto para com a
sociedade é tratado com um sentimento de vergonha e por sua vez, com
práticas discretas. KOURY (2003, 27) faz uma afirmação se referindo a esse
sentimento como uma emoção mascarada:
A emoção do enlutado, o sofrimento resultante do trabalho de luto,
assim, parece estabelecer-se para o individuo que os experiencia
como um sentimento envergonhado e, como tal, a atitude de discrição
enquanto comportamento público deve ser buscada. A emoção é
mascarada publicamente em indiferença e parece dar lugar a uma
reciprocidade fragmentada , quase mercantil, onde a pessoa se move
em planos desconexos que impossibilitam a manifestação social dos
sentimentos e desencadeiam o medo social da contaminação.
A construção do luto nos dias atuais é uma grande preocupação das
pessoas que sofrem perdas de entes próximos. Tentam construir a partir de um
processo onde a sociedade não as julgue como “frias” ou sem sentimentos, por
esse motivo é que essa socialização da dor é feita de uma forma discreta e
com sentimento de vergonha. O recuo social é feito por mais ou menos um
mês e é observado atentamente pelas pessoas de fora e, qualquer prática
errada do enlutado pode ser julgada pelos outros, que por sua vez atribuirão
características aos mesmos.
O luto pode ser considerado como perigoso, pois as pessoas que sofrem
poderão entrar em um profundo estado de tristeza ocasionando assim, a
depressão. “Os sentimentos para com o social e para consigo mesmo tendem
a declinar como se nada valesse a pena ser feito, podendo caracterizar um
estado de depressão em sua forma mais grave: a melancolia”. (KOURY, 2003,
P. 36). A dor da perda, o desespero e o afastamento do meio social, são os
ingredientes principais para a receita da depressão, perder um ente querido
não é aceito pela maioria das pessoas, com isso elas ficam frágeis e com
tendências a acarretar uma melancolia, nesse momento do luto os familiares se
ajudam e os amigos mais próximos contribuem com a recuperação de todos,
então ficam mais pertos e com a atenção dobrada tentando de todas as formas
distraírem o enlutado com receio de ele acarretar a depressão. Podemos
associar a depressão nesses contextos à um “estado de anomia movido pelo
desamparo, pela falta de vontade, pela solidão em que se encontrava em seu
sofrimento[...]”. (KOURY, 2003, p. 39). As pessoas que perdem um ente
querido agem com descrença, não se conformam e vivem muito tempo
reclusos da vida, onde adquirem muitas doenças emocionais, principalmente a
depressão como já foi mencionado.
Enfim, viver esse processo de luto não é fácil, as pessoas ao longo do
tempo vão administrando a manifestação dos sentimentos a partir do momento
em que perdem o ente querido e que se segue até uma readaptação do
individuo no meio social, dependendo da pessoa essa readaptação pode
demorar muito tempo, e as vezes algumas pessoas sentem a dor da perca e
atribuem como algo negativo ao seu cotidiano pelo resto da vida.
A sociabilidade no velório
O velório é um ritual onde acontecem também momentos de
descontração por parte dos participantes. O momento da chegada do corpo no
local do velório é um dos mais difíceis do ritual, os familiares se deparam com
um ente querido dentro do caixão, nessa hora o desespero é enorme e pode
ser percebido escândalos e um total sentimento de tristeza e dor, nessa hora
os serviços funerários dispõem de profissionais da saúde que medicam as
pessoas com clamantes e remédios para os que sofrem com problema de
hipertensão. Passado esse momento da chegada do caixão os participantes do
velório, principalmente os familiares, parentes e amigos, vão se acostumando
com aquele momento e se acomodando no cenário dos acontecimentos.
Começam a servir chá, café, refrigerante, bolo, caldos etc. As pessoas
vão se deliciando com tudo que é servido. Há também o momento onde são
rezados os terços para a alma do falecido. Muitos velórios acontecem de um
dia para o outro, sendo assim, o corpo é velado durante uma noite inteira.
Chegada a noite, o público presente no velório começa a se dispersar e muitos
retornam até suas residências. No decorrer do ritual vão ficando só os
familiares e os que possuem uma relação mais próxima com eles, e também as
pessoas que possuíam vínculos de amizade com o falecido. As pessoas que
permanecem vão se subdividindo em grupos, esses, por sua vez, são definidos
pelas relações de proximidade das pessoas.
Os grupos são formados e já iniciam relações de sociabilidade entre os
participantes. Nesse velório
específico, percebemos que as pessoas
desenrolam diversas conversas, sobre tudo o que está acontecendo na
sociedade naquele momento e muitas vezes sobre o que o defunto realizou em
vida. Podem ser percebidas rodas de contação de piadas e lorotas, essas são
na maioria das vezes formada por homens que permanecem durante toda a
noite com essas conversas, e que por muitas vezes o caixão com o defunto
deixa de ser o foco do velório, e essas rodas de conversa entram em cena
como protagonistas.
Em uma das rodas de conversa estavam presentes cinco homens,
sendo que um deles era genro do falecido e outro era um surdo com
características muito humorísticas. No decorrer da noite o frio ia aumentando e
em um momento o genro do falecido ofereceu bebida alcoólica aos presentes
naquela roda, três deles aceitaram cachaça e o outro preferiu o uísque. E
assim ia se passando aquela noite, de um lado um corpo dentro de um caixão
sendo velado, do outro lado uma roda de homens que bebiam bebida alcoólica,
contavam piadas e se divertiam bastante, soltavam gargalhadas, aumentavam
o tom da voz e eram percebidos como o centro das atenções.
Podemos perceber com essa narração que os velórios vão tomando um
novo rumo, que são dinâmicos e que mudam com o decorrer do tempo. O que
era um momento de expressar a dor e a tristeza por perder um ente querido
passa a ser também um momento de sociabilidade e descontração. Os
sentimentos são alternados entre choro e tristeza com gargalhadas e ar de
felicidade. Segundo Koury (2003, P. 112):
A principal característica dessa mudança comportamental reside em
um desapego crescente ao passado e nas suas tradições, de um
lado. E, de outro lado, um lançar-se a um novo modelo cujos hábitos,
não de todo claros e não de todo incorporados, apresentam-se como
constrangimento pessoal.
A partir do momento que o velório passa a não ser somente o momento
de expressar a dor, pode haver um constrangimento para com os familiares do
falecido, pois as pessoas se utilizam daquele evento para concretizarem
relações de sociabilidade.
Considerações Finais
Os velórios alteram sua forma com o decorrer do tempo mas
permanecem como um evento onde as pessoas prestam suas últimas
homenagens a um ente querido, expressando os sentimentos de tristeza e dor
que se materializam com as lágrimas derramadas.
Na situação em que predominam cuidados com o moribundo e zelo
com a família, há a expressão de solidariedade ou amorosidade com
que o grupo presta socorro na última manifestação de solidão
humana e remete à percepção de que só a interação amorosa
conduz a salvação do indivíduo ante o medo da morte, e embora
essa salvação seja individual, o caminho passa pelo coletivo
(CORDEIRO, 2009, p. 6).
Contudo o enfrentamento da morte pelas forças agregadoras que provêm
no coletivo, frente às pulsões destrutivas oriundas da solidão existencial ou
social tem formas aparentemente paradoxais de manifestação, como é o caso
da ocorrência do choro e do riso. Vimos que algumas pessoas soltam
gargalhadas e riem com as piadas contadas durante o evento, enquanto outros
bebem cachaça e uísque.
Essas práticas são o que fazem os velórios mudarem mais ou menos de
forma, embora permaneçam as estruturas que o tornam padrão. Dentro dessa
estrutura padrão segue o processo do luto, onde as pessoas permanecem em
reclusão a vida social.
Quer se faça coro no pranto, quer se esteja provocando o riso, amigos e
conhecidos dizem com suas presenças nos rituais: “estamos aqui, juntos”.
Sobre a troca de afetos nessas situações afirma Elias (2001, p. 99):
“É um grande apoio encontrar eco dos seus sentimentos nos outros
que se ama e a quem se está apegado, e cuja presença faz surgir um
sentimento terno de pertencer à família humana. Essa afirmação
mútua das pessoas através de seus sentimentos, o eco dos
sentimentos entre duas ou mais pessoas, desempenha um papel
central na atribuição de significado e sentido de realização para uma
vida humana – afeição recíproca por assim dizer até o fim”.
Registramos nuances de interação entre as pessoas presentes nesse
velório específico que se transformam em relações de sociabilidade e que,
sobretudo, apontam para o fato da cultura funerária nessa parte do Brasil ainda
não aderir a morte moderna caracterizada pelo ocultamento do morto e
eliminação de rituais fúnebres. Nesse contexto, os moribundos e os mortos não
são entregues aos cuidados exclusivos das empresas funerárias, ou seja,
mesmo quando se faz uso de determinadas técnicas e serviços modernos de
empresas funerárias, ainda são mantidos muito dos costumes de antepassados
misturados a inovações modernas.
O ritual fúnebre alem de ser um evento para expressar a dor e a tristeza,
pode ser um momento de descontração com caráter festivo e de felicidade,
ainda quando entre familiares predominam a expressão de seu sentimento de
tristeza. Registramos nuances de interação entre as pessoas presentes nesse
velório específico que se transformam em relações de sociabilidade. Tal
situação de sociabilidade gerada durante o funeral constitui um dos elementos
da conservação de rituais na medida que contribui para suprimir carências.
Enfim, a experiência de observar um ritual fúnebre nos moldes desse
que acompanhamos possibilita perceber a alternância de sentimentos de
tristeza e felicidade e ao mesmo tempo relações de sociabilidade.
Referências Bibliográficas
CORDEIRO, Domingos Savio A. A morte em grupos de convivência de
terceira idade. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, 28 a 31 de julho de
2009, Rio de Janeiro (RJ). Rio de Janeiro, 2009.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de Envelhecer e
morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: Ciência do homem e filosofia da
cultura. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. “Por que as sociedades criam e
conservam rituais envolvendo seus mortos? Diário de Santa Maria. Santa
Maria, RS, 24 jan. 2004. Disponível em:<http://gremsociologiaantropologia.blogspot.com>. Acesso em: 23 ago. 2011.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sociologia da emoção: O Brasil urbano
sob a ótica do luto. Petrópolis: Vozes, 2003.
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Trabalho