NACIONALISMO E ESPIRITUALISMO: A INCORPORAÇÃO POLÍTICA DA LITURGIA DOS SACRAMENTOS CATÓLICOS PELO MOVIMENTO INTEGRALISTA ALINE QUIROGA NEVES * RESUMO Este ensaio analisa as representações culturais construídas pelo Movimento Integralista a partir da sua afinidade com a moral cristã. Para tal, analisa-se a incorporação da liturgia de três sacramentos católicos pela Ação Integralista Brasileira, em que figuram: o batismo, o matrimônio e o funeral. PALAVRAS-CHAVE: Movimento Integralista – Ação Integralista Brasileira – nacionalismo – espiritualismo – moral católica – liturgias 1 – O MOVIMENTO INTEGRALISTA ENQUANTO FENÔMENO POLÍTICO E SOCIAL O Movimento Integralista ou a Ação Integralista Brasileira foi um 1 movimento de massas com caráter autoritário de organização nacional que se revestiu dos elementos característicos dos movimentos fascistas europeus, principalmente o fascismo italiano do ditador Benito 2 Mussolini . No entanto, o fascismo brasileiro adquiriu elementos únicos que somente servem à análise histórica se referenciados ao contexto 3 brasileiro. * Graduada em História; Especialista em Rio Grande do Sul: sociedade, política & cultura – FURG. 1 Os partidos republicanos que dominaram a política da República Velha (1898-1930) foram agremiações regionais que defendiam interesses agrários específicos das oligarquias que representavam. A Ação Integralista Brasileira possuía, a seu modo, um programa político que abrangia o todo nacional. 2 KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977. 3 TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1979. _____. O nazi-fascismo na América Latina: mito e realidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004. Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. 113 O Integralismo é tido pela historiografia como o primeiro 4 movimento de massas brasileiro, localizado temporalmente no início da década de 30 do século XX, tendo suas raízes mais próximas no transcorrer na década anterior. Refletiu, principalmente em termos políticos, o contexto da Revolução de 30, e em termos culturais, os horizontes da Semana de Arte Moderna de 22. O movimento nasceu oficialmente a partir da leitura pública do Manifesto de Outubro no Teatro Municipal de São Paulo, em 1932, por seu mentor intelectual e Chefe Nacional Plínio Salgado. A conjuntura histórica internacional do período entre guerras foi incorporada e redesenhada por intelectuais que buscavam uma nova dinâmica para o país. Em termos gerais, a situação política do Brasil estava baseada no poder das oligarquias republicanas que controlavam a frágil economia durante toda a República Velha até 1930 e que já não mais cumpriam seu papel, o que gerou uma série de manifestações e transformações da sociedade que não aceitavam mais seu controle. Acrescenta-se as transformações culturais e estéticas, demarcadas pela 5 Semana de Arte Moderna de 22 , que inaugurou a ruptura com o 6 cosmopolitismo da República Velha trazendo uma nova visão redirecionada para as singularidades da realidade do país. A Ação Integralista Brasileira, por sua vez, surgiu primeiramente como um movimento intelectual e cívico que pretendia educar moralmente a sociedade brasileira por meio de uma pedagogia integralista baseada na tríade Deus, Pátria e Família. No entanto, foi o primeiro partido político brasileiro a ser implantado de forma integral por todo o território nacional no início de 1936, tendo reunido mais de meio 7 milhão de aderentes. 4 HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 5 Plínio Salgado participou ativamente da Semana de Arte Moderna de 1922. Com Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, fundou os movimentos Anta e o Verde e Amarelo, que configuravam com o modernismo sob o viés nacionalista-ufanista. 6 Influência predominante da cultura internacional, neste caso, a européia, sobre as elites nacionais. “Seguiam uma escola estrangeira cuja excelência não estimulava a criatividade, mas antes a imitação servil dos modelos importados”. AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22: subsídios para uma história da renovação das artes no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 20. 7 O Movimento Integralista surgiu como um movimento intelectual e revolucionário bem mais ligado às perspectivas modernistas do que políticas. Como seus membros insistiam em frisar: fariam a Revolução Cultural antes de assumir o poder presidencial do país. Para isso, previam que fossem necessários dez anos de amadurecimento social nos núcleos integralistas. No entanto, a situação política e divergências internas fizeram com que Plínio Salgado se lançasse à candidatura presidencial em 1937, assim como vários integralistas 114 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. Porém, acredita-se que, para além da face política desse movimento que rara representação eleitoral alcançou durante os poucos 8 anos de existência enquanto partido, ele instigou uma mentalidade direcionada para um romantismo militarizado que criou instrumentos, símbolos e rituais particulares de perpetuação de seus preceitos morais 9 e políticos que merecem ser destacados em suas metamorfoses. 2 – A INCORPORAÇÃO DA LITURGIA DOS SACRAMENTOS CATÓLICOS Os rituais de socialização do Movimento Integralista iniciavam logo no princípio da vida dos indivíduos e pretendiam acompanhá-lo por toda ela. Na verdade, as três liturgias católicas incorporadas pela ideologia integralista, que ritualizavam os sacramentos do batismo, do casamento e do funeral, iam ao encontro dos principais eventos da vida humana em sociedade, uma vez que o batismo demarca o nascimento, o casamento a entrada na vida adulta e familiar e, por fim, a unção dos enfermos delimita o fim da vida. Dessa forma, O desenvolvimento maciço da demografia histórica durante a última geração nos impôs as regidas estatísticas vitais de “nascimento, cópula e morte”, a serem encaradas como a chave para o entendimento de todos 10 os aspectos da classe, cultura e consciência. A incorporação da liturgia dos sacramentos católicos pelo Movimento Integralista relaciona-se a certo tipo de apropriação, ou seja, um conceito entendido como formas possíveis de leitura. De outra forma, opera-se uma transformação do “original”, trazendo elementos novos característicos das práticas particulares dos indivíduos envolvidos, portanto ressignificando o “original”. Assim, a recepção dos textos das liturgias católicas por parte do Integralismo faz parte de um processo de constituição de sentidos, e seu estudo permite perceber certas interpretações. “A apropriação [...] tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) inscritas nas conquistaram mandatos de deputados, vereadores e prefeitos pelas cidades brasileiras, redefinindo o movimento como partido político a partir de 1936. 8 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. 9 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. 10 PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992. p. 294. Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. 115 11 práticas específicas que as produzem” . A ênfase espiritualista, calcada na tríade moral Deus, Pátria e Família, da ideologia integralista explicava a existência e a importância de rituais cristãos na organização da Ação Integralista Brasileira, 12 necessariamente vista nos rituais de passagem mais relevantes . Assim, nota-se, nos três rituais integralistas enfatizados – o batismo, o matrimônio e o funeral, a clara identificação com os sacramentos católicos, configurando-se uma associação destes por parte do Integralismo. Na verdade, a totalidade do discurso integralista e a generalidade da identidade do Movimento foram construídas a partir de um imaginário marcado por uma característica fundamental e peculiar – a moral católica. A visão maniqueísta da história, a ideia da redenção pelo sofrimento, a transformação da história em uma espécie de fábula moralizante veiculada por tal discurso parecem apontar para a hipótese de que o 13 arquétipo de tal discurso era o universo do catolicismo tradicional. A organização integralista previa a ritualização das mais diversas atividades do movimento, e isso desempenhava um papel primordial na instrumentalização da socialização político-ideológica dos militantes e, consequentemente, na preparação dos futuros cidadãos do Estado Integral. A incorporação política e a ritualização dos sacramentos católicos era apenas uma dessas atividades regulamentadas pelo Integralismo. Assim, “Aquele que se queria atingir era submetido a um 14 processo de ritualização constante e massiva pelo movimento” . Função desempenhada principalmente pelos órgãos responsáveis pela difusão doutrinária – as Secretarias de Imprensa e Propaganda. Essa preocupação estava diretamente ligada à inclinação da Ação Integralista Brasileira com os movimentos fascistas europeus, que adotavam uma prática de formação totalitária que englobava o exercício moral, intelectual, cívico e físico integrados em um único fim, que ia desde o nascimento até a idade adulta dos indivíduos, relacionada à importância dada ao misticismo e à simbologia. Portanto, a associação das liturgias dos sacramentos católicos pelo Integralismo fazia parte de uma construção política que associava a 11 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1991. p. 26. 12 OLIVEN, Ruben George. Mitologias da Nação. In: FÉLIX, Loiva Otero e ELMIR, Cláudia P. (orgs.) Mitos e Heróis: construções de imaginários. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998. 13 CAVALARI, idem, p. 159. 14 Idem, idem, p. 163. 116 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. moralidade cristã e a ideologia fascista, em que o ritual católico era repetido na íntegra, numa espécie de apropriação. “A tarefa fundamental era criar o hábito de obediência aos chefes e da submissão às estruturas autoritárias. Portanto, não se tratava de simplesmente copiar “certas formas exteriores do fascismo”, mas de adotar os mecanismos 15 básicos de formação totalitária fascista. Os Protocolos e rituais, uma espécie de legislação, foram criados para uniformizar e padronizar o pensamento e a atitude dentro da Ação Integralista Brasileira. Todo integralista tinha o dever de conhecer essas leis e de se submeter a elas sem discussão, assim como os dirigentes também deveriam zelar pelo seu cumprimento. Os objetivos desses dispositivos eram estabelecer normativas para os atos públicos e para os cerimoniais integralistas, fixar regalias, honras, direitos e deveres das autoridades do movimento. Assim: “O integralista, desde o nascimento até a morte, era controlado por essa ‘legislação’ especial. Além das ‘Regras de conduta’, do ‘Juramento solene’ e das ‘Festas integralistas’, existiam 16 normas específicas para batizados, casamentos e falecimentos”. As Regras de conduta, por sua vez, estabeleciam que deveria o integralista construir uma imagem e uma conduta de exemplo e virtude perante os demais, um comportamento moral que o dignificasse mais do que a qualquer outro indivíduo da sociedade. Aí se incluíam as qualidades da franqueza, do esforço, da pontualidade, da coragem, da simplicidade e do altruísmo. Se padrões morais e de conduta eram extremamente rígidos em relação aos militantes, para os dirigentes essa cobrança era mais severa, na medida em que a transgressão incidia na demissão automática do cargo e na expulsão do movimento, ou a morte simbólica. O espiritualismo ligado ao nacionalismo no Movimento Integralista, além de justificar o projeto nacionalista em si e a utopia do Estado Integral, legitimava o próprio movimento partidário. Ao considerar-se o único movimento genuinamente nacional e tendo no nacionalismo seu principal elemento ideológico de atuação, o Integralismo afirmava-se como alternativa singular para a resolução dos problemas brasileiros, porque defendia um princípio eminentemente emanado de Deus. A presença da doutrina da Ação Integralista Brasileira, através dos rituais e dos símbolos, era constante e pretendia acompanhar os militantes do Sigma por toda a vida. Assim, todos os espaços deveriam 15 TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1979. p.188. 16 CAVALARI, idem, p. 164. Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. 117 ser ocupados e todas as ações eram vigiadas e regulamentadas. Para o movimento não havia limites entre o público e o privado – pelo contrário, o privado era dissolvido no público. 2.1 – O batizado As religiões cristãs têm, em maior ou menor grau, a cerimônia de batismo como indispensável para a inclusão de um novo adepto, ou ainda, como manifestação pública da conversão religiosa. Batismo é um rito de passagem presente em vários grupos, religiosos ou não. Para o Integralismo, além da bênção católica, tendo em vista a afinidade moral cristã do movimento, o batizado também significava um ritual de aceitação social da criança e da família dela na Ação Integralista Brasileira. Dessa forma, o batizado integralista não anulava o batismo católico, ao contrário, deveria ocorrer simultaneamente ao batismo cristão. O procedimento nessa cerimônia, necessariamente, consistia na comunicação prévia do pai do desejo de batizar seu filho com o ritual do Sigma perante o chefe do núcleo a que pertencia. Os pais, os padrinhos e os convidados integralistas deveriam obrigatoriamente estar utilizando no templo católico o uniforme do movimento, ou seja, trajando publicamente a aceitação da doutrina por meio da imagem de um dos símbolos mais importantes do movimento – a camisa verde. Já os 17 plinianos do núcleo a que pertenciam os pais da criança a ser batizada deveriam comparecer ao templo uniformizados por completo, e formados deveriam se postar próximo à pia batismal. Todos os integralistas, inclusive os plinianos, deveriam erguer o braço conforme o gesto especial do movimento e em silêncio, no momento em que a criança recebesse a benção do sacerdote. 17 Plinianos eram um grupo homogêneo dentro da estrutura totalitária da Ação Integralista Brasileira, formado por crianças e jovens de ambos os sexos, com idade entre quatro e quinze anos. A organização integralista para os plinianos era bastante parecida com as organizações juvenis nos congêneres europeus, como o Partido Fascista Italiano e o Partido Nacional Socialista Alemão. Para orientar e disciplinar, instituir a submissão e a fidelidade hierárquica era exigido dos militantes integralistas, desde os plinianos, todos os deveres morais com a pátria brasileira. A exigência da obediência era explicada pelo preceito de que quem não saberia obedecer nunca saberia comandar, já que a escola integralista era vista como uma escola preparativa de comandantes militares. Isso se aplica na medida em que se percebe a representação de juventude para a Ação Integralista Brasileira, já que seriam os jovens que formariam o futuro Estado Integral. VIANA, Giovanny Noceti. Orientar e disciplinar a liberdade: um estudo sobre a educação nas milícias juvenis integralistas – 1934/1937. Florianópolis, 2008. Dissertação [Mestrado em História] – UFSC. 118 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. Ao final do ato religioso, comum a todos os católicos, a criança deveria ser envolta na bandeira do Sigma e, somente fora do recinto da igreja, ser apresentada pelo pai ou pelo padrinho aos presentes, onde as palavras entoadas, conforme o procedimento descrito abaixo, eram: Companheiros! (nome da criança) recebeu o primeiro sacramento da fé cristã sob a égide do Sigma. Ao futuro pliniano o seu primeiro Anauê. Os presentes responderão Anauê. Ao final dessa cerimônia, os plinianos formarão uma ala, de braços erguidos, por onde sairão todos os 18 integralistas do templo. Assim, a presença da doutrina integralista, através dos rituais e dos símbolos adotados, era constante e acompanhava o jovem integralista a partir do primeiro sacramento de fé que demarca publicamente seu nascimento, sua purificação e sua entrada para a vida em comunidade. A doutrina integralista deveria se fazer presente nos acontecimentos mais importantes da vida pessoal e social de cada militante, já que, para o movimento, como se comentou, não havia distância entre o público e o privado – o Sigma deveria ser onipresente. 2.2 – O matrimônio 19 Matrimônio é o vínculo estabelecido entre duas pessoas de sexos diferentes, mediante o reconhecimento religioso e/ou o contrato civil que pressupõe uma relação monogâmica interpessoal de intimidade e afetividade. As pessoas casam-se para dar visibilidade à sua relação social, para formar família, para procriar e educar seus filhos e para legitimar um relacionamento sexual. O matrimônio foi sacramentalizado no século XII, tornando-se o único espaço lícito para o prazer e o amor entre um homem e uma mulher, contribuindo enormemente para a construção de uma moral sexual cristã. “A sacramentalização do matrimônio foi a base, portanto, do triunfo político da Igreja, e matéria privilegiada da codificação moral 20 da cristandade” . Durante a década de 30, no Brasil, a postura amplamente defendida pela Igreja Católica e adotada oficialmente, no que diz respeito ao casamento, foi a de pregar o sexo higiênico, isto é, praticado somente dentro do casamento oficializado. O casamento legítimo e moralmente aceito era aquele celebrado e abençoado pela 18 Protocolos e Rituais. Capítulo X. Artigo 156. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1992. p. 36. 19 20 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. 119 instituição religiosa católica. Quem não contraísse matrimônio pelos moldes do casamento católico era visto como alguém que vivia em pecado da carne. Assim, criava-se a idéia de impureza nas práticas sexuais de não-católicos, como os judeus, os ciganos, os japoneses, os negros, ou mesmo aqueles que, mesmo não sendo minoria étnica permanecessem vivendo em concubinato ou amasiamento. O procedimento prescrito para os casamentos integralistas, se distinguia quanto à ritualização do ato civil e do ato religioso. Para os casamentos os Protocolos e Rituais previam a apresentação estética dos noivos, de modo que estivessem identificados com o movimento e a forma simbólica tradicional do rito dos casamentos. O casamento incutia uma moralidade sexual aos indivíduos, legitimada pela Igreja e pela sociabilidade, que no Movimento Integralista ganhou um novo elemento de distinção social – o Sigma. O cerimonial civil do casamento integralista poderia ser realizado na sede do núcleo ao qual pertencesse um dos noivos. Nesse caso, a bandeira do Sigma e a bandeira nacional deveriam ser alocadas em um lugar de destaque no ambiente onde se realizaria a cerimônia, de modo a representar uma espécie de altar. Caso a cerimônia fosse durante um horário de dia, a noiva deveria apresentar-se com a blusa verde típica das mulheres do Movimento Integralista e o noivo deveria vestir a camisa verde e a calça branca, ou a camisa verde e a calça preta se fosse a cerimônia realizada à noite. Ao término do ato civil, após a assinatura do livro de atas, a maior autoridade presente da Província deveria entoar: Integralistas! Nossos companheiros (nomes) acabam de se unir perante a Bandeira da Pátria, assumindo em face da Nação Brasileira as responsabilidades que tornam o matrimonio, não um ato egoístico do interesse de cada um, mas um ato público de interesse da Posteridade, da qual se tornaram perpétuos servidores. Pela felicidade do novo casal, ergamos a saudação ritual em nome do Chefe Nacional. Aos nossos companheiros (nomes), três Anauês. Todos os presentes repetirão três 21 vezes o Anauê. No cerimonial religioso do casamento integralista, que deveria ser realizado em uma igreja ou templo, o uso de um vestido branco tradicional pela noiva era permitido, com véu e grinalda, sem dispensar o emblema integralista próximo ao coração. O noivo, no entanto, deveria estar com a farda integralista. O diferencial no ato religioso ficava para as cerimônias solenes, em que se previam outras tantas minúcias. 21 Protocolos e Rituais. Capítulo X.. Artigo 160. 120 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. Tanto no ato civil quanto no religioso, a maior autoridade presente deveria, de braço erguido, dizer em voz baixa ao novo casal: “O Chefe Nacional considera-se presente a esta cerimônia e deseja todas as 22 felicidades ao novo casal”. Todos os integralistas convidados, homens e mulheres, deveriam comparecer aos atos civil e religioso do casamento integralista vestindo o uniforme do Sigma, e quando os atos fossem solenes deveriam formar fileiras ou alas por onde passariam os noivos. Através dos rituais associados ao movimento, os indivíduos identificavam-se e eram identificados com o Sigma, como se pode averiguar nos casamentos integralistas. Os rituais permitiam que os indivíduos entrassem em contato com os símbolos sagrados do movimento e os delimitassem a essa esfera simbólica. De outra forma, a doutrina integralista se fazia notar na incorporação de alguns de seus elementos ideológicos e símbolos nas cerimônias do casamento católico, ligando intimamente o imaginário do nacionalismo integralista com o espiritualismo católico. 2.3 – O funeral Por fim, o último dos cerimoniais cristãos adaptados para o Integralismo de forma ritualística era o dos funerais, em que se atribuiu uma conotação própria ao sacramento católico da Unção dos Enfermos, normalmente o último que se recebe em vida, administrado aos enfermos e àqueles que estejam em risco de vida. O funeral é uma cerimônia religiosa, ou não, concebida como um momento de despedida após a morte de alguém estimado e logo antes de seu sepultamento, cremação ou enterro. Havia, também, um ritual a ser obedecido nas cerimônias fúnebres integralistas, autorizado nos Protocolos e Rituais. No velório, um militante de camisa verde fazia a guarda de honra do falecido na câmara ardente, e o caixão deveria estar envolto na bandeira do movimento, e em algumas vezes, dependendo da situação social do morto, também pela bandeira nacional. Cada integralista, ao adentrar no recinto do velório do companheiro falecido, deveria prestar-lhe respeito, perfilando-se e erguendo seu braço durante dez segundos no gesto ritual do movimento. O Chefe Nacional seria representado, sempre que não fosse possível o seu comparecimento, pelo Chefe Provincial ou do núcleo a que pertencesse o falecido. Quanto ao enterro, o acompanhamento do caixão deveria ser feito 22 Idem, artigo 171. Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. 121 pelos integralistas uniformizados que, no cemitério, formariam linhas em silêncio profundo junto à sepultura onde seria colocado o caixão. Comandava o rito o integralista mais graduado que estivesse presente ao ato conforme a hierarquia da Ação Integralista Brasileira, o qual proclamava em tom solene: Integralistas! Vai baixar à sepultura o corpo do nosso companheiro (nome do falecido), transferido para a milícia do além. Fará um rápido panegírico do morto, findo o que dirá: Vou fazer a sua chamada; antes porém, peço um minuto de concentração em homenagem ao companheiro falecido. Ao término desse tempo deveria dizer: Companheiro (nome do falecido). Todos os integralistas responderão: Presente! No integralismo ninguém morre. Quem entrou nesse movimento imortalizou-se no coração dos “camisas-verdes”. Ao companheiro (nome do falecido), três Anauês. Todos responderão: 23 Anauê! Anauê! Anauê! Nas sedes dos núcleos, a autoridade que estivesse presidindo a sessão também deveria proceder ao chamado do falecido conforme o rito descrito acima. O Chefe Nacional poderia proclamar luto oficial no Movimento por quantos dias quisesse; nesse período não se realizava nenhuma festividade e o sinal de luto era simbolizado por uma tarja negra na camisa verde cobrindo o Sigma ostentado no braço dos militantes. Nesse sentido, “É interessante destacar o caráter de perpetuidade e de imortalidade que se pretendia imprimir à militância e ao Movimento. Para tanto, veiculava-se a idéia de que o integralista não morria, era 24 ‘transferido para a milícia do além’”. Os funerais integralistas cumpriram uma função importante na simbologia integralista, na medida em que, ao se chamar o nome do morto e todos os presentes respondiam “presente”, reforçava-se a idéia de que a ideologia integralista nunca morreria e a união dos integralistas pela causa. Assim, “Naquele segundo, parecia que os mortos se uniam aos vivos na defesa do movimento, estimulando os que permaneciam a 25 lutar e a morrer por ele”. A morte, então, surgia enquanto criadora de um tempo sagrado que vinculava o passado ao presente. A partir do século XVIII, o homem das sociedades ocidentais tende a dar à morte um sentido novo. Exalta-a, dramatiza-a, deseja-a impressionante e arrebatadoramente. Mas, ao mesmo tempo, já se ocupa menos de sua 23 Idem. Idem, Artigo 171. CAVALARI, Idem. p. 176. 25 BERTONHA, João Fábio. Fascismo, nazismo, integralismo. São Paulo: Ática, 2004. p. 67. 24 122 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. própria morte, e, assim, a morte romântica, retórica, é antes de tudo “a 26 morte do outro”. A morte de um integralista permitiu, por um rápido e célebre espaço de tempo, que os membros do movimento compartilhassem de uma comunhão que eles logo perderiam, com o fim da Ação Integralista 27 Brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os rituais criados pela Ação Integralista Brasileira que se incorporavam aos sacramentos católicos do batismo, do matrimônio e do funeral funcionavam como estratégias de coesão e de unidade, ao construir um ambiente em que os militantes pudessem compartilhar suas emoções íntimas e legitimar a sua aceitação pessoal pelo fascismo brasileiro e pela moral católica. As cerimônias integralistas eram permeadas por indícios e símbolos da doutrina política e tratavam de proporcionar um ambiente moralmente instituído para práticas de sociabilidade permitidas e regulamentadas. Unir ideologia política nacionalista com moral cristã por intermédio da incorporação das liturgias dos sacramentos católicos significava impor legitimação espiritual a um movimento político que orientava a mentalidade de seus militantes por meio dos símbolos e rituais, além de, com isso, trazer para o entorno da Ação Integralista Brasileira a simpatia da Igreja e do governo. A incorporação das liturgias dos sacramentos católicos pela Ação Integralista Brasileira era, portanto, uma estratégia política, uma vez que almejava-se cercar o militante integralista de uma aura espiritual cristã e logo imputar-lhe uma postura moral, ao mesmo tempo em que proporcionava legitimidade pública para o movimento. REFERÊNCIAS AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA. Protocolos e rituais. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. BERTONHA, João Fábio. Fascismo, nazismo, integralismo. São Paulo: Ática, 2004. 26 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 64. O presidente Getúlio Vargas percebeu o risco, para seu governo, da pressão de um movimento organizado e mobilizado como o Integralismo e o dissolveu, como fez com os outros partidos, após o falso Plano Cohen, que precipitou o golpe do Estado Novo no final do ano de 1937. 27 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009. 123 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no Brasil. (1932-1937). São Paulo: EDUSC, 1999. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1991. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977. OLIVEN, Ruben George. Mitologias da Nação. In: FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudia P. (orgs.) Mitos e heróis: construções de imaginários. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1998. PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1979. _____. O Nazi-fascismo na América Latina: mito e realidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1992. VIANA, Giovanny Noceti. Orientar e disciplinar a liberdade: um estudo sobre a educação nas milícias juvenis integralistas – 1934/1937. Florianópolis: UFSC, 2008. (Dissertação de Mestrado em História). VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. 124 Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.