NACIONALISMO E ESPIRITUALISMO:
A INCORPORAÇÃO POLÍTICA DA LITURGIA DOS
SACRAMENTOS CATÓLICOS PELO MOVIMENTO
INTEGRALISTA
ALINE QUIROGA NEVES *
RESUMO
Este ensaio analisa as representações culturais construídas pelo
Movimento Integralista a partir da sua afinidade com a moral cristã. Para
tal, analisa-se a incorporação da liturgia de três sacramentos católicos
pela Ação Integralista Brasileira, em que figuram: o batismo, o matrimônio
e o funeral.
PALAVRAS-CHAVE: Movimento Integralista – Ação Integralista Brasileira – nacionalismo
– espiritualismo – moral católica – liturgias
1 – O MOVIMENTO INTEGRALISTA ENQUANTO FENÔMENO
POLÍTICO E SOCIAL
O Movimento Integralista ou a Ação Integralista Brasileira foi um
1
movimento de massas com caráter autoritário de organização nacional
que se revestiu dos elementos característicos dos movimentos fascistas
europeus, principalmente o fascismo italiano do ditador Benito
2
Mussolini . No entanto, o fascismo brasileiro adquiriu elementos únicos
que somente servem à análise histórica se referenciados ao contexto
3
brasileiro.
*
Graduada em História; Especialista em Rio Grande do Sul: sociedade, política & cultura
– FURG.
1
Os partidos republicanos que dominaram a política da República Velha (1898-1930)
foram agremiações regionais que defendiam interesses agrários específicos das
oligarquias que representavam. A Ação Integralista Brasileira possuía, a seu modo, um
programa político que abrangia o todo nacional.
2
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
3
TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo:
Difel, 1979.
_____. O nazi-fascismo na América Latina: mito e realidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS,
2004.
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
113
O Integralismo é tido pela historiografia como o primeiro
4
movimento de massas brasileiro, localizado temporalmente no início da
década de 30 do século XX, tendo suas raízes mais próximas no
transcorrer na década anterior. Refletiu, principalmente em termos
políticos, o contexto da Revolução de 30, e em termos culturais, os
horizontes da Semana de Arte Moderna de 22. O movimento nasceu
oficialmente a partir da leitura pública do Manifesto de Outubro no
Teatro Municipal de São Paulo, em 1932, por seu mentor intelectual e
Chefe Nacional Plínio Salgado.
A conjuntura histórica internacional do período entre guerras foi
incorporada e redesenhada por intelectuais que buscavam uma nova
dinâmica para o país. Em termos gerais, a situação política do Brasil
estava baseada no poder das oligarquias republicanas que controlavam
a frágil economia durante toda a República Velha até 1930 e que já não
mais cumpriam seu papel, o que gerou uma série de manifestações e
transformações da sociedade que não aceitavam mais seu controle.
Acrescenta-se as transformações culturais e estéticas, demarcadas pela
5
Semana de Arte Moderna de 22 , que inaugurou a ruptura com o
6
cosmopolitismo da República Velha trazendo uma nova visão
redirecionada para as singularidades da realidade do país.
A Ação Integralista Brasileira, por sua vez, surgiu primeiramente
como um movimento intelectual e cívico que pretendia educar
moralmente a sociedade brasileira por meio de uma pedagogia
integralista baseada na tríade Deus, Pátria e Família. No entanto, foi o
primeiro partido político brasileiro a ser implantado de forma integral por
todo o território nacional no início de 1936, tendo reunido mais de meio
7
milhão de aderentes.
4
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. A indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
5
Plínio Salgado participou ativamente da Semana de Arte Moderna de 1922. Com Menotti
Del Picchia e Cassiano Ricardo, fundou os movimentos Anta e o Verde e Amarelo, que
configuravam com o modernismo sob o viés nacionalista-ufanista.
6
Influência predominante da cultura internacional, neste caso, a européia, sobre as elites
nacionais. “Seguiam uma escola estrangeira cuja excelência não estimulava a criatividade,
mas antes a imitação servil dos modelos importados”. AMARAL, Aracy. Artes plásticas na
Semana de 22: subsídios para uma história da renovação das artes no Brasil. São Paulo:
Perspectiva, 1979. p. 20.
7
O Movimento Integralista surgiu como um movimento intelectual e revolucionário bem
mais ligado às perspectivas modernistas do que políticas. Como seus membros insistiam
em frisar: fariam a Revolução Cultural antes de assumir o poder presidencial do país. Para
isso, previam que fossem necessários dez anos de amadurecimento social nos núcleos
integralistas. No entanto, a situação política e divergências internas fizeram com que Plínio
Salgado se lançasse à candidatura presidencial em 1937, assim como vários integralistas
114
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
Porém, acredita-se que, para além da face política desse
movimento que rara representação eleitoral alcançou durante os poucos
8
anos de existência enquanto partido, ele instigou uma mentalidade
direcionada para um romantismo militarizado que criou instrumentos,
símbolos e rituais particulares de perpetuação de seus preceitos morais
9
e políticos que merecem ser destacados em suas metamorfoses.
2 – A INCORPORAÇÃO DA LITURGIA DOS SACRAMENTOS
CATÓLICOS
Os rituais de socialização do Movimento Integralista iniciavam
logo no princípio da vida dos indivíduos e pretendiam acompanhá-lo por
toda ela. Na verdade, as três liturgias católicas incorporadas pela
ideologia integralista, que ritualizavam os sacramentos do batismo, do
casamento e do funeral, iam ao encontro dos principais eventos da vida
humana em sociedade, uma vez que o batismo demarca o nascimento,
o casamento a entrada na vida adulta e familiar e, por fim, a unção dos
enfermos delimita o fim da vida. Dessa forma,
O desenvolvimento maciço da demografia histórica durante a última
geração nos impôs as regidas estatísticas vitais de “nascimento, cópula e
morte”, a serem encaradas como a chave para o entendimento de todos
10
os aspectos da classe, cultura e consciência.
A incorporação da liturgia dos sacramentos católicos pelo
Movimento Integralista relaciona-se a certo tipo de apropriação, ou seja,
um conceito entendido como formas possíveis de leitura. De outra
forma, opera-se uma transformação do “original”, trazendo elementos
novos característicos das práticas particulares dos indivíduos
envolvidos, portanto ressignificando o “original”. Assim, a recepção dos
textos das liturgias católicas por parte do Integralismo faz parte de um
processo de constituição de sentidos, e seu estudo permite perceber
certas interpretações. “A apropriação [...] tem por objetivo uma história
social das interpretações, remetidas para as suas determinações
fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) inscritas nas
conquistaram mandatos de deputados, vereadores e prefeitos pelas cidades brasileiras,
redefinindo o movimento como partido político a partir de 1936.
8
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.
9
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
10
PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992. p. 294.
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
115
11
práticas específicas que as produzem” .
A ênfase espiritualista, calcada na tríade moral Deus, Pátria e
Família, da ideologia integralista explicava a existência e a importância
de rituais cristãos na organização da Ação Integralista Brasileira,
12
necessariamente vista nos rituais de passagem mais relevantes .
Assim, nota-se, nos três rituais integralistas enfatizados – o batismo, o
matrimônio e o funeral, a clara identificação com os sacramentos
católicos, configurando-se uma associação destes por parte do
Integralismo. Na verdade, a totalidade do discurso integralista e a
generalidade da identidade do Movimento foram construídas a partir de
um imaginário marcado por uma característica fundamental e peculiar –
a moral católica.
A visão maniqueísta da história, a ideia da redenção pelo sofrimento, a
transformação da história em uma espécie de fábula moralizante
veiculada por tal discurso parecem apontar para a hipótese de que o
13
arquétipo de tal discurso era o universo do catolicismo tradicional.
A organização integralista previa a ritualização das mais diversas
atividades do movimento, e isso desempenhava um papel primordial na
instrumentalização da socialização político-ideológica dos militantes e,
consequentemente, na preparação dos futuros cidadãos do Estado
Integral. A incorporação política e a ritualização dos sacramentos
católicos era apenas uma dessas atividades regulamentadas pelo
Integralismo. Assim, “Aquele que se queria atingir era submetido a um
14
processo de ritualização constante e massiva pelo movimento” .
Função desempenhada principalmente pelos órgãos responsáveis pela
difusão doutrinária – as Secretarias de Imprensa e Propaganda. Essa
preocupação estava diretamente ligada à inclinação da Ação Integralista
Brasileira com os movimentos fascistas europeus, que adotavam uma
prática de formação totalitária que englobava o exercício moral,
intelectual, cívico e físico integrados em um único fim, que ia desde o
nascimento até a idade adulta dos indivíduos, relacionada à importância
dada ao misticismo e à simbologia.
Portanto, a associação das liturgias dos sacramentos católicos
pelo Integralismo fazia parte de uma construção política que associava a
11
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel,
1991. p. 26.
12
OLIVEN, Ruben George. Mitologias da Nação. In: FÉLIX, Loiva Otero e ELMIR, Cláudia
P. (orgs.) Mitos e Heróis: construções de imaginários. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998.
13
CAVALARI, idem, p. 159.
14
Idem, idem, p. 163.
116
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
moralidade cristã e a ideologia fascista, em que o ritual católico era
repetido na íntegra, numa espécie de apropriação. “A tarefa fundamental
era criar o hábito de obediência aos chefes e da submissão às
estruturas autoritárias. Portanto, não se tratava de simplesmente copiar
“certas formas exteriores do fascismo”, mas de adotar os mecanismos
15
básicos de formação totalitária fascista.
Os Protocolos e rituais, uma espécie de legislação, foram criados
para uniformizar e padronizar o pensamento e a atitude dentro da Ação
Integralista Brasileira. Todo integralista tinha o dever de conhecer essas
leis e de se submeter a elas sem discussão, assim como os dirigentes
também deveriam zelar pelo seu cumprimento. Os objetivos desses
dispositivos eram estabelecer normativas para os atos públicos e para
os cerimoniais integralistas, fixar regalias, honras, direitos e deveres das
autoridades do movimento. Assim: “O integralista, desde o nascimento até
a morte, era controlado por essa ‘legislação’ especial. Além das ‘Regras
de conduta’, do ‘Juramento solene’ e das ‘Festas integralistas’, existiam
16
normas específicas para batizados, casamentos e falecimentos”.
As Regras de conduta, por sua vez, estabeleciam que deveria o
integralista construir uma imagem e uma conduta de exemplo e virtude
perante os demais, um comportamento moral que o dignificasse mais do
que a qualquer outro indivíduo da sociedade. Aí se incluíam as
qualidades da franqueza, do esforço, da pontualidade, da coragem, da
simplicidade e do altruísmo. Se padrões morais e de conduta eram
extremamente rígidos em relação aos militantes, para os dirigentes essa
cobrança era mais severa, na medida em que a transgressão incidia na
demissão automática do cargo e na expulsão do movimento, ou a morte
simbólica.
O espiritualismo ligado ao nacionalismo no Movimento
Integralista, além de justificar o projeto nacionalista em si e a utopia do
Estado Integral, legitimava o próprio movimento partidário. Ao
considerar-se o único movimento genuinamente nacional e tendo no
nacionalismo seu principal elemento ideológico de atuação, o
Integralismo afirmava-se como alternativa singular para a resolução dos
problemas brasileiros, porque defendia um princípio eminentemente
emanado de Deus.
A presença da doutrina da Ação Integralista Brasileira, através
dos rituais e dos símbolos, era constante e pretendia acompanhar os
militantes do Sigma por toda a vida. Assim, todos os espaços deveriam
15
TRINDADE, Helgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo:
Difel, 1979. p.188.
16
CAVALARI, idem, p. 164.
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
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ser ocupados e todas as ações eram vigiadas e regulamentadas. Para o
movimento não havia limites entre o público e o privado – pelo contrário,
o privado era dissolvido no público.
2.1 – O batizado
As religiões cristãs têm, em maior ou menor grau, a cerimônia de
batismo como indispensável para a inclusão de um novo adepto, ou
ainda, como manifestação pública da conversão religiosa. Batismo é um
rito de passagem presente em vários grupos, religiosos ou não. Para o
Integralismo, além da bênção católica, tendo em vista a afinidade moral
cristã do movimento, o batizado também significava um ritual de
aceitação social da criança e da família dela na Ação Integralista
Brasileira.
Dessa forma, o batizado integralista não anulava o batismo
católico, ao contrário, deveria ocorrer simultaneamente ao batismo
cristão. O procedimento nessa cerimônia, necessariamente, consistia na
comunicação prévia do pai do desejo de batizar seu filho com o ritual do
Sigma perante o chefe do núcleo a que pertencia. Os pais, os padrinhos
e os convidados integralistas deveriam obrigatoriamente estar utilizando
no templo católico o uniforme do movimento, ou seja, trajando
publicamente a aceitação da doutrina por meio da imagem de um dos
símbolos mais importantes do movimento – a camisa verde. Já os
17
plinianos do núcleo a que pertenciam os pais da criança a ser batizada
deveriam comparecer ao templo uniformizados por completo, e
formados deveriam se postar próximo à pia batismal. Todos os
integralistas, inclusive os plinianos, deveriam erguer o braço conforme o
gesto especial do movimento e em silêncio, no momento em que a
criança recebesse a benção do sacerdote.
17
Plinianos eram um grupo homogêneo dentro da estrutura totalitária da Ação Integralista
Brasileira, formado por crianças e jovens de ambos os sexos, com idade entre quatro e
quinze anos. A organização integralista para os plinianos era bastante parecida com as
organizações juvenis nos congêneres europeus, como o Partido Fascista Italiano e o
Partido Nacional Socialista Alemão. Para orientar e disciplinar, instituir a submissão e a
fidelidade hierárquica era exigido dos militantes integralistas, desde os plinianos, todos os
deveres morais com a pátria brasileira. A exigência da obediência era explicada pelo
preceito de que quem não saberia obedecer nunca saberia comandar, já que a escola
integralista era vista como uma escola preparativa de comandantes militares. Isso se
aplica na medida em que se percebe a representação de juventude para a Ação
Integralista Brasileira, já que seriam os jovens que formariam o futuro Estado Integral.
VIANA, Giovanny Noceti. Orientar e disciplinar a liberdade: um estudo sobre a educação
nas milícias juvenis integralistas – 1934/1937. Florianópolis, 2008. Dissertação [Mestrado
em História] – UFSC.
118
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
Ao final do ato religioso, comum a todos os católicos, a criança
deveria ser envolta na bandeira do Sigma e, somente fora do recinto da
igreja, ser apresentada pelo pai ou pelo padrinho aos presentes, onde
as palavras entoadas, conforme o procedimento descrito abaixo, eram:
Companheiros! (nome da criança) recebeu o primeiro sacramento da fé
cristã sob a égide do Sigma. Ao futuro pliniano o seu primeiro Anauê. Os
presentes responderão Anauê. Ao final dessa cerimônia, os plinianos
formarão uma ala, de braços erguidos, por onde sairão todos os
18
integralistas do templo.
Assim, a presença da doutrina integralista, através dos rituais e
dos símbolos adotados, era constante e acompanhava o jovem
integralista a partir do primeiro sacramento de fé que demarca
publicamente seu nascimento, sua purificação e sua entrada para a vida
em comunidade. A doutrina integralista deveria se fazer presente nos
acontecimentos mais importantes da vida pessoal e social de cada
militante, já que, para o movimento, como se comentou, não havia
distância entre o público e o privado – o Sigma deveria ser onipresente.
2.2 – O matrimônio
19
Matrimônio é o vínculo estabelecido entre duas pessoas de
sexos diferentes, mediante o reconhecimento religioso e/ou o contrato
civil que pressupõe uma relação monogâmica interpessoal de intimidade
e afetividade. As pessoas casam-se para dar visibilidade à sua relação
social, para formar família, para procriar e educar seus filhos e para
legitimar um relacionamento sexual.
O matrimônio foi sacramentalizado no século XII, tornando-se o
único espaço lícito para o prazer e o amor entre um homem e uma
mulher, contribuindo enormemente para a construção de uma moral
sexual cristã. “A sacramentalização do matrimônio foi a base, portanto,
do triunfo político da Igreja, e matéria privilegiada da codificação moral
20
da cristandade” . Durante a década de 30, no Brasil, a postura
amplamente defendida pela Igreja Católica e adotada oficialmente, no
que diz respeito ao casamento, foi a de pregar o sexo higiênico, isto é,
praticado somente dentro do casamento oficializado. O casamento
legítimo e moralmente aceito era aquele celebrado e abençoado pela
18
Protocolos e Rituais. Capítulo X. Artigo 156.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática,
1992. p. 36.
19
20
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119
instituição religiosa católica. Quem não contraísse matrimônio pelos
moldes do casamento católico era visto como alguém que vivia em
pecado da carne. Assim, criava-se a idéia de impureza nas práticas
sexuais de não-católicos, como os judeus, os ciganos, os japoneses, os
negros, ou mesmo aqueles que, mesmo não sendo minoria étnica
permanecessem vivendo em concubinato ou amasiamento.
O procedimento prescrito para os casamentos integralistas, se
distinguia quanto à ritualização do ato civil e do ato religioso. Para os
casamentos os Protocolos e Rituais previam a apresentação estética
dos noivos, de modo que estivessem identificados com o movimento e a
forma simbólica tradicional do rito dos casamentos. O casamento incutia
uma moralidade sexual aos indivíduos, legitimada pela Igreja e pela
sociabilidade, que no Movimento Integralista ganhou um novo elemento
de distinção social – o Sigma.
O cerimonial civil do casamento integralista poderia ser realizado
na sede do núcleo ao qual pertencesse um dos noivos. Nesse caso, a
bandeira do Sigma e a bandeira nacional deveriam ser alocadas em um
lugar de destaque no ambiente onde se realizaria a cerimônia, de modo
a representar uma espécie de altar. Caso a cerimônia fosse durante um
horário de dia, a noiva deveria apresentar-se com a blusa verde típica
das mulheres do Movimento Integralista e o noivo deveria vestir a
camisa verde e a calça branca, ou a camisa verde e a calça preta se
fosse a cerimônia realizada à noite. Ao término do ato civil, após a
assinatura do livro de atas, a maior autoridade presente da Província
deveria entoar:
Integralistas! Nossos companheiros (nomes) acabam de se unir perante
a Bandeira da Pátria, assumindo em face da Nação Brasileira as
responsabilidades que tornam o matrimonio, não um ato egoístico do
interesse de cada um, mas um ato público de interesse da Posteridade,
da qual se tornaram perpétuos servidores. Pela felicidade do novo casal,
ergamos a saudação ritual em nome do Chefe Nacional. Aos nossos
companheiros (nomes), três Anauês. Todos os presentes repetirão três
21
vezes o Anauê.
No cerimonial religioso do casamento integralista, que deveria ser
realizado em uma igreja ou templo, o uso de um vestido branco
tradicional pela noiva era permitido, com véu e grinalda, sem dispensar
o emblema integralista próximo ao coração. O noivo, no entanto, deveria
estar com a farda integralista. O diferencial no ato religioso ficava para
as cerimônias solenes, em que se previam outras tantas minúcias.
21
Protocolos e Rituais. Capítulo X.. Artigo 160.
120
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
Tanto no ato civil quanto no religioso, a maior autoridade presente
deveria, de braço erguido, dizer em voz baixa ao novo casal: “O Chefe
Nacional considera-se presente a esta cerimônia e deseja todas as
22
felicidades ao novo casal”.
Todos os integralistas convidados, homens e mulheres, deveriam
comparecer aos atos civil e religioso do casamento integralista vestindo
o uniforme do Sigma, e quando os atos fossem solenes deveriam formar
fileiras ou alas por onde passariam os noivos.
Através dos rituais associados ao movimento, os indivíduos
identificavam-se e eram identificados com o Sigma, como se pode
averiguar nos casamentos integralistas. Os rituais permitiam que os
indivíduos entrassem em contato com os símbolos sagrados do
movimento e os delimitassem a essa esfera simbólica. De outra forma, a
doutrina integralista se fazia notar na incorporação de alguns de seus
elementos ideológicos e símbolos nas cerimônias do casamento
católico, ligando intimamente o imaginário do nacionalismo integralista
com o espiritualismo católico.
2.3 – O funeral
Por fim, o último dos cerimoniais cristãos adaptados para o
Integralismo de forma ritualística era o dos funerais, em que se atribuiu
uma conotação própria ao sacramento católico da Unção dos Enfermos,
normalmente o último que se recebe em vida, administrado aos
enfermos e àqueles que estejam em risco de vida. O funeral é uma
cerimônia religiosa, ou não, concebida como um momento de despedida
após a morte de alguém estimado e logo antes de seu sepultamento,
cremação ou enterro.
Havia, também, um ritual a ser obedecido nas cerimônias
fúnebres integralistas, autorizado nos Protocolos e Rituais. No velório,
um militante de camisa verde fazia a guarda de honra do falecido na
câmara ardente, e o caixão deveria estar envolto na bandeira do
movimento, e em algumas vezes, dependendo da situação social do
morto, também pela bandeira nacional. Cada integralista, ao adentrar no
recinto do velório do companheiro falecido, deveria prestar-lhe respeito,
perfilando-se e erguendo seu braço durante dez segundos no gesto
ritual do movimento. O Chefe Nacional seria representado, sempre que
não fosse possível o seu comparecimento, pelo Chefe Provincial ou do
núcleo a que pertencesse o falecido.
Quanto ao enterro, o acompanhamento do caixão deveria ser feito
22
Idem, artigo 171.
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
121
pelos integralistas uniformizados que, no cemitério, formariam linhas em
silêncio profundo junto à sepultura onde seria colocado o caixão.
Comandava o rito o integralista mais graduado que estivesse presente
ao ato conforme a hierarquia da Ação Integralista Brasileira, o qual
proclamava em tom solene:
Integralistas! Vai baixar à sepultura o corpo do nosso companheiro (nome
do falecido), transferido para a milícia do além. Fará um rápido
panegírico do morto, findo o que dirá: Vou fazer a sua chamada; antes
porém, peço um minuto de concentração em homenagem ao
companheiro falecido. Ao término desse tempo deveria dizer:
Companheiro (nome do falecido). Todos os integralistas responderão:
Presente! No integralismo ninguém morre. Quem entrou nesse
movimento imortalizou-se no coração dos “camisas-verdes”. Ao
companheiro (nome do falecido), três Anauês. Todos responderão:
23
Anauê! Anauê! Anauê!
Nas sedes dos núcleos, a autoridade que estivesse presidindo a
sessão também deveria proceder ao chamado do falecido conforme o
rito descrito acima. O Chefe Nacional poderia proclamar luto oficial no
Movimento por quantos dias quisesse; nesse período não se realizava
nenhuma festividade e o sinal de luto era simbolizado por uma tarja negra
na camisa verde cobrindo o Sigma ostentado no braço dos militantes.
Nesse sentido, “É interessante destacar o caráter de perpetuidade e de
imortalidade que se pretendia imprimir à militância e ao Movimento.
Para tanto, veiculava-se a idéia de que o integralista não morria, era
24
‘transferido para a milícia do além’”.
Os funerais integralistas cumpriram uma função importante na
simbologia integralista, na medida em que, ao se chamar o nome do
morto e todos os presentes respondiam “presente”, reforçava-se a idéia
de que a ideologia integralista nunca morreria e a união dos integralistas
pela causa. Assim, “Naquele segundo, parecia que os mortos se uniam
aos vivos na defesa do movimento, estimulando os que permaneciam a
25
lutar e a morrer por ele”.
A morte, então, surgia enquanto criadora de um tempo sagrado
que vinculava o passado ao presente.
A partir do século XVIII, o homem das sociedades ocidentais tende a dar
à morte um sentido novo. Exalta-a, dramatiza-a, deseja-a impressionante
e arrebatadoramente. Mas, ao mesmo tempo, já se ocupa menos de sua
23
Idem. Idem, Artigo 171.
CAVALARI, Idem. p. 176.
25
BERTONHA, João Fábio. Fascismo, nazismo, integralismo. São Paulo: Ática, 2004. p. 67.
24
122
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
própria morte, e, assim, a morte romântica, retórica, é antes de tudo “a
26
morte do outro”.
A morte de um integralista permitiu, por um rápido e célebre
espaço de tempo, que os membros do movimento compartilhassem de
uma comunhão que eles logo perderiam, com o fim da Ação Integralista
27
Brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os rituais criados pela Ação Integralista Brasileira que se
incorporavam aos sacramentos católicos do batismo, do matrimônio e
do funeral funcionavam como estratégias de coesão e de unidade, ao
construir um ambiente em que os militantes pudessem compartilhar
suas emoções íntimas e legitimar a sua aceitação pessoal pelo fascismo
brasileiro e pela moral católica. As cerimônias integralistas eram
permeadas por indícios e símbolos da doutrina política e tratavam de
proporcionar um ambiente moralmente instituído para práticas de
sociabilidade permitidas e regulamentadas.
Unir ideologia política nacionalista com moral cristã por intermédio
da incorporação das liturgias dos sacramentos católicos significava
impor legitimação espiritual a um movimento político que orientava a
mentalidade de seus militantes por meio dos símbolos e rituais, além de,
com isso, trazer para o entorno da Ação Integralista Brasileira a simpatia
da Igreja e do governo.
A incorporação das liturgias dos sacramentos católicos pela Ação
Integralista Brasileira era, portanto, uma estratégia política, uma vez que
almejava-se cercar o militante integralista de uma aura espiritual cristã e
logo imputar-lhe uma postura moral, ao mesmo tempo em que
proporcionava legitimidade pública para o movimento.
REFERÊNCIAS
AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA. Protocolos e rituais.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BERTONHA, João Fábio. Fascismo, nazismo, integralismo. São Paulo: Ática, 2004.
26
ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 64.
O presidente Getúlio Vargas percebeu o risco, para seu governo, da pressão de um
movimento organizado e mobilizado como o Integralismo e o dissolveu, como fez com os
outros partidos, após o falso Plano Cohen, que precipitou o golpe do Estado Novo no final
do ano de 1937.
27
Biblos, Rio Grande, 23 (1): 113-124, 2009.
123
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de
massa no Brasil. (1932-1937). São Paulo: EDUSC, 1999.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel,
1991.
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mistificação das massas. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
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