Homo luminus: para fazer brilhar o sentimento olímpico Katia Brandão Cavalcanti | [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Norte 0 | Abstract Olympic knowledge will not trigger meaningful changes in sports culture, but the intensively experienced Olympic feeling lived in sports can accomplish unimaginable changes. Olympism is the Olympic feeling cultivated in the emotions of joy and sadness, in the pleasure and pain of sports experiences. Bringing corporeity to the center of sports education and Olympic education as a shining focus means to bring life and sports experiences to the educational process and to invite Olympic Education to create pedagogical experiences for life and sport. Olympic Education must be nurtured by the science of feelings in order to provide a real love construction of Olympism, of Olympic attitude. To live the joy of sports is to supply the light generating source that brightens our Human Being, shining away the beauty and strength of this illuminated happiness to the whole world. Cauê, the Brazilian mascot of the 2007 Pan-American Games, symbolizes the Human Being as a bright source of sports joys. It invites us to make the HOMO LUMINUS that is 753 | inside each one of us radiate the Olympic feelings of beauty, justice, courage, honor, delight, fertility, progress and peace. Aquele que vive segundo o ditame da Razão, não é levado pelo medo da morte [...] deseja diretamente o bem [...] a sua sabedoria é meditar sobre a vida. Espinosa 1 | Introdução A vida da educação é a vida! A vida do esporte é a vida! O sentido da educação, o sentido do esporte é o sentido da vida! Inspirando-se na ontologia espinosana e na epistemologia bachelardiana podemos afirmar: o educador que sonha os sonhos da Razão Olímpica não teme a morte do esporte, do ideal esportivo, porque deseja verdadeiramente o bem-viver e sua sabedoria consiste em empenhar-se na busca do sentido para sua vida, para a educação e para o esporte, procurando assim pedagogizar a vida para dar mais vida à educação e ao esporte. A vida no centro do processo educativo não é uma invenção das ciências da educação no terceiro milênio. É simplesmente a re-descoberta do verdadeiro sentido da educação, poeticamente cantado, dançado, jogado, desde a sua origem ocidental na Antiga Grécia, tão brilhantemente apresentado nas celebrações de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de 2004, em Atenas. A criação autêntica do Ser como expressão de uma | 754 humanidade viva era a mais valiosa obra de arte da Paidéia grega (Jaeger, 1986). Era janeiro de 1632, e a Ordem dos Cirurgiões de Amsterdam pretendia prestar uma homenagem ao famoso médico e cientista holandês Dr. Tulp com uma tela de mestre. Nada mais especial para celebrar a ousadia das descobertas do Dr. Tulp do que uma obra prima de um gênio da pintura da época, também holandês: Rembrandt Harmens van Rijn. O tema escolhido para a tela não poderia ter sido outro, a dissecação anatômica, uma vez que despertava a curiosidade de um grande público naquela época (Damásio, 2004, p. 231). O dia 31 de janeiro de 1632 marca o início de uma nova era nos estudos do corpo e suas funções, muito bem retratada pela tela de Rembrandt: A Aula de Anatomia do Dr. Tulp. Assim, a arte eterniza a ciência! Rembrandt soube muito bem penetrar na dramaticidade da sessão de estudo do corpo humano para eternizá-lo, fazendo com que a anatomia continuasse despertando o interesse dos estudiosos. Captar a beleza da vida, a expressividade do vivido, revelando o momento psicológico privilegiado, é para Rembrandt um tratamento que o fará completamente diferente de seus contemporâneos. Assim, a ousadia da ciência se unia à ousadia da arte! Em meio ao florescimento da ciência e da arte da Modernidade, nasce Bento de Espinosa em Amsterdam, no ano de 1632. Nem judeu, nem cristão, um tanto judeu, um tanto cristão. A filosofia de Espinosa é uma crítica da superstição 755 | em todas as formas: religiosa, política e filosófica. A firmeza de suas posições acarretou a acusação de ateu, por ser contrário à concepção tradicional de Deus defendida pela Igreja e pelo Estado (Chauí, 2000). Como conseqüência, aos 24 anos, em 1656, a Sinagoga de Amsterdam o expulsava da comunidade judaica sobre a alegação de ser “panteísta”. É tradição secular apelidá-lo erroneamente de “pai do panteísmo moderno”, pois para o filósofo Huberto Rohden “nunca existiu entre os homens pensantes, um só panteísta” (Rohden, 2003, p.38). Sobre Espinosa, escreveu Einstein, em 1946: “Embora tenha vivido três centenas de anos antes do nosso tempo, a situação espiritual que Espinosa teve que enfrentar assemelha-se à nossa. Ele estava completamente convencido da dependência causal de todos os fenômenos numa época em que era bem modesto o sucesso dos esforços feitos para atingir um conhecimento da relação causal dos fenômenos materiais” (Einstein, citado por Pais, 1995, p. 556). Trazer Espinosa para a discussão sobre a necessidade de se cultivar uma Pedagogia Olímpica a partir da corporeidade e da ética do sentido da vida é fundamental porque a atual neurociência que tem se ocupado com as emoções e os sentimentos começa a considerá-lo referência profundamente relevante: “A alegria e a tristeza foram dois conceitos fundamentais na sua tentativa de compreender os seres humanos e sugerir maneiras de a vida ser mais bem vivida” (Damásio, 2004, p.17). Espinosa parecia ter vislumbrado soluções para os problemas humanos que só | 756 agora a ciência começa a oferecer ao mergulhar na natureza das emoções, dos sentimentos e na relação corpo e mente (Damásio, 2004, p.20). O encontro da ciência com os sentimentos é recente. O neurocientista António Damásio relata a sua própria trajetória em relação ao tema até a descoberta de que os obstáculos postos à ciência dos sentimentos não faziam mais sentido, pois a realidade da experiência clínica o impulsionava para rever tal posicionamento. Na sua atual perspectiva, “os sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo”, e enfatiza: “os sentimentos podem ser, e geralmente são, revelações do estado de vida dentro do organismo”. Assim, “o mistério do sentir” está se tornando cada vez mais “menos misterioso” (Damásio, 2004, p.15). E assim, já conquistamos o espaço científico para poder compreender e investigar o sentimento olímpico. A noção espinosana que será privilegiada na atual ciência dos sentimentos é a de que mente e corpo são manifestações da mesma substância, podendo-se afirmar que “os processos mentais se alicerçam no mapeamento do corpo que o cérebro constrói”. Com base na neurociência, devemos reconhecer que o sentimento olímpico é construído através de vivências olímpicas que produzem imagens corporalizadas de emoções olímpicas de alegria ou de tristeza que são mapeadas pelo cérebro. Assim, a essência do sentimento olímpico implica em um estado corporal associado a imagens vividas com o esporte. 757 | Para a atual neurobiologia do sentir, a idéia de autoprodução de Espinosa é fundamental porque amplia e complexifica as indagações sobre a evolução humana e suas múltiplas relações com a vida. Na busca da perfeição do Ser está implicado o amor e sua expressão de alegria. O desejo que nasce da alegria é impulsionado pela própria alegria. Cada um deve amar a si mesmo, procurando o que lhe é útil de verdade, desejando tudo que conduz o Ser a uma maior perfeição, de modo que cada um deve se esforçar para conservar o seu Ser tanto quanto for possível. Nada mais útil ao Ser do que o próprio Ser. Na autoprodução do Ser de Espinosa está implicada a autoprodução da humanidade. A alegria que for desejada para si deverá ser desejada para o outro (Espinosa, 1992). O impulso da alegria é como a luz que ilumina todo o Ser a ir mais além na sua caminhada evolutiva para uma maior perfeição. Tanto Rembrandt como Espinosa adotaram uma nova concepção de luz apresentada à época por Kepler. A luminosidade na pintura de Rembrandt é algo que se irradia de dentro das próprias figuras humanas, objetos ou lugares. Para Espinosa, a luz emerge do interior de cada Ser como força em direção ao verdadeiro. A filosofia espinosana representa o rompimento com a milenar metáfora do conhecimento como iluminação, em que a luz é sempre um terceiro elemento que vem do exterior para ligar o sujeito ao objeto, iluminando ambos. Em Espinosa, a substância que é luz, propaga-se em infinitos modos, refletindo-se em cada um deles, cuja potência interna é força reflexiva, capaz de iluminar a própria fonte geradora de luz (Chauí, 2001, p.60). | 758 No caminho do autodesenvolvimento do Ser, de sua autotransformação, não é o conhecimento da vida que ilumina a vida, mas a vida alegremente vivida que é capaz de transcender a vida, iluminando a sua própria caminhada e de outros que possam ser contemplados pela força e beleza de sua alegria luminosa. Assim, podemos dizer que não é o conhecimento olímpico que fará mudanças significativas na cultura esportiva. Mas, um sentimento olímpico, intensamente vivido no esporte, poderá realizar mudanças inimagináveis. A vida que ilumina a vida é a vida vivida corporalmente e não simplesmente a idéia de vida. O Olimpismo que ilumina a cultura olímpica é o Olimpismo vivido corporalmente e não simplesmente a idéia de Olimpismo. O que dá sentido à vida é o sentimento da vida cultivado nas emoções de alegria e tristeza, de prazer e dor. O que dá sentido ao Olimpismo é o sentimento olímpico cultivado nas emoções de alegria e tristeza, de prazer e dor das vivências esportivas. As emoções que dançam no “teatro do corpo” alimentam os sentimentos que cantam no “teatro da mente”. Na construção de um sentimento, a percepção do corpo é acompanhada pela percepção de certos temas relacionados a esse estado do corpo e pela percepção de um certo modo de pensar. O substrato imediato dos sentimentos é constituído pelos mapas cerebrais do corpo nos quais se encontram representados os mais diversos parâmetros da estrutura e da operação do corpo (Damásio, 2004, p.35). Introduzir as noções de corporeidade e humanescência nos estudos que envolvem a vida humana, particularmente a educação, significa reconhecer a implicabilidade dos sentimentos 759 | e emoções que fazem brilhar a presença do Ser no mundo. A maior ou menor intensidade desse brilho depende da força interior que impulsiona o Ser para o autodesenvolvimento através da autotranscendência. O fenômeno da corporalização refere-se à manifestação corpórea da essência do Ser, de sua subjetividade, abrangendo toda expressividade humana que se concretiza pela via corporal. Corporalizar significa, portanto, tornar corpóreo, subjetivar corporalmente uma idéia, um sentimento, uma emoção, intencionalmente ou não. Corpo, corporalização, corporalidade, noções fundamentais para se compreender o pulsar da vida humana, a energética do Ser. O corpo é a legitimação espaço-temporal do Ser no mundo. A corporalização traduz a dinâmica entre o manifesto e o não-manifesto da subjetividade humana. A corporalidade ou corporeidade refere-se ao campo energético-existencial das vivências, historicamente vividas pelo Ser corporalizado. Corporeidade e educação! Corporeidade e Esporte! Encontros para celebrar a vida! Para Assmann (1995, p. 77), “corporeidade não é a fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco irradiante primeiro e principal”. Trazer a corporeidade para o centro da educação esportiva, da educação olímpica como foco irradiante significa trazer a vida e as vivências esportivas, olímpicas para o processo educativo e convocar a Pedagogia Olímpica para pedagogizar a vida. Uma Pedagogia Olímpica deve ser alimentada pela ciência dos sentimentos para poder propiciar uma verdadeira | 760 construção amorosa do olimpismo, do sentimento olímpico. Tal concepção pedagógica exigirá dos educadores uma atitude amorosa diante de sua tarefa educativa, envolvendo toda sua emoção e criatividade existencial para transformar conteúdos objetivos, esportivos, olímpicos em vivências corporalizadas. “Quem ama estende a mão. Quem estende a mão prepara-se para o abraço” (Mariotti, 2000, p. 314). Para abraçar a causa da Pedagogia Olímpica é preciso amor. Amar a si mesmo, alegrar-se com a vida, para só assim poder expandir a sua alegria como raios de luz para iluminar vidas pelo exemplo de viver a vida com o sentido da maior perfeição, com o sentido olímpico. Vislumbrando um futuro possível para dar mais vida à educação olímpica, apresentamos o encontro da Ética de Espinosa com o Sentido da Vida de Viktor Frankl: “Todas as coisas notáveis são tão difíceis como raras” (Espinosa, citado na conclusão da Tese do Otimismo Trágico de Viktor Frankl, 1985). O desafio é para que possamos nos unir à minoria para realizarmos a nossa tarefa educativa, olímpica da melhor forma que nos for possível. Com Espinosa aprendemos a lição: “A felicidade não é prêmio da virtude, mas a própria virtude”. Se a virtude é a essência do Ser, cabe-nos fazê-la brilhar. Viver as alegrias do esporte é abastecer a fonte geradora de luz que ilumina todo o nosso Ser, irradiando para os outros e para o mundo toda a força e beleza dessa alegria luminosa. Cauê, o mascote dos Jogos Pan-Americanos de 761 | 2007 no Brasil, simbolizando o Ser como fonte luminosa das alegrias esportivas, nos convida a fazer brilhar o HOMO LUMINUS que existe dentro de cada um, para assim irradiar o sentimento olímpico de beleza, justiça, ousadia, honradez, alegria, fecundidade, progresso e paz. 2 | Referências ASSMANN, H. Paradigmas Educacionais e Corporeidade. Piracicaba: Unimep, 1995. CHAUÍ, M. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa: Prazer e Dor na Ciência dos Sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ESPINOSA, B. Ética. Lisboa : Relógio D’Água, 1992. FRANKL, V. Man’s Search for Meaning. New York: Simon & Schuster, 1985. JAEGER, W. Paidéia: a Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986. MARIOTTI, H. As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade. São Paulo: Palas Athena, 2000. PAIS, A. “Sutil é o senhor...” A Ciência e a Vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. ROHDEN, H. Introdução: rumo ao monismo absoluto. In: SPINOZA, B., Ética, Demonstrada à Maneira dos Geômetras. São Paulo: Martin Claret, 2003. | 762