Inserções de Árabes-Palestinos na Fronteira e na Mídia Impressa Local1 Karla M. Müller2 Resumo: O presente paper tem por objetivo levantar questões envolvendo árabes-palestinos no espaço fronteiriço, sua cultura, sua condição oscilante de imigrante e fronteiriço, e como isto se faz presente em jornais de fronteiras nacionais. Através de observações sobre o contexto, depoimentos de membros da comunidade árabe-palestina e da análise de jornais fronteiriços é possível realizar um exercício hermenêutico na busca de compreender como estes povos realizam um movimento de inserção na fronteira. Ao mesmo tempo em que se apresentam como membros da comunidade local, dão importância a sua cultura, sua religião, seus valores e sua terra natal. E neste sentido, os jornais locais são agentes fundamentais. Por um lado abrem espaços em suas páginas para que as manifestações destes povos sejam trazidas à cena, e por outro, reforçam a condição deste grupo como elemento constitutivo do povo fronteiriço. Palavras-chave: mídia - fronteira; árabes-palestinos - mídia; imigrantes - jornais. Introdução Existem espaços privilegiados no que diz respeito ao estudo de mesclas culturais. Um destes espaços é a fronteira entre países, como as áreas que envolvem a cidade brasileira Uruguaiana e sua vizinha argentina Paso de Los Libres, ou o município brasileiro Santana do Livramento e o uruguaio Rivera. Em Uruguaiana-Libres3 , a ligação entre os países se dá através de uma ponte construída sobre o rio Uruguai; em Livramento-Rivera, a interligação se dá por meio de um parque municipal, cujo prolongamento é a rua, demarcada ao longo de coxilhas4 . São lugares trabalhados pela ação humana, onde, com o objetivo de ultrapassar os limites impostos pela natureza – as águas e as coxilhas -, e, posteriormente, por acordos internacionais, forjou-se um espaço de contato permanente e transponível quase que naturalmente. Nestas localidades, percebe-se, além de argentinos, uruguaios e brasileiros, a presença de imigrantes, membros de outras nacionalidades como os árabes-palestinos que passaram a fazer parte da comunidade fronteiriça. Povos de culturas distintas convivem com o fenômeno fronteira, realizando um exercício de interação, aproximação, onde o respeito pelo outro dá sustentação à relação amigável. O fenômeno fronteira passa a ser o elemento comum que liga os diferentes integrantes da sociedade local, diferenciando-os dos demais, considerados os visitantes ou estrangeiros. Os movimentos realizados na construção da identidade fronteiriça podem ser vistos nas diversas manifestações sociais das cidades, e, conseqüentemente na mídia impressa local, isto é, nos jornais produzidos localmente, que têm como principal público-alvo 1 Trabalho apresentado ao I Colóquio Transfronteiras Sul de Ciências da Comunicação. Profa. Adjunto do DECOM/ FABICO/ UFRGS, Doutora em Ciências da Comunicação pelo PPGCCom/ UNISINOS, Mestre em Comunicação pela PUC/RS, Membro do Núcleo de Pesquisa em Mídia junto ao PPGCom/ UFRGS. 3 As expressões Uruguaiana-Libres, Livramento-Rivera empregamos para designar o espaço construído pela comunidade local que habita ambos os lados da linha divisória. Da mesma forma, utilizaremos as expressões uruguaianenses-libreños e santanenses-riverenses para designar os moradores desses espaços fronteiriços. 4 Colinas homogêneas, relevo típico do pampa gaúcho. 2 2 os leitores fronteiriços. Ao estamparem os fatos que têm como cenário o espaço fronteiriço, os jornais desempenham o papel de palco dos acontecimentos. Entretanto, ao mesmo tempo, ao divulgarem o que se passa no cotidiano dessas comunidades, passam a fazer parte do que ocorre nas cidades e assumem a função de sujeitos que participam ativamente da vida social, reforçando (ou negando) valores e comportamentos. A partir deste entendimento, pretendemos apresentar neste paper resultados alcançados a partir de um exercício de cruzamento entre informações colhidas em observações sobre o contexto e dados coletados em depoimentos de representantes da comunidade árabe-palestina, moradores das cidades de Uruguaiana e Santana do Livramento, com matérias veiculadas na mídia impressa fronteiriça a respeito desse grupo. Em muitas delas é possível ouvir a voz desses imigrantes e seus descendentes. As entrevistas livres (BRANDÃO,1986) possibilitaram ir além das palavras. A partir dos gestos, das expressões fisionômicas, das “reticências” pode ser captado o ‘não-dito’ ou o ‘mal dito’, abrindo a perspectiva de interpretação e análise da realidade. Mais do que executar uma análise profunda, a intenção é de estimular um debate maior sobre como a mídia local processa as informações, posicionando-se a favor (ou contra) determinados conceitos e valores provenientes dos grupos que habitam a região da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul com seus países vizinhos. No caso específico, trata-se de trazer à tona o lugar que ocupa a comunidade árabepalestina nesses dois espaços de divisas nacionais. Para tanto, foram ouvidas pessoas reconhecidas na fronteira como porta-vozes de seu povo 5 . Elas relataram a visão que têm sobre a fronteira e descreveram a relação estabelecida entre árabes-palestinos com os demais habitantes da região, que através de suas ações firmam-se como um dos elementos que constitui a comunidade fronteiriça. Por outro lado, também analisamos o que é veiculado por O Jornal de Uruguaiana (de Uruguaiana) e o jornal A Platéia (de Livramento) sobre este segmento da sociedade local, verificando o que e como são apresentados pela mídia fronteiriça a cultura, os valores, as práticas e os movimentos realizados por árabes-palestinos no sentido de sentirem-se e serem aceitos como parte das comunidades de Uruguaiana-Libres e Livramento-Rivera. E isto foi possível observar através das articulações que realizam no contexto social, nos seus discursos, nas suas ações e manifestações presentes nos jornais locais, o que solicitou um exercício interpretativo não só dos textos jornalísticos escritos mas também das imagens que os acompanham (BAUER; GASKELL, 2002). Através de suas falas, fica evidenciado qual a relação que estabelecem com o lugar e as pessoas que lhes deram abrigo, como percebem o 5 Um deles, Presidente da Sociedade árabe-palestina de Uruguaiana, comerciante local, concedeu entrevista à autora em 08 de novembro de 2001 na cidade de Uruguaiana; o outro, comerciante, poeta, Presidente de Honra da Casa do Poeta Santanense (CAPOSAN), concedeu entrevista à autora em 09 de novembro de 2001 na cidade de Santana do Livramento. 3 espaço fronteiriço onde estão instalados e quais os pensamentos que alimentam sobre sua terra natal e sua gente. Da mesma forma, como sugere o estudo dos discursos (PINTOS, 1999), verificamos quais as idéias que os árabes-palestinos situados na região fronteiriça passam para os leitores desses jornais sobre o processo migratório que os levou a abandonar seu território de origem e ocupar novos lugares. E neste sentido, os jornais locais funcionam como meios de divulgação de posicionamentos específicos, passando também, através da postura que adotam, a contribuir na construção de uma imagem elaborada pelos leitores sobre os árabes-palestinos. Uma breve discussão teórica As cidades, organismo dotado de vivacidade, de dinamismo, podem ser consideradas espaços locais onde interatuam milhares de participantes, entre eles indivíduos e ni stituições, que criam novas articulações, entrelaçando o público e o privado. É nas cidades, espaço de ebulição da vida cotidiana, que se encontram estilos de várias épocas, monumentos e anúncios publicitários, colocados lado a lado; interesses distintos – mercantilistas, históricos, estéticos, comunicacionais - cruzam-se constantemente nos espaços urbanos; são a resultante da construção de um território específico, correlacionado a processos sociais amplos e complexos. Os moradores desses espaços, - cuja presença é imprescindível, pois as cidades se organizam através de práticas e experiências concretas dos indivíduos -, constituem o local como algo diferenciado e reconhecido por eles. Em um mundo cada vez mais globalizado, torna-se importante compreender – e até mesmo recuperar – o que representam estes espaços definidos geográfica, política, econômica e socialmente6 . Devido às novas configurações que ocorrem na sociedade, a fronteira tem servido como ponto de discussão e reflexão. Partimos do princípio de que falar de fronteira, quando estamos nos remetendo a ela como fenômeno, significa falar de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que fica subentendida a idéia de limite, surge a possibilidade de relacionar a designação à passagem; assim como nos referimos à fronteira como fechamento, empregamos a mesma expressão para definir um lugar como espaço de contato, ponto de divisão e/ou de ligação. Quando a denominação fronteira passa a ser utilizada para designar as bordas de territórios nacionais, ela traz consigo o significado de um marco estabelecido geopoliticamente, firmado através de acordos, mas impregnado de uma construção simbólica ligada ao pertencimento, vinculada à identidade, e, conseqüentemente à diferença.(PESAVENTO, 2002). Tratar as linhas divisórias entre países, levando em conta apenas os marcos oficiais, é um erro, é negar que em lugares distantes dos centros de poder, onde são estabelecidas relações entre membros de nações distintas, os acordos entre os habitantes desses espaços locais se 6 Muitos são os estudos e teóricos que se dedicam a analisar as configurações do local, apresentando a idéia de que não é possível defender a existência de uma oposição entre o local e o global, como Canclini (1999), Ortiz (1994) entre outros. 4 efetivem inevitavelmente, mesmo que eles façam parte de diferentes nações7 . Surgem, a partir destes contatos, movimentos de ultrapassagem, na busca de partilhar ações, de criar canais de diálogo capazes de vencer barreiras e criar novas estruturas e espaços. Nas regiões urbanas de fronteiras nacionais, este procedimento torna as bordas de países porosas, permeáveis, borradas, área em que o dinamismo das relações interpessoais e institucionais transformam o contexto em um marco diferencial resultante da interação entre membros de nações distintas. É neste sentido que nos filiamos à noção de fronteiras urbanas entre Estados nacionais como sendo um fenômeno dinâmico, isto é, fronteiras-vivas, que mesmo distante dos pólos de decisões nacionais constituem-se em áreas de conformação humana e geográfica semelhante, onde se processa a ação dos agentes fronteiriços que estabelecem processos específicos de interação, acumulação e tensão (ITURRIZA apud PADRÓS, 1994). São pontos de contato entre nações e culturas distintas, que exigem dos habitantes locais um exercício permanente de auto-conhecimento e afirmação, e, ao mesmo tempo, de reconhecimento e de respeito ao outro. Nos espaços de Uruguaiana-Libres e Livramento-Rivera temos, inicialmente, dois elementos importantes a considerar: são áreas urbanas e, ao mesmo tempo, configuram-se em regiões limítrofes entre dois países. Nessas regiões de contato, as trocas e os intercâmbios se dão a todo momento, as pessoas transitam de um lado ao outro diariamente, as relações que estabelecem com seus vizinhos, membros de outra nação, se processam naturalmente. Muitas vezes, o que fala mais alto é o fato de os moradores de ambos os lados da linha divisória fazerem parte de um grupo diferenciado em relação a seus pares: são habitantes dos espaços periféricos do país, distantes dos pólos de poder e decisão do Estado. São espaços construídos a partir de identidades nacionais diferenciadas, que, ao se entrecruzarem, passam a definir uma configuração onde os fios da trama e da urdidura são de matizes diversas, constituindo-se assim uma nova identidade. É neste ponto que os moradores dos espaços de fronteira se aproximam, se identificam como iguais. Esta identificação os fortalece e, a partir da criação de regras próprias definem uma nova identidade: a identidade fronteiriça. Ao mesmo tempo em que se define essa identidade de fronteira é processado um outro movimento o de manutenção das identidades nacionais. Ambos acontecem simultaneamente a partir das práticas socioculturais dos elementos que compõem a comunidade fronteiriça8 . No espaço de fronteiras nacionais a relação com o outro, membro do país vizinho, 7 Temos que ter em mente que, cada vez mais, as interações, as trocas, os processos comunicativos passam a fazer parte da vida das pessoas em qualquer que seja o lugar onde estejam, independente que este seja um espaço fronteiriço, de contornos de países, ou nos centros dos territórios nacionais. O que destacamos aqui é que esta ligação se dá em pontos limítrofes nacionais, no caso específico, linhas de contato entre Brasil e Argentina e Brasil e Uruguai. 8 Este tipo de posicionamento, de indeterminação pode ser considerado como uma dupla consciência (HALL, 1999). 5 reforça a noção do eu e o reconhecimento da diferença existente entre esse eu e o outro9 . E, como destaca Hall (2003), a diferença é essencial ao significado, e o significado é crucial à cultura. Outras articulações também se desenvolvem no espaço local, provocadas pelo fenômeno fronteira. Os elementos que constroem e sustentam a identidade fronteiriça são os indivíduos que assumem a fronteira como seu espaço. E, neste grupo, incluem-se as pessoas que ali nasceram e também as que elegeram aquele lugar como sendo o seu, propício para se estabelecerem. Ambos assumem a fronteira como espaço único e diferenciado, deixando para os outros - os visitantes ou estrangeiros - a concepção daquele espaço como território marginal. No grupo dos fronteiriços que se fixaram no Sul do Brasil, podemos destacar a presença de árabes-palestinos. Hoje encontramos pessoas provenientes da Palestina, Arábia, Síria e Líbano e seus descendentes, nascidos em solo brasileiro, que aqui se instalaram, desenvolvendo atividades profissionais na região da fronteira. São comerciantes, advogados, empresários etc., que elegeram o Sul do Brasil, ponto de contato entre o Nordeste da Argentina e Norte do Uruguai, como UruguaianaLibres e Livramento-Rivera, como lugar para viver. Os primeiros imigrantes desta origem que se dirigiram para o Sul do Brasil10 foram os sírios e libaneses no século XIX; eram, em sua maioria, mascates que percorriam o interior do Estado, vendendo mercadorias provenientes de outras regiões e países. Mais tarde, já no século XX, os palestinos começaram a chegar ao território gaúcho, povoando principalmente as regiões fronteiriças. Em cidades como Santa Vitória do Palmar, Chuí, Quaraí, Santana do Livramento, Uruguaiana entre outras, é visível a presença destes grupos de imigrantes, que, com freqüência, dedicam-se ao comércio local. Embora afirmem sentir muita saudade de sua terra natal e de seu povo, tendo sempre presente a idéia de retorno, elemento constitutivo da condição de imigrante (SAYAD, 2000), os árabes-palestinos instalados em território gaúcho mostram-se muito a vontade e familiarizados com a região, perfeitamente adaptados à cultura local. O espírito dos jovens, muitos deles nascidos aqui, já é um pouco diferente daqueles que vieram para cá anos atrás. Menos arraigados aos costumes de seus pais e avós, eles convivem naturalmente com os hábitos das nações que habitam ambos os lados da linha que divide os territórios vizinhos – Brasil, Uruguaia, Argentina. O convívio com membros de nações distintas amplia o relacionamento com outros grupos, fazendo com que ocorra um processo de identificação, onde são assumidas as diferenças culturais e reconhecidos os traços das demais culturas locais. Hábitos e costumes são partilhados, definindo procedimentos que não deixam de ser o passaporte para fazer parte da comunidade fronteiriça: reconhecer-se e respeitar o outro. 9 A alteridade convoca a noção de identidade tanto quanto a de pluralidade (JODELETE, 1998). No Rio Grande do Sul, habitam cerca de sessenta mil árabes (RBS TV, 2001). 10 6 Um dos elementos que contribui para a disseminação da identidade construída na fronteira são os meios de comunicação de massa, entre eles os produzidos localmente e direcionados à comunidade da qual fazem parte. Através da dimensão simbólica que possuem, se relacionam com a produção, o armazenamento e a circulação de materiais significativos tanto para os indivíduos que os produzem como para que os recebem. Podemos dizer que o desenvolvimento dos meios de comunicação reelaboram o caráter simbólico da vida social, reorganizam os meios pelos quais a informação e o conteúdo simbólico são produzidos e trocados no tecido social, reestruturam também os meios pelos quais os indivíduos se relacionam entre si. Mesmo existindo várias formas de interação social nas quais os indivíduos estão envolvidos, ressaltamos que, ao realizar um processo de apropriação das formas simbólicas difundidas pela mídia, as pessoas envolvem-se num processo de formação e auto-compreensão, modelando e remodelando seus conhecimentos, modificando-se, transformando-se. Embora a mídia local de cidades interioranas tenha algumas peculiaridades, temos que concordar com a opinião de Thompson, quando ele diz que, de modo geral, a recepção dos produtos midiáticos é um processo hermenêutico, isto é, “ao interpretar as formas simbólicas, os indivíduos as incorporam na própria compreensão que têm de si mesmo e dos outros” (1999, p. 45). Como é comum às mídias locais, temas que podem causar estremecimento entre os componentes da comunidade (seus leitores), são evitados ou tratados de forma bastante cuidadosa, até mesmo com certa parcialidade. Por estarem muito próximos do seu receptor, a proximidade, o pertencimento e a participação são características que falam mais alto para os veículos de comunicação produzidos em pequenos e médios municípios (TÉTU, 1997). Há uma busca por valorizar o homem integrado ao sistema local, provocando, não raras vezes, um processo de exclusão sobre aqueles que não interagem com o grupo. Ao relatar os acontecimentos que se desenrolam no ambiente local, os meios de comunicação lançam mão de regras, valores, sistemáticas próprias do fazer jornalístico que reforçam ou alteram valores presentes em determinado grupo, desempenhando um papel fundamental na construção do mundo (FAUSTO NETO, 1991). E para entender como se dá o processo comunicativo midiatizado em espaços de fronteira como os aqui tratados, torna-se importante verificar em que medida os meios de comunicação local desempenham o papel de sujeito no desenrolar dos processos sociais. Faz-se assim interessante buscar informações a respeito de grupos específicos, entre eles o dos árabes-palestinos, no intuito de entender como estes membros da comunidade fronteiriça descrevem a sua relação com o espaço no qual se inserem, para então verificar como esta relação é apresentada na mídia impressa local. 7 Os árabes-palestinos na fronteira Ao percorrer as ruas das cidades da fronteira do Sul do Brasil com seus países vizinhos – Uruguai e Argentina –, verifica-se a presença de imigrantes árabes-palestinos na região. Nas praças das cidades são encontradas placas em homenagem a este povo, exaltando o apoio e a colaboração que dão à comunidade e em reconhecimento à luta que travam para conquistar um Estado Nacional de fato e de direito no Oriente Médio. Nas zonas de comércio das cidades fronteiriças são muitas as lojas cujos proprietários são de origem árabe. Não raras vezes, ao transitar pelas cidades, é possível se defrontar com homens, mulheres e crianças com traços fisionômicos característicos dos povos de língua árabe, usando vestimentas que lembram culturas bem diferenciadas da brasileira, uruguaia ou argentina. No espaço fronteiriço também são encontradas instituições que agregam esses imigrantes e seus descendentes, que têm como objetivo reforçar e manter viva as tradições provenientes daquelas regiões longínquas. Mas para melhor compreender como o espaço fronteiriço é visto pela comunidade árabepalestina que vive na região que faz limite do Brasil com outros dois países, torna-se fundamental ouvir alguns de seus representantes para saber o que pensam da terra e do povo que os acolheu e que sentimentos guardam a respeito de suas origens. Na fronteira do Rio Grande do Sul com Corrientes, em Uruguaiana, município vizinho da cidade argentina de Paso de Los Libres, ouvimos o depoimento de um uruguaianense, filho de pai árabe e mãe brasileira, que morou vinte anos na Jordânia. Com apenas 30 anos, ele é um dos comerciantes bem-sucedidos da região e já concorreu aos cargos de vice-prefeito de Uruguaiana e deputado federal pela região fronteiriça. Apesar de não ter sido eleito, é homem respeitado e bem considerado na comunidade e, em fins de outubro do ano de 2001, assumiu a presidência da Sociedade ÁrabePalestina de Uruguaiana. Também no território riograndense está situada Santana do Livramento, município brasileiro que faz divisa com Rivera, no Uruguai. Neste espaço, o movimento literário local chama a atenção por acolher e divulgar os trabalhos dos artistas que vivem em ambos os lados da fronteira. Encontramos nas duas cidades instituições que estimulam e valorizam os escritores e poetas fronteiriços: a Casa do Poeta Santanense (CAPOSAN) e a Orden Académica de los Intelectuales del Cone Sur. O Presidente de Honra da CAPOSAN é um palestino de 50 anos que chegou a Livramento em 1981. Em Livramento é reconhecido pela comunidade como poeta e proprietário de lojas na cidade. Suas obras são publicadas nas páginas de A Platéia. Através de seus poemas, este imigrante destaca a vida na fronteira e o amor pelas suas origens, sempre ressaltando e valorizando o povo e o país que o recebeu e no qual vive com sua família. 8 Segundo as palavras desses dois representantes do povo árabe-palestino na região, o espaço fronteiriço é interessante para os que gostam do comércio e têm tino para as vendas. Para quem se dedica a este ramo de atividade, a mudança cambial favorece os negócios, por isso a fronteira torna-se atraente e favorável à vinda de imigrantes com tradição no comércio, que acabam por se fixarem no lugar, instalando, não raras vezes, lojas em ambos os lados da divisa entre os dois países limítrofes. Muitas das decisões tomadas no setor econômico em âmbito federal afetam diretamente as transações comerciais na fronteira. Conforme a resolução, ora ficam beneficiados os lojistas de cá, ora os comerciantes de lá, visto que a economia da região também é voltada para os moradores/consumidores que circulam livremente nas cidades, provenientes do outro lado da Rua ou da Ponte11 , para adquirir bens e produtos diversos. Isto confirma o que é dito na região sobre os moradores da cidade ao lado: “nós dependemos deles”. Com relação à vida cultural e social, as posições também se reforçam. Segundo o uruguaianense com descendência árabe, “o lado cultural da comunidade árabe é respeitado pela comunidade local; de uns anos para cá há mais aceitação, mas ainda existe um pouco de racismo e discriminação”. Para minimizar o problema, árabes-palestinos se abriram, intensificando sua participação nos movimentos e instituições locais. Uma das formas que tornou isto possível foi o ingresso em CTGs (Centros de Tradições Gaúchas) e a participação em eventos como os desfiles da Semana da Pátria Brasileira e da Semana Farroupilha 12 , realizados por volta de sete e 20 de setembro respectivamente. Outra alternativa encontrada foi fazer parte de instituições assistenciais, com um envolvimento em questões que dizem respeito à busca por soluções para os problemas da comunidade. Atuar junto a entidades carnavalescas e clubes, participando ativamente da vida social local, também aproximou-os de brasileiros e argentinos ou de brasileiros e uruguaios residentes na fronteira. Para o palestino que vive em Livramento, e desde 1999 escreve para o jornal local, há poucos anos a comunidade árabe-palestina não participava da vida cultural da cidade: “mas os jovens mudaram esta relação; eles se entrosam com a cultura local fazendo com que as trocas não ficassem só no ramo comercial”. Atitudes como a dele, escrevendo em A Platéia, abriram espaço para que outros membros dessa comunidade se sentissem motivados em contribuir e difundir suas idéias para os leitores do jornal. No início, a iniciativa causou um certo impacto e desconforto entre os leitores brasileiros e uruguaios que não tinham condições de decifrar os códigos lingüísticos empregados nos textos. Embora o jornal apresente lado a lado textos em 11 Em Uruguaiana-Libres a divisa se dá por um rio cuja extremidades se ligam através de uma ponte. Em Livramento-Rivera o ponto de divisa/ contato se dá através de um parque e sua extensão, a rua. 12 Feriado estadual, data importante para os riograndenses pois é quando se comemora os feitos dos revolucionários Farroupilhas. 9 português e espanhol, é muito restrito o grupo que consegue ler essa língua com caracteres tão distintos dos empregados na língua dos países latino americanos. Vencido o atrito com os leitores, o jornal optou por colocar somente o nome do caderno - Caderno Literário - escrito em árabe. Segundo os dirigentes de A Platéia, esta exigência também se deu devido ao fato de os novos equipamentos adquiridos pela empresa jornalística não darem conta de reproduzir textos com caracteres que compõem a língua árabe. Nessa sessão, muitos são os poemas que dizem respeito à cultura e à terra desses imigrantes do Sul da Ásia, carregados de lembranças do país de origem, de saudade dos familiares que ficaram distante e de amor pela sua pátria. Uma questão enfatizada pelos santanenses-riverenses diz respeito à denominação que dão àquele espaço: fronteira da paz. Esta característica também recebe respaldo dos árabes-palestinos que vivem na fronteira do Brasil com o Uruguai. São muitas as manifestações que valorizam a relação pacífica entre povos de nações distintas que dividem e constroem juntos o espaço, de modo harmônico e amistoso, postura nem sempre respeitada em regiões de fronteira entre países. Acompanhando o movimento de interação entre povos de identidades nacionais distintas, a mídia, através dos modos e estratégias de operação que lança mão, passa a configurar-se como um elemento que reforça (ou divide) as opiniões com relação a culturas diferenciadas. No caso específico de O Jornal de Uruguaiana e A Platéia, são veiculadas informações que apóiam os árabes-palestinos na comunidade fronteiriça. O espaço que esses periódicos abrem para divulgar as manifestações desses imigrantes favorece a participação e a aceitação deles como grupo constitutivo do espaço fronteiriço. E isto pode ser visto tanto nas seções informativas como opinativas, tanto nas páginas que falam sobre os acontecimentos que compõem o tecido social, como em colunas e encartes como o Caderno Literário, que despertam o imaginário dos leitores. Desta forma, os jornais assumem uma linha editorial que colabora com o processo integracionista estabelecido entre os habitantes locais, participando do exercício de identificação com as tradições, reconhecendo as diferenças, o outro, respeitando-o e aceitando-o no meio. Assim, percebe-se que o espaço fronteiriço, onde estão em contato mais de uma identidade nacional, torna-se um terreno fértil para receber e acolher povos pertencentes a outras nações. Há efetivamente um processo de identificação desses elementos, isto é, não estão perdidos na multidão e recebem destaque para que sejam considerados pela sociedade local como membros do grupo. A fronteira torna-se pois, um espaço onde podem ser encontradas características claras de culturas distintas, que convivem pacificamente, constituindo um lugar de mescla culturais, como é possível perceber na leitura dos jornais locais. 10 Manifestações árabes-palestinas em jornais fronteiriços Vale destacar que O Jornal de Uruguaiana circula entre os moradores de Uruguaiana, mas também é lido por libreños que transitam normalmente na cidade brasileira e que se interessam pelas notícias locais. Verifica-se que no material veiculado por esta mídia se fazem presentes as manifestações culturais dos diferentes grupos que compõem a comunidade fronteiriça. Além dos acontecimentos ligados às manifestações culturais brasileira, encontramos notícias sobre eventos que ocorrem com os vizinhos, os argentinos, muitas delas registradas através do emprego da língua espanhola. Outra cultura que se mostra viva nas páginas de O Jornal é a gauchesca, com seus traços comuns aos moradores de ambos os lados da Ponte. Pode-se dizer que este tipo de entrelaçamento é previsível em pontos de contato entre territórios nacionais com características próprias na qual elementos das culturas nacionais interagem constantemente. Entretanto, um dos aspectos que mais chama a atenção são as notícias sobre a presença da cultura e do povo árabepalestino na região, que passa a ser considerada como natural para a comunidade fronteiriça. Em matérias publicadas em O Jornal de Uruguaiana, por exemplo, percebe-se a posição parcial do veículo com relação aos conflitos no Oriente Médio, em defesa do povo palestino e contrária aos israelenses. As manifestações realizadas por membros da comunidade árabepalestina na fronteira reivindicam uma liberdade identitária, um território próprio, o direito à vida para essa nação. Vê-se nos textos produzidos por porta-vozes desse grupo, e trazidos pela mídia local, um clamor por justiça. Ao mesmo tempo verifica-se um movimento de pertencimento oscilante, ora se apresentam como membros da comunidade palestina, ora como membros da comunidade brasileira. Assumem duas identidades nacionais, muito embora, em determinadas ocasiões, o ser árabe-palestino fale mais forte. A paz também é uma temática recorrente nas manifestações desse grupo de imigrantes. O destaque fica por conta de criticar o governo israelense dizendo ao leitor que o massacre do povo palestino pelo povo de Israel é histórico, tratando assim os palestinos como sofredores, injustiçados. São textos opinativos que representam apenas uma posição sobre o conflito, passando para a comunidade local somente um dos lados da questão. Ao divulgar este tipo de posicionamento o veículo contribui para a construção de um imaginário a respeito de ambos os grupos em atrito no Oriente Médio, apresentando de modo maniqueísta e simplificado a complexa e constante tensão vivida por aqueles povos, ressaltando que quem faz parte do grupo do bem são os palestinos e no grupo do mal estão os israelenses. Outra forma que O Jornal utiliza para tratar os atritos entre israelenses e palestinos é resgatar acontecimentos históricos, ressaltando as agruras vividas pelas nações sul asiáticas. O foco passa a centrar-se em acontecimentos ocorridos no período a.C. - época em que inicia a dispersão dos judeus pelo 11 mundo -, passando pela fase em que houve o domínio europeu sobre os povos do Oriente Médio, chegando aos atritos violentos que ocorrem nos dias de hoje. Todos os anos, no mês de novembro, a comunidade árabe-palestina festeja o aniversário da decretação do Estado Palestino 13 . Aproveitando a data, a comunidade árabe-palestina que reside do lado brasileiro da fronteira do Brasil com a Argentina, organiza eventos para chamar a atenção sobre sua luta. No ano de 2000, ocorreu uma manifestação nas ruas de Uruguaiana, evento noticiado pela mídia local. Na ocasião, O Jornal de Uruguaiana fez uma reportagem destacando o desfile realizado pelas ruas da cidade, com a participação dos representantes da comunidade árabe-palestina da região. Movimentos como este são periodicamente apresentados pelo jornal local sempre destacando a participação de representantes fronteiriços em travar esta luta pela paz. Na matéria produzida por repórteres de O Jornal ficou aparente a linha editorial do veículo. O texto abre espaço para interlocutores do movimento fazerem seus depoimentos, neles percebe-se o posicionamento claro do grupo que considera os palestinos um povo massacrado, punido, expulso de suas terras, exilado em lugares distantes. Esse tipo de discurso deixa transparecer o motivo de eles exercerem atividades temporárias, afinal, estão longe de sua terra natal, longe de seu povo, de seus ancestrais, mas alimentam a expectativa de poder retornar. A data é utilizada para pedir solidariedade à população mundial pela causa palestina. Junto à matéria veiculada em O Jornal foi colocada uma foto ilustrativa do desfile. Nela, à frente do grupo, vê-se um homem conduzindo um carrinho de bebê no qual está uma criança sentada sobre a bandeira do Brasil, com a seguinte legenda: “Povo Palestino quer ser reconhecido na prática como Estado”. Verifica-se em textos como esse, ligado ao clamor dos palestinos, que a repetição de idéias em prol desse povo reforça o posicionamento de que eles são as vítimas e os israelenses, os perversos, sem uma preocupação maior em apresentar um contraponto, uma discussão sobre a temática. Em parte, isto se justifica pelo fato de existir um grande número de imigrantes palestinos vivendo na fronteira brasileira. O jornal assume uma posição de parcialidade com o intuito de evitar um momento de tensão envolvendo este grupo que compõem a comunidade fronteiriça. Tal procedimento, uma das características das mídias locais, que buscam, na maioria das vezes, distanciar-se de questõe que possam desencadear uma crise local. Vários dos mecanismos utilizados por O Jornal de Uruguaiana para trazer essa temática envolvendo os árabes-palestinos também são acionados pelo jornal de Livramento, A Platéia, principalmente nas páginas literárias. O jornal santanense permite-se utilizar mais de uma língua em suas páginas - textos em português, espanhol e árabe. Esta permissividade é predominante nas páginas destinadas a abril o espaço para que a população expresse emoções e sentimentos, 13 No de 2004 será comemorada a passagem do 57º ano em que o mundo reconheceu a existência deste Estado. 12 que se constituem em manifestações culturais dos povos que habitam a fronteira. São textos de caráter conotativo, como as poesias, que levam a diferentes interpretações, muito pessoais. São os espaços do jornal onde o leitor é chamado a participar na condição de autor e talvez por isso haja um consentimento por parte da comunidade em geral e da própria empresa jornalística. Um dos exemplos que podemos destacar diz respeito às comemorações da Semana da Pátria que ocorre todos os anos no território brasileiro, nos primeiros dias do mês de setembro, por ocasião das festividades comemorativas da Independência do Brasil. Nas páginas de A Platéia encontramos as palavras de um poeta palestino, nas quais é dado destaque ao desfile chamando-o de nosso desfile, assumindo-se, nesse momento, como parte do povo brasileiro, utilizando como canal de acesso a condição de fronteiriço. No texto, a data é aproveitada para exaltar a postura pacifista do povo local - santanenses-riverenses - do soldado e do país que o recebeu e no qual reside com seus familiares. Destaca também à condição de vida possível nesse espaço fronteiriço no qual não há violência, nem guerras, nem inveja, nem egoísmo, mas sim a paz, o amor e a amizade. A comemoração é utilizada para salientar a boa convivência da força policial brasileira com a uruguaia, já que atuam lado a lado em harmonia. O poeta ressalta que, na fronteira, há respeito pelo outro, há solidariedade, compreensão, valores que, segundo ele, são cultivados e demonstrados pelo fronteiriço nas suas ações, nas suas práticas cotidianas. Outra temática recorrente em A Platéia, e que diz respeito ao povo e à cultura árabepalestina, refere-se ao movimento migratório que realiza pelo mundo afora. Em um dos poemas sobre este assunto, que faz menção às comemorações do Dia das Mães, a data é utilizada para evocar a pátria (no caso a Palestina) e a mãe, ambas distantes fisicamente, mas bem presentes na memória e no coração desses imigrantes. No poema, o autor reconhece que as deixou em detrimento de uma ambição, mas que hoje, em frente ao túmulo da mãe, desdobra-se em desculpas e em pedidos de perdão, que, aparentemente, em seu imaginário, são concedidos e intermediados por Deus. A poesia torna-se o mecanismo acionado por um dos porta-vozes da comunidade árabe-palestina para apresentar seus sentimentos de remorso quanto ao abandono da terra natal e dos parentes lá deixados. Assim como o poeta, muitos são os membros desta comunidade que realizaram a mesma façanha e que sentem saudade do que deixaram para trás em busca de sucesso e pelo desejo de progredir financeiramente e viver com tranqüilidade. A aventura de sair em busca de terras distantes, com uma cultura estranha a sua, é estimulada pelo sonho de encontrar um espaço pacífico para viver. Este movimento de diáspora deixa marcas de tristeza e saudade e a culpa de terem abandonado o espaço de origem - suas raízes - em troca de um lugar onde fosse possível ascender econômica e socialmente. A culpa pelo abandono aparece 13 nos discursos produzidos por representantes desse grupo e nas palavras que compõem os poemas, sempre acompanhados de pedidos de compreensão e perdão àqueles que lá ficaram. Um dos movimentos de inserção deste grupo no contexto, e aceito pelos jornais, se dá nas páginas da coluna social. Ao trazer à cena as comemorações do final do Ramadã, realizadas em uma churrascaria, com a participação de famílias árabes-palestinas, a mídia local participa como agente de informação sobre a cultura mulçumana e ratifica a posição destas famílias como membros da sociedade fronteiriça local. Da mesma forma, ao abrir espaço no Caderno Literário para um representante desta comunidade falar da condição da mulher na religião mulçumana, no Dia Internacional da Mulher, o jornal apresenta, através de um interlocutor, as tradições da cultura árabe-palestina e a posição da mulher dentro desta. A mídia auxilia na definição de um processo de inclusão dos grupos de árabes–palestinos instalados nesses espaços, considerando-os como membros da comunidade fronteiriça local. Reforça também a idéia defendida pelos palestinos de luta pela conquista e reconhecimento de um Estado Nacional próprio e soberano, posição esta apresentada a todos os leitores - brasileiros, argentinos, uruguaios, imigrantes e descendentes de árabes-palestinos - e esclarece sobre a cultura, os hábitos e a religião destes. Considerações finais São vários os textos de O Jornal e A Platéia em que aparece como se constitui o amálgama cultural dos espaços da fronteira oeste do Sul do Brasil, entretanto, a forma como é apresentado o material sobre a cultural e o povo árabe-palestino merece destaque. Além de possuir componentes culturais bastante distintos das demais culturas da região, verifica-se que a mobilização deste grupo para garantir seu lugar dentro da comunidade fronteiriça é bastante forte. Através de suas manifestações é trazido o posicionamento sobre as questões que envolvem os povos palestinos e israelenses, em constante conflito, no Oriente Médio. Ao mesmo tempo em que, através de ações públicas, reforçam suas raízes e a condição árabe-palestina, esses imigrantes criam situações e aproveitam oportunidades para difundir sua cultura e seus valores no meio em que estão inseridos. Ao se mostrarem, conquistam projeção e respeito, afirmando-se como um dos elementos que compõem a comunidade fronteiriça. Em determinados momentos deixam de ser o outro, o estrangeiro, o imigrante, e passam a assumir o papel de habitante local e a identidade fronteiriça. Apropriam-se de símbolos, ritos e regras representativas dos povos nativos, naturalizando-se como elemento constitutivo do contexto. Desta forma, estão lançando mão de uma outra tática, a de flexibilizar sua cidadania, evitando um tratamento hostil, sempre latente, que possa ser dado a um invasor, a um estranho. Através de suas falas, utilizam exemplos negativos de convivência fronteiriça baseados nos acontecimentos que se desenrolam em lugares distantes, como os que se processam em sua terra 14 natal. Estabelecem comparações entre aquelas fronteiras em que os momentos de conflito são históricos, com os espaços de fronteira onde estão instalados. Embora as tensões também façam parte dos processos interativos, a estratégia adotada é de enaltecer os espaços fronteiriços em que a interação entre povos de nações distintas é pacífica, como são os casos de Uruguaiana-Libres e Livramento-Rivera, onde brasileiros, uruguaios, argentinos e árabes-palestinos convivem harmonicamente. Justificam, através de formas simbólicas que empregam em seus discursos, o auto-exílio baseado na busca por espaços onde é possível viver de modo tranqüilo, nos quais existem condições de desenvolvimento e progresso com dignidade. Os meios de comunicação de massa produzidos localmente são utilizados como canais de divulgação nos quais as pessoas representativas dessas comunidades se pronunciam para os fronteiriços em geral. Através da publicização das idéias dos árabes-palestinos feita pela mídia local é passada uma das versões sobre o que ocorre com esse povo – qual é a sua sina - e como é a sua cultura. Percebe-se um alto índice de tolerância por parte dos leitores no que diz respeito à divulgação de textos em outras línguas – em especial o espanhol e o árabe - nas páginas dos jornais fronteiriços brasileiros. Por outro lado, vemos empresas midiáticas desfrutando de um grau de permissividade bastante importante ao publicar textos em outras línguas. A continuidade dada a este tipo de procedimento e a ênfase em destacar os acontecimentos ligados a outros povos, como os árabes-palestinos, se dá através da veiculação de notícias que abordam eventos específicos onde seus valores e posicionamentos recebem destaque. Os textos literários publicados nas páginas de A Platéia e O Jornal de Uruguaiana servem para acionar o imaginário e os sentimentos do leitor de modo que ele valorize e dê importância ao fato de ser fronteiriço e de poder desfrutar de um lugar diferente onde existe uma Fronteira da Paz ou uma Ponte da Integração. Estes mecanismos despertam, reforçam e solidificam a cultura e a identidade fronteiriça, destacando e exaltando a postura de um povo que convive de modo harmônico com membros de outras nações, dividindo um mesmo espaço, lugar de ligação, de contato, de passagem entre países. O conceito de fronteira como espaço de passagem, de abertura, de vida, é considerado como o vigente para a comunidade local que demonstra, através de seus discursos e ações que a idéia de fronteira como fechamento, interrupção, barreira não é válida para ela. Fica claro que Livramento-Rivera e Uruguaiana-Libres funcionam como exemplos de convivência pacífica muito embora os momentos de tensão sejam latentes. O movimento e a preocupação com o outro, e conseqüentemente com a afirmação de um eu, passa a constituir-se em exercício diário para os moradores dessas linhas de divisa entre países. A fronteira torna-se pois o espaço propício para receber outras comunidades provenientes de lugares distantes com culturas bem 15 distintas. Constitui-se assim, a complexa identidade fronteiriça, híbrida de origem, composta por duas (ou mais) identidades nacionais, cujas marcas são as mesclas, os enlaces, os acertos institucionalizados, uma trama rica que exige o contato, a interação a co-presença. É a resultante de uma nova combinação, proveniente de um processo relacional, dinâmico e constante entre o eu e o outro que tem como condição a diferença. Referências bibliográficas BAUER, Matin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 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