LIMITES: RESTRIÇÃO E SUPERAÇÃO1 ______________________________________________________________________ Yves de La Taille* Limite é uma palavra que tem voltado à tona ultimamente. É empregada com frequência, em geral de forma queixosa: “essas crianças não têm limites!”; ou então com um quê de autoritarismo: “é preciso impor limites!”, ou ainda como crítica à família do vizinho ou dos alunos: “esses pais não colocam limites!”. A obediência, o respeito, a disciplina, a retidão moral, a cidadania enfim, tudo parece estar associado à esta metáfora. Tudo talvez, mas não todos. De fato, quem supostamente carece de limites é sempre uma criança ou um adolescente. Um adolescente que dissesse “esses adultos não têm limites” causaria estranheza e risos. Um adulto que se expressasse da mesma forma referindo-se aos jovens seria escutado e aprovado. Sempre foi assim e parece que sempre será: para a geração mais velha, a mais nova é desregrada, frívola, sem juízo e ameaçadora. Porém, lembremos um fato importante e nunca o bastante enfatizado: os jovens são reflexos da sociedade em que vivem, e não uma tribo de alienígenas misteriosamente desembarcada em nosso mundo, com costumes bárbaros adquiridos não se sabe onde. Se é verdade que eles carecem disto que se chama limites, é que a sociedade como um todo deve estar privada deles. “Esses adultos não têm limites!”, se algum adolescente proferir tal diagnóstico, deveremos dar-lhe algum crédito. Mas, do que estamos realmente falando quando nos referimos a limites, à sua falta, à necessidade de sua imposição? É essa pergunta e suas respostas que pretendo desenvolver aqui. No final do caminho, o público, espero, concordará com a seguinte afirmação: se é verdade que a falta de limites verifica-se em muitas pessoas (não apenas nos jovens), é também verdade que o excesso deles sufoca a maioria. Para compreender esta aparente contradição, é preciso trabalhar o sentido desta bela metáfora, hoje maltratada pelo seu emprego exclusivamente restritivo. “Limite” remete à ideia de fronteira, de linha que separa territórios. Se existe um limite é que há pelo menos dois continentes, concretos ou abstratos, separados por essa fronteira. O limite de meu jardim está ali: significa dizer que além dele, há algo que não é mais meu jardim. Atingi o limite de idade: significa dizer que, além desta idade, há coisa que não posso ou não me deixam mais fazer. Os dois exemplos que acabo de dar nos remetem à ideia de restrição: o lado de lá do limite é negativo, o que não é meu, o que não posso fazer. Entendido assim, o limite referir-se-ia apenas a um horizonte intransponível. Porém, a ideia de fronteira remete-nos também à ação de transpor, de ir além. Aquilo que hoje me limita pode ser ultrapassado amanhã. Os navegadores do século 16 pensaram assim: transpuseram aquilo que parecia ser o fim do mundo e encontraram novos mundos. Foram além dos limites, passaram fronteiras. O bom esportista pensa assim: o desempenho hoje impossível, poderá ser amanhã realizado. O bom cientista também pensa assim: aquilo que é hoje ignorância, poderá ser, num futuro próximo ou longínquo, conhecimento. ____________________________________________________________________________ 1 Texto extraído do livro Limites: três dimensões educacionais, de Yves de La Taille (Ática, 1998). Portanto, “limite” não deve ser pensado apenas como ponto extremo, como fim, como limitação. Não há dúvidas de que é um de seus significados, mas apenas um, apenas um lado da fronteira. “Limite” significa também aquilo que pode ou deve ser transposto. Toda fronteira, todo limite separa dois lados. Todo problema reside em saber se o limite é um convite a passar para o outro lado, ou, pelo contrário, uma ordem para permanecer de um lado só. Ora, na vida, e na moralidade, as duas possibilidades existem: existe o dever transpor e o dever não transpor. Yves de La Taille é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP; mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP; professor livredocente do Instituto de Psicologia da USP e autor de várias obras.