Crise da racionalidade, crise da religião Paul Valadier sj Primeira conferência : crises ? É comum situar uma em referência a outra a crise da racionalidade e a crise da religião (cristã, pois é dela que se trata aqui). Ou mais exatamente a filosofia moderna, ao menos a partir do Renascimento europeu, em geral fez da racionalidade ou da razão, a fonte e a causa da crise da religião. Neste sentido, a atitude comum consiste em pensar na crise da religião como consequência e continuidade do crescimento em potência da razão, definida aqui tanto como desenvolvimento das racionalidades científicas quanto como razão pura (especulativa) e prática (moral) para utilizar a distinção de Kant. Segundo esta perspectiva, é a razão em seu pleno desenvolvimento e em sua segurança que derrubaria os fundamentos da religião, seja atacando as bases escriturísticas ou dogmáticas do judaísmo e do cristianismo (como ocorrem com Baruch Spinoza ou Richard Simon), seja identificando religião e fanatismo ou obscurantismo (Iluminismo francês), seja anunciando o desaparecimento das religiões no horizonte da história com versões muito diferentes quer se trate de Marx (fim da alienação religiosa em benefício do Reinado da liberdade) ou de Nietzsche (colapso do monoteísmo diante de um divino politeísta ou diante da vitória do niilismo negativo). Todos conhecem a radicalidade da crise modernista na Igreja católica na virada do séc. XIX ao séc. XX, mas também a crise dos liberalismos protestantes contra a qual um Karl Barth reagiu com tanta força. Essas crises tinham origens claras numa crítica das racionalidades contra as fontes mesmas do cristianismo (novas leituras das Escrituras, fundamentos históricos dos dogmas, descobertas etnográficas…). Sem dúvida esta crise ainda não terminou, e talvez é sem término definível nem previsível, uma vez que as racionalidades em ação se renovam e se diversificam. Assim, o novo papel da linguística, da semântica, da psicanálise na interpretação dos textos transforma os termos de uma interrogação que se tornou sem dúvida permanente. Mas nesse tipo de crise, é a razão ela mesma e racionalidades renovadas que em seu desdobramento põem em perigo o universo da religião, ou ao menos obrigam as religiões a uma espécie de aggiornamento permanente. Vou me interrogar nesta primeira conferência sobre os dados de uma situação relativamente nova, que diz respeito ao que é conveniente chamar uma "crise". Ela afeta tanto o regime da razão como o da ou das religiões. Mas numa segunda conferência, tentarei sugerir saídas a essas « crises », pois não desejo de forma alguma alimentar a tendência atual, a que consiste e em toda parte, na globalização, nos tumultos financeiros, no estado de nosso meio ambiente, no trabalho da razão, apenas crises, desconstruções, apocalipse e trevas. Não existe nenhuma crise que não seja dominável desde que tenhamos a coragem de analisar os termos, e de não desesperar, nem da razão, nem da religião (ou da fé que a sustenta). Evidentemente trata-se de proposições pessoais, necessariamente lacunares, muito breves com relação à amplitude do tema ; eu as apresento então para uma discussão que poderá completar, ou até mesmo corrigir a análise. Podemos de fato nos perguntar se esta relação essencialmente crítica entre razão e religião, conhecimento do mundo e aspiração religiosa, aproximação racional e aproximação crente que acabei de evocar, não está desaparecendo, ou ao menos se apagando. Tudo leva a crer que a crise não atinge somente a esfera religiosa, mas que a razão e as racionalidades que lhe são ligadas (nas técnicas e nas ciências ditas naturais ou humanas), entraram elas mesmas em crise profunda, quando não intransponível. Mais ainda : pergunta-se num ou noutro lugar se não é a religião (institucional) ou a fé (como aproximação pessoal) que seria o recurso necessário ou possível ao abaixamento da razão. De tal fomo que assistiríamos a uma reversão da situação com relação à época triunfante do racionalismo, a tal ponto que seria a fé ou a religião que incitariam a razão a não desesperar dela mesma. Já há vinte anos a Revue Catholique Internationale Communio intitulava seu centésimo número da seguinte maneira : « salvar a razão” (XVOO, 2-3, março a junho de 21992). Trata-se de um programa revelador ! Donde a questão : será que a razão naõ seria vítima de suas próprias crises, e não seria atingida em suas próprias pretensões, e sem dúvida mesmo em seu projeto de conhecimento do real? Indícios de uma reversão Pode-se partir de uma situação estranha e paradoxal. São dois papas contemporâneos, João Paulo II primeiro na Encíclica Fides et Ratio (1998), e Bento XVI depois que, em textos de grande alcance, chamaram a razão a se mobilizar mais que o faz, para afrontar as grandes interrogações às quais a humanidade atual é confrontada. Um e outro, com acentos certamente diferentes que não é o caso aqui de analisar, insistiram na importância do trabalho da razão, contra a timidez ou as renúncias que, segundo eles, caracterizam muito a filosofia atual. Não somente incitaram os filósofos e os pensadores em geral a não renunciar a se colocar as questões decisivas para o presente e o futuro do homem, mas afirmaram com força que a fé não tinha nenhum benefício a esperar de uma razão fraca, hesitante, marcada pela dúvida e pelo ceticismo; uma fé que não seria provocada por uma razão confiante nela mesma, cairia no fideísmo, ou seja, numa atitude incapaz de render homenagem ao criador pelo trabalho da inteligência. Não somente o colapso da razão seria um acontecimento terrível e catastrófico para o próprio homem, mas tal colapso traria um prejuízo para a fé. Daí o apelo convergente dos dois papas para que a razão se mobilize contra suas próprias tentações de renúncia às suas capacidades, e para que as pessoas de fé não tenham medo de avançar pelo terreno das diversas racionalidades, para sustentá-las, mobilizá-las e assumi-las em todas as suas dimensões. É reveladora esta passagem de João Paulo II: “é ilusório pensar que a fé, face a uma razão fraca, possa alcançar uma força maior. Pelo contrário, ela cai no grande perigo de ser reduzida a um mito ou a uma superstição. Da mesma maneira, uma razão que já não tem uma fé adulta diante dela não é estimulada a interessar-se pela novidade e pela radicalidade do ser.” (Fides et Ratio § 48). Em vez de uma rivalidade considerada com frequência como algo que vai de si, estes papas declararam em muitas ocasiões que « o mundo da razão e o mundo da fé, o mundo da racionalidade secular e o mundo da fé religiosa, necessitam um do outro, e não devem temer entrar em um diálogo profundo e contínuo, um como o outro, para o bem de nossa civilização. » (assim Bento XVI em Westminster em setembro de 2009). Contrariamente a diversas interpretações, não se trata de opor dois blocos numa espécie de «guerra fria», segundo um sistema ou «economia do erro», como li em certos textos parciais e sectários. Trata-se de uma mobilização dos recursos humanos no melhor sentido da palavra, não para defender um território, mas «para o bem da civilização ». É preciso que fé e razão se conjuguem nos seus esforços ou os avaliem uma em relação à outra para dar sentido a um futuro comum. Estamos longe das richas de basar, onde a Igreja defendia por exemplo as suas posições, e onde a razão se insurgia contra o erro ou o obscurantismo religioso. Hoje nos situamos diante de desafios comuns a todos, que só os espíritos cegos fingem ignorar (futuro do planeta, violências de todos os tipos em detrimento do reconhecimento mútuo, riscos dos fundamentalismos que não são somente religiosos, mas também racionalistas ou nacionalistas, ou cientificistas ...). Todavia, não se poderia interpretar estas posições dos pontífices como « gritos de angústia » ? Fé e razão não estariam tanto uma como a outra em situação difícil, abaladas ambas pela era secular, como mostrou recentemente Charles Taylor em A Secular Age (2011) ? Ambas subsistem, mas enfraquecidas, marcadas pelo desassossego, longe das certezas de outrora, numa situação nova que afeta tanto a racionalidade como a fé. Neste caso, será que duas enfermas, duas fraquezas, duas doentes, podem realmente ajudar-se, cooperar, ou apenas compartilhar sua debilidade comum? A razão enfraquecida : o niilismo Que as grandes certezas rationalistass estejam amplamente extintas, pode-se reconhecer facilmente : por um lado, longe das profecias inspiradas pelo Iluminismo, das quais o marxismo assumiu a bandeira da maneira mais militante e mais visível, a religião e a fé não desapareceram do horizonte humano, muito pelo contrário, e isto obriga quem quer que seja lúcido a não passar uma borracha sobre uma permanência que deveria ao contrário interrogar. Vou voltar sobre este fato, mas seria ele uma espécie de ‘revanche` das religiões contra a razão ? Podemos duvidá-lo. » Por outro lado, experiências históricas dolorosas testemunham que o reino da razão não é puro de toda violência e de todo obscurantismo. Os totalitarismo do século XX provocaram (e provocam ainda na Coréia do Norte e alhures) o massacre de populações, o exaurimento duradouro de nações e de povos, o desmoronamento de esperanças políticas, o sufocamento das liberdades. Alimentaram uma cegueira aparentada com o obscurantismo em numerosos intelectuais e responsáveis políticos. E, como sempre, este obscurantismo, que se gaba de fundar-se numa dialética soidisant científica, provocou inumeráveis crimes. São realmente o fruto de uma razão que se julgou capaz de « mudar o homem » e de transformar a história, segundo uma perspectiva prometeica. Poder-se-ia dizer com Nietzsche que a vontade de saber que habitava este racionalismo, esta "vontade de verdade a qualquer preço" se materializou finalmente em um triunfo do deserto humano e espiritual, este grande incêndio da Verdade ideológica que abrasou e destruíu tantas crenças e convicções (Le Gai Savoir § 344). Ainda em termos nietzscheanos, esta vontade de verdade a qualquer preço que irrigou a insensatez política, mas também o cientismo, se concretiza no desenvolvimento do niilismo : demasiadas certezas nos poderes da razão dominadora, resultaram na dúvida mais profunda sobre os poderes desta mesma razão. Não somente ela não « acredita » mais em si mesma, mas mergulha no ceticismo e no gosto bem perverso da « desconstrução » sistemática. Esta razão enlouquecida descobre-se como habitada e inspirada pelo nada, e mergulha na negação de si mesma, segundo a definição dada por Nietzsche do niilismo : a descoberta de que sob os valores mais nobres, verdade, jusitiça ... se escondem o nada e a morte, de que o que era almejado sob o nome de verdade ou de justiça não passava de ser de fato o reino da morte. Esperava-se a reconciliação do homem com a natureza e com o homem, mas o que aconteceu foi a barbárie. E com ela a derrota da razão. Tal é o niilismo. Este diagnóstico terrível pode, aliás, verificar-se naquilo que se poderia chamar de um desdobramento da razão : por um lado, os racionalistas científicos parecem sem dúvida prosseguir seu curso com uma força e uma vitalidade notáveis, mas, ao mesmo tempo, incontrovláveis, como se tivessem perdido a finalidade, que lhes havia prescrito um Francis Bacon, servir ao dasabrochar da humanidade. Percebe-se muito bem tal desfecho no domínio da biologia, mas sobretudo talvez em todas as pesquisas que giram em torno dos ciborgues, dos robôs, com o sonho de uma superhumanidade mais ou menos imortal. Neste ponto a recusa da exceção humana se caracteriza por uma vontade de indiferenciação que arrase a especificidade da espécie, seja em relação ao animal, seja entre os gêneros, seja em relação à finitude e à morte. Tudo isto exigiria mais explicitações, mas a tendência à recusa da exceção dá testemunho desse budismo da confusão que ainda Nietzsche anunciava, no qual nada mais vale, porque nada mais se distingue verdadeiramente. A recusa da distinção ignora que conduz ao gregarismo e à indiferenciação, portanto, ao caos (à morte). De minha parte, eu temo mais o reino do animismo (toda ´virtualidade` é respeitável, segundo a fórmula de Martha Nussbaum) do que o do ateísmo, pois o animismo se insinua nos espíritos lisongeando sua tendência a identificar-se com todas as coisas, em vez de se distinguir, o que custa efetivamente muito mais ! Talvez fosse esse pseudo-budismo para o qual Nietzsche via um futuro no mundo ocidental, religião da fadiga de ser, de empreender, recusa de « distinguir-se », vontade de identificação ao grande Todo cósmico, portanto, a seus olhos, vontade de morte e do nada. Triumfo do gregarismo pela incapacidade de querer-se diferente, portanto, de se considerar e de considerar o outro como nobre, inassimilável a si próprio. Este desenvolvimento de racionalidades sem controle, buscado por si mesmo, sem moratória possível, encontra, por outra parte, sua fonte na recusa da metafísica. As razões desta recusa são demasiado vastas para serem analisadas aqui. Mas é claro, e se pode tomar este ponto como uma espécie de constatação : numerosos filósofos atuais situam sua caminhada intelectual sobre o postulado do « pós-metafísico ». Postulado geralmente não discutido, considerado como óbvio, depois das críticas de Heidegger, que acolheu de Nietzsche (aliás, mal compreendido) este tema essencial. Ora, o pósmetafísico não coincide apenas com uma recusa de um outro mundo ou de um dualismo de tipo platônico, o que se pode admitir. Ele dispensa todas as questões existenciais que animavam ainda Kant, relativas ao sentido do destino da pessoa humana e da aventura coletiva dos homens (que posso saber? que devo fazer? que me é permitido esperar?). Ele se recusa mesmo a colocá-las para se remeter seja a uma fenomenologia, seja à analítica da linguagem na linha do primeiro Wittgenstein, lançando uma espécie de interdito sobre as questões que não podem ser ditas (clara et distintamente). Ora, mesmo se un pensamento filosófico deste tipo estima inconvenientes ou impertinentes tais questões, elas não deixam de continuar a preocupar o comum dos mortais. Pode-se sempre censurá-las, declará-las não pertinentes, bani-las da reflexão filosófica, desvalorizá-las, pretendendo que são sem sentido ou sem respostas claras e satisfatórias. Nem por isso elas deixam de colocar-se a todos e a cada um. Onde o homem ordinário irá encontrar, não respostas tranquilizadoras, mas a certeza de que tais questões não são vãs e, pelo menos, merecem ser assumidas, tanto que assumi-las como tais constitui a própria dignidade de nossa espécie (e, assim, sua diferença)? Se Nietzsche invocado sempre a este propósito pelos "pós-metafísicos" recusou com efeito uma metafísica dualista do tipo platônico, ele não cessou ao longo de toda a sua obra de levantar estas questões essenciais, "nós os que conhecem" (Wir die Erkennenden). Como o homem ordinário irá assumir o sentido de sua vida, se o filósofo se recusa a abordar estes problemas, ou se afasta formalmente deles, ou se encerra no negativismo desconstrutor, desertanto assim das interrogações dos homens? Neste ponto, a poesia que aceita às vezes enfrentar tais problemas poderia assegurar uma alternativa certa e suficiente? A fé às voltas com o fundamentalismo Esta observação me leva a considerar a precariedade do religioso em nossos dias ou a crise da fé. Se a razão e as racionaliades são afetadas por diversas formas de niilismo (de um lado as racionalidades fora de controle, de outro, a posição pós-metafísica), o mundo da fé, ou das religiões não parece estar em melhor forma. (Proponho, para os objetivos desta exposição, identificar « religião » e « fé », pressupondo que a religião, a cristã, em todo caso, implica uma atitude de fé, portanto, de confiança ou de entrega de si mesmo ao Divino). Sabemos bem : todas as religiões todas as religiões estão hoje carcomidas pelos fundamentalismos. Eles assumem formas diversas segundo o horizonte teológico próprio de cada monoteísmo (mas isto é verdade também do hinduísmo). Simplificando, no contexto desta exposição, diria que podem ser caracterizados como encerramentos em si mesmos, como crispações de suas certezas, como um apegar-se a suas identidades que se julgam comprometidas, ameaçadas, abaladas. Em certo sentido, estes fundamentalismos constituem refúgios acolhedores quando a razão é impotente ou se desatina ou se cala sobre o essencial. Eles propõem respostas ilusórias que se acredita encontrar quando a razão já não dispõe de recursos próprios ou ainda quando os sistemas de crenças se tornam rígidos, dogmáticos, desumanos. Mas oferecem abrigos afetivos calorosos quando a religião se tornou fria e burocrática. Eles alienam as pessoas sob o influxo de gurus acessíveis quando o aparelho eclesiástico se afasta ou emite interditos incompreensíveis. Sob este aspecto, a Igreja católica passa também por uma crise na fé bastante dramática : os fundamentalismos que provocam a deserção de numerosos fiéis, mas também os integrismos e os conservadorismos que a afetam, não são devidos unicamente e principalmente a causas externas. Encontram um alimento sempre renovado em uma centralização excessiva e burocrática, em uma hierarquia distanciada do povo de Deus ou que se substitui a ele, com um discurso moral abrupto, sem compaixão pelos fracos, mais do que realmente evangélico. E, sob este respeito, mesmo os papas que apelam, a justo título, ao diálogo entre fé e razão, poderiam se interrogar sobre o comportamento de seu magistério, que contribui pela sua surdez a reforçar as aflições do tempo e da Igreja. Neste caso, a crise da fé não vem de um prometeísmo da razão, mas, ao contrário, de sua fraqueza, fraqueza que leva a vida da fé a enredar-se em falsas certezas e que converte a palavra magisterial em crispações de um autismo inteiramene estéril. Pode-se, aliás, perguntar : que coerência há entre os apelos ao diálogo na Fides et Ratio e as certezas massissas formuladas em Veritatis Splendor (1993) ou em Evangelium Vitae (1995) em nome de uma Verdade invocada sem as precauções hermenêuticas indispensáveis a um discurso bem fundado ? Esta crise não deve ser atribuída aos ataques contra a religião de uma razão todopoderosa, mas a uma fraqueza interna à própria fé, fraqueza que da parte dos fiéis leva ao conservadorismo, ao integrismo, à contra-cultura, portanto, ao recuo para o bastião católico, ou, ao contrário, que leva muitos a desertar das igrejas. Da parte da heirarquia, esta crise provoca atitudes inquietas de crispação, uma tentativa de controle, aliás vão, dos pensamentos e das práticas (litúrgicas entre outras, mas também morais), mesmo se, por outro lado, o mesmo Magistério proclama seu compromisso com o diálogo ecumênico ou interreligioso, ao mesmo tempo que de fato o proibe ou o tem por suspeito no interior da Igreja ! Estas manifestações tensas e crispadas não podem ser consideradas sinais de vitalidade e de saúde. Quando certos assuntos são declarados tabus e inabordáveis, isto equivale a confessar sua própria impotência e seu medo diante da discussão. Não é dar testemunho de uma fé feliz e radiosa. É antes manifestar sua impotência e seu medo, refugiar-se em falsas certezas, tentar reforçar um baluarte ameaçado ou mesmo já em ruinas! Deixo de lado o islã que mereceria, entretanto, um estudo preciso : também ele vem sendo afetado pelo fundamentalismo que assume uma forma própria nos islamismos. Ele constitui um perigo para os próprios muçulmanos como testemunham as guerras incessantes entre sunitas e chiitas ou no interior mesmo dos paises muçulmanos (Algéria em 1991-2, Somália, Yémen, Paquistão, Síria, Mali). Este perigo concerne também o resto do mundo pelo fanatismo terrorista que ele entretém e pela fascinação que exerce em espíritos fracos, que encontram ou julgam encontrar nesta religião os recursos correspondentes à sua vontade de ameaçar ou destruir as liberdades. Eis mais uma tetanização da atitude religiosa, que deriva de uma relação jamais examinada realmente no interior das tradições islâmicas acerca de sua relação com a razão ou com as racionalidades científicas, acerca por exemplo da leitura do Alcorão. Eu termino sem verdadeiramente concluir esta primeira exposição. As doenças da razão que se podem reduzir a duas formas diversas e sutis de niilismo (dúvida e negação de si) não são estranhas às doenças da fé ou da religião. Poder-se-ia mesmo dizer que elas se condicionam mutuamente, as fraquezas da razão provocando em resposta seja os enrigecimentos fundamentalistas, seja a evasão para o Iluminismo (voltarei sobre isso na segunda exposição). Estas doenças não são novas na história, mas revestem em nossos dias formas originais e sob muitos aspectos inquietantes. Elas não se referem somente a estas « especialidades « que seriam as disciplinas particulares (filosofia, de um lado, e teologia, do outro). Elas levantam interrogações fundamentais sobre o sentido de nossa aventura comum, portanto, sobre o sentido da vida humana, individual e coletiva. Concernem, pois, nossa comum humanidade e nossa maneira de vivê-la. Paul Valadier sj