ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia
4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia
São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012
Entre o discurso televisivo e o senso comum: as pessoas em situação de rua no
Jornal Hoje 1
Suzana ROZENDO 2
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina
RESUMO
Este artigo analisa, primeiramente, a importância da televisão nos lares brasileiros e
toma como objeto de trabalho o Jornal Hoje, um dos telejornais da Rede Globo com
maiores índices de audiência. Com foco na abordagem sobre as pessoas em situação de
rua, examina alguns casos veiculados em 2011 e no início de 2012, mencionando a
utilização de termos equivocados, que reproduzem o senso comum. Além disso, o texto
critica a falta de contextualização, de grandes reportagens e de desdobramentos de casos
em que os desabrigados são vítimas de violência física ou moral.
PALAVRAS-CHAVE: Televisão; Processos midiáticos; Pessoas em situação de rua;
Jornal Hoje.
1. INTRODUÇÃO
Não é nenhuma novidade que a televisão é um meio de comunicação abrangente
e que, na casa de muitos brasileiros, o prosaico eletrodoméstico chega a exercer o papel
de integrante da família. Basta ligar o fio na tomada, apertar o botão de on e lá está ela,
para o bem ou para o mal, vendendo ideias, valores e conceitos. Exemplo disso é que
grande parte da população passa a se vestir de acordo com que a TV se propõe a
conceituar como "bonito", “chique” e “da moda”.
Desta forma, respeito, reverência, obrigação, amor, ódio e fidelidade são alguns
dos sentimentos que os cidadãos desenvolvem pela chuva diária de pixels.
Inocentemente, de um segundo a outro, o aparelho consegue transformar um herói em
vilão e um antagonista em protagonista, seja na ficção, seja na vida real. De grande tubo
ou de tela high definition, a competência que têm para influenciar no comportamento
Trabalho apresentado no 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia – ALCAR RS
M estranda da linha Processos e Produtos Jornalísticos da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisa sobre a
população de rua desde 2008: [email protected].
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humano, independentemente do tamanho, é imperceptível aos olhos. Sobre isso, Becker
(2006) assinala alguns pontos:
A TV ocupa um lugar de fundamental importância na representação
das identidades nacionais, especialmente na virada do milênio, e
participa da história da integração nacional neste imenso Estado
federativo que é o Brasil, assumindo um papel de conservação das
relações de poder e, consequentemente, um controle social, no
agendamento político e cultural do país, mas também um papel de
vanguarda, enquanto agente unificador da sociedade brasileira
ofertando referenciações nacionais da realidade cotidiana, desvelando
conflitos, e viabilizando mudanças, ainda que modelando essas
possibilidades, através de sua mediação (BECKER, 2006, p. 65-6).
Respondendo à questão “para quê serve a TV?”, França (2006) aponta vários
caminhos. Uma resposta marxista ortodoxa leva à função ideológica, de estruturação
das classes sociais, “mantendo a alienação e assegurando o processo de dominação”
(p.25), no entanto, a autora ressalta a função polivalente do veículo de informação: a
televisão serve como uma ferramenta de socialização, de trocas, de partilhamento de
discursos, “torna o mundo (ou um certo mundo) acessível e conhecido por todos e
fornece os assuntos que povoam as conversas cotidianas” (p.25).
Na mesma linha de pensamento, Porcello (2009) complementa: “A TV
influencia, e como, todo o processo político, econômico e cultural da sociedade, seja ela
urbana ou rural” (p. 47). Coutinho (2009) lembra ainda que, mais que o rádio, o jornal e
a Internet, é por meio da televisão que os brasileiros se mantêm informados:
Principal meio de informação dos brasileiros, incluindo os jovens, os
telejornais cumprem claramente uma função pública no Brasil, país
marcado pela desigualdade no acesso aos bens de consumo e também
a direitos essenciais como educação, saúde e segurança (COUTINHO,
2009, p. 65).
Walter Lippman (1922), em “The world outside and the pictures in our heads”
afirma que o único sentimento que alguém pode ter de um evento em que ele não esteve
presente, é o sentimento que circula pela sua imagem mental do acontecimento 3 . Da
mesma forma, o telespectador busca na TV sentir as mesmas emoções que ele gostaria
de poder viver no real, testemunhando o fato e, impossibilitado de estar onde os
3
Texto original: The only feeling that anyone can have about na event He d oes not experience is the
feeling aroused by his mental image of the event.
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repórteres podem estar, cria juízos de valor com base no que vê na tela. No mesmo tom,
é interessante notar o que afirma Hagen (2008) sobre a relação das pessoas com a TV:
“Com tantos olhos voltados para a tela da TV, cada vez mais ela define não só o que
deve ser visto como informação, mas ela própria adquire o status de informação, seja
em outros suportes de mídia, seja autorreferendando” (HAGEN, 2008, p.29).
Guilherme Rezende (2000) explica o porquê de a televisão ocupar um lugar
privilegiado nas residências brasileiras e assumir a condição de única via de acesso às
notícias e ao entretenimento para grande parte da população:
Vários fatores contribuíram para que a TV se tornasse mais importante
no Brasil do que em outros países: a má distribuição da renda, a
concentração da propriedade das emissoras, o baixo nível educacional,
o regime totalitário nas décadas de 1960 e 1970, a imposição de uma
homogeneidade cultural e até mesmo a alta qualidade da nossa
teledramaturgia (REZENDE, 2000, p. 23).
Além disso, os brasileiros são conhecidos mundialmente como um povo que não
tem o hábito de leitura e, para assistir à televisão, não é necessário fazer este esforço.
Segundo Barbeiro e Lima (2002, p.17), “as imagens pesam mais do que as palavras, daí
a conquista de público da televisão, o veículo mágico do século XX”. Outra vantagem é
que, no ritmo frenético do dia a dia, enquanto assistimos à TV, nossas mãos estão
desocupadas e podemos, ao mesmo tempo, fazer as refeições, falar ao telefone, checar a
conta de e- mail ou executar tarefas domésticas.
Diante do importante papel exercido pela televisão brasileira na vida das
pessoas, Jacqueline Lima Dourado (2011) adota o conceito de “cidadania televisiva”
para classificar o conjunto de temas presentes na programação das emissoras - moradia,
trânsito, sexualidade, drogadição, saúde pública- voltados à colaboração dos meios
sociais educativos e morais. Sendo assim, a cidadania televisiva vai ao encontro do
conceito de “alfabetização televisiva”, definido por Guillermo Orozco (2001, p.28). Em
suas palavras:
La alfabetización televisiva de las audiencias adquiere su
importancia en relación con esa dimensión de la televidencia.
Alfabetización que, aunque parcialmente desarrolla a través de
la repetición de sus interacciones con el lenguaje televisivo
(aprendizaje autodidacta y necesario para su mínima
comprensión), no se ha consolidado, sobre todo en lo que tiene
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de competencia expresiva, no meramente receptiva frente a este
medio.
Em tempo: um costume bastante comum no Brasil é, depois do almoço, deitar-se
no sofá e ver o que se passa na televisão, até pegar no sono, fazer a sesta ou descansar
por um período de tempo, antes de retornar ao trabalho. Enquanto o sono não vem, as
pessoas desfrutam da cidadania televisiva, sem perceber que, ao mesmo tempo, estão
sendo, de certa forma, alfabetizadas.
2. O JORNAL HOJE E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
O Jornal Hoje é uma das opções que se têm nos canais abertos da televisão
brasileira para se assistir logo após o almoço. Exibido às 13h15, com trinta minutos de
duração, diferencia-se do Jornal Nacional por ter um formato mais leve, com menor
número de hard news 4 e matérias “frias” 5 . Artesanato, culinária, moda, curiosidades,
estética, dicas domésticas e de roteiros turísticos são assuntos de praxe, mas a
programação não deixa de exibir notícias factuais do que acontece no Brasil e no
mundo.
Gravado em um moderno cenário, que mostra a própria redação para transmitir a
impressão de proximidade com o telespectador, é apresentado, atualmente, por Evaristo
Costa e Sandra Annenberg e possui altos índices de audiência, desde o seu surgimento,
em 21 de abril de 1971 6 . Tamanha é a popularidade desse jornal que basta escutarmos
sua vinheta inconfundível para nos situarmos no tempo: estamos entre uma e duas da
tarde.
Em geral, as notícias são curtas e divididas em blocos. Como se seguisse o ritmo
de uma respiração, depois de um fato “pesado”, aparece um “leve”, ou seja, as hard são
alternadas com as soft news, e o telejornal, geralmente, termina com uma notícia
agradável antes de os apresentadores dizerem: “uma boa tarde para você”.
4
Jorge Pedro de Sousa (2002) div ide as notícias em hard news (notícias “duras” com vocações factuais) e
soft news (notícias “brandas”, referentes a ocorrências sem grande importância).
5
No jargão jornalístico, matérias frias são aquelas relevantes, porém não factuais.
6
Disponível em:<
http://www.teleh istoria.co m.br/canais/jornalisticos/historia.asp?idConfiguracao=3595 >. Acesso em 22
dez. 2011.
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A narração é acompanhada por gestos compassados, as palavras-chave são
sobressaltadas, as mãos são utilizadas para pontuar pontos e vírgulas e os âncoras, logo
depois de uma notícia, não evitam expressões faciais que denotam algum tipo de
sentimento, sendo frequente a exposição de pontos de vistas e até mesmo comentários
da vida pessoal.
Esse tipo de comportamento tornou-se mais evidente a partir de setembro de
2011, quando a Rede Globo, visando a deixar os jornais mais populares, liberou os
apresentadores para comentarem livremente o noticiário, sempre que acharem
conveniente 7 . No entanto, a mudança divide opiniões: alguns acreditam que o telejornal
ficou menos “engessado”, outros criticam o fato de que os comentários são forçados,
além de irem de encontro à imparcialidade jornalística, tão discutida nos códigos
deontológicos da profissão.
Quando o assunto em pauta no Jornal Hoje são as pessoas em situação de rua,
primeiramente, percebe-se a utilização de um termo predominante que reproduz o senso
comum: “moradores de rua” 8 . Amiúde se utilizam ainda vocábulos como “pedintes” ou
“mendigos”. Cada variação do léxico carrega consigo um significado diferente e
algumas palavras, mesmo que sem intencionalidade, são empregadas de forma
inadequada, corroborando para a estigmatização de quem faz da rua seu local de
moradia e trabalho. A heterogeneidade que permeia este público não é levada em conta
e todos são tratados como iguais 9 .
Mattos (2006) dedicou parte de seus estudos em Psicologia Social sobre estes
personagens para criar um conceito mais apropriado. Assim, o autor defende o uso,
tanto pela mídia, como pelas comunidades científicas, de “pessoas em situação de rua” e
faz sua explicação estratificando as palavras, a começar por “pessoas”, no plural, de
maneira a destacar não só aquilo que as iguala, mas também o que as diferencia. O
segundo termo analisado é o “situação”, que evidencia “o caráter transitório e
passageiro da situação de rua como condição social” (p.41) em detrimento de
substantivos como “morador de rua”, que nos passa a impressão de algo estático,
7
Disponível em:<
http://www1.fo lha.uol.co m.br/ ilustrada/935936-g lobo-deixa-jornais-mais-populares-e-libera-ancoraspara-comentar.shtml>. Acesso em 04 abr. 2012.
8
Em países de língua espanhola, a mídia costuma adotar a express ão “personas en situación de calle” e,
em países de língua francesa, utiliza “sans domicile fixe” ou apenas SDF.
9
Os motivos que levam as pessoas a viverem nas ruas são variados: perda de emprego, ro mpimento de
laços familiares, doenças psíquicas, uso de entorpecentes, catástrofes ambientais, entre outros.
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arraigado. Por fim, Mattos (2006, p.41) compreende o termo “rua” “como um lugar em
um todo, numa relação dialética com a casa”, que se configura com local onde não há
estabilidade, não há certa disposição de objetos, nem segurança.
Por isso, a forma com que estes indivíduos são apresentados pela mídia, muitas
vezes, nos faz criar representações mentais de um universo que não temos contato
diretamente, o que nos leva a pensar que os “moradores de rua” são, estão e ficam
perambulando pelo espaço público por bel prazer. Vieira, Bezerra e Rosa (1992)
apontam as diferenças dessas três situações:
Seria possível identificar situações diferentes em relação à
permanência na rua: ficar na rua – circunstancialmente; estar na rua –
recentemente; e ser da rua – permanentemente [...]. O que diferenciam
essas situações é o grau maior ou menor de inserção no mundo da rua
(VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 1992, p.94).
Portanto, partimos do pressuposto de que o telejornal, quando utiliza termos
iguais para tratar de pessoas diferentes- que têm em comum a utilização da rua para
sobrevivência- reforça o estereótipo do “velho do saco”, personagem lendário
apresentado pelas mães para causar medo a crianças que querem brincar sozinhas nas
ruas:
O estereótipo do nômade urbano é clássico: roupa esfarrapada, pele
encardida com dermatoses, às vezes abrindo em feridas, corpo
marcado por cicatrizes; unhas das mãos e dos pés enegrecidas,
compridas e, por vezes, deformadas; dentes em parte caídos, em parte
cariados; cabelos ensebados, olhos congestionados, etc. São signos
genéricos que contam a trajetória social e tornam evidente que o
indivíduo faz parte da população pobre que habita as ruas (MAGNI,
1994, p. 34 apud MATTOS, 2006).
3. ALGUNS (DES) CASOS
Em 2011, dois casos noticiados no Jornal Hoje, ambos vinculados a formas
brutas de violência, somados ocuparam menos de 30 segundos da programação. O
primeiro deles, de 13 segundos, foi uma nota coberta 10 sobre uma mulher espancada por
10
No jargão jornalístico significa nota cuja cabeça é lida pelo apresentador e o texto seguinte é coberto
com imagens.
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seguranças de um supermercado em Belém, no Pará 11 . A cena foi filmada por um
cinegrafista amador e de acordo com testemunhas, a vítima estava pedindo comida em
uma feira quando começaram as agressões. O segundo caso, de 16 segundos, foi outra
nota coberta sobre a morte de um homem espancado por três jovens em São Leopoldo,
no Rio Grande do Sul 12 . A ação também foi testemunhada por moradores e os rapazes
foram presos em flagrante.
Depois de assistir às cenas e de ouvir as narrações, são várias as perguntas que
surgem, a começar pelos nomes das personagens: quem eram e ssas pessoas? Elas
moravam, ficavam ou estavam nas ruas? Quais foram os desdobramentos das histórias?
Como não houve novas reportagens sobre os assuntos, as perguntas ficarão sem
respostas 13 . Além disso, o tratamento rasteiro dos casos pode suscitar, na maioria dos
telespectadores, um sentimento de piedade, pesar ou até mesmo, contentamento.
Mesmo quando o telejornal dispensa um tempo maior para noticiar fatos sobre a
população de rua, muitas vezes, não se preocupa, antes de a divulgação, em apurar o
nome da vítima, como aconteceu com Renato Carlos de Sousa, de 36 anos, que no dia 2
de fevereiro de 2011, em Lindóia, no interior de São Paulo, foi agredido e humilhado
por três jovens que passavam pelo local, um deles menor de idade 14 . Durante toda a
matéria do Jornal Hoje, o catador de papel foi referido apenas por “mendigo” ou
“morador de rua”. Nesta ocasião, os agressores o amarraram e torturaram e só pararam
com a “brincadeira” quando agentes de trânsito se aproximaram 15 .
Outro ponto a se destacar é a forma com que os fatos foram noticiados, com
imagens das vítimas sendo espancadas, fazendo com q ue as pessoas assistissem atônitas
o que estava sendo exibido. Sobre isso, Veiga (2000, p.43) afirma: “o importante a
11
Disponível em:< http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/ 2011/09/ moradora-de-rua-e-espancada-porsegurancas-em-mercado-de-belem.ht ml>. Acesso em 08 set. 2011.
12
Disponível em:< http://g1.globo.com/ jornal-hoje/noticia/2011/11/carro -de-deputado-e-cercado-porbandidos-no-rio-de-janeiro.ht ml>. Acesso em 22 dez. 2011.
13
Tal p rática fere o sétimo art igo do Código de ética dos jornalistas brasileiros que diz: O co mpro misso
fundamental do jo rnalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos
acontecimentos e sua correta divulgação. Disponível no site da Associação Brasileira de Imp rensa:
<http://www.abi.org.br/paginaind ividual.asp?id=450>. Acesso em 23 jan. 2011.
14
Disponível em:<http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/ 2011/02/cameras -de-transito-flagram-jovensagredindo-morador-de-rua-em-lindoia.ht ml>. Acesso em 07 fev. 2011.
15
Só fo i possível descobrir o no me do personagem através do site G1,que divulgou as informações
apuradas pela emissora de televisão local. Disponível em: <http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/2011/02/ morador-de-rua-diz-que-estava-alcoolizado-ao-ser-agredido-em-sp.html >. Acesso
em 7 de fev. de 2011.
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observar não é a violência do conteúdo da informação, mas a informação que se perde
pela redução”.
Sobre isso, Ciro Marcondes Filho (2009) afirma que não é qualquer imagem que
é selecionada para um telejornal:
O telejornal tem de provocar emoções, sensibilizar os
telespectadores: as cenas filmadas devem transmitir a dor, a
desolação, a tristeza; mas também imagens de trabalho,
solidariedade, luta, nada é proibido. Quer dizer, proibidas são as
imagens monótonas, “sem vida”, paradas, assentadas. Essas não
causam curiosidade, atração, interesse. Por isso, o noticiário é
constituído de imagens “interessantes”, imagens que atraem,
prendem, seguram o telespectador seja pela dor, seja pelo
entusiasmo, seja pela preocupação que provocam, seja pela
esperança. Não é qualquer imagem que é passível de um
telejornal (MARCONDES FILHO, 2009, p.84).
O grande problema de se apresentar apenas notas cobertas sobre a população de
rua nos telejornais é a falta de força para suscitar um debate ou alguma mudança de
atitude, seja pela sociedade, seja pelo poder público, em relação ao problema em
questão.
Sobre a postura adotada pela mídia brasileira acerca das pessoas em situação de
rua, Alberto Dines (1986) tem uma explicação. O autor alerta para o fato de que o
processo jornalístico funciona em todas as direções. Segundo ele, cada emissor é
simultaneamente um receptor e é o leitor que escolhe o estilo, a orientação e a linha dos
respectivos jornais. Sendo assim, de acordo com o pensamento do jornalista, se as
pessoas julgam a população de rua, sem ao menos entendê- la, a imprensa também o faz
sem investigar a fundo e sem contextualizar os casos que noticiam sobre o tema.
Dizendo isso, vale um lembrete:
O jornalista e o leitor, assim, fazem parte de um mesmo bolo
social; são em última análise, a mesma coisa. E é por esta razão
que não se pode dizer que a imprensa de determinado país ou
região é ruim ou boa. Ela é o reflexo e segmento da própria
sociedade a que serve. Jornalista e leitor são os que melhor se
entendem e sintonizam, pois se os primeiros são treinados para
sentir as necessidades do último, este foi domesticado para
receber aquilo que certamente lhe agradará. Jornalista é o leitor
em função da emissão (DINES, 1986, p. 54).
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Ratificando a afirmação de Dines (1986), França (2006, p.33) ressalta que a
televisão fala dentro dos padrões interativos de uma determinada cultura e dentro do
universo de referências partilhado por uma sociedade, pois é “sensível ao seu ambiente,
e colada ao que chamamos de senso comum”.
Com as colocações de Dines (1986) e França (2006), caímos em um paradoxo:
se a mídia é o reflexo da sociedade e a sociedade age levando em conta o que é
veiculado pela mídia, cabe-nos pensar por parte de quem deveria haver a iniciativa de
mudança sobre o tópico “população de rua”.
Segundo Giorgetti (2007), o papel desempenhado pela imprensa é de grande
importância para a inclusão do tema na agenda pública e para impedir possíveis abusos
promovidos pelos outros três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. A autora
afirma que os meios de comunicação brasileiros deveriam falar com mais frequência
sobre a população em situação de rua para que o fenômeno, que vem se agravando ano
após ano, não caia no esquecimento.
José Hamilton Ribeiro, jornalista de renome e conhecido por seu trabalho no
Globo Rural, na décima semana de Jornalismo 16 da Universidade Federal de Santa
Catarina, em Florianópolis, disse que para se fazer uma grande reportagem existe uma
fórmula simples: GR= (BC+BF). (T+T´)n . Traduzindo, a grande reportagem é resultado
de um bom começo (BC) mais um bom final (BF) multiplicados pela soma do trabalho
(T) e do talento (T') elevados à potência necessária (n).
No entanto, com base nos exemplos referidos anteriormente, percebemos que as
pessoas em situação de rua não são alvos de grandes reportagens e quando são
noticiadas pela grande mídia, tendem a estar relacionadas à violência, quando sofrem
abuso autoridades policiais, ou quando são assistidas pelo poder público.
Em 2012, porém, após o estudante Vitor Cunha, de 21 anos, ter sido espancado
por jovens de classe média, na zona norte do Rio de Janeiro, por defender um homem
que dormia na rua 17 , foi possível perceber um avanço no tratamento jornalístico acerca
do tema diante da repercussão do caso, sobretudo nas redes sociais 18 .
16
O evento foi realizado em 12 de setembro de 2011.
Disponível em:< http://g1.globo.com/ jornal-ho je/noticia/2012/02/estudante-e-espancado-ao-tentardefender-mo rador-de-rua-agred ido.html>. Acesso em 06 abr. 2012.
18
Um fato inusitado, que também aconteceu no início do ano, não mereceu tratamento jornalístico no
Jornal Hoje: O Tribunal de Justiça determinou prisão domiciliar a u m ho mem co m problemas mentais
17
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A agressão a Vitor desencadeou a apuração de outras pautas devido à frequência
de outros fatos envolvendo pessoas em situação de rua em fevereiro e março deste ano.
Durante vários dias, foi possível acompanhar o caso de dois homens que foram
queimados por quatro rapazes enquanto dormiam debaixo de uma árvore em Santa
Maria, região do Distrito Federal. Um deles morreu e o outro está internado com
queimaduras por quase todo o corpo. O crime foi encomendado por um comerciante e
quatro acusados foram presos 19 .
Embora a cobertura dos casos de 2012 tenha sido maior, verifica-se a utilização
dos mesmos termos: morador de rua, mendigos, pedintes. Há que se saber ainda que
existem outros recortes que podem ser dados a este público. O Jornal da Record,
concorrente da Rede Globo, por exemplo, exibiu em outubro de 2009 uma série de
reportagens especiais sobre a vida nas ruas de São Paulo. Em um dos episódios, a
apresentadora Ana Paula Padrão entrevistou um homem que conseguiu montar uma
casa, dentro de sua simplicidade, requintada e moderna, apenas com objetos recolhidos
em lixeiras 20 . Na mesma emissora, em 2011, um produtor musical saiu pelas ruas da
capital paulista recrutando pessoas na tentativa de descobrir novos talentos e montar um
“coral de rua” para cantar músicas de Natal nos intervalos da emissora no final do ano 21 .
Destaca-se a importância de diferentes abordagens como estas, pois a televisão,
como já foi dito, tem um papel fulcral na vida da população brasileira. Ela atua como
um mundo um real, cujas imagens as pessoas preferem ver pelo tubo livre de agentes
patogênicos a observar pela janela de suas casas ou para-brisa de seus carros. Como
sublinha Ciro Marcondes Filho (2009), a TV marca a passagem do “mundo dos
invisíveis”, das pessoas comuns, normais, insignificantes, ao “mundo dos visíveis”,
daqueles que realmente existem:
que vivia nas ruas de São Paulo. Disponível em:< http://noticias.uol.com.b r/cotidiano/ultimas noticias/2012/02/10/ morador-de-rua-e-condenado-a-prisao-domiciliar-e-pode-ser-preso-por-nao-cumprira-decisao.htm>. Acesso em 06 abr. 2012.
19
Disponível em: < http://g1.globo.co m/jornal-hoje/videos/t/edicoes/v/quatro-pessoas-sao-presassuspeitas-de-atear-fogo-em-moradores-de-rua-no-df/1843972/>. Acesso em 06 abr. 2012.
20
Disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=cLlsCDOW 6xo&feature=related >. Acesso em 22
dez. 2011.
21
Disponível em:<http://videos.r7.co m/voz-de-sem-teto-comandam-o-coral-de-rua-nesta-quinta-feira-22/idmed ia/4ef21cc892bb9adf771237ce.ht ml>. Acesso em 22 dez. 2011.
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Um mundo “não selvagem”, devidamente domesticado, sob
controle, ordeiro. O outro, o mundo que se tem de ver
forçosamente, o mundo dos mendigos de rua, da violência do
trânsito, da sujeira, das cidades, do abandono geral, da
decadência de toda uma civilização, é um mundo “não
registrado”, visto, mas não considerado, “não existente”
(MARCONDES FILHO, 2009, p.89).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho analisamos alguns casos sobre a população de rua veiculados no
Jornal Hoje. Inicialmente, foi possível observar a desumanização comunicativa 22 , pois
os apresentadores e repórteres nem sequer divulgaram os nomes das personagens
principais das histórias exibidas em 2011, o que demonstra uma falta de apuração
jornalística.
As matérias, em geral, não nos levam a refletir sobre como é possível minimizar
esta problemática crescente de pessoas que fazem do espaço público seus locais de
moradia e trabalho e quais foram os motivos que as levaram a isso. Não foi possível
identificar se as vítimas eram, estavam ou apenas ficavam nas ruas.
Sendo assim, quem só tem contato com estes atores sociais pela televisão, não
consegue perceber a heterogeneidade deste público e passa a reforçar os estigmas
criados desde a infância, com a lenda do “velho do saco”, que pega crianças que
desobedecem aos pais. A falta de contextualização e de acompanhamento das matérias
também nos incita a pensar nestas pessoas sempre como vítimas, incapazes e violentas.
Muitas vezes são, muitas vezes não. Cada caso é um caso e merece um tratamento
midiático especial.
Após os quinze segundos observados das duas notas cobertas de 2011 do Jornal
Hoje, nas quais observamos a violência despendida em cidadãos de rua, algumas
perguntas surgem: será que se fosse um jovem de classe média alta que aparecesse
sendo espancado em frente a um mercado, o telejornal teria dispensado apenas 13
segundos? E no dia seguinte o caso seria ignorado? A resposta mais provável seria não.
22
Sobre a humanização do relato jornalístico, ver: IJUIM, Jorge. Humanização e desumanização no
jornalismo: algu mas saídas. Trabalho apresentado ao DT1 – GP Teo rias do Jornalismo no XI Encontro
dos Grupos de Pesquisa em Co municação, evento do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da
Co municação,
Recife,
2011.
Disponível
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http://www.interco m.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-2440-1.pdf>. Acesso em 23 set.2011.
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4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia
São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012
O que se percebe é que faltam grandes reportagens sobre a população de rua no
telejornal, com linguagem televisiva adequada e estrutura com começo, meio e fim. Os
casos noticiados em 2011, assim como os de 2012, deveriam suscitar debates e
investigações.
Levando em consideração que o jornalismo executa um importante papel social
para mobilizar a população e para questionar problemas, enquanto os telejornais
brasileiros não mudarem de atitude em relação a este tipo de cobertura midiática, as
pessoas vão continuar passando por perto de desabrigados, fingindo não vê- los. Para
que haja uma mudança de comportamento da população, é necessária antes uma
mudança na alfabetização televisiva sobre este tema, uma pausa na reprodução pura e
simples do senso comum.
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Entre o discurso televisivo e o senso comum