ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 Entre o discurso televisivo e o senso comum: as pessoas em situação de rua no Jornal Hoje 1 Suzana ROZENDO 2 Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina RESUMO Este artigo analisa, primeiramente, a importância da televisão nos lares brasileiros e toma como objeto de trabalho o Jornal Hoje, um dos telejornais da Rede Globo com maiores índices de audiência. Com foco na abordagem sobre as pessoas em situação de rua, examina alguns casos veiculados em 2011 e no início de 2012, mencionando a utilização de termos equivocados, que reproduzem o senso comum. Além disso, o texto critica a falta de contextualização, de grandes reportagens e de desdobramentos de casos em que os desabrigados são vítimas de violência física ou moral. PALAVRAS-CHAVE: Televisão; Processos midiáticos; Pessoas em situação de rua; Jornal Hoje. 1. INTRODUÇÃO Não é nenhuma novidade que a televisão é um meio de comunicação abrangente e que, na casa de muitos brasileiros, o prosaico eletrodoméstico chega a exercer o papel de integrante da família. Basta ligar o fio na tomada, apertar o botão de on e lá está ela, para o bem ou para o mal, vendendo ideias, valores e conceitos. Exemplo disso é que grande parte da população passa a se vestir de acordo com que a TV se propõe a conceituar como "bonito", “chique” e “da moda”. Desta forma, respeito, reverência, obrigação, amor, ódio e fidelidade são alguns dos sentimentos que os cidadãos desenvolvem pela chuva diária de pixels. Inocentemente, de um segundo a outro, o aparelho consegue transformar um herói em vilão e um antagonista em protagonista, seja na ficção, seja na vida real. De grande tubo ou de tela high definition, a competência que têm para influenciar no comportamento Trabalho apresentado no 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia – ALCAR RS M estranda da linha Processos e Produtos Jornalísticos da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisa sobre a população de rua desde 2008: [email protected]. 1 2 1 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 humano, independentemente do tamanho, é imperceptível aos olhos. Sobre isso, Becker (2006) assinala alguns pontos: A TV ocupa um lugar de fundamental importância na representação das identidades nacionais, especialmente na virada do milênio, e participa da história da integração nacional neste imenso Estado federativo que é o Brasil, assumindo um papel de conservação das relações de poder e, consequentemente, um controle social, no agendamento político e cultural do país, mas também um papel de vanguarda, enquanto agente unificador da sociedade brasileira ofertando referenciações nacionais da realidade cotidiana, desvelando conflitos, e viabilizando mudanças, ainda que modelando essas possibilidades, através de sua mediação (BECKER, 2006, p. 65-6). Respondendo à questão “para quê serve a TV?”, França (2006) aponta vários caminhos. Uma resposta marxista ortodoxa leva à função ideológica, de estruturação das classes sociais, “mantendo a alienação e assegurando o processo de dominação” (p.25), no entanto, a autora ressalta a função polivalente do veículo de informação: a televisão serve como uma ferramenta de socialização, de trocas, de partilhamento de discursos, “torna o mundo (ou um certo mundo) acessível e conhecido por todos e fornece os assuntos que povoam as conversas cotidianas” (p.25). Na mesma linha de pensamento, Porcello (2009) complementa: “A TV influencia, e como, todo o processo político, econômico e cultural da sociedade, seja ela urbana ou rural” (p. 47). Coutinho (2009) lembra ainda que, mais que o rádio, o jornal e a Internet, é por meio da televisão que os brasileiros se mantêm informados: Principal meio de informação dos brasileiros, incluindo os jovens, os telejornais cumprem claramente uma função pública no Brasil, país marcado pela desigualdade no acesso aos bens de consumo e também a direitos essenciais como educação, saúde e segurança (COUTINHO, 2009, p. 65). Walter Lippman (1922), em “The world outside and the pictures in our heads” afirma que o único sentimento que alguém pode ter de um evento em que ele não esteve presente, é o sentimento que circula pela sua imagem mental do acontecimento 3 . Da mesma forma, o telespectador busca na TV sentir as mesmas emoções que ele gostaria de poder viver no real, testemunhando o fato e, impossibilitado de estar onde os 3 Texto original: The only feeling that anyone can have about na event He d oes not experience is the feeling aroused by his mental image of the event. 2 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 repórteres podem estar, cria juízos de valor com base no que vê na tela. No mesmo tom, é interessante notar o que afirma Hagen (2008) sobre a relação das pessoas com a TV: “Com tantos olhos voltados para a tela da TV, cada vez mais ela define não só o que deve ser visto como informação, mas ela própria adquire o status de informação, seja em outros suportes de mídia, seja autorreferendando” (HAGEN, 2008, p.29). Guilherme Rezende (2000) explica o porquê de a televisão ocupar um lugar privilegiado nas residências brasileiras e assumir a condição de única via de acesso às notícias e ao entretenimento para grande parte da população: Vários fatores contribuíram para que a TV se tornasse mais importante no Brasil do que em outros países: a má distribuição da renda, a concentração da propriedade das emissoras, o baixo nível educacional, o regime totalitário nas décadas de 1960 e 1970, a imposição de uma homogeneidade cultural e até mesmo a alta qualidade da nossa teledramaturgia (REZENDE, 2000, p. 23). Além disso, os brasileiros são conhecidos mundialmente como um povo que não tem o hábito de leitura e, para assistir à televisão, não é necessário fazer este esforço. Segundo Barbeiro e Lima (2002, p.17), “as imagens pesam mais do que as palavras, daí a conquista de público da televisão, o veículo mágico do século XX”. Outra vantagem é que, no ritmo frenético do dia a dia, enquanto assistimos à TV, nossas mãos estão desocupadas e podemos, ao mesmo tempo, fazer as refeições, falar ao telefone, checar a conta de e- mail ou executar tarefas domésticas. Diante do importante papel exercido pela televisão brasileira na vida das pessoas, Jacqueline Lima Dourado (2011) adota o conceito de “cidadania televisiva” para classificar o conjunto de temas presentes na programação das emissoras - moradia, trânsito, sexualidade, drogadição, saúde pública- voltados à colaboração dos meios sociais educativos e morais. Sendo assim, a cidadania televisiva vai ao encontro do conceito de “alfabetização televisiva”, definido por Guillermo Orozco (2001, p.28). Em suas palavras: La alfabetización televisiva de las audiencias adquiere su importancia en relación con esa dimensión de la televidencia. Alfabetización que, aunque parcialmente desarrolla a través de la repetición de sus interacciones con el lenguaje televisivo (aprendizaje autodidacta y necesario para su mínima comprensión), no se ha consolidado, sobre todo en lo que tiene 3 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 de competencia expresiva, no meramente receptiva frente a este medio. Em tempo: um costume bastante comum no Brasil é, depois do almoço, deitar-se no sofá e ver o que se passa na televisão, até pegar no sono, fazer a sesta ou descansar por um período de tempo, antes de retornar ao trabalho. Enquanto o sono não vem, as pessoas desfrutam da cidadania televisiva, sem perceber que, ao mesmo tempo, estão sendo, de certa forma, alfabetizadas. 2. O JORNAL HOJE E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA O Jornal Hoje é uma das opções que se têm nos canais abertos da televisão brasileira para se assistir logo após o almoço. Exibido às 13h15, com trinta minutos de duração, diferencia-se do Jornal Nacional por ter um formato mais leve, com menor número de hard news 4 e matérias “frias” 5 . Artesanato, culinária, moda, curiosidades, estética, dicas domésticas e de roteiros turísticos são assuntos de praxe, mas a programação não deixa de exibir notícias factuais do que acontece no Brasil e no mundo. Gravado em um moderno cenário, que mostra a própria redação para transmitir a impressão de proximidade com o telespectador, é apresentado, atualmente, por Evaristo Costa e Sandra Annenberg e possui altos índices de audiência, desde o seu surgimento, em 21 de abril de 1971 6 . Tamanha é a popularidade desse jornal que basta escutarmos sua vinheta inconfundível para nos situarmos no tempo: estamos entre uma e duas da tarde. Em geral, as notícias são curtas e divididas em blocos. Como se seguisse o ritmo de uma respiração, depois de um fato “pesado”, aparece um “leve”, ou seja, as hard são alternadas com as soft news, e o telejornal, geralmente, termina com uma notícia agradável antes de os apresentadores dizerem: “uma boa tarde para você”. 4 Jorge Pedro de Sousa (2002) div ide as notícias em hard news (notícias “duras” com vocações factuais) e soft news (notícias “brandas”, referentes a ocorrências sem grande importância). 5 No jargão jornalístico, matérias frias são aquelas relevantes, porém não factuais. 6 Disponível em:< http://www.teleh istoria.co m.br/canais/jornalisticos/historia.asp?idConfiguracao=3595 >. Acesso em 22 dez. 2011. 4 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 A narração é acompanhada por gestos compassados, as palavras-chave são sobressaltadas, as mãos são utilizadas para pontuar pontos e vírgulas e os âncoras, logo depois de uma notícia, não evitam expressões faciais que denotam algum tipo de sentimento, sendo frequente a exposição de pontos de vistas e até mesmo comentários da vida pessoal. Esse tipo de comportamento tornou-se mais evidente a partir de setembro de 2011, quando a Rede Globo, visando a deixar os jornais mais populares, liberou os apresentadores para comentarem livremente o noticiário, sempre que acharem conveniente 7 . No entanto, a mudança divide opiniões: alguns acreditam que o telejornal ficou menos “engessado”, outros criticam o fato de que os comentários são forçados, além de irem de encontro à imparcialidade jornalística, tão discutida nos códigos deontológicos da profissão. Quando o assunto em pauta no Jornal Hoje são as pessoas em situação de rua, primeiramente, percebe-se a utilização de um termo predominante que reproduz o senso comum: “moradores de rua” 8 . Amiúde se utilizam ainda vocábulos como “pedintes” ou “mendigos”. Cada variação do léxico carrega consigo um significado diferente e algumas palavras, mesmo que sem intencionalidade, são empregadas de forma inadequada, corroborando para a estigmatização de quem faz da rua seu local de moradia e trabalho. A heterogeneidade que permeia este público não é levada em conta e todos são tratados como iguais 9 . Mattos (2006) dedicou parte de seus estudos em Psicologia Social sobre estes personagens para criar um conceito mais apropriado. Assim, o autor defende o uso, tanto pela mídia, como pelas comunidades científicas, de “pessoas em situação de rua” e faz sua explicação estratificando as palavras, a começar por “pessoas”, no plural, de maneira a destacar não só aquilo que as iguala, mas também o que as diferencia. O segundo termo analisado é o “situação”, que evidencia “o caráter transitório e passageiro da situação de rua como condição social” (p.41) em detrimento de substantivos como “morador de rua”, que nos passa a impressão de algo estático, 7 Disponível em:< http://www1.fo lha.uol.co m.br/ ilustrada/935936-g lobo-deixa-jornais-mais-populares-e-libera-ancoraspara-comentar.shtml>. Acesso em 04 abr. 2012. 8 Em países de língua espanhola, a mídia costuma adotar a express ão “personas en situación de calle” e, em países de língua francesa, utiliza “sans domicile fixe” ou apenas SDF. 9 Os motivos que levam as pessoas a viverem nas ruas são variados: perda de emprego, ro mpimento de laços familiares, doenças psíquicas, uso de entorpecentes, catástrofes ambientais, entre outros. 5 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 arraigado. Por fim, Mattos (2006, p.41) compreende o termo “rua” “como um lugar em um todo, numa relação dialética com a casa”, que se configura com local onde não há estabilidade, não há certa disposição de objetos, nem segurança. Por isso, a forma com que estes indivíduos são apresentados pela mídia, muitas vezes, nos faz criar representações mentais de um universo que não temos contato diretamente, o que nos leva a pensar que os “moradores de rua” são, estão e ficam perambulando pelo espaço público por bel prazer. Vieira, Bezerra e Rosa (1992) apontam as diferenças dessas três situações: Seria possível identificar situações diferentes em relação à permanência na rua: ficar na rua – circunstancialmente; estar na rua – recentemente; e ser da rua – permanentemente [...]. O que diferenciam essas situações é o grau maior ou menor de inserção no mundo da rua (VIEIRA, BEZERRA, ROSA, 1992, p.94). Portanto, partimos do pressuposto de que o telejornal, quando utiliza termos iguais para tratar de pessoas diferentes- que têm em comum a utilização da rua para sobrevivência- reforça o estereótipo do “velho do saco”, personagem lendário apresentado pelas mães para causar medo a crianças que querem brincar sozinhas nas ruas: O estereótipo do nômade urbano é clássico: roupa esfarrapada, pele encardida com dermatoses, às vezes abrindo em feridas, corpo marcado por cicatrizes; unhas das mãos e dos pés enegrecidas, compridas e, por vezes, deformadas; dentes em parte caídos, em parte cariados; cabelos ensebados, olhos congestionados, etc. São signos genéricos que contam a trajetória social e tornam evidente que o indivíduo faz parte da população pobre que habita as ruas (MAGNI, 1994, p. 34 apud MATTOS, 2006). 3. ALGUNS (DES) CASOS Em 2011, dois casos noticiados no Jornal Hoje, ambos vinculados a formas brutas de violência, somados ocuparam menos de 30 segundos da programação. O primeiro deles, de 13 segundos, foi uma nota coberta 10 sobre uma mulher espancada por 10 No jargão jornalístico significa nota cuja cabeça é lida pelo apresentador e o texto seguinte é coberto com imagens. 6 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 seguranças de um supermercado em Belém, no Pará 11 . A cena foi filmada por um cinegrafista amador e de acordo com testemunhas, a vítima estava pedindo comida em uma feira quando começaram as agressões. O segundo caso, de 16 segundos, foi outra nota coberta sobre a morte de um homem espancado por três jovens em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul 12 . A ação também foi testemunhada por moradores e os rapazes foram presos em flagrante. Depois de assistir às cenas e de ouvir as narrações, são várias as perguntas que surgem, a começar pelos nomes das personagens: quem eram e ssas pessoas? Elas moravam, ficavam ou estavam nas ruas? Quais foram os desdobramentos das histórias? Como não houve novas reportagens sobre os assuntos, as perguntas ficarão sem respostas 13 . Além disso, o tratamento rasteiro dos casos pode suscitar, na maioria dos telespectadores, um sentimento de piedade, pesar ou até mesmo, contentamento. Mesmo quando o telejornal dispensa um tempo maior para noticiar fatos sobre a população de rua, muitas vezes, não se preocupa, antes de a divulgação, em apurar o nome da vítima, como aconteceu com Renato Carlos de Sousa, de 36 anos, que no dia 2 de fevereiro de 2011, em Lindóia, no interior de São Paulo, foi agredido e humilhado por três jovens que passavam pelo local, um deles menor de idade 14 . Durante toda a matéria do Jornal Hoje, o catador de papel foi referido apenas por “mendigo” ou “morador de rua”. Nesta ocasião, os agressores o amarraram e torturaram e só pararam com a “brincadeira” quando agentes de trânsito se aproximaram 15 . Outro ponto a se destacar é a forma com que os fatos foram noticiados, com imagens das vítimas sendo espancadas, fazendo com q ue as pessoas assistissem atônitas o que estava sendo exibido. Sobre isso, Veiga (2000, p.43) afirma: “o importante a 11 Disponível em:< http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/ 2011/09/ moradora-de-rua-e-espancada-porsegurancas-em-mercado-de-belem.ht ml>. Acesso em 08 set. 2011. 12 Disponível em:< http://g1.globo.com/ jornal-hoje/noticia/2011/11/carro -de-deputado-e-cercado-porbandidos-no-rio-de-janeiro.ht ml>. Acesso em 22 dez. 2011. 13 Tal p rática fere o sétimo art igo do Código de ética dos jornalistas brasileiros que diz: O co mpro misso fundamental do jo rnalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação. Disponível no site da Associação Brasileira de Imp rensa: <http://www.abi.org.br/paginaind ividual.asp?id=450>. Acesso em 23 jan. 2011. 14 Disponível em:<http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/ 2011/02/cameras -de-transito-flagram-jovensagredindo-morador-de-rua-em-lindoia.ht ml>. Acesso em 07 fev. 2011. 15 Só fo i possível descobrir o no me do personagem através do site G1,que divulgou as informações apuradas pela emissora de televisão local. Disponível em: <http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/2011/02/ morador-de-rua-diz-que-estava-alcoolizado-ao-ser-agredido-em-sp.html >. Acesso em 7 de fev. de 2011. 7 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 observar não é a violência do conteúdo da informação, mas a informação que se perde pela redução”. Sobre isso, Ciro Marcondes Filho (2009) afirma que não é qualquer imagem que é selecionada para um telejornal: O telejornal tem de provocar emoções, sensibilizar os telespectadores: as cenas filmadas devem transmitir a dor, a desolação, a tristeza; mas também imagens de trabalho, solidariedade, luta, nada é proibido. Quer dizer, proibidas são as imagens monótonas, “sem vida”, paradas, assentadas. Essas não causam curiosidade, atração, interesse. Por isso, o noticiário é constituído de imagens “interessantes”, imagens que atraem, prendem, seguram o telespectador seja pela dor, seja pelo entusiasmo, seja pela preocupação que provocam, seja pela esperança. Não é qualquer imagem que é passível de um telejornal (MARCONDES FILHO, 2009, p.84). O grande problema de se apresentar apenas notas cobertas sobre a população de rua nos telejornais é a falta de força para suscitar um debate ou alguma mudança de atitude, seja pela sociedade, seja pelo poder público, em relação ao problema em questão. Sobre a postura adotada pela mídia brasileira acerca das pessoas em situação de rua, Alberto Dines (1986) tem uma explicação. O autor alerta para o fato de que o processo jornalístico funciona em todas as direções. Segundo ele, cada emissor é simultaneamente um receptor e é o leitor que escolhe o estilo, a orientação e a linha dos respectivos jornais. Sendo assim, de acordo com o pensamento do jornalista, se as pessoas julgam a população de rua, sem ao menos entendê- la, a imprensa também o faz sem investigar a fundo e sem contextualizar os casos que noticiam sobre o tema. Dizendo isso, vale um lembrete: O jornalista e o leitor, assim, fazem parte de um mesmo bolo social; são em última análise, a mesma coisa. E é por esta razão que não se pode dizer que a imprensa de determinado país ou região é ruim ou boa. Ela é o reflexo e segmento da própria sociedade a que serve. Jornalista e leitor são os que melhor se entendem e sintonizam, pois se os primeiros são treinados para sentir as necessidades do último, este foi domesticado para receber aquilo que certamente lhe agradará. Jornalista é o leitor em função da emissão (DINES, 1986, p. 54). 8 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 Ratificando a afirmação de Dines (1986), França (2006, p.33) ressalta que a televisão fala dentro dos padrões interativos de uma determinada cultura e dentro do universo de referências partilhado por uma sociedade, pois é “sensível ao seu ambiente, e colada ao que chamamos de senso comum”. Com as colocações de Dines (1986) e França (2006), caímos em um paradoxo: se a mídia é o reflexo da sociedade e a sociedade age levando em conta o que é veiculado pela mídia, cabe-nos pensar por parte de quem deveria haver a iniciativa de mudança sobre o tópico “população de rua”. Segundo Giorgetti (2007), o papel desempenhado pela imprensa é de grande importância para a inclusão do tema na agenda pública e para impedir possíveis abusos promovidos pelos outros três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. A autora afirma que os meios de comunicação brasileiros deveriam falar com mais frequência sobre a população em situação de rua para que o fenômeno, que vem se agravando ano após ano, não caia no esquecimento. José Hamilton Ribeiro, jornalista de renome e conhecido por seu trabalho no Globo Rural, na décima semana de Jornalismo 16 da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, disse que para se fazer uma grande reportagem existe uma fórmula simples: GR= (BC+BF). (T+T´)n . Traduzindo, a grande reportagem é resultado de um bom começo (BC) mais um bom final (BF) multiplicados pela soma do trabalho (T) e do talento (T') elevados à potência necessária (n). No entanto, com base nos exemplos referidos anteriormente, percebemos que as pessoas em situação de rua não são alvos de grandes reportagens e quando são noticiadas pela grande mídia, tendem a estar relacionadas à violência, quando sofrem abuso autoridades policiais, ou quando são assistidas pelo poder público. Em 2012, porém, após o estudante Vitor Cunha, de 21 anos, ter sido espancado por jovens de classe média, na zona norte do Rio de Janeiro, por defender um homem que dormia na rua 17 , foi possível perceber um avanço no tratamento jornalístico acerca do tema diante da repercussão do caso, sobretudo nas redes sociais 18 . 16 O evento foi realizado em 12 de setembro de 2011. Disponível em:< http://g1.globo.com/ jornal-ho je/noticia/2012/02/estudante-e-espancado-ao-tentardefender-mo rador-de-rua-agred ido.html>. Acesso em 06 abr. 2012. 18 Um fato inusitado, que também aconteceu no início do ano, não mereceu tratamento jornalístico no Jornal Hoje: O Tribunal de Justiça determinou prisão domiciliar a u m ho mem co m problemas mentais 17 9 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 A agressão a Vitor desencadeou a apuração de outras pautas devido à frequência de outros fatos envolvendo pessoas em situação de rua em fevereiro e março deste ano. Durante vários dias, foi possível acompanhar o caso de dois homens que foram queimados por quatro rapazes enquanto dormiam debaixo de uma árvore em Santa Maria, região do Distrito Federal. Um deles morreu e o outro está internado com queimaduras por quase todo o corpo. O crime foi encomendado por um comerciante e quatro acusados foram presos 19 . Embora a cobertura dos casos de 2012 tenha sido maior, verifica-se a utilização dos mesmos termos: morador de rua, mendigos, pedintes. Há que se saber ainda que existem outros recortes que podem ser dados a este público. O Jornal da Record, concorrente da Rede Globo, por exemplo, exibiu em outubro de 2009 uma série de reportagens especiais sobre a vida nas ruas de São Paulo. Em um dos episódios, a apresentadora Ana Paula Padrão entrevistou um homem que conseguiu montar uma casa, dentro de sua simplicidade, requintada e moderna, apenas com objetos recolhidos em lixeiras 20 . Na mesma emissora, em 2011, um produtor musical saiu pelas ruas da capital paulista recrutando pessoas na tentativa de descobrir novos talentos e montar um “coral de rua” para cantar músicas de Natal nos intervalos da emissora no final do ano 21 . Destaca-se a importância de diferentes abordagens como estas, pois a televisão, como já foi dito, tem um papel fulcral na vida da população brasileira. Ela atua como um mundo um real, cujas imagens as pessoas preferem ver pelo tubo livre de agentes patogênicos a observar pela janela de suas casas ou para-brisa de seus carros. Como sublinha Ciro Marcondes Filho (2009), a TV marca a passagem do “mundo dos invisíveis”, das pessoas comuns, normais, insignificantes, ao “mundo dos visíveis”, daqueles que realmente existem: que vivia nas ruas de São Paulo. Disponível em:< http://noticias.uol.com.b r/cotidiano/ultimas noticias/2012/02/10/ morador-de-rua-e-condenado-a-prisao-domiciliar-e-pode-ser-preso-por-nao-cumprira-decisao.htm>. Acesso em 06 abr. 2012. 19 Disponível em: < http://g1.globo.co m/jornal-hoje/videos/t/edicoes/v/quatro-pessoas-sao-presassuspeitas-de-atear-fogo-em-moradores-de-rua-no-df/1843972/>. Acesso em 06 abr. 2012. 20 Disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=cLlsCDOW 6xo&feature=related >. Acesso em 22 dez. 2011. 21 Disponível em:<http://videos.r7.co m/voz-de-sem-teto-comandam-o-coral-de-rua-nesta-quinta-feira-22/idmed ia/4ef21cc892bb9adf771237ce.ht ml>. Acesso em 22 dez. 2011. 10 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 Um mundo “não selvagem”, devidamente domesticado, sob controle, ordeiro. O outro, o mundo que se tem de ver forçosamente, o mundo dos mendigos de rua, da violência do trânsito, da sujeira, das cidades, do abandono geral, da decadência de toda uma civilização, é um mundo “não registrado”, visto, mas não considerado, “não existente” (MARCONDES FILHO, 2009, p.89). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho analisamos alguns casos sobre a população de rua veiculados no Jornal Hoje. Inicialmente, foi possível observar a desumanização comunicativa 22 , pois os apresentadores e repórteres nem sequer divulgaram os nomes das personagens principais das histórias exibidas em 2011, o que demonstra uma falta de apuração jornalística. As matérias, em geral, não nos levam a refletir sobre como é possível minimizar esta problemática crescente de pessoas que fazem do espaço público seus locais de moradia e trabalho e quais foram os motivos que as levaram a isso. Não foi possível identificar se as vítimas eram, estavam ou apenas ficavam nas ruas. Sendo assim, quem só tem contato com estes atores sociais pela televisão, não consegue perceber a heterogeneidade deste público e passa a reforçar os estigmas criados desde a infância, com a lenda do “velho do saco”, que pega crianças que desobedecem aos pais. A falta de contextualização e de acompanhamento das matérias também nos incita a pensar nestas pessoas sempre como vítimas, incapazes e violentas. Muitas vezes são, muitas vezes não. Cada caso é um caso e merece um tratamento midiático especial. Após os quinze segundos observados das duas notas cobertas de 2011 do Jornal Hoje, nas quais observamos a violência despendida em cidadãos de rua, algumas perguntas surgem: será que se fosse um jovem de classe média alta que aparecesse sendo espancado em frente a um mercado, o telejornal teria dispensado apenas 13 segundos? E no dia seguinte o caso seria ignorado? A resposta mais provável seria não. 22 Sobre a humanização do relato jornalístico, ver: IJUIM, Jorge. Humanização e desumanização no jornalismo: algu mas saídas. Trabalho apresentado ao DT1 – GP Teo rias do Jornalismo no XI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Co municação, evento do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Co municação, Recife, 2011. Disponível em:< http://www.interco m.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-2440-1.pdf>. Acesso em 23 set.2011. 11 ALCAR - Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia 4º Encontro do Núcleo Gaúcho de História da M ídia São Borja, RS - 14 e 15 de maio de 2012 O que se percebe é que faltam grandes reportagens sobre a população de rua no telejornal, com linguagem televisiva adequada e estrutura com começo, meio e fim. Os casos noticiados em 2011, assim como os de 2012, deveriam suscitar debates e investigações. Levando em consideração que o jornalismo executa um importante papel social para mobilizar a população e para questionar problemas, enquanto os telejornais brasileiros não mudarem de atitude em relação a este tipo de cobertura midiática, as pessoas vão continuar passando por perto de desabrigados, fingindo não vê- los. Para que haja uma mudança de comportamento da população, é necessária antes uma mudança na alfabetização televisiva sobre este tema, uma pausa na reprodução pura e simples do senso comum. 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