Carta para Josefa, minha avó Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. (…) Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de famílias, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz. Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. (…) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. Estou diante de ti, e não entendo. (…) Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança (…). José Saramago, Deste Mundo e do Outro. Lisboa: Editorial Caminho, 4.ª Ed., 1997 1. Que tipo de conhecimento possui a avó Josefa? E que tipo de conhecimento lhe falta? 2.Quais são as principais diferenças entre esses dois tipos de conhecimento? 2.1.1 Distinção entre conhecimento vulgar (ou senso comum) e conhecimento científico Ponto de partida para a distinção A aquisição de um conhecimento fiável acerca de muitos aspetos do mundo não começou com o advento da ciência e do uso consciente dos seus métodos. Muito antes de haver ciência (tal como é feita hoje em dia), os seres humanos adquiriram uma grande quantidade de informação acerca do mundo; podemos designar esse conhecimento por senso comum ou conhecimento vulgar. 184 IV. 2 . O estatuto do conhecimento científico Por exemplo, os seres humanos aprenderam a reconhecer alimentos, descobriram a aplicação do fogo, adquiriram a habilidade de transformar matérias-primas em roupas e utensílios. Além disso, inventaram técnicas para cultivar o solo, descobriram que é possível transportar os objetos mais facilmente quando os colocamos sobre carros com rodas, que as estações se sucedem com uma certa regularidade, entre muitas outras informações úteis e fiáveis que lhes permitiam viver mais facilmente. Este conhecimento vulgar não foi suprimido com o advento da ciência. Muito pelo contrário, de uma forma ou de outra, todos aplicamos o senso comum em questões da vida prática quando recorremos a provérbios, a receitas caseiras culinárias ou medicinais, a tradições populares, etc., ou simplesmente quando enunciamos proposições como as seguintes: (1) A água solidifica quando arrefece o suficiente. (2) O metal derrete caso seja suficientemente aquecido. Ao termos noção disto, surge uma questão: se o “senso comum” nos proporciona uma quantidade razoável de conhecimentos fiáveis, então que características especiais possui a ciência e em que contribuem os seus métodos para a aquisição de conhecimentos? Afinal, o que trouxe de novo a ciência? Para responderes claramente a estas questões precisas de examinar a distinção entre senso comum e ciência. Porém, é importante realçar que, para muitos autores, não há uma linha nítida que separe o senso comum do conhecimento científico, pois existem zonas de vagueza onde não é fácil catalogar algo como senso comum ou como conhecimento científico propriamente dito. Mas pode-se procurar uma caracterização razoável de cada um destes tipos de conhecimento ao examinar as diferenças nucleares entre senso comum e conhecimento científico. Caracterização dos dois tipos de conhecimento Será que um é desorganizado e o outro organizado? Powerpoint Karl Popper Numa primeira tentativa de diferenciar estes dois tipos de conhecimento, talvez possas intuitivamente argumentar que o conhecimento científico é organizado e classificado, ao passo que o senso comum carece de tais características. Nas ciências procura-se um corpo de conhecimentos ordenado e todas têm como tarefa indispensável a classificação dos seus materiais em tipos ou géneros significativos, como acontece, por exemplo, na biologia, que classifica claramente os seres vivos em espécies. O mesmo não parece suceder no senso comum. Porém, esse argumento não é bom para traçar as diferenças nucleares entre senso comum e conhecimento científico. Por exemplo, podemos imaginar que as notas de um conferencista acerca de uma das suas expedições na selva africana estão bem organizadas para o propósito de comunicar uma determinada informação de um modo claro e interessante. Ora, certamente não parece plausível afirmar que tal organização do conferencista transforma a sua informação naquilo a que chamamos ciência (aliás, podemos imaginar que as notas desse conferencista transmitem senso comum de uma forma organizada). Logo, o argumento exposto acima não enuncia adequadamente a diferença relevante entre ciência e senso comum. O problema do argumento parece ser o seguinte: não especifica que tipo de organização ou classificação é característico das ciências em comparação com o senso comum. IV. 2 . O estatuto do conhecimento científico 185