A SEDUÇÃO DA PROFESSORA
Wojciech Andrzej Kulesza (Universidade Federal da Paraíba) Doutora [email protected]
Resumo
A historiografia das representações da mulher professora tem se dedicado primordialmente a
estudar o modo como a concepção republicana da professora como mãe abnegada e assexuada
foi apropriada pelas professoras normalistas, pela escola e pela sociedade. O lado lascivo, carnal
da professora, sempre apagado pelo discurso oficial, tampouco se faz presente na historiografia
do ensino primário republicano. O objetivo principal deste trabalho é privilegiar exatamente essa
representação feminina da professora, considerada como o reverso de sua representação como
sacerdotisa casta. Através da análise das diferentes ordens do discurso, do científico ao literário,
procurar-se-á exibir essas representações da professora como objeto de desejo sexual/afetivo e
estudar sua relação com a representação dada pela ordem republicana.
Palavras-chave: Escola normal; Representação; Processo civilizador; História da
Educação.
Na capa do recente livro de Paulo Ghiraldelli Jr, Filosofia e História da Educação
Brasileira (2003), encontra-se estampada uma típica fotografia de formatura. Não se trata
de uma construção abstrata baseada em pessoa desconhecida. A sorridente figura feminina
de beca e capelo, exposta também na orelha do livro, foi ali colocada pelo próprio autor:
trata-se de sua tia Lila retratada no momento da formatura. Em seu ensaio de ego história
que abre o livro, Ghiraldelli nos explica que todas as três irmãs de seu pai se tornaram
“professoras normalistas”. Como seu livro é dedicado primordialmente à história da
educação republicana, a homenagem faz muito sentido. A normalista sintetiza
expressivamente os ideais educacionais da República, além de nos eliciar imediatamente a
feminização do magistério e a profissionalização da mulher, fenômenos marcantes da
modernidade brasileira (ALMEIDA, 1998; SOUZA, 1998).
A foto, tirada em 1945 num momento solene, lembra ainda a imagem da professora
sagrada envolta em vestes rígidas a esconder o corpo, signo da impureza, do vício, da
imoralidade. Associada durante muito tempo às figuras da mãe e da Virgem, a professora
pura e assexuada, sacerdotal, bondosa, bela, meiga e também patriota, identificada mesmo
com a figura feminina da república, insistentemente veiculada pelos discursos oficiais,
emerge do retrato da capa. Esta também é a perspectiva de Ghiraldelli, ao salientar o “amor
e a dedicação” de suas tias ao ensino em suas carinhosas memórias de família.
Contudo o rosto da fotografia pertence ao corpo da normalista e é através dele que
ele se manifesta. Se o óbvio orgulho e a alegria da colação de grau transparecem
imediatamente, não podemos deixar de notar no retrato seu “sorriso franco no rostinho
encantador”, imortalizado pela música Normalista. Este samba, de Benedito Lacerda e
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David Nasser, gravado por Nelson Gonçalves em julho de 1949, ao exaltar a “normalista
linda”, humaniza a professora repondo seu lado mulher. Esse é também o viés de
Ghiraldelli, ao cantar a boniteza das normalistas através de Alice, a mais nova de suas três
tias professoras, falando do “orgulho que toda normalista tinha: a de ser considerada bonita
pelos alunos” (2003, p.xiv).
Ao tratar do “abrandamento das pulsões”, Norbert Elias, insistindo em sua crítica à
dualidade entre o “físico” e o “psíquico”, mostra como a modelação da personalidade
humana depende da existência social. Conforme a reação social à manifestação dos
impulsos espontâneos dos indivíduos, estes vão modelando suas personalidades, num jogo
incessante de tentativa e erro, que finda por estabelecer determinados padrões sociais. O
mesmo aconteceria com os impulsos sexuais, que teriam uma importância decisiva na
“modelação mediante a qual o centro da libido e o centro do ego são mais ou menos
fortemente diferenciados, até que finalmente se forma uma agência de autocontrole
abrangente, estável e altamente diferenciada” (1993, p.230).
Ao sair de casa e se expor ao olhar de estranhos, a mulher das cidades é instada a
esconder sua feminilidade, que é assim remetida ao doméstico, lugar reservado para sua
realização plena. A professora será pioneira nessa aventura que é também uma incursão
pedagógica, civilizadora, “uma vasta empresa de moralização”, no dizer de Rago (1997). O
vestuário que esconde o corpo, dos pés à cabeça, associado ao resguardo minucioso dos
contatos físicos, combina com o falar polido, impessoal, objetivo. Como mostrou Souza, o
cientificismo pedagógico republicano provocou uma cisão profunda entre a vivência e a
fala da professora, silenciando sua experiência de vida: “A professora apenas dava aula,
isto é, retirava o seu próprio ser e os espaços das experiências próprias para o reinado das
sombras” (2000, p.118).
Os conteúdos escolares das diversas disciplinas remetem alunos e alunas ao mundo
estranho e maravilhoso construído pela civilização moderna. Será preciso que as crianças
se acostumem pouco a pouco com esse saber, através daquela criatura estranha, para viver
na sociedade dos homens e mulheres modernos. Como diria Elias, para que haja
envolvimento urbano, será necessário superar a alienação própria da vida rural. Através da
escola, meninos e meninas, vão redefinindo a relação com suas mães pela mediação da
professora. Por isso lhe é atribuída a imagem de mãe com todas suas virtudes.
Esta imagem contrasta vivamente com a representação da professora como
solteirona feia, que ficou para “tia”. De qualquer maneira, note-se o caráter
profissionalizante da Escola Normal no decorrer do tempo: a normalista seria
inequivocamente professora ao contrário dos primeiros tempos da instituição, dedicados
mais propriamente à educação feminina em geral. “A normalista linda, não pode casar
ainda, só depois de se formar” dizem os versos de David Nasser. Superado o obstáculo
matrimonial, que nas primeiras décadas do século XX produziu toda uma legislação
restritiva ao exercício profissional de professoras que viessem a se casar, a normalista
passa a ser um “bom partido”, criando-se até a figura depreciativa do “quincas” ou
“chupim” para os maridos que viviam às custas das professoras.
À medida que as escolas primárias passassem a funcionar em prédios próprios,
eliminava-se a promiscuidade proporcionada pelo funcionamento no mesmo espaço, tanto
da casa como das aulas, facilitando a liberação das professoras para a vida urbana. A
independência econômica advinda da remuneração de seu trabalho não significou porém a
sua liberação social. Como mostrou Reis (1994), a imagem sagrada da professora como
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“guardiã do futuro” tinha que ser conservada também em sua vida privada, sob o risco de
remoção para uma escola distante ou até mesmo de demissão.
A sexualidade da professora, cuidadosamente dissimulada no discurso oficial dos
dirigentes educacionais e rigidamente controlada, tanto nas escolas públicas, como no
crescente número de escolas normais dirigidas por ordens religiosas, continuará presente
todavia no imaginário social. Excluída da cultura escolar, onde ela será tratada meramente
nos marcos biológicos da reprodução humana, a sexualidade procurará outras práticas
sociais para se manifestar. A dessexualização da professora, como de resto de toda a
mulher, pelo discurso dominante, favorecerá a irrupção da sexualidade em outros registros
culturais dos quais a literatura constitui o melhor exemplo.
No entanto, quando associada aos seus dotes intelectuais, a sexualidade da
professora parece se manifestar de forma ainda mais veemente do que para a mulher
iletrada. Desde o clássico romance de Júlio Ribeiro, A Carne, publicado em 1888, a
sexualidade da mulher culta parece exceder a normalidade, como se o exercício mental
tivesse a função de reprimir os desejos do corpo. Guacira Lopes Louro lembra a respeito
que, “por muito tempo, a ignorância foi considerada como um indicador de pureza, o que
colocava as mulheres não-ignorantes como não puras” (1997, p.469). Assim, mais do que
outras mulheres, a professora exacerbaria a feminilidade, seja esta considerada como
angelical ou demoníaca.
Em franca oposição ao discurso dominante, o romance de 1893, também
naturalista, de Adolfo Caminha, A Normalista, inaugura em nossas letras a representação
“negativa” da escola normal. É a freqüência à escola, retratada por Caminha como antro de
ócio e frivolidade, que causa a ruína moral da normalista Maria do Carmo. Daí há só um
passo para a transformação da professora, ocupação feminina por excelência oferecida pela
sociedade republicana, em objeto de desejo, muitas vezes fatal, como acontece com aquela
emblematicamente denominada Madalena, do romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos,
cuja primeira edição data de 1934.
Figura de destaque na expansão da escolarização primária, esse outro lado da
professora seria objeto de representação através dos mais variados meios de expressão que
circulavam nos meios urbanos. O próprio Macunaíma não resistiria aos seus encantos,
explorando a fama de namoradeiras das normalistas. Mário de Andrade faria com que seu
herói, no capítulo “As três normalistas”, pusesse “reparo num bando de cunhatãs
passeando todos os dias na praça da República” (ANDRADE, p.103). O relato descreve as
tentativas de Macunaíma de “brincar de marido e mulher” com as normalistas da Escola da
Praça, no intuito de satisfazer os seus impulsos sexuais a qualquer custo. O fato do autor de
Macunaíma ter excluído esse capítulo da edição que viria a público em 1928, revela o
caráter proibido, reprimido, dessa representação, associada exatamente ao oposto das
virtudes decantadas pelo discurso oficial da figura da professora. Afinal, o autor de
Paulicéia Desvairada estava bem a par das aventuras de seus amigos modernistas com
“Miss Ciclone”, normalista morta aos 19 anos em conseqüência de um aborto desastroso
patrocinado por Oswald de Andrade (ALMEIDA, 1998). Aliás, esse modernista
continuaria seus relacionamentos com normalistas através de Patrícia Galvão, a famosa
Pagu, “mulher revolucionária e liberada” a transgredir as expectativas da sociedade em
relação à suas professoras (GALVÃO, 2005).
Mesmo que se conservasse prudente e platonicamente à distância, a professora
despertava paixões por onde passava. Antes de compor A Normalista, Benedito Lacerda
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havia musicado a letra de Jorge Faraj que resultou na seresta Professora, gravada por
Silvio Caldas em junho de 1937 e que seria relançada em outubro de 1949 na voz de
Alcides Gerardi, na esteira do sucesso de Nelson Gonçalves. Este samba, instantâneo
musical do cotidiano urbano carioca da época, descreve o encontro do boêmio, que volta
para casa ao amanhecer o dia, com a professora, que vai “para a escola trabalhar”. “Louco
de amor no seu rastro”, ele a persegue embarcando no “trem das professoras/em que outras
vão sedutoras” ao subúrbio ensinar, “menino querendo ser/para com ela
aprender/novamente o bê-a-bá” (LACERDA e FARAJ, 1937).
Analisando esta letra, Louro diz que apesar da professora ser “apresentada como
objeto do desejo amoroso”, ela, “operária divina”, ainda está envolta por um manto de
pureza, em oposição à “vida desregrada do homem que com ela sonha” (1997, p.470). Ou
seja, mesmo quando o lado sedutor da professora é cantado, reconhecido, ele é
rapidamente oculto e subjugado pelo seu lado civilizador. As representações da mulher
professora, visivelmente sensuais e prenhes de pulsões libidinais, são diretamente opostas
àquelas das quais emana uma aura de santidade, de pureza, de perfectibilidade moral,
consideradas ideais para o exercício do magistério no ideário republicano.
Mas nem só por causa dessas qualidades se justificava a docência como profissão
de mulher. Vista como menos racional, mais sentimental, tanto mais forte devia estar
constituído na mulher o autocontrole de que fala Elias. Por isso, o risco de descontrole é
maior. Nesses casos surge a professora voluptuosa, histérica, cruel, satânica, comunista...
De qualquer modo, trata-se de faces da mesma moeda, complementares, cuja compreensão
prescinde uma da outra. Como diz Louro, “certamente essa representação de professora
assexuada também fazia circular seu contraponto: o da mulher que vivia, às escondidas,
uma intensa e proibida sexualidade” (1998, p.107).
No entanto, as imagens ao mesmo tempo religiosas e maternais de
dedicação/disponibilidade, abnegação/sacrifício, humildade/submissão, são recorrentes nas
poesias, músicas, datas comemorativas, alegorias e exortações referentes à professora
primária no Brasil republicano, constituindo a representação hegemônica da professora
(como objeto de representação). O lado da professora sensual, erotizado, permanece
interdito e as transgressões são cuidadosamente apagadas, resignificadas, excluídas de sua
identidade.
Desta forma, o lado libidinoso da professora encontraria expressão marcante em
outros registros, especialmente naqueles nos quais se pudesse dissolver a sua identidade de
professora. Se podemos encontrar suas marcas nos discursos escolares de professores e
alunos, a imagem sensual da professora virá à tona plenamente longe da escola. Margareth
Rago, analisando o romance Madame Pommery, baseado num famoso bordel dos anos 20
em São Paulo, Au Paradise Retrouvé, nos diz que as prostitutas que nele trabalhavam eram
descritas como “internas do Colégio” e cita a representação do cabaré feita pelo autor do
romance como “escola de civilidade”:
Cursar o Paradis Retrouvé ficou sendo, no conceito geral da gente fina, um
título de merecimento e remate indispensável de toda a educação aprimorada
(1991, p.172).
Ou seja, o abrandamento das pulsões havia estendido o autocontrole dos impulsos
libidinosos em sociedade mesmo frente às então chamadas de “mulheres públicas”. Este
exemplo, tão extremado quanto esclarecedor, parece sugerir que as manifestações da
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representação “obscena” da professora devam se dar primordialmente longe dos espaços
escolares. Na verdade, serão tanto mais ousadas e explícitas, quanto mais ocorrerem fora
do controle disciplinador do aparelho do Estado. Só numa carta de amor poderia expressar
a professora Anayde Beiriz, cuja tragédia está umbilicalmente vinculada aos
acontecimentos de 1930 na Paraíba, os seus sentimentos femininos:
Se chegar algum dia a ser tua, encontrarás em mim, a esposa, a mãe, a amiga, a
irmã e, mais que tudo isso, encontrarás a amante, a mulher (ARANHA, 2005,
p.71).
Por outro lado, o “empoderamento” da mulher professora, propiciado pela sua
autonomia econômica e intelectual, a fará ensaiar ações afirmativas de sua feminilidade,
tanto na escola, como na sociedade. A professora como sujeito de sua representação irá se
manifestar exatamente através do meio que a simboliza: a escrita. Cristalizadas nos seus
discursos, sejam eles pedagógicos, literários ou científicos, ora públicos, ora privados, as
auto-imagens da professora se inserem num quadro interpretativo da realidade brasileira,
contribuindo para compor a sua história, desde que problematizemos a separação entre
ficção e realidade tentada pela ordem republicana. Parafraseando Roncari (2004), que
considerou a obra literária de Guimarães Rosa como uma interpretação do país, podemos
estabelecer como hipótese que o conjunto de escritos de professoras, que falam dos
costumes privados, da vida familiar e da amorosa, mas também das condutas públicas, do
poder e da ordem, constitui igualmente uma representação do Brasil.
THE TEACHER’S SEDUCTION
Abstract
The historiography of the feminine teacher's representation has been mostly dedicated to study the
way as the republican conception of teachers, as self-denying and asexual mothers, were
appropriated by the teachers, by the school and by the society. The lust side of the feminine
teacher, always absent in the official speech, neither is present in the historiography of the
republican primary teaching. The main objective of this work is just to privilege that feminine
representation of the teacher, considered it as the reverse of its representation as chaste priestess.
Through the analysis of the different orders of discourse, from the scientific to the literary, it will
try to exhibit those representations of the teacher as object of sexual desire and to study its
relationship with the representation given by the republican order.
Key words: normal school, representation, civilizing process, history of education
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