O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Cesar Sabino Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA. Orientadora: Prof.a Dr.a Mirian Goldenberg. Doutora em Antropologia Social. Museu Nacional. Rio de Janeiro 2004 2 Sabino, César O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Rio de Janeiro:UFRJ/PPGSA, 2004. 366p.il. Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA 1.Esteróides anabolizantes. 2. Drogas. 3. Fisiculturismo. 4. Corpo. 5. Construção de Identidade. 6. Antropologia. 7. Tese Dout – (UFRJ/PPGSA) I Título 3 Agradecimentos Uma tese de doutorado nunca é uma produção individual, sua elaboração envolve a participação direta ou indireta de muitas pessoas. O exemplo de profissionalismo, atenção e dedicação tive a sorte de encontrar aqui no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na pessoa da minha orientadora Mirian Goldenberg. Não tenho palavras para agradecer sua grande paciência, valiosa orientação e também o grande e constante incentivo que nos momentos mais difíceis sempre me proporcionou, não me deixando esmorecer no meio do caminho. Também, gostaria de agradecer à Professora Madel Therezinha Luz pela oportunidade de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre Racionalidades Médicas no Instituto de Medicina Social da UERJ e de suas exemplares aulas na mesma instituição. Durante este rico período de aprendizado desenvolvi não apenas meu interesse pelas estudos sobre corpo, gênero e saúde, mas também o interesse pelas Ciências Sociais. Com ela comecei a desenvolver o gosto e o respeito pelo ofício de pesquisador e professor nos idos de 1994. Para com as professoras Madel Luz e Mirian Goldenberg tenho uma imensa e inefável dívida. A elas minha incomensurável gratidão, respeito e admiração. Agradeço muito, também, aos professores Marco Antônio Gonçalves e Elsje Maria Lagrou as sugestões fundamentais, o atencioso carinho, as aulas repletas de questionamentos antropológicos, nas quais a tecitura do pensamento se fazia sempre presente, e as revistas importadas sobre cultura física do início do século XX trazidas da Europa – que me foram gentil e generosamente presenteadas. Documentos fundamentais na elaboração de parte dessa tese. Ao professor Luis Fernando Dias Duarte gostaria de agradecer os conselhos e as pacientes sugestões sobre textos e temas importantes por ele 4 indicados e que também foram fundamentais para a elaboração desse trabalho. Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) pela acolhida em suas instalações e às funcionárias da secretaria, e amigas, Denise e Cláudia pela atenção e o carinho sempre dispensados. À CAPES agradeço a bolsa concedida, sem a qual a dedicação ao trabalho de pesquisa não poderia ter sido realizado com o aproveitamento devido. Aos meus amigos Marcelo Peloggio, Washington Dener, Marcus Siani, Andréa Osório, Sônia Beatriz e Marcelo Silva Ramos agradeço a vivacidade do pensamento (não apenas crítico, mas criador), o companheirismo e a paciência que só amigos de verdade possuem. A eles também agradeço as indicações bibliográficas, as sugestões e as críticas que foram muito úteis para a elaboração deste trabalho. À Cláudia Bomfim da Fonseca não tenho palavras para agradecer sua dedicação, a inestimável ajuda com a informática, as fotografias tiradas durante o trabalho de campo, as sugestões temáticas, o companheirismo, a paciência, e a compreensão. Á ela minha admiração, meu amor e meu carinho. Agradeço a minha mãe Irani Sabino, meus amigos e familiares, que suportaram minha inconstância (e aparente distância) durante a elaboração desta tese, mesmo sem entender o porquê dela, ou mesmo sua finalidade. Agradeço, também, a atenção de todos os amigos das academias que freqüentei durante o trabalho de campo: os professores Gustavo Lopes e Ricardo Barguine, Rafael Pacheco, Wolney Teixeira, Renata Bérenger, Márcia Novak, Tatiana Amaral, Nina Aielo, Luca Paes Leme, Rafaello, Fabrício, Luís, Rafael e tantos outros que aturaram o olhar intrometido e as perguntas freqüentes de um pesquisador. 5 ABSTRACT The aim of this thesis is to comprehend the word vision and the social organization of bodybuilders at the Rio de Janeiro’s Gyms. It intends to understand the sense of the drugs use (steroids), remedy use, diets use, and health marketing to makes the bodybuilder person through the passage rituals. It enphazise, also, the transit among the steroids and other drugs like marijuana and cocaine at the gyms, exploring the interfaces of drugs consumerism and a new health ideology with anomic violence. Resumo O Objetivo desta tese é compreender a visão de mundo e a organização social dos fisiculturistas das academias do Rio de Janeiro. Procura entender o sentido do uso de drogas (esteróides anabolizantes), remédios, dietas e o mercado da saúde. Itens que participam na construção da pessoa do fisiculturista por intermédio de rituais de passagem. Enfatiza, também, nestas instituições, a relação entre o uso de esteróides e drogas como maconha e cocaína, explorando a ligação do consumo destas com a nova idologia da saúde e a prática da violência anômica. 6 “Nous avions conscience que la connaissance du sport est la clé de la connaissance de la societé ”. Norbert Elias “Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas” Nietzsche 7 ÍNDICE Apresentação 10 O Corpo Utópico 13 Capítulo I O Surgimento do Bodybuilding 28 Heróis Fundadores 37 A Gesta de Arnold Schwarzenegger 60 Capítulo II O Surgimento dos Esteróides 67 No Reino de Dionisos 76 Droga Hierarquizante 82 Apolo Rei 87 Entre Apolo e Dionisos 91 Capítulo III Ética e Estética do Esteróide 97 Do Ascetismo ao Hedonismo 110 Drogas Masculinizantes e Individualismo 121 O Complexo de Piegan 124 Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo 127 Capítulo IV Fármacos e Formas. Breves Notas Etnográficas 131 8 A Química da Forma 141 A Farmácia de Adonis 158 A Forma da Dor 169 A Lógica Classificatória Muscular 178 Séries de Repetição: A Divisão do Trabalho Muscular 199 Capítulo V Comendo como Bicho: Publicidade, Mito e Grastro(a)nomia 207 Dieta Forte 211 Publicidade e Forma 224 Mito e Mídia 228 Mitos da Forma 233 Mercadorias Classificatórias 238 Imagens e Palavras 244 Raios e Leões 248 Fábrica e Mecânica de Corpos 250 Capítulo VI Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme Pele de Homem. Pele de Mulher 257 262 Tatuagem e Lógica da Identidade 271 Magia Capilar ou A Louridade da Loura O Cabelo do Malhador 279 A Loura Virtual 283 276 9 Capítulo VII Elogio à Barbárie Violência Difusa 292 295 O Status da Briga Violência Anômica 298 309 Considerações Finais 325 Referências Bibliográficas 329 Anexos 343 10 Apresentação Este trabalho tem como objetivo compreender a construção social do corpo nas academias cariocas de musculação e fisiculturismo, buscando aprofundar questões levantadas durante a elaboração da dissertação de mestrado “Os Marombeiros. Construção de Corpo e Gênero em Academias de Musculação”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS) no ano de 2000. A dissertação, uma etnografia que buscou focalizar o cotidiano das academias de musculação da Zona Norte do Rio de Janeiro (Tijuca, Andaraí, Grajaú e Vila Isabel), destacou as relações de gênero e o uso de esteróides anabolizantes relacionado à construção da forma física nestas instituições. A análise de tais questões, embora ainda ligadas ao estudo sobre a hierarquia estética do grupo e o uso de drogas, deteve-se no subgrupo específico dos fisiculturistas (e não nos freqüentadores das academias de musculação, em geral, como havia sido desenvolvido anteriormente), focalizando e aprofundando aspectos tais como o simbolismo relacionado à alimentação do grupo, o uso de suplementos alimentares, o trânsito do uso de esteróides (denominados drogas apolíneas na dissertação de mestrado) para o consumo de drogas como a maconha e a cocaína (estas, por sua vez, denominadas drogas dionisíacas), as perspectivas míticas suscitadas pela propaganda e pelo marketing direcionado à manutenção da saúde e boa forma, o sistema simbólico expresso pelas tatuagens, o simbolismo ligado à coloração capilar e o elogio à violência. A pesquisa da tese de doutorado ampliou o espectro de academias incluindo instituições do bairro de Copacabana. O direcionamento da pesquisa para tais academias ocorreu devido ao fato de neste bairro localizar-se o maior número de academias freqüentadas por fisiculturistas, homens e mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, atualmente. Entendendo-se por fisiculturistas, não apenas os freqüentadores de academias de musculação e fitness, em geral, mas indivíduos que se destacam do resto dos freqüentadores por dedicar grande parte do seu tempo desenvolvendo massa muscular muito acima da média, além de participarem, mas não 11 necessariamente, de campeonatos ou competições de bodybuilding. Sendo tal grupo o maior representante de aficcionados pelo desenvolvimento muscular, tendo a forma física como, se não a maior, a principal preocupação de suas vidas, determinadas dimensões existentes de maneira não muito significativa em outras academias (nas quais participam em número reduzido) puderam ser melhor analisadas e pesquisadas nestas instituições de Copacabana nas quais representam contingente significativo. Esta tese de doutorado é o resultado de 54 meses de pesquisa (trabalho de campo) em 10 academias de musculação e 2 de fisiculturismo da Zona Norte e Zona Sul cariocas: 4 academias no bairro de Vila Isabel; 3 academias no bairro da Tijuca; 2 no bairro do Grajaú; 2 em Copacabana e 1 no Andaraí. As duas academias de Copacabana pesquisadas são exclusivamente freqüentadas por fisiculturistas. No entanto, também foram pesquisados os grupos de fisiculturistas que freqüentam as academias de musculação da Zona Norte. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200 homens e 110 mulheres) com idade entre 16 e 55 anos. Porém, apenas duas entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo todos os outros relatos e conversas escritos em cadernos e diários de campo, imediatamente após o pesquisador deixar os locais de pesquisa. Foi priorizada a abordagem baseada na observação participante. Os comportamentos e as falas descritas são os dos fisiculturistas, e simpatizantes do fisiculturismo, em seu mundo cotidiano ou “habitat natural”, como escreveu Wacquant (2001) em seu livro sobre os boxeurs. A tese está organizada em sete capítulos. É apresentada uma breve etnografia ressaltando determinadas características consideradas fundamentais para a construção do modelo de academia descrito no relato. Esta pequena etnografia ressalta a importância, relatada pelos próprios usuários, do uso dos esteróides anabolizantes e outras drogas para a construção da identidade do grupo relacionada às suas aspirações e visão de mundo, considerando-se seu histórico e a dimensão simbólica do seu uso. Inicialmente é apresentado um breve histórico do fisiculturismo, seu surgimento, a consolidação do campo, seus ícones e sua projeção 12 internacional, destacando a função de um mito de referência para os bodybuilders: a gesta do “herói” Schwarzenegger. A história do fisiculturismo no Brasil não foi abordada, pois não encontrei nada de significativo sobre ela. Fato que já sugere a realização de outra pesquisa abordando apenas este aspecto. Logo após é considerada a dimensão simbólica do uso de esteróides tratado como um novo tipo de uso de novas drogas. Uso relacionado ao processo de medicamentalização de parcela significativa da cultura atual. Cultura que tende, como sugeriu Sfez (1995), a elaborar uma utopia da saúde. Também é realizado um breve histórico do surgimento dos esteróides introduz a questão do uso do discurso científico pelo mercado da forma física e dos suplementos alimentares. Em outro capítulo destaca-se o papel da publicidade relacionada à construção e manutenção dos mitos corporais modernos e sua relação com as práticas alimentares dos freqüentadores assíduos das academias de fisiculturismo. A pesquisa enfatiza o papel simbólico da alimentação e sua relação com a manutenção da forma pelos fisiculturistas, o aspecto sagrado/profano da comida, a demonização da gordura, as classificações alimentares, a consubstancialidade animal (ligada ao uso, por parte dos pesquisados, de vitaminas e drogas para animais por causa da crença de que tal compartilhar confere aquisição de propriedades animalescas consideradas virtudes pelo grupo). Também focalizam-se os significados das dietas e sua relação com o uso dos esteróides - o elixir-mor dos bodybuilders - , o papel da publicidade sobre a comida, os suplementos alimentares e a forma física e sua função classificatória cotidiana ligada à fabricação dos mitos fisiculturistas. Neste ponto, a pesquisa (pautada sobre a análise de propagandas publicitárias) foi influenciada pelo trabalho de Rocha (1995). No capítulo seguinte é relatada também, de forma breve, a experiência pessoal do pesquisador no campo, sua relação com o seu próprio corpo e com as estruturas dos dois campos de inserção profissional: o campo da academia e o insurgente campo do fisiculturismo carioca. É destacado o papel da lógica classificatória das competições e dos exercícios e a relação que estes, e sua lógica, têm com a ordenação da realidade cotidiana do grupo. Nesse âmbito, o 13 simbolismo relacionado a crenças em mau-olhados, superstições e azar marcam sua presença de reencantamento de um mundo onde o ascetismo apresenta-se constantemente. O significado, por exemplo, dos números ímpares na lógica classificatória do grupo é bastante sugestivo. O capítulo posterior dá continuidade a essa análise simbólica focalizando, porém, a hierarquia inscrita não apenas nos músculos, mas na pele dos fisiculturistas por intermédio de suas tatuagens. É ressaltado de que forma tais desenhos e inscrições possuem uma gramática própria traduzindo relações de violência simbólica específicas do grupo, demarcando papéis sociais relacionados ao gênero e à classe social. A seguir, é focalizada a função simbólica do cabelo, a importância do cabelo louro e dos pêlos alourados situados em determinadas regiões do corpo feminino e sua relação com a hierarquia estética das academias. Também é destacado o sentido positivo para os homens da ausência de pêlos, enquanto que para as mulheres a presença de tais itens pode, ao contrário, ter o mesmo sentido positivo. Por fim, o aspecto da violência simbólica traduzida em práticas físicas surge no último capítulo da tese com a análise do cultivo e da exaltação do estilo rústico, por vezes antiintelectual e violento, por parte destas pessoas que cultivam os músculos e o consumo da forma. O corpo utópico Atravessamos uma época na qual o culto à forma corporal ganhou amplitude inédita. Não é mais novidade: músculos definidos e inflados, tatuagens, piercings, implantes de silicone, botox, bronzeado artificial, cirurgias plásticas, estão constantemente presentes no cotidiano das grandes cidades e na mídia atual. Uma espécie de cultura do corpo – nos dois sentidos: da forma física e sistema subjetivo – vem se consolidando, ao menos em parte, nas sociedades complexas hodiernas, articulando padrões estéticos perseguidos por um crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu corpo. Estes, ao buscarem a construção de um corpo mais adequado aos ideais estéticos hegemônicos ligados à adoração física vigentes nestas sociedades, acabam 14 por construir também uma ética singular diretamente radicada na estética. Corpo como axis mundi. Este processo tem conduzido indivíduos e grupos de determinados extratos sociais a buscarem uma perfeição física – obviamente inalcançável - radicada na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, métodos milagrosos e consumismo de produtos da indústria químicofarmacêutica como esteróides e suplementos alimentares, além de vitaminas e “fortificantes” dos mais variados tipos (Luz, 1997; Del Priore, 2000; Pope, Phillips & Olivardia, 2000; Nascimento, 2003). A preocupação não apenas com a aparência, mas com a forma física, - com o entalhe muscular lapidado a ferro, suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias-, apesar de ser poduzida coletivamente, torna-se carregada de investimento individual. Homens e mulheres famosos anunciam na imprensa e nos programas de televisão, as transformações corporais que decidiram realizar lançando mão de recursos tais como personal trainners, nutricionistas, cirurgiões plásticos e outros profissionais do rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde – entendida aqui como “boa forma física”. De acordo com tal ideal, cada indivíduo é considerado responsável (e culpado) pela sua juventude, beleza e saúde: só é feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um deve buscar em si as imperfeições que podem - e devem - ser corrigidas (Goldenberg, 2002; Luz, 2000). Neste âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado que o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma pode significar, neste fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, disciplina e talento para vencer, galgando os patamares da hierarquia social. A saúde torna-se um mandamento com efeito normalizador e adquire características de uma utopia, entendida, segundo Sfez (1995), como projeto que supera, por sua natureza praticamente religiosa – dado seu caráter universalista -, a ideologia. Esta, embora pretenda universalidade é reconhecida pelos teóricos enquanto discurso particular, ou seja, discurso originário de uma parcela específica da sociedade, sendo portanto discurso parcial. No caso das práticas corporais ligadas primordialmente ao paradigma estético esta utopia está atravessada por representações de beleza ancoradas nos valores individualistas da cultura contemporânea. Assim, 15 “é a estética, mais que a racionalidade médica e seus modelos (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério sociocultural maior de enquadramento dos sujeitos para determinar se realmente são ‘saudáveis’, ou se precisam exercer alguma ‘atividade de saúde’, através do estabelecimento de padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do corpo que ao modelo doença/prevenção” (Luz, 2003: 5. Grifos da autora). Tais imperativos relacionados a estratégias sociais impelem um crescente número de indivíduos a lutarem contra sua genética e o processo inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma espécie de obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude. Tal obsessão pode ser percebida pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos lançados a cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas inovadoras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos implantes de silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, do consumo de substâncias químicas de tipos variados para diminuir a porcentagem de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em forma de cremes para atenuar as marcas de expressão. Este poder normalizador, padrão de atuação coletiva que leva inconscientemente milhões de pessoas a desejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético, paradoxalmente vai de encontro ao ideal de liberdade individual inerente à representação do individualismo da cultura ocidental1 (Luz, 1988; 2000; Dumont,1985). 1 -Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, modernidade e Ocidente, consideramos, da mesma forma que Duarte (1999:22), viável a utilização do ponto de vista comparado da hipótese de que participamos de um sistema de significação específico a que se pode chamar, tentativamente, de “cultura ocidental moderna”, que implica uma certa maneira de perceber e compreender os fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender fenômenos das outras culturas. 16 Este processo gerontofóbico e somatófilo no caso da sociedade brasileira pode apresentar características peculiares ressaltadas por diversos sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuilding 2amador, as brasileiras e brasileiros articulam recursos técnicos universais para otimizar partes específicas do corpo valorizadas pela sua cultura. Partes tais como nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e peitos nos casos masculinos, são “trabalhados” por exercícios com pesos para alcançar forma e volume adequados ao padrão estético vigente (Da Matta, 1996). De acordo com Malysse (1999; 2002), a atual expansão das técnicas de construção do corpo no Brasil – ao menos no Rio de Janeiro onde o autor realizou trabalho de campo – tendem a reiterar as profundas hieraquias sociais disfarçadas pela cordialidade das interações nas quais o contato corporal se realiza sem significar, contudo, proximidade social, de fato. Diz o autor: “no contexto do culto carioca ao corpo, este é o portador de valores de distinção social. No Rio, não é apenas a beleza em si que constitui o valor fundamental da distinção social, mas também a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua aparência...essa relação de espelho com o corpo confirma de maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca (...). Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente. Nesse contexto, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em direção ao 2 corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada e - O Bodybuilding ou fisiculturismo pode ser sumariamente definido como uso de exercícios progressivos de força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver uma musculatura específica. Este desenvolvimento é conseguido através de exercícios contínuos realizados com pesos acoplados a barras – que podem ser curtas ou longas – e/ou em máquinas projetadas para tal. O uso de tais pesos é controlado em conformidade com o objetivo estético do executante. Em geral, a quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo. Relacionado a tal prática existe todo um saber sobre nutrição, fisiologia e uso de remédios e substâncias diversas que circula nas academias de musculação. Este saber geralmente tem por base os conhecimentos científicos ligados à ciência médica ou biomedicina. Contudo, grande parte do conhecimento articulado pelos fisiculturistas e personal trainers é prático, ou seja, apreendido e produzido no cotidiano de tais instituições por intermédio da experimentação intuitiva ou por simples imitação. Assim, uma substância (remédio, 17 esteticamente orientada por imagens-norma ou por uma iconologia desse culto corpo.” (2002:131). Tocar-se em quantidade maior do que outros povos em espaços públicos e privados não equivale à proximidade social efetiva, como uma análise apressada poderia concluir. Paradoxalmente, o contato físico com o outro, neste caso, pode significar distanciamento hierárquico e instrumentalização egoísta da alteridade. Neste processo, o problema das representações sociais relacionadas à estética do corpo brasileiro aparecem ligadas à concepção de que este corpo encarnaria uma beleza inigualável, tida como produto nacional (inclusive “para exportação” como diz o senso comum) que não estaria associada diretamente às questões de reivindicação étnicopolítica3. Este aspecto alude a uma percepção falsa de democratização, radicada mais em um movimento estetizante, e acima de tudo mercadológico, que de fato político (Fry, 2001; 2002). Não havendo no Brasil vínculo direto entre práticas cosméticas e contestação às formas de opressão sexual ou racial, a questão da beleza surgiria enquanto produto final da miscigenação -, valorizada, neste caso. Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da mulher brasileira, com sua “cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas pernas grossas e seu andar malemolente” são produto da “mistura de raças”, tal mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida) um item indicativo da “democracia racial” brasileira, cultura supostamente capaz de sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente diferenciador: “não há beleza maior do que a da mulher brasileira”, diz o senso comum nacional. Esta ode à “beleza miscigenada” da brasileira (Freyre, 1986), - clichê suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum fisiculturista percebe ter funcionado no seu aprimoramento estético é repassado para todos aqueles que desejam alcançar tal aprimoramento. 3 - O trabalho de Bomfim (2002) sugere como prática comum à cultura nacional a manipulação circunstancial da identidade étnica denominada “etnia virtual”. Este processo ocorre quando indivíduos ou grupos manipulam uma suposta ascendencia minoritária – ciganos (no caso específico do trabalho da autora), negros, etc - com o intuito de construir um papel vantajoso em determinado contexto social. Este esteticismo populista pode ser claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para negros em universidades públicas no Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro -, situação na qual vários indivíduos considerados brancos se declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente, vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. N.o 244. 20/jan/2003. p.p. 36-7). Rezende e Maggie também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno, etc. , tornam-se atribuições que podem variar “de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala.” (2002:15). 18 de guia turístico que esconde o fato de as percepções estéticas serem produto da socialização -, é imagem dominante na representação da identidade nacional (Edmonds, 2002) radicada no senso comum; muitas vezes contrabandeado para os estudos sociológicos. Tal representação que concebe a beleza da brasileira como produto da miscigenação esquece que a grande maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas mundo afora pelo seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada têm de musas mestiças, ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou italianas: Gisele Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana Weickert, Ana Hickmann, etc. E é justamente tal padrão eurocêntrico de beleza feminina que impera na mídia e que domina, se não na morfologia ao menos na etnia, o campo das academias de musculação. Sendo instituições de classe média as academias pesquisadas expressam as idiossincrasias relativas às visões de mundo dos seus freqüentadores. Tais concepções a respeito das relações étnicas estão de acordo com o que foi percebido por John Norvell. O trabalho do autor coloca em xeque as conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas camadas médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca, destacando a ambigüidade presente no discurso deste grupo que usa de eufemismos para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se “claros”, “alvos”, “morenos claros”, e assim por diante, quando confrontados com suas características européias4. Como a representação do Brasil é a de uma nação totalmente miscigenada, não se fala de brancura – ao menos em discursos oficiais e “politicamente corretos” - como característica valorizada; assim os informantes evitam referir-se a si mesmos como “brancos”, mesmo quando descendentes diretos de imigrantes europeus com todas as características inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo, e quando o fazem, 4 é com - Farias (2002) escreve que no Brasil ser bronzeado é símbolo de status. A cor bronzeada, o estar moreno, ou ser moreno, com toda ambigüidade que tal termo possui (e por isso mesmo) é sinônimo de positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, este discurso é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época do verão. Em outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco, ao menos no discurso. 19 incômodo ou constrangimento. Apesar de tal constatação discursiva o trabalho de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a prática difere, algumas vezes, daquilo que é dito: “os cariocas de classe média observam que não partilham os valores culturais que constituem o núcleo da nação...em algum momento começam a falar sobre o passado de imigrantes de sua família...apontam, quase com melancolia, que não gostam particularmente de carnaval, festa tão brasileira e miscigenada de inversão, sexo e entrega. Muitas vezes saem da cidade nessa época, fugindo para locais elegantes de veraneio nas montanhas ou na praia. Confessam que não sabem dançar samba. Só as mulatas do morro sabem realmente sambar. Falam sobre o povão, as massas racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria, sua irreverência. Um advogado de classe média alta me disse: ‘Assim como você é gringo aqui, eu também’. Apontou para rua e explicou: ‘Meu nome não é da Silva. No uso gíria o tempo todo. Não sambo. Não tenho sangue negro.’ Este último ponto, relativo à ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora se descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista, essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles preferem fazer referências a parentes imigrantes específicos, e não a parentes negros, mulatos ou indígenas. Reconhecem que sua família de fato não é tão misturada quanto a norma brasileira, embora haja muito provavelmente um parente indígena ou negro ‘em algum lugar do passado’. Às vezes admitem que haveria tensão na família se eles ou seus filhos tivessem uma relação sexual pública com uma pessoa de pele escura. Embora a maioria dos homens aponte a mulata como padrão de beleza e alvo de desejo sexual no Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas parecem limitar-se ou a representações, como desfiles 20 carnavalescos ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição e casos secretos, por exemplo.” (Norvell, 2002:261). Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e conseqüentemente a mídia, articularem discursos sobre a beleza miscigenada que não condizem na prática com a realidade que elas mesmas reproduzem. Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e freqüentadores das academias de musculação em geral, tal processo é similar. O padrão de beleza apresentado nas representações dos indivíduos mostra-se eminentemente europeu. As representações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas algumas vezes, também a oprimí-lo. Sobre a tríade conceitual beleza – juventude 5 – saúde 6 um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez mais, empurrados ao consumo de práticas ligadas à boa forma (Del Priore, Op. 5 - A categoria juventude apresenta-se como portadora de ambigüidade que lhe é inerente pelo fato de não gozar de consenso entre os especialistas nem mesmo em termos de delimitação etária. Certo é que, nas sociedades complexas ocidentais, mais especificamente entre as camadas médias urbanas, ela é um signo que reúne um conjunto de categorias relacionadas ao corpo, à vestimenta e ao estilo de vida, ou seja, o conceito juventude assume o aspecto de produto, tendo um valor simbólico calcado em uma estética específica que gera, por usa vez, a produção de significativa variedade de bens e serviços que têm impacto direto sobre os discursos sociais que a identificam, e que também podem ser consumidos por adultos no intuito de estender no tempo sua capacidade de portarem tal signo de juventude. Este aspecto exclui do processo as classes baixas, posto que são os indivíduos de setores médios e altos aqueles que possuem acesso à educação de fato podendo postergar as responsabilidades inerentes à vida adulta, sendo, por isso, capazes de emitir por mais tempo os signos sociais da juventude. Assim, o signo juventude está praticamente restrito, ao menos no Brasil, às camadas média e alta, as quais possuem acesso à educação superior e à moratória na plenitude do termo (Reis, 2000). Nas academias de musculação é possível notar outra manifestação deste signo relativo aos indivíduos da chamada meia idade. Tais indivíduos, por já terem se desfeito das responsabilidades relativas à idade adulta – formação de família, criação de filhos, conquista de determinados bens, etc. – ou seja, por já terem passado, com relativo sucesso, por tal fase, rearticulam o signo da juventude, como se tentassem readquirir um tempo perdido. Desta forma, em academias de classes mais altas é comum, por exemplo, a presença de senhoras quase sexagenárias com corpos portando todos os símbolos relacionados à juventude. O mesmo pode ser dito dos homens. Certa vez, ao chegar a uma sala de musculação em uma academia da zona sul avistei, virada em minha direção de costas, uma loura alta vestindo colant vermelho. O corpo curvilíneo, definido e bronzeado chamava atenção. Repentinamente ela virou o rosto e percebi que, apesar do corpo jovem, suas feições pareciam ter nascido décadas antes do resto do corpo. Esta mulher lembrava uma pintura cubista a qual os retoques da cirurgia plástica haviam definido as caracterísiticas anacrônicas das partes do corpo. Imediatamente lembrei de um trecho do poema de Bandeira – poema no qual o autor ironiza outro trabalho de Castro Alves - chamado Teresa (1996:136): “... Quando vi Teresa de novo/ Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)...” 6 - A OMS define saúde como “estado de bem estar físico mental e social”, ou seja um estado ideal e, portanto, inexistente em sua plenitude. Na prática, a saúde surge como um paradigma polissêmico e polifônico, um “aparente monolito simbólico, até certo ponto ideológico em sua homogeneidade... [representando] um conjunto híbrido de imagens, representações, significados, diretrizes, e práticas sociais sintetizadas (ou sincretizadas)...” (Luz, 1999:2. Grifo da autora). 21 Cit.). Longe de desembaraçar-se dos esquemas tradicionais de dominação, o corpo hoje nas sociedades complexas, pode sofrer restrições gradativas levando indivíduos e grupos a construirem suas identidades associadas a tal tríade conceitual citada. As representações sociais atuais tendem a impelir os indivíduos e grupos a se colocarem a serviço da forma física ou, no mínino, a articular estratégias de interação tendo em vista tal demanda coletiva pela “boa forma”7. Tal controle, diferente do passado, possui a tendência a se articular por intermédio da mídia, da propaganda e do marketing. A proliferação de “corpos perfeitos” em revistas, outdoors, telas de televisão, cinemas e internet tecem uma trama cotidiana de agenciamentos coletivos que, respaldados no discurso sobre a saúde, leva indivíduos e grupos a construírem rituais de adoração à forma que colocam em risco as suas próprias vidas. Neste caso, todo o possível tende a ser investido no aperfeiçoamento e na manutenção da aparência. A forma oblitera o conteúdo, em uma sobrecarga sensorial, como pode demonstrar Samuel Fussel escrevendo sobre a época em era fisiculturista: “ Músculos, grandes, expressivos músculos – bem, eles são algo mais. Obviamente uma rápida olhadela no meu corpo enorme já me garante imunidade mesmo contra a criminalidade mais insana. E a beleza de tudo isso é que provavelmente eu nunca serei obrigado a utilizar realmente esses músculos. Eu poderia permanecer um covarde e ninguém saberia!” (Fussel, 1991:25). Ou ainda o depoimento de um fisiculturista brasileiro entrevistado por mim em : 7 - Essa parte do trabalho tem por objetivo destacar a dimensão de agenciamento coletivo presente nas normas e regras da construção do corpo nas academias de musculação nas quais impera uma ética estetizante. Contudo, tal abordagem não tem por objetivo generalizar as conclusões, posto que no próprio campo estudado apresentam-se estratégias, articuladas por indivíduos e grupos, de subversão desta lógica do esteticismo por vezes anti-solidário. Assim, se há por um lado, uma espécie de obediência e passividade por parte daqueles que tendem a seguir, um tanto irrefletidamente, as modas e costumes, por outro lado, sempre existem, mesmo em minoria, os que articulam práticas inventivas, estratégias de 22 “ Eu gasto muito para manter esse corpo...em alimentação e esteróides eu gasto por mês uns dois mil reais só com isso. Já vendi dois carros e uma moto para poder malhar, quando não tenho dinheiro arrumo de um jeito ou outro, vendo o que eu tenho, depois compro de novo... são fases, o que eu não deixo é de crescer, isso é a minha vida, nada vai me desviar disso, nem dinheiro, nem mulher, nem médico... sofri um acidente de moto em 96 e fiquei em estado grave, quebrei perna, costela, braço, fiquei entrevado no hospital, cortei minha cara toda... o médico me disse que eu não ia mais poder malhar pesado, disse que eu ia ficar aleijado; dois meses depois eu tava ‘malhando’ e seis meses depois da alta eu já estava bom, não adianta, não deixo de malhar, por nada.” (Marcos 28 anos. Personal trainer). Para que seja viável a busca de entendimento de uma instituição, seja ela qual for, é necessário “estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento da organização que a sustenta” (Wacquant, 2002: 31). Do mesmo modo, para que seja possível a busca de entendimento deste processo de adoração à forma presente nas sociedades complexas atuais se faz necessário elucidar o significado e o enraizamento das práticas corporais realizadas em academias de musculação e ginástica com todas as suas incessantes variações de práticas de exercícios que vem se espalhando de maneira crescente pelas grandes cidades. Examinar a trama das relações sociais e simbólicas tecidas no interior e ao redor das salas de exercícios de hipertrofia muscular é tarefa imprescindível para que tal processo de compreensão desta realidade seja possível. A musculação tornou-se, a partir da segunda metade do século XX, uma prática em expansão conferindo à massa muscular hipertrofiada o status de novo item da moda associado à crescente indústria de suplementos, esteróides, publicações especializadas e tecnologia de máquinas para subversão fazendo dobrar as forças das estruturas de dominação simbólica propondo novas práticas e 23 exercícios. Vasta parafernália do suor tem se desenvolvido ao redor do globo construindo os ditames da fibra muscular como um modo de vida (Courtine, 1995). Se na segunda metade do século XIX homens hipermusculosos eram símbolo do desvio, - em geral apresentados (na Europa e América do Norte) em freak shows - , na primeira metade do século XX passaram a representar um ideal relacionado àconstrução do caráter empreendedor e progressista tido como necessário para a manutenção da família e do ideal de nação, concepções caras às sociedades disciplinares (Foucault, 1988; Costa, 1989; Rabinow,1999). Atualmente, ostentar massa hipertrofiada e definida8 pode significar a adesão ao consumo e ao paroxismo da aparência. De meio para atingir um ideal, o corpo tornou-se, para muitos, um projeto. Revistas, TV, cinema, outdoors, reiteram a importância da imagem corporal e dos exercícios para a articulação do chamado marketing pessoal: corpo-empresa, corpomáquina, corpo-produto de consumo. Neste processo, o mercado do corpo amplia-se e as academias de musculação surgem como instituições onde uma parcela das camadas médias urbanas tenta aprimorar a sua forma em nome de um ideal de saúde, não menos respaldado pelo consumo. Desta forma, a musculação enquanto instituição – e portanto enquanto elemento que extrapola, e muito, a dimensão apenas biológica – é uma das oficinas na qual são forjados corpos. O local onde são elaboradas, experimentadas e sistematizadas as habilidades técnicas que permitem construir e conformar este material feito de sangue, músculos e desejos. A competência esportiva transmitida pelas academias está diretamente relacionada à estética (salvo raras exceções nas quais a musculação é usada como apoio ou fortalecimento muscular para a prática de outros esportes); e nisto ela possui uma função institucional que é extra-esportiva, pois as interações sociais realizadas em seu interior estão ligadas mormente ao culto da forma física. De fato, o bodybuilding resume-se a um conjunto de técnicas corporais (Mauss, 1974) e de aprimoramento da forma muscular, e as academias – umas mais outras menos- apresentam-se como espécies de representações (Certeau, 2002; Bourdieu, 2001; Luz, 1999; 2003). 24 santuários da estética física onde a performance, grosso modo, dita a norma alimentando o atual processo da construção da aparência. O fisiculturista (também conhecido popularmente no Rio de Janeiro como “marombeiro”9), espécie de ícone do culto à forma, síntese das tendências corpólatras, depila seu corpo, cuida de sua pele, aprende a caminhar de forma dramática ressaltando os seus detalhes musculares, treina poses no espelho, faz dieta, vai ao esteticista e fica deprimido quando engorda ou perde massa muscular. Sua vida, em geral, gira em torno da forma física sendo o olhar do outro a maior recompensa para ele que acredita ser o livre construtor de sua própria morfologia. É possível perceber tal aspecto no relato a seguir: “Quando tô na rua e todo mundo fica olhando espantado para mim por causa do meu tamanho é a verdadeira glória... não ser percebido é o fim! Se ninguém te olha, você é um qualquer, um ninguém, um nada...” (Carlos. 33 anos. Advogdo). Se, por intermédio da adoração à muscularidade, o fisiculturismo acaba por exaltar um paradigma de masculinidade que pode ser denominada hegemônica, por outro lado, subverte o cuidado de si, introduzindo práticas tradicionalmente femininas no cotidiano masculino ao transformar a forma física em objeto de sedução, de atenção e admiração, articulando uma espécie de feminização da masculinidade (Kimmel, 1998; Ramos, 2000), porém sem alterar a ética andrólatra da formação desta.Talvez estes homens sejam uma espécie de amostra da crescente onda de pressão estética que a sociedade atual tem feito incidir sobre a masculinidade. A mesma pressão para adquirir a forma física perfeita, que as mulheres sofrem há séculos, agora tem sido, cada vez mais, enfrentada pelos indivíduos do sexo masculino. Estes têm utilizado todos os tipos de recursos para construir uma forma adequada às 8 - Definir musculatura significa não apenas fazê-la crescer, mas diminuir a porcentagem de gordura para que as fibras musculares se tornem visíveis, por exemplo o abdômen deve estar em forma de gomos e isso apenas é possível se o indivíduo tiver baixo percentual de gordura e não apenas massa muscular. 9 - A palavra origina-se de maromba: vara que funâmbulo usa para se equilibrar na maroma: corda na qual caminha. Maromba pode significar também o(s) peso(s) com o qual o funâmbulo se mantém em equilíbrio. Como no fisiculturismo e halterofilismo são utilizadas barras com pesos (halteres) removíveis, ou não, nas extremidades, não é difícil perceber a associação das imagens do homem que anda na corda bamba, utilizando o peso da maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza os pesos para otimizar sua forma e força. Marombeiro, na cidade do Rio de Janeiro, tornou-se sinônimo de freqüentador assíduo de academias de musculação, o mesmo que “rato de academia” (Sabino, 2002: 139). 25 representações sociais10 de beleza: musculação compulsiva, uso de esteróides anabolizantes, produtos redutores de adiposidade, cirurgias plásticas, cuidado com pele e cabelos, tudo para cultivar uma imagem hipermasculinizada11. Neste processo de produção dos músculos, os marombeiros ou fisiculturistas servem também como cobaia para a indústria da forma. Assim (com licença da metáfora mecanicista) como os carros de fórmula 1 servem de experimento para a indústria automotiva aplicar nos carros de passeio seus avanços tecnológicos, da mesma maneira o corpo dos fisiculturistas serve para as indústrias farmacêuticas, de suplementos alimentares, de aparelhos de musculação e moda esportiva, como veículo de teste para a eficácia de seus produtos. Os saberes e as práticas sobre o corpo são produzidos e reproduzidos no cotidiano das academias. Tais técnicas do corpo estruturam e organizam um processo crescente de expansão do cuidado com a forma e a força física, organizando também as relações sociais dentro e fora das instituições de exercícios físicos (Sabino, 2003). Enquanto muitas instituições esportivas isolam os seus freqüentadores da rua, da violência social e da ação do crime organizado, apresentando-se, não raro, como o único caminho possível de ascensão social, como é o caso das academias de boxe nos guetos americanos (Wacquant, Op. Cit.) e dos clubes de futebol no Brasil, a academia de musculação ou de bodybuilding opera por lógica invertida. Em sua maioria pertencentes à classe média, médiabaixa urbana, é comum entre os frequentadores destes recintos repletos de pesos e máquinas o cultivo de uma certa admiração por um submundo do qual 10 - Representações sociais, coletivas ou culturais: segundo Durkheim, criador do termo “...maneiras de pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõe” (1972: 4); proseguindo: “designam a camada mais antiga, e também a mais estável e a mais implícita da visão de mundo dos indivíduos. Nas representações coletivas encontram-se categorias de classificação, imagens e símbolos que organizam as relações dos indivíduos entre si e com a natureza. Essa visão de mundo apresenta-se como natural não exigindo qualquer justificativa” (Bozon, 1995:1234). Ainda: “são esquemas de pensamento impensados que sob forma de um conjunto de pares de oposição binária [por exemplo, forte/fraco, alto/baixo, masculino/feminino, bom/ruim, rico/pobre, etc] funcionando como categorias de percepção, constroem as relações de poder do ponto de vista daqueles que afirmam sua dominação, fazendo-a parecer natural...(Bourdieu, 1990:34). 11 - Se há uma forte corrente que hipervaloriza a masculinidade construíndo uma espécie de androlatria na sociedade atual, existem reações nesta mesma sociedade, como aponta o trabalho de Osório sobre o movimento wicca. Nas representações deste grupo o valor atribuído ao que é feminino é sempre positivo, ao contrário do que se observa em sociedades tradicionais. Se, nestas sociedades, o corpo da mulher é perverso e impuro, na wicca ele é fonte de vida e criação e, portanto, sagrado (Osório, 2002). 26 eles não fazem parte ou que presenciam eventualmente através do noticiário sobre os crimes da cidade ou distante das janelas de seus apartamentos em condomínios. Se é possível alguém tornar-se um fisiculturista de competição hoje no Brasil, devido a expansão gradativa desta prática, em sua maioria tais indivíduos não buscam a profissionalização12, apenas organizam seu cotidiano por intermédio do sistema simbólico e prático da educação corporal e estética que confere um certo sentido às suas vidas. Se a representação deste sistema, construída por intermédio da mídia especializada, apregoa uma existência ilibada, independente de vícios, ligada à família e à ordem, na prática ocorre o inverso. Este paradoxo, como será possível perceber adiante, é parte da própria constituição do devir fisiculturista. Pois ao mesmo tempo em que o fisiculturista deseja ser aceito socialmente, estampando através de seus músculos disciplina e dedicação, cultiva um certo ar estigmatizado, de alguém que tem relação obscura com o lado marginalizado e misterioso da sociedade o que por vezes pode comportar uma certa romantização do crime. Obviamente, tal relação confere àquele que cultiva seus músculos um certo sentimento de poder, já que o estigma também porta um quantum de força simbólica que não é apenas negativa (Douglas, 1976; Goffman, 1983). Ou, para repetir Foucault, se o poder reprime e exclui disciplinarmente ele também produz: “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (1993:8). 12 - A profissionalização efetiva do fisiculturismo não existe no Brasil. Os atletas mais famosos (José Carlos Souza Santos, tetracampeão mundial, por exemplo) são internacionalmente conhecidos como amadores e não recebem prêmios em dinheiro – o campeonato norte-americano Mister Olympia paga ao vencedor o prêmio de 1 milhão de dólares – porém, podem receber patrocínio de redes de lojas de suplementos alimentares (o atleta citado recebe apoio da Probiótica) e fazer propaganda de produtos ligados ao fisiculturismo e a outros esportes. 27 O lado marginal e estigmatizado muitas vezes admirado pelos fisiculturistas é reforçado pelo contínuo uso das drogas (esteróides anabolizantes) que são inerentes à própria construção de pessoa dos frequentadores assíduos das academias. O uso ritualizado de tais substâncias é parte integrante da existência daqueles que desejam se integrar ao grupo; embora os próprios freqüentadores não assumam tal fato diante de indivíduos estranhos ao seu grupo social. Por serem substâncias proibidas por lei, a construção de pessoa do fisiculturista envolve um sólido e crescente relacionamento com redes de tráfico de substâncias químicas. Estas surgem atualmente como novas drogas no cenário mundial. 28 Capítulo I O surgimento do Body Building “É a sociedade inteira que ensina a seus membros que, para eles, só existe oportunidade, no seio da ordem social, à custa de uma tentativa absurda de saírem dela” Lévi-Strauss O fisiculturismo, ou bodybuilding, originou-se na Europa – mais especificamente na Inglaterra Vitoriana 13 - do final do século XIX, e pode ser percebido como representando um dos possíveis desdobramentos, por um lado, do processo civilizatório destacado por Elias (1990;1993) em sua obra, e por outro, pelo surgimento dos processos disciplinares e biopolíticos destacados por Foucault (1993;1997). Seu surgimento coincidiu com o advento da fotografia e o fortalecimento da indústria cultural, a qual distribuiu gradativamente as imagens dos corpos musculosos (e as crescentes técnicas para transformá-los em tais) para uma audiência cada vez mais espalhada pelo mundo. Dizer que o surgimento do fisiculturismo significou um desdobramento do que Elias designou como processo civilizatório significa repetir, com o autor, que a esportificação das atividades de luta existentes na Idade Média – maneiras populares, e violentas, de resolver conflitos, assumiram a partir de um determinado período, uma forma estilizada. É necessário destacar, ao 13 Os termos vitoriano e eduardiano referem-se ao período no qual os monarcas ingleses Rainha Vitória (1837-1901) e Rei Eduardo VII (1901-1910) exerceram seus reinados. O termo vitoriano pode referir-se, além de outros aspectos, à arte e à arquitetura que grassou no último período do reinado da rainha Vitória permanecendo durante o breve reinado de Eduardo VII. O estilo foi fortemente influenciado pela austeridade e pelo interesse em torno do classicismo greco-romano que levou à promoção das grandes excavações arqueológicas na Grécia e na Itália. Apesar da inspiração classicista, o estilo vitoriano foi marcado pela busca de maior opulência e ornamentação se comparado ao prévio período “clássico” da era napoleônica. Neste contexto, o fisiculturismo insurgente na Inglaterra mostrou-se como uma tentativa de retorno à estética atlética da estatuária grega. 29 menos brevemente, as mutações pelas quais passaram as práticas de atividades físicas para melhor compreensão da gênese destas, no caso específico o bodybuilding, e seu lugar em alguns contextos sociais hodiernos, sem esquecer, contudo, que não é possível divorciar a análise do esporte e das práticas corporais do contexto social no qual estão inseridos. Tais práticas apenas fazem sentido quando relacionadas com os sistemas simbólicos que representam e que as constituem e com outras dimensões da sociedade. A princípio é preciso delimitar, como fizeram Elias e Dunning (1994), as singularidades entre jogo e esporte. O jogo apresentar-se-ia como universal, presente em todas as culturas, atuais ou não. Seria prática tradicional, existente em todas as sociedades ao longo do tempo e do espaço. Já o esporte é o produto de uma descontinuidade produzida no ocidente europeu, que – para usar um certo acento metodológico weberiano – racionalizou as práticas corporais, regrando-as, regulando-as, administrando-as, buscando delas estirpar a violência presente nessas atividades. O esporte é, portanto, moderno; produto da modernidade. Não se pode dizer, por isso mesmo, que sua existência tenha sido sustentada como prática universal. Ao menos em seu período inicial, ele seria a liberação controlada das emoções, tentativa de amenizar violentas disputas que, não raro, estariam presentes nos jogos guerreiros ou rituais das sociedades européias tradicionais. A existência de regras escritas e uniformes codificando as práticas, a autonomização do jogo e, conseqüentemente, do espetáculo do jogo, além de severas punições contra atos violentos, seriam algumas das características constituitivas das práticas esportivas surgidas na modernidade (Idem ; Chartier, 1994). Se existe uma disposição psico-social relacionada às práticas de jogos presente em todas as sociedades e culturas ao longo do tempo e do espaço (Huizinga, 1988), a prática esportiva, embora relacionada diretamente aos jogos tradicionais, destes se destaca pela sua singularidade. O esporte, produto da disciplinarização e racionalização, transformou o jogo em prática distinta, com configurações específicas, em outras palavras. Tal racionalização da competição e disciplinarização dos corpos proporcionou o surgimento dos 30 campos esportivos com toda atual profissionalização que lhes é característica, seus locais (ginásios, academias, clubes e estádios), saberes e tempos específicos 14 . Ao calendário religioso e folclórico dos rituais coletivos, o esporte passou a opôr, ou conjugar, um calendário próprio de competições nas quais as datas passaram a existir em consonância com os ritmos anuais de cada disciplina. A implantação e a arquitetura dos estádios, ligada também à criação de normas para gestão da intimidade dos indivíduos, relacionou-se ao propósito insurgente de gestão populacional (Foucault, 1987; Costa,1989) e à extração do máximo de lucro possível do espetáculo. O calendário esportivo, então, passa a depender das exigências da propaganda, do ritmo do trabalho e dos hábitos de lazer característicos do capitalismo em consolidação (Elias & Dunning, Op. Cit.). Surgem regras fixas que visam permitir a realização uniforme e potencialmente universal das práticas esportivas: “A história de cada esporte é portanto, fundamentalmente, a história da constituição de um corpo de regulamentos cada vez mais detalhados e precisos, que impõem um código único às maneiras de jogar e de competir que eram, anteriormente, estritamente locais ou regionais” (Chartier, Op. Cit.:16). A diferença entre o esporte e o jogo tradicional se manifesta, por um lado, por regras uniformes que suplantam progressivamente os usos locais e circunstanciais dos jogos tradicionais, por outro, pela existência de especialistas que têm a função de constituir um direito específico para reger as práticas esportivas. Segundo Elias e Dunning, é a partir destas regulamentações que dois aspectos fundamentais podem ser compreendidos: a redução do nível de violência tolerável nos enfrentamentos físicos, e o desenvolvimento de uma ética da lealdade que não 14 - O exemplo do futebol popular (folk football,soccer), praticado na Inglaterra antes do século XIX, é sugestivo deste processo de mutação jogo-esporte. Tal prática era realizada através do enfrentamento de duas identidades sociais previamente definidas como a residência em uma mesma comunidade citatina ou domínio senhorial, o exercício de uma mesma profissão , o pertencimento a uma grupo de ‘jovens’ – ou seja, celibatários possuindo mais ou menos a mesma idade – ou o grupo dos homens casados. O jogo reproduzia, portanto, as perspectivas que lhe eram anteriores e exteriores, e que organizavam os rituais festivos. Tais jogos inscreviam-se nos calendários das festas religiosas e folclóricas, sendo, contudo, negociados conforme as partes em questão. Desprovidos de um tempo próprio, independente de outros eventos, eles se realizavam sempre aos domingos após as missas não tendo também espaço específico, definitivo, para ser realizado. Qualquer espaço comunitário podia ser utilizado para o jogo que não apresentava regras uniformes, fixas e demarcadas. As convenções que permitiam o jogo eram rudimentares, locais e costumeiras: “de uma região a outra, de um vilarejo a outro, de uma partida a outra, todos os elementos podiam tornar-se diferentes: o número de participantes, a duração do jogo, as regras aceitas, os objetos utilizados, os critérios que decidiam a vitória,etc. ” (Chartier, 1994:15). 31 separa o desejo de vitória do respeito às regras e do prazer do jogo como objetivo final. Para os autores, esse processo de descontinuidade social demonstra a transformação das estruturas da personalidade possibilitando o relaxamento dos controles emocionais sem deixar totalmente livre os movimentos espontâneos e perigosos das pulsões e dos afetos, “descontrole controlado das emoções” (Op. Cit.: 18). O prazer da prática ou do espetáculo esportivo coloca em jogo corpos que disputam e pelejam, devendo realizar tal processo de maneira respeitosa para com a vida; mesmo as peripécias e demonstrações de lutas severas não devem passar de um simulacro das batalhas violentas. Esta excitação bem controlada - batalha controlada em um espaço projetado – ligada às práticas esportivas, supõe duas condições: primeira, o aparecimento de práticas de lazer com características miméticas permitiu o relaxamento, a liberação do controle ordinariamente exercido sobre as emoções; controle diretamente equacionado ao mundo opressor do trabalho no capitalismo e da existência pública que instaura a separação entre a vida privada e esta. Nos espaços de disputas esportivas seria permitido expressar e dar vazão às emoções que cotidianamente deveriam ser censuradas e administradas para que a manutenção da ordem social fosse possível. Desta forma, o surgimento das tecnologias esportivas com todo seu saber que acaba por constituir a ciência do esporte pode ser visto, também, em uma ótica foucaultiana, como mais um dispositivo da insurgente sociedade disciplinar que se consolida a partir do século XVIII na Europa, ou ainda, como mais um processo de racionalização – entendido enquanto técnica e cálculo administrativo da vida - inerente às sociedades européias, de acordo com Weber (Foucault, 1997; 1993; 1988; Weber, 1992;1995). Ao conceito de processo civilizatório de Elias poderia ser somada a idéia de disciplinarização de Foucault e crescente racionalização do mundo da vida de Weber. A segunda condição sustenta que esta admistração dos afetos violentos pela tecnologia esportiva só se faz viável por intermédio da interiorização dos sistemas simbólicos de constrangimento que se traduzem em mecanismos de autocontrole ligados ao surgimento de uma nova economia emocional. Os estádios e os ringues nos quais os dispositivos de autocontrole 32 comandam de maneira universal e regular todos os comportamentos dos participantes e as liberações emocionais surgem como instâncias nas quais a sociedade pode efetuar certas atividades de expressão de disputas sem colocar em perigo um retorno da agressividade destrutiva e da violência gratuita. Do duelo sangrento às partidas esportivas, o processo de disciplinarização tem por objetivo a pacificação do espaço social, embora parcial e tendenciosa, assegurando o monopólio sobre o uso legítimo da força pelo Estado, transferindo para o interior do indivíduo os constrangimentos que deveriam evitar os confrontos sangrentos e abertos; dispositivo interiorizado de censura efetivado em práticas e comportamentos coletivos e individuais (habitus) que não tem mais por base a autoridade exterior dos constrangimentos punitivos15. O processo civilizatório surge, também, como um processo de esportização: mudança que transforma os passatempos e as atividades de enfrentamento tradicional, sem regras fixas nem restrições severas contra uma possível violência anômica, em práticas estilizadas e controladas por regras universais. Este processo poderia ser definido como a tentativa de codificar normas com o objetivo de suspender o perigo contra os corpos e a vida produzindo relaxamento controlado das disposições emocionais com a exclusão definitiva da violência destrutiva do adversário. Uma prática esportiva que não condiz com tal definição estaria fugindo dos parâmetros da estilização da violência e, possivelmente, representando um retrocesso no controle da violência anômica, ou como Elias diria, um “processo de descivilização” (Op. Cit.:59. Grifo nosso). O surgimento do sport (e do processo de esportificação) teve início na Inglaterra 15 durante o século XVIII entre a aristocracia do campo e a gentry. - Elias em 1939 publicou sua tese (Über den Prozess der Zivilisation. Sociogenetische und psycogenetische Untersuchungen, 2 tomes, Bâle, 1939) sobre o processo civilizatório destacando que “as normas sociais definidoras dos comportamentos e das sensibilidades, mais precisamente nos altos círculos da sociedade, começaram a mudar radicalmente a partir do século XVI , e em uma direção bem precisa: elas passam a ser mais estritas, mais diferenciadas e onipresentes, mas também mais iguais e mais moderadas, posto que elas eliminam o excesso de auto punição como a autocomplacência. Esta mudança é traduzida pelo termo de ‘civilidade’, lançado por Erasmo de Roterdã, que em inúmeros países simbolizará um novo refinamento que dará mais tarde nascimento ao verbo ‘civilizar’... esta mudança do código de sensibilidades e dos comportamentos está ligada ao processo de formação do Estado, e, em 33 Nessa época, o termo não estava limitado apenas aos esportes de participação, mas incluia os jogos competitivos que tinham o objetivo de conferir distração e prazer aos espectadores, o esforço físico principal era realizado mais pelos animais do que pelos competidores humanos. O surgimento destas práticas coincide com o surgimento e fortalecimento do Estado e a conseqüente tentativa de pacificação do espaço social caracterizada pelo monopólio da violência legítima por este mesmo Estado. O esporte apresenta-se como parte de toda uma conformação social na qual a tentativa de organizar e reger o espaço público se consolida; ele torna-se possível primeiro na Inglaterra devido ao fato de a sociedade inglesa expressar tal esforço ordenatório. Sua configuração política, calcada no regime parlamentarista, apresenta já uma estilização das lutas sociais com tendência a amenizar o confronto violento 16. No regime parlamentar, as lutas não violentas obedecem a regras estabelecidas representando efetivamente o nível de tolerância da tensão que caracteriza a cultura inglesa na época, seu habitus social (Elias, Idem ). A similaridade dos jogos políticos do regime parlamentar com os jogos esportivos não é acidental. De fato, segundo Elias, no início do século XVIII na Inglaterra se chamará sport às antigas assembléias de Estado – a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, representantes das pequenas particular, à sujeição das classes guerreiras a um controle mais estrito pela ‘curialização’ dos nobres nos países da europa continental” (1994: 27). 16 - A formação do sistema parlamentar na Inglaterra e sua capacidade de moderar as disputas pelo poder data da época do rei João Sem-Terra (1199-1216). Após ser derrotado em conflitos com a França e com o papado, João Sem-Terra foi obrigado, pela nobreza inglesa, a assinar um documento denominado Magna Carta que limitava sua autoridade. Ele não podia, por exemplo, aumentar os impostos sem a autorização dos nobres. A Magna Carta estabelecia que o rei só podia criar impostos depois de ouvir o Grande Conselho, corpo político então formado por condes barões e bispos. Esta disputa entre nobreza e realeza foi acirrada no reinado do filho de João Sem-Terra, Henrique III (1216-1272) que além da oposição da nobreza enfrentou forte oposição popular. Neste período, o nobre Simon de Monfort liderou uma revolta da aristocracia e, para conseguir adesão popular, convocou um Grande Parlamento que reunia, além do clero e nobreza, representantes da burguesia insurgente. No reinado de Eduardo I (1272-1307), a existência do Parlamento foi oficializada e continuou a se fortalecer como instrumento mediador durante o reinado de seus sucessores. Em 1350, o Parlamento foi dividido em duas câmaras : a Câmara dos Lordes, formada pelo alto clero e nobreza, e a Câmara dos Comuns, formada pelos cavaleiros e burgueses. Desta forma, desde cedo na Inglaterra o rei teve sua autoridade restringida pelo surgimento deste instrumento mediador denominado Parlamento. Para Elias (Op. Cit), o surgimento da gentry, classe de proprietários de terra que não pertenciam à alta nobreza e que não eram representados pela Câmara dos Lordes, mas pela Câmara dos Comuns, teve conseqüências consideráveis para a repartição do poder político na Inglaterra a partir do século XVIII. Esta classe, ao disputar o poder com os outros extratos dominantes da época, proporcionará a articulação de estratégias políticas no Parlamento que permitirão a “pacificação das classes superiores inglesas” e, simultaneamente, “a transformação dos antigos passatempos em passa-tempos do tipo esportivo” (: 39). 34 seções privilegiadas da sociedade – que constituiam o principal campo de batalha onde se forma o Governo. A articulação do poder pelos partidos através das regras do jogo político imposta a partir do voto de assembléia ou de uma eleição pública representaram as condições fundamentais para a constituição do regime parlamentar tal como surge na Inglaterra do século XVIII. Tal organização não seria viável se as facções antagônicas não tivessem a mediação do instrumental político para amenizar suas hostilidades, e mesmo ódio, controlando – através da violência autorizada (simbólica) – seus enfrentamentos: “ os dirigentes não abandonariam de bom grado aos seus rivais os imensos poderes que lhes conferiam as funções governamentais sem a condição assegurada de que eles mesmos – seus inimigos políticos – uma vez empossados, não se empenhariam em lhes atacar, perseguir, ameaçar, exilar, aprisionar ou matar” (Ibidem :36). Essa administração das práticas políticas permitiu legalmente a formação do campo político parlamentar definindo os elementos principais para a formação, a manutenção e o possível aprimoramento do jogo partidário da mesma forma que o campo esportivo articulou regras administrativas para a produção dos espetáculos permitindo uma estilização dos enfrentamentos violentos. O esporte, a princípio, se consolidará como atividade nobre, ou melhor dos nobres. A alta sociedade dispondo de grande capital social e simbólico se empenhará em práticas como a caça, a equitação, o tênis, o pólo,mais tarde as corridas de automóvel. Além de afirmar o status social do desportista, as práticas do esporte consolidavam uma ética na qual as afirmações das disposições e dos valores de classe estavam presentes e se colocavam como exemplo a ser seguido pelas classes inferiores. O fair-play apresenta-se como o conceito que subsume a concepção de que as atividades esportivas devem 35 ser gratuitas e desinteressadas, nas quais a maneira de ser, de aparecer e de fazer contam muito mais que a vitória. O gosto pelo risco, o culto à proeza e o desprendimento relacionado ao tempo, que deve sempre estar livre para treinos e práticas, representam uma condição aristocrática singular. Os meios (a exibição da prática) constituem os próprios fins. Ao contrário do esporte atual, reduzido a uma prática profissional e mercantil, e por isso mesmo plenamente dependente da vitória, o esporte dos séculos XVIII e XIX davam prioridade ao savoir-vivre e ao savoir-faire e não à busca da vitória a todo custo. Eram, como prática da nobreza, uma ritualização, estilização da existência (Saint-Martin, 1989). Paralela a essa concepção, surgia outra relacionada às atividades administrativas dos Estados preocupados com a saúde de sua população e, por isso mesmo, buscando constituir uma pedagogia do corpo disseminada nas escolas através da Educação Física visando gerir a vida, processo que Foucault denomina biopolítica. A prática de exercícios físicos, relacionada a esta educação física, terá por objetivo formar o caráter do indivíduo mais do que sua inteligência, educá-lo, mais que instruí-lo, incitá-lo a cultivar a coragem e a força e, sobretudo, a iniciativa mais que o saber. Enfim, formar um corpo forte com caráter obediente e dócil (Foucault, 1987). É uma educação de certa forma relacionada às instituições militares do Estado Moderno. Neste aspecto, há, portanto, dois tipos de ethos relacionados às práticas corporais: 1) aquele relativo à nobreza e sua ritualização da tradição; 2) o referente à burguesia e à manutenção de corpos institucionalizados e funcionais17. Para os nobres, o esporte não era apenas uma forma de inculcar nos jovens os valores aristocráticos que, nesta altura das práticas esportivas, estão inscritos, senão nas regras que regem explicitamente as práticas, ao menos nos princípios codificados que definem a maneira de praticar. O esporte permite acumular e articular o capital social que é transmitido por herança, reproduzindo a condição social no qual foi 17 - De acordo com Luz (1994; 2003 a), tais atividades historicamente conhecidas como ginástica, têm uma tradição milenar na cultura ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana durante as últimas décadas do século XIX e no século XX sob a tutela do Estado. Associada à prática do esporte, a ginástica moderna nasceu sob o signo do paradigma saúde/ vitalidade, estreitamente ligada ao modelo higienista (posteriormente eugenista) do último terço do século século XIX, recuperação moderna nacionalista da concepção latina do mens sana em corpore sano. 36 produzido. Enquanto a nobreza olha para a tradição e sua reprodução no presente 18, a burguesia fita o futuro, preocupando-se com o fortalecimento do contingente humano de seus Estados. Assim, há uma relação entre as transformações de práticas e de consumo de esportes (invenção ou importação de esportes ou equipamentos novos) e as transformações da demanda social e dos estilos de vida (Bourdieu, 1981). Também uma terceira corrente de práticas relacionadas ao corpo, além das destacadas acima, deve ser demarcada: aquela ligada aos tradicionais exercícios circenses, provavelmente com existência anterior às práticas esportivas da nobreza e a ginástica promovida pelo Estado burguês. De fato, os espetáculos de força e destreza física faziam parte das apresentações dos saltimbancos nas feiras medievais. Tais apresentações se consolidaram institucionalmente nas chamadas práticas circences - circos de lona. No século XIX, tais apresentações deram origem a outra vertente do espetáculo: os freak shows. Apresentações de extravagâncias nas quais a força de alguém ou sua característica física fora do normal ou, ainda, a sua incrível flexibilidade era demonstrada para um público específico. Como toda prática supõe um saber determinado, os exercícios no trapézio e as performances físicas foram constituídos pelo aperfeiçoamento repassado de geração para geração de artistas de circo. Tais saberes e práticas, distante do processo de esportificação empreendido pelas classes dominantes, acabaram migrando para as práticas de ginástica que vieram a conformar o que veio a se tornar a Educação Física (tornada depois ensino superior) aplicada à busca de eficácia dos exércitos e depois à busca da otimização da saúde dos cidadãos empreendida pelo Estado Moderno (Arnaud, 1991; Andrieu, 1992). A prática do fisiculturismo finca suas raízes nestas três correntes. Em primeiro lugar, se o esporte é a estilização dos combates, os torneios de fisiculturismo (e 18 - Este “espírito” de tradição, por exemplo, é que engendrará a fundação dos clubes. Para os nobres do século XIX na europa ocidental, a prática de esportes como o golf, a equitação, o polo , etc. , se constituirá como meio de trocas mundanas, bailes, jantares, festas, soirées, rallyes, etc., conjunto de atividades “gratuitas” e “desinteressadas” que possibilitam a socialização escolhida e, através desta, o aumento do capital social. Neste processo, serão criados os clubes organizados em torno de uma atividade esportiva. Assim, por exemplo, na França em 1834 é criado o Jockey Club com o título de Cercle de la Societé d’ Encouragement pour l’amèlioration des races des cheveaux en France; em 1858 Le Yatch 37 inevitavelmente a musculação) constituem-se como a estilização da estilização, “puras lutas de aparência” (Courtine, 1995:83), simulacro do simulacro, posto basearem-se apenas na apresentação estética, sem nenhum enfrentamento físico concreto. Em segundo lugar, seus precursores, no final do século XIX, exaltavam a funcionalidade da prática de exercícios com peso para o aperfeiçoamento da saúde populacional, dos exércitos e dos trabalhadores. Terceiro, os torneios e apresentações de bodybuilding são produtos diretos dos freak shows já transformados em espetáculos para as massas no final do século XIX. Nestes circos de horrores, homens fortes, gigantes exóticos apresentavam seu tamanho e força descomunais para uma platéia ávida por novidades consideradas bizarras19 (Bogdan, 1994; Courtine, 1995). Assim , o campo20 do fisiculturismo originou-se de outro campo, o das artes e espetáculos circenses – estes por sua vez originaram-se dos saltimbancos medievais. Heróis Fundadores As publicações sobre a história da musculação e do fisiculturismo (ou culturismo como algumas apresentam) sofrem de uma tendência comum aos escritos realizados por indivíduos pouco afeitos ao trato com as ciências sociais: tendem a criar super-heróis descolados do contexto histórico-social, como se fossem verdadeiros prometeus, resolvidos a doar aos simples mortais, Club; Le Cercle des Patineurs em 1865 e assim por diante. Locais que tinham por objetivo, entre outros aspectos, constituir espaços reservados para associação de nobres e notáveis (Saint-Martin, Op. Cit.). 19 - O artigo de Bogdan (1994), além de apresentar a gênese social da categoria de “monstro” no século XIX – indivíduos com aparência e capacidades incomuns, – indica a organização de um comércio de tais indivíduos e suas imagens relacionado à formação do campo do show business na Europa e nos EUA . De acordo com o autor, empresários construíram vários discursos – na maioria das vezes ficitícios e repletos de hipérboles – sobre a origem e as capacidades dos “monstros”, não raro apelando para o imaginário pseudo-científico, radicado no evolucionismo social, que representava tais indivíduos como resquícios de trogloditas ou selvagens de terras inóspitas. 20 - O conceito de campo criado por Bourdieu pode ser entendido como um sistema social constituído por termos em “relações de força e monopólios... lutas e estratégias, interesses e lucros”. Tais características podem ser consideradas como sendo “ invariantes que revestem formas específicas” de conformações de campos. Assim, o “campo é um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo nessa luta é o monopólio da autoridade [no campo determinado] definida de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou... o monopólio da competência... compreendida enquanto capacidade de falar e 38 por conta própria, o saber pertencente aos deuses. Tais trabalhos eivados da ideologia individualista do self-made man esquecem que cada vida, apesar de toda sua singularidade, deve ser vista como expressão da história social representativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo, “síntese da tensão entre liberdade individual e o condicionamento dos contextos estruturais” (Goldenberg, 1997:37). Cada indivíduo é o produto individualizado e ativo de uma determinada sociedade localizada no tempo e no espaço. É a reapropriação singular do universo social e histórico que o envolve (Bourdieu, 2001; Elias, 1994; Goldenberg, 1995; 1997; 2001; Denzin, 1984; Certeau, 1982). Analisar, mesmo que brevemente, o processo de surgimento do campo do fisiculturismo é perceber as modulações entre o mito e a história, como esta última pode ser utilizada como teoria-mito para justificar e reproduzir práticas sociais; isso se não for percebido o fato de que o indivíduo se faz por suas atividades e pelas condições que dispõe para realizá-las no contexto social em que existiu (Elias, Idem ). Friederich Wilhelm Müller, nascido na Prússia em 1867, é considerado por todas as publicações sobre fisiculturismo e musculação como o pai do body building. Este homem é tido, por aqueles que escrevem sobre o tema, como sendo o primeiro fisiculturista famoso de que se tem notícia. Mais do que isso, a ele é creditada a base da organização das regras do fisiculturismo tal como é praticado hoje, tendo retirado do âmbito circense e dos freake shows a prática do espetáculo dos chamados “homens fortes”. Müller, que – para a época - era grande e musculoso desde os 16 anos devido os exercícios realizados como artista de circo, adotou desde cedo o nome artístico de Eugen Sandow. Na década de 1880, o circo no qual trabalhava viajando pela Europa, foi à falência em Bruxelas, deixando-o então desempregado e sem rumo específico. Nesta cidade, Sandow conheceu um pequeno empresário de nome Oscard Attila (nascido Louis Dularcher em 1847). Sendo homem de negócios e atleta, Attila realizava apresentações profissionais de exibição de força também em arenas circenses e em espetáculos que ele mesmo promovia. Obcecado por exercícios físicos, havia, de forma inovadora, transformado uma sala de de agir legitimamente (isto é de maneira autorizada e com autoridade), socialmente outorgada a um 39 concertos musicais em uma espécie de academia de musculação da época. Percebendo que Sandow tinha um físico propício, já trabalhado pelos exercícios no picadeiro, para levantar pesos, resolveu treiná-lo com o objetivo de transformar seu corpo de ginasta das lonas em um corpo de levantador de pesos, dando-lhe também emprego de atendente em seu salão de cultura física em Bruxelas. Com o tempo, Sandow e Attila passaram a aprimorar os instrumentos de exercícios do salão, criando, entre outros itens, uma barra (barbells) com duas bolas ocas de metal nas extremidades que podiam ser preenchidas com areia ou esferas de chumbo com o objetivo de graduar o peso. Este invento tornou-se o precursor das atuais barras longas com anilhas (pratos de ferro) descartáveis (Chapman, 1994; Emery, 2003). Após intermitente preparação no salão-academia Sandow e Attila resolveram organizar uma espécie de empresa de espetáculos físicos e passaram a exibir-se em várias cidades européias com números de força desafiando oponentes e vencendo-os. Talvez seja esse o marco inicial da indústria do músculo. Com isso, a situação financeira dos dois começou a melhorar. Em 1889, os dois parceiros de exibição de força se separam, mantendo, porém, contato freqüente um com o outro. Em Veneza, Sandow foi convidado para posar para um artista plástico americano chamado Aubrey Hunt que o pintou em um lenço, hoje de posse do mais influente empresário do fisiculturismo Joe Weider. Mas o que deve ser ressaltado neste acontecimento é que Sandow, posando como modelo para o artista, percebeu que além da apresentação da força física, a exibição estética dos seus músculos – e não apenas as demonstrações de destreza e força bruta - também poderia interessar às pessoas, sendo, portanto, um possível meio de promoção econômica. Passou, então, a imaginar uma competição estética na qual a harmonia muscular, e não a força física, como era realizado até então, pudesse ser avaliada. Neste ínterim, Sandow continuava sendo desafiado para disputas de força por aqueles que tentavam amealhar alguma fama e uns poucos proventos buscando vencê-lo. Fixando-se em Londres acabou por aceitar um agente determinado” (Bourdieu, 1976 : 88-9. Grifos do autor) 40 desafio de dois gigantes da época que ofereciam 500 libras esterlinas para aquele que conseguisse vencê-los em um embate. A força dos dois nunca havia sido superada por ninguém, até Sandow aparecer. Após ter vencido os concorrentes e aumentado ainda mais sua fama entre os ingleses, Sandow passou a apresentar-se em competições de força, além de exibir-se em poses estéticas para o público. Durante quatro anos ganhou a vida e crescente fama desta maneira (Chapman, op. Cit. Emery, Op. Cit.). Em 1893, Sandow viajou para os Estados Unidos para tentar ampliar sua carreira de atleta e artista, fracassando, contudo, no empreendimento. Retornou para a Alemanha conhecendo um dos mais importantes empresários de espetáculos da época Florenz Ziegfeld. Percebendo o sucesso das apresentações de Sandow entre o público feminino, Ziegfeld resolveu investir em tais apresentações promovendo turnês mundiais nas quais seu astro era exibido apenas com uma sunga ou folha de parreira fazendo poses que destacavam seus músculos. A confirmação do sucesso entre as mulheres se realizou quando o empresário resolve levar Sandow para apresentações nos Estados Unidos por ocasião da Exposição Mundial Comemorativa do Descobrimento da América, realizada em Chicago. Ziegfeld alugou um teatro e convidou o público para assistir “The World’s Most Perfectly Developed Man”, “A Living Greek Statue”. Na época, as apresentações habituais de homens fortes nos EUA eram realizadas com homens vestidos em peles de leopardo. Ziegfeld e Sandow empreenderam outro tipo de demonstração física: Sandow invadiu o palco vestido apenas com uma sunga. O público feminino manifestou-se ruidosamente parecendo ir à loucura (Gianolla, 2003)21. O êxito da apresentação foi grande, o que fez com que Sandow e Ziegfeld empreendessem uma turnê não só pelos EUA, mas também através do Canadá. Em São Francisco, Sandow chegou a apresentarse lutando contra um leão – desdentado e dopado. Após anos percorrendo os 21 - Necessário se faz notar que tais apresentações parecem representar um relaxamento das interdições puritanas que censuravam a exposição da nudez corporal permitindo acesso à cultura de massa do espetáculo estético. Tal ambigüidade era respaldada pelo discurso da busca de realização do ideal da estatuária grega. Tal discurso servia como álibi estético para a apresentação dos corpos nus contornando as resistências puritanas. Contudo, tais resistências não cederam de imediato aos apelos da nudez. Mac Fadden, por exemplo, enfrentou inúmeros obstáculos e brigas com as ligas americanas de virtude e em particular com Anthony Comstock, secretário da Sociedade para a Supressão do Vício, quando quis organizar em 1904, no Maddison Square Garden, um campeonato de fisiculturismo (Courtine, 1995). 41 principais países do hemisfério norte ocidental, Sandow sofreu um colapso nervoso retornando à Inglaterra onde casou-se com Blanche Brookes, recuperando-se fisica e mentalmente. A partir de então, dedicou-se à expansão das atividades de fisiculturismo, inaugurando academias, elaborando métodos de exercícios, estudando nutrição e publicando dietas, livros e revistas sobre o assunto. Em 1898 publicou a primeira revista de bodybuilding – termo inventado por ele 22. A revista chamava-se: Sandow Magazine. A fama de Sandow tornou-se tamanha que ele foi convidado para administrar atividades físicas com pesos para os reis Eduardo VII e George V, da Inglaterra, tornandose o primeiro personal trainer da modernidade e recebendo de George V o título de “Professor da Ciência da Cultura Física de Sua Magestade”. Passou, então, a entusiasta do insurgente ensino de Educação Física obrigatória nas escolas, colégios e indústrias da Inglaterra (Gianolla, Op.Cit.). Neste processo, Sandow passou a estudar e aperfeiçoar métodos de musculação e criou o primeiro campeonato de fisiculturismo que se tem notícia. Em 14 de setembro de 1901 realizou o que foi chamado “The Great Competition” em Londres, no Royal Albert Hall, reunindo 156 atletas que apresentaram seus músculos para um juri composto pelo próprio Sandow, por um escultor de renome na Inglatera da época, Charles Lawes, e por Arthur Conan Doyle, o famoso criador de Sherlock Holmes. O vencedor da competição foi Willian Murray que posteriormente tornou-se ator e músico, além de promotor de campeonatos de musculação na Inglaterra (Gianolla, Idem ; Chapman, Op. Cit.). O prêmios para os três primeiros lugares foram estatuetas de ouro, prata e bronze, idealizadas pelo escultor Frederick Pomeroy em 1891, representando a figura do próprio Sandow segurando a barra com pesos nas extremidades por ele inventada. Esta estatueta – a de ouro conquistada por Murray - nunca foi encontrada e suspeita-se que tenha sido derretida ou destruída durante a II Grande Guerra. Sandow mandou fazer várias cópias das estátuas para ofertar aos amigos ou vender para admiradores, além de expô-las em suas academias. A cópia desta estatueta de 22 - O termo bodybuilding advém do título de um livro de Sandow: “Bodybuilding, or Man in the Making”, publicado em Londres em 1898 (cf.Emery, 2003). 42 Sandow hoje serve como troféu de um dos maiores campeonatos de fisiculturismo da atualidade: o Mr. Olympia. Segundo a versão oficial, Sandow faleceu em outubro de 1925, aos 58 anos, de uma hemorragia cerebral devido a um acidente de carro. Após derrapar com o veículo na estrada – confiando em sua enorme força - foi retirálo com as próprias mãos do buraco no qual havia caído. O esforço foi fatal para o primeiro organizador dos campeonatos de cultura física, que, naquele momento, atravessava sérios desentendimentos conjugais. problemas pessoais Curioso destacar ocasionados por que, apesar de toda a sua fama, Sandow foi enterrado como indigente no cemitério londrino de Putney Valle.Além da importância simbólica do seu corpo musculoso, Sandow também causou impacto no mundo dos empreendimentos empresariais da cultura física, inovando neste ramo dos negócios. Seus interesses comerciais incluiram a publicação de numerosos livros de fisiculturismo, oito volumes de uma revista de bodybuilding (Sandow’s Magazine of Physical Culture), inúmeros cursos por correspondência e a fabricação de máquinas e aparelhos para musculação. O trabalho de Chapman(1994) – considerado a melhor biografia sobre o pai do fisiculturismo - apresenta a tese de que Sandow foi enterrado em um túmulo anônimo, devido ao fato de sua mulher Blanche Brookes e suas duas filhas Helen e Lorraine terem o objetivo de apagar as lembranças deixadas por ele. Para confirmar tal tese, Chapman escreve que, logo após a morte do pai do fisiculturismo, elas venderam todos os bens da família, mudando-se rapidamente de Londres. De acordo com o autor elas não enfrentavam, na época, qualquer dificuldade financeira, ou outro tipo de pressão que as obrigasse a vender suas propriedades. Além de desfazerem-se dos bens deixados por Sandow, também destruíram quase todos os documentos (correspondências e papéis em geral) pessoais do atleta, (o que causa certa dificuldade para os historiadores e pesquisadores atuais interessados em compreender melhor sua vida), isso porque “o ódio que elas alimentavam por ele as acompanhou até o fim de suas vidas” (1994 :188). Tal ódio, segundo o autor, poderia estar ligado a dois fatores: primeiro, antes de morrer, Sandow 43 apresentava um problema de saúde, atestado pelo seu empresário Florenz Ziegfeld, que indicava um quadro agudo de sífilis adquirida por uma vida de inúmeras parcerias sexuais. Talvez a doença tenha sido o fator decisivo para sua morte causada pelo aneurisma; segundo, a despeito de seu casamento e de suas duas filhas, Chapman afirma que Sandow tinha comportamento bissexual: “certas coisas são... inegáveis. A verdade é que Sandow era definitivamente um mulherengo. Mas é verdade também que seu gosto direcionou-se para o outro lado” (:51). Tal certeza do autor advém do fato de que Sandow viveu, até casar-se, com o pianista Martinis Sieviking, que era seu parceiro em números nos palcos e que rompeu a relação quando soube que Sandow iria se casar com Blanche Brooks. Chapman destaca ainda a insinuação de uma conhecida de Sandow - que por ele nutria interesse amoroso - a qual teria dito: “eu deveria ter entendido quando o Sr. Sandow recusou beber da minha fina champagne... ele deve ter tido momentos aborrecedores comigo antes de eu mandá-lo de volta para o jovem com o qual ele vivia” (:25). Verdade ou não, tal tese ao menos ajuda a compreender o suposto ódio que a família nutria por Sandow e que repercutiu no fato dele ter sido enterrado como indigente, embora tenha sido, na época, um dos mais famosos atletas na Inglaterra e Estados Unidos. Outros dois grandes nomes do fisiculturismo insurgente foram Bernarr Mac Fadden e Angelo Siciliano, mais conhecido como Charles Atlas. Mac Fadden inventou um instrumento de exercício para os músculos do peito, publicando no mesmo ano que Sandow – 1898 -, uma espécie de revistamanual para práticas de exercícios com o objetivo de divulgar sua invenção e seu método de treinamento. Como a Inglaterra era o centro das atividades físicas da época, Mac Fadden, que era norte-americano, para lá viajou com o objetivo de popularizar o invento e a revista (Physical Development) que havia criado. Mac Fadden retornou para os EUA com o objetivo de empreender a expansão das suas atividades, o que o levou a promover o primeiro campeonato de fisiculturismo dos Estados Unidos no Madison Square Garden em Nova York, no ano de 1903. As poses que os fisiculturistas realizam atualmente em suas competições foram desenvolvidas ao longo dos 44 campeonatos promovidos por Mac Fadden que tornou-se o grande promotor de eventos de fisiculturismo nos Estados Unidos (Courtine, 1995). Em 1921, um jovem imigrante italiano foi o vencedor do primeiro lugar na competição que Mac Fadden promovia ganhando o prêmio de U$1000. Este jovem era Charles Atlas que a partir de então passou a ostentar, até a década de 1950, o título de “O Físico mais bem Desenvolvido da América”. O que deve ser destacado neste processo empreendido por Mac Fadden é o sentido que as competições de fisiculturismo foram adquirindo a partir dessa época. Quando Eugene Sandow inicia a promoção de suas atividades pela Europa e Estados Unidos, não buscava necessariamente a separação de força e estética. De fato, as suas apresentações eram um misto de halterofilismo – pois levantava grande quantidade de pesos, demonstrando força – com fisiculturismo – exibição, em trajes sumários – de sua forma corporal para o público. Sandow seguia a tradição de apresentação dos saltimbancos conhecida desde a Idade Média e dos freak shows circenses do homem monstruosamente forte. Assim, por exemplo, Arthur Saxon, artista circense, no final do século XIX era conhecido por conseguir levantar um peso de 203 kg acima da cabeça apenas com um braço (Arquivos Weider. Apud.: Schwarzenegger & Dobbins:8). Também a publicação bimensal parisiense La Culture Physique , exemplo de promoção de atividades físicas neste período, em seu número 216 de primeiro de janeiro de 1914 escrevia sobre os “Acrobatas e os Jogos de Circo” em sua página 6: “ Les Rasso [grupo circense] foram célebres atletas até 1890. O primeiro representante deste grupo tinha uma extraordinária força naquela época: Henri Herzog podia levantar 100kg com uma mão e lançar 110 kg com as duas...” também na página 25: “Jean Lebedew, mais conhecido pelo pseudônimo de tio Jean, é um professor de pesos e halteres que treinou um grande número de lutadores e homens fortes de todos os tipos. Lebedew nasceu 45 em 1879 em S. Petersburgo. De pequena altura (1m 65) ele possui as formidáveis medidas que se anunciam a seguir: braço direito: 49 [cm], esquerdo 47, ante-braço 35 ½, peito 128, coxa 75, panturrilha 49. Nos pesos ele realizou, é atestado, valorosas apresentações à moda alemã: levantou 135 kg cinco vezes sem largar a barra”. Mac Fadden em suas publicações começa já a apresentar uma mudança neste aspecto. Fanático pelo conceito de saúde associado à aparência e à moral do indivíduo, ele passa a promover a idéia de que a fraqueza física era imoral e, visto que os métodos de cultura física estavam começando a tornar-se disponíveis para todas as pessoas, segundo ele, apenas não era forte e saudável aqueles que escolhiam o fracasso representado pelo desprezo aos exercícios. Fortalecia-se, assim, uma espécie de ética associada à cultura física. Suas apresentações, - assim como a de todos aqueles que passaram a seguir tal prática -, eram acima de tudo estéticas. O uso da força passou a restringir-se às apresentações de halterofilismo, enquanto o bodybuilding construiu-se gradativamente tendo por objetivo apenas as apresentações da forma muscular. Mac Fadden marca desta maneira uma nova configuração de práticas não apenas de exercícios e valorização da forma musculosa mas também o surgimento e a consolidação do campo do fisiculturismo, para usar uma categoria de Bourdieu. Um dos principais itens que contribuiu para a consolidação desse campo foi o caráter puritano anglo-saxão que muito cedo associou obstinação, ascetismo e trabalho, com aparência física e moral. As tradicionais preocupações religiosas, segundo Coutrine (1995), permearam as estratégias de desenvolvimento da forma física tentando apagar qualquer cesura entre trabalho e lazer. A antiga repreensão puritana às distrações e ao tempo ocioso encontram na prática diária do exercício físico a possibilidade de “enquadrar o tempo individual em um modelo de atividade contínua : o exercício físico passa a ser um lazer às margens do 46 tempo de trabalho e um trabalho instalado no coração do tempo de lazer. Ninguém ficaria mais sem fazer nada. Lutar contra o tempo morto, a vacuidade, a desocupação: esses prolongamentos da ética puritana da ‘tarefa’ marcaram profundamente o desenvolvimento de uma civilização... do lazer, tendendo a nela confundir o dever e o prazer, o útil e o agradável. A herança desse conjunto de práticas e desses modelo psicológico pesa ainda, com todo o peso do seus paradoxos, sobre a cultura do corpo.” (: 94). Trabalhar o corpo, construí-lo, moldá-lo, transformá-lo continuamente em busca de um ideal, eis a lógica da ética protestante do trabalho deslocada para o mundo do esporte e das atividades físicas. A salvação inscrevendo-se na aparência de saúde muscular conquistada pelo self-made-man, ícone do esforço ascensional burguês23. Um dos exemplos de aplicação dessa ética do trabalho muscular foi o italiano imigrado para os Estados Unidos chamado Angelo Siciliano (Charles Atlas). Dizia ter criado um método de musculação devido a um fato ocorrido com ele, quando adolescente, em Coney Island Beach. Atlas, passeava pela praia com seus exígüos 44 kg, quando um indivíduo bem maior resolveu caçoar da sua forma esquálida gritando: “Ei, magrelo, suas costelas estão aparecendo!” Tal provocação gerou uma discussão que acabou com Atlas levando um punhado de areia na cara. O pequeno ítalo-americano então empenhou-se em desenvolver musculatura para não apenas encarar os mais ousados oponentes, mas amedrontar aqueles que possivelmente pudessem tornar-se seus adversários. Criou o “método de tensão dinâmica”, que o 23 - O aspecto ascético do trabalho muscular organizado para atingir um fim específico se contrapõe à ética da prática esportiva enquanto mera diversão. Tal apologia do trabalho lembra aquele trecho de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: “a aversão do puritanismo pelo esporte [como diversão] não era devido a uma questão de princípio. O esporte tinha que servir a uma finalidade racional: ao restabelecimento necessário à eficiência do corpo. Mas, era-lhe suspeito como meio de expressão espontânea de impulsos indisciplinados, e, enquanto servisse apenas como diversão ou para despertar o orgulho, os instintos, ou o prazer irracional do jogo, era evidentemente estritamente condenado” (Weber, 1981:120). 47 permitiu mais que dobrar de tamanho em musculatura. De fato, segundo contam os biógrafos, e os relatos do próprio Atlas em suas propagandas, tempos depois ele voltou à praia e deu uma surra no grandalhão que tinha atirado areia em seus olhos. Após ter vencido a competição promovida por Mac Fadden em 1921, Atlas passou a propagandear seu método e a se apresentar como “o homem mais bem desenvolvido do mundo”, ganhando fama internacional e publicando revistas em vários idiomas nas quais apresentava a si mesmo e outros homens musculosos que diziam ter conquistado tal forma utilizando seu “método de tensão dinâmica”. Além de apresentar tais fotos de “homens desenvolvidos”, contava, sua história da praia. Uma das singularidades de Charles Atlas é que dizia-se contra os exercícos realizados com pesos, contra a musculação tradicional que, segundo ele, dava ao indivíduo um aspecto artificial. Seu método de exercícios baseava-se na utilização do próprio peso corporal – isometria, para o desenvolvimento muscular. Em uma de suas revistas de 1947, Saúde e Força Duráveis, Atlas anuncia na página 28: “tenha cuidado com o desenvolvimento produzido por meio de aparatos! Porque usar pesos com o fim de adquirir desenvolvimento muscular , é o mesmo que usar muletas para ajudar a caminhar, pois quando se usa muletas muito tempo, chega logo o momento que não se pode andar sem elas. .. o tigre, o leopardo e o leão, com suas fulminantes forças e energias, não as ganharam, por certo, por meio de pesos... só USAM O SEGREDO QUE EU DESCOBRI – o princípio da TENSÃO DINÂMICA – ou seja, um meio natural para desenvolver e manter devidamente todos os músculos de seu corpo... o esforço contínuo que se requer para manejar os vários aparelhos de um ginásio chega a ser tão excessivo quanto daninho para os orgãos vitais. Você não tem mais do que um corpo, que é sua mais preciosa possessão. Trate-o, pois, como se deve tratar! Meu sistema não faz uso de aparatos. Só utiliza a resistência do 48 próprio corpo. O segredo deste sistema se baseia no fato de que, quanto mais forte você se torna, maior será sua resistência. Mas, os aparatos debilitam depois de algum tempo de uso e, no geral, podem romper-se e produzir feridas distenções no exercitante. Que os meus métodos de tensão dinâmica me hão dado melhor desenvolvimento físico que aqueles que se pode obter com todas as classes de aparatos se PROVOU quando me foi concedido o meu título, em competição leal, com os melhores que usaram aparatos (Grifos do autor).” Atlas procurava, por certo, demarcar sua autoridade no campo insurgente das práticas institucionalizadas de exercícios da época; embora seu método sem pesos e aparelhos não tenha feito sucesso, seu discurso rendeulhe influência durante tempo significativo devido a sua projeção na mídia. A postura que mantinha é o exemplo de atitude do agente em disputa pelo poder em um campo profissional específico: demarcar sua singularidade diante da tradição consagrada, no caso os bodybuilders de então. Por intermédio da figura e da postura de Atlas, a história do fisiculturismo sugere que ela mesma se constitui enquanto luta entre os concorrentes no interior do campo (Bourdieu, 1977; 2001a), luta para conquistar e impor seu ponto de vista sobre a prática e a conduta a ser adotada no meio. Luta por um lugar na tradição e na história do sistema de práticas e representações que caracterizam o grupo. Luta pela autoridade. Este período da história do surgimento das práticas de musculação pode ser considerado exemplar no sentido de preconizar as intermináveis e crescentes disputas, tanto no campo das ciências do exercício dentro das universidades através das faculdades de educação física, pela disputa dos cientistas do esporte em descobrir e inventar práticas mais eficientes, quanto no campo das academias de musculação e fisiculturismo nas quais, cada ano, professores e fisiculturistas tentam impor novos métodos de exercícios como invenção mais eficaz que as outras anteriores, ocasionando modas de verão que na maioria das vezes não vingam. Por outro lado, esboçam o que Foucault definiu como a articulação do saber-poder produto de 49 sociedades disciplinares que, ao intervir no corpo individual, acaba por produzir uma tecnologia de agenciamento populacional em nome da saúde (1993). O criador da “tensão dinâmica” mostrou-se, também, empreendedor eficaz, consolidando, durante quase cinqüenta anos, o comércio do seu método de exercícios físicos por correspondência, propagandeado em revistas em quadrinhos e outras publicações, além de viajar pelo mundo apresentando-se em espetáculos estéticos e de demonstração de força. Na época, a indústria do exercício e da forma consolidava-se com o aparecimento de diversos métodos e cursos que prometiam a qualquer um a rápida construção de um corpo musculoso. Charles Atlas parece ter contado com a insurgente indústria da propaganda e com o seu talento e capacidade para conquistar e fazer perdurar relações pessoais influentes. Além de encarnar, de certa forma, o sonho americano por ser um imigrante que na América consegue tornar-se, através do seu esforço e mérito, rico e famoso. Talvez tais características ajudem a explicar o seu longo sucesso. Um dos fatores da grande popularidade de seu método era o fato de não necessitar de freqüência a qualquer instituição ou compra e utilização de pesos. Contudo – apesar de ter vencido o concurso de Mac Fadden e ter um corpo relativamente forte para a média dos homens comuns da época – Atlas não era, nem de longe, um gigante musculoso, e a ausência de exercícios com pesos do seu método certamente limitava o crescimento muscular – Schwarzenegger e Dobbins escrevem em seu livro que Atlas, apesar de se dizer contra o uso de aparelhos de musculação e pesos, utilizava-os ele mesmo (2001:11). Assim, homens bem maiores e mais musculosos que Charles Atlas, como George Jowett, por exemplo, dono do Jowett Institute of Phisical Culture de Nova York, localizado, na época – década de 40 do século XX - na 5A Avenida N.o 230 24 , não conseguiram alcançar a fama e o sucesso do ítalo-americano, sendo até mesmo esquecidos nas citações sobre o tema. 24 - Conforme propaganda veiculada na revista How to Achive Nerves Like Steel Muscles Like Iron do próprio Jowett, publicada em Nova York em 1950. 50 Após a Segunda Grande Guerra, os EUA se consolidaram como o centro do fisiculturismo no mundo. Durante os verões da década de 1940, uma praia da Califórnia, Santa Monica, começou a ser cada vez mais freqüentada por fisiculturistas que durante o verão se aglomeravam diante da multidão de banhistas para praticar seus exercícios com os pesos livres colocados à vista do público. Esta espécie de exibicionismo muscular ficou tão famosa que recebeu o nome de Muscle Beach. Um dos freqüentadores desta praia, aficcionado por pesos e músculos, Joseph Gold, resolveu abrir uma academia de musculação na região (Venice Beach) denominada Gold’s Gym. Esta acabou por se tornar uma espécie de meca dos fisiculturistas e modelo para as outras academias que vieram a se espalhar pelo mundo. O vencedor do concurso Mr. America em 1940 e 1941, John Karl Grimek, era assíduo freqüentador desta região. Grimek foi um propagandista do treinamento com pesos em academias tentando sempre demonstrar – ao contrário do que muitos diziam (como Charles Atlas, por exemplo) – que o treinamento com peso não oferecia qualquer tipo de problemas se fosse realizado adequadamente. Na época, os detratores da musculação diziam que os treinamentos com pesos prejudicavam a coordenação motora e a flexibilidade. Grimek tentou aprimorar poses que exigiam elevado grau de flexibilidade e coordenação. A partir deste período (década de 1940 em diante), devido o intenso treinamento com pesos em academias, o físico daqueles que praticavam o bodybuilding começou a se distingüir efetivamente da forma de outros esportistas e desportistas. A partir de John Grimek, a musculatura dos fisiculturistas tomou, cada vez mais, identidade própria, devido a baixa porcentagem de adiposidade e grande volume, ocasionado pelo aprimoramento de exercícios e dietas. Paralelo a todo este processo, ocorria um forte desenvolvimento da indústria da forma e do espetáculo nos EUA. O cultivo da forma física tornavase cada vez mais expressivo alimentado pela crescente propaganda da saúde. Se, durante o século XIX, ter força e físico musculoso estava relacionado ao acaso e à genética, - o indivíduo já nascia diferente dos outros e por isso apresentava-se como exótico (Bogdan, 1994) -, a partir do início do século XX, 51 cresce a concepção de que qualquer um, de posse de métodos desenvolvidos por experts, pode transformar seu corpo para melhor. De fato, nas propagandas da época, percebe-se que a idéia é a de que só não transforma seu corpo quem não quer. Em conformidade com este movimento, a AAU (American Athlete Union) havia fundado, em 1939, o campeonato Mr. America com sua regras definidoras das competições de bodybuilding. Mas foi um empresário canadense, Ben Weider, que em 1946 consolidou as estruturas das competições de fisiculturismo atual, fundando a IFBB (International Federation of Body Builders). O irmão de Ben Weider, Joe Weider, também envolvido com o culto à forma física, chegou a vencer algumas competições de fisiculturismo durante a década de 1950 e passou a publicar revistas com entrevistas e fotos de fisiculturistas, dicas de treinamento com pesos e alimentação. Joe Weider, seguindo a tradição dos atletas empresários, criou também o método Weider de treinamento e boa forma no qual, além de exercícios físicos, promovia o que denominou sua filosofia de vida. Um conjunto de princípios que lembram os principais mandamentos do Velho Testamento. Tais princípios estão escritos nos editoriais das revistas públicadas pelo grupo Weider. Dentre todos aqueles que investiram no mercado da musculação e fisiculturismo, nenhum conseguiu superar o êxito dos irmãos canadenses Ben e Joe Weider que criaram um império da forma física. Publicações (as principais revistas de fisiculturismo do mundo atual são de propriedade de Joe Weider), fábricas de pesquisa e produção de suplementos alimentares, além de fábricas de pesos e máquinas para academias no mundo todo. Joe Weider também foi o criador, de fato, da profissão de bodybuilder. Ainda em 1965, empreendeu o primeiro campeonato profissional, até hoje considerado por muitos o principal campeonato de bodybuilding do mundo, o Mr. Olympia, que desbancou, na época, as competições das organizações rivais, incluindo o Mr. Universe sustentado pela NABBA (National Amateurs Body Building Association), dominando, a partir de então, o cenário do fisiculturismo americano e internacional. Os Weider ainda hoje dominam o cenário mundial dos negócios de bodybuilding. A IFBB tem atualmente mais de cem países membros filiados, 52 sendo a sexta maior federação esportiva do mundo e o Mr. Olympia continua o principal campeonato de fisiculturismo da atualidade (Emery, 2003; Schwarzenegger e Dobbins, 2001). O principal expoente do fisiculturismo de todos os tempos despontou nos campeonatos do Mr. Olympia. Tendo sido vencedor de sete títulos até 1980 ele era um jovem imigrante austríaco de nome Arnold Schwarzenegger, nascido em 30 de julho de 1947 em Thal, área rural da Áustria. Schwarzenegger tornou-se o maior mito do bodybuilding de todos os tempos, sendo atualmente adorado como um semi-deus em academias de musculação do mundo inteiro que não raro estampam suas fotos nas paredes. Dono de personalidade carismática e capaz de manter contatos pessoais com os indivíduos mais importantes e influentes do mundo artístico e político, Arnold Schwarzenegger consolidou de vez a popularidade do fisiculturismo ao levar o mundo e o corpo das academias para as telas de Hollywood. Além de toda apologia ao trabalho muscular. Schwarzenegger também tornou-se empresário de sucesso do fisiculturismo criando em 1989, o campeonato anual denominado Arnold Classics que em 2002 pagou U$ 300.000 aos vencedores masculinos e femininos de suas competições. A figura de ícone-mor do fisiculturismo encarnada por Schwarzenegger não se deve apenas às suas atitudes e tamanho físico. Toda a conjuntura sócio-histórica dos anos 80 do século XX confluiu para a consolidação do mito. A adoração do físico musculoso e sua relação com a representação de saúde se deve, dentre outros fatores, ao surgimento devastador da epidemia de AIDS e da aparência esquálida que os doentes de então apresentavam (Gontijo, 2002). Devido a epidemia, o público gay rapidamente adotou o ideal musculoso dos bodybuilders como veículo de aceitação social; esse processo, (com a expansão da doença) ampliou-se para outros grupos, propiciando, a partir de então, - com toda sua prescrição de exercícos físicos para a “manutenção da saúde” e a “qualidade de vida” - a crescente expansão do bodybuilding. A tal fator também pode ser somado o surgimento da era Reagan, que consolidou o poder dos Estados Unidos como império mundial tendo a demonstração da força e da conquista bélica como amostra desse poder. A consolidação 53 hollywoodiana da figura de heróis (Rambo, Conan o Bárbaro e, principalmente, o Exterminador), além do surgimento da era yuppie com jovens dedicados ao trabalho, ao lucro e ao cultivo da aparência musculosa. Schwarzenegger, nesse âmbito, passou a encarnar a realização do sonho americano. Assim como Charles Atlas, foi um imigrante que chegou praticamente sem nenhum dinheiro à América e tornou-se não apenas milionário, mas famoso astro de Hollywood. Entrou para um dos clãs mais influentes da política norte-americana casando-se com a sobrinha (a jornalista Maria Shriver) do ex-presidente John Fitzgerald Kennedy. Após uma vida de sucessos no esporte, no cinema e nos negócios, entrou para a política e conseguiu eleger-se pelo Partido Republicano, em 8 de outubro de 2003, governador do estado da Califórnia com 55% de votos contra 45% do seu adversário Gray Davis, do Partido Democrata. Arnie, como é chamado pelos americanos, sustenta uma postura política conservadora, embora diga-se moderado, aliado às políticas de George Bush filho. Ao ser eleito disse aos jornalistas do Daily Telegraph: “somente na América um agricultor austríaco sem um tostão pode construir uma vida tão fantástica”. A vida de Arnold Schwarzenegger, ao menos aquela que é veiculada pela imprensa, encarna mitologicamente toda a lógica inerente à ética protestante do esforço, da obstinação e do trabalho. Filho de um policial que era ex-membro do Partido Nazista, aos 15 anos começou a levantar blocos de concreto com o objetivo de trabalhar sua já avantajada massa muscular e a sonhar em ir para os Estados Unidos, mais especificamente para a Califórnia. Em 1968 chegou lá, sem saber falar inglês e sem dinheiro com o objetivo de tornar-se figura de destaque no fisiculturismo, campo dos esportes que estava se consolidando. Começou, na companhia de um jovem imigrante italiano, Franco Columbo, a exercer a função de pedreiro nas mansões de Los Angeles. Percebendo que não conseguia arrumar trabalho, mesmo cobrando mais barato que os outros, partiu para outra estratégia que apontava já para a percepção de que na sociedade americana dos espetáculos e simulacros mais vale a propaganda, a forma, que o conteúdo: colocou o anúncio “pedreiros europeus especializados” e passou a cobrar mais caro do que toda a 54 concorrência. Em pouco tempo, já havia amealhado, com seu sócio, um milhão de dólares, e fundado uma empresa de construção. Os dois imigrantes, nesse ínterim, continuavam treinando e participando de campeonatos de fisiculturismo. Schwarzenegger começou a vencer os principais concursos aplicando o dinheiro que recebia como prêmio. Ao contrário da maioria que fazia fortuna na califórnia eem sua época, não comprou uma mansão Californiana, e sim um prédio de apartamentos para alugar. Desta forma, passou a viver em um pequeno apartamento e usar o aluguel que lhe pagavam para cobrir a hipoteca do prédio. Em seu primeiro filme da série O Exterminador do Futuro, Schwarzenegger disse apenas 73 palavras. Sempre enfatizou que nunca pretendeu ser ator. Seus filmes são apenas diversão e não arte, como sempre reiterou. E foi com a imagem que tornou-se um astro de fama internacional. Schwarzenegger demonstra articular um dos mais puros exemplos de ação racional com objetivo a fins ao modelo de análise weberiana (Weber, 1995). Por outro lado, seu sucesso apenas foi possível pelo fato de viver em uma era em que a admistração imagética faz parte das práticas e representações vigentes nas sociedades. Sempre soube escolher ou criar papéis em que sua carência dramática não faria diferença – seu principal personagem é um robô. Soube, desde sua época de atleta, calcular todos os meios possíveis para tornar-se campeão, buscando aliar-se e relacionar-se com pessoas que poderiam ajudar em sua projeção para o sucesso. Através de seus papéis no cinema é possível perceber como ele diversificou atividades e maximizou lucros. Neste processo de construção imagética, o campeão de fisiculturismo que chegou a governador demonstra que soube sempre calcular os meios para atingir seus fins fazendo política, partidária ou não. Encarna, dessa forma, o modelo de self-made-man, espécie de ás daquilo que se tornou o cerne da ação na era dos simulacros e das imagens: o marketing pessoal. A história de sua vida está diretamente relacionada ao desenvolvimento e expansão do bodybuilding pelo mundo, além de constituir um prisma pelo qual uma época pode ser analisada. O ícone-mor do fisiculturismo pode sugerir, para aqueles que tentam analisar sua carreira, a forma como os mecanismos disciplinares se instalam no corpo e através dele se reproduzem. Demonstra 55 em entrevistas, filmes, livros e manuais de exercícios, técnicas de fisiculturismo (muitas desenvolvidas ou aprimoradas por ele), que podem ser percebidas como representando “uma maquinaria de poder que esquadrinha [o corpo], o desarticula e o recompõe [em] uma anatomia-política que é também uma mecânica do poder“ (Foucault, 1987 :126), desenvolvida com o propósito de produzir o aumento das habilidades musculares submetendo o corpo à obediência e à manipulação, aprofundando sua sujeição. Mas tal processo não apenas submete o corpo, também torna-o útil, aplicável, maximizado esteticamente e submetido aos polifônicos e mesmo paradoxais discursos da saúde. Essa articulação micropolítica não deixa, como Foucault (1990) demonstrou, de se articular em uma dimensão macropolítica. Ao se constituírem de forma capilar em instituições específicas – no caso as academias de musculação e fitness – elas organizam determinados aspectos da vida social refletidos nos registros molares da sociedade. A passagem de Schwarzenegger de uma dimensão política cotidiana para aquela da política partidária, não deixa de ser, portanto, reflexo de uma articulação possível do biopoder e da biopolítica, pois, “o corpo ... está diretamente mergulhado num campo político” (Idem :26). Portanto, “ter-se-ia, por um lado, uma espécie de corpo global, molar, o corpo da população, junto com toda uma série de discursos que lhe concernem e, então, por outro lado, e abaixo, os pequenos corpos, dóceis, corpos individuais, os microcorpos da disciplina” (Id.Ibid.1993 :124). Essas duas dimensões das tecnologias de poder estão profundamente articuladas e, pode-se dizer, estão presentes na história de vida de Schwarzenegger. Sua associação com as políticas de Estado não deixam de ser um reflexo do poder micropolítico que incidiu, desde cedo, sobre seu corpo, e que ele desdobrou, - sem deixar também de ser por essas forças desdobrado -, em reflexos macropolíticos; processos que o construíram como ícone daqueles que percebem na disciplina do exercício corporal levado à exaustão, na dedicação física e mental a um propósito, na abnegação e no cálculo racional o sentido mesmo da existência. Assim, a história de Schwarzenegger pode representar o desenrolar de um processo social específico analisado por Foucault. O autor, ao longo de sua obra, constrói uma teoria social que pode 56 fornecer instrumentos para a uma melhor compreensão dos processos de desenvolvimento com o cuidado do corpo. O exemplo Schwarzenegger de trajetória social e de vida sugere a articulação de micropoderes disciplinares que atravessam o cotidiano dos indivíduos nas sociedades complexas. Tal disciplina pode ser definida como uma arte de distribuição espacial dos indivíduos – o que seriam, a princípio, estas instituições de bodybuilding e fitness nas quais os indivíduos constroem e hierarquizam suas potencialidades físicas e estéticas? – exercendo seu controle não sobre o resultado de uma ação, mas sobre o seu desenvolvimento. Desta forma, ela implicaria uma técnica de exercício de poder que exige uma auto-vigilância constante dos indivíduos rebatida em uma rede de olhares (panópitco) escrutinadores que regulariam as ações individuais e coletivas pelo controle, além de outras características, do tempo (Foucault, 1987; Rabinow,1999; Maia, 2003). A história de vida de Schwarzenegger é o exemplo de atualização dessa potencialidade disciplinar cotidiana: “ a disciplina é de suma importância para o sucesso no fisiculturismo. Da mesma forma o é a capacidade de concentrar-se, de estabelecer uma meta e não permitir que nada se coloque no seu caminho” (Schwarzenegger e Dobbins, 2001: 243;). Um fisiculturista de uma academia de Copacabana certa vez me disse: “cara, o negócio aqui é de dedicação continuada... eu sonho com meus exercícios, com a dieta, com o que eu devo comer e fazer para crescer, para definir, qual técnica que eu tenho que usar para expandir o quadríceps, o bíceps, o peitoral... sigo uma dieta rigorosa, quando o verão vai chegando... eu tenho uma balança para pesar alimento lá em casa, tudo que eu como, carboidrato, proteína, é pesado...também não falto ao treino, venho seis vezes por semana, sempre na mesma hora” (Mário, 30 anos. Instrutor de exercícios). A administração cotidiana do corpo, de sua forma, da perseguição de uma estética lipofóbica e de um padrão de saúde radicado em uma concepção 57 específica de beleza sugere a prática disciplinar de gestão dos corpos individuais ressaltada pelas análises de Foucault; mas também remete aos seus conceitos de biopoder e biopolítica visto que tal disciplina não está dissociada da atuação de toda uma máquina abstrata articuladora de dispositivos coletivos de ações voltadas para a suposta manutenção de uma saúde populacional (Foucault, 1990; Deleuze, 1995). As práticas corporais parecem assumir, por intermédio dos meios de comunicação, o caráter de dever coletivo voltado para a busca da otimização da saúde. A figura de Schwarzenegger tem sido também um exemplo de afirmação desse poder voltado para o gerenciamento populacional. Sua vida cotidiana, das academias de musculação da California à política, pode esboçar um trajeto que articula as duas dimensões da tecnologia do poder acima citadas. Se o poder disciplinar é aquele que esquadrinha, desarticula e recompõe o corpo visando otimizá-lo, extraindo dele sua utilidade através de um saber acumulado pela observação perene em instituições específicas, a trajetória de Arnold Schwarzenegger é o exemplo de um esquadrinhador que utiliza seu próprio corpo para produzir um saber colocado em circulação através de filmes de fisiculturismo, livros e enciclopédia. Por outro lado, tal conhecimento acaba se articulando com o mecanismo molar de aplicação coletiva de saberes para a saúde, ou seja, a biopolítica da população e o biopoder; este definido como tendo uma função diferenciada daquela disciplinar, embora desta não se separando; sua função poderia ser definida como sendo a de “gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade desde que ela seja numerosa (população), e o espaço estendido ou aberto” (Deleuze, Op.Cit.:79). Com efeito, a utilização do conceito de campo de Bourdieu pode ser associada aos conceitos de disciplina, biopoder e biopolítica de Foucault, ampliando o instrumental teórico para a compreensão de determinados fenômenos relacionados ao corpo na sociedade ocidental. O surgimento do campo do fisiculturismo, com todas as suas práticas específicas de musculação, não está dissociado do surgimento dos mecanismos disciplinares e da constituição da biopolítica e do biopoder – que também podem ser associados ao conceito de processo civilizatório de Elias. De fato, os campos, 58 sendo dimensões sistêmicas específicas, estariam ligados a processos de ordem macrosociais que forneceriam a base de suas articulações. Assim, por exemplo, a consolidação do fisiculturismo só foi possível de ser realizada no século XIX porque havia significativo movimento de expansão das tecnologias corporais capitaneadas pelas políticas dos Estados europeus ocidentais preocupados com a saúde populacional e com a formação de cidadãos fortes, resistentes e destemidos. No número 216 do ano de 1914 da já citada revista La Culture Physique, o articulista Edmond De Geoff após criticar a falta de exercícios das crianças francesas escreve: “quase sempre o homem é uma cópia do que foi na infância... cuidemos de nossas crianças educando-as...tornandoas fortes pelo uso dos haltéres, habilidosas, tenazes para o trabalho e para os projetos de construção que preparam os homens para a grandeza da pátria...todos os verdadeiros descendentes da raça gaulesa me compreenderão...” (:14). Tal preocupação com a saúde populacional e com o futuro da nação, representa o espírito de agenciamento corporal voltado para as políticas públicas que se fortaleceram a partir da segunda metade do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Houve um aumento do controle e da busca de uma espécie de estabilidade social radicada nas potencialidades do corpo da população. De acordo com umas das teses mais radicais de Foucault, a associação entre saber e poder se constituiu devido ao processo inicial de isolamento vigiado que acabou por produzir um conhecimento sobre o homem – verdadeiro nascimento de homem enquanto conceito – as ciências humanas: psiquiatria, psicologia, sociologia, etc (Foucault,1974). Essa articulação entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas – relações econômicas, sociais e políticas – postas em funcionamento no regime da biopolítica vinculase intrinsecamente à emergência do Estado do bem-estar social na Europa do final do século XIX. A densificação da malha de relações de poder perpassando o tecido social acompanha um outro estágio de desenvolvimento 59 da acumulação capitalista. Se tais modulações políticas produzem uma espécie de domesticação do capitalismo, por outro lado, implementam os mais insidiosos e sutis mecanismos de controle social (Maia, 2003). O processo coletivo de preocupação crescente com o corpo, a saúde e a vida produz um crescente aprimoramento de tecnologias de gestão populacional e o controle das ações cotidianas individuais. Essas articulações entre as dimensões micro e molares, denominadas por Deleuze “máquinas abstratas” (1995), poderiam ser compreendidas como articulação entre ação e estrutura. O excesso de biopoder que marca o acirramento atual da disciplina sobre a vida passa não apenas a organizá-la, mas modificá-la, abrindo a possibilidade da fabricação de algo vivo. Nesse âmbito, o campo do bodybuilding não passa de uma manifestação, e, portanto, um exemplo, da manifestação desse biopoder na atualidade. Sua eficácia sobre os corpos, a proliferação das academias e lojas de suplementos para atletas, as pesquisas voltadas para o desenvolvimento de substâncias que possam melhorar o desempenho atlético e a forma corporal, a crescente produção midiática sobre musculação e boa forma não seriam possíveis sem a nova organização econômica da saúde, sem os projetos de intervenções genéticas. A ritualização crescente do uso de drogas e fármacos específicos entre os praticantes de esportes com o intuito de melhorar sua condição físico-estéticas se processa também nesse movimento de dominação e biopoder atual. A tentativa de análise deste grupo de fisiculturistas de academias de musculação e fisiculturismo do Rio de Janeiro atual pode, talvez, sugerir algumas tendências sociais específicas de uma época em que a corporeidade tem grassado entre as camadas médias urbanas cariocas; mas não apenas. Até a década de 60 do século XX o bodybuilding era visto como sinal de capacidade, disciplina moral, densidade emocional e sentimental representada na concepção de homem integral e integrado (participante dos ideais de nação, família, política e progresso), sendo o corpo exercitado o signo de lealdade e fidelidade, abnegação e tenacidade, companheirismo e sociabilidade – por mais ambígüas e obscuras que tais categorias pudessem ser. A partir da década de 80 do mesmo século, o surgimento de um outro sentido ligado às 60 práticas de musculação se fez presente. Na era do “marketing pessoal”, na qual a lógica da economia monetária do lucro (em geral, imediato) invade progressivamente os espaços que antes eram das relações solidárias, a forma física basta a si mesma, sendo a imagem do corpo a tradução da capacidade imediata de viver mais e intensamente, consumir ao máximo os prazeres da existência, ostentar juventude e beleza perenes. Corpo-produto consumidor de outros corpos-produtos, vetores de novas hierarquias estéticas relacionadas ao mercado. A Gesta de Arnold Schwarzenegger Estando repleta de heróis, a sociedade moderna os apresenta em jornais, programas deTV, filmes, shows de música ou eventos esportivos. A presença destes ícones remete à noção de que eles são referências de ação e respaldo dos valores constitutivos desta sociedade. Mas quem é o herói? Segundo alguns estudiosos, ele é aquele que vive por sua causa, intermediário entre os deuses e os homens, guardião, defensor, aquele que nasceu para servir (Brandão, 1993; Helal, 1998). Campbell (1995), por exemplo, ressalta que o herói parte do mundo cotidiano aventurando-se pelas regiões sobrenaturais onde enfrenta forças fabulosas e arrasta vitórias decisivas, regressando de seu périplo com o poder de conceder dádivas aos seus semelhantes. Ele é aquele que ultrapassa as condições medianas da existência comum, abrindo caminho para o novo e trazendo com seus atos a glória e a redenção de um povo ou grupo social específico. Para que a trajetória heróica seja bem sucedida é necessário que as pessoas acreditem nas representações que os feitos do herói reiteram. (Helal, Op. Cit.) Portanto, o mito é parte de um sistema no qual as estruturas subjetivas (representações, valores, normas) e objetivas (a prática cotidiana dos grupos sociais) interagem (re) produzindo as condições de existência de um determinada sociedade. O herói é a síntese das várias representações coletivas, ele é o emblema de um grupo e de uma época. Uma breve tentativa de análise do mito mais difundido entre os fisiculturistas, o das realizações de Arnold Schwarzenegger (Arnold 61 como é referido por todos os fisiculturistas) será efetuada adiante. Esta narrativa, com algumas variações, é veiculada tanto em publicações especializadas quanto nas conversas dos bodybuilders das academias. Não se questiona aqui a veracidade dos fatos que compõem a narrativa, mas reitera-se o aspecto mítico da construção desta. Em uma pequena cidade dos Alpes austríacos vivia um jovem que desde criança adorava fazer exercícios e levantar pesos. Seu pai, um policial pobre, reunia os filhos, quase todos os dias, para a prática de flexões de braço, caminhadas pelas montanhas e abdominais. Ensinava a estes que a abnegação, a disciplina e o trabalho duro eram o caminho certo para alcançar a felicidade, sendo os exercícios item fundamental nesta busca. Certo dia, o irmão mais jovem do herói morre em um acidente de carro. Muito triste, este dedica-se ainda mais aos exercícios prometendo a si e aos pais alcançar o mais rápido possível o sucesso. Neste processo é um filho e aluno exemplar: exercita-se muito, tira notas excelentes no colégio e ajuda sua mãe a fabricar conservas. Quando se torna adolescente, Arnold percebe que o lugar onde vive é escasso em oportunidades de trabalho. Se continuar ali, não irá muito longe. Quer vencer na vida, tornar-se famoso e ajudar seus pais, e não levar uma vida de dificuldades como estes levavam. Aos quinze anos toma contato com os filmes vindos da América, fica fascinado com todo o glamour que cerca os astros norte-americanos, principalmente dos personagens que demonstram força e poder, e passa a almejar ainda mais a fama. Simultaneamente, fica sabendo que na América existem campeonatos de bodybuilders criados por um descendente de germânicos como ele, Joe Weider, que havia se tornado empresário famoso e rico cultivando seus músculos. Arnold resolve então que deve ir para a América, atrás da fama e do sucesso. Está decidido a tornar-se campeão de fisiculturismo. Em 1968 chega aos Estados Unidos com apenas alguns trocados no bolso, uma grande massa muscular e quase nenhum conhecimento de inglês. “Na Áustria não havia desafios para mim”, diz Arnold, “a América, ao contrário, era um grande desafio, era o futuro.” 62 Em suas primeiras competições em Miami, forças adversas atrapalham seu caminho em direção à glória. Não consegue se preparar de forma adequada, devido a falta de recursos, e acaba perdendo as disputas. Disciplinado, não desiste facilmente, tenta fazer contatos com pessoas influentes, até que em seu auxílio intervém o sumo sacerdote do fisiculturismo, Joe Weider, que percebe seu talento e o convida para ir com ele para à Califórnia – meca americana do músculo – dispondo-se a auxiliá-lo nos treinamentos e a investir nos campeonatos e apresentações. Rapidamente nosso herói passa a ganhar campeonatos e a ficar cada vez mais famoso. Torna-se o primeiro a ganhar seis vezes consecutivas o título mundial de Mister Olympia e passa a ser reconhecido no mundo inteiro pelos praticantes de musculação. Em 1972 estréia no cinema com o documentário Pump Iron, no qual relata sua trajetória e a de outros fisiculturistas famosos como Lou Ferrigno e Frank Columbo. Neste filme são dadas dicas para a construção de um corpo musculoso: dedicação, trabalho intermitente, abnegação, super alimentação e fé em seus próprios objetivos. A fórmula para a construção do self made man dos músculos estava, ao menos supostamente, traçada. Logo em seguida faz o papel de Conan, o bárbaro, em filme homônimo, e torna-se ainda mais rico e famoso. Daí em diante, Schwarzenegger passa a ser considerado a maior autoridade em fisiculturismo do mundo, atuando em mais filmes que são sucessos de bilheteria e sendo convidado pelo presidente dos EUA (George Bush I) para ocupar o cargo de consultor de assuntos para a Educação Física. Nesse ínterim, Schwarzenegger casa-se com uma destacada aristocrata da famosa família Kennedy entrando para o high society. Apesar de tornar-se cidadão americano, o herói dos músculos retorna glorioso em visita a sua terra sendo alardeado como o filho pródigo dos Alpes. Além de tornar-se o maior ícone do bodybuilding, astro de Hollywood e empresário bem sucedido, Arnold Schwarzenegger conseguiu em 8 de outrubro de 2003 coroar sua carreira de sucesso tendo sido eleito governador da Califórnia, o estado mais rico dos Estados Unidos. A façanha do herói começa com alguém de quem algo foi usurpado ou que percebe que está faltando algo entre as experiências cotidianas das 63 pessoas comuns na sociedade. O herói parte, então, para uma série de aventuras, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente faz um círculo com partida e retorno glorioso. Em biografias de heróis midiáticos é comum a presença de uma perda ou dificuldade séria na infância. No caso, a pobreza, a perda do irmão, a vida difícil nos Alpes. Essa construção da narrativa com ênfase nas dificuldades torna-se o fio de identificação do ídolo com as pessoas comuns (fãs, seguidores, admiradores). Em sociedades capitalistas, nas quais a mídia exerce uma forte influência, a princípio, podem ser destacados dois tipos de heróis: os heróis por acaso e os heróis preparados; os primeiros são lançados heróis, defrontados com a aventura, que neles desperta uma qualidade que ignoravam possuir. O segundo tipo é o do self made man, aquele que persegue com todas as suas forças a glória. As provações, neste processo, são concebidas para ver se o pretendente a herói pode realmente ser um herói. O passado difícil, cheio de provações, repleto de forças maléficas, é ressaltado e superdimensionado em todas as gestas (Helal, 1998). O mito de Arnold, ampliando veiculado de forma intermitente nas revistas e filmes, e contado pelos fisiculturistas das academias, reflete este processo estrutural inerente às sagas míticas. Arnold vive uma infância difícil tendo que partir do lugar onde nasceu para iniciar sua aventura. Lévi-Strauss mostra que, nos mitos, o herói tende a se separar dos seus realizando um périplo que é seguido pela maioria daqueles que almejam o sucesso. O mito estabelece, então, uma regra, um exemplo, para aqueles que objetivam realizar o mesmo processo (Lévi-Strauss, 1984). Estudando mitos ameríndios, o autor (Op. Cit.) demonstra também a existência de outros dois tipos de heróis, um criador, o demiurgo, e outro administrador e organizador. Por exemplo, a organização social dos Bororo está dividida em duas metades denominadas Tugare e Cera. Seus heróis são provenientes destas metades sendo que os heróis Tugare são demiurgos e os Cera administradores. Os Tugare “são em geral responsáveis pela existência das coisas : rios, lagos, chuvas, vento, peixes, vegetação, objetos manufaturados...os heróis Cera intervém num segundo momento, como 64 organizadores e administradores de uma criação cujos autores foram os Tugare... ” (Idem :55). Comparando com o mito do bodybuilding aqui analisado, é possível dizer que o papel exercido por Joe Weider25 é o do herói demiurgo, enquanto Arnold Schwarzenegger surge como organizador e divulgador maior. Weider, um rapaz de entregas, tornou-se um empresário multimilionário do fisiculturismo criando laboratórios de pesquisas e fábricas de suplementos alimentares e de halteres e máquinas de musculação, academias e concursos de boa forma e bodybuilding que movimentam anualmente mais de 300 milhões de dólares. Além de ter criado inúmeras publicações sobre bodybuilding (livros e revistas mensais), institucionalizou o fisiculturismo nos EUA e já era reconhecido como uma das maiores autoridades quando ajudou Arnold em sua aventura americana. Este último é hoje conhecido pelo seu empenho em expandir e preservar as conquistas de Weider levando “a saúde e a boa forma a todos” através de suas próprias empresas e de seus próprios campeonatos, além dos de Weider. Arnold Schwarzenegger começou seguindo os conselhos e os métodos inventados por Weider, seu protetor, e hoje é o seu maior aliado, reproduzindo em seus próprios métodos tudo o que Weider lhe ensinou e indicou. A ética produzida pelos dois heróis do bodybuilding está resumida em inúmeras publicações produzidas por eles e por seus admiradores. Esta visão de mundo consiste em uma mistura de cientificismo, conselhos bíblicos e prática capitalista, radicando-se nos itens fundamentais constitutivos do imaginário das sociedades capitalistas atuais. Abaixo um trecho do editorial da revista mensal Muscle e Fitness, presente em todas as edições: “Este estilo de vida pauta-se pela educação e o desenvolvimento da pessoa em sua totalidade – corpo, mente e espírito. 25 O desenvolvimento muscular supervisionado - Weider é de fato o fundador de toda uma corrente de fisiculturismo que está claramente calcada na ética protestante. No editorial de suas revistas mensais de musculação(Muscle e Fitness, por exemplo) aparece o princípio Weider de vida (principles of the Weider lifestyle) : “Busque a excelência, exceda a si mesmo, ame seus amigos, fale a verdade, pratique a fidelidade e honre seu pai e mãe. Estes princípios o ajudarão a tornar-se mestre de si mesmo, o farão forte, darão esperança e o colocarão no caminho da grandeza”. 65 desempenha um importante papel na nossa sociedade e Muscle and Fitness serve como orientação. Nossos princípios estão fundados na resistência progressiva, treinamento com peso, nutrição apropriada, condicionamento aeróbico, boa forma, controle de stress e recuperação. O músculo é a marca plena da saúde e da boa forma na ética Weider – além de ser a marca da construção da imunidade, do funcionamento adequado do metabolismo, e do desaceleramento envelhecimento. O superior do processo desenvolvimento de muscular acompanhado do apelo visual representa um alto estado de saúde livre da gordura. Boa forma representa músculos em ação pautados na fisiologia do exercício que auxilia a reduzir os múltiplos fatores de risco para a saúde que prevalecem em nosso mundo moderno. Deixe o estilo de vida Weider fazê-lo forte, belo, cheio de energia, com melhor saúde e mais eficiente, dando simultaneamente a você uma auto-imagem perfeita. Deixe o bodybuilding ser parte de sua vida” (1998:12. Grifo nosso). Estas regras ditadas pelos mitos da musculação descrevem o que vem a ser boa saúde, beleza, sucesso e longevidade, prescrevendo ações que produzem e reproduzem a realidade não apenas dos fisiculturistas, pois gradativamente tais preceitos têm se tornado mandamento divino, com respaldo médico, para toda a sociedade, cada vez mais preocupada com a saúde e a beleza. Esta héxis ou habitus corporal surge enquanto distinção e emblema de excelência, demarcando, nos sistemas classificatórios das sociedades complexas, o espaço social no qual dominantes e dominados encontram seus lugares específicos (Bourdieu, 1976). Ter sucesso, ser nobre, saudável e belo está subsumido a praticas e estilos de vida ligados ao cuidado do corpo e de si. Esta ética muscular protestante radica-se em um sistema simbólico no qual a muscularidade e a ausência de gordura aparecem como signos de nobreza e de status elevado. Neste processo de busca pela excelência inscrita nos músculos e na pele, - processo respaldado pela 66 autoridade científica - os indivíduos alimentam um sistema de produção de bens simbólicos de consumo que os atrela a um processo de reprodução de valores radicados na aparência. Nunca na história os indivíduos estiveram, em tão grande quantidade, submetidos a uma dominação estética de tamanha proporção. Se, por um lado, a ciência médica desenvolveu técnicas e tecnologias para curar e preservar vidas, por outro, ela viabilizou a criação de uma nova dimensão da dominação construída pelas representações de juventude, beleza e saúde. Conceitos e ideais que devem ser perseguidos a todo custo por todos aqueles que querem ser aceitos como símbolos de superioridade, sucesso e excelência. Luta inglória, já que os próprios itens constitutivos desta estética são voláteis inevitavelmente com o passar do tempo. e efêmeros dissolvendo-se 67 Capítulo II “No mundo contemporâneo em que o Ser se tornou de uma leveza insustentável, pois não impõe nenhuma autoridade que possa prescrever e na qual se possa crer, nem natureza, nem Deus, nem tradição, nem imperativo kantiano, apenas o eu pode conferir-se leis e apresentar-se como único ponto de apoio; tudo desapareceu, mas restou o eu... eu cara a cara com o que me nega, a morte, que não é nada se o eu decide que, para ele, não é nada.” Paul Veyne O Surgimento dos Esteróides Por intermédio do avanço telecomunicações, a imagem da tecnológico e da expansão das perfeição corpórea expande-se para o cotidiano de várias culturas. A suposta imperfeição física dos indivíduos comuns passa a defrontar-se, a cada instante, com imagens de “corpos perfeitos” (musculosos, magros, bronzeados, sempre expressando felicidade) em telas de cinemas, TVs, computadores e outdoors. Tais imagens de modelos, minuciosamente selecionados, retocadas e aperfeiçoadas por técnicas de computação gráfica e fotografia, tendem a induzir à perseguição deste tipo de corpo sob a égide do consumo e do hedonismo auto-ilusivo (Campbell, Op. Cit.; West, 2000). Esta exaltação da imagens produz culturas que investem na construção física levando milhões de pessoas a consumirem cotidianamente todos os tipos de produtos materiais e simbólicos: remédios, filmes, revistas, exercícios, dietas e suplementos alimentares, movimentando a gigantesca e crescente Indústria da Saúde. As academias de musculação surgem como usinas de produção da forma, fabricando corpos para serem consumidos pela lógica do mercado. Estas formas musculosas apresentar-seiam como espécie de totens midiáticos, visto que a publicidade exalta tais 68 modelos contribuindo assim para a construção da identidade das tribos urbanas que identificam-se com o paradigma apresentado. Ela, a publicidade, surge como um operador totêmico (Rocha,1995) dando sentido a todo o processo ascético de produção física direcionado para o mundo do consumo. Tal como um “selvagem” saberia identificar o comportamento de uma pessoa do clã do Urso ou da Águia, podemos identificar, através da aparência ou da conduta, alguém que é fisiculturista ou “marombeiro”, dedicando-se regularmente ao mundo da musculação e das academias. Assim, “os estilos de vida atuais, hieraquias de valores e modelos de comportamento possuem na publicidade um dos mais lúcidos espaços de divulgação didática” (Canevacci, 2001:154). Como produto do processo de aprimoramento dos saberes e práticas sobre a saúde e a fisiologia humana, os esteróides anabolizantes sintéticos apresentam-se como fármacos26 (drogas) específicas que hoje têm sido consumidos de forma crescente com o objetivo de otimizar a forma, mudando a morfologia individual. Estas substâncias surgiram de pesquisas farmacêuticas realizadas no final do século XIX e primeira metade do século XX. No dia 1 de junho de 1889, Charles Edouard Brown-Séquard, um proeminente médico e cientista francês, anunciou à Sociedade de Biologia de Paris que estava descobrindo uma terapia rejuvenescedora do corpo e da mente. O professor de 72 anos estava experimentando, em si mesmo, injeções de líquidos tirados dos testículos de cachorros e porcos da guiné. Tais injeções, segundo seu próprio relato, haviam aumentado sua força física e sua energia intelectual, fazendo recrudescer suas constipações e “aumentando o esguicho de sua urina” (Hoberman e Yesalis, 1995:76). Através de suas experiências, Brown-Séquard percebeu a existência e a importância de substâncias liberadas por determinadas glândulas (no caso específico os 26 - É conhecida a ambigüidade da palavra fármaco: phamakón em grego significa ao mesmo tempo remédio e veneno. Droga, expressa tanto a idéia de medicamento quanto de substância entorpecente, como ainda de coisa desagradável e de pouco valor. Outro termo, tóxico, origina-se do grego toxon, que representa uma tigela ou recipiente onde se colocava veneno para banhar a ponta das flechas. Venenum, em sua origem latina, significa beberagem, tintura, corante, algo que modifica aquele que o usa (Nascimento, 2003). 69 testículos) e de sua atuação como reguladores fisiológicos. Tornou-se, portanto, um dos fundadores da moderna Endocrinologia. Após os experimentos de Brown-Séquard, uma verdadeira corrida em busca do isolamento dos hormônios (nome dado a tais substâncias em 1905) tomou conta do cenário científico. Em 1896, dois químicos austríacos, Oskar Zoth e Fritz Pregl, perceberam que as injeções de extratos testiculares de touros produziam um significativo ganho de força em seres humanos. Eles injetavam tais substâncias em si mesmos e mediam, através de um instrumento denominado ergógrafo de Mosso, a força de seus dedos médios. Diante de tais resultados estes cientistas passaram a realizar palestras nas quais afirmavam que tais substâncias poderiam ser consumidas por atletas para melhorar seu desempenho em competições. Rapidamente, tais extratos testiculares apresentaram-se como uma espécie de elixir da força e da juventude e equipes de pesquisa na Europa e nos EUA foram formadas para aprimorar as investigações sobre como produzi-los em laboratório. Antes de se conseguir tal objetivo, várias experiências sobre o uso dos hormônios masculinos foram realizadas. Em 1913 o médico norte-americano Victor Lespinassse, de Chicago, transplantou um testículo humano para um paciente que havia perdido os seus e sofria de disfunção sexual. Quatro dias após a cirurgia, a capacidade sexual do paciente havia sido, segundo o médico, recuperada. Tais experimentos tiveram continuidade e, em 1920, outro médico, Leo Stanley, residente da prisão de S. Quentin na Califórnia, passou a transplantar testículos de animais em presos com problemas de impotência, diabetes, asma, senilidade, paranóia, e grangrena, afirmando que tais operações causavam considerável melhora em seus pacientes. Também, durante a década de 1920, o médico russo Serge Voronoff realizou transplantes de testículos de macacos em seres humanos. De forma paralela a tais procedimentos, que logo caíram em desuso, outros pesquisadores procuravam isolar, de forma sintética, o hormônio testicular. Em 1911 A. Pezard descobriu que as características sexuais masculinas cresciam proporcionalmente à aplicação de substâncias testiculares em animais, percebendo os efeitos androgênicos – masculinizantes – de tais extratos. 70 Durante as duas décadas posteriores, inúmeros cientistas procuraram aprimorar os estudos sobre efeitos de substâncias androgênicas tentando isolar o componente químico presente nos testículos de animais e urina humana. Em 1931, o cientista alemão Adolf Butenandt conseguiu isolar 15 miligramas do hormônio não testicular, que ele denominou Androsterona retirando-os de 15.000 litros de urina de homens que trabalhavam como policiais. Contudo, a Testosterona, hormônio natural masculino mais poderoso que a Androsterona, só foi isolada em laboratório através da ação de três grupos de pesquisadores subsidiados pelas grandes companhias farmacêuticas multinacionais. Em 27 de maio de 1935, Karoly Gyula David e Ernst Laqueur, financiados pela Organon Company da Holanda, apresentaram o artigo “Sobre o Hormônio Cristalino Masculino Proveniente dos Testículos Testosterona” como resultado de suas pesquisas no isolamento da Testosterona. Em 24 de agosto do mesmo ano os pesquisadores alemães Butenandt e Hanisch, financiados pela Schering Corporation de Berlim, apresentaram os resultado de suas pesquisas denominado: “Um Método de Preparação de Testosterona a partir do Colesterol” ; e em 31 de Agosto de 1935, os pesquisadores da companhia farmacêutica Ciba, Leopold Ruizicka e Alfred Wettstein, anunciaram sua descoberta no artigo “Sobre a Preparação do hormônio Testicular Testosterona (Androsten-3one-17-ol)”. A testosterona sintética estava inventada e a patente de tais drogas em posse das indústrias que financiaram suas descobertas. Ruizicka e Butenandt receberam, em 1939, o Prêmio Nobel de Química (Hoberman e Yesalis, Op. cit.). A partir de então, o mercado do uso de testosterona sintética e seus derivados cresceu tanto para usos medicinais quanto estéticos; ainda mais após 1940, ano em que Charles Kochakian descobriu as características anabólicas da testosterona, ou seja, a facilidade de crescimento muscular possibilitado pelo uso desta . Após esta descoberta, os fisiculturistas amadores e profissionais da costa oeste americana, no início dos anos 50 do século XX, passaram a utilizar testosterona para aumentar massa muscular e força. Este uso espalhou-se na década de 1960 entre os atletas profissionais e amadores de outros esportes, já sendo comum, na época, a sua utilização entre alunos de colégios 71 secundários e universidades americanas. Nos esportes olímpicos, durante o mesmo período, tais substâncias passaram a fazer sucesso entre atletas do leste europeu comunista e China, certamente auxiliando-os na conquista de muitas medalhas.27 A partir de 1970 o Comitê Olímpico implementou métodos de testagem para detectar o uso de tais substâncias, além de outras similares, por atletas, banindo dos jogos aqueles descobertos como sendo usuários destas drogas. Contudo, desde então, um número significativo de atletas de elite e técnicos tem encontrado meios de burlar tais testes. O que deve ser ressaltado em todo este processo é a expansão do uso de tais drogas. A princípio direcionadas para a terapêutica, elas acabaram incrementando ilegalmente os esportes profissionais e amadores e, atualmente, têm se tornado objeto de consumo cotidiano de pessoas comuns que buscam otimizar sua aparência. Este movimento de pesquisas e descobertas científicas sobre a testosterona está ligado ao desenvolvimento de saberes e práticas relacionados ao gerenciamento do corpo individualizado, do envelhecimento populacional e da saúde, concepções surgidas no século XVIII, e que construíram o sentimento da necessidade de preservação do corpo, considerado, a partir de então, pelas culturas ocidentais, mônada isolada do todo social (Rodrigues, 1999). Este saberes e estas práticas aprimoraram-se desde então: enquanto a proposta racionalista dos religiosos dos séculos XVI e XVII era disciplinar o corpo para libertá-lo das paixões, promovendo uma estética da alma, a proposta racionalizante do saber leigo que se desenvolve – 27 - O uso de esteróides (Dianabol) foi detectado de fato em 1956 nos jogos de Moscou (Pope, Phillips & Olivardia, 2000). Desde então o uso de tais substâncias tem crescido entre os atletas, não apenas fazendo parte dos rituais de treinamento e competições, mas contribuindo para a formação de uma espécie de indústria de subversão de testes antidoping . Esta indústria, formada por técnicos, médicos, laboratórios e pesquisadores e nutricionistas, busca subverter os testes criando substâncias esteróides que não podem ser detectadas, a princípio, em exames de sangue e urina. O último caso, divulgado em outubro de 2003 na mídia, foi a da tetrahidrogestinona ou THG; essa nova molécula reúne os esteróides Gestrinona e Trembolona. Em seu núcleo, há quatro anéis de benzeno aos quais o methyl e o hidroxyl estão ligados. Grupos adicionais de methyl ou ethyl – átomos de três carbonos e seis de hidrogrogênio foram somados para criar esse novo esteróide. Tal combinação possibilitou que o novo esteróide sintético não fosse detectado nos exames tradicionais antidoping. O uso da substância foi descoberto devido ao fato de um técnico, não identificado, ter feito a denúncia à Agência Americana Antidoping de que atletas americanos e estrangeiros estavam utilizando uma substância que não era detectada. O técnico enviou uma seringa com resquícios da substância que foi analisada pelas autoridades que detectaram a nova droga (O Globo. 23 outubro de 2003. Caderno dos Esportes). 72 embora radicado nas premissas lógicas de origem religiosa - é a de administrar paixões (eventualmente controlando-as) com o objetivo de otimizá-las. Em outras palavras, investir em paixões, poupando-as, em determinados momentos, com o objetivo de aplicá-las, em outros momentos, nos quais as mesmas paixões maximizadas poderão vir a se concretizar de forma mais ampla; multiplicando e efetivando, assim, uma espécie de lucro na satisfação dos desejos(Campbell, Op. Cit.). Nova economia libidinal que potencializa as paixões e que é estabelecida pela lógica do consumo. Neste movimento, o anabolizante apresenta-se como um meio, dentre outros, concretizador das estratégias instrumentais de manutenção deste corpo considerado veículo do prazer e da auto-expressão, corpo produzido por, e produtor de, uma sociedade individualista e racionalizante. A estética da alma tornou-se circunscrita apenas ao corpo, ressaltando a disciplina não como elemento oposto ao hedonismo, mas como auxiliar deste. Assim, a época atual não apresenta potencialmente apenas a dimensão de um paroxismo dionisíaco ou período de expansão da reflexividade e da razão comunicativa (Mafesolli, 1995; Giddens, 1991; Habermas,1985), mas as atuais sociedades globalizadas podem, também, encontrar-se em um processo de acirramento sutil do poder disciplinar que possivelmente vem sendo aprimorado através do exercício do controle intra e extra muros institucionais – através de novas tecnologias da comunicação - e por intermédio do agenciamento dos sistemas simbólicos, (valores, normas e percepções) radicados, de certa forma, na lógica da troca comercial e do consumo (Bourdieu, 2001a). O novo racionalismo e suas técnicas de criação de corpos e expansão de desejos consumistas caracterizase por submeter e subjugar, em determinadas circunstâncias, o corpo e suas afeições28 aos ditames do ascetismo disciplinar, porém, normalizando-o com o objetivo 28 de potencializar sua capacidade de diversão e consumo - Aqui é adotado o conceito de afecção elaborado por Espinosa: “Por afecções entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias dessas afecções” . As afecções podem ser ativas se “agimos quando se produz em nós, ou fora de nós qualquer coisa que somos causa adequada... mas, ao contrário, digo que somos passivos (sofremos) quando em nós se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se segue da nossa natureza, de que não somos senão causa parcial”. Esclarecendo: “o corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída...” (Espinosa, 1979: 73 (Featherstone,1995; Courtine,1995). Ascetismo e hedonismo caminham, agora, de mãos dadas. Tal aspecto pode ser percebido nos supermercados de imagens em expansão onde os heróis-produtos são atores, cantores, modelos e atrizes, pessoas produzidas e que reproduzem os padrões de beleza hegemônicos e que professam a ética do consumo e de um suposto savoir vivre, conquistado, porém, com esforço ascético, segundo os discursos de tais ícones. Em tal sistema de economia imagética, indivíduos comuns são impulsionados ao consumo e à submissão calculada a dietas, exercícios, anabolizantes, clínicas estéticas e academias, enquadrando-se em uma espécie de controle disciplinar ímpar na história, com o objetivo de conquistarem a admiração e o respeito. Há o esforço de se chegar ao paraíso das imagens e formas tendo o mercado da saúde como coadjuvante no processo de busca de ascensão social. Passaporte que permite aproveitar aquilo que o mundo do consumo oferece àqueles que são considerados vencedores. Hedonismo racionalista. O saber e a prática relacionados ao uso dos esteróides anabolizantes fazem parte inerente deste processo, constituindo-se como um dos instrumentos manejados por determinados indivíduos e grupos na busca deste paraíso na terra onde os corpos e suas imagens são intercambiáveis à maneira de uma simples moeda. Simmel (1983; 1989; 1991; 1993) apontou o domínio do dinheiro como instituição fundamental do mundo moderno, ou, mais de acordo com suas palavras, o advento da economia monetária significou uma redefinição da consciência subjetiva individual. Com a troca monetária nos parâmetros modernos as noções básicas de tempo e espaço se modificaram, e, com a modificação de tais noções, modificaram-se também as economias emocionais dos indivíduos. A vida afetiva individual e as relações sociais em geral passaram a ser regidas pela necessidade de distanciamento interno e externo – relacionados às exigências dos contatos interpessoais na metrópoles- e pela instauração da calculabilidade como fenômeno da personalidade dos indivíduos. Relacionada a esse processo, a atitude “blasé” passou a afigurar-se como uma característica típica da indiferenciação qualitativa operada pelo 178). O marketing talvez possa ser apresentado como um dispositivo moderno para a soma ou subtração 74 dinheiro transformado em meio universal de troca. Assim, a crescente velocidade das trocas, nas grandes metrópoles, provocaria nos indivíduos a também crescente indiferença devido ao estímulo permanente do meio urbano (Stecher, 1995). Para Simmel, as trocas monetárias com objetivo primordial do lucro não apenas produziam indiferença nos indivíduos em relação aos seus próximos como caracterizariam um movimento de dissolução das instituições tradicionais e relações sociais produzindo, por sua vez, um grande movimento de indivíduos no espaço. Neste contexto, a relação monetária conectaria estreitamente o indivíduo com o grupo como um todo abstrato, mas, colocandoo na mesma dimensão dos objetos, dissolvendo-o como personalidade própria. O dinheiro separaria o lado econômico da personalidade integral. Em sentido parecido ao fetichismo da mercadoria trabalhado por Marx no primeiro volume de O Capital (1983), Simmel destaca que a frieza e a impessoalidade das trocas econômicas, que visam primordialmente o lucro, transformariam os próprios indivíduos em coisas, objetos. As associações tornar-se-iam, nas sociedades modernas, calcadas nesta economia monetária, meras associações instrumentais motivadas pelo interesse do lucro. O dinheiro criaria entre sujeitos e objetos uma “desconexão objetiva” e na relação inter-subjetiva, uma “desconexão pessoal”. Em ambos os casos, uma nova relação estaria sendo reconstruída a partir do uso do dinheiro na modernidade (Stecher. Op. Cit.: 184). Esta nova relação se caracterizaria pelo fato de que a personalidade individual seria afetada pelo próprio processo social calcado na troca objetiva e objetivante fazendo o indivíduo ver o outro como meio para alcançar seus fins: “o importante, entretanto, é que o dinheiro é percebido em toda a parte como fim e, com isso, muitas coisas que têm o seu fim em si mesmas são rebaixadas a simples meios. Ao mesmo tempo que o dinheiro, por definição, é o meio, os conteúdos da existência se colocam num profundo contexto teleológico sem começo e sem fim” (Simmel, 1989:593. Apud. Stecher, 1995:185) de determinadas afecções, administrando-as. 75 O estudo da coisificação do outro presente na obra de Simmel remete e ressalta o fato do surgimento de uma ética que concebe o mundo e o próximo como objetos a serem consumidos. A epifania da forma realizada pela publicidade e atualizada nas instituições de práticas de exercício ressalta o fato - como sugeriu Foucault (1997) - de que, em contraposição a outros tipos de liberalismo, a marca singular do liberalismo de origem norte-americana, enquanto teoria e prática econômica, é “a busca de estender a racionalidade do mercado a domínios não exclusivamente ou não prioritariamente econômicos” (:96). A lógica solidária das trocas simbólicas não fundadas em uma economia que visa o lucro, a todo custo, encontra-se afrontada pela mercado-lógica midiática que tem se estendido com sucesso para a maioria das relações sociais, inscrevendo-se no corpo e na pele de cada indivíduo das sociedades de consumo. Portanto, se no início, o processo de racionalização e disciplinarização corporal estava relacionado a práticas e saberes religiosos, passando, logo após, para a administração estatal, hoje são o marketing e o mercado os novos senhores desta administração. O puritanismo traveste-se de hedonismo produzindo uma espécie de repuritanização das práticas corporais (Campbell, Idem ). Tal repuritanização hedonística expressa um paradoxo que é o de associar a construção da saúde ao consumo de substâncias químicas – fármacos. Lutando para alcançar um ideal inalcançável, os indivíduos cada vez mais consomem produtos “mágicos” lançados no mercado com o aval da ciência para aprimorar a saúde e a estética. Essa medicalização da sociedade tende a eleger o fármaco como fetiche, fórmula milagrosa que pode trazer a felicidade àqueles que não se enquadram nos padrões estéticos culturalmente estabelecidos. Além de sacralizar a ciência e a tecnologia, tal processo cria o mito da saúde perfeita (1995), e radica no consumo dos produtos o caminho para a felicidade. O problema está no fato de que em uma sociedade causadora de doenças - e causadora justamente porque radica apenas na dimensão da economia econômica do lucro as suas relações constitutivas - , as chances de saúde individual são mínimas. A crise de valores, sustentada no individualismo hedonista, no próprio consumismo, na competição acirrada, e 76 em mecanismos de hierarquização e exclusão social, ameaça os elos de solidariedade social, gerando isolamento e sofrimento. Portanto, a noção de que a felicidade e/ ou a saúde possam ser encontradas e compradas em consultórios, drogarias ou contrabandeadas em academias de fitness ressalta o paradoxo de uma época singular que busca a felicidade na própria ameaça da sua destruição. No Reino de Dionisos Diferente de drogas como maconha, cocaína, heroína, entre outras, consideradas substâncias causadoras da perda de autocontrole, ocasionando suposta irresponsabilidade e violação de imperativos morais básicos (Becker, 1971) sendo responsáveis pela concepção, por parte da sociedade e das instituições em geral, de que seus usuários são pessoas com conduta sem freios beirando à loucura, enfim, conduta que poderia ser denominada dionisíaca, o uso de esteróides apresenta, a princípio, processo inverso. Seus consumidores tentam construir, associando tais drogas a pesados exercícios físicos, imagem de autodomínio, disciplina e racionalidade. Imagem que podemos denominar, de forma provisória, apolínea, na conduta e na forma musculosa (considerada saudável por muitos), já que as representações de saúde nesses grupos têm sido atualmente relacionadas à ausência de adiposidade e à musculatura rígida e aparente. O consumo de drogas vem sendo associado à transgressão das normas e busca de supressão de estados que oprimem indivíduos e grupos, à contracultura e à busca de potencialização do prazer e reencantamento de um mundo desencantado, além de estar associado à expansão triunfante da realidade psíquica. (Velho, 1998; Perlonger,1994; Birman, 1993; Morgado, 1985; Becker, 1971). Na Antropologia, mais especificamente, o uso das drogas poderia estar associado à teoria dos ritos e rituais relacionando-se a experiências místicas ou de desvio perpetradas por determinados grupos que, de uma forma ou outra, tendem a promover uma espécie de suspensão momentânea da estrutura social dominante, seja para reafirmá-la ou para 77 antever sua modificação, além de constituírem itens que podem estar presentes em ritos de passagem nos quais um indivíduo transita de um determinado status para outro (Turner, 1974; Da Matta, 1983; Bourdieu,1996). Em geral, tais abordagens tendem a ressaltar o aspecto dionisíaco desse consumo. Há a tendência dos estudos se deterem sobre a dimensão eufórica acionada pelo uso destas substâncias, referindo-se – no caso das sociedades complexas ocidentais - ao início dos anos 60 do século XX como período no qual houve significativa transição nos hábitos de utilização de entorpecentes, na medida em que, por intermédio do que se constituiu como o movimento da contracultura, um novo ethos29 surgiu, entre os jovens principalmente, no qual as drogas passaram a ocupar posição estratégica de subversão da cultura dominante (Salem,1991). Elas representariam o acesso a um "outro mundo" causado pelas transformações perceptivas provocadas. Espécie de “fuga” do sistema, mesmo momentânea. Diversos grupos sociais iniciam o consumo de tóxicos regularmente, utilizando-os como parte de códigos éticos e estéticos precisos, inscrevendo este uso em uma cultura onde supõe-se que a crítica e a negação de determinados valores tradicionais se realizaria, ou, no mínimo, se inscreveria em uma atitude hedonista contraposta a qualquer laivo de ascetismo (Velho, 1998). As drogas tornar-se-iam "signo emblemático de uma visão de mundo underground" (Birman, 1993:5). Velho (1994), escrevendo sobre o “mundo das drogas”, indica a necessidade de ressaltar a heterogeneidade deste “mundo” nas sociedades complexas. Segundo ele, não há como pressupor comportamentos e atitudes homogêneos sobre a utilização de drogas, visto que existem categorias sociais e indivíduos que as consomem de modo diferenciado havendo “n maneiras de utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas” (Idem , 1980:355). Múltiplos significados são atribuídos à utilização de diferentes tipos de drogas. É possível afirmar que o atual uso de esteróides anabolizantes surge como uma nova forma de consumo de novas drogas apresentando a 29 - Ethos de acordo com Bateson é “a padronização culturalmente sistematizada de organização de emoções e instintos dos indivíduos”. Esta padronização está inseparavelmente associada à “padronização 78 configuração de um novo objetivo no ato coletivo de consumi-las. O “mundo” da musculação e do bodybuilding, da cultura fisicalista em geral, que cada vez mais tem afirmado sua presença nas sociedades contemporâneas globalizadas, criou um espaço próprio, com imaginário e rituais específicos, representando uma progressiva mudança de atitude e comportamento em relação ao corpo. Como tais drogas são produtos diretos das indústrias farmacêuticas (remédios), e seu uso associa-se a uma dimensão institucional (academias de musculação e ginástica), ligadas ao saber médico ocidental, ocorre a tendência do senso comum, e dos meios de comunicação em geral, à generalização de explicações baseadas em premissas biologizantes, ignorando o aspecto cultural da utilização de tais substâncias. O surgimento do novo uso de novos produtos que assumem significado muito específico para um determinado grupo social,- grupo que é construído e constrói, simultaneamente, esse significado -, aponta para o processo de constante mudança que caracteriza as culturas e sociedades. Mudança, porém, que atualiza no novo a plenitude do antigo, ao concretizar, através das constantes estruturas sócio-culturais, novas configurações coletivas variáveis. Portanto, o consumo de esteróides anabolizantes vem se enquadrando, de forma específica, nos mesmos parâmetros que configuram o consumo e o tráfico tradicional de drogas. Com a crescente estigmatização, as substâncias anabolizantes e androgênicas, em geral, tendem a se articular a atividades ilegais misturando-se a atividades oficiais de exportação e importação, apresentando-se como negócio promissor para “aplicadores de capitais [supostamente] menos éticos” (Ibidem , 1994:88). Também as tradicionais premissas culturais aplicadas ao uso de drogas dionisíacas têm sido atualizadas, apresentadas e re-apresentadas, pelo consumo coletivo de anabolizantes. Para esclarecer esse processo, se faz necessário examinar melhor o que se denomina aqui uso dionisíaco de drogas, ou o que aqui se denomina, drogas dionisíacas. Segundo Nietzsche (1992), a exaltação dionisíaca arrasta o indivíduo, e sua subjetividade, em direção ao esquecimento de si. Em sociedades dos aspectos cognitivos da personalidade dos indivíduos”. Esta ele denomina eidos. (1967: 118-176, 22). 79 primitivas, a droga, conjugada à dança e a rituais de cunho religioso, tem sido a via para a concretização da dimensão extática na qual o indivíduo, principium individuationis, dissolve-se momentaneamente na coletividade30. Este aspecto, presente na primeira fase da obra de Nietzsche, foi aprofundado pelos estudos de Durkheim que postularam a hipótese de um começo efervescente-extático das religiões. Os estados modificados de consciência, causados pelos usos de drogas, relacionados ao êxtase religioso e à procura de libertação momentânea da condição individual sempre estiveram presentes em sociedades simples. Porém, nestas sociedades, especificamente, o uso de drogas está inserido em contextos institucionais nos quais a tradição do uso ritual reitera a afirmação das estruturas sociais objetivas e subjetivas. Já nas sociedades complexas ocidentais e ocidentalizadas o uso de drogas representa, não raro, a busca de ruptura com tais estruturas, invertendo-as. Enquanto nas primitivas o uso ritualizado tende a reafirmar os valores e práticas culturais, nas complexas este uso opera como linha de fuga e de rompimento desafiando normas e valores tradicionais e configurando uso marginal destas substâncias (Perlonger, 1994). Pode-se detectar, no caso específico das sociedades ocidentais, durante os anos 60 e 70 do século XX, a existência destas duas vias acima mencionadas. É possível perceber o surgimento, neste período, de movimentos contraculturais libertários que exaltavam a dimensão de uma mística dionisíaca representativa de uma certa “nostalgia do infinito” (Perlonger, Op. Cit. : 18) ao buscar dissolver determinados aspectos do individualismo ocidental em movimentos e aspirações de cunho coletivista. Por outro lado, no cerne deste mesmo processo, surge simultaneamente, uma espécie de “individualismo psicologizante-libertário” (Salem, 1991:62) apresentando a impossibilidade da Também: Velho, 1998:58-60. 30 - Em seu clássico Patterns of Culture, publicado em 1934, Ruth Benedict utiliza as categorias nietszcheanas de apolíneo e dionisíaco para analisar a variação dos tipos culturais. Benedict ilustrará seu método estudando de modo comparativo dois modelos culturais contrastados, o dos índios Pueblo do Novo México, sobretudo os Zuñi (conformistas, tranqüilos, profundamente solidários, respeitadores, comedidos nas expressões dos sentimentos) e o modelo dos seus vizinhos, os Índios das Planícies entre os quais os Kwakiutl, (ambiciosos, individualistas, agressivos e até violentos, manifestando uma tendência para o exagero afetivo). Ela chamará o primeiro tipo de “tipo apolíneo” e os segundo de “tipo dionisíaco” considerando que estes dois tipos extremos, em maior ou em menor grau, se ligavam a outras culturas e que entre as duas existiam tipos intermediários (Cuche, 1999: 78) 80 ética moderna se livrar da radical oposição indivíduo/sociedade que a caracteriza. Os dois tipos de dionisismo, portanto, encaravam as estruturas sociais tradicionais como cerceando a possibilidade de um horizonte melhor para a humanidade. Mas suas propostas se diferenciavam, já que enquanto um propunha a formação de novas estruturas mais coletivistas em contraposição ao individualismo consumista, o outro concebia como libertação a supressão, através do esforço individual, das estruturas que oprimiam os desejos individuais mais profundos. Para essa corrente, o mal–estar presente na sociedade capitalista estaria representado por qualquer tipo de coerção exterior. No campo intelectual, tal tendência foi representada pelas teorias de Wilhelm Reich, A. S. Neill, Herbert Marcuse, entre outros. Percebe-se, então, que é possível destacar dois tipos de comportamentos dionisíacos que se apresentavam naquele período da história, um dionisismo coletivista e outro de cunho individualizante. O uso das drogas que neste momento se propaga e se concretiza assume significado relacionado a tais posturas. Para os dionisíacos coletivistas elas representariam a busca por uma socialidade mística, psicodélica, que dissolveria os ditames individualistas na busca por uma coletividade superior (hippies). Para os dionisíacos individualistas (junkies) a droga teria o fim de abrir as percepções individuais ampliando a busca pela atualização dos desejos, reiterando-os, ampliando-os e otimizando-os. Nesta última concepção acabar-se-ia por fabricar “linhas de fuga ativas ... [porém,] que se embaralham, se põem a dar voltas em buracos negros, cada viciado em seu buraco” (Deleuze,1979 apud.: Perlonger, Idem .). Ao contrário do xamanismo, por exemplo, esse uso caracteriza, através da busca hedonista e narcísica da ampliação do desejo, a solidão drogada. Desta vertente individualizante outra corrente se concretizou e tem crescido a partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980. Com o fim das utopias coletivistas e individualistas e a consolidação do império do mercado, que se realiza mais efetivamente a partir de 1990, surge o uso generalizado de novas drogas - não apenas dionisíacas como a cocaína, o crack e o ecstasy -, mas drogas apolíneas (esteróides anabolizantes) que, em um contexto totalmente diverso, passam a simbolizar posturas, visões de 81 mundo e práticas sociais distintas e, algumas vezes, opostas às representações coletivas presentes nas sociedades das décadas de 60 e 70 do século XX. O fim das utopias coletivistas dá início a um individualismo radical que vê na instrumentalização do corpo e da forma a via de afirmação do instante e tem na representação social da saúde a chave para uma nova utopia do agora. A concepção de saúde-mercadoria, muitas vezes reiterada pelos usos e abusos da medicina estética, acabam por corroborar com a transformação do corpo em objeto descartável, pois implantes de orgãos e próteses diversas confundem a fronteira do que é mineral, máquina, e do que está vivo (Lévi, 1996). Também o uso do conhecimento científico, no caso específico o das ciências biológicas e médicas, coisas, em traduzido, dentre outras remédios, suplementos alimentares e vitamínicos por ele produzidos, serve à composição da poderosa e crescente indústria da saúde 31 , fornecendo os itens para a construção de um sistema simbólico no qual dogmas, crenças e substâncias produzem (e são produzidas por) um crescente comércio-adoração de imagens, formas e juventude. Em uma cultura na qual o entretenimento, o consumismo e a publicidade tornam-se pilares existenciais, a espetacularização passa a constituir o cotidiano dos indivíduos preocupados com seu marketing pessoal. O corpo, além de representar a verdade deste indivíduo, é também sua vitrine. A imagem por ele exposta pode apresentar-se como suposta via para o sucesso ou fracasso. Diante do imperativo de permanecer sempre jovem, forte, magro, bonito e com aparência saudável, muitas vezes não há hesitação em consumir drogas, exercícios e produtos com o objetivo de otimizar esta vitrine-máquina que sustenta a esperança individual da vitória na guerra intermitente pela conquista da felicidade prometida pelo consumo cotidiano. 31 - Essa indústria é composta por grandes impérios multinacionais de medicina, academias de ginástica, e musculação e indústrias farmacêuticas, formando uma espécie de nova máquina capitalista que fabrica não apenas os itens concretos do consumo, mas também aqueles simbólicos, através da propaganda, alimentando o mercado internacional da adoração à saúde. Um exemplo claro é o do grupo Weider. Fundado, no final da década de 30 do século XX, por um rapaz de entregas aficcionado por músculos, Joe Weider, esse grupo teve em 1995 o faturamento de 300 milhões de dólares. Emprega mais de 2000 funcionários, entre eles cientistas, e é, atualmente, a mais poderosa multinacional de bodybulding do mundo, produzindo máquinas de musculação e pesos, produtos nutricionais, filmes, revistas especializadas(Flex, Muscle e Fitness, Shape, etc.) e o maior e mais respeitado campeonato de 82 Droga Hierarquizante A pesquisa sobre os freqüentadores assíduos de academias de musculação (fisiculturistas ou bodybuilders) pode servir como amostra deste processo mais amplo de construção do corpo e uso de fármacos que vem se concretizando na cultura hodierna, já que tal grupo realiza uma espécie de síntese dos itens acima abordados. Em uma época em que a velocidade predomina entre as multidões anônimas, o corpo musculoso do fisiculturista marca presença, destacando-o do anonimato pela sua forma, tamanho e peso, promovendo o espetáculo da suposta força e hipervirilização radicada na estética. O bodybuilder pode ser considerado a exemplificação exacerbada das representações e práticas do corpo presentes em nossas sociedades. Ele se apresenta não apenas como um laboratório ambulante para os testes de uso de drogas anabolizantes e seus efeitos, como representa o paroxismo de uma cultura que tem tido “obsessão pelos invólucros corporais” (Op.Cit.:86). Mas como se produz socialmente esse ícone de massa muscular? A construção da identidade de marombeiro ou fisiculturista se realiza por intermédio de um processo de aprendizagem de socialização no que denomino campo da musculação. Utilizo a categoria campo em conformidade com a teoria de Bourdieu. Para o autor, campo se refere aos espaços em que se manifestam as relações de poder simbólico. O campo se organiza a partir da distribuição desigual de capitais, sendo que a quantidade de capitais (econômico, social, cultural ou de competência) que um indivíduo detém determina sua posição na hierarquia deste campo (Bourdieu,1986). É possível afirmar que o campo da musculação se insere nos espaços das academias e é hierarquizado tendo como base determinados papéis que os indivíduos ocupam. Estes papéis podem ser resumidos em três, no que se refere aos homens e mulheres. Classifiquei da seguinte maneira os papéis constitutivos do campo, seguindo a ordem hierárquica dos mesmos. 1) Os fisiculturistas: senhores do campo, são atletas semi-profissionais ou profissionais que exibem bodybuilding do mundo, o Mister Olympia, criado pelo próprio Weider, além de ser ele também o 83 musculatura exercitada, durante anos, até a distorção. Possuem um conhecimento efetivo (capital de competência) de como produzir um corpo musculoso e, em geral, são os que vendem anabolizantes nas academias. Quando não o fazem, sabem onde conseguir as drogas. Disputam a legitimidade de seu discurso com os professores de Educação Física que são formados em universidades e não reconhecem sua autoridade. Os fisiculturistas, por sua vez, também, não costumam reconhecer a autoridade dos professores dizendo que “o conhecimento deles se resume à teoria”. Representam, em sua forma física, o modelo de masculinidade hegemônica ampliada, isto é, são os maiores em dimensão corporal nas academias. Exercitam-se pelo prazer de se exercitar. Seu objetivo é o cultivo de músculos cada vez maiores. São os que mais consomem as drogas masculinizantes e constituem o menor grupo de status (Weber,1995) nas academias; 2) Os veteranos: são indivíduos com massa muscular considerável porém distante daquela exibida pelos anteriores. É o grupo mediano, constituído por indivíduos que já têm alguns anos de prática de musculação. Consomem esteróides esporadicamente e seu objetivo é “manter o corpo bonito”, o que indica uma espécie de instrumentalização corpórea diferente daquela comum entre os fisiculturistas que desejam acima de tudo crescer cada vez mais. Os veteranos seriam o exemplo mais claro da masculinidade hegemônica, pois não são homens comuns, como a maioria, nem ostentam musculatura ampliada ao máximo possível como os fisiculturistas. Segundo as freqüentadoras são os que possuem o corpo mais bonito, o que lhes confere, ao menos no mercado sexual, um considerável capital corporal; 3) Os comuns: este é o grupo maior. Constituído por todas aquelas pessoas sem físico atlético. Neste grupo podem ser enquadrados os magros, muito magros, os esbeltos, os gordos, gordinhos, muito gordos, e assim por diante. São a maioria no campo e não desfrutam de capital de competência e nem capital corporal. Em geral são novatos que entram nas academias quando o verão se aproxima ou têm pouco tempo de prática de musculação (Sabino, 2000b). Em relação aos papéis femininos a hierarquia é parecida. Os papéis são fundador da Federação Internacional de Bodybuilding presente em 136 países (Courtine, 1995) . 84 os seguintes: 1) As fisiculturistas: seguem o mesmo processo que os homens na construção de um corpo musculoso. Chamam muita atenção, mesmo nas academias, pelo seu tipo físico que se assemelha ao de um homem musculoso. Para conseguirem tal quantidade de músculos consomem muitas drogas masculinizantes, em maior quantidade até que os homens, além de terem muitos anos a mais de musculação que estes. Escutei relatos nos quais diziam que por vezes eram confundidas com travestis masculinos, pois, devido a testosterona destas drogas, têm pêlos no rosto e voz grossa, além de corpo masculinizado, com costas largas e ombros amplos. Necessário se faz ressaltar que apesar desta aparência masculina não percebi qualquer fisiculturista feminina alegadamente homossexual. Todas que conheci eram casadas com fisiculturistas homens ou eram namoradas destes. Estas mulheres, que se assemelham aos homens fisiculturistas, não desempenham, como eles, um papel ativo no domínio do campo. Em número muito inferior que os fisiculturistas masculinos, elas limitam-se a acompanhá-los ou ajudar outras mulheres desempenhando a função de treinadoras particulares eventuais. Os homens pesquisados disseram não gostar do padrão estético destas mulheres, da mesma forma que as mulheres, em sua maioria -excetuando-se as fisiculturistas-, disseram não gostar do excesso de músculos dos fisiculturistas; 2) As veteranas: são as “gostosas” das academias, segundo os pesquisados. São aquelas que têm “o corpo sarado”, como dizem. Há que ser ressaltado que estas mulheres são as que “mandam” no campo. Exercem o poder de dominação na economia das trocas imagéticas, já que ostentam o padrão estético tido como exemplar pela cultura dominante e veiculado por toda a indústria cultural. Seu poder, contudo, diferente do masculino, reside totalmente em sua estética, em sua forma corporal. São invejadas e tidas como modelo por aquelas que desejam construir forma física ao menos parecida à delas, e desejadas pelos homens das academias, que não perdem oportunidade de lhes dedicar toda atenção, quando solicitados ou não. O tipo veterana pode ser dividido em dois subtipos : a) a magra, que cultiva músculos com menor intensidade; b) a forte, mais musculosa. As veteranas constroem o papel de mulheres ativas e independentes que desejam reconhecimento pela sua 85 capacidade profissional, liderando empreendimentos. A beleza entra neste processo como um item de auxílio à ascensão quando necessário e como um processo de auto construção de identidade. O “sentir-se bem consigo mesma, com seu corpo”, é um estado mental muito valorizado que dá sensação de poder calcado na autonomia. Dentre os inúmeros relatos de veteranas este pode indicar o que foi dito acima: “Meu namorado me deu um ultimato: ou eu, ele disse, ou a academia. Não pensei duas vezes; terminei o namoro de seis anos. Foi difícil, porque seis anos não são seis dias. Mas a minha liberdade não tem preço, Eu venho p’ra academia seis vezes por semana, deixo de comer uma porção de coisas p’ra ficar com o percentual de gordura baixo e faço isso já tem quatro anos. Fora os ‘ciclos'. Não vou parar por causa de homem que no fundo quer aquela mulher que ninguém olha (porque ele tem medo de perder) e que vai ter filhos e ficar engordando em casa enquanto ele tem amantes na rua” (Patrícia, 24 anos. Advogada). O terceiro tipo da hierarquia feminina nas academias de musculação é o comum que segue, mutatis mutandis, o mesmo processo masculino: são gordas, gordinhas querendo emagrecer, magérrimas querendo “ganhar massa muscular” ou mesmo - e aqui já há uma diferenciação em relação aos homens mulheres com o corpo em forma apenas querendo manter seu estado físico. Outro aspecto deve ser ressaltado em relação às fisiculturistas mais especificamente. Tais mulheres são o exemplo mais radical de masculinização, pois consomem em excesso anabolizantes androgênicos a ponto de terem que fazer barba. Esta busca de construir uma identidade viril, provoca muitas vezes processo inverso, causando-lhes deterioração da identidade já que passam a ser estigmatizadas como homossexuais femininas, “sapatão”, ou até mesmo confundidas com travestis: “...eu ‘tava muito grande, igual um homem, tava tomando 86 bomba direto... Hemogenin todo dia, Durateston e Testex toda semana, e malhava feito louca, no mínimo três horas por dia de domingo a domingo. Me enchia de clara de ovo, tomava 280 claras toda semana, 40 por dia... um dia percebi meu estado. Estava enlouquecendo, só queria malhar, malhar e malhar, não me preocupava mais com nada a não ser crescer. Só pensava no meu corpo... Nenhum cara queria nada comigo, e eu não sou sapatão... todos me olhavam, porque eu chamava atenção, mas era porque eu ‘tava estranha... parecendo macho. A gota d’água foi quando entrei no banheiro d’um shopping e as garotas que ‘tavam lá dentro disseram que ali não era banheiro de homem... acabaram chamando o segurança...ele veio e disse que era ‘um absurdo travesti no shopping, ainda mais querendo ir ao banheiro’. percebendo Depois que disso, alguma entrei coisa em não depressão... ‘tava já certa ‘tava nessa história...comecei a fazer terapia...análise... a me cuidar, a tentar organizar meu corpo ‘tava totalmente doido... não menstruava, sentia enjôo, não dormia, tive que tomar hormônio... só que agora feminino... quase morri, porque me dei conta do como eu ‘tava estranha... só conseguia me relacionar com algumas pessoas da academia, meu mundo se resumia a essas paredes aqui, mais nada...(Roberta, 28 anos. Instrutora de musculação). Esse impacto, causado pelo surgimento de uma espécie de identidade deteriorada, pode ser percebido no discurso de algumas mulheres fisiculturistas que ao construírem seu corpo subvertem os códigos de classificação da sociedade hegemônica. Apresentando-se, fora do contexto dos bodybuilders, como signo da duplicidade, da ambigüidade, do estranho, elas acabam sendo cerceadas pela maioria das pessoas, ficando sem papel social reconhecido, ou melhor, sendo enquadradas em papéis sociais ambíguos. Este processo acaba por confiná-las ao grupo de amantes dos pesos e da forma, fazendo-as, em determinadas circunstâncias, perder a identidade, e, conseqüentemente, a 87 aceitação social plena (Goffman, 1982). Apolo - Rei Já foi dito que um novo tipo de consumo de drogas vem surgindo. Este consumo aponta para um ethos ascético com profunda preocupação de integração aos valores constitutivos da cultura dominante combatidos anteriormente pelos grupos da contracultura. Neste processo, parece ocorrer, também, tanto por parte de homens quanto de mulheres, a busca reforçada de uma ética masculinizante que se rebate, não apenas nas atitudes, nas práticas, mas, também, no plano simbólico, inscrevendo-se em uma estética corporal que valoriza a prática do cultivo muscular e hierarquiza a realidade a partir de valores relacionados a este cultivo. Estes valores, radicados na afirmação daquilo que Connel (1995) e Vale de Almeida (1995) denominam masculinidade hegemônica, relacionam-se freqüentemente ao consumo de drogas específicas associado à prática de exercícios físicos e ao culto do corpo, apontando, possivelmente, representações sociais para o surgimento de "novas" relacionadas às concepções de saúde, beleza, sucesso e aceitação social. O uso de tais substâncias (que no Brasil só devem ser adquiridas com a apresentação da receita médica, como manda a lei), as quais denomino drogas apolíneas, coloca, a princípio, seus usuários na categoria de desviantes (Becker, 1971). Apesar disto, o processo de utilização de tais drogas se realiza em contextos e visões de mundo diferentes daquelas comumente associadas aos usuários tradicionais de tóxicos. Os indivíduos que "tomam bombas", como eles mesmos dizem, têm, em geral, o desejo de integração à cultura dominante. Seu "desvio" se realiza por intermédio de um processo que se constitui como tentativa de enquadramento no sistema social dominante. Processo de construção do corpo onde a forma física apresenta-se como atitude de não-desvio. A utilização destas drogas proibidas para a construção de um corpo musculoso se faz não com o objetivo de subversão sistêmica, mas sim como tentativa de se harmonizar com os padrões estéticos vigentes na 88 cultura dominante, sintonia que possibilite aquisição de status, não apenas no interior do grupo, mas na sociedade geral. Assim, os marombeiros fogem, ao menos momentaneamente, do estigma, enquanto incapacidade de aceitação social (Goffman, Idem ). Estigma que ameaça os usuários tradicionais de drogas dionisíacas. Isso se realiza porque a estética que os usuários de drogas apolíneas constroem por intermédio do uso destas não está associada ao desvio e à marginalidade, embora seu produto de consumo para manutenção da forma física, de certa forma, esteja. O bodybuilder então é um "desviante" peculiar, pois não é alguém “visivelmente estigmatizado que prova uma situação de interação social angustiada” (Ibidem :27). Ele desvia para se integrar, como, de certa forma, atesta o discurso de um informante fisiculturista: “...os marombeiros de verdade, os fisiculturistas, não vão contra a ordem das coisas, contra a natureza. A sua natureza. Eles apenas fortalecem ela, ajudam ela aumentar seu potencial para se tornarem seres maiores e mais fortes. Vencedores. E isso é natural...É isso que a natureza quer... Os marombeiros não se sentem envergonhados com seu corpo masculino, têm orgulho dele... isso é normal! Por isso é que querem manter e aperfeiçoar esse corpo...Então, é a maior hipocrisia esse negócio de proibir anabolizante. A maconha, a cocaína, a heroína, vá lá... elas acabam com o cara... a gente só quer é manter a saúde... e, se o cara souber usar, ele não vai ter problema nenhum. Eu uso bomba há 12 anos e nunca tive nada, porque eu me cuido, sei usar... ilegal, então, deveria ser o implante de silicone, dessas porcarias que essas patricinhas e dondocas tão fazendo... também o cara que corta, que opera o pinto p’ra virar mulher, isso sim é ilegal porque é anti-natural...” (Bruno, 29 anos. Atleta e segurança). Este discurso da normalidade indica que o fisiculturista não deseja "fugir 89 do sistema", "viajar" para outra dimensão ou "encontrar uma verdade dentro de si" como fazem os usuários de drogas dionisíacas. Mas se tornar um “vencedor” dentro dos parâmetros estabelecidos pela ordem entendida por ele como natural. Suas representações de saúde e harmonia naturalizam a construção social que ele faz de seu corpo. Sua viagem - se é que assim pode ser chamada - é a do esforço para reforçar as normas e os valores da cultura dominante. Ele, para ser o que é, tem que estar em conformidade com os padrões estéticos dominantes e buscar otimizá-los, preservando-os ou aprimorando-os sistematicamente. Suas novas representações e práticas só são novas se comparadas ao ethos mais acentuadamente hedonista e desviante peculiar aos usuários das drogas dionisíacas (Velho, 1998). Este fato, porém, não impede que esporadicamente, ou mesmo freqüentemente, alguns entre tais indivíduos utilizem drogas dionísiacas. Até o ano de 1998 as “bombas” podiam ser compradas sem qualquer tipo de impedimento em farmácias por qualquer um. Com o gradativo aumento de casos de morte de usuários, além de câncer, falência hepática, entre outros, noticiados pela imprensa32, afora distúrbios de personalidade, o governo federal proibiu a venda dessas drogas para pessoas sem autorização médica, e impôs, mesmo aos médicos, um limite de prescrição aos pacientes, passando também a combater a entrada no país de anabolizantes importados (art.28 port. 344/98) por reembolso postal e tráfego aéreo, meios utilizados pelo narcotráfico para burlar a legislação. Já que o consumo encontra-se cada vez mais limitado por leis que fazem a posse e o uso ou venda dessas drogas um delito sancionável penalmente, o consumo freqüente de tais substâncias tem ficado cada vez mais restrito, limitando a distribuição a fontes ilícitas dificilmente acessíveis às pessoas comuns, além de promover o fortalecimento de um mercado negro que envolve desde o tráfico internacional até donos de farmácias que vendem ilegalmente tais substâncias. Desta forma, para que 32 -Em 1995, por exemplo, foi veiculada a notícia da morte do alemão Andreas Münzer, 30 anos, campeão mundial de fisiculturismo, devido a falência hepática pelo uso de anabolizantes. Em 1998, o fisiculturista brasileiro Enzo Perondini, 35 anos, foi à imprensa denunciar o tráfico de drogas nas academias dizendo que estava com câncer de fígado devido o uso contínuo de tais substâncias. Em 1999 a imprensa anunciou a morte da tri-campeã brasileira de fisiculturismo Lúcia Helena Gomes, 33 anos, também por falência hepática devido o uso de anabolizantes. 90 alguém possa começar a utilizar "bombas", deve também iniciar sua participação em um grupo que "se encontra organizado ao redor de uma série de valores e atividades" (Becker, 1971:65), compartilhando o ethos deste grupo. Portanto, a ética ascética dos marombeiros se configura como atitude peculiar da "geração saúde" fisicalista onde a instrumentalização de substâncias tóxicas não passa apenas pela busca efetiva do entorpecimento. Nem todos os freqüentadores de academias de fisiculturismo podem ser considerados, devido a sua idade, membros exemplares da "geração yuppie" ou "geração fim do milênio", mas compartilham, em geral, valores radicados na construção de uma aparência muscularmente “saudável” com todas as suas conseqüências. Estes indivíduos sustentam um ethos onde há ausência de utopias sociais, aceitam a sociedade "tal como ela é", não objetivando construir nada de diferente do que já existe. Não são politicamente "de esquerda" como o grupo dos fumantes de maconha e consumidores de cocaína, "vanguardistas-aristocratizantes", estudados por Velho (1998:186), nem hedonistas ao modo do grupo de surfistas consumidores de marijuana, também por ele estudados. São indivíduos que apenas "querem subir na vida" e conseguir sucesso no que fazem, olhando com total desconfiança atitudes que não sejam compatíveis com sua ética da disciplina. São pessoas pragmáticas que não dão muito valor à erudição e sim ao conhecimento prático que possa trazer retorno financeiro rápido. De fato, há mesmo, entre eles, um anti-intelectualismo. Em geral, são profissionais liberais (advogados, administradores, engenheiros, entre outros), estudantes universitários e secundaristas. Enfim, tais pessoas são representantes de uma classe média carioca que tem como utopia única a utopia urbana - segundo Velho (1978) de "morar na Barra da Tijuca"33, ostentando o status de “emergente”. Talvez seja possível afirmar que transitamos da chamada "geração cabeça" da década de 60 do século XX para a "geração saúde" do início de milênio. Geração que busca na ostentação da forma a demarcação das diferenças sociais, 33 - De acordo com Velho (1978), Copacabana foi o bairro escolhido pela classe média em ascensão na década de 1970, representando este bairro na época, a ascensão social ambicionada. Atualmente, o bairro 91 inscrevendo em seu corpo, grosso modo, como os índios Guaiaqui estudados por Clastres (1989), as visões e divisões de mundo que remetem às relações de poder e dominação constitutivas da sociedade a qual pertencem. Entre Apolo e Dionisos Seria exemplo de ingenuidade acreditar na separação estrita entre os usuários de drogas dionisíacas e apolíneas incorrendo no erro de confundir o modelo da realidade com a realidade do modelo. Tais categorias são tipos ideais não passando de uma acentuação, um exagero, de determinadas características que não estão presentes de forma pura na realidade social (Weber, 1995). Portanto, se parecem expressar um binômio estático, isso é um engano. Tal ilusão é proveniente de serem categorias com limitações peculiares inerentes à linguagem científica que busca, ao menos nesse caso, uma aproximação compreensiva de uma realidade sempre dinâmica e por vezes fugidia. Sendo assim, é necessário ressaltar, por exemplo, que o grupo de indivíduos classificado como apolíneo não apresenta sempre a conduta aqui relatada como constituindo tal tipo de socialização. Ocorre, muitas vezes, trânsito entre o consumo de drogas, o que ressalta o fato de que a divisão proposta não pode, e não deve ser, estática. Muitos bodybuilders transitam do uso do Deposteron e da Deca Durabolin, por exemplo, para a cocaína e a maconha, não apenas com o objetivo de inverter as estruturas, em um ritual esporádico de contestação estrutural, mas pelo fato de descobrirem que tais drogas, apesar de suas características entorpecentes, podem, em alguns casos, ter efeitos relacionados aos fármacos apolíneos, como o emagrecimento ou a disposição para suportar um período de treinamento pesado. Da mesma forma, algumas drogas apolíneas podem surtir efeitos contrários como euforia, estado de alerta e surtos psicóticos. Sintomas denominados na literatura internacional como “steroid rage” ou, de forma abreviada, ”‘ roid rage” (Fussel, 1991). O seguintes relatos colhidos durante o trabalho de campo em uma da Barra da Tijuca exerce este papel na geografia carioca. Não é por acaso que neste bairro existe o maior 92 academia renomada de Copacabana atestam tal interpretação: “Eu sempre quis ter um corpo perfeito. Malho há muitos anos. Em 1996 conheci uns caras que me deram várias dicas sobre como tomar bombas. Fui tomando tudo que me diziam que era bom para crescer; fiz tudo quanto é ciclo, tomei todos os esteróides que existem. Comecei a tomar 1ml por semana. Alguns meses depois comecei a fazer ciclos completos porque eu queria competir, aí eu usava quatro tipos de esteróides ao mesmo tempo. Às vezes eu injetava, às vezes tomava comprimidos. Depois, como eu queria emagrecer, passei a cheirar; passei a usar cocaína porque ela inibe minha fome...” (Mário, 28 anos. Fisiculturista). Este outro relato é ainda mais esclarecedor: “Para conquistar um corpo perfeito usei muita coisa mesmo. Fiz do meu corpo um laboratório. Experimentei de tudo. Usei todos os esteróides, cocaína, insulina e maconha. Como eu queria ser um grande fisiculturista achava que esse era o caminho certo para conseguir competir com o máximo possível de definição. Aprendi a tomar bomba, a fazer os ciclos, a usar todos os remédios e vitaminas para diminuir os efeitos colaterais. Tomei de tudo; tive hepatite medicamentosa e fiquei careca, [risos]. Mas o pior foi quando descobri que a cocaína fazia a fome passar... porque quando a gente está em período de preconstest [época de preparação para as competições] a gente faz de tudo para emagrecer, come peixe cru, passa fome, usa laxante, bebe água de bateria de carro ao invés número de academias de musculação da cidade. ( JB.16/05/99.p.3) 93 de água normal... - Mas, por que isso? - Porque a água de bateria é destilada e então ela não fica retida no organismo como a água normal que tem sais minerais. Quando a água fica retida – e é por isso que a gente não come sal, porque o sal retém água no organismo – a gente fica sem definição muscular, a aparência fica meio gorda, só inchada, percebe? (...) - E... - Pois é, aí fiquei louco para descobrir tudo que me fizesse emagrecer, porque eu adoro comer doce e tudo que é comida braba, e, pior, tenho tendência p’ra engordar. Imagina. Isso é uma tragédia pra quem quer ser fisiculturista, quer competir: como eu vou manter dieta se não consigo passar fome? Se não consigo ficar sem comer doce? Treinava que nem um louco, ficava quatro horas por dia na academia, às vezes de domingo a domingo sem descansar e não conseguia uma boa colocação nos campeonatos. Treinava, treinava e depois comia, pronto! O trabalho tinha sido todo jogado fora! Aí, conheci um cara que vendia bomba e que conseguia qualquer coisa: maconha, pó, tudo! Ele me falou que a cocaína ajudava a emagrecer porque ele já tinha feito isso. Então passei a cheirar e foi tiro e queda. Deu certo! Comecei melhorando logo meu desempenho nas competicões e consegui boas colocações. Mas eu queria crescer, aumentar massa, aumentar tamanho p’ra competir na categoria pesopesado. Então reduzi as cheiradas, passei a usar cocaína só nos períodos pre-contest. Em 99 tirei terceiro lugar numa competição, porque usei durante três meses antes de ir p’ro campeonato. Mas, aí eu ‘tava querendo dar uma parada na coca, porque já ‘tava ficando com medo, 94 comecei a sentir uns troços estranhos, palpitações, sabe? Então o cara que tinha me indicado o pó me disse que remédio p’ra diabetes, antiglicêmico, servia p’ra emagrecer. E dava certo também, toda vez que eu comia qualquer coisa que não podia comer, eu ia lá e tomava um comprimido. Aí eu me sentia nas nuvens. O antiglicêmico impedia que tudo que eu comesse fizesse efeito. Podia comer tudo que não alterava nada no meu corpo! Mas ao mesmo tempo que eu ficava feliz naquela hora, porque sabia que ‘tava tomando um produto que ia manter o meu shape, eu sabia que aquilo fazia mal também, que eu podia ficar doente e até morrer. Sei disso. Todo mundo sabe disso! Então era uma briga na consciência: o troço fazia bem por um lado e mal por outro. Comecei a ficar estressado. Era muita coisa na cabeça. Eu tinha que competir, p’ra competir tinha que treinar profissionalmente, treinar pesado, muito além das minhas forças, tinha que me preocupar com os efeitos dos produtos, tinha que controlar minha compulsão para comer tudo que é proibido para atleta. Tudo isso me deixava muito irritado, brigava com todo mundo, perdi três namoradas, saí de casa, criava problema na academia. Então vi que tinha que ficar calmo. Um dia fumei maconha! Queimei um baseado e me senti ótimo! Relaxadão! O estresse passou rapidinho. Me senti outro. Nos campeonatos, na hora das apresentações no palco eu ficava outro, tranqüilo, mais solto, desinibido, relaxado. Passei a fumar todo dia, mas é um círculo vicioso: a maconha na hora te deixa relaxado, mas ela às vezes te dá fome, a larica, então tenho que usar os outros produtos p’ra poder controlar todo o esquema...a maconha me deixa bem de cabeça, bem psicologicamente para poder enfrentar os problemas do treinamento... (Daniel, 34 95 anos. Fisiculturista). Há, nestes casos de uso de entorpecentes por parte de fisiculturistas e freqüentadores assíduos de academias de musculação, a ausência do aspecto específico de sociabilidade que os estudos de Velho (1998) destacaram sobre o consumo de tóxicos por camadas médias urbanas da zona sul carioca. O que ocorre é um individualismo que instrumentaliza as drogas – tanto apolíneas quanto dionisíacas - como meio de otimizar a forma física, por sua vez, instrumentalizando esta última como veículo de afirmação de status, conquista de parceiros sexuais em mesmo nível estético e inserção social. Como disse, tais práticas podem insinuar o surgimento de uma nova dimensão comportamental relacionada à "geração saúde", fisicalista, do final dos anos 90 do século XX e início de milênio diretamente associada à classe média em ascensão e precedida pela "geração dos yuppies" (young urban professionals) dos anos 80 os quais, assim como esta geração, desejavam a integração plena ao sistema social como bem sucedidos e abastados profissionais liberais Não é possível descartar o aspecto de que os fisiculturistas atuais, com seu tamanho e muscularidades singulares, apresentem-se (apesar de uma primeira volição de se integrarem ao sistema dominante, uma característica física que beira à marginalidade) de forma ambígüa em relação ao uso de fármacos e drogas em geral. Como Mary Douglas (1976) ressaltou, tudo o que é profano e marginal é portador de um certo quantum de poder. Se as drogas dionísiacas são itens profanos para aqueles que fazem da forma física uma de suas razões de existência, elas muitas vezes exercem também um certo fascínio sobre tais indivíduos. O álcool, os alimentos gordurosos e pesados, os refrigerantes e os doces de todos os tipos (comidas proibidas) podem ser considerados alimentos tabu durante a maior parte do ano para os fisiculturistas e freqüentadores assíduos das academias. Porém, durante festas que poderiam ser consideradas exemplos de rituais de 96 inversão, tais alimentos podem ser consumidos como uma demonstração de subversão das regras. Assim, em um aniversário de alguém no grupo comemorado na academia, não raro pode ocorrer uma verdadeira orgia alimentar em que são consumidos todos os itens proibidos durante a maior parte do tempo. Tais acontecimentos produzem ausências nos treinos nas academias, durante dias, daqueles fisiculturistas que passam mal devido ao consumo excessivo de tais alimentos e bebidas. Tal fato é ainda agravado porque o uso constante de determinados esteróides produz reações hepáticas que, se associadas ao consumo de doces e alimentos gordurosos e álcool, causam “ataques de fígado”, como eles relatam. Da mesma forma que nessas ocasiões consomem-se alimentos proibidos, em outras acasiões, também festivas, pode ocorrer o uso de entorpecentes. Uso não instrumentalizado – com o objetivo de emagrecer ou relaxar – como visto anteriormente. Contudo, o que marca a singularidade da época atual em relação ao uso de novas e antigas drogas – ao menos no caso específico dos fisiculturistas – é justamente a instrumentalização das drogas dionisíacas direcionadas para a construção da forma. Se, no passado, eram utilizadas para inverter as estruturas ou mesmo afirmar uma individualidade libertária, hoje tais aspectos ideológicos perderam o sentido. O que sobrou resume-se à manifestação de uma prática instrumental que radica na forma física seu objetivo, seja para aprimorála, seja para relaxar momentaneamente o corpo (preparando-o para nova carga de exercícios) da busca da manutenção dessa mesma forma. 97 Capítulo III “Eu sou corpo e nada mais; a alma é apenas uma palavra que designa uma parte do corpo...o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade unânime, um estado de guerra e de paz, um rebanho e seu pastor.” Nietzsche Ética e estética do esteróide Os fisiculturistas utilizam com regularidade fármacos (esteróides anabolizantes) que poderiam ser denominados drogas masculinizantes, já que são drogas constituídas, em geral, por hormônios masculinos sintéticos e, portanto, virilizantes (androgênicos), que proporcionam não apenas a aquisição de massa muscular acima da média, mas também aquisição das características sexuais masculinas (surgimento de pêlos por todo corpo, voz grave, etc)34. Se faz necessário compreender como o uso de tais substâncias está relacionado à própria visão de mundo deste grupo que apresenta a tendência para classificar indivíduos em função da sua relação com exercícios físicos e sua aparência. O uso destas drogas também está relacionado diretamente à construção ritual da pessoa, além de indicar uma tendência à hiper virilização da ética e da estética (androlaria) nas instituições de cultivo à forma física, remetendo, ainda, ao surgimento de um novo tipo de consumo de novas drogas. Consumo relacionado a representações e práticas opostas mas, por vezes, também, complementares, àquelas comumente associadas aos 34 - Estas substâncias hormonais são para uso em seres humanos, porém alguns praticantes utilizam hormônios fabricados para cavalos e para uso veterinário, em geral, como o Equifort e o Androgenol por acharem mais potentes que as substâncias direcionadas para humanos. Na primeira semana de agosto do ano de 2000 a imprensa brasileira noticiou a morte do estudante Jean Mendonça de Mesquita, de 23 anos, lutador de jiu-jitsu que participava de um campeonato no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, devido ao uso de Potenay uma substância indicada para cavalos anêmicos. O atleta teve infarto quando se preparava para lutar. Esta substância (Potenay) não é anabolizante, mas indica a tendência, entre os marombeiros, de usar remédios para cavalos pensando alcançar maior eficácia. O Potenay é uma substância vitamínica injetável com alto teor de anfetamina podendo causar arritmia cardíaca. O consumo de produtos para cavalos e animais de grande porte tem aumentado entre os freqüentadores assíduos das academias de musculação e fitness. Xampus, pomadas, vitaminas, esteróides anabolizantes e até mesmo rações têm sido consumidos por tais pessoas devido à representação social de força que tais substâncias portam. 98 consumidores tradicionais de tóxicos35. Pretendo aprofundar a compreensão de como o uso destas drogas pode indicar não apenas uma tendência de adesão a uma ética individualista, competitiva e masculinizante, inscrita em uma estética corporal, mas, também, tentar elaborar uma melhor compreensão da importância que estes fármacos têm para a construção ritual da identidade deste grupo, além de destacar as implicações teóricas que este fato social representa para a análise das atuais sociedades de consumo. Através da observação participante, ou “participação observante” como escreveu Waquant (2002), foi possível compreender determinados aspectos do cotidiano do grupo, como o uso e a venda das drogas citadas, por exemplo, que seriam impossíveis de serem percebidos apenas com entrevistas, conversas ou observações etnográficas superficiais. Na observação participante apresentou-se a nítida percepção da diferença entre o que é dito pelos informantes e o que é praticado, de fato, por eles (Becker,1971;1994). Em relação ao consumo de esteróides, por exemplo, raramente os usuários, quando perguntados por alguém estranho ao contexto, admitem o uso. Dessa maneira, os dados recolhidos durante o trabalho de campo sugerem haver, em relação a outros trabalhos que utilizaram surveys, uma quantidade de usuários que supera os números apresentados em tais surveys (Araujo, Andreolo e Silva, 2002; Iriart e Andrade, 2002). A pesquisa de Araújo, Andreolo e Silva, por exemplo, baseou-se em entrevistas com 183 frequentadores de 14 academias de musculação da cidade de Goiânia. De acordo com o resultado, tais praticantes de musculação consomem esteróides e suplementos sendo a 777Creatina o suplemento mais utilizado (24%) e o fármaco denominado Deca Durabolin o esteróide de maior uso (21%) vindo logo em seguida o Hemogenin (16%). O consumo maior desses produtos ocorreu em indivíduos com idade entre 18 e 26 anos (74%) e nível médio de escolaridade (66%). Mais de 70% usaram tais componentes químicos com o objetivo de ganhar massa muscular. Os consumidores de esteróides relataram euforia (81%) e aumento de cravos e 35 - Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) tóxicos são substâncias que “acarretam dependência física e psicológica, tolerância e síndrome da abstinência.” Já droga é definida como “qualquer substância que, introduzida no organismo, é capaz de alterar seu metabolismo” (Barbosa, 1986:1244). Os esteróides anabolizantes acarretam dependência psicológica e tolerância, além de, obviamente, alterar o metabolismo orgânico. 99 espinhas (94%) e os consumidores de suplementos aumento de sono (17%). As pesquisas, em sua maioria, apontam para a ignorância dos pesquisados sobre os efeitos dessas drogas como o principal fator propiciador do uso. Em quatro anos e meio de trabalho de campo realizado em 12 academias em bairros de classe média do Rio de Janeiro – da Zona Norte à Zona Sul – foi possível perceber que a ignorância seria, se não o último, ao menos um dos últimos elementos que poderia ser considerado causador, ou mesmo sustentáculo do uso de tais produtos químicos. Foram entrevistadas 310 pessoas (200 homens e 110 mulheres) e praticamente todas demonstraram conhecer os riscos que correm os usuários de tais componentes químicos. De fato, o conhecimento de tais riscos, ao contrário do que supõem muitos pesquisadores, é um fator que reitera o uso, posto que o risco surge, entre o grupo, como algo positivo que reforça a coragem individual e as estruturas hierárquicas do próprio grupo, já que usar esteróides é parte de um ritual contínuo de construção identitária na qual arriscar a vida é fator de valorização da experiência e reconhecimento social. Reconhecimento ligado ao status entre tal “tribo urbana”. Não foram utilizados questionários na pesquisa, porque, conforme dito, o pesquisador quase tornou-se parte do meio pesquisado. Como dito anteriormente, as entrevistas foram realizadas de maneira informal durante os anos de trabalho de campo. Logo após a saída do recinto, as principais questões surgidas durantes as conversas eram anotadas em um caderno de campo. Dentre os 200 homens entrevistados, 81% (162 pessoas) disseram já ter utilizado esteróides anabolizantes. Dos que disseram utilizar esteróides (muitos dos quais o uso foi observado nas academias), 70% (140 pessoas) possuíam idade entre 18 e 30 anos, 2% (4 pessoas) idade entre 15 e 18 anos e 9% (18 pessoas) idade entre 30 e 56 anos. 79% (128 pessoas) disseram utilizar com freqüência aumentando as doses no verão, época de maior exposição dos corpos. Dentre os 81% que disseram utilizar tais drogas, 58% (94 pessoas) disseram estar, na época, cursando ou ter cursado universidade. Das 110 mulheres entrevistadas, 69% (76 pessoas) disseram já ter utilizado pelo menos uma vez esteróides anabolizantes. Dessas, 30,2% (23 pessoas) 100 disseram utilizar com freqüência, 58% (44 pessoas) apenas no verão. A idade de 90% das usuárias (99 pessoas) situa-se entre os 16 e 24 anos, sendo 10% (11 pessoas) entre 25 e 36 anos. Do total de usuárias, 61% (67 pessoas) disseram freqüentar ou ter freqüentado cursos universitários. Os principais esteróides anabolizantes – ou “bombas” como são chamados pelos consumidores - utilizados nas academias pesquisadas foram os seguintes, com as seguintes funções de acordo com os relatos36: Deca – Durabolin : (Decanoato de Nandrolona) a mais conhecida e ingerida pelos bodybuilders nas academias cariocas. É moderadamente androgênica (capacidade de produzir características masculinas), sendo usada para ganho de músculos (masssa musucular) e pré-competição. Alguns fisiculturistas disseram reter líquidos (ficam com aparência inchada o que provoca o desaparecimento da definição muscular) com o uso dessa droga. O que pode ser percebido é que a Deca é utilizada como um esteróide “de base”, pois é misturada com outras drogas naquilo que os fisiculturistas denominam ciclos; ou seja: a mistura e o uso crescente ou decrescente de drogas com objetivos específicos. De todos os esteróides é o que apresenta o menor efeito colateral, contudo pode ser detectado em exames anti-doping até um ano após o uso. É encontrado em ampolas de 25mg ou 50 mg. Produzido no Brasil pela Akzo Nobel Ltda. Durateston: (Decanoato de Testosterona; Fenilpropionato de Testosterona; Isocaproato de Testosterona e Propionato de Testosterona). Este esteróide é a soma de quatro compostos de testosterona. A intenção dessa combinação é de produzir uma ação imediata após a aplicação, e mantê-la por um período prolongado. É usada para ganho de massa e aumento de força e peso e quase não retém liquido. Ampolas de 250mg. Também fabricado no Brasil pela Organon. Winstrol: (Stanozolol) Esteróide de pouca retenção hídrica, mas com pequenas taxas anabólicas (“faz crescer pouco”, como dizem os freqüentadores das academias). Por ser considerado fraco pelos usuários, foi percebido, durante o tempo decorrido da pesquisa, grande uso por parte das 101 mulheres, principalmente mulheres jovens querendo “definir” musculatura, ou seja, baixar o nível de adiposidade. Esta lógica, fraco = feminino, de certa forma, reitera as diferenças estruturais contidas nas classificações do grupo. Esta droga é importada da Espanha e produzida pelo laboratório Zambon. Hemogenin: (Oximetolona). Tida como a mais perigosa de todas as drogas conhecidas entre os fisiculturistas. Mesmo assim é muito usada, pois ocasiona um rápido ganho de força e volume muscular, porém apresenta a tendência de produzir rápida toxidade hepática, hipertensão e câncer. Deposteron: (Cipionato de Testosterona) Droga com alto potencial androgênico promovendo ganho rápido de força e volume muscular, porém com perda rápida desses mesmos itens assim que passam os efeitos de seu uso. De acordo com os relatos é a maior responsável pelo surgimento de ginecomastia entre os bodybuilders. Também apresenta alta retenção hídrica e provoca aumento da pressão arterial além de atrofiar os testículos dos usuários. É produzido no Brasil pela Organon. Equipoise: (Undecilenato de Baldenona) É de uso exclusivo veterinário, porém os fisiculturistas utilizam com freqüência para o aumento rápido da massa muscular e força. Em geral os fisiculturistas utilizam essa droga misturada à Deca Durabolin ou ao Durateston para aumentar o efeito anabolizante. A apresentação é em caixas com 6 ampolas de 2ml cada. É uma droga produzida na Itália pela LPB Pharmaceuticals. Equifort: (Undecilenato de Baldenona) Tem a mesma composição do Equipoise e é para o uso exclusivo de eqüinos com problemas de distrofia muscular, osteoporose, anemia aplástica, coquexia e anorexia. Dizem os usuários que tal droga apresenta baixa probabilidade de causar ginecomastia. É produzida pela Bayer. Androgenol : (Propionato de Testosterona) Outro esteróide para o uso de eqüinos com deficiência de hormônio sexual masculino. Há entre muitos fisiculturistas a concepção de que tais drogas, sendo veterinárias, (para cavalos), têm uma ação “mais forte” que a das drogas para humanos; o que parece ser uma concepção equivocada, pois os hormônios são os mesmos. 36 - É importante ressaltar que os efeitos descritos aqui são aqueles relatados pelos fisiculturistas e não os 102 O uso de esteróides além de causar acnes, calvície, problemas cardíacos (infarto do miocárdio), hipertensão arterial, complicações hepáticas, câncer, aumento de mamas nos homens, atrofia testicular, diminuição da produção de espermatozóides e diminuição dos hormônios sexuais – e conseqüentemente da libido -, também provoca distúrbios psicológicos (‘ roid rages como denominam os pesquisadores americanos) como agressividade e paranóia. Nas mulheres provoca também atrofia do útero e das mamas, virilização, como alteração na voz (voz grave), crescimento do clitóris, suspensão dos ciclos menstruais e crescimento excessivo de pêlos. Como foi dito, a maioria dos usuários tem pleno conhecimento das conseqüências dos uso de esteróides anabolizantes – ao contrário do que supõem alguns pesquisadores. O fato é que a maior parte dos sintomas acima descritos demoram alguns anos a aparecer. O que leva a maioria dos jovens a pensar que vale a pena arriscar para ter um corpo socialmente aceito e símbolo de status e sucesso agora, no presente: “Ah, cara, tenho 20 anos, se quando eu tiver trinta, trinta e dois, eu tiver doente, foda-se... isso é um risco. A vida é isso: temos que correr riscos, certo?, se quisermos conseguir as coisas... eu não vou é ficar feio, gordo, sem pegar ninguém, apanhando dos outros, sem conseguir emprego, sem ser respeitado agora, esperando chegar aos 30, 40 com saúde... e se eu não chegar lá, e se eu morrer de tiro na rua, com tanto assalto e briga que tem por aí... se eu for atropelado? Entendeu? Então eu uso bomba mesmo e que se dane o mundo!” (Pedro. 20 anos. Estudante) ainda: “(...) de que adianta viver muito e ser um fracassado? Um infeliz que não pega mulher, não consegue ser respeitado, não consegue se olhar no espelho? É melhor viver pouco e feliz do que constam nas bulas de tais medicamentos, os quais não foram criados para o propósito destes atletas . 103 que muito e desgraçado. Se o diabo aparecesse para mim e dissesse: ‘cara, vou te dar tudo que você quiser, mas vou deixar você viver só mais dez anos’ eu ia topar na hora! (Mario. 27 anos. Personal Trainner) também: “Bom, no verão eu malho muito mais e tomo uns produtos aí... tenho que ficar gostosa! A mulher não pode se descuidar, a concorrência é muito grande. Tem que ‘tá gostosona, sarada, com tudo em cima, sem celulite, com a barriga sequinha se quiser arrumar alguém, se quiser ficar com alguém ... homem está escasso no mercado (risos). Se a mulher não ‘tiver legal ela fica até deprimida, não dá nem p’ra botar um biquini. Cê já foi à praia do Pepê? Só tem mulherão lá, então não dá, né? Se quiser concorrer, se quiser freqüentar os locais legais com gente bonita, a mulher também tem que ’tá bonita, no esquema...” (Angela. 18 anos. Estudante). outro: “comecei a tomar bomba quando tinha 17 anos, porque entrei na academia e um marombeiro disse que eu tinha uma estrutura excelente para o fisiculturismo, que eu ia ficar enorme e definido muito rápido e que se eu quisesse ele podia me treinar, então comecei a treinar com ele todo dia a partir das 9 da manhã, já na terceira semana ele me trouxe Deca e Durateston. Tomei e comecei a crescer, em dois meses consegui ganhar quase 10 quilos de massa seca! Logo comecei a competir, então não tem jeito. É impossível alguém ser atleta hoje sem tomar bomba, e não é só no culturismo não, isso é em tudo quanto é esporte. É impossível! Não existe um atleta profissional que não tome bomba de vez em quando. (Mário. 29 anos. Instrutor de musculação). Fussel (1998) escreveu que os bodybuilders não nascem, são fabricados. Tal fabricação demora anos. No caso de atletas, de oito a dez anos. 104 Quando se trata de amadores, dois ou três anos já bastam para um corpo recoberto por couraça muscular aparecer. São quatro horas diárias de exercícios, duas horas pela manhã, duas à noite; seis dias por semana – entre amadores três horas diárias já produz o efeito desejado. Nesse processo surgem lesões por esforço repetitivo levando a cirurgias nos ombros, joelhos; bursites, tendinites, artrites, hepatite medicamentosa, hipertensão, ginecomastia, dores de cabeça e outros problemas associados ao uso prolongado de drogas. No esforço de fabricação da forma as drogas exercem papel crucial. Para melhorar o desempenho nas academias não só as substâncias acima descritas são utilizadas mas também todos outros tipos de hormônios: HGH (hormônio do crescimento humano), hormônios para a tireóide, hormônios femininos, além de anfetaminas, remédios para asma, com o objetivo de acelerar o metabolismo e fazer o indivíduo emagrecer (Clenbuterol), diuréticos e até mesmo cocaína e maconha. A primeira – cocaína - para conferir ânimo e “ajudar a emagrecer” a segunda – maconha - para “relaxar após o treino”. Após meses de treino pesado, quando o verão está próximo, e, não raro, as competições, os fisiculturistas começam dietas radicais com o objetivo de alcançar maior definição muscular. Através do uso de diuréticos, esteróides, aceleradores de metabolismo (Clenbuterol e Efedrina) e consumo de água destilada, associado à suspensão da ingestão de sal, carboidratos e todo tipo de gorduras, a pele dos bodybuilders torna-se fina como o papel-bíblia, deixando transparecer cada fibra muscular rodeada pelas veias. Nesse período é muito comum ocorrerem desmaios nas academias. Também, durante as competições, não é raro perceber nos bastidores, indivíduos com o nariz sangrando, com ânsias de vômito e tendo desmaios. A dimensão simbólica desse fato não pode ser desprezada. A dor e o sofrimento aparecem neste contexto, como dito anteriormente, para reiterar as estruturas do grupo conferindo autoridade e destaque àqueles que revivem sempre o cálvario da adoração muscular. Os riscos são recompensas a serem colecionadas e guardadas; representam barreiras superadas, ascensão, ao menos simbólica, no crescente mundo do fisiculturismo e das academias. Significa aquisição de 105 respeito entre os neófitos e entre os pares. Corpo e alma são assim indissociáveis. Produzidos pela prática e na prática social, forjados pelas ações e aspirações de uma nova época. O esteróide anabolizante está para os freqüentadores assíduos de academias de musculação e fisiculturistas como a maconha – chamada de Kaia – está para os rastafaris, ou o chá de ayuasca para os fiéis do Santo Daime37. A própria construção identitária do indivíduo no grupo está associada ao uso contínuo ou esporádico de esteróides; e mesmo o risco de vida que eles apresentam contribui para a valorização do ritual de construção identitária. De fato, muito mais do que cultivar músculos, sobrehumanos, os fisiculturistas cultivam uma ética representativa da nossa era: O indivíduo deve estar disposto a pagar o máximo para atingir seus objetivos; o indivíduo deve ser livre para se projetar e construir seu destino; o indivíduo deve possuir autonomia para construir seu corpo, subjugando-o a sua mente; o indivíduo deve submeter e enquadrar a matéria aos ditames da razão instrumental. Além dos aspectos relacionados aos preceitos subjetivos e objetivos do campo das academias de musculação e fisiculturismo, talvez existam outros fatores sociais que contribuam para o crescente consumo de fármacos entre os freqüentadores dessas instituições. Um deles está no hábito comum em nossas sociedades de ingerir substâncias farmacológicas como meio de resolver, ou ao menos minorar, as dificuldades da vida. Haveria, conforme Nascimento (2003), um condicionamento das pessoas aos medicamentos fazendo com que os indivíduos, ainda bebês, sejam tratados com xaropes, sedativos e gotinhas neurolépticas. As frustações experimentadas tendem a ter uma contrapartida nos fármacos consumidos. A pessoa cresceria, de acordo com esse ponto de 37 - Como vem indicando a mídia esportiva parece que tal processo tem se extendido para outros esportes, principalmente os profissionais. Assim, por exemplo, a matéria publicada na revista Carta Capital de 18 de fevereiro de 2004 sugere que o futuro dos esportes está no interior dos tubos de ensaio e nas cobaias transgênicas. Há que se destacar que testes anti-doping não são realizados, ao menos até o momento, em campeonatos de fisiculturismo, entre os jogadores de rugby e nem entre os atletas do basquete norteamericano (NBA). Justamente estes esportes têm sido apontados como exemplo de mutação muscular sofrida por seus atletas nos últimos 20 anos. Segundo a matéria da revista: “qualquer um que tenha visto alguns minutos de jogos antigos – de cerca de 20 anos atrás – do basquete profissional americano, ficaria impressionado com a evolução do físico dos jogadores. Hoje, os jogadores da NBA são mais pesados e notavelmente mais musculosos. O jogo é jogado de acordo com a estética do esteróide. O que antes era um esporte gracioso e geométrico- atletas procurando espaços abertos, pensando em termos de ângulos de 106 vista, condicionada a buscar resolver seus problemas e angústias com substâncias farmacológicas, bebidas alcóolicas ou outros tipos de drogas. O modelo estaria, portanto, na própria família condicionando a vida dos indivíduos desde a sua tenra infância. De acordo com a autora: “as pessoas tendem a procurar na medicina as soluções para grande parte de seus problemas e limitações. Buscam em medicamentos e drogas mudar o seu temperamento, a sua personalidade, o seu estado de espírito” (:137). Essa banalização do consumo de drogas, farmacêuticas ou não, teria como argumento central o período turbulento pelo qual as sociedades globalizadas estariam atravessando, e a correlata diminuição da resistência das pessoas em tolerar o acirramento de pressões. Haveria um mal-estar coletivo que afetaria principalmente as populações dos grandes centros urbanos Produto, em grande parte, do capitalismo globalizado, esta espécie de síndrome coletiva apresentaria também raízes culturais. Luz (1997:18) argumenta que transformações recentes observadas na cultura estariam propiciando a “perda de valores humanos milenares nos planos da ética, da política, da convivência social e mesmo da sexualidade, em proveito da valorização do indivíduo, do consumismo, da busca de poder sobre outro e do prazer imediato a qualquer preço como fontes de consideração e status social”. Radicada nos meios de comunicação de massa, essa mudança de valores se traduz em “incertezas e apreensão quanto ao como se conduzir e ao que pensar e sentir em relação a temas básicos como sexualidade, família, nação, trabalho, futuro como fruto de uma vida planejada etc.” Nessa sociedade de risco e de desencaixes (Beck, 1996; Giddens, 1991) a busca de uma válvula de escape, que possa estar inserida no consumo, reproduzindo-o, toma vulto como parte significativa da existência de um número significativo de indivíduos. Assim, o uso de drogas e fármacos em geral – que Duarte (1999:22) denomina “medicamentalização” - seria uma das respostas a esse mal-estar generalizado. Para os consumidores, elas agiriam como uma defesa frente às agressões impostas pelo estilo de vida contemporâneo. A decisão de consumí-las seria o resultado de uma fatalística e ilusória escolha entre droga e passes – é agora primariamente dominado pela agressão; os jogadores gravitam no mesmo espaço e 107 tensão, formando um trágico círculo vicioso. Nesse movimento de consumo, as pessoas tenderiam a procurar nas drogas as “soluções” para grande parte de seus problemas e limitações. Buscariam mudar sua inserção social, seu comportamento, sua forma física, personalidade e estado de espírito. Na esteira dessa tendência, a indústria farmacêutica – afora a das drogas efetivamente ilegais e a indústria de suplementos alimentares que funciona com a mesma lógica do lucro crescente - amplia seu mercado gradativamente, recorrendo à forte difusão de informações, com argumentos sedutores para vender a idéia de que seus produtos promovem a alegria de viver e a saúde. A cada novo lançamento de produto, estratégias de marketing são direcionadas aos profissionais da saúde e da estética que exploram a insegurança e os desejos dos consumidores. Tal fato provoca o aumento gradativo do uso de tais substâncias entre os freqüentadores de academias e consultórios (Nascimento, 2003). O já clássico estudo de Dupuy e Karsenty (1979) sobre o poder dos fármacos esclarece tal processo: “o medicamento aparece verdadeiramente como um objeto mágico. A magia consiste, na realidade, em atuar sobre alguma coisa, dominá-la, atuando sobre um sinal desta coisa. É, de fato, o que se observa com o medicamento: o sujeito que toma um produto na intenção de atuar sobre seus sintomas, sinais de sua fragilidade e de sua condição mortal, tem a ilusão de agir sobre estas últimas e de dominá-las. Pode, assim, encontrar um sentimento de segurança sempre que ameaçado. Em nossas sociedades, onde a técnica é considerada como suscetível de resolver todos os problemas, os instrumentos de dominação mágica do mundo que encontramos nas sociedades ditas ‘primitivas’ foram substituídos por objetos técnicos. O medicamento é um deles” (: 191. Grifo nosso). Assim, a fragilidade e a condição mortal refletida, de imediato, no processo inexorável de envelhecimento abrem uma possível via de atuação tentam passar por cima um do outro” (:36). 108 dos empreendimentos consumistas exacerbados e reproduzidos pela publicidade que exerce papel efetivo, não apenas na construção da identidade dos freqüentadores assíduos de academias de ginástica e musculação, mas no cotidiano de milhões de pessoas que são levadas pelos discursos especializados a procurarem um produto que lhes garanta a saúde, entendida, não raro, como boa forma e juventude. Os meios de comunicação, ao mesmo tempo que veiculam e fazem propagandas dos últimos padrões estéticos em voga, vêm anunciando a gradativa transformação dos corpos nas últimas décadas. Periódicos estampam não apenas fotos das mulheres consideradas as atuais beldades paradigmáticas, mas trazem também matérias que acusam algumas dessas mulheres – principalmente entre as famosas formadoras de opinião: atrizes e modelos – de estarem perdendo uma das principais características do que tem sido considerado feminilidade em nossa cultura: a cintura; retratando uma tendência estética fisicalista presente na sociedade atual perpassada pelos ideais da prática diária de musculação e exercícios para emagrecer conjugados com dietas, consumo de suplementos alimentares e esteróides. Esforço individual e coletivo justificado pela propaganda da forma, realizada pelos ícones da indústria cultural que (re)produzem, e são produzidos por, conjuntos de representações sociais sobre estética, saúde e boa forma. Tal “imposição” sócio-cultural da forma física, tem levado ao surgimento de um novo tipo de consumo de novas drogas e ao fortalecimento da indústria da manutenção da aparência física. Inúmeros estudos científicos vêm apontando para as influências culturais produtoras de variações morfológicas em determinados grupos sociais. McCreary e Sasse (2000) ressaltam que modelos de revistas, comerciais de TV, atrizes e personalidades em geral, veiculam, implícita e explicitamente, a concepção de que as mulheres de sucesso devem ser mais magras, musculosas, exercitadas e submetidas constantemente a dietas. Escrevendo sobre a crescente obsessão entre mulheres pela aquisição de um corpo ideal, os autores indicam que até mesmo bonecas têm reforçado a adoção de um padrão estético fora da realidade. Estudando esta influência demonstraram que o perfil corporal da Barbie atual, sua constituição física, 109 apresenta significativa distorção, pois se tal modelo fosse transposto para a realidade, a probabilidade de uma mulher real apresentar tal corpo seria de 1 em 100.000. Ressaltam que o mesmo ocorre com os chamados bonecos de ação direcionados para os meninos. Tais brinquedos ostentam musculatura hipertrofiada conjugada, supostamente, a um percentual de gordura baixíssimo, impossível, ainda, de ser adquirido até mesmo pelos mais destacados campeões de fisiculturismo profissional do mundo atual, em épocas de competições (Pope, Olivardia & Phillips, 2000). Essa muscularidade e magreza (baixo percentual de adiposidade, alto percentual de massa muscular) acaba significando, em nossa cultura, sinais de positividade, levando número significativo de homens e mulheres adultos e adolescentes ao consumo de esteróides anabolizantes, outros hormônios e produtos em busca da forma física ideal, concebida como a chave para a aceitação e ascensão social, enfim para o sucesso ( Del Priore, 2000). No dia 18 de Fevereiro de 2001, um dos jornais de maior circulação do país (O Globo) veiculou matéria apontando o fato de que a modelagem das grifes nacionais está diminuindo cada vez mais, tentando obrigar mulheres mais roliças ou “com corpo violão” a se enquadrarem nos padrões morfológicos atuais que primam pela aparência magra ou musculosa da atual ditadura da moda. Perguntados sobre essa tendência, os donos de grifes e costureiros alegam que é uma onda mundial e que “a mulher magra e longilínea fica sempre mais elegante.” Em outra matéria, no mesmo periódico, sobre o carnaval carioca e sua tradicional exposição de corpos nus na mídia, foi abordado tema parecido: algumas mulheres-ícones na mídia brasileira (consideradas padrões de beleza) estão cada vez mais perto do modelo estético masculino devido ao constante uso de hormônios androgênicos e próteses de silicone, o que as leva a se parecerem cada vez mais com travestis devido a quantidade de músculos e baixa porcentagem de adiposidade: “[algumas] mulheres conseguiram finalmente perder a feminilidade. Estão com pernas de jogador de futebol, braços de estivadores, barrigas de tanque de lavar roupa e, de tanto tomar ‘bomba’ para secar a gordura [e aumentar a 110 massa muscular], estão parecendo uma drags. É a vitória dos travestis...” 38 . Não se trata aqui de tomar a doxa midiática como padrão de conhecimento sociológico, mas de levar em conta o surgimento de novas tendências e posturas sociais que a mídia expressa. No caso específico, tais matérias são sugestivas, pois esboçam uma tendência ética (e, obviamente estética) presente na atualidade que denominei anteriormente androlatria: adoração, tanto por parte de homens quanto de mulheres, dos princípios morais e éticos constitutivos da masculinidade hegemônica39, considerados como símbolos de superioridade e sucesso econômico e social (Sabino 2000a; 2000b; 2002; 2003). O esforço para transformar o corpo em uma espécie de display que ostenta a volição da eterna juventude, saúde, força e beleza - leia-se tais itens como músculos e/ou baixa porcentagem de adiposidade - pode ser o indício do surgimento de uma nova forma de dominação radicada em novos dispositivos de poder atuantes na sociedade atual. Além de representar também a efetivação de tendências racionalistas e disciplinares, a princípio, constitutivas da cultura ocidental (Luz,1988; Foucault, 1993; Weber,1995; Rabinow,1999), e que atualmente parecem espalhar-se pelo mundo globalizado. Nesse movimento de apologia ao músculo, o fisiculturismo representaria a síntese perfeita das tendências somatófilas vigentes. Do Ascetismo ao Hedonismo A utilização de esteróides anabolizantes e androgênicos como via de mudança corporal e construção de identidade em academias de fisiculturismo é um exemplo de racionalização prática ligada à disciplina corporal. Segundo Foucault, o crescimento do saber organizado coincide com a ampliação da extensão das relações de poder, especialmente com a prática do controle sobre os corpos no espaço social. Desenvolvendo estudos sobre o surgimento 38 - O Globo. Caderno Ela. Sábado 03/03/2001. P. 4. - Segundo Kimmel (1998), não existe apenas um tipo de masculinidade, mas várias, subordinadas à representação do que é ser homem bem sucedido (e, portanto, de fato) em nossas sociedades: forte, competitivo, destacado, bem situado economicamente, resistente à dor física e emocional, viril e que jamais foge dos desafios. Aqueles homens que não se enquadram nestes parâmetros fariam parte de 39 111 do conhecimento criminológico e seu controle sobre o corpo do delinqüente no espaço social da penitenciária, o autor apresenta o esquema do panótico de Bentham como o modelo posteriormente adotado pelas instituições disciplinares (escolas, exércitos, hospitais e fábricas), para a elaboração funcional de “corpos dóceis”, adaptados a então nova conformação de poder das sociedades européias. Nesse processo, o surgimento da medicina clínica e da psiquiatria científica coincidiram com o desenvolvimento institucional da arquitetura dos hospitais, das fábricas e dos manicômios nos quais os corpos desregrados foram submetidos a uma crescente disciplinarização. Seguindo este raciocínio, torna-se possível perceber que a organização de determinadas disciplinas como a demografia, a geografia, a saúde pública, a sociologia, e outras, podem ter representado um possível fortalecimento do controle social dos corpos no espaço urbano (Foucault, 1988; 1993; Turner, 1990; Deleuze, 1995; Rabinow,1999; Maia, 2003). Os estudos de Foucault sugerem – ao contrário da tradição platônica, para a qual o conhecimento seria o caminho para a supressão da suposta condição cativa do ser humano aos ditames da natureza (Platão, 1996) - que os avanços do conhecimento não levam necessariamente à libertação irremediável dos indivíduos e de seus corpos do controle e da coerção externos, mas podem significar a intensificação de novas tecnologias de regulação social (Deleuze, Idem ). Porém, não se deve pensar tal saber-poder como algo nefasto e coercitivo, sempre negativo e opressor, mas também como força produtora da realidade social e individual. É possível perceber o processo de gradativa administração corporal que se afigura a partir do século XVIII, e que retrata a utilização das tecnologias disciplinares (dos saberes administrativos aplicados aos corpos), como empenhadas em aprimorar tais corpos para o uso e adequação à ética religiosa. Como exemplo de trabalho sobre esse processo de racionalização, Bryan Turner (Op. Cit), por exemplo, escreve sobre o discurso da dieta indicando que esta era um componente básico referido tanto à medicina quanto à religião – como forma de, por um lado, evitar doenças relacionadas ao masculinidades secundárias, periféricas e subordinadas. Não seriam, assim, neste conjunto de 112 consumo de alimentos considerados prejudiciais, e, por outro, evitar aqueles alimentos que também eram considerados estimuladores da libido e perturbadores do bom funcionamento espiritual geral. Medicina e ética religiosa estavam, portanto, diretamente associadas. O tratamento do corpo era uma via para o aprimoramento religioso do espírito. Assim, o ascetismo que gradativamente toma conta das instituições seculares, escolas, fábricas, hospital e prisão, é antecipado pelo ascetismo dos monastérios nos quais os corpos, durante séculos, foram subordinados à disciplina cotidiana. Os tratados sobre administração dietética combinados com a exortação religiosa tornaram-se populares nos séculos XVII e XVIII. Os “regimes” associados à dieta médica conformaram um perfil específico de administração do corpo. A dieta conjugada com exercícios ao ar livre apresenta-se no cenário das sociedades européias como uma solução proposta pelos médicos às desordens físicas e espirituais (Weber, 1981; Synnott, 1993). A sobriedade à mesa, relacionada à dietética, refletir-se-ia sobre uma vida regrada e ascética como meio de alcançar a bem aventurança. Segundo Cornaro, um médico religioso do século XVIII, a dieta produzia benefícios tais como : estabilidade mental e controle das paixões, levando à temperança e à sobriedade visto que as paixões violentas eram consideradas as principais produtoras das doenças tanto orgânicas como sociais. A dieta, portanto, era percebida como uma defesa contra as tentações da carne e uma arma para o aprimoramento espiritual (Cornaro,1776 apud.: Turner, Idem ). Esse discurso médico, perpassado de religiosidade ascética, estenderá seus domínios para a então nascente Saúde Pública que se consolidará no século XIX e que terá nas disciplinas denominadas Nutrição e Demografia seus pilares principais40. O representações e práticas sociais, considerados homens plenos. 40 - É importante notar como tal postura ascética já encontrava-se presente nos monastérios medievais. O consumo de carne em grande quantidade pela nobreza guerreira é atestado pelos historiadores que ressaltam o fato deste consumo simbolizar força, poder e proximidade com a natureza : “a carne ...tem... um papel importante na alimentação dos poderosos... a força é identificada à carne [e] também à quantidade de alimento que se come...a habilidade para comer mais rápido do que os outros é um sinal de nobreza”. Pelo fato de a carne representar a secularidade os monges buscavam, ao contrário dos nobres, comer moderadamente evitando a presença da mesma em suas refeições: “ a renúncia à carne – sinal de violência e morte, símbolo da natureza física e da sexualidade – é uma constante na espiritualidade monástica desde a origem da experiência cristã” (Montanari, 1998: 294, 298). Mas, também é necessário destacar que na maioria das sociedades complexas há tradicionalmente maior consumo de vegetais do que de carne. Segundo o historiador Henrique Carneiro (2003: 63) “à exceção da Europa, praticamente todas 113 adoecimento passa a ser entendido como conseqüência do abuso individual e do desregramento sanitário e as classes baixas, a região, par excellence, da doença. Tais classes, segundo a concepção em voga na época, seriam incapazes de compreenderem e se adequarem plenamente aos avanços do verdadeiro conhecimento científico proveniente das insurgentes instituições disciplinares, e, por isso mesmo, necessitariam da intervenção efetiva do Estado em seu cotidiano. Com a passagem do capitalismo mercantil para o industrial, o corpo apresenta-se-á como corpo trabalhador e, em sua forma, estará inscrita o conteúdo de uma nova administração da vida social. O discursos dietético e dos exercícios, embora ainda com conotações morais, tomarão perfil científico, modulando o aspecto religioso direcionando-se ao laico. O corpo será chamado a expressar novas demandas surgidas em novos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e eróticos. A biologia, e toda ciência em geral, fornecerá a base necessária para a construção do corpo calcado na sexualidade (Laqueur, 1994). A ciência da nutrição, amparada nos estudos sobre a entropia relativos à termodinâmica41, passa a elaborar a mensuração dos efeitos das perdas e aquisições de calorias aplicadas ao aprimoramento da força dos soldados e da administração carcerária. Busca-se a combinação de uma dieta mínima com a máxima produção de energia, e isto será largamente aplicado à administração da força de trabalho, provedora de força muscular para o então capitalismo industrial emergente (Turner, Ibidem; Featherstone, 1990; Sant’ Anna,1994; 1995; Rodrigues,1999; Del Priore, 2000). O corpo, nessa sociedade industrial, passa agora a ser informado não mais pela as civilizações foram essencialmente alimentadas por vegetais”, porém o autor destaca que, mesmo nestas, ocorria consumo de carne restrito às elites. 41 - Os estudos da termodinâmica, iniciados no século XIX, introduziram nova abordagem na Física que até então baseava-se na concepção newtoniana de que qualquer estado de um sistema mecânico poderia, ao menos teoricamente, ser bidirecionalmente reversível desde que se soubesse as trajetórias e as velocidades dos corpos constituintes do mesmo. Neste sentido, o tempo seria reversível, pois qualquer trajetória de qualquer corpo poderia ser retraçada em uma ou em outra direção. Com a entropia, grosso modo, perda de energia no sistema, introduz-se uma diferença irreversível entre os estados deste mesmo sistema – este passa a ter princípio e fim, que não são intercambiáveis e indiferentes entre si. Com tal irreversibilidade dos sistemas, introduz-se na ciência a noção de “flecha do tempo”; o que inviabiliza, portanto, uma série de explicações de fenômenos através da ótica da simples causalidade mecânica, necessitando-se da adoção de modelos probabilísticos, para sua descrição científica. A medicina e as disciplinas ligadas à saúde vão adotar tal descoberta em sua forma de representar o corpo humano. (Camargo Jr., 1993). 114 sobriedade religiosa, mas pelas tabelas de calorias e proteínas e pelas regras dos exercícios de otimização da força. A moral passando a radicar-se empiricamente na mensuração da aquisição e perda das energias e da aplicação destas em instituições disciplinares. Ocorre, portanto, uma espécie de domesticação física na qual a racionalização progressiva das práticas e discursos passa a atuar sobre o corpo relacionando-o às necessidades sociais que se apresentam a este mesmo corpo e à força que ele porta e suporta (Elias,1990; Elias e Dunning, 1994). A partir do início do século XIX, as tecnologias simbólicas utilizadas pelos religiosos passam a ser articuladas com o objetivo laico de produzir bens para o consumo. Esta insurgente sociedade de consumo preocupa-se, agora, em preservar o corpo enquanto instrumento não apenas de trabalho, mas também de lazer. O corpo passa a ser visto como uma ferramenta a ser preservada, otimizada, administrada; e o indivíduo torna-se o responsável perante esta sociedade pela manutenção dessa ferramenta. Ele deve coordenar sua saúde, aparência, higiene. E deve divertir-se. A moral individual transforma-se em reflexo desse corpo, medida pela forma como o indivíduo cuida de si, de tal instrumento que passa a retratar sua índole e que se torna, gradativamente, uma espécie de vitrine de seu ser. Longe de apresentar-se apenas como um empecilho a ser domado para o bem estar da alma, o corpo, com a criação do lazer, torna-se veículo do prazer (Sant’Anna, Op. Cit.). E, se é necessário, ainda, e cada vez mais, administrá-lo, por vezes asceticamente, para a potencialização da produção, essa administração apresenta-se a par i passu como um meio de aprimoramento circunstancial das técnicas de aquisição do prazer, e, portanto, para o direcionamento da maximização deste nas denominadas “horas de folga” do trabalho. Lazer que torna-se direito e necessidade de todos, em uma ética romântica do consumo complementar à ética protestante (Campbell, 2001). Cria-se, portanto, uma espécie de racionalidade administrativa para o gerenciamento do devir individual com o objetivo de direcioná-lo para potencialidades dionisíacas que devem ser liberadas em determinados dias da semana ou momentos de quebra da rotina de trabalho. A mesma racionalidade que cria o ascetismo laborioso passa 115 também a ser utilizada para concretizar a diversão hedonista, permitindo uma espécie de folga na conjuntura do mundo da produção; mas, impondo-se, ao mesmo tempo, aos indivíduos enquanto dever. Dever de se divertir. No caso da alimentação, por exemplo, conforme ressaltou Jean-Louis Flandrin (1998), vaise da dietética - retirada dos monastérios e espalhada para a sociedade - , à gastronomia (ciência do comer bem), libertando-se a gula. Apolo e Dionisos entrelaçam-se na dança das tecnologias da dominação e do agenciamento populacional. A administração da diversão e a diversão administrativa refletir-se-á na disciplinarização do corpo ao tempo do trabalho, à velocidade social e às demandas do sistema. O tempo livre de lazer deverá, segundo os requisitos dos especialistas, ser utilizado para promover a saúde; passando esta, então, a ser traduzida pela forma de um corpo jovem, belo, ágil e forte, por intermédio das técnicas dos exercícios e dietas. Aparece conjugada ao lazer, a lógica da produção do corpo exemplar. Uma lógica da produção laboriosa nos espaços de trabalho que transforma-se em uma lógica da produção do corpo saudável nos espaços de diversão: controle de funções cardíacas, enrijecimento muscular, enquadramento de peso em tabelas padronizadas, dietas, equilíbrio emocional, e assim por diante. A saúde, radicada na excelência da forma, torna-se um bem valioso a ser conquistado e, simultaneamente, um diferencial, uma valoração distintitiva entre vitoriosos (bonitos, fortes e saudáveis) e fracassados (fracos, feios e, portanto, doentes ou propensos ao adoecimento). Mas, apesar de todo este processo, o mesmo sistema que cria tal construção da saúde, por intermédio dos exercícios e dietas, tende a ameaçar a vida, poluindo, congestionando, exaurindo corpos e músculos pelo excesso de trabalho e exploração de recursos naturais. E o “lazer terapêutico” (Sant’Anna, Ibidem :83), que reitera a necessidade de um corpo saudável e belo (confundindo sempre uma aspecto com outro), não passa de um dos efeitos do poder inerente ao sistema social, criando atividades de cunho lúdico para a otimização das forças que constituem esse corpo enquanto consumidor e objeto a ser consumido na produção de uma nova organização social. 116 O corpo-objeto será brindado com “o desejo de si”, desejo que se debruça sobre o corpo concebido como conjunto de feixes de músculos e nervos, instrumento de trabalho e de prazer, máquina que deve se apresentar limpa, com bons aromas e reluzente. Ao indivíduo se impõe, o dever e a necessidade de manter as peças dessa máquina nas melhores condições possíveis por intermédio da articulação do conjunto de saberes relacionados às, e aprimorados pelas, emergentes ciências da saúde; quais sejam: exercícios com peso, ginástica, dietas e caminhadas ao ar livre. Todo esse processo leva parte significativa da sociedade ocidental a criar uma espécie de cultivo à forma, de somatofilia, “de desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado e meticuloso que [fruto daquilo que] o poder exerceu sobre o corpo sadio” (Foucault, 1993:146). Todo esse discurso que fundamenta a nossa atualidade é sutil por se apresentar sempre como uma liberação do corpo (Le Breton, 1990; Campbell, Op. Cit. Del Priore, 2000). Essa liberação, hoje, não é mais do que o elogio do corpo jovem, higiênico, sadio, esbelto, bronzeado e com definições musculares. Percebe-se que, através de todo o conjunto simbólico midiático-publicitário, se impõe como liberação de uma espécie de obrigação de cuidado do corpo: obrigação de se manter belo que pode levar à estigmatização daqueles que não enquadram sua forma nos modelos e valores cardeais da cultura contemporânea. Autoridade difusa que em face da concepção de indivíduo peculiar às culturas ocidentais, talvez sustente a eficácia de uma administração coletiva. Talvez essa seja uma possível forma de tentar explicar o crescente sucesso das cirurgias plásticas “reparadoras”, implantes de silicone, dietas de emagrecimento, academias de musculação e ginástica, enfim da indústria farmacêutica da estética e de complementos alimentares e cosméticos. Esta racionalização instrumental tende a elaborar, mutatis mutandis, uma cultura hedonista, consumista, respaldada na exaltação da satisfação dos anseios individuais mais profundos levados ao paroxismo; hiperexaltação, de desejos tais como aquisição de beleza, vitalidade, segurança. Estes signos acabam por se transformar em espécies de imagens-objetos, representações sociais e alimentadas através das técnicas de marketing, apresentando-se 117 como convite a uma suposta satisfação plena (felicidade) e levando os indivíduos, muitas vezes, a buscarem, a qualquer custo, a realização sempre adiada de seus desejos insuflados pela máquina da produção de bens simbólicos. Este processo de auto-satisfação suprema, que segundo Christopher Lasch (1979) fundamenta uma espécie de cultura do narcisismo, torna, por vezes, difícil a prática da reciprocidade solidária devido ao hedonismo que comporta e conforma. Tal desejo de si parece ter se fortalecido, tendendo a tornar-se agora uma espécie de mandamento das compulsões consumistas obviamente radicadas no corpo transformado em possível instrumento de lucro e prazer; corpo-valor (Goldenberg & Ramos, 2002). Sobre este processo paradoxalmente simultâneo de ascese e consumo inerente à cultura ocidental, o trabalho de Campbell (Idem ) apresenta enfoque singular. O autor investe contra as teorias economicistas que tentaram explicar as origens da compulsão pelo consumismo típico do capitalismo atual. Corrigindo um desvio teórico que desprezou a importância do movimento romântico na história, ele avalia suas conseqüências relacionando-as às mudanças provocadas pela Revolução Industrial. Campbell argumenta que o hedonismo auto-ilusivo 42 e o binômio sentimento/intuição – em detrimento da autoridade/razão – foram determinantes para a constituição da ânsia pela novidade, típica do consumidor moderno. Assim, a burguesia além de abraçar uma ética protestante, abraçou, par i passu, uma ética do consumo, produto da corrente romântica que se queria antagônica ao ascetismo, mas que acabou por celebrar com ele núpcias, formando um sistema regulado de contenção e liberação dos desejos, consolidando “uma ética do consumidor” (:18). Essa ética, longe de ser apenas produto do racionalismo puro – em geral apontado pelos weberianos como fator primordial para o fortalecimento do capitalismo –, foi produto contínuo da interação deste com os fatores presentes e expressos no movimento romântico: 42 - “Anseio de experimentar na realidade os prazeres criados e desfrutados na imaginação, um anseio que resulta no incessante consumo de novidade. Tal perspectiva , em sua peculiar insatisfação com a vida real e uma avidez de novas experiências, se acha no cerne de muita conduta extremamente típica da vida moderna e reforça as bases de instituições fundamentais como a moda e o amor romântico” (2001: 288). 118 “ A lógica cultural da modernidade não é meramente a da racionalidade, como se expressa nas atividades de cálculo e experimentação: é também a da paixão e do sonhar criativo que nasce do anseio. Todavia, mais crucial do que uma e outra é a tensão gerada entre elas, pois é disso que... depende o dinamismo do Ocidente. A fonte principal de sua inquieta energia não provém apenas da ciência e da tecnologia, nem tampouco da moda, da vanguarda e da boemia, mas da tensão entre o sonho e a realidade, o prazer e a utilidade” (:318) Longe de ser asceticamente reprimido, o desejo que impele ao consumo é administrado, sendo, por exemplo, em um processo que Foucault (1990) relacionou à sexualidade, incitado a se mostrar, se registrar, se fazer presente, se tornar objeto de verdade. Afinal, se há poder há sempre contrapoder. Sem o consumo de mercadorias, que transforma até mesmo os corpos dos consumidores em objeto de consumo, a razão econômica do capitalismo não se sustentaria. Paradoxalmente, a jaula de ferro da burocracia (com sua tendência ao desencantamento do mundo), para a qual Weber disse caminhar a vida do homem moderno, só se sustenta porque este remitifica seu caminho tentando conciliar duas figuras que existem nele: o boêmio romântico com o protestante asceta. A prática do fisiculturismo pode ser considerada um exemplo de tal postura paradoxal. Duarte (1999) destaca ainda outros itens referentes à consolidação da cultura ocidental hodierna que são bastante úteis para a compreensão sociológica deste processo hedonista de construção da forma. Segundo o autor, a modernidade conferiu um caráter singular à sensibilidade fazendo com que esta tenha um história e, portanto, um sentido específico rebatendo-se na formação ideológica e institucional das práticas nas sociedades ocidentais. A ideologia, e, consequentemente, a prática, nas sociedades complexas atuais, sustentar-se-ia sobre três características importantes: a da perfectibilidade, da experiência e sobre o fisicalismo. A primeira estaria radicada na concepção – presente de forma clara, desde a obra de Rousseau – de que a espécie 119 humana tem a capacidade indefinida de se aperfeiçoar, de “entrar na senda disso que nós chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação ilimitada, a vanguarda, palavras estas fundamentais para a nossa cultura” (Idem ). O segundo item, a experiência, estaria diretamente relacionado ao primeiro, posto que a perfectibilidade implicaria o uso sistemático da razão, considerada um “mecanismo de verdade” encontrado impresso no interior de cada ser humano e que deveria sustentar sua responsabilidade ativa em relação à divindade, a si mesmo e a outrem. Tais perspectivas poderiam ser encontradas, mutatis mutandis, nas filosofias de Descartes e Kant, e sustentariam que o uso sistemático da razão permite o avanço do ser humano em suas condições de relação com o meio. Neste processo, a experiência seria crucial, visto que a razão só viceja através dela – da experiência – colocada em prática por intermédio dos sentidos. A razão e, portanto, a perfectibilidade, só funcionam quando os seres humanos articulam, via sentidos, sua percepção e relação com o mundo que os cerca. Nesse movimento consolida-se a concepção de que as novas formas (racionais) de relação com o mundo permitem a estes tornarem-se, eventualmente, mais aperfeiçoados, mais capazes e senhores de seu futuro. Essa exaltação da experiência, presente na cultura ocidental moderna, estaria, de acordo com Duarte, na raiz de movimentos filosóficos e artísticos tão díspares quanto o empirismo e o romantismo. O autor, inspirado na já citada obra de Campbell (2001), e, em Schivelbusch (1993), escreve que o sentimentalismo inglês, movimento histórico do século XVIII, influenciou o romantismo conferindo: “a mediação gnosiológica, epistemológica, analítica nos ‘sentidos’ como veículo de instrução das atividades da mente e a ênfase vivencial, ‘sentimental’, nos ‘sentidos’ como veículo de articulação das relações humanas. Os sentidos estão tanto na raiz da razão como na da ‘imaginação’ ou das ‘emoções’ e ‘paixões’. O fato cognitivo da ‘experiência’ se reduplica em fato emocional” (1999:25). 120 Nesse processo, o terceiro item é o do fisicalismo, que completa o quadro sumário de aproximação entre as formas modernas da sensibilidade. O fisicalismo “é uma revolução” posto que instaura uma “separação radical entre o corpo e o espírito (expressa, por exemplo, na filosofia de Descartes)” permitindo a concepção da corporalidade humana como dotada de lógica própria, “que deve ser descoberta e que tem implicações imediatas sobre a condição humana.” O fisicalismo, então, “ é a consideração da corporalidade em si, como dimensão autoexplicativa do humano” (Idem ). Está aberta a via para a concepção do corpo como um valor e o surgimento da civilização das formas (Goldenberg & Ramos, 2002). Os trabalhos referidos ao bodybuilding, em geral, ressaltam apenas a dimensão do racionalismo ligado à construção do corpo musculoso. Assim, Courtine (1995), em sua análise dos fisiculturistas californianos, destaca apenas o aspecto puritano do que ele considera um narcisismo ostentatório. Tal abordagem não enfoca, ao menos de forma clara, essa outra dimensão radicada na exaltação dos sentidos presente no cotidiano daqueles que constroem a forma musculosa como um dos objetivos de sua existência. A dimensão festiva, os períodos de desregramento social, as orgias alimentares e mesmo os sonhos sustentados pela atuais mitologias das sociedades de consumo repletas de heróis individualistas que buscam realizar o mito de uma vida sem doenças, viabilizadora do consumo, ou de um suposto corpo imortal; conforme ressaltou Lucien Sfez (1996) ao diagnosticar o surgimento de uma nova utopia, a da saúde perfeita, que tende a se contrapor à falência das grandes narrativas, mitificando os próprios avanços científicos representados, por exemplo, pelos projetos Genoma e Biosfera II. O uso de componentes químicos (esteróides anabolizantes, suplementos e fármacos em geral) para construir a saúde aparente parece fazer parte desse processo de busca mítica que tende a ficcionalizar os avanços tecnológicos e científicos na busca de uma realidade ideal agora radicada no corpo e suas potencialidades. Tal processo cultural sustentado pela prática específica de agenciamento do corpo pode hoje significar uma nova modulação nas tecnologias de poder e dominação de uma sociedade de controle (Deleuze, 1995; Rabinow,1999) na 121 qual não apenas os muros institucionais administram a vida dos indivíduos, mas também os dispositivos de biopoder radicados e potencializados pelas novas tecnologias cibernéticas. Dispositivos abertos e contínuos que baseados, dentre outros aspectos, na busca do controle genético e biotecnológico podem estar traçando o esboço de uma nova conformação social. Drogas Masculinizantes e Individualismo É possível perceber, nas academias de musculação, como o indivíduo é considerado responsável pelo controle de seu corpo. Controle que é desenvolvido gradativamente em um crescendo que acaba por se tornar uma espécie de conversão por ele reconhecida através da análise comparativa que realiza da sua vida antes de se tornar marombeiro e depois : “antes de começar a malhar eu era magrelo e envergonhado. Não tinha coragem de chegar numa mulher. Ficava só na minha, desanimado... Aí, entrei p’ra academia, porque tinha um cara na minha rua que tinha entrado e tava ficando grande e todo mundo, as garotas, falavam: ’ fulano tá ficando bonito, tá ficando com o corpo legal...’ Eu fui e entrei, comecei a malhar em um ano já tava pegando pesado e tinha aumentado dez quilos de massa magra (...) minha vida mudou completamente. Passei a me respeitar, a ter coragem de olhar no espelho e de olhar o mundo nos olhos e a conseguir o que eu queria na vida. Hoje eu sei que posso, eu mesmo, traçar meu próprio destino” (Pedro, 23 anos. Estudante universitário). Esta concepção individualista que confere à pessoa a capacidade de fabricar seu próprio destino perpassa o discurso tanto de homens quanto de mulheres. A ela se soma o dualismo cartesiano entre corpo e mente, matéria e espírito. O corpo aparece como objeto sobre o qual atua o poder da mente. Mero instrumento que deve ser aprimorado para que o espírito atinja seus 122 objetivos43. Este aprimoramento deve contar com o imprescindível auxílio da ciência, e é neste ponto que as drogas apolíneas entram em cena: “...quando alguém faz exercícios deve concentrar a força da mente sobre o corpo. Sobre aquele músculo que quer desenvolver. O corpo obedece ... faz aquilo que a mente manda (...) você pode construir o corpo que você quer, que você deseja; cada vez mais a ciência vai desenvolvendo instrumentos que fazem as pessoas superarem os limites genéticos. Os anabolizantes servem p’ra isso, né?! Agora tem o GH [hormônio do crescimento]44 que faz o cara crescer absurdamente e pelo que parece não tem efeito colateral... só não fica bonito e forte quem não quer ou quem não tem dinheiro.” (João, 29 anos. Professor) Ainda: “o corpo pode ser fabricado, produzido, se o cara tem disciplina, força de vontade. É claro, tem um preço... sem ‘bomba’ não cresce, tem que tomar ‘bomba’. Cê vê, todo mundo tá tomando anabolizante agora, essas atrizes... os atletas então, nem se fala. Então tem que tomar, sem bomba não cresce. Já ouviu aquela frase dos americanos: ‘no pain, no gain’; ‘sem dor não há ganho’. É isso aí.” (Carlos, 26 anos. Pequeno empresário). Também é comum a representação do corpo como máquina: 43 - O “poder da mente” mereceria um capítulo a parte no estudo do fisiculturismo, devido às representações que permeiam a prática dos treinamentos. Em sua encilopédia do fisiculturismo (2001) Arnold Schwarzenegger dedica um longo capítulo ao que ele denomina “o dínamo, a fonte de energia vital” que conduz de forma boa ou má o corpo: “aonde a mente vai o corpo vai atrás” escreve, dando conselhos como “a chave para o sucesso nas sessões de treinamento é transpor a mente para dentro do músculo” (:229, 232). 44 - Hormônio do crescimento (Growth Hormone). Até a década de 1950 a única maneira de consegui-lo era através da extração da glândula hipófise de cadáveres de seres humanos. Só a partir de 1979 passou a ser produzido nos EUA, por meio da modificação do patrimônio genético de bactérias Escherichia coli. A principal função desse hormônio é estimular a divisão das células, permitindo o aumento dos tecidos (Bartolini, 1999). O uso desta substância tem se difundido cada vez mais nas academias de musculação, pois além de ser anabolizante, é considerado um tipo de elixir rejuvenescedor pelos seus usuários. 123 “ ...sem óleo do bom nenhuma máquina funciona legal, não é? Pois é, com o corpo é a mesma coisa. Se o cara não aplicar um óleo, um ‘bomba’ de vez em quando ele não fica legal, não consegue malhar bem, não. Tem que aplicar pelo menos uma Deca45 de vez em quando p’ra dar força no motor.” ( Afonso, 47 anos. Fiscal de órgão público). Todas estas concepções estão relacionadas à construção da Pessoa peculiar às culturas ocidentais como indica a obra de Dumont (1993). O autor escreve que “o indivíduo faz parte de uma configuração de valores sui generis”, ou melhor, “o indivíduo é um valor” peculiar do mundo ocidental que o considera como “ser moral independente, autônomo, e, por conseguinte, essencialmente não-social” (Idem ,1985:37,57). Mauss, antes dos estudos de Dumont, já havia tratado desta questão, indicando que pode haver diferentes sentidos para a vida dos homens em sociedade, em conformidade com seus sistemas religiosos, seus direitos, costumes, estruturas sociais e mentais, ressaltando, ainda, a construção histórica desta categoria e demonstrando o quanto é recente a noção de “pessoa e do eu”, identificada entre nós “com o conhecimento de si, com a consciência psicológica” (1974:239). A concepção do sujeito, igualitário e desatrelado de transcendência, livre para escolher seu projeto de vida, mônada, que associada às outras produziria o conjunto social, enfim, indivíduo enquanto valor, é produto de um determinado tipo de cultura situada no tempo e no espaço e não uma verdade biológica e universal, como atestam, também, estudos sobre o surgimento das concepções cartesianas e mecanicistas sobre o corpo (Boltanski, 1979; Duarte,1986;1999; Foucault, 1980;1988;1993; Luz, 1981;1993; Rabinow,1999; Onfray, 1999). 45 -Deca durabolin (17 decanoato de nandrolona) droga produzida pela indústria Akzo Nobel Ltda. É um androgênico com efeito anti-catabólico e poupador de proteína destinado à terapia de recuperação de pacientes com doenças debilitantes crônicas ou após grande cirúrgia ou trauma. São vendidas ampolas para injeção intramuscular com apreensão de receita. A posologia indicada na bula, para os casos acima citados é de 1ampola de 25 ml a cada 3 semanas. Contudo, alguns fisiculturistas me disseram tomar até 3 ampolas por dia durante treinamento pesado. 124 O Complexo de Piegan Os pares de oposições binárias, acima mencionados - fortes/fracos, saudáveis/doentios, bonitos/feios - estão diretamente relacionados a uma weltanschauung específica - não podemos esquecer que os marombeiros são indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas em busca de ascensão radicada em disposições duradouras como gostos de classe. Estes gostos, que reiteram a distinção social, se traduzem em signos exteriores, sendo a forma física o signo de distinção por excelência do grupo estudado. A musculatura rígida e evidente surge como sinal de distinção social e poder, sendo que ter o corpo trabalhado por máquinas e drogas é diferente de ter um corpo de trabalhador (Boltanski,1979). Contudo, o aspecto mais intrigante deste processo de construção corporal da distinção é a adesão feminina ao culto e cultivo de uma estética e mesmo de uma ética masculinizante. O modelo da masculinidade hegemônica - o homem forte, destemido, independente e durão - parece ser adotado por um número significativo de mulheres freqüentadoras das instituições da boa forma que buscam conquistar posição de respeito no campo achando que para tal têm que ser fortes (musculosas), independentes e duronas. Tal fato, - presente não apenas nas academias de fisiculturismo, mas também em outras dimensões da sociedade atual (ao menos na dimensão ética), como empresas, por exemplo – poderia ser denominado Complexo de Piegan. Para a melhor compreensão deste aspecto será utilizado um exemplo etnográfico: entre os índios piegan do Canadá existem mulheres denominadas “coração de homem” (Lewis,1941. Apud. Hérritier,1989). Nesta sociedade patriarcal, o comportamento feminino ideal é feito de submissão, reserva, doçura, pudor e humildade. No entanto, entre eles, existe este tipo de mulher que se comporta sem reserva e modéstia, com agressividade, arrogância e audácia. Os piegan homens aceitam estas mulheres porque elas são poderosas. De fato, para ser uma “coração de homem” é preciso ter uma posição social elevada, e uma excelente condição econômica. Tais mulheres, 125 todas casadas, conseguem orientar seus próprios assuntos sem o apoio dos homens e, por vezes, nem deixam que os maridos empreendam seja o que for sem o seu consentimento. Algumas chegam a se comportar como homens urinando publicamente, cantando músicas masculinas e participando das conversas dos homens. O exemplo desta sociedade é sugestivo. Nela, estas mulheres conseguiram impor aos homens sua aceitação. Eles, por sua vez, como indica o próprio termo que utilizam para denominá-las, classificam-nas como tendo âmago masculino. Ousando seguir uma sugestão feita por uma frase de Dumont: ”aquele que se volta com humildade para a particularidade mais ínfima é que mantém aberta a rota do universal” (1993:52), é possível propor uma breve comparação da sociedade piegan, nestes aspectos específicos, com a nossa. Entre eles, como entre nós, apenas as mulheres com respaldo sócio-econômico parecem conseguir realizar atos que são considerados privilégio masculino e esta independência é possível devido a este poder que as torna independentes dos homens. Entre eles, também, como entre nós, estas mulheres independentes tendem a adotar o ethos masculino. Por fim, existe a questão semântica que classifica independência, empreendimento e audácia como componentes da personalidade masculina radicando tais itens na própria natureza biológica (Goldenberg, 1997), já que o coração de tais mulheres é de homem, isto é, sua essência - se é que esta palavra pode ser aplicada aos piegan - é masculina. Tudo se passa como se a masculinidade trouxesse em si todos os atributos considerados necessários, tanto por homens quanto por mulheres, à gerência da vida social (Muniz,1992). A positividade de qualquer dimensão parece estar, portanto, associada à tradicional condição masculina hegemônica. Promotor, imperioso e desbravador, o sexo masculino representaria o centro irradiador das virtudes humanas. Essas categorias inconscientes estão presentes tanto no pensamento de homens e mulheres piegan quanto no pensamento de nossos fisiculturistas. Talvez isto explique a crescente busca, por parte de mulheres independentes, da adoção da ética masculina e, de certa forma, do cultivo de corpos mais magros e musculosos tendendo à masculinização, já que elas são obrigadas a reutilizar contra os dominantes as suas próprias 126 armas, tendo que aplicar e aceitar as próprias categorias que pretendem demolir, integrando as mesmas categorias contra a qual se revoltam (Bourdieu, 1996b). Apesar de serem exemplos de independência feminina, inconscientemente, tais mulheres - da mesma forma que vêm fazendo os homens há milênios - semantizam a condição feminina tradicional, e tudo que a ela se relaciona, como condição incompleta que deve ser evitada por todos aqueles que querem ser bem sucedidos. Contra a violência simbólica utilizam as próprias categorias que a constituem enquanto tal. Portanto, não seria todo este movimento pós-revolução feminista de cultivo à forma musculosa e/ou magra – e o uso de esteróides talvez apenas um pequeno exemplo - o prenúncio, ao menos circunstancial, de uma androlatria que viria marcar uma parcela das relações de gênero neste início de milênio? Este processo também indica a radicalização do individualismo presente nas culturas ocidentais, levando os seres humanos não apenas a considerarem o corpo de outros seres humanos como objeto, mas o seu próprio corpo como tal. O corpo alheio (assim como o do próprio indivíduo), e tudo aquilo que ele representa, da beleza aos órgãos transplantados, é reduzido a uma espécie de mercadoria, objeto descartável e plástico, passível de ser facilmente consumido e substituído por outro (Rodrigues,1987; Luz, 1988; Duarte, 1999). A lógica do consumo, o fetichismo da mercadoria, invade, desta forma, dimensões significativas das relações humanas, dos negócios passando pela medicina e chegando aos relacionamentos amorosos (Simmel, 1993). Ainda outra questão se apresenta em relação ao consumo crescente de esteróides anabolizantes por aquele(a)s que buscam a adesão ao modelo estético veiculado pelos meios de comunicação atuais. Ao contrário de reduzir sociologicamente o problema do uso de tais substâncias à escolha racional e livre dos indivíduos, o que tende a perfilá-los como únicos e plenos responsáveis pela sua condição ilegal de usuários de drogas, torna-se necessário encarar tal processo como um fato social em toda sua complexidade, reiterando a força e a plenitude da dimensão cultural na qual tais indivíduos estão inseridos. Condição que os produz ao mesmo tempo que por eles é inconscientemente (re) produzida. 127 Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo Em trabalho anterior (Sabino, 2000; 2002) foi sugerido que o artigo de Goldman (1985), sobre a construção de pessoa e possessão no Candomblé, descreve e esclarece como o ritual tem a capacidade de elaborar a identidade dos indivíduos no desenrolar de um processo específico de interação social. Para o autor, a fabricação da divindade - já que o orixá ou “santo” é feito “corresponde à gênese de um indivíduo ‘novo’” (Idem :39). Esta construção se processa gradativamente por intermédio de ritos de passagem que fixam orixás na cabeça do indivíduo e simultaneamente conferem-lhe novo status no grupo já que o orixá é também um componente da pessoa. Após 21 anos somente, quando o sétimo orixá foi assentado, é que a pessoa está “pronta”. Neste movimento de ascensão na ordem simbólica, efetua-se também a ascensão na estrutura social do terreiro. Cada santo assentado significa um patamar ascendido na hierarquia do grupo. Quando o último assentamento se conclui o indivíduo torna-se “senhor de si e de outros”. “Senhor de si”, porque controla seu transe, não sofrendo mais a possessão comum aos neófitos e iniciados mais novos; “senhor de outros” porque torna-se tata , alguém que chegou ao ápice da hierarquia social no terreiro e tornou-se uma pessoa completa. A pessoa, nesta concepção, é considerada fragmentada, folheada, múltipla e todo o esforço do sistema, realizado ritualisticamente, parece voltado para fundi-la em uma grande unidade que enfim nunca se realiza plenamente, já que, segundo a cosmologia do Candomblé, os únicos seres plenamente unitários são os orixás. No campo da musculação o processo é parecido. Tal afirmação não significa que a musculação deve ser considerada uma religião e sim que determinados processos rituais são similares em instituições diferentes. Como bem notou Bourdieu, “o rito propriamente religioso é apenas um caso particular dentre todos os rituais sociais” (1996a:95). A construção da pessoa no fisiculturismo se realiza através da construção da forma física musculosa. Esta construção não é tão bem delimitada como ocorre no Candomblé onde o período de fabricação da pessoa já está mais ou menos estabelecido. Nas 128 academias de musculação o processo é menos longo, levando de dois a quatro anos – no caso de profissionais pode se estender por até dez anos. Para que um neófito torne-se um bodybuilder, o mesmo tem que adequar seu corpo à forma correspondente deste papel social e para que tal processo ocorra, de forma considerada eficaz, ele necessita utilizar drogas. Assim, o uso da droga constitui-se aqui como “um fato social total”, acontecimento de dimensões biopsicosociais como escreveu Mauss (1974). Cabe ressaltar, porém, a dimensão simbólica deste uso específico. Entre os marombeiros há um rito de passagem (Turner,1974), ou, como prefere Bourdieu, (1996a), um rito de instituição, no qual o uso da droga surge como item crucial na transição do indivíduo de um status para outro no campo da musculação. Este relato, um entre muitos, é um pequeno indício do que pode significar o uso de anabolizantes : “A primeira vez que tomei ‘bomba’ foi o Paulão que me arranjou e me aplicou também... eu tinha muito medo, mas sabia que mais cedo ou mais tarde eu teria que tomar se eu quisesse chegar aonde eu queria. Naquele dia passei a me sentir outra pessoa... vi que começava a malhar de verdade, que participava de uma espécie de... acho que... segredo... Fora isso o efeito foi muito bom. Na mesma semana já tava pegando quinze quilos a mais no leg press, todo mundo tava dizendo: ‘Aí, hein, tá com maior pernão... tá sarada. Diante disso só dá p’ra se sentir bem, né?! Cê se sente forte, gostosa e poderosa [risos].” (Márcia, 29 anos. Economista e Empresária). O início do consumo de anabolizantes pode ser considerado um rito que consagra a diferença, instituindo-a. Este rito ressalta a linha de passagem entre um status - o de indivíduo comum - para a condição de aspirante a outra posição superior. O que deve ser destacado é que a hierarquia de papéis nas academias de musculação se inscreve no corpo através da forma que este gradativamente adota, isto é, a mudança física fabricada significa mudança de 129 status pois esta traduz a aquisição de capital de competência - onde comprar as drogas, como utilizá-las, com quem, quais os efeitos de cada uma, para qual objetivo cada uma delas se presta -, além de capital corporal. Este rito delimita a distribuição de autoridade no interior do campo através do que Lévi-Strauss (1975) denominou eficácia simbólica, ou seja, o poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os indivíduos fazem desta realidade. Portanto, nas academias, ao adquirir, par i passu, um corpo musculoso, o aspirante a marombeiro vai sendo consagrado a um novo papel em conformidade com as camadas musculares que adquire. Sua identidade fragmentada vai sendo construída pelo processo ritual até que o indivíduo se torne um fisiculturista. Para que isso ocorra ele passará gradativamente por uma escala de papéis que vai do neófito e passa pelo veterano. Mas, diferente do processo ritual estudado por Goldman no Candomblé, onde o indivíduo que se torna chefe de terreiro não necessita mais pagar seu sacrifício que é, no caso, a possessão, o marombeiro, mesmo que chegue a ser fisiculturista, terá sempre que pagar o preço do sacrifício de tomar drogas e incorrer nos riscos que o consumo destas representa, pois sua pessoa está radicada diretamente na forma que seu corpo apresenta. Como esta forma está sempre em risco de se deteriorar- já que depende de drogas e exercícios - sua identidade como marombeiro também está constantemente ameaçada. Este processo de construção social da pessoa do marombeiro é similar ao processo de construção da masculinidade, já que o “homem de verdade” tem que estar constantemente provando a si e aos outros que é forte e macho o bastante. O rito de investidura entre os freqüentadores das academias se realiza primeiro com o início do uso de esteróides, e, posteriormente, através de diversos tipos de festas e eventos para os quais passa a ser convidado. Nestes, o indivíduo começa a desfrutar a sociabilidade exterior à academia, consolidando sua posição no campo por intermédio do reforço das relações sociais. O fato de ser convidado já significa o reconhecimento pelo grupo de um novo status atingido pelo indivíduo devido sua forma física. Estes ritos vão demarcando as posições entre dominados e dominantes, entre aqueles que são “fortes, saudáveis e bonitos” e os outros 130 que são “fracos, doentios e feios”. Neste sentido, é possível repetir com Bourdieu que as instituições são “atos de magia social”, pois “criam a diferença ex-nihilo” (Idem:100). Nesse processo, os esteróides surgem como um elixir, uma espécie de infusão mágica que pode transformar a forma do usuário. Tais fármacos representam item fundamental neste processo de construção estética diferencial e masculinizante. Todos (as) os(as) usuários(as) sabem que seu uso pode causar câncer, impotência sexual e até mesmo morte, e, por isso mesmo, representa papel importante nos ritos de instituição que compõem a construção de identidade entre os marombeiros. É a utilização do sofrimento que faz com que estes ritos sejam o que são, pois os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos a que se submeteram Turner,1974; Le Breton,1995). (Bourdieu,1996a; 131 Capítulo IV “Toda sociedade paga a si mesma com a falsa moeda dos seus sonhos”. Marcel Mauss Fármacos e Formas. Breves notas etnográficas Outubro de 2000. Conheço, ao menos de forma razoável, os esquemas e “uniformes” utilizados pelos freqüentadores das academias de musculação da Zona Norte do Rio de Janeiro devido o fato de tê-las pesquisado para a dissertação de mestrado. Agora outro é o problema: necessito centrar minha pesquisa no subgrupo dos fisiculturistas, bodybuilders, a chamada “elite da maromba”. Homens e mulheres que fazem da forma – dos músculos hiperinflados – sua razão de viver ou mesmo morrer. Vou, então, para a meca dos músculos e das anilhas de ferro no Rio de Janeiro, o bairro de Copacabana. Como havia ouvido anteriormente nas outras academias dos bairros da Tijuca, Vila Isabel, Andaraí e Grajaú, Copacabana, é, atualmente, a detentora dos títulos das academias mais “pesadas” do Rio de Janeiro, com “gente malhando pesado e sério”. Isso significa que, nesse bairro, tais instituições da forma assumem um caráter acentuadamente profissional na prática; ou ao menos semi-profissional. “Artilharia pesada”, dizem os freqüentadores. Chego às três e quinze da tarde em um dia de quarta-feira em uma espécie de clube da forma, amplo e com três andares, situado em uma das poucas ladeiras de Copacabana. O som do ferro das anilhas batendo umas nas outras era ouvido já da esquina. Academia Apolo. Musculação, spinning, ginástica, jiu-jistu e boxe tailandês, estampava o letreiro da entrada46. Um poster com a foto ampliada de Arnold Schwarzenegger vestido de Conan empunhando uma espada apresenta um letreiro: “Just do it”, cópia do slogan da Nike. O poster decora a parede em frente à recepção. Descobri, algum tempo depois, que essa mesma foto ilustra uma página da enciclopédia de fisiculturismo do ator (Schwarzenegger & Dobbins, 2001:235). Como não 46 - Os nomes dos informantes e da academia foram trocados, a não ser os nomes daqueles que autorizaram sua divulgação. 132 pareço exatamente um fisiculturista, a recepcionista, uma loura tingida vestindo bermuda colante e camiseta, me apresenta o “pacote” com preços da ginástica e da musculação dizendo que na academia também tem dança, “bike in door” e hidro-ginástica. Digo que quero musculação. Ela, então, se oferece para me mostrar as salas e as dependências da academia, perguntando se quero ir de escada ou elevador. Passo por uma roleta que é acionada por um cartão magnético que minha anfitriã possui. Ela diz: “quando você fizer matrícula vai ganhar o seu cartão é só trazer uma foto 3 x 4”. Sugiro à minha cicerone subirmos pela escada (com o objetivo de observar melhor a academia). Já do lado direito, após a recepção, vejo uma ampla loja de suplementos alimentares (SNC está escrito na entrada) com centenas de potes e vasilhas de tamanhos variados – uns chegando a ter quase o tamanho de um balde de lavar roupa – chamados de suplementos alimentares e alquimias nutricionais feitas de líquidos e pós para bebidas denominadas shakes, além de centenas de vidros de vitaminas (de A a Z pude constatar depois), pílulas e acessórios para exercícios tais como cinturões de couro, luvas e roupas coloridas para musculação e ciclismo. A decoração dos espaços situados entre as escadas é um misto de galpão rústico com itens futuristas, os canos, que supostamente deveriam estar dentro das paredes, podem ser vistos reluzindo, pintados de prata. Em cada parte entre um andar e outro antes das amplas salas de exercícios ficam dez bicicletas ergométricas e cinco esteiras de última geração, computadorizadas. De frente às bicicletas e esteiras, televisores sintonizados em canais a cabo passam documentários, videoclipes, e filmes de campenatos de fisiculturismo e esportes diversos. Em um grande cesto várias revistas estão amontoadas, percebo que são revistas nacionais e internacionais de fisiculturismo, além de revistas sobre boa forma e beleza feminina. Percebo que alguns adolescentes folheiam uma publicação internacional (Muscle & Fitness) repleta de fotos de bodybuilders. No canto esquerdo desta pequena sala de acesso, spots de luz fria saem do chão como se fossem de um palco e as paredes espelhadas estampam ilustrações com dezenas de dicas de alongamento. A decoração às vezes parece uma mistura de laboratório, oficina mecânica e shopping center. Fernanda – minha cicerone – me mostra a sala de 133 spinning47. Um amplo salão fechado, similar a um estúdio de gravação, com uma parede de vidro que permite a visão total da sala de lutas e quarenta bicicletas fixas. No recinto é vedada a saída ou entrada de som. Ela me explica que as salas são assim para que a música da sala de dança não atrapalhe a música da sala de spinning, e assim por diante. O recinto também é espelhado e as bicicletas são pretas, alinhadas lado a lado e direcionadas para uma outra de cor amarela, que fica em um tablado. Fernanda me mostra a sala de dança, a piscina de hidroginástica e a sala de lutas com as paredes revestidas de um material anti-impacto além do grande saco azul escuro de areia pendendo do teto, daqueles que existem em academias de boxe. Esta sala, diz ela, também é usada para a prática de yôga. Por fim, ela me leva para o galpão de musculação. Antes de chegarmos lá, vejo também um bar do lado esquerdo à saída do elevador, perto da parte onde se situam os vestiários. Vejo um “gigante” tomando um copo de vitaminas e engolindo uma pílula de dimensões bem acima do normal. Percebo que a especialidade ali são os shakes de proteínas em pó e vitaminas, açaí com granola, sucos fortificantes, além de suplementos alimentares de todos os tipos desenvolvidos pelas indústrias de nutrição – os mesmos vendidos na loja de baixo, para serem consumidos em casa, além dos chamados “sanduíches naturais”. A sala de fisiculturismo difere do resto da academia, como se dela não fizesse parte. Inclusive chega-se a tal sala sem ser necessário passar perto das outras salas e recintos, pois, além do elevador, que pode levar o frequentador direto ao local, há também outro acesso por escada. Sua decoração é rústica e singular, misto de galpão com salão de beleza. Ferro e espelhos. É um vasto mezzanino com grandes janelas de vidro e exaustores que fazem o ambiente parecer também a linha de produção de uma fábrica. Toneladas de anilhas (disco com tamanho e peso variado para ser encaixado em barras) e placas de ferro e muitas máquinas de musculação; máquinas rudes com capacidade, no mínimo, três vezes maior do que quaisquer outras que eu já havia visto em academias que freqüentara anteriormente. Os 47 - O spinning é uma aula de ciclismo realizada nos salões (“indoor”) das academias de fitness e bodybuilding. Foi criado por um sul-africano denominado Johnny G, apelido de Jonathan Goldberg, 134 fisiculturistas dizem que a seriedade e a eficácia de uma academia de fisiculturismo se percebe pela quantidade de peso que ela tem. Se assim for, esta parece bastante séria. Nunca havia visto tanto peso livre – anilhas, barras (barbells) e barras curtas (dunbells) de 70 kilos cada. Eu não podia imaginar ninguém forte o bastante para fazer exercícios de 30 repetições com cada uma daquelas em cada mão, até ver um “homem-montanha”, rodeado por dois ajudantes, realizando um agachamento (exercício em que o indivíduo coloca uma barra com o peso nas costas e agacha repetidas vezes) com mais de 200 quilos. O sujeito devia ter quase dois metros de altura. Vestia uma camiseta que parecia estar se rasgando de tão apertada em seu corpo e não apresentava um fio de cabelo na cabeça ou no corpo repleto de veias estufadas. Um dos ajudantes – que descobri mais tarde ser uma espécie de treinador de levantadores de peso – começou a gritar : Vamos!!! Força!!!! Isso é fácil p’ra você!!!! Vamos!!!! Touro!!! No último movimento, o gigante dá um urro, já quase roxo, e os dois ajudantes seguram em cada extremidade da barra para ajudá-lo a colocá-la no suporte. O treinador, mais baixo, muito branco e também careca, usa uma botina de couro com uma meia esticada até quase o joelho e uma camiseta branca apertada escrita Wolney Boyz. Soube, com o tempo de freqüência à academia, que Wolney é o seu nome, na realidade um halterofilista que treinava todos aqueles que desejassem ganhar força e massa muscular. Pago minha matrícula (R$ 40,00) e primeira mensalidade (R$120,00) na secretaria e me exigem um atestado médico - o qual jamais entreguei. A recepcionista marca a minha avaliação física para o dia seguinte e me cobra R$15,00 pela carteira que permite a entrada na academia, reiterando que tenho que trazer a foto 3x4. No dia seguinte, chego à academia na hora do rush: 18:14. Dezenas de pessoas suadas se amontoam no salão de musculação. O barulho de ferro, música e conversas é intenso. Há um desfile de músculos e roupas sumárias em frente aos espelhos, além das caretas de dentes trincados dos Hulks se esforçando para levantar seus pesos em máquinas e barras soltas. Várias ciclista que em 1995 nos Estados Unidos patenteou sua invenção. Essa atividade simula uma corrida de 135 mulheres que parecem passistas de escolas de samba desfilam para lá e para cá com outras que parecem seres andróginos. Fernanda, a recepcionista, me apresenta ao professor de plantão que vai realizar minha avaliação física. Um gigante que deve ter uns 120 quilos de músculos com uma prancheta na mão direita. “Opa! Como vai?”, diz. “Meu nome é Oliveira.” “Prazer, Cesar”, respondo. O gigante parece não estar em seus melhores dias. Vamos para uma pequena sala com balança, bicicleta ergométrica, uma mesa com vários utensílios de aferição antropométrica; na parede um quadro mostrando um corpo dissecado com todos os músculos do corpo humano e seus respectivos nomes ao lado. O avaliador pede para que eu tire a roupa e fique apenas de sunga e me manda estender os braços. Primeiro de frente, depois de costas. Anota observações em uma folha e rapidamente se levanta pegando um instrumento de duas pontas que serve para medir dobras de gordura. Mede meu abdômen, depois as dobras do braço, depois a coxa. Manda realizar exercícios abdominais, depois flexões e depois pedalar na bicicleta durante 20 minutos. Mede a minha capacidade física e composição corporal, com toda a parafernália tecnológica de que dispõe. Terminado tal processo de triagem me dispensa dizendo: “amanhã você passa aqui e pega o resultado...”. Dia seguinte. Seis horas da tarde. É uma tarde quente da primavera de 2000. Chego à Academia Apolo e a calçada que serve de estacionamento para os freqüentadores está repleta de carros de todas as marcas. Parece que a classe média está bem representada nesta instituição de construção da forma. Subo. Escuto o ritmo e o som pesado de “The Trooper” do grupo inglês Iron Maiden (a letra conta a história de uma batalha da Guerra da Criméia) misturado com o som dance da sala de ginástica que vaza pela janela aberta e o barulho dos pesos sendo colocados nas barras e máquinas de exercícios. Embora seja grande, a academia parece superlotada. Grupos de bodybuilders com camisetas que mostram mais do que escondem acotovelam-se ao redor dos cabos de aço que rangem, puxados nos exercícios. Um fisiculturista, de pé e com um grande cinturão de couro apertado a cintura, levanta uma barra com vários pesos (anilhas) de 25 quilos em cada lado e urra fazendo careta como bicicletas (estas são fixas) com subidas e descidas sempre acompanhada de música. 136 se estivesse em um sessão de tortura. Meninas com cabelos presos em rabode-cavalo vestindo micro shorts e a parte de cima do biquini assistem outra realizar um exercício de subir e descer um tablado com uma barra de pesos sobre os ombros. Percebo que a atleta tem mais músculos do que eu. Sua perna, contraída pelo peso, parece a de um jogador de futebol. Conforme as repetições tornam-se mais dolorosas ela faz diferentes caretas, suando em gotas, até o momento em que, com uma voz grossa, urra : “puta que o pariu!!”. Rapidamente, uma das meninas começa a ajudar a subir com o peso na última repetição, logo, outras duas e um homem jovem que estava por perto ajudam a baixar a barra até o chão. Nas academias do subúrbio raramente se vê uma mulher com essa forma. Suas costas em V, a ausência de curvas e cintura, contrastam com um grande peito provavelmente siliconado. Samuel Fussel, em sua etnografia sobre os bodybuilders da Califórnia, mostra que tais mulheres são chamadas, naquela região, de She-Beast (1992:91). Descobri, mais tarde, que os esteróides anabolizantes, conjugados aos exercícios, fazem o indivíduo perder adiposidade o que, no caso das mulheres, provoca um significativo aumento muscular e diminuição de seios levando muitas a optarem pelo uso de silicone para compensar. No caso dos homens, é comum o uso de siclicone para aumentar as “batatas da perna” (panturrilhas). Procuro o professor para me indicar os exercícios e me apresentar às máquinas e pesos. Parece mais simpático hoje. “Você é mesmo o....?” “Cesar”, digo. “Ah!, sim. Vamos lá, Cesar”. “O que você quer?”. “Como?”, pergunto. “É. O que você quer fazer com o seu corpo, com a carcaça, a fuselagem, entende?”. “Ah, sim, quero crescer e emagrecer, digo, mas não quero ficar enorme.” “Bom, ficar enorme é mesmo difícil..., tudo bem.” “Vou fazer uma série para você. Quantos dias da semana você vai vir a academia?” Respondo: “Bom, uns cinco dias, talvez.” “Não. Seis!”, diz ele. “Vou fazer uma série A e B para você. Daqui a três meses você me procura p’ra trocar, falou? P’ra eu fazer outra série. Não adianta repetir o mesmo exercício durante muito tempo que o músculo não responde mais. Cadê sua avaliação?”, pergunta. Digo: “Você ainda não me entregou. “ “Ah, sim... ‘peraí, que já volto.” Ele vai à sala de avaliação e pega umas folhas grampeadas com meus dados. Pára próximo e 137 analisa: “Hummm, cê tá meio gordinho... 17% de adiposidade... Olha só: um cara desses aí – fala olhando para um gigante de dentes trincados para o espelho e com um grande cinto de couro apertado na altura da barriga que faz exercícios para o bíceps com duas barras curtas – tem 2,5% de gordura...”. Fico calado na minha insignificância muscular. “O negócio é o seguinte, meu irmão: diz o professor gigante, você vai ter que malhar pesado e fazer muito exercício aeróbico, além de uma dietinha se tiver a fim de melhorar para esse verão, tá entendendo?” Balanço a cabeça para cima e para baixo, sinalizando que entendi. “É, tem também uns produtos que posso te passar, vendem lá em baixo na loja – da SNC -, tem uns fat burnuning, lá ... agora se você quiser radicalizar posso te passar outras coisas...., entende, né...?” “Bomba?”, pergunto. “É, é isso aí, posso te arranjar o que você quiser; consigo tudo: Winstrol, Deca, Durateston, GH... tudo, tudo, qualquer coisa.” Finjo que estou feliz ao ouvir todos esses nomes. “Pô, muito legal, digo, mas acho que ainda é cedo... eu queria começar a fazer os exercícios primeiro... sabe como é... Mas finciona mesmo esse negócio?” . “Claro malandro, tu acha que esses caras são grandes assim por obra do divino espírito santo? Fala olhando para o gigante do bíceps que agora faz um exercício para pernas.” “Mas não é meio perigoso tomar essas coisas?” “A vida é perigosa, brother.... Tudo tem seu preço, se tu tá a fim de ficar sarado tem que arriscar, certo? Tem cara aí que bebe, cheira, fuma maconha, p’ra se divertir, aqui a gente toma bomba... A vida tem que ser preenchida com sacrifícios, não é? Tudo que vale a pena é caro. E então, vai comprar a parada?” Respondo: “Tudo bem, mas não agora, primeiro tenho que saber como funciona, os efeitos, o que tomar, essas coisas... e você vai ter que me explicar, certo?” Falo, com o objetivo de conseguir a simpatia de um informante privilegiado. “Tudo bem, diz ele, vou passar logo tua série de exercícios e amanhã a gente vê o resto. Mas de qualquer forma vou te passar uma dieta e um ciclo [de esteróides anabolizantes] leve, se você resolver fazer é só me falar...” No dia seguinte retorno com dores nos músculos das costas. Embora já tivesse freqüentado academias durante um bom tempo para a pesquisa de mestrado não estava acostumado com aqueles exercícios mais pesados. 138 Como não tinha o objetivo de me tornar um fisiculturista mas apenas realizar uma pesquisa eu teria que elaborar uma estratégia para burlar aqueles treinos. Alguns bodybuilders freqüentavam a academia duas vezes ao dia. De manhã e à noite. Como o fisiculturismo no Brasil não proporciona retorno financeiro efetivo me perguntava de que forma esses indivíduos se sustentavam. Descobri que muitos ainda viviam com os pais e faziam cursos universitários, um número significativo era composto de funcionários públicos que desfrutavam de algum tipo de sinecura na burocracia estatal, ainda outros trabalhavam na própria academia (e em outras) como instrutores de fisiculturismo e personal trainers o que permitia que ganhassem algum dinheiro sem precisar também pagar a mensalidade das instituições da forma. Ainda outro grupo realizava trabalhos de segurança e eventos. Há também aqueles que são sócios de suas próprias academias, ou seja, empresários do ramo, e, por fim, o grupo daqueles que trabalham como garotos de programa. De fato, para manter um corpo de bodybuilder existe a necessidade de muito dinheiro e tempo, visto que a alimentação deve ser repleta de proteínas, uma quantidade considerável de suplementos deve ser consumida (pó, pílulas e shakes) além dos ciclos de esteróides, alguns custando caro para a maioria das pessoas (em torno de R$100,00 cada ampola. – por vezes um ciclo consome 18 ampolas). Nada disso adianta se não estiver associado à dedicação aos exercícios. Portanto, para se tornar uma montanha de músculos à moda Arnold Schwarzenegger é necessário dedicação, disciplina, determinação e dinheiro. Oliveira, o professor, me apresenta ao treinador Wolney. Está de bom humor, rindo e falando das mulheres da academia. Wolney diz meio sério, meio brincando, que só quer saber da barra olímpica, a única “fêmea” que lhe é fiel. “Ando com a foto dela – da barra – na carteira”. Wolney não apresenta o tipo físico de um bodybuilder. Mas é grande como um estivador. É um levantador de peso que não se preocupa com a estética, apenas com a força. Logo se propõe a me treinar. Com o tempo, e com as inúmeras propostas para ser treinado, percebo que este convite, na realidade, faz parte de todo um ritual 139 de iniciação das academias cariocas de fisiculturismo, pois quando um fisiculturista ou um veterano dos pesos se oferece para treinar um neófito ele também está querendo alguém que esteja ao lado dele para auxiliá-lo em seus exercícios com peso. Assim, o iniciante torna-se uma espécie de escudeiro, de Sancho Pança para os Dom Quixotes da forma. Essas relações são verdadeiras relações de compadrio em que o iniciante é “obrigado” a seguir os passos, conselhos, receitas químicas e prescrições do mentor, doando em troca fidelidade – na presença aos treinos, no cumprimento dos horários, acatando opiniões – e esteróides anabolizantes. Estes são verdadeiras moedas de troca neste tipo de relação inerente às academias. Em troca de favores e serviços, dietas, prescrições de ciclos e séries, recebe-se, por exemplo, meia dúzia de ampolas de Deca Durabolin ou Durateston (esteróides muito usados no meio atualmente). Mestre Wolney, como é chamado por alguns, passa a ser um dos meus principais interlocutores. Diz que tem um emprego no Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, que é casado e tem duas filhas. Fala que tenho que comprar um cinturão de couro para me proteger de possíveis hérnias causadas pelo excesso de peso. Fala ainda que está tentando promover campeonatos de halterofilismo e que, se eu quiser, poderei participar um dia. Pergunta o que faço e digo que sou professor e estou pesquisando as academias de musculação. Fala rindo que gostaria que alguém escrevesse sua biografia. Para a alegria do meu interlocutor, digo que ele aparecerá no meu trabalho. Wolney fala que o treinamento de halterofilismo é diferente do treinamento da musculação: são exercícios com muito peso e pouca repetição que têm por objetivo aumentar a força do atleta. Tais exercícios, porém, com pesos livres (barras soltas e anilhas) são muito praticados pelos fisiculturistas porque permitem um grande aumento da massa muscular. No primeiro dia começo apenas assistindo. Wolney diz que vai me apresentar a Jair, um atleta que desafia, no programa Esporte Espetacular da Rede Globo, todos aqueles que estiverem dispostos a levantar mais peso do que ele. Esperamos a celebridade chegar. Jair chega, tem mais ou menos 1metro e 80 centímetros de altura e deve pesar uns 130 quilos ou mais. 140 Cumprimenta a todos e começa o treino. O atleta tira a camiseta de malha que estava usando e coloca o cinturão de couro sobre uma espécie de macacão de halterofilismo que tem o formato de bermuda e camiseta regata em uma peça inteiriça de cor azul. Retira de uma grande bolsa um pote com pó branco que passa nas mãos e começa o aquecimento levantando e abaixando 15 vezes uma barra com 60 quilos. Neste dia, o que mais me deixou intrigado foi o método de incentivo para treinos de Wolney : além do peso que ele e Jair levantavam, urrando, batiam com tapas violentos um no outro no exato momento que levantavam os pesos. Perguntei qual era o objetivo daqueles sonoros tapas dados nas costas e na cara um do outro - Wolney ainda aparecia de vez em quando com um pedaço de madeira, uma ripa, para bater nos ombros do parceiro no instante em que este se preparava para realizar o esforço. Eles me disseram que tal prática era para dar força na hora de levantar os halteres. “O sujeito toma a porrada, diz Jair, e parte com toda a raiva para a barra e descarrega toda a sua ira ali.” Percebi, enquanto os halterofilistas realizavam seus treinos, que algumas pessoas olhavam assustadas os tapas e gritos dados pelos amantes dos pesos. Depois que Wolney e Jair, acompanhados de seus fiéis escudeiros, se retiraram fui tentar cumprir minha série de musculação. Quatro séries de peito, quatro de ombro, quatro de bíceps e quatro de antebraço. Se fosse seguir a lógica de Oliveira deveria correr uma hora na esteira e ainda quarenta minutos na bicicleta. Além de seguir uma dieta rigorosa de 400 calorias por dia. Para virar um Adônis teria que sofrer como Jó. Coisa que nunca consegui fazer durante todo o tempo da pesquisa. Enquanto pensava sobre isso olhava as mulheres em volta. O uniforme era o mesmo: cabelos presos em rabo-decavalo, muitas vezes tingidos de louro, bermudas ou calças de lycra e tops ou a parte de cima de um biquini e tênis de marcas famosas. Os homens usavam bermudas curtas ou calças largas de tecido apropriado, leve, camisetas e camisas de malha do exército ou imitando o uniforme militar, cabelos curtos e nenhuma barba. Nos pés, tênis Adidas, Nike ou Reebok, muitas vezes em forma de botinas. Apenas alguns do grupo do Wolney, inclusive ele, destoavam um pouco desse modelo. Algumas mulheres pareciam travestis, she-beasts, 141 devido ao excesso de músculos, outras (era possível perceber olhando mais atentamente), pareciam ter a pele áspera em partes do rosto, como queixo e maxilar, por exemplo, como se tivessem o hábito de fazer a barba. Terminado meu dever cotidiano entro no vestiário e me deparo com um fisiculturista solitário semi nu fazendo poses em frente a um dos grandes espelhos do recinto. Como se eu não existisse, continua se contorcendo e inflando bíceps, deltóides, abdômen, tríceps e pára apenas quando chega outro bodybuilder conhecido dele e lhe cumprimenta : “E aí, Zé? Como ‘tá essa carcaça?” Pergunta tirando a camisa. “Tudo certo, ‘Tô com quatro por cento de gordura, mas acho que ainda não ‘tá legal...”. “Fala sério! diz o outro, ainda maior que o primeiro, “eu é que não estou legal, olha só, me sinto pequeno, tenho deficiência de bíceps... e acho que estou engordando...”. Olhando aqueles dois montes de músculos se lamentando me senti como um personagem de Kafka. Nada fazia sentido ali. Ou esses caras eram malucos ou não enxergavam direito, ou melhor, não se enxergavam direito. Peguei minha mochila e deixei os dois se lamentando no banheiro. O trabalho de Pope, Phillips e Olivardia (2000), realizado em academias americanas, ressalta a tendência de tais indivíduos terem uma imagem distorcida de si mesmos. Acham sempre que estão pequenos, diminuindo, engordando, etc., mesmo exercitando-se cada dia mais. Os autores denominam este processo psicológico de “Complexo de Adônis”. Tal percepção equivocada a respeito de si mesmo leva tais pessoas a realizarem exercícios até a exaustão e lesão física e a consumirem cada vez mais os novos produtos da indústria de suplementos e esteróides em busca de uma forma ideal inalcançável. A Química da Forma Com o tempo comecei a travar contato com as principais figuras da academia. A primeira coisa que aprendi foi a lidar com o humor variável dos fisiculturistas e halterofilistas. No início, achava que todos deveriam ter problemas, pois, em um determinado dia, cumprimentavam aqueles que os cercavam e, em outro, fingiam que não viam ninguém. Percebi que tais 142 variações de ânimo – que não raro provocavam discussões sérias entre eles e mesmo brigas – eram causadas pelo significativo uso de esteróides. Principalmente quando o verão se aproximava, as variações de ânimo oscilavam da euforia à depressão. A testosterona, em grandes quantidades, pode provocar irritabilidade e até mesmo surtos psicóticos levando o usuário a quadros de desânimo e depressão quando em abstinência. Por isso, a melhor atitude adotada por alguém, quando próximo a um fisiculturista em estado de irritabilidade, é afastar-se. Quando um tipo deles está fazendo seus xercícios então, é como se aqueles pesos e aparelhos que está utlizando fossem sua propriedade. Ninguém pode interferir no uso dos instrumentos. O território é demarcado e qualquer estranho que chega perto corre o risco de ser expulso com um conjunto de impropérios e rosnados. Certa vez, um adolescente desavisado começou a desmontar uma barra de supino (máquina de exercícios para peito) quando um fisiculturista gritou do outro lado da sala com sua voz de baixo profundo: “Larga essa merda aí, seu pangaré!!!” e direcionou-se com o andar típico dos bodybuilders – arrastando como um robô sua montanha de músculos – para o local no qual estava o menino já pálido e assustado que rapidamente se afastou pedindo desculpas. Wolney me apresenta a dois fisiculturistas que treinam com ele: um chamado Vilela e outro Kamal. Em uma tarde de dezembro de 2000, espero os dois no bar da academia, pois tinham marcado para treinar naquela tarde. Eu tomava uma vitamina de açaí com Creatina enquanto esperava os dois e ouvia os sons peculiares dos ferros e gritos da academia. Escutava Wolney açoitando mais um de seus discípulos e dizendo: “Vamos á l . Zé!”, Força!”, “Mais uma!”, “Mais uma, que esse peso é coisa de calcinha! [efeminado na gíria das academias]” Ao meu lado, um sujeito parecido com uma montanha de músculos levava à boca um Shake de morango carbo fuel com albumina e amino whey protein. Suplementos alimentares para atletas fisiculturistas e que são adicionados a frutas e, na maioria das vezes, a outros pós artificiais que imitam o gosto de frutas. De repente, uma loura vestida com roupa justa se aproxima do gigante e diz: “vou malhar. Se você quiser que eu te aplique ‘o veneno’ 143 [esteróide] tem que ser agora...” O sujeito levanta-se e segue a loura em direção ao corredor dos vestiários onde os fisiculturistas aplicam suas drogas uns nos outros. Por causa desse corredor e das ampolas de esteróides jogadas nos vasos – que sempre entopem - e das seringas com agulhas deixadas nos bancos dos vestiários, os faxineiros de uma empresa terceirizada, não raro, se rebelam com a direção da academia. Kamal e Vilela chegam. “E aí, Cesar? Vamos Lá? “Entrando no grande salão de musculação vejo Wolney apertando o cinturão de couro para levantamento de peso do seu pupilo, um sujeito bem magro e alto. Meus dois companheiros dizem que vão treinar perna. O treino de perna é considerado o pior, “o mais chato”, pela maioria dos homens. Em geral, eles preferem treinar a parte de cima do corpo, ao contrário das mulheres que preferem a parte inferior. Kamal diz que está um pouco fora de forma, eu fico rindo e digo: “Bom, depende do ponto de vista, né?” Ele continua: “ operei pela segunda vez uma ginecomastia e tive que ficar mais de um mês sem malhar nada...” Pergunto por que tanta gente fica com ginecomastia na academia – cinco fisiculturistas já haviam me confessado terem realizado a operação. Kamal responde que a testosterona em grande quantidade no organismo acaba tornando-se estrogênio, ou seja, o hormônio masculino transforma-se em hormônio feminino – chamam isso de aromatização – fazendo o fisiculturista, que busca acirrar as características masculinas, apresentar pequenos seios (ginecomastia) e tendência a aumentar gordura corporal em determinadas regiões como o quadril. A ginecomastia tem que ser operada para não tornar-se câncer de mama. Kamal fala, olhando para Vilela: “Lá onde eu operei os caras colocam silicone, também. Pensei em colocar nas panturrilhas. Minhas panturrilhas não são boas...” Vilela olha para baixo, para suas próprias panturrilhas e diz: “É, também preciso, malho que nem um desgraçado e essa merda não cresce de jeito nenhum, não tem jeito é genético...”. Em sua Enciclopédia do Fisiculturismo, uma espécie de bíblia de todos os fisiculturistas, Arnold Schwarzenegger (2001) escreve que essa região do corpo, quando não beneficiada por uma “genética privilegiada”, é muito difícil de ser desenvolvida, demandando muita dedicação do fisiculturista. 144 Kamal veste uma camiseta justa de cor amarelo-ovo rasgada em partes estratégicas escrita Pitbull Gym com o desenho de um cão da raça pitbull segurando na boca uma barra olímpica com grandes anilhas na ponta. O desenho da barra sugere que ela está dobrada devido ao excesso de pesos. Vilela usa uma camiseta do exército com as mangas arrancadas e um tênis Reebok roxo. O tênis de Kamal é um Mizuno prateado. Os calçados, nas academias, mais do que as roupas, representam o status do usuário. Desta forma, alguns procuram colecionar mais de dez pares dos mais caros. Quanto mais variedade e quanto maior o preço, maior o status do usuário. As marcas Reebok, Mizuno, Nike, Adidas são as mais cobiçadas e são verdadeiras fórmulas mágicas que instauram a distinção entre os frequentadores. Alguns chegam a ter tatuados tais logotipos na própria pele. Kamal fala que o treino de perna vai ser de intensidade. Ele é conhecido por ser um radical em seus treinos, realizando repetições infindáveis nos exercícios, combinado-as e recombinado-as com outras séries com poucas repetições e mais pesos. Explica que seu método foi criado por um campeão do bodybuilder que ganhou o Mr. America48. De acordo com Fussel (Op. Cit.), muitos fisiculturistas aderem à teoria de que quatro ou cinco exercícios por parte do corpo, com quatro ou cinco repetições por exercício, é mais do que bastante para cada treino, durando noventa minutos todo o treinamento. Kamal, porém, não concorda com tal tipo de trabalho. Para ele, cada parte do corpo deve “sofrer” cinqüenta repetições, ou mais, e, muitas vezes, ele treina por duas horas apenas um músculo com o objetivo de “definir a massa muscular”. Estes treinamentos, conhecidos como “tensão contínua”, causam intensa dor para o praticante. Assim, Kamal alterna os treinos fazendo a tensão contínua em um dia e no outro acrescenta mais pesos, menos séries e repetições aos exercícios com o objetivo também de “aumentar massa”. É senso comum entre os fisiculturistas que exercícios com muitas repetições e pouco peso servem para fazer os músculos ficarem definidos e exercícios com poucas repetições e muito peso aumentam o tamanho do músculo. Chamam 48 - Descobri, lendo a biografia de Samuel Fussel (Idem) – um dos melhores documentos etnográficos sobre fisiculturismo nos Estados Unidos – que tal método de treinamento foi popularizado por Steve 145 definição de “qualidade” e aumento de massa de “quantidade”. O ideal, dizem, é o equlíbrio entre os dois: tornar-se grande, mas com definição – baixa porcentagem de gordura. Kamal e Vilela começam o treino enquanto observo. Vilela começa primeiro enquanto Kamal o acompanha, auxiliando-o. Vilela faz cinqüenta repetições, subindo e levantando. Descansa dois minutos e retorna. Nessa segunda vez começa a urrar de dor, enquanto Kamal o ajuda segurando-o pela cintura. Na terceira série Vilela pede para parar e diz que está passando mal, se joga no chão e logo começa a vomitar. Levanta-se e vai para o vestiário, eu e Kamal vamos atrás. Vilela está sentado de cabeça baixa. “Esse treino é foda!”, diz. “Também acho que meu fígado não deve ‘tá muito bom. Tenho que tomar boldo. Fui tomar Hemogenin, é foda!”. Após uma longa pausa, Vilela nos olha, sai do vestiário correndo em direção à sala de musculação, agarra a barra colocando-a nas costas e retorna os exercícios com toda a raiva que parecia ter dentro dele. Kamal exulta: “Esse é um exemplo de campeão!!! Vamos Vilela!!! Agora eu tenho um verdadeiro companheiro de malhação!!!”, grita olhando para mim. Logo depois, para o meu espanto, Kamal começou a agachar com duzentos quilos, cem de cada lado da barra, logo em seguida com 300, berrando como um animal e fazendo as caretas mais assustadoras enquanto Vilela o ajudava e o alto falante da sala tocava heavy metal. Depois de fazer as repetições foi a vez de Kamal desabar, ficando no chão uns cinco minutos estatelado olhando para o teto. Logo em seguida Vilela se prepara de novo para o processo. Aperta o cinturão de couro que todos os bodybuilders usam e fica se concentrando em torno da barra suspensa por um apoio de ferro. Percebi que esse era um tipo de ritual daqueles que levantam muito peso: a) apertam o cinto; b) se concentram em torno do peso que pretendem levantar; c) dão um berro e atacam o peso. Foi justamente isso que Vilela fez abaixando e levantando 320 quilos de uma só vez. Depois foi de novo a vez de Kamal. O mesmo ritual. Mas havia uma variação. Visto que já começavam a esgotar suas forças, os dois fisiculturistas deveriam articular mais uma estratégia: Quando Michalik, campeão na década de 80 do século XX. O modelo do trabalho de Fussel é um exemplo de 146 Kamal colocou a mão nos pesos para levantá-los, Vilela desferiu-lhe um violento tapa nas costas, logo seguido pelo grito e movimento de Kamal. Dessa forma, os pesos foram levantados com sucesso. Durante o treino percebi a articulação de todo o capital de competência amealhado pelos fisiculturistas durante seus anos de prática. Kamal passava para Vilela as técnicas de levantamento que produziam resultados específicos nas partes do corpo as quais correspondiam tais exercícios. Como ajustar a distância dos pés com o objetivo de mudar a forma do quadríceps. De que forma contrair os músculos lombares para um melhor desempenho sem risco de lesão. Qual a maneira de posicionar os pés para um trabalho melhorado de coxa. Percebi que Kamal, devido a toda sua experiência como bodybuilder, era um verdadeiro catálogo vivo de exercícios e dicas de musculação. Parecia conhecer, na prática, a maneira como cada fibra muscular reagia em consonância com cada exercício realizado. De fato, ele demonstrava posições variadas para o mesmo tipo de exercício e esclarecia que aquela pequena variação poderia fazer uma diferença considerável no tipo de forma muscular que o indivíduo gostaria de construir. Era, e parecia considerar-se, um verdadeiro designer muscular. Com conhecimento adquirido e praticado em seu próprio corpo. Após o treino, Vilela e Kamal retornam ao bar. Kamal toma um Shake repleto de aditivos da indústria de suplementos alimentares. Vilela recusa ingerir qualquer coisa. Diz temer pelo fígado. O atendente do bar que presta atenção à conversa oferece um remédio para o fígado do fisiculturista. Terminado o dia de malhação. Kamal pergunta a Vilela sobre os esteróides que ele tem; se quer vender e se pode fazer o favor de aplicar nele. “Tudo certo, diz Vilela. Vamos lá em casa que a gente resolve isso.” Pergunto se posso ir também. “Óbvio”, diz Vilela. Descemos a rua da academia na tarde de Copacabana em direção à Rua Ministro Viveiros de Castro onde o fisiculturista mora. Vou andando alguns passos atrás das duas figuras que chamam atenção, apesar da população de Copacabana parecer acostumada a tais tipos. Os dois são mais ou menos da mesma altura e seus corpos hiper “participação observante” no mundo dos Gyms. 147 desenvolvidos destoam do tamanho das cabeças que parecem não ter crescido proporcionalmente. Chegamos ao apartamento de Vilela. É um típico quarto e sala de Copacabana, mas a decoração – se é que se pode chamar assim – é singular. Logo na sala, assim que a porta se abre, dezenas de revistas de fisiculturismo, a maioria delas norte-americanas, podem ser vistas espalhadas pelo chão e em cima do velho sofá. Muscle and Fitness, Ironman, Flex, Bodybuilding Magazine, Iron Sport, Muscle in Form . O apartamento cheira à urina de gato, pois Vilela cria três, mas parece não ligar muito para a limpeza do recinto. Um gato chama-se Bam-bam, outro Ninrod e, a ainda outro, Creatina, esse último por ser todo branco como o pó utilizado pelos fisiculturistas. Vários pares de tênis, três cinturões de couro para levantamento de peso, e cinco faixas para amarrar articulações, muito usadas pelos bodybuilders para se protegerem de lesões, todos esses objetos estão espalhados pela sala e pequeno corredor que dá acesso simultaneamente ao quarto, ao banheiro e à cozinha. Nessa última, dezenas de potes de suplementos amontoam-se sobre a geladeira e em um pequeno armário. Creatina, Albumina, BCCa’s, Mt-Rex, Ripped Fuel, são alguns nomes que posso observar rapidamente. Roupas de academia também estão espalhadas por toda parte, no sofá, no chão da sala e na janela. Nas paredes, tanto da sala quanto do quarto, vários posters de campeões internacionais de fisiculturismo. Mas, o que mais chama atenção são os pequenos recortes de fotos de revistas de fisiculturismo mostrando atletas em poses musculares. Algumas fotos apresentavam apenas algumas partes dos corpos. Perguntei o que significava aquilo e Kamal respondeu que esse era um método de mentalização muito comum entre os marombeiros (método aliás propagado por Schwarzenegger, reitera): aquelas fotos são de ideais de musculatura a serem perseguidos, então o indivíduo fixa sua mente naqueles exemplos de forma física e isso dá força a ele para perseguir o objetivo de se tornar igual a uma daquelas figuras estampadas no papel. Algumas fotos mostravam um fisicultrista famoso segurando potes de suplementos alimentares, outro mostrando seus bíceps em uma praia paradisíaca, ainda outro segurando uma modelo loura de biquini, outra de um gigante fazendo 148 exercícios para os músculos das costas, e assim por diante. Contudo, o que havia de mais singular em todo o pequeno apartamento, era o quarto repleto de caixas e mais caixas de esteróides anabolizantes. Vilela era um verdadeiro traficante. “Sabe, cara, eu tô começando a ganhar dinheiro com isso, forneço tudo que os caras da academia precisam... mas, tô começando mesmo, só agora... mas pretendo ganhar uma grana com isso...”, diz. O quarto parece uma espécie de almoxarifado repleto de caixas de Winstrol, Dianabol, Esiclene, Deca-Durabolin, Lipostabil, Clenbuterol, Proviron, Cytomel, não tendo quase nenhum espaço livre, a não ser para a cama, um pequeno guarda-roupa e um poster emoldurado que mostra Arnold Schwarzenegger fazendo uma pose de campeonato. Nem todos os produtos são esteróides, diz meu anfitrião, alguns são complementos ou remédios usados para emagrecimento. Há drogas para tudo ali, explica Vilela. Umas para aumentar a força e a massa muscular, outras para “secar” gordura, ainda outras para fazer inchar por algumas horas um músculo específico, outras para aumentar a disposição, além daquelas usadas para minorar dores musculares e problemas de efeitos colaterais causados pelo uso dos esteróides. Diante de minha surpresa, Vilela abaixa e puxa de baixo da cama uma pequena caixa de papelão repleta de ampôlas dizendo: “agora, o ouro mesmo é esse aqui! Isso é GH! Exclama dando um sorriso. Hormônio do crescimento [growth hormone]”. “E aí, qual a diferença?” pergunto. Vilela responde: “a diferença é o preço e o resultado, meu irmão ! Cada vidrinho desse aqui custa cento e vinte pratas e faz milagres. Lá fora, os fisiculturistas usam isso oito semanas antes do campeonato. Rejuvenesce, faz secar a gordura, aumenta a massa muscular, dá força, mas tem que tomar cuidado, também, se usar muito faz crescer as extremidades do corpo, o queixo, a testa, e pode causar morte súbita. Também alarga o espaço entre os dentes da frente...”. Percebo que as drogas são parte essencial desse mundo da forma, paraíso da indústria farmacêutica. “Ah!!! Também tem outra coisinha, Vilela puxa do armário um saco de erva verde musgo. Isso aqui é para relaxar!!!” Gargalha com Kamal sacudindo um saco que deve ter mais de meio quilo de maconha. Pergunto se na academia todos os fortões tomam essas coisas. Kamal responde que todo mundo toma, os fortões tomam mais, mas 149 todo mundo toma: “inclusive as gatinhas para ficarem saradas no verão. E o Vilela agora tá fornecendo p’ra todo mundo, virou negociante, mesmo”, fala rindo. Percebo que os esteróides são o elixir secreto dessa tribo de musculosos de aparência saudável. Aparência, essa é a palavra, já que, paradoxalmente por causa dela, causam danos irreversíveis à saúde. Pergunto aos dois, quais os efeitos colateriais. Kamal responde: “espinha, muita acne, amento do colesterol ruim, impotência, infertilidade, ginecomastia, câncer de tudo quanto é tipo, parada cardíaca, úlcera, pressão alta, depressão, calvície precoce, disfunções hepáticas e da tiróide, sangramento retal, problemas intestinais e hepatite medicamentosa”. “Só isso?”, ironizo. “E vocês não têm medo de tomar esses troços?”. “Não tenho medo de nada, Cesar”. Vilela responde e continua: “se você quer crescer tem que pagar o preço, tem que correr o risco, certo? O que não mata engorda, aqui, no caso, o que não mata aumenta a massa”. Vilela pega então da gaveta uma seringa com uma agulha de mais ou menos cinco centímetros e prepara-se para espetar Kamal. Quebra com desenvoltura a parte de cima de uma ampôla de Durateston e puxa com o êmbolo o líquido oleoso amarelo que vagarosamente escorrega para a seringa que fica cheia pela metade. Kamal abaixa a parte de trás da bermuda e Vilela com facilidade injeta o líquido todo no glúteo esquerdo do amigo de levantamento de peso. Logo se forma um caroço no local já todo marcado pelas várias picadas de injeção de esteróides. Vilela comprime um chumaço de algodão com alcóol no local em que agora escorre sangue. Após alguns minutos o mesmo processo se realiza. Só que Vilela agora é quem está sendo aplicado por Kamal. A dose de Vilela é dupla, uma em cada nádega, visto que ele diz ser esta semana a do ápice do ciclo, ou seja, a semana em que o fisiculturista se aplica as maiores doses para depois ir decrescendo com as mesmas, até chegar de novo a uma dose por semana. Kamal diz que outro problema é que tais injeções doem muito e, às vezes, tornam-se abcessos que têm que ser estirpados pelos médicos com pequenas cirurgias. Fala ainda que 150 desenvolveu toda uma técnica para sentar sem se machucar: ”empino um pouco a bunda e sento com a parte mais baixa da região [risos].” Fussel escreve que “bodybuilding e crescimento muscular são sinônimos; esteróide e crescimento muscular são sinônimos; logo bodybuilding e esteróides são sinônimos” (Id.Ibid.:122). Porém, não apenas entre os fisiculturistas ocorre o uso de esteróides, ressalta o autor, mas também entre praticantes de outras modalidades esportivas. Uma pesquisa citada por ele destaca que em 1991, 6% dos estudantes do ensino médio norte-americano admitiam utilizar esteróides anabolizantes, enquanto 20% dos atletas universitários também admitiam consumir tais drogas. Com o crescente incentivo social que induz os indivíduos a buscarem o sucesso e uma forma musculosa livre de adiposidades, esse uso deve ter crescido, provavelmente. Não raro, os fisiculturistas chamam o processo de arriscar a vida para melhorar a forma como “pacto com o diabo”. “Vendem a alma” para suplantar a condição de comuns mortais, ao menos em relação à forma física; sabem dos riscos que correm e estes riscos, grosso modo, servem de incentivo para sua ações de risco. Para obter mais algumas informações, incentivo Vilela a relatar sua história, a contar suas experiências de iniciado no mundo da malhação. Ele diz que “não é mole, não”, mas, “não me sinto arrependido pelo que fiz e faço, até hoje”. “Sinto dores pelo corpo, todo mundo que malha sério sente, sempre coloco gelo nas articulações e na coluna, mas a dor me excita, é cara, se eu não sentir a dor é como se o treino não tivesse adiantado nada, sabe?. Comecei a malhar aos 15 anos de idade e comecei a tomar bomba já naquela época. Lembro que quando tomei a primeira Deca da minha vida fiquei olhando no espelho p’ra ver se eu crescia... [risos]... como se fosse mágica, aí fiquei grilado com aquilo, pô parece que não tô crescendo nada. Tenho que tomar mais bomba p’ra incrementar... então passei a tomar uma Deca toda semana com Durateston, depois passei a tomar uns comprimidos de Winstrol, aí tive um ataque ferrado do fígado, porque a bomba quando você toma em comprimido ataca muito mais o fígado, porque a injeção vai direto p’ra corrente sanguínea, o comprimido, não, ele passa pelo fígado. “ Falo com Vilela: “outro dia vi um 151 maluco lá no banheiro da academia se aplicando sozinho. O cara tinha encostado a injeção na parede e estava apertando o ombro contra ela quando eu cheguei... “. “É, devia estar desesperado, como ele era?”. “Um fortão com o cabelo espetado pintado de louro”. “Era o Mário”, diz Kamal. Vilela acrescenta: “vai ver que ele procurou alguém para aplicar a parada nele e não encontrou aí ele fez isso, mas é arriscado, é desespero de causa, porque a agulha pode quebrar... eu já fiz isso umas vezes, mas é muito arriscado... os caras fazem isso também quando não conseguem mais aplicar na lateral do ombro, porque o cara já tomou muita injeção ali e o local está todo ferrado já, então ele tem que tomar injeção na parte lateral aí ou alguém aplica p’ra ele ou ele recorre a parede. Quando eu tô fazendo muito ciclo meu ombro fica ferrado também, por isso tem que fazer rodízio; uma aplicação num lado, outra no outro, outra na bunda direita, outra na esquerda, mas quando o cara tá tomando muita bomba é complicado, fica faltando lugar, aí sobra a coxa, mas a coxa é muito pior, só em último caso, porque a coxa, o quadríceps, é muito duro e dói muito.” “Mas, Vilela, me conta aí sua história, digo. Desde o início. A bomba adiantou mesmo, fez efeito?”. “Claro! Comecei com 15 anos e com dezessete tinha aumentado 12 quilos.tinha 68 passei para 80. Aí participei do primeiro campeonato de força. O campeonato foi organizado pela prórpia academia que eu tava e ganhei de todo mundo. Fiquei ainda mais fissurado pela maromba; e não queria competir só por força [halterofilismo], mas queria também competir no fisiculturismo. Queria ter um corpo mais definido, uma musculatura melhor e não só força. Aí tive que mudar a estratégia. Eu tomava um mês de bomba depois parava três meses e aí voltava de novo, era assim o meu ciclo. Então como eu queria competir por forma tive que mudar, incrementar os ciclos. Passei a me turbinar doze semanas seguidas com intervalos de quatro semanas, então tomava três meses direto de bomba e parava um, três, um, três, um... só pensava em me preparar para o meu primeiro campeonato de fisiculturismo...”. “E os efeitos colaterais?”, pergunto. “Bom, são esses aí que você tá vendo: fiquei careca com 19 anos, agora tenho 32, cheio de espinha... às vezes dá muita irritação, a gente fica nervoso e dor de cabeça, tenho sempre, mas o pior de tudo, Cesar, o pior de tudo, p’rum cara que desde 152 criança sempre gostou de comer de tudo, e muito, - minha família é portuguesa, você entende, né?, mesa farta todo final de semana, muita comida... - o pior de tudo são as dietas.” Kamal balança a cabeça em sinal de concordância com Vilela. “Agora já até me acostumei um pouco, não totalmente, mas no início era o inferno! P’ra acostumar é muito difícil. A vida de quem compete se divide em duas épocas: a off-season, quando a gente tá treinando para aumentar massa muscular e a alimentação é rica em calorias, então a gente come muito, toma shake de tudo quanto é troço, toma suplemento, come carne adoidado, um quilo de uma vez, e, o outro lado, a fase pre-contest, ou véspera de competição, quando a gente tem que cortar tudo, cair de uma dieta de as vezes 5000 mil calorias por dia para outra de 700 calorias, é duro demais. A gente tem que cortar toda a gordura, todo o carboidrato, cê imagina... o choque é brutal, aí tu fica com sono, irritado, deprimido, louco p’ra morder todo mundo.... se no off-season o sujeito de manhã come 6 claras de ovo, 2 maçãs, 6 colheres de aveia com mel, 5 bananas, 4 fatias de pão integral, por exemplo, no pre-contest isso cai p’ra uma fatia de melão, meia maçã e uma colher de aveia, só, mais nada. No almoço é a mesma coisa, o cara, no off-season, come 2 quilos de macarrão, é o normal, com 2 quilos de batata e meio quilo de peito de frango, no pre-contest, vai para apenas 1 batata, é Cesar, uma batatinha, só, com dois filezinhos de peixe, isso é pior do que qualquer dor de cabeça, espinha ou dor nas costas. Isso deixa a gente alucinado, porque nessa fase de competição a gente tem que ficar hiper definido, seco, a musculatura tem que estar grande e aparecer cada fibra muscular dela, a pele tem que ficar fininha, então, tem que cortar sal, todos os derivados de leite, e até a água, para poder perder gordura. Fora isso, o anabolizante dá mais fome ainda, justo nesse período, então tu fica nervoso, louco, alucinado, por isso que sai briga na academia nessas épocas. Às vezes o cara ainda toma remédio para emagrecer junto disso tudo. Eu tomei Clembuterol que é para asma e ajuda a emagrecer e já tomei remédio p’ra diabetes pra reduzir o açúcar do meu sangue, só que comecei a ter alucinação, a ficar com depressão, me dava vontade de chorar, aí parei. Só volto se for p’ra ganhar muito dinheiro. Mas tem muita gente que toma p’ra competir”. “Quanto 153 tempo dura esse processo?”, pergunto. “Umas 12 semanas, mais ou menos, pode durar menos, depende do peso que eu tenho que perder. Aí a comida se torna uma grande obsessão. Eu penso nela 24 horas por dia. Termino de comer já marco no relógio a hora que eu vou comer de novo. Para evitar cãimbras e perda de potássio, eu só posso comer uma gema das vinte claras que eu como por dia. Então, eu como aquela gema lentamente, curtindo cada segundo do gosto dela. Agora tem a albumina, que é clara de ovo em pó, e que facilita quem não gosta de comer ovo, mas eu continuo comendo, uso os dois. Além disso, tem os dilatadores de veias, né? P’ra competir, o cara, além da musculatura evidente, tem que estar com as veias aparecendo ao máximo, isso conta ponto, então, o que faço? Uso vaso dilatadores, antigamente eu usava Vasculat... “. “Isso não faz mal?”, pergunto. “Ah, tudo faz mal. O coração dispara ... nessas épocas eu acordo e as vezes levo um susto quando me olho no espelho do banheiro. Eu sou careca, então, minha cabeça fica uma teia de veias expostas, o peito e a barriga também....” . “Loucura isso”, digo. “É, Cesar, é isso aí, não é mole, não...”, diz Kamal que se mantém apenas escutando o relato de Vilela. Kamal ainda lembra a Vilela alguns itens da preparação dos IronMen : “Fala aí do sal, Vilela...”, diz ele. “É... o sal, é o seguinte: ele retém água e a água retida embaça o músculo, então ele é um vilão da musculação, é eliminado, totalmente, então, nessa fase até água a gente evita beber, porque a água da torneira é rica em sais minerais. O que eu faço, então, – eu e todo mundo que compete – bebo água destilada, que eu compro na farmácia, e ela ajuda a eliminar a gordura e o excesso de líquido que impede o músculo aparecer. Eu perco uns 30 quilos nesse período, fico grande, mas seco. Não é fácil, tem que zerar o potássio no organismo, eliminar toda a água entre a pele e o músculo para que ele [o músculo] pareça colado à pele. Nesse estágio, o xixi fica branco”. No dia seguinte volto à academia para começar meu treino com Wolney. Com o passar do tempo tais treinos começam a fazer efeito em minha conformação física. É o campo agindo sobre meu corpo. Consigo um aumento de 3 quilos de músculo e perco um pouco de gordura. Nada comparado ao estado que estaria se tivesse seguido o “tratamento” proposto de início pelo 154 professor da academia. Mas os treinos não são nada fáceis. Começam às nove da manhã e terminam meio dia. Wolney conversa muito, mas é duro com seus discípulos ressaltando sempre que aquilo que faz é diferente da musculação que a maioria pratica na academia. Começo o treino: o primeiro exercício é o de agachamento, o que acho pior. Primeiro agacho apenas com a barra olímpica que pesa 20 quilos, depois os pesos aumentam de 20 em 20 quilos, quando chega aos 80 quilos já estou desesperado. Minhas costas doem muito, principalmente a região lombar, meu rosto vermelho, parece que vai explodir, então Wolney, ao perceber a dificuldade, coloca sua técnica de pauladas em ação: com a ripa desfere um golpe nas minhas costas. A pancada da madeira faz a região arder com intensidade provocando um susto momentâneo e uma descarga de adrenalina que, de fato, permite aumentar momentaneamente a força, auxiliando a conclusão do esforço. Antes disso houve o sofrimento do cinto usado para proteger de hérnias. Wolney o aperta com toda a força colocando uma forte pressão no abdômen do aprendiz. A pressão é tão forte que quase não dá para sentir a barriga depois de colocá-lo. Em seguida começa o treino para os ombros. Tenho que levantar a barra sobre a minha cabeça e baixá-la no mínimo 3 vezes, mas a barra com os pesos tem 60 quilos, então o processo é o mesmo: cara vermelha, dente trincado e pancada nas costas acompanhadas de expressões como : “mostra que é homem!” , “Vamos que isso é peso p’ra florzinha !” e “Tá mole! Dá p’ra fazer mais umas dez”. Logo depois começamos o exercício mais famoso entre os fisiculturistas e halterofilistas chamado “levantamento terra” ou dead lifting. Tudo ia bem até o peso chegar a 140 quilos. Quando tentei levantar e não consegui a paulada veio da mesma forma, ajudando-me. Contudo, um pequeno estalo na lombar e uma dor aguda em forma de pontada, me fizeram largar o peso do alto causando um enorme estrondo. Passei duas semanas sem realizar esse exercício, colocando bolsas de gelo no local e recebendo dos meus colegas de treino o consolo : “isso é uma coisa à toa, é assim mesmo, logo passa”. Começo a perceber em meu próprio corpo as mudanças tão apreciadas pelos praticantes das academias. Passo a compartilhar com eles – ao menos por algns momentos - o mesmo sentimento de dominar meu corpo e poder 155 transformá-lo. Passo, assim, a ser visto como um deles; não um fisiculturista, mas um simpatizante com quem podem contar para eventuais problemas ou confissões. Logo depois que termino o treino com Wolney chega Jair com três “assistentes” e começam logo a treinar supino. Primeiro aquecem os músculos com os 20 quilos da barra, depois Jair começa a treiná-los, por fim é a vez dele. Devido ao peso que ele levanta os três “escudeiros” têm que ajudá-lo a levantar. Esse processo é o exemplo de aprendizado prático que Wacquant assinala em seus estudos sobre as academias de boxe de Chicago: “o inculcar [das práticas corporais] se dá como trabalho de conversão ginástica, perceptiva, emocional e mental, que se efetua de um modo prático e coletivo, com base em uma pedagogia implícita e mimética que, pacientemente, redefine, um a um, todos os parâmetros de existência do [praticante]” (2002:23). Jair, ao realizar seus exercícios, demonstra aos seus discípulos as técnicas desenvolvidas por anos de prática. A posição da mão, a pressão do corpo contra o banco do supino, a distância certa das pernas, o posicionamento dos pés, a velocidade dos braços, tudo é medido, estudado e demonstrado, e, portanto, copiado, pelos neófitos. Durante os treinos, conheço Tatiana, uma loura que está fazendo um “ciclo de Winstrol” e Felipe, um “viciado em maromba” como ele mesmo diz. Felipe é um indivíduo que tem um humor quase imprevisível; na academia só ouve Wolney, mais ninguém. Certa vez, depois do treino, por volta das 12:45, hora em que a academia esvazia quase completamente, Felipe meteu-se em um aparelho de remada (exercícios para os músculos das costas) e ficou sozinho realizando sua série. Todos já haviam se retirado da academia, restavam eu, na outra ponta da sala de musculação, fazendo um exercício para braço, Felipe, a recepcionista e o professor. De repente, Felipe deu um berro raivoso largou o peso, que fez um estrondo assustando a todos e saiu correndo pela rua como um louco tendo o professor atrás. Logo volta o professor, pergunto o que aconteceu e recebo a seguinte resposta: “Loucura. Felipe é totalmente louco, deve ser de tomar bomba”. Passados alguns meses de convivência com Felipe, este torna-se mais um informante que me desvenda, 156 durante uma tarde após os treinos, mais uma faceta do mundo das drogas das academias de fisiculturismo. Carioca, 25 anos, ex-estudante de Direito em uma universidade particular e morador da Zona Sul, me confidencia que já “freqüentou” por duas vezes uma clínica especializada em tratamento de viciados em drogas por causa do consumo de esteróides anabolizantes. Pergunto a ele como isso aconteceu. Responde: “Em outubro agora, depois de um período sem tomar nada (fiquei em abstinência porque estava com problemas de fígado), voltei a tomar bomba... o problema é que não consigo ficar sem tomar, fico deprimido, acho que murchei, não consigo me olhar no espelho, e a coisa vai piorando, não consigo sair de casa.” Ironizo: “Mas p’ra você ficar pequeno falta muito... quantos quilos você tem?” Diz: “Entre 100 e 104 quilos”. “Pois é”, digo. Felipe continua: “É foda meu irmão. Já fiquei internado. Mas não consigo...parar. Agora, você vê minhas roupas, às vezes chego aqui com um camisão largo por cima da roupa de malhar porque é para esconder da minha mãe, p’ra ela não perceber que tô crescendo de novo”. Sabendo que Felipe tinha fama de brigão, inclusive estava sendo processado por ter espancado o filho de um deputado em uma boate, pergunto se o uso de esteróides não provoca um certo estado de agressividade. Responde: “ Cara, eu fico muito irritado, fumo maconha direto p’ra me acalmar... brigo muito, quase toda semana tem um pancadaria; mas eu prefiro ficar irritado do que deprimido. Já cheirei [cocaína] quando ‘tava deprimido para melhorar meu estado, mas aí eu pensei, é melhor a bomba do que o pó”. Pergunto a Felipe quando ele começou a malhar: “Há 5 anos atrás. Tinha 67 quilos. Na época eu tinha uma namorada que eu gostava muito dela e ela me largou p’ra ficar com outro cara. É claro que fiquei atrás dela, aí o cara começou a me ameaçar dizendo que ia me enfiar a porrada se eu continuasse atrás da Patrícia, esse era o nome dela. Então comecei a malhar e em um mês já tava entrando na bomba direto, em poucos dias ganhei mais de quatro quilos de músculo, aí fiquei com a auto-estima lá em cima e não parei mais, até porque comecei a fazer sucesso entre as gatinhas e a me relacionar com o pessoal da academia. Esqueci a Patrícia. Depois, em dois meses, pulei dos 67 quilos para 82, todo mundo ficava assustado, as pessoas começavam a ficar intimidadas comigo na 157 rua, começavam a me temer e isso foi muito bom, aliás, é muito bom”. “É, você cresceu muito rápido, digo, que ciclos você fez?” “Cesar, não fiz ciclos... no início até tentei, mas depois comecei a tomar tudo, toda hora. Hemogenin, Deca, Deposteron, Durasteston, Winstrol, tudo. Tomo assim até hoje. Todo mundo diz que pego pesado. Não tô nem aí. Não sou o único. Outro dia vi o Jair tomando quatro comprimidos de Hemogenin de uma vez só ali no bebedouro”. “Mas me diz aí porque você foi internado... “ . “Eu percebi que eu não tava muito bem, toda vez que eu saía na rua eu brigava, tudo, tudo mesmo era desculpa p’ra brigar. Bastava alguém olhar p’ra mim e eu já mandava na hora tomar no cu e partia p’ra cima. Depois eu e alguns amigos, o João, o Carlos...você conhece... começamos a sair toda sexta e sábado para brigar nos bailes e nas boates, aí o pau comia solto, a gente quebrava tudo, às vezes se quebrava também, fomos parar várias vezes na delegacia, mas o pai do Carlos é juiz, sabe como é, né? Então eu comecei a fazer terapia com um psicólogo, mas nem eu, nem o cara sabia que eu ficava daquele jeito por causa da bomba. Ele achava que era um distúrbio cerebral, sei lá. Agora, o problema ficou radical quando depois do carnaval eu tive um surto em casa e quebrei a casa toda. Minha mãe chamou os bombeiros e os caras me levaram. Fiquei dois meses lá, internado. Depois voltei p’ra casa e começou tudo de novo, aí minha mãe chamou a ambulância e eu quebrei o nariz de um enfermeiro, mas eles me levaram mesmo assim. Fiquei dessa vez três meses de molho. Lá na clínica é que começaram a relacionar os esteróides com o meu estado. Naquele dia que eu saí gritando daqui eu estava com vontade de matar o primeiro que passasse na minha frente, aí o Pedro (o professor que estava naquele horário) conversou comigo e me levou até perto de casa; é assim, um surto, agora tô tomando remédio p’ra controlar o humor, naquele dia não tinha tomado ainda”. “Você disse que se sentia pequeno...”. “Me sentia, não, me sinto. Hoje eu peço p’ra Tatiana medir meu bíceps e peitoral todo dia. Sempre acho que posso crescer mais, o problema é esse Cesar, p’ra crescer do jeito que eu tenho que crescer eu preciso da bomba...agora tô tentando não ficar me pesando o tempo todo p’ra não piorar a situação, porque acho que tá sempre ruim, sempre pouco... aí cada vez eu tomo mais esteróide. Porque o corpo se 158 acostuma com aquela quantidade aí você tem que tomar cada vez mais, mudar de bomba e aumentar a dose se quiser crescer, quando paro de tomar perco peso aí começo a ficar deprimido, muito deprimido, me sinto um inseto, então volto a comprar ...” Esse relato de Felipe, apenas um entre vários colhidos durante o trabalho de campo, destaca a possível dependência psíquica que o uso dos esteróides pode provocar. Além dos problemas mais conhecidos, como câncer, hepatite, úlceras, os esteróides podem causar distúrbios psiquiátricos, excessiva irritabilidade, acessos de fúria, crises de euforia alternadas com depressão, transtornos do humor, dificuldades de interromper o uso das drogas e recaídas após curtos prazos de abstinência. Felipe é um exemplo do crescente número de freqüentadores assíduos de academias, tanto homens como mulheres, que vêm consumindo esteróides. Embora não sejam oficialmente atletas, ou seja, não participam de campeonatos e competições, tais indivíduos se envolvem com as drogas por causa da aparência e da socialização. A entrevista a seguir mostra, de forma suscinta, o processo de utilização dos diferentes tipos de drogas que circulam nas academias cariocas. Essa entrevista foi realizada no dia 18/06/2002, na academia de Copacabana com um fisiculturista de 32 anos, que abandonou uma carreira como professor para se dedicar integralmente ao fisiculturismo e participa de competições. A Farmácia de Adonis. -Quando você começou a “malhar” ? -Há mais ou menos 10 anos... eu era muito magro e me sentia excluído e fraco... -Fraco? -É. Eu tenho 1,90m e tinha, na época 74 quilos. Eu era um esqueleto. -E agora? Como você está? -Como assim? Em tamanho? -É. 159 -Bom, agora ‘tô com 127 quilos. Devo estar mais ou menos com 6% de gordura corporal, não sei... Em época de competição fico com uns 27 ou 30 quilos a menos, talvez 2,5% de gordura corporal. -Quando você começou a usar bomba? -Há dez anos. Quando comecei a ”malhar”, no primeiro mês que eu entrei p’ra academia. Embora fosse muito magro sempre fui definido...tinha músculo, mas pouco... mas tinha. Também tinha bom preparo aeróbico. No exército me dava bem, apesar da magreza. Depois de duas semanas de academia um marombeiro bombado, que por acaso era um dos donos da academia, me viu malhando e ficou impressionado com minha dedicação. Eu conseguia fazer um agachamento com 100 quilos e seis repetições. Aí o cara me chamou e disse: Pô meu irmão, você tem potencial, podia até competir, tem estrutura... é magro mas tem futuro. Você pode imaginar como isso me incentivou... o cara se ofereceu para me treinar e aí me dediquei totalmente... estudava na UERJ de manhã e malhava à tarde e à noite. -E o dinheiro? A gente sabe tem gastos... - Meu pai me mandava dinheiro, ele não é daqui do Rio, é juiz em outra cidade, e me mandava uma ajuda. Depois também a tem bolsa de perquisa do CNPq que já ajudava p’ra comprar suplementos pelo menos. - Bom, você tinha 74 quilos. Como você chegou a dobrar de tamanho praticamente em massa muscular? É impressionante...! - Quando comecei a treinar com o Sílvio, esse era o nome daquele cara que te falei, ele me indicou o caminho dos produtos [risos], entende? - Sim, e aí? Como foi? - Ele já era um fisiculturista experiente e conhecia as drogas e como conseguí-las, tinha conexões certas. Então, ele disse: não tem jeito, você tem que tomar [drogas], se você souber usar, você vai conseguir ficar grande e seco, definido, sem nenhum efeito colateral, grande e om qualidade, entendeu? - Então ele te guiou no mundo das academias e da massa muscular? - Isso mesmo. Mas tinha um preço, é claro. Ele me abriu os olhos para os esquemas das academias, com quem eu tinha que me associar, o que eu 160 tinha que fazer, como tinha que treinar, que tipo de gente eu tinha que evitar para não atrapalhar o meu crescimento. - Como assim? - É, em todas as academias tem aqueles caras que ficam falando, puxando conversa o tempo todo, aquelas garotas que ficam de ti-ti-ti, conversando, se você der trela p’ra essa gente, já era, não consegue treinar, treina errado, perde tempo. Então, a primeira coisa para quem quer crescer é encontrar a academia certa. O que é isso? É entrar para aquela academia que tem gente que malha sério, que não fica conversando na hora do treino, que não atrapalha mas ajuda. Eu tive sorte, entrei de cara para uma academia de marombeiros. De gente que competia, séria. Agora se eu tivesse entrado para uma “perfumaria” dessas aí, talvez tudo tivesse sido diferente. - Então o Silvio te indicou os produtos....e... - É. Ele me disse os nomes, como usá-los, que combinações eu deveria fazer para ter os melhores resultados. Quais os remédios tomar para evitar os efeitos colaterais, quais as dietas que eu devia seguir. Ele me indicava as dietas dele... - E... - Eu fui aprendendo. Mas ele não entregava o ouro logo de cara... cada vez havia uma coisa nova; uma série, um ciclo novo. - E todo esse conhecimento aí, esse, digamos, “saber da maromba”, o Silvio aprendeu na faculdade...? - Não, ele não era formado. Só tinha o 2o grau. Era o que ele dizia. Mas malhava há décadas! - Era um saber prático. - Isso aí. - Me diz, então como funcionava o esquema. Como ele fazia para te passar as bombas, essas coisas. - Como assim? Você quer saber o quê? - Como você tomava os esteróides, o que você fazia, sentia... 161 - Ele me aplicava. Mas o engraçado é que ele, no início não me dava as ampolas, nada. Eu chegava na academia e ele me levava p’ro banheiro e aplicava a bomba, eu não sabia nem qual era. Aliás, eu não era o único. Como eu, Silvio fazia personal de várias pessoas. Homens, mulheres, garotas. - Você não sabia o que ele te aplicava? - Não. No início não sabia nada. Só depois, com o tempo ele foi me passando as coisas. Eu também queria saber, perguntava. Um dia perguntei o que ele ‘tava me aplicando. Eu chegava na academia, ia p’ro vestiário arriava as calças e ele aplicava o óleo. Comecei a procurar saber, até porque aquela droga doía. Aí ele me disse que era Deca Durabolin. Com o tempo aprendi até a me aplicar e aplicar nos outros também. - E o resultado? - Ótimo! Em dois meses eu ganhei quase dez quilos de massa! Tudo bem que ele me fez malhar que nem um cavalo e comer como um elefante, mas cresci muito e rápido. - Ele te aplicava de graça. - Claro que não, né. Como é que o cara ia viver? Ele me vendia por um preço bem mais alto do que o preço da farmácia. Depois comecei a comprar na farmácia. Mas eu pagava o dobro p’ra ele. Ele dizia que era p’ra ele comprar bomba também. - Naquela época era mais fácil comprar na farmácia, né? - Era, mas depois ficou difícil. Você só consegue hoje na base do conchavo. Tem que conhecer os caras que vendem, as farmácias que vendem. Se você chegar lá e pedir assim, na cara de pau, sem o balconista ou o dono te conhecer, eles não te vendem. Tem que conhecer os caras. Ter conchavo... - E como isso funciona? Se eu quisesse por exemplo comprar na farmácia hoje o que eu teria fazer? - Você teria que ser apresentado por alguém que compra, e que já sabe qual farmácia vende, ao dono ou ao responsável pela farmácia, para ele te vender. Mesmo assim, às vezes os caras ficam desconfiados... 162 - Voltando ao caso do Silvio. Qual a dosagem que ele te aplicava? Você lembra? - Ele começou me aplicando um ciclo-pirâmide. Na primeira semana ele me aplicou duas amploas, na segunda quatro, na terceira seis – aí eu já ‘tava pedindo arrego porque o local da injeção fica dolorido, mas ele falou: sem dor não tem ganho, mané. Depois ele continuou quatro, três duas e uma no final. Depois começou a misturar Deca com Durateston, aí é que o bicho pegou. Cresci mesmo! - Depois que você passou a saber o caminho das pedras, os lugares de venda, você mesmo começou a se aplicar? - Isso! Com o tempo a gente aprende a ter autonomia. Ele foi me passando onde, com quem comprar. - Era um mestre da bomba?! - Isso aí!! Mas tem coisas que não adianta a farmácia. ... na farmácia você dá o passo principal mas não é só ela ... existem produtos que não são vendidos nas farmácias; só comprando de quem importa, então você tem que ter os contatos certos. - Que contatos são estes? - As pessoas certas nas academias que vendem as bombas. Se você quiser Winstrol, por exemplo, você tem que comprar de alguém que traga de fora já que não tem no Brasil. - Certo. Mas voltando. Por que você acha que o Silvio quis te treinar quando você era um recém-chegado na academia dele? - Eu acho que esse era o negócio dele, como é de muita gente nas academias. O cara pega alguém, transforma o corpo da pessoa e mostra p’ra todo mundo que ele é que fez aquilo. Então, o corpo do cara ou da mulher que ele transformou serve de propaganda para ele. O Silvio vivia, e vive, disso. Eu, por exemplo, comecei a mudar radicalmente em dois meses. Isso chamava gente p’ra academia dele. Chega um cara lá a fim de crescer ele fala: ‘ta vendo aquele grandão ali em seis meses ele ficou enorme aqui na academia. Então, é como se ele dissesse aqui nós temos o melhor método para você crescer. Fora isso, os caras que nem o Silvio 163 ganham dinheiro vendendo bombas e dando personal. Ele não me cobrava o personal, só a bomba, mas em geral eles cobram o personal. Então o cara, a pessoa que ‘tá a fim paga, além da mensalidade, da bomba, do suplemento, o serviço de orientação do cara, do instrutor. É um negócio também. Entendeu? Os donos de academias de marombeiros, de fisiculturistas, gostam de ter caras grandes para mostrar aos pequenos que lá eles ficaram assim, com a ajuda deles - Certo. Mas em outras academias eu já ouvi os donos reclamando dos bodybuilders. Dizendo que eles não gostam de pagar, quebram os aparelhos, são grossos e estão pedindo sempre patrocínio... - Por isso que eu falei da academia certa. Se o cara que é marombeiro de verdade for numa UC [Universidade do Corpo] ou numa Ibeas da vida, é claro que não vão querer ele lá, porque o público é outro. É uma porrada de patricinha e mauricinho que vão desfilar roupa e bater papo e pagam uma fortuna de mensalidade p’ra isso. É gente que ‘tá ali pelo social, entende, não é marombeiro. É perfumaria... - Por que perfumaria? - Por que se enchem de perfume p’ra malhar [risos]. Não gostam de suar... - Então são públicos diferentes? - Claro! - Miuito bem. Vamos voltar ao presente. Me diga que tipo de esteróides você usa, como e quando... - Eu gosto de usar de um a seis tipos de esteróides por ciclo, isso depende do meu dinheiro: Deca, Primobolan, Durateston, Winstrol e Anavar. Às vezes substituo o Durateston pelo Deposteron. Eu tomo 600mg [uma ampola tem 50mg] de Deca por semana, 400 mg de Primobolan, Winstrol eu tomo na segunda, na quarta e na sexta, procuro tomar comprimido porque é muita injeção, Anavar também, e tomo Durateston... - Só isso que você toma....? [risos] - Eu uso isso aí por seis semanas direto, depois paro mais seis. Junto eu tomo 3 gramas de GHB (gamahidroxibutirato. Droga muito usada em raves européias e americanas e que está chegando ao Brasil. Serve para relaxar 164 e desinibir. Também tomo Creatina e Albumina uma hora antes do treino, todo dia. Ela funciona muito bem com Anavar. Depois das seis semanas eu paro e só mantenho Creatina, o Novaldex e o GHB. - E como funciona isso, me diz aí, mais ou menos... - Bom, o GHB eu tomo para equilibrar a produção de hormônio do crescimento, o Novaldex é para impedir ginecomastia, porque a testosterona vira estrogênio se você não cuidar, então, o Novaldex não deixa ter ginecomastia; nunca tive ginecomastia ou fiquei retendo líquido porque ele também não deixa reter líquido. A Creatina e a Albumina não me deixam perder força. Por isso, não tenho nenhum efeito colateral da bomba. Agora também estou fazendo um tipo de terapia celular tomo hemoglobina (Mioglobyn), na veia, uma vez a cada duas semanas. Ela oxigena o sangue e me dá bastante disposição p’ra treinar. Já tomei também insulina.... também tomo Clomid (remédio para infertilidade feminina) nas duas últimas semanas para ter certeza de que tudo vai ficar bem. - Você não sente nada mesmo? - Só espinha, acne e insônia. Não tenho problema de fígado nem pressão alta. Nada diso. O GHB equilibra resolve o problema do sono. Tem atleta que usa maconha para relaxar [risos]. Eu não gosto. Outro dia li que o GHB deve ser proibido também, estão querendo proibir. Vou te dizer uma coisa, essas proibições são ridículas, tudo hipocrisia...Quanto mais proibe pior, mais dinheiro rola. As drogas, todas tinham que ser liberadas. É pura politicagem. Tudo interesse de alguns setores da polícia e principalmente dos médicos e das companias de suplemento alimentar. Quando se proibe um remédio o que se faz é reforçar o poder do médico. - Por quê? - Porque, Cesar, eles continuam receitando, e não é só isso, se você quer usar bomba mesmo, você vai ter que fazer exame, vai ter que ser controlado. Não digo nem os fisiculturistas, porque aqui no Brasil isso não dá dinheiro; mas os outros atletas, todos tomam esteróides, todos, posso te afirmar. Não tomam como nós, é óbvio, mas tomam e quem passa? Quem administra? O médico! O médico que cuida deles, junto com os treinadores. 165 Então, é uma máfia, uma indústria que lucra com a proibição. Por outro lado, se você tem dinheiro, você consegue tranqüilamente com um médico especialista uma terapia de reposição hormonal, e esses médicos são caros, porque quem faz isso são os atores, os ricos, as dondocas que ficam se enchendo de hormônio do crescimento, para rejuvenescer. Então, se você quer conseguir a droga de forma legal você tem que pagar o médico: a consulta, os exames, cada vez que você vai lá, então o cara ganha para ficar administrando sua vida. É interessante, porque proibem os esteróides androgênicos e não proibem os hormônios femininos? Então se o cara quer virar travesti ele pode se encher de estrogênio para parecer mulher, implantar silicone, colágeno, cortar o pau e tudo bem! Agora se você quer parecer homem você está agindo de forma anti-ética, ilegal! E os impérios de suplemento? As revistas estão cheias de propaganda das companias de produtos de nutrição. A gente que malha há muito tempo sabe que muita coisa ali, L-carnitina, por exemplo, não adianta nada, não tem qualquer efeito, a não ser psicológico. Se tiver. Então os caras cobram uma fortuna por esses produtos supostamente naturais. Muitos deles, por outro lado, são produtos hormonais. Tem produto que aumenta a produção de testosterona, aumenta a produção do hormônio do crescimento e é anunciado como natural. Não é natural! Porque o efeito vai ser o mesmo no final. Se você se aplica testosterona ou se o seu organismo produz uma grande quantidade de testosterona os riscos de câncer e pressão alta vão ser os mesmos. A diferença é que um é legal e o outro não. E mais. O que é legal chega a custar dez vezes mais que os esteróides. Eu te pergunto: é mais jogo você comprar uma âmpola de Durateston que custa R$ 6,00 ou comprar um pote de suplemento que custa quase R$200,00? A diferença é que as pessoas compram o mais caro por dois motivos: o primeiro porque é legal. O segundo porque a propaganda diz que é natural, entende? Elas acham que não faz mal. Então se os esteróides fossem liberados você acha que as companhias de suplementos iam ganhar o dinheiro que ganham? Os médicos? E a polícia? - Entendi. Ainda nesse assunto: você faz exames? 166 - Faço. Sempre faço exame de sangue, nível de hormônio, próstata...também fico sempre de olho na glicose e na pressão. Tenho aparelhos em casa para medir. Mas também não como porcarias. Como muita proteína e carboidratos. Acho que por isso também que não sinto efeitos colaterais. Porque se o cara toma testosterona e come gordura, já era. O colesterol dele, que a testosterona já faz aumentar, vai lá em cima! Minha dieta é de peixe e peito de frango grelhado. Só como boa gordura, azeite virgem direto e nunca como frituras. Só como carne magra e não como açúcar de jeito nenhum. Doce, nem passo perto. Como frutas, não muitas, e sal quase nunca. Então a coisa fica mais ou menos assim: carboidratos 30%, proteína 40% e gordura 30%. É duro, mas funciona. - Quantos dias por semana você malha? - Seis dias. Pesado. Mas o treino está sempre mudando em conformidade com a época, né. - E qual o peso? Quanto você pega de supino, agachamento e deadlifting (base)? - Supino, 250 quilos, agachamento 320, e levantamento base 340 quilos. É claro que uma vez só [apenas uma repetição]. Eu treino pesado com duas séries de repetições descansando e fazendo repetições isométricas. Isso quando estou bombado. Nas semanas em que não estou tomando esteróide eu pego mais leve e mudo o treino colocando mais repetições de exercícios para definir. Quando estou ganhando massa eu uso peso livre, nada de máquinas, a não ser o rack machine. Faço supino, levantamento base, agachamento, paralelas, trapézio, bíceps, tudo com peso livre, barras e anilhas. Faço três exercícios para os grandes grupamentos musculares e dois para os pequenos. Meus braços crescem muito rápido, então, faço menos exercícios para bíceps e tríceps. Quando estou me preparando para competir a coisa muda de figura. Eu ataco cada grupamento muscular com quatro exercícios de uma vez e faço uma hora por dia de bicicleta ergométrica. Faço muitas repetições, doze para cima. - E seu gasto calórico, sua dieta ? 167 - Quando estou ganhando massa eu consumo mais de 4500 calorias por dia. Quando estou começando a emagrecer baixo para 1500 por dia e duas semanas antes da competição reduzo a comida para 700 calorias por dia. É duro! Eu também bebo de dois a três litros de água destilada por dia. No período de competição retiro todo o carboidrato da comida e fico comendo peixe e peito de frango. Essa é a pior parte porque quando a gente tira o carboidrato é horrível, dá fraqueza, sonolência, irritação, não gosto de fazer dieta. No período de definição, para não enlouquecer, eu, de quatro em quatro dias, como 100 gramas carboidrato, na parte da manhã e outra antes de malhar. Às vezes para ajudar nisso tudo tomo Lasix, Cytomel e Xenical e três dias antes da apresentação reduzo drasticamente o consumo de água. - Que remédios você toma para definir a musculatura, para emagrecer além do Lasix do Cytomel e do Xenical? - Quando estou me preparando para competir tomo bomba e faço dieta por doze semanas direto. Injeto 400mg de Primobolan Depot por dia, uma ampola de Winstrol cada dia e tomo Clenbuterol [remédio para asma que acelera o metabolismo provocando o emagrecimento] também, ainda dez comprimidos de Anavar e Esiclene. Anavar com Esiclene [injeção localizada para fazer uma determinada região muscular inchar] funcionam bem na dieta, se não tiver Esiclene tomo Synthol que é mais fácil de achar. Às vezes uso Efedrina com Clenbuterol, seca muito. Tem também Clenbuterol em xarope que faz perder gordura se o cara tomar meio vidro por dia. Em último caso tem o Aerolin [também para problemas respiratórios] que não é tão bom como o Clenbuterol, mas serve. - Você usa mesmo Synthol? - Sempre tenho guardado no meu armário. Injeto no tríceps, no bíceps, nos deltóides e na panturrilha três dias antes de competir. - Você toma muita injeção, não dá problema? - Ah, dá. Já tive dois abcessos. Mas procuro fazer rodízio. As mais leves eu procuro aplicar nos ombros, os esteróides eu aplico nos glúteos e nas coxas porque são a base de óleo. - E hormônio do crescimento você usa muito? 168 - GH? É muito bom, mas você sabe que muitos anabólicos sozinhos não surtem grandes efeitos, eles têm que ser combinados com outros. Exemplo é o Winstrol. Se você tomar ele sozinho não vai sentir quase nenhum efeito agora se misturar com Primobolan, Testex, Durateston ou Deposteron a coisa muda de figura. Acho que com o GH ocorre coisa parecida. Eu uso sempre para dieta antes das competições, mas sempre combinado com Durateston, aí o GH realiza milagre, a qualidade muscular melhora muito e a definição melhora 100%. Nesse caso de definição ele [o GH] funciona bem também com Efedrina. A queima de gordura é altíssima. Tem gente que usa insulina também, mas eu não gosto. Já vi um cara morrer disso e não gosto de arriscar. Eu usei com GH uma vez e o efeito estético foi muito bom. Passei seis semanas fazendo o ciclo com GH e ganhei 16 quilos enquanto minha porcentagem de gordura baixou em torno de 4% no total, mas comecei a me sentir mal, sem vontade nenhuma de comer e muito sonolento. Eu tive que tomar Progesterona com Durateston para melhorar. Agora, além de tudo isso, a dosagem mínima de GH tem que ser de 4U.I. por dia, se não for assim, é jogar dinheiro fora, e GH é caro. - Voltando à questão do GHB. É bom, mesmo? - Ótimo. Anticatabólico. Relaxa, é melhor que Diazepan. Estimula a produção do hormônio do crescimento e é diurético. Melhora a massa muscular e faz perder gordura em duas semanas. A melhor forma de tomar é à noite. - E a progesterona, não é hormônio feminino? - Isso. Mas se você usa com a testosterona os resultados são muito bons porque melhora o apetite e o equilíbrio hídrico. - E os suplementos alimentares? - Uso, claro. Eu tomo seis shakes por dia de Whey protein e egg proteyn . Uso glutamina, vitamina C duas vezes por dia, 1 grama cada vez. Vitamina E e arginina depois do treino. Os dias que como frango, eu tomo 1 grama de metionina e glicina que é para melhorar a produção de creatina. Também tomo complexo B para proteger o fígado. Também tomo iodo antes de competir para vascularizar (aparecerem as veias). - E Hemogenin? 169 - Não, não uso. É o esteróide mais perigoso que já vi na minha vida. Já usei, mas é muito perigoso. Conheço gente que com alguns comprimidos ficou internada com hepatite medicamentosa. Não tomo de jeito nenhum. - E produtos veterinários? - Não costumo usar mais, não, já usei, mas muita gente que conheço usa e muito. Androgenol e Equifort são os anabolizantes p’ra cavalo que vejo muita gente usando, aqui mesmo conheço umas pessoas que usam. Também tem gente que usa vitamina p’ra cavalo, mas eu não acho necessário. Só usaria se não conseguisse encontrar o que eu preciso. Entende, no desespero eu usaria tanto as bombas quanto as vitaminas... - Bom, obrigado pela entrevista... - Nada... Quando quiser é só falar. A Forma da Dor Outro aspecto relacionado à “magia” do uso de esteróides anabolizantes é aquele ligado ao risco de vida e à dor causada pelos problemas de saúde que o uso contínuo de tais substâncias pode provocar. Antes de julgar ignorância ou falta de racionalidade o fato de alguns indivíduos colocarem em risco a própria existência utilizando drogas, é necessário focalizar o aspecto social que confere significado a tal uso. Este, freqüentemente, está imerso em sistemas simbólicos com lógica própria. Em se tratando do sistema simbólico inerente aos grupos sociais das academias, a dor e o sacrifício aparecem como um preço a ser inevitavelmente pago pela conquista de uma vitória presumível na construção de uma identidade inerente à aceitação em um grupo restrito. A demanda de significação face à dor experimentada ultrapassa o sofrimento imediato: “Compreender o sentido de sua pena é uma outra maneira de compreender o sentido da vida” (Le Breton, 1995:107), pois todo grupo social define implicitamente a legitimidade de suas dores. No caso das academias de musculação, ela – a dor - não apenas está presente no risco causado pelo uso dos esteróides, mas no próprio cotidiano dos exercícios. O fisiculturista, através da sua prática, aprende a construir um vasto mapa 170 sensorial - um saber corporal - que classifica os tipos de dor alocando-os em mais ou menos danosos, construtivos ou destrutivos. A dor (e o risco de vida e de lesões) é vista de forma positiva e sua constituição é ritualizada de forma a conferir àquele que a sente e cultiva um determinado papel construído através das interações sociais nas quais o próprio sentimento da dor apresenta-se como fator fundamental da elaboração identitária. A capacidade pessoal de resistência ao sofrimento doloroso – relacionada aos gradativos exercícios com pesos que acabam causando lesões por esforço repetitivo e hérnias – é uma via de aquisição de status no grupo, visto que também a concepção de dor purificadora está presente neste universo. Assim, o risco de vida e a intensidade da dor sofrida realizam um processo ritual de construção do papel social que se institucionaliza conferindo àquele que se submete ao processo uma aceitação crescente. O uso ritual de esteróides e o sentimento da dor consagram a diferença, instituindo-a. Dor e drogas, no campo da musculação ou do fisiculturismo, fazem parte de ritos de passagem ou de instituição que não apenas permitem a passagem dos indivíduos de um papel a outro no grupo (Bourdieu, 1996), mas também reiteram as características específicas de status, já que a eficácia e o poder daqueles que estão em funções de dominação devem ser constantemente provados através de ações que constituem as representações de poder. O rito da dor e das drogas delimita a distribuição de autoridade no interior do campo da musculação através do que Lévi-Strauss (1976) denominou eficácia simbólica, ou seja, o poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os indivíduos fazem desta realidade. Portanto, nas academias, ao adquirir, pari passu, um corpo musculoso, o aspirante a fisiculturista consagrado (ao menos no seu grupo delimitado) vai sendo alçado a um novo papel. Sua identidade – mesmo sendo volátil, visto depender da brevidade da forma – vai se construindo continuamente, e a dor e o risco de vida inscrevem-se como emblemas em seu corpo moldando em sua carne o perfil musculoso do status diretamente radicado na fugacidade. Fugacidade que acaba tornando-se a tragédia daqueles que da forma extraem quase todo seu poder (Sabino, 2000; 2003). Por outro lado, quanto mais difíceis são as etapas que um indivíduo 171 atravessa para pertencer a uma instituição, e desfrutar seu status, mais valor o mesmo confere a esta (Bourdieu,1996; Segalen, 2002). A existência de distinção das dores49 entre os fisiculturistas demonstra um entendimento sensorial do metabolismo muscular que as organiza em boas dores, aquelas que apontam para “um funcionamento construtivo do músculo”, entenda-se tal aspecto enquanto crescimento muscular, e dores más, aquelas que apontam para lesões articulares. Assim, o edema muscular pós-treinamento é o melhor sinal de que os exercícios estão fazendo efeito. “Eu malho há seis anos e já ‘tô viciado nessa dorzinha aguda que dá dentro do músculo depois de cada treino bom... não sei viver sem isso... no carnaval, quando viajo fico maluco!!! Me penduro em árvore pra fazer flexão de braço, fico procurando bujão de gás p’ra levantar... agora abriram uma academia lá em Araruama, tomara que funcione nesse carnaval... não consigo ficar sem malhar... quando paro de sentir o músculo doendo depois dos treinos ou no dia seguinte, começo a ficar doente e deprimido (Gabriel. 22anos. Estudante). Ao contrário da dor positiva, que ocorre após o que chamam “exercícios de qualidade”, acionada pelo movimento do grupo muscular treinado, dor que não produz qualquer impedimento à movimentação, há a dor negativa que é definida como mais circunscrita a uma determinada região e com intensidade diversa diretamente associada à dificuldade de movimentação daquele grupo muscular ou mesmo membro. Enquanto a concepção de boa dor está ligada à execução perfeita de exercícios e séries da musculação, a má dor, ao contrário, é resultado de excessos e execuções equivocadas. Assim, basta o diagnóstico de uma dor de intensidade diferente em local suspeito para que o 49 - Até a década de 20 do século XX a dor apresentava papel diverso daquele que passou a apresentar posteriormente com a crescente apologia do conforto inerente à sociedade de consumo. Com o surgimento de substâncias para controlar a dor esta foi relegada a uma dimensão exígüa da realidade: “A dor física pertencia à vida cotidiana, e não era vista como uma falha da medicina. Consumia-se uma quantidade muito menor de analgésicos do que hoje em dia, e as pessoas, bem ou mal, se acostumavam a suas insônias sem recorrer a soníferos..” (Vincent, 1992:324). 172 indivíduo portador da mesma seja classificado pelos especialistas nas academias – professores ou fisiculturistas mais experientes – como propenso a adoecer (sofrer lesão muscular ou de articulação) devido ao fato de ter realizado de forma errônea seus exercícios. Neste aspecto, pode-se repetir com Le Breton (1995:108): “Todas as sociedades definem implicitamente uma legitimidade da dor que antecipa as circunstâncias sociais, culturais ou psíquicas reputadas penalizáveis. Uma experiência acumulada do grupo conduz seus membros a uma expectativa da dor costumeira imputável a esses acontecimentos... a sociedade indica simbolicamente o limite do lícito, ao realizar tal processo se esforça para dissuadir os possíveis excessos”. Há entre os fisiculturistas, portanto, uma ritualização da dor que organiza os sentidos musculares e transborda em sentimentos sociais de progresso na prática ou de recesso causado pela conduta errada. Tal aspecto estende-se também à alimentação: enjoôs, mal-estar, falta de disposição são tidos como uma espécie de variação desta(s) dor(es) causada pela má conduta, consciente ou não, daquele que é o sofredor destes processos de disfunção fisiológica. Entre eles, a dor negativa e perigosa é aquela que prenuncia a impossibilidade de treinar, aquela que indica bursites, tendinites ou problemas nas articulações dos joelhos e tal impedimento de treinar é o castigo mais doloroso, visto que sua esta identidade está relacionada à forma física que depende de intenso treinamento diário para ser mantida. Perder esta forma, não apenas significa retrocesso e queda de status, mas a perda da própria identidade pessoal e conseqüente exclusão do grupo; ou seja, morte social. A performance muscular radicada na percepção das modulações da dor50 é, grosso modo, o cerne da busca pela diferenciação em relação a outros 50 - Durante o tempo do trabalho de campo, percebi que o treinamento deve levar a um quantum de dor muscular residual e também uma certa dor nos músculos e tendões. Tal aspecto atesta, entre os praticantes assíduos de musculação, um treinamento eficaz. Saber diferenciar esta dor da lesão é fundamental para o fisiculturista e tal saber só é adquirido com a prática, em geral após o mesmo ter sofrido lesão grave. O 173 grupos e identificação dentro do próprio grupo de fisiculturistas : “a dor, essa dor no fundo do músculo, quer dizer que a malhação tá certa, cara; e depois você sente aquela sensação de leveza depois da adrenalina do exercício... e se você sente isso você tá crescendo, ‘cê tá se diferenciando dos inferiores, dos comuns, dos pangarés...” (Carlos. 24 anos. Estudante). O sofrimento aparece também como a via de ascensão hierárquica e mesmo espiritual: “ é demais sentir cada fibra arrebentando quando você tá malhando pesado e depois aquela dorzinha aguda no dia seguinte... cada movimento que você faz ela tá lá te lembrando que você tem o dever de continuar, que você deve voltar de novo p’ra academia e fazer outra série mais pesada, mais dolorida, mais radical, cara, p’ra crescer mais e mais e mais e se tornar um campeão. É disciplina, e sem disciplina não se chega a lugar nenhum. Sem dor não se ganha nada na vida... é um vício, se eu não sinto dor no dia seguinte após malhar é porque alguma coisa tava errada, é porque a maromba não foi direita, a malhação foi fraca, sem efeito... no pain no gain. Essa é a diferença de quem malha sério do resto que não malha...” (Pedro. 29 anos. Funcionário público). Os outros, neste discurso, os “pangarés”, são todos aqueles que não têm inscrito em seus músculos a marca da disciplina rígida traduzida na dor dos exercícios pesados e repetidos durante anos de prática nas academias. Este regozijo da dor, típico de um ascetismo singular, parece significar que em uma era em que a busca do prazer tornou-se norma, o sentido da dor é a única maneira de afirmar a vida sem se sentir igual a todo mundo. Porém, este processo esquece que seu próprio movimento reitera a reprodução pela busca incessante do gozo que a sociedade do consumo e do espetáculo engendra. que se pode dizer é que o início da lesão grave é atestado pela intensidade da dor que chega a limitar os movimentos. 174 Arriscar a vida tomando substâncias tóxicas como esteróides e estimulantes como efedrina ou mesmo insulina 51 é outro aspecto da apologia ao risco e à dor que sistematiza a identidade do grupo: “Cara eu não sei como te dizer o que sinto... posso tentar, sei lá... sabe quando tu bota um pega [corrida de carro] e a adrenalina vai a mil? Sabe quando tu tá de moto e tira um fino entre dois caminhões ou faz aquela curva no Alto da Boa Vista, é isso... esporte radical, entende? Tomar bomba, insulina é isso, é um risco, mas dá prazer.. é o risco que dá prazer, que é bom.... tudo que é proibido é bom e o melhor é que além disso tu fica sarado, você toma produto, curte e ainda fica bonito, não é o máximo?” (Mário. 32 anos. Personal trainner e fisiculturista). Esta combinação aparentemente comum à sociedade de consumo, induz os indivíduos a desejarem extrair sempre mais prazer do seu cotidiano, combinando a ética do trabalho protestante -com sua disciplina e ascetismo- ao hedonismo e narcisismo de uma ética imediatista do consumo (Campbell, 2001; Villaça & Góes, 1998). A dor, neste sistema simbólico, está diretamente associada a uma espécie de purificação que poderia ser traduzida pela categoria de “perfectibilidade” (Duarte, 1999:24). A idéia, inerente ao imaginário ocidental – provavelmente surgida com o movimento iluminista - de que a espécie humana é dotada de uma capacidade de se aperfeiçoar indefinidamente, “de entrar na senda disso que desde então [século XVIII] chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação ilimitada, a vanguarda – palavras estas fundamentais para nossa cultura, todas elas decorrentes da idéia de que nós somos seres 51 - Tal uso de novas drogas pode ser inserido em um processo típico das sociedades complexas ocidentais denominado por Duarte “medicamentalização”. De acordo com o autor, este movimento, com o auxílio dos meios de comunicação de massa, exalta o uso do corpo, a construção de um corpo ótimo, a maximização da saúde, etc. (Op.Cit.:22). Paradoxalmente, esta maximização por vezes acaba matando aqueles que a empreendem. 175 providos de uma capacidade de perfectibilidade constante e indefinida que nos distingue dos demais seres existentes sobre a face da Terra” (Idem.). O uso do sofrimento – e até mesmo o prazer nele contido – está relacionado a uma etapa de aprimoramento e conquista da intensidade da existência e maximização do gozo subsumidos em um movimento de sensibilização crescente do corpo e excitação gradativa dos sentidos de modo geral. Mas a dor também tem função iniciática, estando presente em todas as chamadas técnicas corporais, ela acompanha os ritos de passagem instaurando-se nos indivíduos enquanto memória inscrita na carne e signo de pertencimento a um grupo social específico. Um número significativo de grupos de jovens e adultos das sociedades complexas ocidentais imitam os ritos de passagem das chamadas sociedades simples realizando lacerações na língua, escarificações, piercings, tatuagens, escoriações, queimaduras, suspensões por ganchos cravados na pele, bungee-jump,52 etc., práticas que podem tomar sentidos diversos das originárias, mas que, da mesma forma, carregam a dor, ou ao menos o medo, em seu bojo. Assim, tanto nestas sociedades quanto naquelas, esta experiência da dor e do medo expressa uma espécie de mutação ontológica; passagem de um universo social a outro, o que significa a entronização do indivíduo em um estado existencial diverso. A cicatriz ou a experiência momentânea da proximidade da morte traduz o pertencimento a um novo estatuto. Em uma época em que a virtualidade é expressão cotidiana, as relações precárias e passageiras, as imagens fugazes e o cotidiano eivado de experiências turbulentas, a necessidade de sempre atualizar uma condição radicada na reconstrução imagética se faz necessária. No caso dos 52 - A suspensão por ganchos cravados na pele era parte de rituais de iniciação de tribos da américa do norte, o bungee-jump, saltar de alturas elevadas tendo os pés presos por uma corda elástica, era praticado pelos nativos da oceania que prendiam os pés com cipós, as escarificações pertenciam aos rituais de determinadas tribos africanas, a prática do piercing está relacionada aos rituais ameríndios. Tais práticas adotadas pelos grupos das grandes cidades remetem aos estudos de Maffesoli sobre a proxemia volátil que ocorre nos grandes centros mundiais em que se formam tribos urbanas organizadas em torno da construção de identidades calcada na articulação de vários símbolos e práticas específicas, em geral 176 fisiculturistas, em que a imagem do corpo musculoso é a própria via de afirmação de sua identidade, os rituais constantes são necessários e sempre renovados, pois o corpo, fadado inexoravelmente à decadência, sempre foge, de uma maneira ou outra, dos padrões impostos pela sociedade53. A necessidade do uso constante de drogas e substâncias especiais e de variações de intensidade e extensão dos exercícios constrói um cotidiano identitário que necessita ser ritualmente refeito a cada dia e no qual a experiência do dor se faz necessária e inevitável. Os exercícios devem ser realizados até as últimas consequências físicas, provocando dores musculares agudas, para que os resultados sejam atingidos. De fato, se não estiverem acompanhados pela dor, não possuem qualquer eficácia, segundo os praticantes. Sem dor não há progresso, sem dor não há nem mesmo a manutenção do que já foi conquistado; sem dor só há decadência. A manifestação ostensiva da dor, portanto, é motivo de orgulho e honra para os fisiculturistas. Os mais experientes relatam com constância suas lesões por esforço repetitivo ou torções nas quais distenderam músculos, arrebentaram ligamentos, obtiveram fraturas por avulção54, necessitando realizar cirurgias. Como o levantamento de pesos é fundamental para a construção do fisiculturista, uma lesão representa sério risco de dissolução identitária. Portanto, desenvolver a técnica de treinar lesionado é fundamental para estes indivíduos. Este é um saber prático que não é possível ser aprendido em livros. Esta pedagogia implícita é produto da prática em sua mais pura acepção. Não há um modo específico de aprender a treinar lesionado, e como as dores das lesões são constantes e comuns, o aprendizado se realiza com o tempo. Tal fato pode ser aplicado também aos próprios exercícios, que apesar de serem absorvidas de outros contextos. Tal processo é denominado pelo autor de neo-tribalismo (Maffesoli, 1987; 1996). 53 - O estudo de Lopes (1995) sobre os dolorosos e arris cados processos de transformação do corpo entre os travestis demonstra que estes apresentam uma lógica simetricamente invertida àquela do fisiculturista; enquanto um sofre para apresentar hipermasculinidade, o outro sofre para construir uma hiperfeminilidade: A autora apresenta o processo de transformação corporal de um homossexual, a “bichinha-boy Alan”, de acordo com ela, que transforma-se no travesti Elisa Star. Relata o sofrimento do seu informante diante das incontáveis aplicações e ingestão contínua de hormônio feminino, injeções de silicone com agulhas para uso veterinário e a prova de carregar durante quarenta dias um pedaço de cabo de vassoura atado ao peito com um barbante para evitar que o silicone aplicado não passasse de um lado para o outro. Apesar de todo o sofrimento, a satisfação de Alan-Elisa é grande, testemunhando “a coragem de levar esse sonho a sério” (:254). 177 estruturalmente os mesmos infinitamente combinados, sua intensidade e eficácia só é apreendida individualmente na coletividade orquestrada das academias, ou seja, na prática. Assim, como no boxe, não é possível aprender a ser atleta “no papel” (Wacquant, 2002:121). Os manuais pouco têm a ensinar de fato àquele que deseja ser um fisiculturista. Um indivíduo pode comprar uma enciclopédia de musculação e todos os pesos e máquinas de exercícios e instalar em sua casa, mas nunca conseguirá tornar-se um fisiculturista sem freqüentar durante longos anos as academias de musculação, pois o saber do grupo se apresenta na ação e só pode ser adquirido efetivamente de forma implícita, prática e coletiva através de uma manipulação regulada do corpo que somatiza, concretiza um saber coletivo detido e exibido pelos membros desta instituição a cada patamar da hieraquia tácita que a atravessa (Wacquant, Op. Cit.). O sentido da dor e da lesão, seu simbolismo e significado precípuo, além das formas e indicações de como tratá-la e continuar cultivando a muscularidade só são aprendidos no cotidiano das instituições dos “adoradores do ferro”. Wacquant, parafraseando Durkheim, escreveu que “o gym está para o boxe assim como a igreja está para a religião” (Idem :120). Tal afirmação – as academias estão para o bodybuilding assim como a Igreja para religião poderia ser aplicada às academias de musculação. A experiência da dor confere sentido à existência e ao mundo incitando o ser humano a organizar sua realidade ao permitir-lhe vislumbrar a dimensão negativa que simultaneamente nega e afirma tal existência: a morte. Ela – a dor – é inerente à vida como contraponto que confere sua plena medida ao fervor de existir (Le Breton, 1995). Em consonância com tal pensamento pode-se destacar o que escreveu Montagne: “haverá na dor experimentada algo comparável ao prazer da repentina melhora? Muito mais bela é a saúde depois da enfermidade... Dizem os estóicos que os vícios são úteis pois valorizam a virtude; com maior razão pode-se dizer que a 54 - Quando, devido ao esforço, um pequeno pedaço de osso é arrancado e fica conectado a um tendão. 178 natureza nos deu o sofrimento a fim de realçar a excelência do prazer e da tranqüilidade” (1980:490). A lógica social presente na experiência da dor funciona de forma similar. Assim como o ritual da tragédia grega afirmava a existência humana e, portanto, social, exaltando o paradoxo e por vezes o absurdo (Lesky, 1976); de forma parecida a visão do efêmero inscrito nas superfícies dos corpos e das práticas demonstra a profundidade deste enigma que se configura como ser humano em sua condição de esperançoso sofredor. As palavras de Nietzsche, da mesma forma que as de Montagne, podem sintetizar esta processo coletivo de modulação, controle e, portanto, aplicação da dor: “ o homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!” (1988: 184. Grifo do autor). A Lógica da Classificação Muscular A dor e o uso de esteróides são itens diretamente relacionados as competições de fisiculturismo. Tais competições anuais podem ser comparadas indiretamente a rituais religiosos (Segalen, 2002). Os cenários competitivos são montados, não raro, com elementos que fazem alusão à mitologia dos heróis guerreiros do cinema americano, e às forças da natureza, combinando tais aspectos com músicas de ritmos marcantes que acabam induzindo um certo êxtase no público. Este, busca ver e ter contato com seus “ídolos”, montanhas de músculos cintilantes que se tornam famosas no crescente campo do fisiculturismo brasileiro pelo seu tamanho e pela originalidade de suas poses. Os apresentadores e juízes (que poderiam ser comparados a sacerdotes), a 179 pompa decorativa e o luxo produzem a epifania da forma e a comunhão dos “iron worshipers” (Fussel, 1993:89). O corpo, transformado em síntese viva da mercadoria estética, torna-se objeto sagrado. Um emblema de adoração, ídolo, valor supremo a ser perseguido, cultivado, cultuado e adorado. Deuses primitivos, deuses contemporâneos. Se o desencantamento do mundo está presente na modernidade (ou na alta modernidade ou mesmo pós, tal discussão não vem ao caso), os grupos sociais não se cansam de produzir objetos de adoração que conferem sentido às suas existências. Conforme Bergson escreveu em As Duas Fontes da Moral e da Religião (1979:220, 238) : “ homo homini deus... o universo é uma máquina de fazer deuses”. O Iluminismo criou valores que tornaram-se pilares da cultura ocidental. Tais valores constituiram-se enquanto representações sociais que conferiram atitudes a coletividades inteiras, movendo-as em direções a golpes e revoluções políticas. Idéias como liberdade, igualdade e democracia, entre outras, têm história e fazem parte do imaginário de milhões de pessoas no mundo inteiro, sendo para estas, muitas vezes, valores indiscutíveis. Na alta modernidade, o corpo surge como mais uma idéia e valor a ser somado ao panteão de entidades abstratas que habitam as culturas ocidentais. O corpovalor parece ter se transformadao em uma entidade perfeita, inatingível, perseguida de toda forma. O culto à forma sagrada deste corpo tem crescido ao redor do mundo, amealhando um grande número de fiéis e iniciados que diariamente se dedicam aos halteres e espelhos. As competições parecem representar a consolidação de práticas que assemelham-se a uma liturgia anual que vem mostrar ao público as últimas novidades para a construção do corpo. Esta demonstração se realiza por intermédio da apresentação dos ídolos (campeões de fisiculturismo) que venceram na vida inflando seus músculos. É neste momento do ciclo periódico anual, que os pontífices (especialistas em saúde, donos de academias e produtores de suplementos e máquinas de musculação) do culto ao corpo têm reavivada sua importância, ao mesmo tempo em que a multidão de fiéis consumidores espera impacientemente o advento de uma nova forma de salvação contra a feiúra, o tempo e o anonimato realizada por um novo messias hipermusculoso que 180 venha apontar o caminho da terra santa onde supostamente reinará a vida eterna e gloriosa55. O sentido da existência entre tais pessoas é envolto pelo medo, não da morte exatamente, mas do envelhecimento e da possível decrepitude, vista como pior que a morte: ficar feio, depender dos outros e enfrentar a solidão é o maior temor para aqueles que se enfronham em cultivar a juventude e a beleza associada à ela. Envelhecer assim é tornar-se outro, é mudar toda a estrutura de uma personalidade (Elias, 2001), mudar para pior, já que em uma sociedade de mercadorias subjaz a concepção de que o idoso está ultrapassado e deve ser descartado de determinadas relações sociais. Conforme escreveu Eliade (1979:160) sobre o processo mítico: “é sempre a mesma luta contra o Tempo, a mesma esperança de se libertar do peso do Tempo morto, do Tempo que esmaga e que mata”. Como o real é relacional (Bourdieu, 1998), é preciso destacar que os tipos de freqüentadores descritos (fisiculturistas, veteranos e comuns) variam em conformidade com o contexto nos quais estão enquadrados. Nas academias são encontrados indivíduos que em determinado momento ou período aproximam-se mais de um tipo ideal que de outro e a variedade é certamente infinita como atesta o caso do tipo comum. Apenas este tipo, se alguém quiser deter-se mais especificamente sobre a realidade que ele abstrai, demandaria uma construção bem mais extensa, devido a ampla variedade de indivíduos que esta mesma realidade comporta. Por outro lado, 55 - A transformação do discurso científico (mais especificamente aquele relacionado à bioquímica e genética), em alguns segmentos do imaginário popular, em uma espécie de sistema religioso que supostamente poderia produzir a vida eterna (através de clones) e o aperfeiçoamente estético e biológico (por intermédio da engenharia genética) aqui mesmo na Terra (vide a insurgente seita denominada Movimento Raeliano possuidora de uma espécie de “braço científico” liderado pela empresária bioquímica Brigite Boisselier diretora da empresa Clonaid, e Claude Vorilhon cognominado Sua Santidade Rael, lider dos raelianos) demonstra o poder de sacralização do profano e a capacidade de (re)produção incessante de mitos que os sistemas simbólicos possuem tão bem demonstrada pelos clássicos trabalhos de Lévi-Strauss e o seu conceito de bricolage (1964; 1973; 1975; 1991).O discurso religioso tem se reproduzido absorvendo e resignificando as categorias elaboradas pelo discurso científico em uma espécie de reencantamento do mundo. Neste processo, aplicar-se-ia as palvras do autor de O Pensamento Salvagem: “estruturas lógicas análogas podem construir-se por meio de recursos de léxico diferentes. Os elementos não são constantes só o são as relações” (Op.cit.: 85-6). O sistema mitológico raeliano concebe que os primeiros humanos foram criados em laboratório por deuses alienígenas chamados Elohim. Tal grupo religioso diz já ter clonado um ser humano (a menina Eva) pretendendo agora gerar um clone adulto da mesma maneira como acreditam que os deuses astronautas Elohim geraram os humanos. Dizem que após terem clonado tal adulto objetivam transferir a memória do modelo original para o clone, fazendo o “download” – o mesmo dos computadores, segundo eles - da mesma e permitindo a vida eterna. 181 vale ressaltar que o fisiculturista é sempre aquele que tende a cultivar o maior volume de músculos possível. O tamanho e a forma daqueles indivíduos que se enquadram nesta classificação variam em conformidade com o tamanho e a forma dos outros dois tipos em determinada academia. Sendo assim, três tipos ideais de academias podem, também ser esboçados de acordo com o tipo dos seus freqüentadores ou a predominância de um determinado tipo em um contexto específico. Obviamente, uma academia de fisiculturistas seria aquela que apresentaria o maior número, ou uma quantidade considerável, de indivíduos que se enquadram neste modelo. Tal academia – em função de seus freqüentadores - teria suas especificidades estéticas, funcionais e técnicas que difeririam dos outros dois tipos de academias freqüentadas por maior número de indivíduos veteranos e/ou comuns. As academias - centros de produção da denominada boa forma e da muscularidade - são instituições carregadas de representações e funções que não são apreensíveis de imediato por aqueles que não se familiarizaram com o seu cotidiano. Apesar da crescente busca pela forma que produz em muitas pessoas uma sensação ilusória de que basta ler um manual ou uma revista de fitness para compreender o processo de fabricação do corpo, tais instituiçõescomo escreveu Wacquant a respeito das academias de boxe – são complexas e polissêmicas. Em primeiro lugar porque suas conformações e variações decorativas variam significativamente em conformidade com a proposta de corpo que se deve construir naquele espaço e em conformidade com a classe social – o poder aquisitivo – dos freqüentadores do local. Uma academia de musculação – seja em um bairro de classe média ou não - pode apresentar-se como um enorme galpão lúgubre com regiões pouco iluminadas expondo tubulações e fios elétricos, aspecto que lembraria fábricas clandestinas de algum produto proibido ou galpões de carga e angares -os quais no verão chegam a curtir os corpos com 43 graus centígrados de calor no seu interior. Nestas instituições é possível observar homens que mais parecem personagens saídos de revistas em quadrinhos devido a quantidade de músculos que cultivam e ao tipo de roupa que usam. Com enormes cinturões de couro, botinas, tatuagens e, por vezes, calças e camisas de infantaria 182 rasgadas estrategicamente para mostrar musculatura, dão a impressão àqueles que entram em tais salões de estarem em um mundo de ficção no qual a trilha sonora de heavy metal, rap, hip hop e techno é entrecortada pelos ruídos da colisão dos ferros provocada pelos exercícios intermitentes acompanhados, por sua vez, dos gritos de dor e esforço emitidos no movimento de levantar e abaixar anilhas e barras de ferro realizado pelos aficcionados por halteres em suas séries (repetições contínuas de movimentos para esculpir a musculatura de determinada parte do corpo) compostas e recompostas. Por outro lado, existem academias que dão a impressão de se ter chegado a um shopping center ou a um centro cosmetológico ou de cuidado com a estética: ar condicionado central, mulheres com roupas coloridas e justas que ostentam marcas esportivas como Nike, Reebok, Adidas, etc., fragrância de perfume francês, pinturas de parede límpidas e impecáveis, aparelhos de exercícios computadorizados, faxineiros (sempre negros ou nordestinos nas 12 academias pesquisadas) limpando as máquinas de musculação e colchonetes para exercícios de solo, plantas artificiais e vários aparelhos de TV conectados aos canais a cabo, além de bares para venda de sanduíches naturais, bebidas energéticas e vitaminas, lojas de suplementos alimentares e roupas esportivas, serviço eventual de nutricionista, som ambiente com dance, música pop e MPB. Há também aquelas academias que buscam uma confluência entre os dois tipos descritos acima. Necessário se faz ressaltar que dificilmente um freqüentador assíduo de uma academia “rústica” aceitaria fazer parte de uma instituição supostamente mais “refinada” e vice-versa. Os primeiros se definem como mais profissionais, sérios e dedicados e definem os freqüentadores de academias geralmente mais caras (chamadas por eles de “perfumarias”) como amadores. Estes últimos, por sua vez, acusam os anteriores de “trogloditas”. Desta maneira, como são três os tipos de freqüentadores, é possível dizer que são também três os tipos de academias: academias de fisiculturistas, de veteranos e de comuns. 183 Tentaremos aqui focalizar o cotidiano das atuais academias consideradas como sendo de fisiculturistas ou bodybuilders. Suas interações sociais, suas técnicas de construção do corpo, sua visão e divisão de mundo, o sistema simbólico que organiza suas vidas nestas instituições e que por elas é organizado. Tal grupo, como foi sugerido anteriormente, representa uma síntese efetiva das tendências de representações e práticas vigentes na atual sociedade urbana carioca. Devido a este fato o estudo do mesmo se mostra relevante e pode contribuir para a melhor compreensão do crescente processo somatófilo e de consumo de novas drogas (Sabino, Op. Cit. 2002). Vale destacar que o grupo dos veteranos se assemelha com o de fisiculturistas, sendo que a diferença está no fato dos primeiros não competirem e, portanto, se dedicarem menos às atividades de musculação. Os veteranos são quasefisiculturistas, sendo difícil, em determinados momentos, distingüir um do outro. Assim, dependendo da concorrência, um veterano pode ser considerado fisiculturista em uma academia na qual não exista ninguém maior que ele. Devido a tal fato, procuramos utilizar como parâmetro não apenas a massa muscular, mas o fato do indivíduo competir em campeonatos. Os bodybuilders configurar-se-iam como líderes no campo da musculação, os mais admirados por ostentarem musculatura hipertrofiada, conseguida através de um contínuo saber prático sintetizado em invenções de exercícios, uso de drogas específicas, uso de suplementos alimentares e dietas. Devido a tais fatores, entre outros, este grupo constitui a elite das academias de musculação. No Rio de Janeiro existem, em constraste com a maioria das instituições voltadas para a prática de exercícios em geral, determinadas academias onde grande parte dos frequentadores é constituida por fisiculturistas. Tais academias concentram-se em alguns bairros da Zona Norte e Sul da cidade. Nos quatro anos e meio de pesquisa, sempre me deparei com o grupo dos fisiculturistas, contudo, apenas em algumas instituições estes existem em significativa quantidade, conferindo-as aspecto diverso das outras. Nestas, os corpos hiper-inflados, em geral pouco vestidos, pavoneiam diante das paredes espelhadas de ponta a ponta cercados pelas toneladas de pesos e aparelhos sempre conservados para parecerem mal 184 conservados em seu aspecto rústico. O espetáculo somático realiza seu propósito invocando a epifania da forma arquitetada por uma razão instrumental aplicada ao que parece ser o grande valor e conceito (Goldenberg & Ramos, Op. Cit.) ou ao menos a mercadoria final da alta modernidade : o corpo. Apesar de algumas reações, - principalmente por parte dos estilistas de moda alternativa que expõem corpos de modelos mais magros (Dutra, 2002) -, formas físicas que apenas há algumas décadas atrás poderiam ser consideradas aberrações são, atualmente, eleitas pela indústria cultural como ícones de sucesso e beleza. A aparência musculosa, embora convivendo no cenário social com outras formas corporais, têm estado presente na mídia atual, deixando de ser privilégio de um sexo para se tornar propriedade de todos. Um número considerável de mulheres exibe atualmente anatomia muscularmente hipertrofiada (Sabino, 2001). De acordo com Courtine (1995:85), “não há mais sexo frágil”, ao menos entre os praticantes do fisiculturismo. Em uma época de apologia ao livre mercado, esculpir o corpo – utilizando todo tipo de técnicas possíveis – vem se tornando, para alguns, um imperativo, levando, com maior ou menor intensidade, ao crescimento das práticas de bodybuilding e do número de academias de musculação com a potencialização da anatomia inflada configurando-se como espetáculo cotidiano. A publicidade, o espetáculo esportivo na mídia, os filmes da TV, as revistas voltadas para a boa forma, os cadernos de saúde dos jornais, os brinquedos de ação e as bonecas das meninas, os heróis de quadrinhos e os filmes de Hollywood têm reiterado o mito da muscularidade. Para se ter idéia da mutação ocorrida no cenário mundial do bodybuilding da década de oitenta do século XX em diante – e que vem influenciando gradativamente a estética popular em algumas parcelas das sociedades no mundo globalizado - basta comparar os corpos que Arnold Schwarzenegger e Silvester Stalone ostentavam no auge de suas carreiras com os atuais heróis do fisiculturismo. Hoje, a forma física dos dois seria considerada, para um competidor, medíocre, ou mesmo fraca. Schwarzenegger, por exemplo, com o corpo ostentado no filme Conan cerrtamente não chegaria ao final do famoso campeonato 185 internacional de fisiculturismo, o Mr. Olympia, do qual na época foi várias vezes vencedor. Devido o aprimoramento das drogas (esteróides) e técnicas de utilização nos últimos anos, os fisiculturistas vem apresentando um diâmetro muscular gradativamente maior e uma quantidade de adiposidade cada vez menor. Existem atualmente fisiculturistas (como Eddie Moysan, segundo as publicações especializadas) que são apresentados pela mídia com circunferência de quase 70 cm de bíceps (região superior do braço, popularmente conhecida como muque) enquanto o próprio Arnold Schwarzenegger, quando várias vezes foi campeão, não passou dos 58 cm. Existem vários tipos de rituais de bodybuilders, anuais ou não, que vêm se popularizando e sendo reproduzidos ao redor do planeta. Tais rituais são constituídos por competições da forma nas quais os indivíduos apresentam seus corpos inflados, depilados e artificialmente bronzeados, perfilados à moda dos concursos femininos de beleza. Neste processo específico, os músculos não servem para efetivação da força, ou para a execução de atividades que possam imprimir esforço sobre objetos de disputa física. Eles são apenas ornamentos. Basta apenas a aparência. A competição consiste em mostrá-los e demonstrá-los, apresentando-os, - através de toda uma técnica de poses aprendida durante anos -, da forma mais definida e hipertrofiada possível. Como em um teatro no qual apenas os músculos exercem papéis, os (as) participantes desfilam orgulhosamente em cima de um palco seus corpos esculpidos, cobertos de óleo, auto-bronzeadores e vestidos com micro sungas ou biquínis, assistidos por juízes uma platéia de admiradores. Os músculos são ostentados enquanto massas decorativas, não servindo para demonstração efetiva de força ou para a luta, apenas para dar vida à competição da aparência. No ano de 2001, estas festividades da forma seguiram a seguinte organização da Federação de Culturismo e Fitness no Rio de Janeiro56: 56 - Apesar do Rio de Janeiro apresentar “geografia excepcional...inúmeros parques, jardins e praias, ou seja zonas de ‘malhação’ e de exposição de corpos” (Malysse, 1998:13) que supostamente levariam sua população a utilizar o corpo como vetor de interação social na cidade (Idem) é, ironicamente, a cidade de São Paulo – com toda a mística que a constrói como avessa à malemolência estética do carioca e do baiano - que apresenta os maiores e mais influentes campeonatos, meios de treinamento e campeões de fisiculturismo do Brasil. 186 Campeonato Carioca –1a etapa- Fitness, Master e Juvenil Campeonato Estreantes Campeonato Carioca – 2a etapa- Senior’s (masculino e feminino) Campeonato Mundial Feminino de Fisiculturismo e Fitness Abaixo segue a ordem de classificação final de um campeonato nacional no mesmo ano: Juvenil Masculino até 80kg Juvenil Masculino acima de 80kg Master II acima de 50 anos Master Masculino até 80kg Master Maculino acima de 80 kg Miss Fitness até 1,60 m Miss Fitness até 1,67 m Miss Fitness acima de 1,67m No ano de 2002 foi o seguinte o calendário das competições: Calendário de Competição Nacional e Internacional – Amador 2002 Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação/ Internatioal Federation of Body-Builders CBC-M/IFBB Abril- de 26 a 28 Copa Sul-Sudeste. Suzano/ SP Categoria: 70, 75,85, +90 e 100kg Categ. Miss Fitness, 1,60 e 1, 67cm Única: Body Fitness, Culturismo feminino, Master Masculino e Juvenil Junho- de 28 a 30 Copa Centro Oeste – Cuiabá/ MT Categ. 70, 75, 85, +90 e 100kg. Categ. Miss Fitness, Cult Fem., Master Masc. E Juvenil 187 Julho de 19 a 21 Copa Norte- Nordeste- Fortaleza- CE Categ. Body Fitness Categ. Juvenil até 80kg e +80kg Categ. Master masc. 80kg e +80kg Categ. 70, 75, 85, +90 e 100kg. Setembro- 01 Grand Prix Neo- Nutri /SP Categ. 70, 80, +90 kg Sênior masc. De 11 a 15 *Campeonato Brasileiro – SP Categ.52, 57 kg e +57kg Sênior feminino Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e +1.67cm Categ. Body Fitness 1.60, 1.65, e +1.65 cm Categ. Juvenil Masc. 70, 80, e +80kg Categ. Master Masc. 80, +80kg e +50 anos Seletiva para Mundial de Fitness Sênior e Feminino, Master/Juvenil re ïberoAmericano De 27 a 29 ** Copa Brasil Welness Sport – Ribeirão Preto/ SP Categ. 70, 80, 90, + 100kg. Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e + 1.67 cm ** Seletiva para Mundial Sênior Masculino Outubro de 04 a 07 Copa Mundial de Fitness- Brno/ Rep. Checa Categ. Fitness até 1.60, 1.67, + 1.67 cm Categ. Feminino Sênior 52, 57 e 57 kg A classificação internacional, de acordo com a Confederação Brasileira de Fisiculturismo, segue as seguintes definições: Senior Masculina: 188 Bantam: até 65 Kg Peso leve: até 70 kg Peso meio médio: 75 kg Peso médio: até 80 kg Peso meio pesado: até 90 kg Peso pesado: acima de 90 kg. Existem três categorias nas competições senior femininas internacionais, sendo estas: Peso leve: até 52 kg Peso médio até 57 kg Peso pesado: acima de 57kg. Nas competições júnior masculinas internacionais, existem mais três classificações: Peso leve: até 70 kg Peso médio: até 80kg Peso pesado; acima de 80kg Na júnior feminina são mais três: Peso leve : até 52 kg Peso médio: até 57 kg Peso pesado: acima de 57 kg Existem três categorias nas competições master masculinas: De 40 a 49 anos de idade: Peso leve: atté 80 kg Peso pesado: acima de 80kg De 50 anos de idade e acima: Categoria aberta 189 Em relação às mulheres da categoria master existe apenas uma categoria nas competições femininas internacionais. De acordo com a tradição antropológica, esta organização apresenta uma classificação da realidade podendo ser considerada um sistema de classificação “nativo”. Um modelo consciente (Lévi-Strauss, 1976) que organiza, ao menos, parte da realidade do grupo. Diante da imensa variação muscular presente neste rituais, ocorre a necessidade de classificar os corpos competidores, essa classificação é realizada de acordo com a morfologia que estes apresentam. Assim, Fitness, em geral, significa uma competiçãoapresentação-ritual na qual participam mulheres com considerável massa e definição muscular e extrema elasticidade. Neste aspecto é importante reiterar que a flexibilidade é um item mais importante para as fisiculturistas do que para os fisiculturistas. Elas devem ser musculosas, porém ágeis, enquanto tal elasticidade nem sempre é exigida dos homens. Interessante ressaltar que, ao menos neste caso específico, a classificação das mulheres, de forma diferente da classificação masculina, se realiza por intermédio da altura. Já as categorias master, juvenil ou júnior, estreantes e senior são elaboradas com base no peso e idade dos participantes. Estes concursos e festivais colocam em disputa os corpos maiores e com menor porcentagem de gordura, além de, no caso feminino, ser acrescentada a flexibilidade demonstrada através de exercícios específicos nos quais elas dão piruetas e saltos mortais executando coreografias similares àquelas da ginástica olímpica, embora sendo musculosas, ao contrário das ginastas. A apresentação masculina também requer certos gestos estilizados (poses) e passos específicos, similares para serem repetidos por cada competidor em toda e qualquer competição, que devem, segundo os participantes, demonstrar virilidade e harmonia simultaneamente. Há também as poses livres que cada fisiculturista deve fazer. Este sistema classificatório, além de premiar os corpos considerados melhores entre todos os concorrentes, também confere prêmios para os mais destacados em diferentes categorias. 190 Segundo Mary Douglas (1976), todo sistema classificatório se depara com elementos, de certa forma, inclassificáveis sendo estes elementos considerados anômalos ou ambíguos. A riqueza de tais categorias está justamente no fato delas apresentarem dificuldades para serem enquadradas nos sistemas cognitivos.57 A rigor, o ambíguo seria o elemento que poderia ser alocado em mais de um conjunto ou série e o anômalo aquele que não se enquadra em nenhum conjunto ou série. No caso específico deste sistema, a distinção entre ambíguo e anômalo é significativa na medida em que “se o primeiro se caracteriza como acidental no sistema, o segundo é por ele previsto” (Rocha, 1995:85). Desta maneira, os corpos ambíguos (muitos poderiam ser enquadrados em mais de uma categoria) o são porque algumas das categorias abrangem diferentes tipos de morfologia com fronteiras pouco definidas. Devido a tal fato, os coordenadores dos festivais estão sempre reformulando os sistemas classificatórios para impedir a manipulação da ambiguidade por parte dos concorrentes (peso, altura e idade). Por exemplo, se a classificação fosse apenas por faixa etária, alguém com 18 anos e pesando 100 kilos – algo raro para a idade no fisiculturismo- poderia concorrer em vantagem com outros com menor massa muscular e idade equivalente. Casos anômalos - idade e peso não compatíveis com os parâmetros estabelecidos - tendem a surgir com freqüência e para tais casos uma categoria à parte é criada no sistema com o rótulo de Campeonato Aberto. As características mais enfatizadas atualmente nas competições são: definição muscular, desenvolvimento muscular e simetria muscular; tal aspecto leva os jurados a centrarem seus julgamentos não apenas no tamanho e altura dos concorrentes. Para reiterar tal fato, nas finais de campeonatos todas as categorias são apresentadas em conjunto, ao mesmo tempo no palco e, não raro, competidores não muito altos ou mesmo pouco “massudos” vencem outros muito maiores. Este relato de um peso-pesado é significativo: 57 - Mauss, analisando as dificuldades classificatórias que a sociologia insurgente enfrentava, aponta para o mesmo problema: “Há sempre um momento em que, não estando ainda a ciência de certos fatos reduzida a conceitos...implanta-se sobre essas massas de fatos a baliza da ignorância: ‘diversos’” (1974 : 211). Latour (1996. Apud Peirano, 2000:4), porém, realiza crítica à determinadas abordagens antropológicas –principalmente a estruturalista - que tendem a tratar ciência apenas como sistema classificatório, obnubilando outras características que a constituem, como por exemplo, o método. 191 “ ‘Tava competindo no Estadual e me deparei com um cara pequeno mas muito bem preparado... quando ele começou a fazer as poses eu logo percebi que ele havia ensaiado muita coreografia... acho que ele pagou um bom coreógrafo p’ra ensaiar aquilo tudo. O cara era maleável, fluido, não posava só, dançava... quando ele começou a se apresentar o público explodiu, fazendo o maior barulho. Eu e ele éramos os finalistas, só que eu tinha uma vantagem: era muito maior. Percebi que a parada ia ser dura; porque minhas poses tinham sido menos soltas que as dele, tava mais duro... Aí fomos para a apresentação final, eu, o peso pesado leve, que tinha pouco músculo, o peso leve que não tinha nenhum, e o meu oponente principal, esse cara, peso médio, o único que podia me desafiar, mesmo. Ele era todo simétrico e muito definido, o abdômen do cara parecia uma grande forma de cubo de gelo. Fomos para o palco, para a apresentação, mas o meu tamanho me dava uma certa segurança, entende? Eu era muito maior que todos eles. Quando a música começou a tocar eu me posicionei em frente ao meu oponente, ‘puxei’ o dorsal e tampei o cara com o meu tamanho... toda a visão que o público tinha dele sumiu, foi um eclipse! Mas, ele logo saiu do buraco que eu tinha preparado p’ra ele e fez uma pose de pernas com toda aquela definição e simetria para me humilhar, eu logo ‘puxei’ uma pose de tríceps seguida por outra de braços estendidos, o público aplaudiu, aí ele fez uma série de poses de abdômen, com aquela maldita super definição que impressionou a platéia que começou a aplaudir e gritar, na hora. Pronto, ali eu perdi ! Fiquei em segundo lugar... perdi p’rum cara que tinha trinta quilos a menos do que eu...” (Carlos. 28 anos. Fisiculturista e estudante de fisioterapia). 192 Além de remeterem a um processo classificatório específico, este rituais, em um momento de imensa vivência emocional e cognitiva, servem para reforçar os laços sociais e a “adoração” aos ídolos já existentes (Segalen, 2002). Heróis que apresentam todo esplendor e mana do seu corpo (re)vestido da couraça de músculos reverenciada por todos. Os festivais servem, também, para (re)criar novos mitos que conquistam seu lugar no panteão dos heróis da musculação. Estas festividades seguem o padrão daquelas realizadas nos EUA e que são consideradas o modelo mais adequado a ser seguido pelos bodybuilders. Obviamente, são as festividades internacionais (Mr. Olympia, Arnold Classics, Mr. Universe, Super Body Natural, entre outras) as mais admiradas e os vencedores destas, considerados, pelos fisiculturistas nas academias, verdadeiros semi-deuses. Estes rituais mobilizam uma indústria crescente dos músculos direcionada para o consumo de bens e serviços destinados à construção e manutenção do corpo. Suplementos alimentares, vitaminas, pesos, anabolizantes, cursos de musculação e máquinas de última geração baseadas no aperfeiçoamento da micro-eletrônica e informática são produzidas a cada dia para alimentar a busca da forma perfeita. Busca mítica e ritualística que transforma o músculo em um modo de vida. Tais ritos somatófilos seriam formas de acesso à consciência coletiva deste grupo, uma maneira – mediatizada pelos símbolos da força e virilidade – deste tomar consciência de si reiterando suas estruturas (Durkheim, 1996). A classificação internacional para eventos amadores elaborada pela IFBB (International Federation of Body-Builders), que influencia as competições de fisiculturismo no mundo inteiro, é a seguinte: peso galo, peso leve, peso médio, peso pesado leve, peso pesado, peso superpesado. Já nos concursos profissionais filiados à IFBB todos os competidores são colocados em uma mesma categoria e a decisão, o julgamento, é feita através das poses realizadas pelos fisiculturistas no palco58. A demonstração de poses divide a competição em duas partes de quatro rodadas. A primeira parte é a do pré-julgamento. Este, por sua vez, está 58 - No Brasil apenas a CBC-M (Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação) é reconhecida pela IFBB (International Federation of Body Builders) e pelo COB (Comitê Olímpico Brasileiro). As regras das competições em geral estão relacionadas às regras internacionais da IFBB, variando pouco. 193 dividido em duas outras fases: pose relaxada e poses compulsórias. Na primeira, os fisiculturistas ficam de pé, no palco, em frente aos juízes, mãos ao lado do corpo, de frente, de costas e de ambos os lados. Embora seja chamada de pose relaxada, este tipo de pose leva os bodybuilders a contraírem seus músculos de forma intensa. Nesta fase, os juízes avaliam o tom de pele, expressão facial, corte de cabelo, se o competidor está bronzeado ou não, se a sunga veste bem, se a cor é adequada e não apenas a simetria e os músculos do participante. A segunda rodada do pré-julgamento é a das poses compulsórias; como o próprio nome diz são obrigatórias para todos, visto terem o objetivo de permitir o julgamento de cada região muscular específica do corpo de cada competidor. As poses são: bíceps duplo frontal, abertura lateral frontal (ou dorsal), tórax lateral, bíceps duplo de costas, abertura lateral de costas, tríceps de lado, abdominais e coxas com mãos sobre a cabeça. As mulheres também fazem as mesmas poses exceto a abertura lateral. A terceira parte da apresentação é a da pose livre. O competidor, nesta fase, pode utilizar de toda sua criatividade para impressionar os juízes. Ele procurará elaborar poses que melhor exibam as partes que ele considera mais apresentáveis de seu corpo e escondam, ou disfarcem, aquelas partes que ele considera deficientes. Neste momento, o competidor escolhe uma música e elabora uma coreografia própria, em geral uma mistura de dança com poses que ressaltam seus músculos. A quarta e última rodada é a da seqüência de poses que é realizada pelos finalistas (aqueles que passaram com sucesso pelas seqüências anteriores) em conjunto no palco, cada um apresentando livremente suas poses para que o melhor – o campeão- seja escolhido. Estas poses de comparação feitas em conjunto parecem causar um certo stress nos competidores que disputam cada segundo e milímetro no palco para serem notados pelos juízes, o que pode ocasionar cotoveladas e empurrões entre eles. Na realidade, este é o ápice do jogo, ou melhor, quando a competição vira de fato um jogo, pois a cada pose do adversário, o fisiculturista deve demonstrar outra ainda melhor e mais impressionante. Assim, conhecendo suas “qualidades” e “defeitos” corporais o competidor deverá tentar esconder seus defeitos e apresentar, obviamente, suas melhores qualidades, portanto, 194 quando um deles apresenta, por exemplo, uma musculatura dorsal definida e volumosa, o outro, se não considerar sua mesma musculatura melhor que a do seu adversário procurará realizar uma pose que destaque outro grupamento muscular que ele considere melhor que o do seu oponente. O jogo articula uma verdadeira troca de poses, um potlach da forma e das imagens, no qual cada um busca ostentar a maior riqueza muscular diante de seu adversário, juízes e público em geral. A realização das poses é uma das partes mais difíceis da competição no fisiculturismo, pois ela é o outro lado da moeda da apresentação do bodybuilder. Talvez 50% de sua apresentação em um palco dependa da sua eficácia com as poses. Espécie de jogo que mistura a coreografia da dança com o ato de posar para pintores, realizar poses de fisiculturismo demanda uma técnica corporal, no sentido maussiano, que só é adquirida através de contínuo esforço ao longo dos muitos anos de prática a ponto de sua apresentação tornar-se praticamente inconsciente. De acordo com o relato de Schwarzenegger (2001:589): “Devido a sua enorme importância no fisiculturismo competitivo, nunca é muito cedo para começar a posar. Você deve começar desde o primeiro dia em que entra na academia. Estude fotografias de outros fisiculturistas, vá a concursos e observe como os competidores posam e tente imitá-los. Comece fazendo suas poses em frente ao espelho até que você ache que pegou o jeito de executá-las. Depois tente fazê-las sem o espelho, com um amigo observando. Entre as séries contraia os músculos que você está treinando, faça algumas poses e estude-se no espelho. Isso irá condicioná-lo a fazer contrações firmes, sustentadas e também ajudar a analisar o estado de seu desenvolvimento. Lembre-se da necessidade de resistência! Os juízes freqüentemente irão mandar você posar por vários minutos cada vez; você pode precisar ficar contraído por horas durante um pré-julgamento cansativo. Então, no seu treinamento de poses, 195 não apenas execute as poses por alguns segundos e relaxe. Sustente-as até que doa, depois sustente um pouco mais – este é o momento da falência, de ter cãimbras musculares, de sofrer de modo que as suas poses na competição sejam suaves, competentes e poderosas. Mantenha-a por pelo menos uma hora a cada dia... ” Posar é de extrema importância para o fisiculturista não apenas pelo fato de fazer parte do jogo, mas acima de tudo porque as poses destacam as partes do corpo que devem ser mostradas, expostas, apresentadas ao público. Se um fisiculturista jamais está nu – pois está vestido com sua armadura muscular – ele também não deve estar apenas grande. A simetria e a forma são tão ou mais importantes que o tamanho. Esta estética particular está calcada na necessidade de mostrar o máximo possível das entranhas musculares. A presença efetiva destas (a chamada definição) significa, para eles, a simetria e a forma. Músculos “definidos” representam fibras musculares à mostra a ponto de a pele estar tão fina que cada tira, ligamento e fibra, apareça em uma exposição sui generis na qual a intimidade mais profunda da carne possa ser salientada. Neste movimento, o fisiculturismo e a atual pornografia massificada parecem compartilhar a mesma avidez por mostrar as entranhas e o privado. Esta avidez talvez esteja radicada naquele processo que Foucault (1990) denominou a vontade de saber (e, no caso, de ver) que acaba apresentando a tendência a controlar os movimentos e aspirações mais profundos dos indivíduos preocupados com a exposição de cada fibra muscular de seu corpo. O mesmo processo aplicado à invenção da sexualidade pode ser aplicado para a explicação deste árduo trabalho de esculpir a carne e os músculos, mostrando-os e demonstrando-os em público como o troféu da suposta vitória sobre o tempo e sobre a morte. Assim como nos fizeram “amar o sexo” tornando “desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo o que se diz a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade” (Foucault, Op.cit.:149) fazendo-nos acreditar que nisso está 196 nossa liberação; da mesma forma tal dispositivo social nos faz acreditar que devemos escrutinar e extrair das entranhas musculares uma possível liberdade que poderá nos levar a realização da utopia da saúde. Neste âmbito, a adiposidade surge como o maior inimigo da forma, já que ela se sobrepõe às fibras musculares obliterando a visão das mesmas, daí a necessidade intermitente de produzir um conhecimento cada vez mais efetivo sobre como aumentar os músculos e eliminar gorduras. Conhecer o corpo e colocá-lo em discurso, mesmo que este discurso seja o iconográfico. Este parece ser, ao menos em parte, o dever de uma época. Dever que pode ser percebido no grupo que representa o paroxismo deste movimento sócio-cultural somatófilo: os fisiculturistas. A tarefa de posar exige o domínio de uma técnica de esforço aprendida durante anos de socialização diária nas academias de musculação. Ser capaz de tensionar tecnicamente a musculatura corporal durante uma competição, flexionando os músculos, mantendo poses de até uma hora ou mais – com controle pleno do corpo inteiro e domínio de cãimbras – é uma tarefa atlética comparada a de um pugilista enfrentando doze assaltos em um ringue de boxe. Existem dois tipos básicos de esporte: os julgados por medidas (distância, rapidez, altura, etc) e aqueles julgados pela forma (nado sincronizado, ginástica olímpica, mergulho, patinação no gelo). O fisiculturismo é um esporte da forma; com a diferença de esta não estar diretamente relacionada ao movimento e sim à conformação do corpo. A forma envolvida é a do próprio corpo-tamanho, proporção, definição, “qualidade estética” desenvolvida nas academias através de exercícios e dietas (Schwarzenegger e Dobbins, 2001). As poses são o veículo de apresentação de todos estes itens. Outra classificação específica utilizada no cotidiano das academias de musculação é aquela reapropriada da somatotipologia (produzida pela cineantropometria) pelo senso comum do campo. De acordo com os freqüentadores, existem três tipos de corpos, espécie de tipos ideais, que podem ser combinados produzindo, ao final, uma tipologia dividida em um total de oitenta e oito subcategorias. Estes três tipos seriam assim definidos: 197 O ectomorfo: tronco curto, braços e pernas compridos, pés e mãos compridos e estreitos e muito pouca reserva de gordura (dificuldade para engordar); estreiteza no peito e nos ombros, com músculos em geral longos e finos. Em geral, este é o indivíduo magro que possui dificuldade para adquirir peso. O mesomorfo: peito largo, tronco longo, estrutura muscular sólida e grande força. Para os freqüentadores das academias o indivíduo que possui este tipo de corpo é um “verdadeiro abençoado pela genética” como ouvi inúmeras vezes durante o trabalho de campo, porque é aquele que tem maior facilidade em adquirir massa muscular. O endomorfo : musculatura frágil, rosto redondo, pescoço curto, quadril largo e grande reserva de gordura. Este é o gordo59. Como disse, a combinação destes três tipos chega a constitutir outros oitenta e oito; assim temos, em uma espécie de combinatória: o ectomesomorfo, o ectoendomorfo, o mesoecto, o mesoendo, o endoecto, o endomeso, etc. A análise acurada dos tipos e a definição mais exata só é possível com o auxílio de indivíduos entendidos em cineantropometria que utilizam instrumentos adequados (adipômetros, por exemplo) para avaliar a morfologia medindo certas regiões corporais. Grosso modo, tais avaliadores utilizam uma escala pontuada que vai do grau 1 ao 7 (máxima ectomorfia à máxima endomorfia). Desta forma, se uma pessoa possui, nesta escala, o grau 2 (ectomórfico), o grau 6 (meso) e o grau 5 (endo) ela pode ser considerada uma pessoa endomesomorfa. Ou seja, um tipo bastante musculoso mas com tendência a apresentar muita gordura ou grande facilidade de engordar. A partir dessa avaliação, todo o treino e, conseqüentemente, o enquadramento nas práticas de musculação nas academias se estabelecerá para o avaliado. Classificado, suas práticas terão que ser condizentes com o 59 Nas academias, o indivíduo gordo é o mais desprezado: “Odeio gente gorda! Quem é gordo é preguiçoso, desleixado, descuidado, molenga, perdedor e fedorento!” (Carla, 18 anos, estudante de Marketing). Sobreposta a classificação científica subjaz outra que utilizando as categorias da primeira forma um sistema classificatório nativo que não raro acaba por radicar na genética a hierarquia da realidade social do grupo: “Negros, italianos e alemães são mesomorfos... pode ver: todos os ganhadores do Mister Universo, Mister Olympia e daí por diante são descendentes de italianos, alemães ou negros, é genético, eles têm mais massa muscular que os outros povos” (Paulo, 22 anos, estudante de educação 198 modelo que a ele foi imposto a partir das medidas de seu próprio corpo em consonância com o sistema classificatório do campo. Assim, a própria avaliação – realizada por um professor de educação física ou um personal trainer (em geral um fisiculturista de longa data), já se afigura como uma espécie de pré-ritual que instituirá o papel, durante um longo tempo, do praticante na estrutura objetiva das academias de musculação. O sistema classificatório, modelo presente na consciência dos indivíduos do grupo, atua também como articulador ritualístico das práticas das diferentes instâncias deste mesmo grupo. Junto com o rótulo que recebe, o indivíduo aceita também seu programa de treinamento diário que obviamente estará associado ao seu papel, ao menos temporário, no sistema ou, para usar um termo de Bourdieu, no campo. Desta forma, o tipo ectomorfo terá um treinamento voltado para a aquisição de peso, massa muscular e, portanto, seus exercícios, segundo os fisiculturistas, deverão ser extenuantes, pois ele terá que desenvolver força e resistência, o que o obrigará a buscar levantar o máximo de peso possível em uma série (grupamento de exercícios) de repetições baixas (entre 6 e 8 repetições), deverá descansar bastante entre um exercício e outro e comer em grande quantidade, deve também fazer pouco esforço aeróbico, ou seja, não deve correr, nadar ou pedalar em quantidade, já que seu objetivo deve ser guardar energia para transformá-la em músculo. O mesomorfo, considerado o tipo biológico privilegiado, deve trabalhar volume e definição simultaneamente. Como, de acordo com os fisiculturistas, este tipo tem geneticamente facilidade para aquisição de músculos, ele não deve se preocupar com supertreinamentos ou com conservação de energia, o que significa que ele pode fazer exercícios aeróbicos e séries de repetições regulares de 8 a 10. Sua dieta também é a mais fácil, pode ser equilibrada sem muitas restrições e cortes drásticos de determinados alimentos. Já o endomorfo, por ser gordo, deverá se manter sempre de dieta, com restrições calóricas radicais, realizando muitos exercícios aeróbicos junto com séries de musculação de 12 repetições em diante sem muito descanso entre um e outro exercício. Se o mesomorfo é o privilegiado, o endomorfo é o mais prejudicado pela genética, de acordo com o física). Contestando a afirmação acima digo : “Mas o Arnold [Schwarzenegger] não era mesomorfo...” A 199 sistema classificatório dos fisiculturistas. A gordura, muito menos que o osso – a magreza – pode ser considerada uma espécie de anátema que denigre toda a existência do indivíduo, adiando sua aceitação no grupo social da muscularidade. Sua aceitação deverá ser conquistada através da mudança diligente de sua forma física por intermédio de todo o processo de domesticação do corpo e da forma pelo ferro das anilhas, o ascetismo das dietas e o suor das corridas e pedaladas. Ao final, porém, o que conta é a concepção liberal de que qualquer indivíduo tendo força de vontade e dedicação poderá transformar seu corpo e sua vida como um self made man. Bastando, para tanto, o exercício da vontade livre para transformar as coisas. As séries de repetições: A divisão do trabalho muscular Para que se torne viável um melhor entendimento da lógica estrutural que compõe o sistema simbólico de construção de um corpo musculoso entre os fisiculturistas – e mesmo entre as pessoas comuns que freqüentam as academias, visto que os sistemas de treinamento são decalcados das experiências e simplificações dos primeiros – necessário se faz esclarecer o significado prático das séries de exercícios e sua composição. As séries são grupos de exercícios com carga (pesos) repetidos que objetivam desenvolver determinada região do corpo. Contudo, não basta apenas levantar pesos para se tornar um fisiculturista. Há um sistema técnico complexo que organiza todo o processo de modelagem muscular e estética e ética dos freqüentadores de halteres. Os exercícios estão baseados na força e no auto-diagnóstico da dor. Um Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista) Dia 1 2 3 4 5 6 Grupos Musculares Peitorais, Tríceps, Abdômen, Exercícios Aeróbicos Costas, Bíceps, Panturrilha Ombros, Trapézio, Abdômen, Exercícios Aeróbicos Coxa Anterior e Posterior Repete o Ciclo, Exercícios Aeróbicos Repete o Ciclo resposta: “Mas ele é austríaco, tem sangue germânico e, por isso, mais facilidade para ganhar corpo” 200 Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista) Segunda-feira – peito, bíceps e tríceps Supino Reto 4x6 (quatro séries de seis repetições)60. Crucifixo Reto 4x6/12 Supino Inclinado com Halteres 4x6/12 Supino Canadense com Barra 4x12 Cross Over 4x12 Rosca Direta 4x10/12 Tríceps Testa 4x10/12 Rosca Concentrada 4x10/12 Tríceps no Pulley 4x10/12 Terça-feira – perna, panturrilha Extensão Perna 4x12/15 O Leg Press 45 4X12 Hack Machine 4x10/12 Agachamento Livre com Barra 4x12 Flexão Vertical 4x15 Flexão Horizontal 4x15 Gêmeos Máquina 5x20 (cada angulação dos pés; o seja: reto, com as pontas dos pés para dentro e para fora) Quarta-feira – Costas e Ombro Barra Fixa pela Frente 4x15 Puxador Frente com Triângulo 4x10 Remada Unilateral 4x8/12 Remada Curvado com Barra 4x6/10 Puxador Costas 4x12 “Bom Dia” 4x10/12 Elevação Lateral 4x12 Desenvolvimento Costas 3x8 Desenvolvimento Frontal 4x10 Encolhimento com Halteres 3x12 Elevação Posterior 4x12 Abdômen no Puxador 4x30 (3x por semana) Quintas-feira, Sexta e Sábado repete o treino. A organização dos exercícios divididos em séries e repetições combinadas e recombinadas ao infinito e com gradativo grau de intensidade é também a base organizacional das práticas nas academias de fisiculturistas. 60 - Séries e repetições são termos fundamentais na musculação e representam a quantidade de exercícios que o indivíduo realizará nas barras e nas máquinas e, portanto, que tipo de corpo ele estará construíndo através destes mesmos exercícios com pesos. Assim, por exemplo, uma série 4 X 6 significa que ele 201 Tais grupamentos abstratos devem ser concretizados na prática através dos exercícios específicos que encarnam a domesticação corporal e a manipulação das fibras musculares. As classificações subjetivas classificações objetivas e vice-versa (Lévi-Strauss, 1975). estruturam as Como o espaço social é definido pela exclusão mútua, ou pela distinção, das posições que o constituem, ou seja, pela estrutura de justaposições e de posições sociais demarcadas através dos termos na estrutura de distribuição das diferentes espécies de capital corporal (Bourdieu, 2001). As séries e repetições organizam e são organizadas pelas práticas de modelagem muscular hierarquizando a realidade das academias de musculação; o enquadramento em uma categoria funciona simultaneamente como enquadramento na prática ou papel a ser ocupado pelo indivíduo na estrutura objetiva do grupo: Tipo Corporal - Organização Somatotipologia físicos dos Mesomorfo (88 variações) Ectomorfo dos 3X10/ 4x8/ 4x12/ 3x6, etc. Organização Série – exercícios Programa de treinamento físicas Estrutura objetiva - Organização relações institucionais academias tipos Endomorfo e atividades Peito, costas, braços, ombros, pernas. social das Fisiculturistas, veteranos, comuns. É necessário destacar a quase inexistência de números ímpares nas séries de exercícios – nas séries acima aparece apenas o número 15, no caso repetirá um bloco de seis exercícios idênticos quatro vezes descansando de quarenta segundos a um minuto entre cada bloco. 202 das repetições, e 3 no caso das séries. O que significa que quase ninguém realiza exercícios com repetições ímpares. Tais organizações da prática de exercícios enquanto modelos conscientes nítidos apresentam uma certa dificuldade de interpretação por parte do antropólogo. Desde que a consciência esquece os fundamentos inconscientes que a codificam, ela torna-se fonte de erro e deve ser vista com muita cautela (Rodrigues, 1980); conforme escreveu Lévi-Strauss (1976a:15): “quanto mais nítida a estrutura aparente, tanto mais difícil se torna apreender a estrutura profunda, por causa dos modelos conscientes e deformados que se interpõem como obstáculo entre o observador e seu objeto”. Existem dois fatores que devem ser destacados na tentativa de análise destes sistemas nativos de classificação: 1) eles têm no discurso científico a matriz que organiza o seu próprio discurso, visto reinterpretarem os termos e as relações dos discursos doutos elaborando a partir daí os seus; 2) apesar de proclamarem a cientificidade dos próprios sistemas e mesmo desta ordem fazer parte das articulações cotidianas destes discursos e práticas, a presença de elementos míticos inconscientes está presente nestes mesmos discursos e práticas. Isto ocorre, por exemplo, no caso da quase ausência de números ímpares nas séries de exercícios. Tais séries são respaldadas pelas e tidas como produto das faculdades de educação física, fisioterapia e das chamadas ciências dos esportes, porém, no discursos leigos do cotidiano das academias de musculação e fisiculturismo um certo quantum de sentimento mágico não deixa de estar presente nas suas montagens e organizações. O número impar, assim como a mão esquerda, ou mesmo a dissonância músical61, pode representar, nas sociedades complexas 61 - A questão da harmonia musical como representando o ordem do universo está presente em todo o pensamento ocidental desde pelo menos Pitágoras de Samos. Para os pitagóricos a harmonia universal estaria expressa nos números inteiros - já que para eles o número era a “alma das coisas”, e, portanto, indivisível. O maior problema desta concepção diz respeito aos números irracionais. Tanto na relação entre certos valores musicais, expressos matematicamente, quanto na base mesma da matemática surgem grandezas inexprimíveis naquela concepção de número (que prioriza a “harmonia” do número inteiro). Segundo Pessanha (1996:19): “a relação entre o lado e a diagonal do quadrado (que é o da hipotenusa do triângulo retângulo isósceles com o cateto) tornava-se ‘irracional’ : aquelas linhas não apresentam razão comum, o que se evidencia pelo aparecimento, na tradução aritmética da relação entre elas, de valores sem possibilidade de determinação exaustiva, como o ? 2. Ou então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era nem par nem ímpar”. O problema da suposta falta de ordem, medida e proporção dos números denominados “irracionais” e das dissonâncias musicais atravessa toda a metafísica preocupada com a Identidade. Mesmo Schopenhauer, considerado um dos pais 203 de matriz européias, o intersticial, a exceção, ameaça de desordem, região obscura que pode colocar em risco a própria organização do sistema visto que ele pode quebrar a concepção de harmonia inerente às combinações pares. Estas, por sua vez, estão relacionadas inconscientemente à ordem do universo nas representações nativas. Pela natureza do seu espírito, o homem não pode lidar com o caos – ao menos a maioria dos homens - sendo que o paradoxo apresenta-se ao espírito como algo inaceitável e perigoso, daí todo o pavor ligado às tragédias. Durante o trabalho de campo foi possível detectar alguns aspectos discursivos que permitem a tentativa de elaboração de uma explicação para a quase inexistência de números ímpares no sistema de exercícios do grupo pesquisado. Perguntados sobre a causa deste fato alguns responderam que “ora, é porque o número par arredonda o esquema todo...” (Josias, 25 anos. Funcionário público) , ainda: “assim a série fica redonda, perfeita” (Carlos, 18 anos. Estudante) e “o grupamento de exercício fica completo, certinho, fechado, redondo” (Paulo, 27 anos.Advogado). Além deste aspecto, foi dito o seguinte: “ uma série ímpar é quebrada, não é boa...” (Mário, 54 anos. Funcionário público) ainda: “... eu acho que a ordem é harmônica ... a gente do irracionalismo moderno e para quem a música era o universo e a vontade corporificada, em outras palavras “a essência interna do mundo” (1986:79), parece não ter percebido que não são os sons que são imperfeitos, mas nossas classificações que os constroem como tais; sons são apenas sons, visto que a perfeição é uma representação cultural caudatária de um processo lógico que hierarquiza e realidade sem contudo apreendê-la na sua totalidade; o filósofo do pessimismo escreveu: “ os próprios números, pelos quais os tons permitem expressão, ostentam irracionalidades insolúveis; não é possível calcular uma escala, em cujo interior toda quinta se relaciona com o tom fundamental, na proporção de 2 para 3, toda terça maior, como 4 para 5, toda terça menor como 5 para 6, etc. Pois se os tons estão corretos em relação ao tom fundamental, não o são entre si, na medida em que p. ex., a quinta deveria ser a terça menor da terça, etc. ... por isso uma música perfeitamente correta não pode sequer ser pensada, quanto mais ser executada; e por isso toda música possível se desvia da pureza perfeita: ela consegue apenas ocultar as dissonâncias que lhe são essenciais...” (Idem, 81). De acordo com um texto de Weber, Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música, incluído em Economia e Sociedade (1995), esta preocupação metafísica com a Identidade equacionada à ordem e à harmonia será um dos fatores que levará à extrema racionalização da música ocidental devido à incessante busca de equacionar o que a sociedade ocidental concebeu como irracionalidade musical. A preocupação com os intervalos – a música no Ocidente vai ter por base harmônica a quinta e a terça levando à construção do chamado “acorde perfeito” e à distinção entre boas e más medidas - levou ao desenvolvimento dos estudos sobre a tonalidade a polifonia e o contraponto culminando com a constituição de uma arte autônoma, praticada por motivos puramente estéticos por profissionais especializados. A música ocidental tradicional é, ao menos até o século XX, o exemplo da tentativa metafísica dos sistemas classificatórios do chamado pensamento domesticado de absorver a diferença na identidade, supondo que a primeira constitui-se como o erro e a imperfeição do mundo material. Talvez, a quase ausência de séries ímpares nos exercícios dos fisiculturistas seja também expressão de tal espírito obcecado por aquilo que considera perfeição. 204 tem dois braços, duas pernas, dois ouvidos, dois olhos, dez dedos, então as séries têm que ser par, ora!” (Rafael, 23 anos. Professor). Podemos aqui destacar as concepções de perfeição, completude, circularidade e mesmo ordem no discurso nativo sobre as séries de exercícios. Além também da identificação indireta do número par como algo naturalmente construído, e por isso correto, visto que “naturais” são as paridades de membros e orifícios do corpo humano. O número ímpar seria uma exceção no sistema, uma anomalia aceita em determinados momentos com o objetivo de reiterar a ordem e a harmonia representada pela paridade (Douglas, 1976). Outro aspecto aludido pelos informantes a respeito dos números pares e ímpares é o do medo do azar: “ah, número ímpar demais dá azar... vê só o número 7, ninguém gosta dele, é coisa de macumba.” (Rafael, 23 anos. Professor). Ainda, “o número 13, por exemplo, é um número estranho, né? tem gente que acha que dá sorte, tem gente que acha que dá azar... não sei, é estranho” (Mariana, 22 anos. Comerciária). Em Medo do Feitiço (1992), Yvonne Maggie buscou compreender, através da pesquisa de processo judiciais sobre feitiçaria, a característica pervasiva desta na sociedade brasileira. A autora destaca o fato de que não apenas os denunciantes e acusados da classe baixa, mas também os letrados (juízes e advogados) acreditavam na magia e consideravam um dever coibir o seu abuso. Estes guardiões do Direto acreditavam simultaneamente na ciência e na feitiçaria, articulando uma lógica ou outra quando lhes convinha: “se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente” (2001:63). Nas academias de fisiculturismo não é diferente. A crença na ciência do esporte, na ciência da nutrição, nos resultados de equações cineantropométricas convive tranqüilamente com a crença no feitiço, no mau-olhado, na magia, como atestam os relatos sobre os números ímpares. Se representam, num primeiro momento, ambigüidade e imponderabilidade, num segundo instante são equacionados rapidamente a forças mágicas que suprimem desse pensamento o acaso e a falha. Não apenas o número ímpar é motivo de alusão ao feitiço, mas a gripe, o exercício que não dá resultado, o acidente, etc. Se um peso cai 205 no pé de alguém que está com o corpo em forma isto pode ser motivo de burburinho a respeito de “trabalho feito”, “macumba” ou “olho-grande”. Da mesma maneira, se um fisiculturista fica gripado e perde massa muscular ou, por outro lado, se apesar de toda a técnica e ciência utilizada ele continua “sem crescer”, ou seja, sem aumentar sua massa muscular, isto pode ser resultado da inveja. Esta tem o poder mágico de fazer mal por si mesma. Nada precisa ser feito a não ser o invejoso olhar com inveja para o invejado e assim prejudicá-lo. Este processo Zande de crença está constantemente presente no cotidiano das academias. Este relato do meu caderno de campo reitera tal afirmação: Janeiro de 2001. Chego à academia e vejo Micharia coberto com casacos Adidas fazendo um agachamento com quase 250 kilos e sendo auxiliado por Jair. A princípio penso que ele acredita – como muitos - que fazendo esforço agasalhado pode perder mais peso e definir musculatura. Mas logo percebo que não pode ser isso, já que Micharia já está definido. Me aproximo vagarosamente buscando me exercitar no Leg press (aparelho para exercício do músculo denominado vasto medial) e após perceber que Micharia terminou sua série de agachamento, começo a conversar com ele: - E aí Micharia ?! Como tão as coisas? - Tudo certo. - Esse agachamento aí tá meio pesado, né? - Mais ou menos... - Hum, mais ou menos... mais ou menos, se eu fosse fazer um agachamento desses eu morria esmagado na primeira repetição. - Nada... - Cê não tá com calor não, cara? Tá todo agasalhado... - Tô morrendo de calor, mas agora eu só vou malhar de casaco. Essa academia só tem olho-grande. Ano passado perdi a competição porque era tanto olho-grande que eu fiquei gripado na semana de competir... os caras chegavam p’ra mim (com voz melosa quase afeminada): Nossa, como você tá grande! Puxa como você tá definido! E ficavam me secando com aquele olhar de seca pimenteira 206 enquanto eu malhava. Agora não, cara. Não vão secar porra nenhuma, porque eles não vão ver nada! 207 Capítulo V “La cuisine d’une société est un langage dans lequel elle traduit inconsciemment sa struture” Lévi-Strauss Comendo como Bicho : Publicidade, Mito e Gastro(a)nomia Perseguindo o padrão estético dominante, inúmeros indivíduos não medem esforços para se adequarem aos parâmetros sugeridos pelas imagens midiáticas. Dietas e plásticas, de todos os tipos, implantes de próteses de silicone e exercícios variados são itens realizados com o intuito de aprimorar a forma física. Os heróis do fisiculturismo aparecem em publicidades de dietas, de máquinas de musculação, de roupas para esporte e de métodos de exercícios que a cada ano surgem de maneira diversificada no mercado da boa forma. Como o músculo, neste sistema simbólico específico, é o signo e a síntese do sucesso, a busca incessante pela sua expansão remete a uma dimensão classificatória também peculiar. No sistema classificatório dos bodybuilders alguns animais simbolizam a positividade e a excelência, sendo usados em tatuagens e emblemas de academias representando força, destemor, bravura, imponência, etc. Dentre estes destacam-se leões, tigres, cães da raça pitbull, serpentes, tubarões e cavalos. Leach (1983:186), em seu estudo sobre categorias animais, elabora uma breve classificação que indica o sentido da distância e da proximidade de determinados animais em relação aos indivíduos de determinadas culturas. Demonstrando que os animais situados em distância intermediária do homem podem servir de alimento, se forem seguidas determinadas regras, enquanto os animais remotos não são comestíveis, o autor destaca a ambigüidade classificatória como viés de compreensão da realidade que não deve ser vista totalmente dicotomizada em perto/longe, eu/isto, nós/eles, mas também como escala graduada, modulada e moduladora que atua articulando sentidos e aspectos como “mais como eu, menos como eu” (Op. Cit.:198). 208 Homem “Homem-animal” Não- homem (não- animal) (“animal de estimação”) (animal) DOMESTICADO CAÇA SELVAGEM (amigável) (amigável/hostil) (hostil) Este caráter ambígüo afeta, por exemplo, cães e cavalos, animais que, devido a sua proximidade com os seres humanos nas sociedades complexas ocidentais, não lhes servem de alimento. Marshall Sahlins (1979: 191) destaca que “a América é a terra do cão sagrado”, ressaltando o tabu que ronda tal animal doméstico no imaginário norte-americano da mesma forma que o cavalo. Longe de ter respaldo biológico, ecológico ou genético, a proibição do consumo de carne de cachorro e cavalo por ocidentais estaria, de acordo com o autor, radicado no sistema simbólico que classifica tais animais como “sagrados”, impróprios para alimentação, salvo raríssimas exceções, como a que ocorreu durante uma crise da alimentação de 1973 em que Sahlins fala que a carne de cavalo foi colocada à venda em substituição à bovina, causando, porém, enorme protesto. Seguindo esquema parecido ao de Leach, Sahlins alude ao fato de que animais próximos ao ser humano são objeto tabu, sendo impedido seu consumo por motivos culturais. Assim, em uma relação de distanciamento e valoração relacionada à comestibilidade, o seguinte quadro poderia ser esquematizado: Bois Porcos Cavalos Cães Próximo Mais comestível Distante Menos- comestível 209 Nas classificações dos fisiculturistas, o cavalo também surge semanticamente como um animal ambígüo. Ele pode ser sinônimo de grosseria, estupidez e burrice ou de garbo, força e imponência, dependendo da circunstância. Entre os bodybuilders este animal é emblema de poder e força assim como o cão pitbull é sinônimo de bravura e destemor. Ocorre um processo de identificação, por parte dos fisiculturistas, com a força representada pela figura do cavalo. Tal aspecto remete indiretamente à questão da consubstancialidade presente na comensalidade de alguns povos ameríndios. Entre os Pakaa-Nova, auto denominados Wari, estudados por Vilaça (1992:68), “a devoração produz uma consubstancialidade entre os termos”, ou seja, “todos aqueles que são devorados por um jaguar tornam-se jaguar por terem seus jam incorporados a esta espécie”. Jam poderia ser provisoriamente aqui traduzido como essência, mas não no sentido metafísico. Ele “é um traço, marca, representação ou imagem de um corpo. A sombra de um objeto ou pessoa projetada pela luz é o jam do objeto ou da pessoa” (Op. Cit.:55). Assim, se um Wari sonha que comeu um animal, ele sabe, ao acordar, que não comeu o corpo do animal, mas o jam do animal (Idem ). Entre eles os animais com jam são considerados pessoas e não devem ser devorados. Se isso acontecer, aquele que comeu o animal adoece. Entre os Tupinambá, comer um guerreiro inimigo, por sua vez, fazia parte de um ritual espiatório (Girard, 1997; Viveiros de Castro, 2002f) no qual a força e o poder por este representado era incorporado por aqueles que o devoravam. Mas o que deve ser destacado no estudo sobre a alimentação entre os fisiculturistas é que estes não consomem – como foi ressaltado – cães e cavalos, animais próximos e mais “sagrados”, porém consomem as substâncias das indústrias farmacêuticas e de cosméticos produzidas para maximizar a saúde de tais animais. Ocorreria, portanto, uma espécie de identificação “totêmica” com o cavalo, por exemplo, o mais representativo. Tal processo coincide com o uso de produtos veterinários destinados a eqüinos. Assim, se não comem cavalos para adquirir sua força, parece que associam o uso de vitaminas, anabolizantes, pomadas e xampus para tais animais como um meio de conquistar a força inerente a estes: “Eu tomo aminoácido p’ra cavalo... já tomei 210 também Equifort [anabolizante para eqüinos] e fez efeito... é muito mais forte que o de gente, te dá muito mais força...” (Carlos. 24 anos. Fisiculturista). Ainda: “De vez em quando eu arranjo Androgenol com um cara lá do Jockey, é p’ra cavalo, né?! Tu usa o efeito é violento... também tomei vitamina p’ra cavalo o Potenay, dá o maior gás, porque tem anfetamina também...(João. 27 anos. Fisiculturista e lutador de jiu-jitsu). Ou: “o remédio p’ra cavalo é melhor é muito mais forte, pô tu toma uma ampola de Equifort nem se compara... porque vem mais que as de gente... as vitaminas, os aminoácidos também...são muito mais fortes que os comuns, cê fica com uma força de animal, cara (Pedro. 22 anos. Fisiculturista e lutador de jiu-jitsu) Nas academias, além de ser comum o uso destes produtos para cavalo 62, ainda ocorre o uso de outros por parte das mulheres e dos homens como xampus e pomadas para dor, pois dizem que o efeito é mais rápido e forte fazendo a dor “passar logo e o cabelo ficar mais forte e brilhante como a crina de um cavalo”. Segundo pesquisas médicas a única diferença entre tais produtos e aqueles direcionados para seres humanos é a dosagem maior e o menor cuidado higiênico relacionado às embalagens o que ressalta o aspecto simbólico da utilização de medicamentos e produtos da indústria da saúde destacada por Dupuy e Karsenty (1979:191-192): “encontramos aqui uma problemática que não é de modo nenhum a cura. Os medicamentos asseguram um certo conforto 62 - Em 9 de agosto de 2000 a imprensa carioca noticiou a morte em um campeonato de um atleta de 23 anos, Jean Mendonça de Mesquita, lutador de jiu-jitsu, devido a parada cardíaca por causa do uso da vitamina para cavalos denominada Potenay além de anabolizantes. 211 moral, diminuem o sentimento de insegurança, acalmam a angústia, preenchem os vazios... em resumo, ajudam a viver. Mas se o medicamento torna possível o acesso aos benefícios da doença é também, e sobretudo, o seu artesão principal. O consumo de medicamentos ... é um meio de encobrir determinadas faltas. A variedade de posologias, que instituem uma parte do universo temporal do doente... preenchem o vazio e angústia das horas cinzentas que se escoam em direção a uma morte cuja própria existência dos sintomas recorda a vida inexorável. Ao tomar o medicamento o sujeito supera um sentimento de impotência em relação a sua fragilidade constitucional”. Como os fisiculturistas costumam usar uma quantidade significativa de esteróides anabolizantes cotidianamente, os produtos voltados para eqüinos trazem maiores porções provocando a impressão de maior eficácia, devido a esta dosagem literalmente cavalar. Em relação aos aminoácidos e vitaminas para animais, os fisiculturistas algumas vezes compram tais substâncias para quadrúpedes em lojas veterinárias, alegando o mesmo motivo: são mais potentes do que as voltadas para seres humanos, conferindo mais força àqueles que as utilizam. Se não comem cavalos ou cães pitbull, devido a proximidade destes com os humanos no sistema classificatório ocidental, tais indivíduos parecem querer ter uma relação de consubstancialidade com tais quadrúpedes que adotam como efígie de suas práticas. Dieta Forte A alimentação, além de ser necessidade biológica, é um complexo sistema de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos, etc. Pode-se dizer que nenhum aspecto do comportamento humano, à exceção talvez do sexo, é tão sobrecarregado de idéias. Conforme Carneiro (2003), a 212 fome biológica distingue-se dos apetites sendo estes expressões dos variáveis desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas ao curto trajeto que vai do prato à boca, mas se materializa em hábitos, costumes, rituais, etiquetas. Estes hábitos possuem uma intrínseca relação com o poder. A distinção social pelo gosto, a construção dos papéis sexuais, as restrições e imposições dietéticas religiosas, as identidades étnicas, nacionais e regionais são todas perpassadas por regulamentações alimentares ( Bourdieu, 1979; Fry,1982; 2001). No primeiro dia de aula em uma das academias do bairro de Copacabana, após ser apresentado ao professor e ter enfrentado uma bateria de perguntas a respeito das minhas práticas nas academias anteriores, meus objetivos com relação à forma física e exercícios que havia realizado até então, foi me indicada uma dieta, feita ali na hora, escrita à mão pelo próprio professor que consistia nos seguintes itens: Café da manhã (desjejum): 10 claras de ovos cruas, 10 colheres de aveia (flocos finos), 2 bananas, 1/2copo de leite desnatado c/ 10 gotas de adoçante. Lanche: 100g de batata cozida na água e sal (pouco). Almoço: 150g de macarrão na água e sal, 150g de peito de frango (grelhado). Lanche: gelatina diet (à vontade). Jantar: salada de brócolis, agrião, cebola, tomate e alface, 1 lata de atum na água e sal. Lanche: gelatina diet (à vontade). A seguir o professor indicou a seguinte pirâmide (ou ciclo) de esteróides: 213 seg ter quar qui sex 1a 1ampôla semana Dura63 2a 1ampôla 1ampôla semana Dura Deca64 3a 1ampôla 1ampôla 1ampôla semana Dura Deca Dura 4a 1ampôla 1ampôla 1ampôla semana Dura Deca Dura 5a 1ampôla 1ampôla semana Dura Deca 6a 1ampôla semana Dura Além destes sab dom esteróides, foram indicadas as seguintes vitaminas: Supradin, Cewin, complexo B: 1 comprimido de cada, após o desjejum e 1 comprimido após o jantar. O professor me entregou o papel com a dieta e o ciclo de “bombas” dizendo que se eu seguisse suas instruções ficaria com o corpo do Schwarzenegger. Peguei a “receita” e, um pouco assustado, tentei dizer-lhe que não era meu objetivo virar um fisiculturista, mas apenas fazer exercícios e pesquisar, pois era antropólogo e queria entender aquele grupo. Demonstrando um pouco de decepção me mandou então guardar a dieta porque eu poderia “mudar de idéia”. Disse que se eu não queria usar os anabolizantes – que ele vendia – podia ao menos fazer a dieta que era para “secar”, e começou a me indicar os exercícios dizendo que não era costume na academia escrever 63 64 - Durateston. - Decadurabolin. 214 séries deste tipo para “não viciar o aluno”, já que cada dia seria um exercício novo que ele passaria na hora. Esta indicação de dieta e esteróides anabolizantes para iniciantes é um breve indício das regras alimentares que regem o cotidiano dos bodybuilders. Interessante se faz observar o papel dos alimentos “brancos” considerados muito ricos em proteínas e carboidratos: peito de frango, peixe, macarrão, batata, banana, clara de ovo. Estes alimentos são consumidos em grande quantidade pelos fisiculturistas. São “sagrados” e sua presença é indispensável já que, conforme dizem, as proteínas, presentes em carnes junto com os carboidratos, retirados de massas, banana e batata, “são fundamentais para fazer crescer o músculo”. Como essa dieta era para um iniciante, e tinha o objetivo de emagrecer rapidamente o usuário, a carne vermelha estava ausente. Porém, em dietas de crescimento muscular que eles denominam off season, o consumo de carnes e massas de todos os tipos é incentivado levando alguns a comerem alguns quilos de carne e macarrão por dia, além das dúzias de claras de ovo. Sabendo disso, a indústria dos suplementos alimentares criou substitutos em pó – praticamente sem gosto – para substituir quimicamente tais alimentos. Entre os mais usados estão suplementos denominados Creatina e a Albumina, nome científico vendido com nome fantasia por várias marcas da indústria nutricional. Percebi, durante os anos de trabalho de campo, que a dieta de um fisiculturista tem importância fundamental no seu sistema simbólico e, portanto, ocupa um lugar ímpar no seu cotidiano não apenas extensivamente (durante o tempo que ele adota), mas intensivamente ( a radicalidade). O fisiculturista adota uma dieta radical que comporta a ingestão de inúmeros suplementos – cada vez mais “aprimorados” pela indústria – e proteínas em grande quantidade. Chegam a consumir até 9000 calorias por dia – três a quatro vezes mais que uma pessoa comum, quando em fase de construção da muscularidade. Por outro lado, reduzem drasticamente a alimentação quando necessitam emagrecer. Em “fase de crescimento” realizam, de duas em duas horas, refeições que chegam a somar uma dúzia de clara de ovos (ou albumina, clara de ovo em pó desenvolvida pelos laboratórios de 215 suplementação) - e um quilo de carne diárias – em geral peito de frango -, além dos carboidratos; em geral macarrão puro na água e sal. Alguns dias antes dos campeonatos, deixam de comer sal e tomam laxantes e diuréticos com o objetivo de reduzir a quantidade de água no tecido subcutâneo para que a musculatura seja ainda mais ressaltada. Não raro, sofrem vertigens e desmaiam devido a falta de água e sais minerais que produz quedas na pressão arterial e arritmia cardíaca. Para reforçar o cardápio utilizam, como foi dito, vários produtos para suplementação como farelos e comprimidos – em geral maiores do que o tamanho de um comprimido comum - derivados de alimentos, que em geral são batidos com leite desnatado ou adicionados à água. Tal tipo de dieta além de produzir uma grande massa muscular reduz sensivelmente a porcentagem de gordura corporal. As taxas chegam a se estabilizar entre 2% e 5%, contra 18% de um indivíduo comum do sexo masculino. Contudo, para que isso aconteça, a dedicação total aos exercícios deve ser praticada; estes envolvem séries de musculação com aeróbica que implicam levantamentos contínuos de pesos de até meia tonelada, exercícios para as pernas. Para trabalhar essa parte do corpo, os fisiculturistas chegam a fazer agachamentos – exercícios de abaixar e levantar com pesos nos ombros – com até 300 quilos. Com um braço chegam a fazer 40 repetições com pesos de 45 quilos. Tudo isso aliado ao consumo freqüente de esteróides permite a esses homens adquirirem até 7 quilos de músculos ao fim de um mês. Estes excessos levam alguns à morte. No ano de 2003 a Confederação Nacional de Culturismo registrou cinco casos graves envolvendo usos de drogas. Dois destes culminaram em morte 65. Referindo-se à dimensão cultural dos hábitos alimentares, Sahlins (Op.Cit.) aponta para a centralidade das carnes na dieta norte-americana e seu aspecto simbólico relacionado à força e à virilidade. Segundo o autor, utilizando as pesquisas de Benveniste, a associação simbólica entre a carne e a força indica a ampla difusão social que tem tido este código da comida, que parece originar-se da identificação indo-européia do boi com a virilidade. Fischler (1979) denomina tal processo presente em diversas culturas de 65 - Revista Veja. 22 de Outubro, 2003:103. 216 “contaminação analógica”, ou seja, a concepção de que a ingestão de determinados alimentos transpõe as propriedades e virtudes destes alimentos para aqueles que os ingerem. Esta apologia da carne remete, em contraste, aos seguidores da alimentação natural, os chamados “naturebas” que não ingerem carne e buscam uma dieta da leveza, com a presença de muito verde e frutas “molhadas”66. A análise desta dicotomia tem levado alguns a associarem a alimentação natural à série natural-feminino-leveza, em contraposição à série carne-masculinidade–força–virilidade, opondo o corpo feminino à força e associando a alimentação natural estritamente à apresentação do corpo como objeto de gozo para o outro, sujeito de sedução, e não como produtor de energia (Lifschitz,1997). Se esta classificação a princípio faz sentido, não resiste porém quando confrontada com a realidade dos fisiculturistas, pois se a feminilidade está também entre eles associada à fraqueza – da mesma forma que o alimento muito leve – não é apenas ela que se apresenta como sujeito de sedução. Ao contrário, toda a construção da força, da virilidade e da muscularidade está centrada neste processo, antes julgado como pertencente ao mundo da feminilidade que dava muita importância a aparência do corpo em contraposição à força inerente ao mundo masculino. Se isto foi verdade antes, atualmente a aparência deve estar revestida de músculos para fazer o corpo atuar como objeto de sedução. Se a carne, e tudo que dela é derivado, é vista como uma espécie de alimento sagrado na dieta dos bodybuilders, a gordura é tida como a maior vilã, símbolo máximo do mal e do profano. Carnes são bem vindas, mas carnes pesadas e viscosas, não. A carne de porco - e todos os derivados de suínos é, portanto, evitada ao máximo, como símbolo maior de impureza. Em seguida vêm o álcool. Se os fisiculturistas não adotam a extrema leveza dos “naturebas”, por sua vez não absorvem de forma alguma qualquer tipo de alimento junkie. As carnes não devem ser gordurosas, nem fritas. A fritura deve 66 - Interessante ressaltar que os gregos considerados, não raro, modelos maiores de perfeição física e criadores das competições olímpicas, quase não consumiam carne, centrando, assim como os romanos, mais tarde, sua alimentação na tríade: pão, azeite de oliva, vinho. A carne consumida era a de peixe. O elevado consumo de carne era visto, pela cultura greco-romana, como um hábito dos chamados povos bárbaros – em Roma germânicos e eslavos, principalmente – que de fato consumiam carne suína e bovina em quantidade significativa. (Flandrin & Montanari, 1998; Carneiro, 2003). 217 ser banida do cardápio. Peso e leveza devem estar equilibrados referindo-se a uma racionalidade na qual impera tabelas nutricionais. Neste critério classificatório, a tradicional compreensão antropológica elaborada por Mary Douglas (1976) - que ressalta a proibição do consumo de carne de porco entre os hebreus porque no sistema classificatório deste povo o porco apesar de ter patas fendidas não é ruminante – deve ser acrescentada à descoberta pela medicina dos problemas de saúde causados pelo consumo de gordura, fato que produziu uma demonização da adiposidade. Além disso, a descoberta dos micróbrios provoca nova forma de classificar o que é limpo e sujo, dando feição à higiene contemporânea e ao higienismo, conseqüentemente. Ocorre, neste movimento tipicamente ocidental, uma verdadeira revolução classificatória e dos sentidos que vai relacionar a sujeira às classes baixas. A partir do século XVIII, a palavra limpo começa a adquirir conotações morais, passando a significar também distinção, elegância e ordem. A limpeza das coisas passa a indicar limpeza de alma. A partir dessas novas representações sociais, as autoridades resolvem empreender uma espécie de cruzada de desodorização e de limpeza com o objetivo de banir as imundícies que uma sociedade cada vez mais hierarquizada tolerava cada vez menos67. A alimentação não vai escapar a essa fúria higienizante que surge na época moderna conformando uma nova weltanschauung dietética (Rodrigues, 1980; 1995; 1999). A carne de porco passará a ser vista com suspeita devido ao habitat do animal. Soma-se a isso o desenvolvimento dos estudos nutricionais e de fisiologia que condenarão a ingestão excessiva de gordura. As culturas ocidentais no século XX passam a demonizar a gordura. Conseqüentemente o status do gordo muda: 67 - De acordo com o trabalho de Attali a percepção dos odores e da limpeza até o século XVIII diferia muito do que a cultura atual considera saudável (1979 Apud:. Rodrigues, 1999:112): “o ambiente urbano do século XVIII ainda era predominantemente o da cultura medieval: o da carniça, do estrume de animais que circulavam dentro do perímetro urbano, dos restos de alimentos, do sangue que escorria pelos cantos ou que permanecia estagnado nas poças, dos cadáveres d e grandes e pequenos animais, dos fedores dos sebos sendo derretidos, dos matadouros dentro das cidades, provocando febres pútridas, dos hospitais desencadeando gangrenas úmidas cujas feridas não cicatrizavam, dos cemitérios empilhando dejetos e corpos, dos açougues, dos cortumes, das cozinhas coladas umas as outras, dos excrementos lançados às vias públicas...” Ainda citando O Perfume de Patrick Susskind sobre a população urbana no Século das Luzes (Rodrigues 1999: 112): “reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje... os homens [e mulheres] fediam a suor e a roupas não lavadas; sua boca fedia a dentes estragados, seu estômago fedia a cebola e, o corpo, quando já não era mais bem novo, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas....fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda...pois à ação das bactérias, no século XVIII, não havia sido colocado ainda nenhum limite...” 218 “ Há um século, nos países ocidentais...os gordos eram amados; hoje, nos mesmo países, amam-se os magros. No tempo em que os ricos eram gordos, uma rotundidade razoável era muito bem vista. Ela era associada à saúde, a prosperidade, à respeitabilidade plausível, mas também ao capricho satisfeito... a magreza não sugeria mais do que a doença(o definhamento), a maldade ou a ambição desenfreada” (Fischeler, 1995:78). Se, no passado, o gordo era símbolo de positividade no sistema classificatório das culturas ocidentais, desnecessário dizer que atualmente “as silhuetas obesas atraem apreciações bem negativas” como as de “preguiçoso, trapaceiro, sujo, mau, feio, besta, etc.” (Idem : 70). O repertório discursivo médico, mutatis mutandis, dá sua contribuição para a manutenção dessa condição simbólica lipofóbica. Neste processo, como indicou o trabalho de Boltanski (1979) sobre o discurso dos operários a respeito da doença e do corpo, o discurso dos fisiculturistas e freqüentadores assíduos das academias de musculação é construído a partir de categorias advindas dos discursos médico-científicos. Estes discursos de especialistas não são, na maioria das vezes, claramente compreendidos pelos praticantes de atividades físicas das instituições de bodybuilding que articulam seu próprio discurso à maneira de uma bricolage, com conceitos e categorias médico-nutricionais. Confrontados sobre a clareza dos significados dos discursos científicos muitos demonstraram ter uma interpretação bem própria das categorias científicas: “Bom, eu sei que a proteína ‘tá na carne branca e faz a gente crescer massa muscular, é limpa, não engorda... o carboidrato ‘tá na massa do macarrão e do pão, que tem que ser integral... tudo isso faz crescer massa... já a carne vermelha é mais pesada, não é muito legal. Comer carne vermelha de vez em quando até vai, mas não é legal comer sempre, porque ela tem 219 gordura e, por isso, não é tão limpa quanto a carne de peixe. (Carina. 18 anos. Estudante). Também : “a carne de porco é suja, tem gordura, porco é bicho sujo, come tudo que é sujeira, é um urubú sem asa... vive na lama, na sujeira, tá cheio de coisa impura. Já a carne branca, não, é mais leve. Um peito de frango é limpo, não tem sujeira, o bicho é tratado só com milho e ração, é limpinho, que nem o peixe que vive na água, não tem gordura, não come porcaria, é pura proteína, sem impureza. Já a carne de vaca não é tão suja que nem a carne de porco, dá p’ra comer se você selecionar as partes, tirar as partes gordas, a vaca não é muito suja, nem é muito limpa, né?! De vez em quando não tem problema comer um bife grelhado.” (Paulo. 27 anos. Fisiculturista) Ainda: “a proteína é seca, forte, pura e faz crescer... a carne branca ‘tá cheia de proteína e não faz mal, não engorda... a gordura é a pior coisa que tem. Mata. E além de matar é feio, sacou? Tu vê aquele cara barrigudo com aquelas banhas moles...é horrível! E aquela mulher cheia de pneu e culote, banha pura...é o retrato da morte! [risos] O cara assim só come porcaria, lixo! Bacon, hamburguer, fritura, tudo que é dejeto alimentar... Olha, vou te dizer uma coisa cara, não adianta malhar que nem um maluco, o dia inteirinho e comer gordura, porcaria, sujeira... a maior parte dos resultados está na alimentação. A gente é o que a gente come”. (Edson. 30 anos. Advogado). 220 Nas classificações alimentares dos bodybuilders o aspecto gorduroso dos alimentos toma forma, por vezes, de mal supremo, que deve ser combatido e evitado por aquele que quer ser considerado belo e saudável. Nesta concepção, os animais que comem coisas consideradas impuras tendem a transmitir essa impureza em forma de gordura para aqueles que os comem. O porco é, sem dúvida, o maior vilão, tendo ao seu lado todo tipo de fritura. Já a carne bovina aparece como meio termo, nem muito impura, nem muito limpa, dependendo da parte do animal que é consumida. O frango, ou a galinha, também, apenas o peito é apreciado por ser considerado “seco”, branco e sem gordura, outras partes sem ser o peito não são muito apreciadas. Já o peixe é símbolo de pureza e limpeza, por viver na água e, de acordo com os informantes, “ não comer porcaria”. Desta forma, é possível perceber que, paralela a toda categorização científica presente no discurso sobre a alimentação, existe outra categorização que retira da primeira determinados termos para organizar um sistema discursivo com uma lógica que associa a sujeira e a impureza da carne à umidade, ao peso no estômago e à lama (o porco), sendo a gordura e sua “moleza” ligada diretamente aos estados e condições execráveis de saúde expressos nessa lógica pela própria sujeira. Já a condição de pureza do animal que serve para o alimento excelente é aquela, segundo os informantes, relacionada à água, à leveza e às cores claras (carnes brancas) e à ausência de gordura (peixe), sendo o meio termo representado pela carne do frango e da vaca (algumas partes do corpo destes), animais que vivem em terra seca, um mediador nestes dois pólos. 221 Porco (-) Vaca e frango Peixe (+) Impuro Partes puras/impuras Puro Gordo Nem gordo/nem magro Magro Carne “pesada” Carne de peso médio Carne “leve” (dependendo das partes) Lama Terra seca Água Partes sagradas e partes profanas Profano Sagrado Camporesi (1996), escrevendo sobre as mudanças culinárias na Europa, mostra que quanto mais a cultura se racionalizou no Ocidente, mais horror a “carnes viscosas e pesadas” ela passou a ter. A culinária, leve, frugal, com legumes, verduras e carnes brancas tomou o lugar dos pratos assados e dos banquetes pantagruélicos que passaram a representar os vícios da alma. A leveza à mesa e a ausência da gordura passaram a ser sinal de bom gosto e inteligência entre as classes superiores. Talvez processo parecido ocorra entre os bodybuilders que buscam a amplitude da forma e a limpidez da imagem como símbolo de excelência e status social. Contudo, como foi visto, a tese da ascese não basta para explicar a formação da cultura ocidental capitalista, já que esta convive com significativo e crescente consumismo que leva à obesidade grande parte das populações de diversas regiões do mundo atual. A tese da ética romântica do consumismo, muito bem sustentada por Campbell (Op. Cit.), parece de fato estar presente naqueles momentos festivos em que os bodybuilders, após meses de dietas rígidas, se entregam a verdadeiras orgias alimentares, consumindo em um dia ou uma noite a maior quantidade possível dos alimentos que lhes é proibido durante a maior parte de seu tempo. Contudo, o que deve ser destacado, na alimentação bodybuilder, é sua estrutura simbólica que pode sugerir alguns aspectos sobre a época que estamos vivendo. Se a dietética medieval tornou-se, por um lado, com o 222 gradativo processo de racionalização que a cultura ocidental produziu, gastronomia, uma ciência do gosto e do preparo dos alimentos, por outro, o aspecto hedonístico da ética romântica levou à oficialização da gula (Flandrin, 1998). Mas o simplismo não deve ser aceito: a organização das chamadas boas maneiras à mesa na Europa (que está relacionada à gastronomia, mas não necessariamente) representou, por outro lado, a tentativa de consolidar o processo civilizatório (Elias, 1990), ou seja, um processo que envolveu ética e etiqueta “valor interno, moral, aspecto externo, formal, da conduta do homem em suas relações com seus semelhantes” (Romagnoli, 1998:496). A comensalidade é, par excellence, o lugar da sociabilidade assim como o espaço onde se encontram o corpo e a alma, a matéria e o espírito, a exterioridade da etiqueta e a interioridade da ética. Em várias culturas o comportamento comensal é regido por uma dupla preocupação; trata-se de controlar e conter os gestos, os movimentos do corpo e de zelar pelos movimentos do espírito e guiá-los, com o objetivo ético e social que as circunstâncias exigem para que a solidariedade seja mantida (Lima, 1986;1996; Lévi-Strauss, 1991). Tal perspectiva, no Ocidente do século XX, mais especificamente depois da Segunda Grande Guerra, sofre uma mudança radical relacionada ao sistema culinário e às chamadas maneiras à mesa, consolidadas a partir do século XVII. A industrialização da alimentação e sua massificação consumista produziram o que Fischeler (1998) denominou MacDonaldização dos costumes alimentares; o surgimento dos fast-foods que inovaram, dentre outras coisas, pela aplicação do taylorismo à alimentação. Esse processo, que não se limitou apenas à produção de sanduíches, mas se estendeu para as pizzas e comidas orientais, caracteriza-se pela produção mundializada e o consumo em série, homogeneizante e padronizante que retira não apenas a arte da culinária como enfraquece o aspecto solidário dos ritos comensais. A partir da década de 80, a este processo, marcadamente no Brasil, associa-se o surgimento dos restaurante a quilo seguidores do mesmo processo e que tem como característica justamente a descaracterização dos pratos e das identidades culinárias pela mistura rápida e sem cerimônia de alimentos por vezes considerados tradicionalmente antagônicos formando uma 223 espécie de “pastiche culinário” (Carneiro, 2003:109). A haute cuisine não se furta, também, ao processo de expansão do atual capitalismo globalizado padronizando, através da propaganda e do marketing, as marcas dos chefs mais conhecidos que caracterizam a distinção social através da prática artística da produção de suas cozinhas empresas. Este processo específico presente na atual conformação alimentar das sociedades globalizadas foi denominado por Fischeler de “gastro-anomia” ( Op. Cit. : 851). Embora os fisiculturistas não sejam adeptos de tais cozinhas ou fastfoods, devido o regime alimentar que seguem a maior parte do ano, ocorre entre este grupo social algo similar, que talvez represente o agravamento desta anomia culinária. Se a industrialização dos alimentos e sua produção em série representa um processo de racionalização do gosto e descaracterização da comensalidade solidária, o surgimento dos suplementos alimentares – quase alimentos-remédios – representa o acirramento deste processo. Pílulas e variedades de pó de todos os tipos: creatina, albumina, L-carnitina, BCCA, representam mais que o taylorismo aplicado à alimentação. Representam o desmembramento científico das cadeias de proteínas e a ultrapassagem do gosto, e do seu cultivo, pela sua mecanização industrial. Assim, está estabelecida a aceleração radical do consumo alimentar que não passa mais nem mesmo pela mastigação. É o reforço da falta de tempo, do louvor à rapidez e ao individualismo que descarta qualquer sociabilidade para se alimentar. De fato, são os olhos que comem, pois se tais “alimentos” nem mesmo gosto possuem, é a propaganda e o marketing que sustentam a crescente venda de tais substâncias produzidas em laboratórios. Sustentam tal expansão mercadológica por intermédio de poderosas fotos tecnicamente publicitário convincente. Tal discurso e linguagem mitológico-científico promete milagres da forma física àqueles que se alimentam com tais produtos da indústria de suplementos sugerindo que a busca pela otimização da forma associada a exaltação da saúde talvez represente uma espécie de reforço da gastro-anomia. 224 Publicidade e Forma A publicidade, portanto, tem exercido importante papel na configuração das práticas corporais presentes nas academias de fisiculturismo. Ela deve ser compreendida aqui enquanto sistema de idéias que circulam, de forma intermitente, no interior de um outro sistema: um grupo social específico. Seu estudo pode ser o caminho para o entendimento de modelos de relações e comportamentos, além de expressão ideológica referida a determinadas práticas coletivas. Tal estudo, do consumo e da “indústria cultural”, pode apresentar certas características fundamentais inerentes às sociedades indústriais modernas e capitalistas, servindo também para levantar algumas formas pelas quais um determinado grupo social retrata, ao menos em parte, a si próprio por intermédio dos anúncios. Estudada enquanto sistema simbólico que pode produzir e reproduzir determinado grupo e é por ele produzida e reproduzida, a publicidade, ou a propaganda, pode ser analisada antropologicamente enquanto mito. As valiosas referências construídas e organizadas no trabalho de Rocha (1995), inspirado em Sahlins (1979), podem servir de demarcações teóricas para a elaboração de novas análises sobre o papel da propaganda e do marketing na construção do corpo entre os freqüentadores assíduos de academias de ginástica e musculação. Espelhando uma série de representações sociais por intermédio dos símbolos que articula, a publicidade, ao realizar tal processo, produz uma espécie de sacralização de determinadas dimensões do cotidiano, introduzindo “magia” em um dia-a-dia burocratizado. Parece ser quase impossível escapar da força que ela exerce sobre o mundo atual. Não seria incomum a cena de um indivíduo fatigado, após uma longa rotina de trabalho desgastante (muitas vezes retido em um trânsito lento de uma grande metrópole), se deparando com estampas reluzentes de corpos perfeitos e produtos que prometem, nos outdoors, a realização dos seus sonhos e desejos mais profundos de lazer, liberdade e sucesso pessoal. Nesta situação corriqueira, que se realiza a cada instante da vida nos grandes centros urbanos, configura-se uma espécie de reencantamento do mundo, onde os 225 sonhos podem ser realizados, de acordo com os anúncios, através da simples utilização do cartão de crédito (Rocha,1995). Paradoxalmente, essa espécie de pensamento mágico68 (Lévi-Strauss, 1975a) se concretiza em um contexto social específico no qual o raciocínio científico supostamente é soberano. Como ressalta Rocha, ”nesse jogo de representações o cotidiano se faz vivo, se faz sensação, emoção, mágica” (Op. Cit.:26). Longe de ser uma instância afastada do pensamento peculiar às sociedades complexas, tal pensamento mágico parece estar presente até mesmo nas instâncias mais particulares das mesmas. Enquanto sistema simbólico que (re) introduz a dimensão mágica no contexto burocratizado do capitalismo, a publicidade passa a organizar essa realidade, classificando-a através dos valores presentes nos produtos que vende, hierarquizando os grupos sociais, dividindo-os em consumidores de vários tipos e níveis. Consumir torna-se, não raro, projeto de vida, e o status adquirido pelo indivíduo apresenta-se como proporcional a sua capacidade de comprar produtos e tudo aquilo que a eles estiver equacionado. Este apelo do consumo, envolto nas brumas mágicas do marketing, dimensão fabulatória burguesa, forma um sistema no qual a própria dimensão de desencantamento do mundo - a qual Weber tão bem conceituou - compactua, permitindo o reencantar do mundo desencantado naquele processo destacado por Campbell (2001) sobre a importância do surgimento da ética romântica para a consolidação do capitalismo. Estes dois pólos – ascetismo e hedonismo -, longe de se excluirem na conformação social capitalista, se complementam; estando a via do rencantamento associada diretamente ao consumo, à promesse de bonnheur maximização material equacionada à capacidade de compra e à (Sahlins, 1979). A lógica do lucro e da expansão consumista retratadas no apelo dos produtos configura ética pragmática e utilitarista que perpassa o cotidiano e as relações sociais transformando em 68 - O uso deste conceito clássico elaborado por Lévi-Strauss mereceria um estudo mais aprofundado. É comum sua utilização indiscriminada sem que se destaque ou discuta o que filosoficamente é considerado pensamento e raciocínio. Neste contexto específico utilizo o conceito do autor como sinônimo de raciocínio e não como pensamento no sentido tradicional filosófico do termo que confere a este uma forte carga crítica, constituindo-o como visão ontológica, ética, estética, metafísica e antropológica e não apenas como raciocínio ou funcionamento lógico do espírito humano, já que o pensamento subsume a lógica, mas a lógica não subsume o pensamento. 226 produtos os próprios seres humanos e seus sentimentos e vice-versa. Tudo é passível de ser vendido e comprado num processo de imersão em desejos, sonhos e mitos que reencantam o que seriam relações frias de troca comercial, conferindo ao processo de venda e compra um estatuto ilibado de avanço nas práticas sociais. Reencantamento do desencantado. Essa mercado-lógica presente na cultura ocidental tende a criar uma “mediana e comum sabedoria sociológica” (Sahlins, Op. Cit.: 187) que toma como pressupostos verdadeiros de análise categorias que são mais produtos de ficções coletivas do que de crítica científica. A concepção de busca pela maximização material transborda das práticas cotidianas para o fazer sociológico que adquire categorias do senso comum como instrumento de análise social. A economia, e as relações sociais em geral, apresentam-se nessas análises, como uma arena de ação pragmática na qual as necessidades biológicas dos indivíduos se degladiam em um processo de produção material da sobrevivência dos melhores. A sociedade, sob este ponto de vista, seria o resultado formal destes embates. O indivíduo, tomado como autônomo em seus julgamentos e escolhas racionais, visaria sempre a maximização dos lucros e de seus interesses pessoais (Elster,1994). Tais abordagens dificilmente se detém na gênese, e conseqüentemente, na imposição cultural do que é considerado necessário por tais indivíduos, ou seja, na produção social das sensibilidades, necessidades e sentidos individuais, pois “nenhum objeto, nenhuma coisa é ou tem movimento na sociedade humana, exceto pela significação que os homens lhe atribuem” (Sahlins, Idem: 189). Esta significação, tida como lucro em última instância, é produto de um contexto que a constrói como tal e que, ao construí-la, reproduz a sua dimensão social na própria prática dos indivíduos que a articulam. A ação se realiza, portanto, dentro de um determinado contexto cultural, através de sistemas simbólicos que viabilizam os itens com os quais o indivíduo confere o sentido a tais ações. Tal sentido é (re)produzido de forma inconsciente por tais indivíduos, já que os itens constitutivos da cultura são apreendidos também de forma inconsciente através da socialização (Bourdieu, 1989). Dizer que todos os indivíduos possuem reflexividade em seus atos (Giddens, 1991), ou escolha 227 racional, é uma espécie de meia verdade, sempre se realiza dentro de uma pois a existência desta escolha margem de liberdade conferida estruturalmente, sendo realizada com itens deste sistema simbólico (estrutura) e, portanto, coletivo. Itens que apresentam-se como inconscientes e atuam produzindo desejos e agenciamentos individuais e coletivos. Esta escolha racional e reflexiva é sempre circunstancial e variável e, na maioria das vezes, superficial, já que de fato se baseia na lógica da maximização dos processos imposta pela estrutura, mas não se detém na gênese desta lógica. Utilizar apenas a lógica da pan-reflexividade e da escolha racional para explicar a realidade social é aplicar um raciocínio escolástico à mesma (Bourdieu, 2001). Este pensamento (escolástico), pertinente à Idade Média e inspirado nas tentativas de Aristóteles, na Antigüidade, de explicar a existência do movimento no Universo, pode ser exemplificado, grosso modo, da seguinte forma: buscando compreender o que faz uma folha ficar amarela, Aristóteles dizia que a mesma tinha a capacidade de amarelecer, ou a potencialidade de tal ato, ou seja, este ato (se tornar amarela) já existia em potência (formalmente) na própria folha verde. Nota-se que esse raciocínio não se detinha na explicação da produção, na gênese do processo de organização das propriedades e substâncias que compõem uma folha. Da mesma forma, explicar a sociedade apenas pelas superficiais intenções dos indivíduos sem perceber a gênese, a construção social destas intenções (que por sua vez, produzem as próprias individuações), é conceber uma explicação assintótica que, portanto, quase nada explica. Por outro lado, conceber todos os indivíduos indiscriminadamente como autômatos, títeres de articulações formais que existem fora deles e os produzem em sua plenitude é recair no mesmo erro escolástico por não explicar, desta vez, a gênese destas estruturas formais que passam a ser concebidas como substâncias que pairam acima da ações sociais. O estudo da publicidade, como foi dito, concebida como um sistema simbólico, além de contribuir para a compreensão do grupo social específico dos fisiculturistas, através da tentativa de esclarecimento dos vetores culturais que incidem sobre esse grupo ao mesmo tempo que por eles é produzido, 228 pode contribuir também para o aprofundamento de algumas outras questões referentes à teoria social. Mito e Mídia Através do avanço das pesquisas antropológicas, o mito deixou de ser tratado como a dimensão exótica, atrasada, fabulação do “outro” que viveria fantasiando o mundo por não ter o raciocínio científico elaborado. Com a antropologia, o mito passou a ser compreendido, não apenas como característica das sociedades ditas “primitivas”, mas também como parte integrante do tecido das sociedades contemporâneas industrializadas e, como tal, meio para o entendimento de suas dinâmicas. O método de análise estrutural aplicado aos mitos permitiria extrair deles a forma lógica invariante, a estrutura permanente relacionada simultaneamente ao presente, ao passado e ao futuro (Lévi-Strauss, 1975; Barthes, 1993; Carvalho,1995). A chamada, por Adorno e Horkheimer, “indústria cultural”, surgida no século XX, vem intermediando o acesso dos seres humanos a um universo sem limites de acontecimentos e plasticidade mítica, esmaecendo as fronteiras que demarcam o real e a fantasia. Por vias singulares, a percepção de Marx (1983) sobre o reencantamento do mundo, através do caráter fetichista da mercadoria, parece se efetivar atualmente. Imagens, sonhos e desejos povoam os interstícios da coisificação da vida cotidiana conferindo a esta produção um caráter metafísico que encobre esta própria coisificação. Os “produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana” (Op. Cit.:71). Os objetos materiais, no capitalismo, possuem certas características, obviamente conferidas pelas relações sociais, que parecem lhes pertencer naturalmente. Neste processo, as próprias relações sociais passam a ser vivenciadas sob a forma de relações entre mercadorias ou coisas. Assim, parece que na atual conformação capitalista hegemônica poucas barreiras se contrapõem à venalidade que invadiu as próprias fronteiras do corpo humano. Se atualmente há uma espécie de sacralidade na manutenção 229 desse corpo em instituições da forma, corpo envolto e tocado pela utopia da beleza e da saúde, há, simultaneamente, a dessacralização de suas partes entendidas como peças de um sistema mecânico, mercadoria ou mesmo moeda de troca. Se, em inúmeras sociedades “primitivas” – e mesmo no passado das sociedades complexas de modelo europeu, - o comércio dos corpos inexistia devido ao fato destes serem identificados à pessoa e, portanto, excluídos da circulação mercantil, estando situados na economia dos bens simbólicos, que supõe ou produzem as relações duráveis e totais entre as pessoas (portanto totalmente opostas àquelas relações temporárias e estritamente técnicas entre os agentes indiferentes e intercambiáveis que são constituídos pela lógica do mercado), nas atuais sociedades de mercado tal sacralidade, em geral, apresenta a tendência à diluição devido ao próprio processo de busca da maximização do lucro (Simmel, 1983;1989). Nestas, o corpo é tratado como coisa intercambiável à maneira de uma moeda (Bourdieu, 1994), proporcionando não apenas o comércio de suas partes ou de sua beleza, mas de sua imagem. Nesse processo, a linguagem do marketing articula narrativas míticas reencantando a realidade com o objetivo de dela extrair a maior possibilidade de lucro. Tais narrativas possuem caráter estrutural que lhes confere uma espécie de a-temporalidade relacionada à especificidade de acontecimentos na narrativa. Constituindo-se como meta-linguagem, as unidades elementares do sistema mítico não se identificam plenamente com as unidades do sistema que forma a língua - os fonemas – no caso da narrativa mítica, tais unidades – os mitemas – definem-se como frases, que traduzem a sucessão de acontecimentos da narrativa. O jogo das relações entre os mitemas constrói o sentido destas narrativas. Múltiplas versões possibilitadas pela combinação infinita de unidades determinadas e formais. O papel do analista é o de fazer emergir tal estrutura coletiva - enigma simbólico inconsciente para aqueles que a vivenciam (Leal, 1996). Barthes (Op. Cit.) analisou as expressões míticas contemporâneas presentes em capas de revistas, anúncios e reportagens, ressaltando a importância do entendimento de tais narrativas para a compreensão da 230 produção simbólica das sociedades capitalistas. De acordo com o autor, tudo pode se constituir como um mito desde que suscetível de ser julgado como discurso. Tanto o discurso escrito, como a fotografia, o cinema, a TV, a publicidade e o esporte podem servir de suporte para a narrativa mítica e, portanto, como objeto de análise do imaginário pelo antropólogo ou filósofo. O imaginário, no caso, teria a capacidade de semantizar o mundo, simbolizando-o e atuando tanto como arquivo quanto usina (Girardet, 1987; Carvalho, Op. Cit.). Enquanto arquivo poderia ser uma espécie de depositário das imagens ancestrais, espécie de herança cultural perene e profunda, e como usina atuaria como produtor de significados, semantizador do mundo utilizando as imagens invariantes e finitas do arquivo, reciclando-as e produzindo narrativas variantes, ajustadas a contextos e conjunturas históricas específicas. O mito, segundo Carvalho e Girardet, poderia, provisória e sumariamente, ser caracterizado como: 1) narrativa sagrada que se refere ao passado e tem valor explicativo; 2) ilusão, mistificação; 3) conjunto de imagens motrizes que acionam energias de excepcional potência. Esta última característica é a que deve aqui ser ressaltada. Segundo Deleuze e Guattari (1995:17): “ um enunciado realiza um ato... e o ato se realiza no enunciado, as palavras de ordem produzem a, e são produzidas pela, coletividade; neste movimento, os interstícios de todas as informações veiculam ‘palavras de ordem’ que organizam a objetividade e a subjetividade social reiterando o caráter eminentemente social da enunciação. A mídia, neste contexto teórico, assume um caráter singular histórico de expansão da efetividade destas palavras de ordem, constituindo-se como veículo dos ‘agenciamentos coletivos de enunciação’” (:18). Não existe, portanto, neste processo, um sujeito da enunciação ou enunciação individual, mas o efeito-indivíduo é dado pela própria articulação dos enunciados coletivos – as palavras de ordem - que modulam, fazem variar 231 as intensidades desejantes das pessoas constituindo-as enquanto indivíduos que se percebem como tal. Os atos efetuam os enunciados e vice-versa. É o sistema simbólico, com suas imposições e incitações aos desejos e prazeres individuais e coletivos, que administra o socius constituíndo-o e sendo por ele constituido. Ações e paixões afetam corpos constituindo-os enquanto singularidades – efeito-indivíduo. As forças que constituem a sociedade, ou a sociabilização, Vergesellschaftung69, segundo Simmel, têm sempre caráter ambíguo e tenso, pois efetuam-se enquanto incitações às paixões e suas intensidades. As palavras de ordem, os sistemas simbólicos, enfim, os enunciados realizam-se enquanto forças dinâmicas atuantes nas subjetividades individuadas e coletivas. A produção do prazer e da alegria pode, desta maneira, estar, paradoxalmente, repleta de possibilidades de dor e tristeza. As regras, normas, valores e costumes são forças que atuam e constituem, em um feedback incessante, o contexto coletivo. A capacidade repressora destas forças – caráter necessário delas – não se apresenta como tal, mas como aquilo que deve ser feito “por que é bom e traz felicidade”. Os desejos e paixões não são apenas julgados e condenados, mas também são administrados, modulados, incitados (Foucault, 1990). Justamente aí se constitui a singularidade destas forças enunciadoras. Não há, como se pode supor, por parte destas representações coletivas, um caráter de contínua repressão à expressão, ao prazer ou à alegria. Ao contrário, os enunciados produzidos pela sociedade capitalista obrigam, forçam a falar, a realizar gozos, obrigam a apresentação do indivíduo como alegre e eterno consumidor. Um consumo, obviamente, que nunca é alcançado na plenitude. Há o imperativo de se mostrar realizado e feliz. A mídia, que poderia se constituir como forte instrumento de reflexividade e democratização, com a publicidade e o marketing, tem, não raro, se apresentado como instrumento de propagação 69 - Este conceito que, em uma tradução forçada para o português, ficaria sociabilização ou sociação tem a vantagem de indicar o caráter dinâmico da sociedade, composta pelas relacões entre indivíduos e grupos e pelos sistemas simbólicos (subjetivos) que os constituem e por eles são constituídos, compondo-os como tal. Simmel (1983), desta forma, indica o aspecto abstrato e estático que a palavra sociedade carrega e que lhe confere a impressão de entidade metafísica existente fora das relações objetivas. Para o autor, conteúdo e forma social seriam duas dimensões de uma mesma condição interagindo-se de maneira dinâmica. A tradução de Vergesellschaftung feita por Bendix (1986:363) talvez contribua ainda mais para esclarecer o caráter dinâmico de tal conceito: “tendências societárias de ação”. 232 desse processo, produzindo os agenciamentos coletivos que constituem o perfil de nossa época. A definição de Girardet e Carvalho de que o sistema mítico acionaria forças de excepcional potência coaduna-se com a concepção acima descrita que percebe a narrativa mítica, veiculada pelos instrumentos midiáticos, como agenciadora de (dis)posições coletivas, articulando um processo não apenas macro mas também micropolítico. Naturalmente não se pode conceber a mídia como uma máquina que cria a realidade social unilateralmente. Mídia e sociedade não podem ser percebidas como instâncias autônomas. A sociedade moderna é uma sociedade midiatizada e, portanto, há uma interdependência entre as duas instâncias. Esta mídia, ao dirigir-se para uma massa de consumidores, apresenta-lhes imagens que sintetizam anseios e desejos em uma interatividade constante, traduzida em intenções de consumo (Carvalho, Idem ). Desta forma, ela atua como máquina de enunciação que aponta o que deve ser objeto do “olhar” - ou como se deve olhar este objeto - dando o tom da hierarquização, através de uma linguagem espetáculo, a uma dimensão significativa da realidade por intermédio de matérias e anúncios. Muitas vezes, a mídia oculta, sob a capa de neutralidade axiológica da linguagem pseudocientífica e da objetividade informativa, a intenção agenciadora, “recortando” a realidade de forma descritiva de uma maneira que consiga prescrevê-la (Bourdieu, 1998). Por outro lado, ocorre atualmente a tendência de substituir a descrição objetiva dos fatos e acontecimentos por uma narrativa mais emocional, na qual a opinião do veículo (mídia) fica claramente expressa. Esta tendência gradativa de espetacularização do jornalismo não passa do transbordamento da fabulação que sempre constituiu novelas, filmes e publicidade em geral, onde o despertar de emoções, interesses e avaliações é fundamental para o funcionamento do processo de mitificação. Se a tecnologia apresenta a viabilização da novidade, ela, muitas vezes, não veicula o novo. Se uma análise mais detida deste processo de fabulação do mundo realizado pela mídia atual for posto em voga é possível perceber que, estruturalmente, o tráfico de imagens e símbolos sempre se articulou enquanto efetivação do poder (Geertz, 1991; Burke,1994). O que há de 233 singular é que a contemporaneidade, através da mídia, exacerba o tráfico dos indivíduos e coletividades com o simbólico, potencializando tal poder (Carvalho , Ibid.). Através da técnica e da tecnologia publicitária os instrumentos de agenciamento se aprimoram em uma gerência científica das afecções coletivas. As pesquisas qualitativas e quantitativas sondam o imaginário coletivo recolhendo deste arquivo os elementos simbólicos mais efetivos, investindo-os em seus propósitos de consumo específicos. Este processo opera uma modulação da subjetividade que singulariza-se pela eficaz velocidade dos instrumentos de agenciamento da época atual. Mitos da Forma O objetivo aqui é enfocar o consumo de mensagens midiáticas referentes ao universo dos freqüentadores assíduos das academias de musculação, mais especificamente os fisiculturistas. A maioria daqueles com os quais convivemos durante o trabalho de campo consome revistas nacionais e importadas sobre musculação e boa forma (Muscle and Fitness, Muscle Form, Musclemag, Flex, Health and Fitness, entre outras). Há também uma forte circulação entre eles de fitas de vídeo sobre a história de vida e os métodos de treinamento dos maiores ídolos do bodybuilder, como Arnold Shwarzenegger, Dorian Yates, Nasser El Sombaty e Ronie Coleman. Foram analisadas durante um ano, publicações brasileiras e internacionais. Em geral, tais publicações estão presentes nas academias para que os freqüentadores, enquanto exercitam-se em esteiras ou bicicletas ergométricas, possam lê-las, distraindo-se. Em algumas academias elas podem ser emprestadas para o freqüentador. Foram analisados seis números da publicação brasileira (Muscle in Form ), e seis números da americana Muscle and Fitness. Seguindo a via aberta pelo trabalho de Rocha, foram confrontados anúncios das revistas e as histórias de vida dos ídolos nelas veiculadas com a opinião dos receptores, tentando analisar como funciona a mito-lógica presente no pensamento marombeiro. 234 O que menos se consome em um anúncio é o produto. Nele são vendidos estilos de vida, sensações, emoções, relações humanas, visões de mundo, hierarquia e sistemas de classificação. Um exemplo deste aspecto é o seguinte discurso colhido em uma propaganda de suplementos alimentares na revista brasileira Muscle in Form n.25 de 2001 e outro retirado da revista americana Muscle and Fitness de setembro de 1998, respectivamente: “Deseja Aumentar Seus Músculos? A Perfeição Através dos Aminos. Experimente as Fórmulas da SATURN. Maior crescimento exige maior provisão de aminoácidos. Antes e depois dos exercícios, e durante o dia, seu corpo precisa estar abastecido com aminoácidos de alta qualidade. Pode ser difícil obter as proteínas necessárias somente pela ingestão de alimento regular. É por isso que a SATURN criou várias fórmulas para sua conveniência de forma fácil de digerir, para você escolher. Campeões de Musculação usam e confiam nas fórmulas dos Aminoácidos da SATURN mais do que qualquer outra marca.“ ainda: “PROTEIN PLUS. MET-Rx. Engenharia de Nutrição. 46 gramas da proteína metamiosina e apenas 3 gramas de carboidratos por porção! 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Para a Melhor Forma de Sua Vida! Experiência Mundial em Engenharia de Nutrição. Visite-nos. www. met-rx.com.” O primeiro anúncio parece apresentar o seguinte raciocínio: ser musculoso é ser perfeito; para ser perfeito é necessário realizar um ritual de consumo de determinados produtos criados cientificamente e respaldados na pesquisa de laboratório empreendida por uma determinada empresa. O uso dos avanços científicos aparecem como a solução para os problemas e a via para a realização dos desejos; o processo de consumo da substância é realizado, respaldado, por campeões (ídolos) que se tornaram famosos e vencedores devido ao fato de utilizarem tais produtos. Tal anúncio tem a foto de um torso hipertrofiado de fisiculturista, com os braços contraídos, com as primeiras duas frases escritas em amarelo destoando do resto do texto em letras menores, ressalta alguns aspectos constitutivos do imaginário e da mentalidade dos freqüentadores assíduos das academias de musculação ou bodybuilders. Dois itens são ressaltados e estão sempre presentes nos seus discursos: crescer (aumentar músculos) e ter respaldo científico neste processo. Como o motivo central da existência do grupo está radicado, obviamente, no culto à, e no cultivo da, musculatura, quanto maior e mais definido são os grupamentos musculares mais próximo do corpo perfeito está o indivíduo. Neste processo de busca e de transformação da massa corporal o 236 discurso científico, sempre utilizado nos anúncios para reiterar a idoneidade das empresas que produzem e vendem a substância “mágica”, surge como o vetor que confere autoridade, não apenas aos produtos, mas às práticas relacionadas ao consumo dos mesmos. Este discurso “convence” o consumidor da eficácia das substâncias (“aminoácido”, “metamiosina protéica” e o que mais for possível) a serem utilizadas, referindo-se sempre àqueles que são campeões e habitam o panteão dos heróis. E a contradição que parece também surgir daí é que o discurso radicado em categorias científicas, discurso que é produto do racionalismo ocidental, apresenta-se como o meio no qual o reencantamento do mundo se reintroduz no cotidiano, oferecendo, através da articulação de temas sobre experimentos e descobertas, a possibilidade da realização dos sonhos do consumidor. Essa eficácia simbólica tem grande parte de seu respaldo no aspecto discursivo hermético que proporciona à atuação de tais discursos um caráter de sistema de encantamento conferindo àqueles que os proferem uma espécie de mana, de autoridade de especialista (iniciado) em uma profissão; perfil quase xamânico, já que a maioria dos freqüentadores das academias desconhece os meandros obscuros desta linguagem específica. Justamente este hermetismo, repleto de categorias advindas da química orgânica e da biologia, confere a este discurso autoridade e eficácia. É possível perceber tal característica nos seguintes depoimentos: “Eu não entendi nada do que ‘tá escrito aí... só sei que proteína tem na carne e faz o cara crescer... aminoácido também... mas os caras entendem do que fazem! São formados... em química, em educação física...sei lá, numa porção de coisa... são cientistas... estas empresas têm laboratórios de pesquisa, não iam colocar esses anúncios se o que ‘tá escrito aí não fosse verdade... eu já usei esse produto e acho que funcionou... agora é claro que você não vai crescer usando só isso de vez em quando... Eles botam as fotos desses caras grandões aí, mas esses fisiculturistas profissionais que posam aí p’ra propaganda 237 não tomam só isso, e só de vez em quando... (Thales. 28 anos. Estudante). Ainda: “repara só no braço desse sujeito aí [da foto do primeiro anúncio] é um campeão... deve ser o Dorian Yeats, um vencedor! Um atleta desses só consegue chegar ao auge com muita tecnologia, muita ciência do esporte... é suplemento, é anabolizante de todo tipo... Mas é diferente dos caras que são ‘duros’... esses caras aí tomam de tudo que é produto, mas com acompanhamento médico, exame... tem dinheiro p’ra gastar não é que nem a gente não, que sai tomando as coisas sem saber no que vai dar... eles têm todo um conhecimento que tá relacionado à qualidade mesmo do que eles fazem..." (João. 27 anos. Instrutor de academia). O segundo anúncio, destacando a foto colorida em vermelho e amarelo de um grande pote de suplemento alimentar, apresenta forma mais nítida de articulação de categorias científicas (nano filtragem, troca de íon, metamiosina protéica e assim por diante ) reiterando que a empresa que fabrica o produto é de engenharia de nutrição e que “os melhores bodybuilders usam”. Para arrematar em grande estilo, em linguagem dúbia peculiar ao marketing e à propaganda, ressalta que as substâncias apresentadas são para “a melhor forma de sua vida”. Relacionado ao aspecto de exaltação do desenvolvimento científico e tecnológico entre os marombeiros, esses discursos são indícios da existência de “tribos alimentares” detentoras de classificações peculiares da realidade. Enquanto que a tribo dos “naturebas”, seguidores do consumo dos alimentos naturais, tratados e desenvolvidos sem aditivos químicos e não industrializados, sacraliza tudo que é considerado “natural”, conferindo maior eficácia e poder a tudo que não foi “maculado” pelas mãos do homem e pela sociedade bodybuilders, de consumo (Lifschitz, 1997), a tribo dos fisiculturistas ou opera processo classificatório inverso. Entre estes, a 238 industrialização, a tecnologia e o desenvolvimento científico conferem poder e eficácia aos alimentos consumidos e àqueles que os consomem. Em todos os níveis de socialização dentro das academias, a representação de ciência aparece com sensível eficácia. Produtos tecnológicos de última geração e importados dos EUA, Japão ou Europa são amplamente ambicionados. Das máquinas de fazer exercícios aos tênis Nike e Reebok importados, passando pelos métodos de treinamento surgidos no último verão da Califórnia e pelas últimas novidades em suplementos alimentares e anabolizantes saídos dos laboratórios de pesquisa das multinacionais de nutrição e farmácia, a tecnologia é exaltada e o discurso das ciências biomédicas extremamente respeitado, sendo considerado como palavra final na decisão ou resolução sobre qualquer problema ou dúvida. Da mesma forma, ocorre exaltação dos termos em língua inglesa que são utilizados como nomes de academias, rótulos de suplementos e nomes de exercícios de musculação e ginástica (leg press, body pump, pulley). Estes últimos, que poderiam ser traduzidos para o português, não o são. Os portadores, tanto de objetos tecnológicos de última geração, quanto de capital cultural e de competência no campo do fisiculturismo carregam, simultaneamente, uma espécie de poder mágico que faz com que suas descrições da realidade também sejam seguidas como prescrições da mesma (Bourdieu,1996a). O discurso da autoridade não precisa ser compreendido para executar seu poder (socialmente conferido). Ao contrário, o mistério que encerra sua incompreensão pode ser o vetor que mais eficácia lhe proporciona. Mercadorias Classificatórias Lévi-Strauss destacou dois tipos de sistemas de pensamento constitutivos de qualquer grupo social em qualquer época da história. De acordo com o autor, o espírito humano operaria sobre o mundo através de duas espécies de abordagens classificatórias, sendo que uma realizaria suas operações por “intermédio de signos” e a outra “por meio de conceitos” (1975a:40), tendo, porém, os dois sistemas, o mesmo substrato lógico e a 239 mesma função de ordenar o mundo em classes, gêneros, números, graus, hierarquizando o universo e introduzindo na homogeneidade caótica a heterogeneidade da diferença. Eixo articulador de relações, o pensamento que mais operaria por signos seria o pensamento selvagem ou mágico. Neste, tais signos estariam como que “colados” à realidade sem ter a pretensão de serem transparentes à mesma como quer o conceito, relativo ao chamado pensamento científico. O pensamento mágico seria inaprisionável nas mesmas regras do pensamento científico surgido nas sociedades complexas ocidentais. Exemplificando tal posição, o autor considera o totemismo um exemplo clássico de pensamento mágico. Longe de ser uma forma atrasada e inferior de organizar o mundo, ele seria apenas um sistema singular de classificação, paralelo ao sistema científico, conferindo, da mesma forma que este, sentido ao universo e à existência. Por não deixar transparecer, de forma racionalista, suas operações lógicas, o pensamento mágico procuraria manter uma complementaridade entre cultura e natureza. Assim, nos sistemas tribais, por exemplo, a sociedade seria organizada por uma lógica que diferenciaria os seres humanos, identificando-os com determinados elementos da natureza. No sistema científico, ao contrário, haveria a busca de classificar a realidade segregando a natureza nesta classificação. Nos sistemas mágicos ou totêmicos, ao contrário, existiria uma junção entre a natureza e a cultura, pois quando um determinado grupo social, um clã, é identificado a uma planta, animal ou fenômeno natural, mantém com eles relações metafóricas de identidade ao mesmo tempo que se distingue de outros grupos sociais que mantém as mesmas relações com outros animais, plantas e fenômenos. Como cada grupo é equacionado a uma espécie ou fenômeno natural distinto, há a possibilidade de se obter, em um conjunto onde todos são a princípio indistintamente seres humanos, uma distinção social nítida (Rocha, 1995; LéviStrauss, 1976). Segundo um exemplo de Da Matta (1986), se A= ao clã peixe; B= ao clã da onça e C= ao clã do buriti; sendo o peixe animal aquático, a onça terrestre e o buriti um vegetal, então, é pela identificação com estes elementos distintos na natureza que se pode estabelecer a diferenciação dos clãs A, B e C, ou seja, distinguí-los socialmente. “A diferença entre os clãs é obtida graças 240 à sua identificação totêmica (metafórica) com elementos que estão muito diferenciados no mundo da natureza” (Op.Cit. : 1242). Foi este processo lógico que acabou por ser denominado totemismo. Mas, longe de existir apenas em sociedades simples, tal pensamento selvagem coexiste com o pensamento científico nas sociedades complexas. Quando se diz que fulano é um burro e siclano é um cobra em matemática, tal lógica totêmica está sendo articulada. Rocha ressalta que Lévi-Strauss, ao elucidar o problema do totemismo, o delimita como sendo um sistema pouco comum às sociedades de pensamento científico, se fazendo pouco presente nestas. Ressaltando, de certa forma, que o natural é também uma construção social, e que em nossa sociedade ele toma uma dimensão anti-humana ou anti-cultural, par excellence, Rocha indica que o pensamento mágico ou totêmico está bastante presente no cotidiano das sociedades complexas industrializadas, e isto através da publicidade que introduz a dimensão mágica e fabulatória neste cotidano supostamente dessacralizado. Equacionando produção à natureza e consumo à cultura, o autor constrói a concepção da publicidade enquanto “operador totêmico”, ou seja, assim como o totemismo classificaria o mundo social no pensamento selvagem, hierarquizando-o, a publicidade faria o mesmo com o mundo da produção no que Sahlins denominou pensamento burguês. Aquilo que seria indistintamente produto sem valor específico no mundo da produção se transformaria em valor específico, no mundo do consumo, através do operador totêmico publicitário que classificaria simultaneamene os indivíduos que consomem tais produtos em hierarquias específicas dentro do mundo capitalista. Consumir, por exemplo, um caro uísque escocês conferiria um determinado status ao indivíduo, associando-o a uma posição de prestígio na hierarquia social, enquanto consumir uma aguardente barata operaria processo inverso. Da mesma forma, por exemplo, usar uma bolsa Louis Vutton, um terno ou tailleur Armani ou Versace conferiria, por intermédio da “magia” contida na etiqueta, uma espécie de mana (Mauss, 1974) ao usuário, distingüindo-o e singularizando-o como alguém pertencente às camadas “superiores” da sociedade. Nesta ordenação, seria possível comparar a relação 241 natureza/cultura no pensamento selvagem com produção/consumo no pensamento burguês: O que possibilita a transição entre natureza e cultura neste raciocínio é o “totemismo” (processo lógico) que apresenta-se como “operador” do mesmo processo. Este operador articula os termos enquanto diferença interna a cada um, o que produz a complementaridade do sistema. Estudando o reencantamento do mundo através da publicidade, Rocha (Op. Cit.) analisa os anúncios de bebida nas sociedades industrializadas atuais utilizando o esquema totêmico para compreender melhor a lógica do capitalismo. Esta análise poderia ser aplicada a qualquer outro tipo de anúncio publicitário. A lógica deste pensamento mágico se apresentaria da seguinte forma: Pensamento Burguês Produção (não humano) (natureza) vodka Publicidade [operador totêmico] Consumo (humano) (cultura) o mundo dos anúncios: SmirnoffIce vinho O mundo dos anúncios: Liebfraumilch uísque O mundo dos anúncios Bell’s etc. Etc. etc. Etc. A publicidade, atuando enquanto operador totêmico, conferiria, dentro dos anúncios, a distinção aos produtos, antes indiferenciados e generalizados, tornando-os singulares e, portanto, singularizando também seus consumidores. A dimensão mágica que tais produtos porta seria transmitida àquelas pessoas capazes de os consumirem e de perpetuarem tal magia (Bourdieu, 1976; Rocha, Idem; Sahlins ,Idem ). O que era bebida em geral, e portanto, mais próximo ao âmbito da natureza, e vodka em particular, vai tornando-se, através 242 da publicidade, uma substância específica, mais próxima da cultura, Smirnoff, por exemplo, marca que confere distinção aos seus usuários, o mesmo ocorrendo com outras bebidas70. Processo similar efetiva-se com o repertório simbólico dos freqüentadores das academias de musculação. Sua construção de corpo está relacionada à organização da realidade através de mitos veiculados pela publicidade e a mídia em geral. Tais mitos reiteram o sentido e a eficácia dos sistemas simbólicos daqueles que primam pela adoração da forma, e que, ao adorarem-na, construíndo na prática seus corpos, fazem sobreviver tais sistemas e o seu encantamento. Há que se ressaltar, mais uma vez, o tom científico que os itens discursivos deste sistema mágico articula, ressacralizando o dessacralizado e criando o que se poderia denominar discurso de magia cientificizada que, por sua vez, se sustentaria através do discurso de otimização da saúde. O Ocidente ainda alimenta mitos e lendas sobre sua superioridade utilizando a capa do raciocínio científico para esconder seus preconceitos contra culturas e povos que, ao não se enquadrarem nos parâmetros da sua racionalidade, considera irracionais. A análise antropológica das sociedades complexas ocidentais vem reiterando o aspecto falacioso de tal premissa. Com a abordagem estrutural, a antropologia percebeu que todos, primitivos e civilizados, com ou sem escrita, com mais ou menos tecnologia, são todos racionais, psiquicamente unos em um raciocínio que se opera em termos binários e que perpassa igualmente a magia, a ciência e a religião que todas as sociedades, complexas ou não, possuem. Magia, arte e ciência são formas paralelas de conhecimento. Se os chamados primitivos, por um lado, têm a magia, por outro, possuem uma ciência do concreto que lhes é peculiar, e os “modernos”, por sua vez, se têm a ciência do abstrato vivem também sua magia e seu totemismo. Desta forma, “primitivos” e modernos estão lado a lado (Lévi-Strauss,1975a; Peirano, 2000). A análise dos anúncios de suplementos alimentares pode ser um dos aspectos que exemplifica tal aspecto. 70 - No atual estágio do capitalismo, necessário se faz destacar, que a marca, a “etiqueta”, tornou-se mais 243 Pensamento Burguês (Fisiculturismo) Produção (natureza) Suplementos Publicidade para Consumo (cultura) (operador totêmico) Mundo dos anúncios: aumentar músculos Myoplex Máquinas para exercício Mundo dos anúncios: Aparelhos Vitally Suplementos para Mundo dos anúncios: emagrecer Levocarnin. L-Carnitinina Também o processo poderia ser equacionado da seguinte forma nesta lógica: Pensamento Burguês (Fisiculturismo) Corpos (natureza) Publicidade do corpo e Formas (cultura) da boa forma Gordos suplementos e exercícios Magros (em máquinas) Fisiculturistas Comuns ou normais o mundo dos anúncios: Levocarnin (emagrecer) O mundo dos anúncios: (não saudáveis) Myoplex (aumentar (saudáveis) músculos) O mundos dos anúncios: Aparelhos Vitally (Máquinasde Musculação) significativa que o produto. 244 Imagens e Palavras Para que possa ser aprofundada a análise estrutural da publicidade se faz necessário escolher uma espécie de anúncio que atue como mito de referência, ou seja, um anúncio que apresente uma espécie de síntese de significados presentes em outros anúncios da mesma categoria . Eleger tal item como ponto de partida para a análise é uma atitude arbitrária. Qualquer outro anúncio poderia ser utilizado e nada mudaria no processo. A rigor qualquer anúncio sobre suplementos serviria como ponto de partida (LéviStrauss, 1984; Rocha, Ibid.). Foi escolhido o anúncio do suplemento para aumento da massa muscular, o Myoplex. Este suplemento é bastante utilizado pelos fisiculturistas, fazendo parte das suas dietas. O anúncio71 que serve de referência faz parte de uma campanha empreendida pela multinacional de suplementos alimentares denominada EAS (Experimental and Applied Scienses) e, antes de aparecer em revistas brasileiras de fisiculturismo, havia surgido em revistas americanas, com a diferença de nestas últimas ocupar duas páginas ao invés de apenas uma. Este anúncio leva ao paroxismo a concepção cientificista presente no imaginário bodybuilder. Nele, alude-se à teoria da evolução de Darwin através da montagem de fotografias, sobrepostas lado a lado, de um mesmo homem de bermudas que, de portador de um considerável nível de gordura corporal, passa a ostentar musculatura hipertrofiada e um baixo índice de gordura. Ele transforma-se de homem comum em fisiculturista em apenas 12 semanas (como diz o anúncio) usando o produto (Myoplex) anunciado. A foto é completada por uma frase que serve como uma espécie de título: “Teoria da Evolução.” Ao lado, o emblema da empresa – a imagem de uma espiral de código genético e as letras EAS tendo abaixo a legenda: “Construindo corpos melhores através da ciência” – Também abaixo do título da foto, em inglês, está escrito : “ The Word’s Leading Supplier of Sports Nutritional Suplements for the Envolving Man”. O quadro se completa com a foto de três caixas de suplemento Myoplex tendo à frente uma tulipa cheia da substância e rodeada 71 - As figuras encontram-se na parte final deste trabalho. 245 de morangos - o que alude ao fato de que, apesar de toda ciência aplicada ao desenvolvimento do produto, o sabor natural não foi esquecido. Ao fundo do quadro apenas a sombra do homem. Esta base inteiramente branca e asséptica – que remete às representações sobre os laboratórios científicos – circunda toda a exposição publicitária. A mudança da imagem do homem parece relacionar-se ao processo de conquista da plenitude individual inscrita na forma. Ele parece caminhar em direção ao progresso, e a sua sombra projetada no chão, com ligeira inclinação para a horizontal, indica que a sua frente está a presença do brilho e da claridade, da luz do sucesso e da felicidade, que ele persegue através do seu esfoço e com respaldo da razão científica. Como se tivesse saído da escuridão primitiva da caverna – para utilizar a metáfora platônica – para a luz da ciência e da evolução. Afinal, no mundo dos mitos publicitários só há felicidade e satisfação. Todos os problemas são resolvidos magicamente – mesmo sendo utilizada linguagem científica – pelo produto exposto. A figura deste homem, antes tristonha, vai se tornando reluzente e alegre, sua postura cabisbaixa passa a erguer-se e suas mãos frouxas e pendentes crispam-se gradativamente demonstrando a força e a determinação conquistadas. Sua pele, ao fim do processo, está mais corada e brilhante de suor, reluzente; pois como escreve Barthes (1993), o suor pode ser também um signo de moralidade do trabalho sacralizado. Quem transpira trava uma luta interior, um trabalho fisiológico que pode operar o que é considerado virtude por determinado grupo em uma determinada época. Nos parâmetros deste raciocínio, quem não sua representa a moleza e a falta de movimento para a sociedade burguesa. Exercício e suor, esforço e conquista, empreendimento e realização, são faces de uma mesma moeda que circula na sociedade do self made man. Confrontados com a propaganda os freqüentadores disseram: “Esse anúncio do Myoplex é genial. De todos os que tô acostumado a ver é o mais legal, porque mostra o cara antes e depois... a gente vê a diferença... é claro que não foi só tomando isso que o cara ficou assim, eu já tomei myoplex e sei como é... 246 mas, olha só, o cara tá definidão, sequinho e sarado... a barriga parece um tanque.... se eu conseguir ficar assim nesse verão vou ficar feliz! Tô investindo... já comprei doze ampolas de winstrol e comecei a malhar pesado... quero pegar muita mulher nesse verão...” (Carlos. 32 anos. Comerciante). Ou: “ Bom, eu acho que o Myoplex ajuda a secar se a pessoa fizer dieta, ele sozinho não adianta, como o nome diz é um complemento. Se o cara tiver a fim de ficar perfeito como esse cara da foto aí, ele vai ter que tomar uns anabolizantezinhos, um winstrol, um durateston... fechar a boca e malhar pesado... tem que ter um pouco de dinheiro e tempo... você vê pelo abdômen do cara, sequinho, todo cortado, tanque”. (João. 23 anos. Estagiário de educação física). Ainda : “Pô, esse anúncio é o máximo, é uma parada muito maneira, cara!!! Porque o sujeito tava na pior, tava na merda e olha só como ele ficou... perfeito, xará!!! Saradaço, cortadão e forte... mudou de vida... é claro que não é um cara duro, ferrado... p’ra ficar assim, ele tem que ter uma grana p’ra investir na carcaça. Tem que ter tempo p’ra malhar, dinheiro p’ra suplemento e bomba, dieta.... p’ra manter essa barriga assim, igual a um tobogã tem que ter muita dieta, eu que de vez em quando trabalho como modelo sei como é difícil, mas é investimento, xará... (Paulo. 23 anos. Estudante e modelo). O sistema publicitário, assim como o mítico, opera classificações da realidade social. Esse sistema quando se direciona para o corpo apresenta um certo paroxismo classificatório, já que as estruturas deste, em geral, fazem homologia com as estruturas sociais, como é o caso, por exemplo, da sociedade hindu onde cada casta faz analogia a partes do corpo de Bhrama, e 247 partes superiores (estratos sociais) e puras não devem misturar-se a inferiores e impuras (Douglas, 1976). Embora o fisiculturismo não seja uma prática esportiva de classe alta, através das entrevistas e do trabalho de campo, é possível perceber que, no Brasil, ele fica nos liames da classe média. Para “malhar” é preciso ter tempo e uma quantia razoável de dinheiro a ser investido na aparência. Esta surge como uma espécie de vitrine onde as supostas virtudes individuais são apresentadas para um “público consumidor” eventual que possa trazer tanto lucro econômico quanto simbólico. A lógica de gerenciamento empresarial toma conta do cotidiano individual, gerenciando suas vidas em um processo de marketing pessoal que acaba por coisificar a existência em uma nova forma de tratar o corpo e a vida. Corpo-objeto, corpoespetáculo, corpo-capital a ser investido, “corpo-brasão, símbolo de um pertencimento, efígie feita signo” (Vigarello,1995:33) de uma classe, de um estilo de vida, de um ethos. Este processo que consiste na tentativa de transformação do mundo em uma grande classe média, um grande meio termo, é o corolário de americanização – ou ao menos da interpretação local da cultura e dos símbolos postos sob a égide norte-americana- do modus vivendi de grande parte do Ocidente atual e peculiar à classe média em ascensão do litoral brasileiro que sonha em transformar-se em réplica de Miami ou Los Angeles. Em uma época em que classes ou “sociedades superavitárias” (Rodrigues, 1998:44) tendem a apresentar um número considerável de indivíduos com abundante tecido adiposo devido ao consumo e ao sedentarismo, paradoxalmente, a imagem do gordo barrigudo passa a ser abominada. A pessoa gorda passa, não raro, a ser tolhida do convívio social pleno, sendo considerada doente, portadora de distúrbios psíquicos e fisiológicos. A silhueta gorda atrai apreciações bastante negativas (Fischeler,1995). Entre os fisiculturistas, é a barriga, o abdômen – além do diâmetro muscular – o ponto de prova da excelência individual; é como se toda areté estivesse concentrada no centro do corpo, na região do umbigo. Uma “barriga tobogã” ou “tanque de lavar roupa”, repleta de ondulações, dobras e redobras musculosas, devido a ausência de gordura e presença constante de 248 exercícios, é o símbolo supremo da saúde, da excelência e da beleza. Quanto mais barroca for a arquitetura abdominal, mais virtuoso será o indivíduo. Raios e Leões Outro anúncio escolhido para a análise é o do suplemento que auxilia o emagrecimento e a suposta transformação da gordura em músculos, apresentado a seguir. Neste anúncio o corpo de um fisiculturista aparece recebendo uma descarga de raios como se a energia dos mesmos servisse para recompor e aumentar sua força. Se o discurso científico acompanhado pela concepção sempre positiva de progresso neste imaginário algumas vezes é articulado em contraposição a tudo que é natural, outras vezes o mesmo sugere que é a força dos elementos naturais, em composição com o trabalho da ciência, que confere potência à construção do corpo, pensado como objeto natural que deve ser aprimorado pelo trabalho da técnica. No anúncio aparece, abaixo do logotipo do produto (Levocarnin) apresentado com letras em gradações da cor abóbora, a frase “mais fôlego para os seus músculos”, e, ainda um pouco mais abaixo à direita da figura, também as frases: “facilita a utilização das gorduras na geração da força muscular” e “máximo desempenho energético muscular”. Este anúncio lembra aspectos míticos como aqueles relacionados à força concedida pelos deuses a um determinado herói, pois o raio direcionado ao fisiculturista parece ser uma carga renovadora que lhe unge para uma tarefa hercúlea. Confrontados com tal quadro alguns informantes disseram: “Parece que o cara recebe força do raio, que o Levocarnin produz uma força igual ao raio... não sei...pode ser também que eles queiram dizer que o cara ficou ‘cortado’ usando o produto como se um raio tivesse queimado a gordura dele. (Carlos, 28 anos. Professor de Educação Física). Ou: 249 “Ah, esse anúncio me lembra os desenhos do Thor, lembra? Aquele super-herói do martelo, deus do trovão. Eu acho que eles querem dizer que o produto é tão bom que deixa o cara que usa com corpo de super-herói, que nem o Thor... seco, definidão e grande... (Mário. 32 anos. Professor de Educação Física) A alusão do informante ao deus nórdico Thor, filho de Wotan (Odin), que se tornou super-herói dos quadrinhos e dos desenhos animados na TV, foi sugestiva, remetendo diretamente ao pensamento mágico e mítico presente na publicidade. Thor retirava seus poderes do martelo sagrado que carregava. Martelo que as forças do mal sempre cobiçavam com o intuito de enfraquecêlo. Sendo o mito “modelo exemplar significativas” (Eliade, 1979:13) de todas as atividades humanas apresenta estruturas que podem ser encontradas em diversas dimensões da sociedade, inclusive nos anúncios publicitários. Por exemplo, se o herói é aquele que recebe sua força de algum objeto que lhe é conferido ou conquistado, como o martelo de Thor ou o cabelo de Sansão, este anúncio sugere a venda de um objeto (produto) que pode conferir poderes heróicos àqueles que o utilizam. Ele parece prometer a transformação do mal (a gordura) em bem (músculos), através do uso dos poderes “divinizados” contidos na L-carnitina, a substância “mágica” criada em laboratórios farmacêuticos. Ao classificar seu usuário como um herói, o anúncio reitera a distinção entre melhores, superiores (musculosos, vencedores, bonitos e divinizados) e piores, inferiores (gordos, sedentários, acomodados e feios) reiterando a dimensão totêmica da publicidade nas sociedades capitalistas (Sahlins, 1979). Outro anúncio do mesmo teor é aquele do suplemento para aquisição de massa muscular denominado Mighty One 3000. Por trás da foto do produto em relevo e com rótulo em inglês, aparece a figura de um leão e a frase em amarelo escrita com letras que lembram raios: “atleta por instinto”. Ao lado da figura do produto, os tradicionais termos científicos (fórmula anticatabólica, 250 complexos de carboidratos, whey protein, aminoácidos de cadeia ramificada), que quase nenhum freqüentador de academia conhece em seu funcionamento prático - a não ser alguns professores de educação física - conferindo a eficácia simbólica ao objeto anunciado e que, aparentemente, tem seu consumo associado à doação de um poder e força leoninos àqueles que o adquirirem. O próprio nome do produto Mighty (forte, poderoso, importante) remete a uma dimensão mágica na qual os poderes nele contidos passariam para o sujeito que o consumisse. O suplemento não seria apenas forte, poderoso e importante, mas passaria tais qualidades àqueles que o utilizam. Estas qualidades, no sistema classificatório dos fisiculturistas, estão relacionadas a certos animais. O leão, além do tubarão e mais especificamente o cão pitbull, serve, muitas vezes, como símbolo de fisiculturistas e lutadores em tatuagens e logotipos de academias. Tais animais, considerados feras perigosas, servem como sinônimos de bons atletas e homens destemidos. Dizer que alguém “é fera” significa conferir a ele a excelência naquilo que faz. Equivale dizer que está entre os melhores fisiculturistas daquela região ou contexto. Leach (1983), em seu trabalho sobre categorias animais e insulto verbal, diz que não xingamos alguém de “filho de uma cadela” ou de “porco” por que assim está estabelecido por convenções arbitrárias, mas sim porque existe algo no comportamento daquela pessoa e do animal a ela relacionado, tal como o vemos e classificamos, que permite a relação entre um e outro. Provavelmente o mesmo ocorre com estes fisiculturistas que não têm as mesmas características dos animais que, escolhem como “totens”, e que, portanto, têm um lugar privilegiado no seu sistema classificatório, gostariam de ter. Fábrica e Mecânica de Corpos O processo de produção do corpo saudável pode ser classificado em uma gradação que vai da matéria prima, o corpo em seu estado natural, passando pelo investimento de produtos químicos e adaptações às máquinas de exercícios, até o produto final, um corpo reluzente, musculoso e “saudável”, investido de magia e poder conferido pelas classificações totêmicas do mundo 251 dos marombeiros. Um corpo de fisiculturista. As academias, com suas indicações de substâncias químicas – suplementos alimentares e esteróides anabolizantes –, seu conjunto de máquinas, cada vez mais desenvolvidas e informatizadas, operam como uma espécie de fábrica do corpo. Há nestas instituições disciplinares uma verdadeira linha de montagem da forma, na qual o indivíduo é acoplado às máquinas e levado a experimentar todo tipo de inovações químicas para moldar sua massa muscular. O termo massa, muito usado pelos fisiculturistas, remete diretamente a esta dimensão reificante do mundo do trabalho. Algo informe sobre o qual a razão científica se debruça executando seus objetivos de conformação estética, massa é categoria recorrente no cotidano dos fisiculturistas. Sua aquisição equivale à aquisição de um bem, de um capital biológico que deve ser investido, revestido de significado por intermédio de um processo classificatório que confere valor e sentido àquele conteúdo muscular inicialmente indistinto. Este sentido é produzido através da articulação de um sistema de representações coletivas que pode ser compreendido pela análise da publicidade voltada para este público específico. O corpo não saudável, na concepção dos fisiculturistas, seria aquele que, de certa forma, estaria mais próximo do estado natural, o corpo menos trabalhado, o corpo que não consumiu produtos químicos (suplementos alimentares e drogas) e exercícios específicos elaborados por especialistas com o auxílio constante de técnicas científicas e máquinas adequadas. Ao contrário dos consumidores de produtos naturais, o sentido de natureza entre marombeiros apresenta-se como algo que deve ser aprimorado, aperfeiçoado, ou espécie de estoque no qual o cientista e o fisiculturista vai buscar matérias primas para elaborar suas fórmulas. Estoque de forças que deve ser gradativamente domesticado pela razão. Neste sistema subjetivo e objetivo é possível perceber que a mesma lógica capitalista da produção de bens de consumo aplica-se à produção da forma física. Portanto, a categoria natureza, para este grupo, não está carregada com o significado de excelência como para os “naturebas”, mas ao contrário, porta o sentido de atraso no processo evolutivo. O corpo deixado “ao 252 natural” tende a se degradar (quando já não é degradado), já que não pode contar com os avanços da evolução da ciência da beleza e da construção da forma. Os suplementos criados em laboratórios, produtos de intensas pesquisas científicas, representam a síntese dos avanços científicos para a elaboração do corpo saudável e forte. Corpo que se não contar com a tecnologia aplicada aos exercícios, à nutrição, e avanços da indústria farmacêutica, não pode tornar-se o portador do sentido de saúde relacionado à ausência de gordura e presença de músculos. Para eles anti-natural, já que contrariando o processo natural de evolução, é deixar o corpo apartado das máquinas de exercícios e das químicas da ciência da nutrição. Neste raciocínio, os corpos humanos seriam iguais em sua indistinção geral, principiando a distinção através da sua relação com a muscularidade. Gordos, magros e comuns, se posicionariam do lado oposto dos musculosos, e a publicidade da forma seria o eixo articulador da transição (operador totêmico), organizando através dos produtos (suplementos alimentares e máquinas de musculação) a realidade e instaurando a diferença. Apresentando-se como fábricas de corpos, as academias de musculação podem ser encaradas como locais onde se encena o drama da montagem física. O corpo chega a estas instituições como uma espécie de matéria prima, passando por todo um movimento de produção e recauchutagem, e saindo, no final de um processo fordista de somatoprodução, como mercadoria específica para ser apresentado e consumido na economia de bens simbólicos. Ao chegar, enquanto matéria prima, este corpo é conteúdo indiferenciado (pertence ainda ao mundo indistinto da natureza). Esta matéria é trabalhada durante meses e anos durante horas diárias de exercícios intensos, direcionados e realizados em máquinas, esteiras e ergométricas em consonância com o consumo de drogas e substâncias químicas diversas. Toda a lógica mecanicista que funda o pensamento capitalista ocidental concretizase nessas intituições de preparação da forma. O corpo humano, nesta fábrica repleta de espelhos, porta, a princípio, um certo sentido de desumanização. Acoplado às máquinas ele é apenas uma peça em um sistema de polias, molas, pedais e alavancas. O ritmo, a ordem, o caráter e o movimento do 253 processo de trabalho muscular é dado pelo conjunto de maquinarias e não pelo trabalhador que o serve. Como nas fábricas tradicionais, a fábrica de corpos retira a marca humana do produto (o corpo) e transforma o trabalhador em força motriz que é dobrada sobre si mesma. Este processo reificante volta-se diretamente para o próprio corpo e para a forma daquele que trabalha sobre si mesmo transformando-se, de maneira consentida, grosso modo, em mercadoria. Peça no vasto mundo de imagens das economias globalizadas e micro informatizadas. Mas se no mundo da produção os produtos estão desumanizados, no mundo do consumo eles devem ser humanizados, revestidos de características singulares que estabeleçam sua inserção num sistema de significação que deve lhes conferir face, nome e identidade. Desta forma, o corpo trabalhado, musculoso e bem enquadrado nos parâmetros estéticos dominantes, “humaniza-se” para o fisiculturista por tornar-se bodybuilder na prática, na forma e na maneira de pensar. Para construir tal pessoa é necessário um instrumental técnico específico que tem sua história demarcada no campo da biomedicina, ou do chamado sistema de medicina ocidental. Este sistema é composto por uma classificação peculiar composta por cinco itens: doutrina médica, morfologia, dinâmica vital, diagnose e terapêutica. Estas, por sua vez, dividem o corpo humano em nove sistemas: sistema nervoso (cérebro, tronco cerebral, medula espinhal, nervos periféricos); sistema cardiovascular (coração, artérias e veias); sistema respiratório (pulmões, traquéia, laringe); sistema digestivo (esôfago, estômago, intestinos delgado e grosso, pâncreas exócrino e fígado); sistema endócrino (glândulas hipófise, pineal, tireóide, paratireóides, supra-renais, pâncreas endócrino, ovários, testículos); sistema retículoendotelial (baço, medula óssea); sistema imunológico (linfonodos, timo); sistema genito urinário (rins, bexiga, uretra, aparelho reprodutor masculino e feminino) e sistema músculo-esquelético (ossos, músculos, tendões e articulações)72. 72 - Outros sistemas médicos, diversos do ocidental, como o hindú (medicina ayur-védica), por exemplo, organizam a realidade do corpo como uma totalidade única sem separação entre espiritual e material. Esta realidade estaria demarcada por gradações que iriam da substância densa (o corpo, no Ocidente) à substância sutil (espírito). Para este sistema médico, assim como para o chinês, há o adoecimento singular de cada pessoa devido a desequilíbrios nos fluxos de energia e humores individais combinados com toda a realidade que o cerca, não havendo ontologização da doença. Nesta visão, portanto, o corpo não é percebido como separado do universo e muito menos da dimensão espiritual que influi diretamente 254 A prática da musculação está diretamente radicada na concepção sistêmica da biomedicina, principalmente no sistema músculo-esquelético. Por trás de toda concepção de universo, inclusive a científica, existe uma cosmologia implícita ou explícita. No caso das concepções do senso comum e daquelas científicas surgidas no Ocidente, esta cosmologia é marcadamente mecanicista. A base desta visão está presente nas hegemônicas concepções filosóficas de Descartes e físicas de Newton. Tais concepções representam o universo e o corpo humano como um relógio; máquinas que funcionariam segundo leis matemáticas e que seriam compostas por peças específicas. O cosmos, então, estaria apartado do poder e da pessoa divina, sendo uma espécie de máquina-palco, da mesma forma que o corpo humano seria um mecanismo com leis estabelecidas pelo grande relojoeiro (Deus) e do qual o espírito – este sim a verdadeira personalidade do homem – faria uso. Durante três séculos este raciocínio expandiu-se, sendo que até hoje faz parte das representações coletivas das sociedades complexas ocidentais. Apesar da física quântica ter demonstrado o equívoco deste raciocínio, ele continua presente tanto em práticas e representações eruditas quanto populares. Este é o caso da medicina e da fisioterapia, e, conseqüentemente, da educação física e de parte dela dedicada à musculação. Segundo tal concepção, que transforma o corpo em uma máquina sobre o qual o espírito pode atuar, os exercícios devem obedecer às leis da mecânica newtoniana atuando especificamente nas “peças” que compõem a máquina humana. Basta observar o cenário das academias de musculação para perceber a força destas idéias e práticas. Os recintos utilizados para os exercícios estão repletos de máquinas elaboradas para a prática da musculação e, quando as academias estão repletas de indivíduos realizando seus trabalhos de escultura muscular, todo o cenário parece uma grande máquina ritmada na qual cada um surge como peça ou engrenagem. Enquanto alguns fazem exercícios ritmados para determinadas partes das pernas, outros o fazem para os braços, costas e ainda outros para ombros e peitos, cada um no adoecimento. O ser humano é concebido como parte de uma ordem cósmica com a qual deve estar em equilíbrio, a saúde sendo a harmonia do microcosmo (ser humano) como o macrocosmo. Esta harmonia 255 movimentando-se segundo uma quantidade determinada de repetições acopladas às máquinas. O corpo não é nada mais que uma máquina entre tantas máquinas (Duarte, 1999). O anúncio sobre máquinas de musculação que se segue é eloqüente a este respeito. Além de aludir ao tradicional espírito evolucionista comum a esta dimensão social, ao trazer como chamada a frase: “A evolução não pára...” evoca o progresso no próprio nome da linha : “Millenium 2001”. Porém, o que deve ser destacado neste anúncio é a postura das modelos. Elas não possuem a forma física comum entre as fisiculturistas, e isto indica que tais aparelhos não são direcionados apenas para tais pessoas. O sorriso que elas estampam também não condiz com a prática dos exercícios nestas máquinas. Em geral, quem se exercita faz caretas e não dá sorrisos. Desta forma, as imagens indicam a plena integração, sem sofrimento, do ser humano à máquina, o que não ficaria tão claro se elas estivessem fazendo expressões de esforço em uma alusão à luta para conseguir um corpo em forma. Neste quadro parece que isto já foi conquistado e que apenas a felicidade como produto do uso das máquinas existe. Exercícios pesados e rostos sorridentes são contraditórios. Mas no mundo dos anúncios não existe o trágico nem a contradição, apenas a promesse de bonheur capitalista. Evolucionismo, crença no progresso e mecanicismo desaguam na concepção do ser humano como produto industrial, assim como as máquinas com as quais interage - não se quer dizer com isso que qualquer e toda interação com máquinas produza tais representações. Esta concepção de homem-máquina é parte de uma visão do mundo enquanto máquina, como foi dito. Tal weltanschauung dá a ilusão de poder aos seus portadores, pois se a realidade – seja ela o corpo humano ou o universo - é uma máquina, basta saber apertar os botões certos ou articular as engrenagens adequadas para se obter os resultados desejados. Este mito científico está na base de todo o paroxismo reducionista que imperou nas grandes teorias sociais e impera, de forma mais sutil, em várias ciências do corpo e da saúde até o presente momento. Pois se o corpo é uma máquina, ele pode ser recauchutado com seria realizada através do balanceamento de três humores (tridosha) vatta, pitta, kapa, simbolizados pelos 256 produtos para crescer, silicones e silícios, implantes e plásticas com o objetivo de “aprimorar”, fazer progredir, tornar perfectível, aquilo que a natureza concebeu. Não se percebe que esse “melhorar” é um juízo de valor condicionado por todo sistema simbólico de uma determinada época e cultura, não representando superioridade em relação aos outros sistemas que concebem corpo e estética de forma diversa. A estabilidade milenar de tantas culturas primitivas, que não tinham como sustentáculo cultural o pensamento racionalista, se realizou, devido à adequação entre seus esquemas imaginativos e a realidade. Envoltos em mitos e lendas específicos, estes “selvagens” podiam nada saber a respeito de refração ótica ou mecânica quântica, porém pressentiam com grande precisão o lugar da existência humana no cosmos. Muitas vezes parece ao antropólogo que é menos absurdo falar com os animais e as plantas, como faziam e fazem os primitivos (Viveiros de Castro, 2002d), do que imaginar-se como uma engrenagem de relógio. Neste raciocínio, se o ser humano não passa de uma máquina, de um produto industrial, e portanto descartável, não há nada demais em jogar fora aqueles que não passaram no controle de qualidade estético, profissional, enfim, social. São perdedores, feios, fracos e fracassados, que devem ser descartados pelo processo evolutivo “natural” do mercado na “luta pela sobrevivência do mais apto.” Esta lógica parece estar presente no cotidiano das academias de musculação aqui estudadas, assim como nos anúncios analisados. elementos fogo, vento e água que constituiriam o ser humano (Marques, 1993). 257 Capítulo VI “Ser homem significa, para cada um de nós, pertencer a uma classe, a uma sociedade, a um país, a um continente e a uma civilização.” Lévi-Strauss. Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme Alguns trabalhos da chamada antropologia urbana e da psicologia social têm se dedicado quase que exclusivamente a análises de entrevistas e depoimentos, não raro, desprezando a importância da observação participante prolongada e minuciosa que constitui o tradicional trabalho de campo. Esta monomania de cátedra (Bourdieu, 1989) tem levado a construção de abordagens que se, por um lado, podem ser formalmente belas, por outro, chegam a conclusões que vão de encontro a própria tradição disciplinar. Assim, por exemplo, sobre a prática de tatuagens entre determinados grupos cariocas Almeida (2000) afirma, - após “uma pesquisa ampla sobre o imaginário do universo jovem da classe média brasileira, [pesquisa com] jovens ligados ao universo da tatuagem ” (:103) -, que o discurso dos tatuados apresenta “uma fusão desordenada e heteróclita de elementos da imaginação... imensa constelação de imagens e simbolismos [que] não parece[m] estruturar-se de modo contínuo, coeso e duradouro na fala dos informantes. Os sujeitos acionam ao bel-prazer de seus ímpetos momentâneos, suas contingências... paroxismo da performance” (:104). A autora, apesar de falar sobre uma “gramática subjetiva” (Idem ), parece querer demonstrar que não há um sistema que organize a visão subjetiva do grupo estudado. A tatuagem representaria uma prática fugaz reduzida à efemeridade do instante (sem qualquer organização consistente) ao modo das interpretações pós-moderna. Detendose apenas na fala dos informantes chega a esta conclusão dizendo que os tatuados dizem que “não pensam nas suas tatuagens” (Ibidem ) e, portanto, (no que se refere aos desenhos presentes na epiderme a tais jovens pertencentes aos grupos urbanos), nada existiria além da pele a não ser a volição imediata e 258 neo-romântica que, segundo a própria autora, pulverizaria os sentidos dos conteúdos simbólicos. Tal afirmação parece desprezar o fato de que a ordem social está inscrita no inconsciente – e não no sentido consciente presente nas palavras dos nativos, apenas - e que é neste inconsciente que o antropólogo deve buscar entender as estruturas subjetivas que organizam as estruturas objetivas; a vida em sociedade. Devido a esta espécie de esquecimento da tradição teórico-metodológica da antropologia, a autora conclui que as ciências sociais e humanas encontram-se, (ao encarararem o que ela constata como ausência de estruturação do seu objeto), diante de “uma imensa perplexidade tanto analítica quanto empírica” (:121). A tentativa de analisar o uso de tatuagens entre os marombeiros do Rio de Janeiro – já que esta prática é muito comum entre fisiculturistas e veteranos de academias - sugere que não apenas há uma sentido inconsciente que estrutura a organização social, mas que também esta organização estrutura o sistema simbólico daqueles que dela fazem parte e a constituem. Embora fisiculturistas de competição não as exibam em profusão (pois se os desenhos forem grandes demais poderão atrapalhar a visão de seus músculos ou desviar deles a atenção), as tatuagens estão presentes em inúmeros corpos nas academias de bodybuilders73. Nesta pequena amostra da sociedade da performance e da aparência que constitui as academias, a superfície da pele realça o que ela reveste e que constitui o objeto e propósito de todo o trabalho nestas instituições: o músculo. As tatuagens surgem como acabamento artístico de um contínuo processo de busca pelo ideal estético envolvendo a encenação pública e a encarnação dos papéis inerentes à dinâmica social74. Se corpos musculosos “pavoneiam” (Foucault, 1990:9) pelos 73 - Entre os 310 indivíduos com os quais foram estabelecidos diálogos e convivência no trabalho de campo nas 12 academias situadas entre a zona norte e sul do Rio de Janeiro as quais freqüentei 101 possuiam tatuagens. 74 - A possível análise da escritura, seja ela qual for, realizada pela tatuagem, remete ao aspecto ordenador que a gramática social instaura através da lei inscrita na pele, conforme escreveu Michel De Certeau: “não há direito que não se escreva sobre corpos... sempre é verdade que a lei se inscreve sobre os corpos. Ela se grava nos pergaminhos feitos com a pele de seus súditos...[assim,]os seres vivos são ‘postos num texto’ transformados em significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a razão ou o Logos de uma sociedade se ‘faz carne’ (trata-se de uma encarnação). Todo poder se traça em cima das costas de seus sujeitos...os livros são apenas as metáforas do corpo. Mas nos tempos de crise, o papel não basta para a lei, e ela se escreve de novo nos corpos. O texto... remete a tudo aquilo que se imprime sobre nosso corpo, marca-o .... enfim, com dor e/ou prazer para fazer dele um símbolo do Outro, um dito, um 259 cenários repletos de espelhos, halteres e máquinas de exercícios, as tatuagens conferem a estes corpos o paroxismo de visibilidade que lhes são inerentes. Ela mobiliza olhares, reflete sentimentos, classifica e ordena subjetivamente o fluxo intermitente de indivíduos que lhe servem de tela e que nela buscam uma distinção. Formando uma espécie de linguagem bodybuilder, os desenhos da epiderme apresentam uma gramática que possibilita organizar o regime da visibilidade institucional. Portanto, a tatuagem, do ponto de vista sociológico, é uma linguagem que “está intimamente ligada à organização social: [apresentando] motivos e temas [que] servem para exprimir diferenças de posição, privilégios de nobreza e graus de prestígio...” (Lévi-Strauss,1975:292). Esta gramática epidérmica se manifesta por intermédio de uma contradição. Todos os(as) tatuados(as) das academias pesquisadas escolhem seus desenhos após uma decisão pessoal que expressa a vontade de distinção. Tatuando-se, buscam singularizar suas figuras, sempre conferindolhes uma característica diferencial, um detalhe específico; alguns até mesmo “inventam” seus desenhos ou carregam no estilo do mesmo ao se dirigirem ao tatuador. Toda essa atitude é engendrada na busca de uma individualidade relacionada à concepção de livre arbítrio e da distinção daquele que faz suas escolhas e que por elas é plenamente responsável. De fato, segundo Sanders (1989), a tatuagem é um meio de individuação que tem a tarefa de demarcar a diferença em relação ao outro, tatuado ou não. Também constitui uma demarcação de inconformismo que pode expressar a incorporação de uma estética pessoal. Por outro lado, a grafia epidérmica permite reinvindicar o pertencimento a uma categoria social, servindo como uma espécie de “etiqueta coletiva” (Durkheim, 1996:113) simbolizando a filiação privilegiada a um grupo chamado, um nomeado.” (Certeau, 2002:231-2. Grifos do autor). Feitas para representar por toda vida uma ordem estética, tal prática, em uma sociedade em que a moda passageira e o impulso momentâneo do consumo está cada vez mais presente, por vezes engendra um paradoxo epidérmico naqueles que após um certo tempo “se cansam” ou simplesmente “enjoam” de seus desenhos. Tais indivíduos, por terem realizados as tatuagens apenas incitados pela moda ou pela influência circunstancial, chegam a despender vinte vezes mais o valor gasto com a elaboração do desenho, para eliminá-lo da pele, além da dor de cada sessão. De acordo com a revista Época (n.o 264. 9 junho 2003. p p.90-1), o Hospital Albert Einstein, de São Paulo, desde 2000, vem duplicando ano a ano o número de pacientes que desejam remover suas tatuagens. No Leblon Laser Center, no Rio de Janeiro, uma das principais clínicas do país, há fila de espera para retirar tatuagens. Tal aspecto nos lembra a conhecida frase de Marx sobre uma época em que tudo que é sólido desmancha no ar. 260 social específico que busca demarcar sua identidade coletiva em um processo de emblematismo. Associada, no Ocidente, à marginalidade até a década de 60 do século XX, quando, em geral, estigmatizados como presidiários, motoqueiros dos Hell’s Angels e marinheiros sem nenhuma patente desenhavam, por vezes de forma canhestra, imagens, palavras ou frases em seus corpos, as tatuagens atualmente tornaram-se parte do cotidiano das classes mais altas decorando o corpo de indivíduos de idades variadas e demonstrando a existência de um processo de circularidade cultural no qual o poder de um item estigmatizado torna-se emblema de status e domínio, invertendo o jogo social pela disputa de hegemonia simbólica das classes75. Como os costumes de um povo, grupo social ou classe formam um sistema que apresenta um estilo, ocorre, por vezes, uma espécie de transposição cultural – reinterpretação de significados que fazem parte da própria dinâmica coletiva. Tal movimento se realiza, porque, dentre outros aspectos, os sistemas não formam um número ilimitado, sugerindo que “as sociedades humanas, assim como os indivíduos – em seus jogos, seus sonhos e seus delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher certas combinações num repertório ideal.” (Lévi-Strauss, 2000: 167). Nas academias de musculação é possível perceber a produção coletiva – e inconsciente – de uma gramática imagética composta por inúmeros itens retirados e reinterpretados de outras culturas e/ou classes sociais. Assim, tatuagens inspiradas em figuras mitológicas pertencentes às culturas da polinésia francesa, celtas, japonesas, chinesas, hindús, balinesas, medieval, além de ideogramas e personagens de quadrinhos e de desenhos animados que vão de super heróis a anti-heróis, (além de toda uma classificação 75 - Sobre a tatuagem - assim como sobre o músculo cultivado e hiper-inflado - parafraseando LéviStrauss, (1975) pode-se dizer que é feita para o corpo, mas, num outro sentido, o corpo, neste caso específico, é predestinado à decoração por figuras e músculos, posto que é somente por e através da decoração que ele recebe sua dignidade social e sua significação. A decoração é concebida para o corpo, mas o próprio corpo não existe senão por ela. A dualidade é, em definitivo, a do ator e de seu papel, e é a noção de máscara que nos traz sua chave. A alusão à máscara é significativa posto que pessoa em latim tem este mesmo sentido: “é clássica a noção de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual, máscara de antepassados” (Mauss, 1974a: 225). Esta etimologia evoca o quanto o indivíduo é composto pelos itens e forças sociais que são inscritos no seu corpo conferindo-lhe identidade. A persona enquanto 261 “totêmica” inspirada em animais e fenômenos naturais como cães, tigres, panteras, beija-flores, raios, estrelas), decoram os corpos dos freqüentadores, não necessariamente fisiculturistas. Há também uma formação simbólica organizada em torno de objetos pertencentes à atual cultura de mercado e cyberculture como marcas famosas de roupas e tênis (Nike, Adidas, Mizuno) e símbolos da computação tais como @, além de códigos de barra, em geral estampados em locais estratégicos do corpo como nuca, pulso ou cóccix. Canevacci (1993) ressalta que nas grandes megalópoles a linguagem visual assume um papel efetivo pela sua instantaneidade. Propõe que o antropólogo das sociedades complexas preste detida atenção à linguagem dos signos visuais, pois esta linguagem ressalta o hibridismo, ou sincretismo cultural, que vem imperando nos centros urbanos. Tal hibridismo consolida o corpo como mapa social expressando narrativas individuais e coletivas simultâneamente. Estas narrativas – da mesma forma que a bricolage - são construídas por diversos itens, ou termos, pertencentes a culturas diversas tanto no tempo quanto no espaço. Desta maneira, por exemplo, uma loura, descendente de alemães, pode estampar em seu cóccix uma tatuagem “tribal”, marca ancestral de homens taitianos, ou um entrelaçado celta recriando da mitologia germânica a concepção de forças do infinito. Tudo isto com o objetivo – consciente - de não apenas tornar-se singular, mas de se identificar – muitas vezes inconscientemente - com um determinado grupo que freqüenta locais (os, por eles, chamados “points”) e instituições, consome produtos específicos, escuta determinado tipo de música, e assim por diante. Esta construção identitária, ao mesmo tempo concêntrica e excêntrica, está diretamente relacionada à dimensão visual das interações sociais. Neste aspecto, há a necessidade de expor signos, sejam eles músculos ou desenhos, corte e cor de cabelo, roupas ou ideogramas inscritos na pele. Este apelo visual das sociedades complexas se faz presente delimitando espaços, demarcando diferenças fazendo que – no caso específico - os componentes das academias entrem no cenário iluminado da vida urbana com sua mise-en-scène singular inerente aos fluxos culturais preponderantes na cultura globalizada. (Hannerz, produção social vive e repete os instintos criadores coletivos. Enquanto máscara ela coloca em cena ou 262 1997; Diógenes, 1998), superexpondo-se em um jogo que pode ser exemplificado pela produção do corpo-imagem nos campeonatos de fisiculturismo nos quais cada fibra muscular deve ser mostrada e demonstrada em uma espécie de dissecação em vida do competidor76. Mostrar, expôr as entranhas, exibir, alardear, ser notado; não apenas ostentando os adereços que compõem a sociedade de consumo, mas sendo o próprio adereço: “o corpo humano se torna um corpo panoramático que reflete, retroage e projeta infinitas combinações de sinais ventríloquos” (Canevacci, Op. Cit.: 23). Pele de Homem. Pele de Mulher A princípio, as tatuagens nas academias de musculação dividem-se entre femininas, masculinas e unissex. Mulheres tendem a tatuar determinado grupo de figuras tais como rosas e flores em geral, estrelas, borboletas, lua, sol, personagens femininas de histórias em quadrinhos, beija-flores, gatos e fadas. Já ideogramas, figuras tribais, palavras e frases em letra gótica, símbolos da computação, códigos de barra, corações, duendes, deuses ou deusas mitológicos são símbolos inscritos tanto na pele de homens quanto de mulheres. Águias, cruzes, panteras, tigres, dragões, demônios, caveiras, armas, arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões, figura da morte com foice e capuz e, principalmente, cães pitbull são tatuagens eminentemente masculinas. Estas últimas (cães) têm proliferado nos últimos seis anos. Os locais do corpo também definem o gênero: mulheres tatuam – tudo que é dito aqui sobre as tatuagens apresenta exceções – na nuca, no cóccix (principalmente as chamadas tribais), nos seios, nas nádegas e nas virilhas, às participa da encenação dos tipos sociais. 76 - Tal movimento de estetização de exibição das entranhas tem seu maior expoente artístico atual no médico alemão Gunther von Haggens criador da escola chamada body work . O médico-artista inventou um processo de plastificar cadáveres chamado plastination. Esta técnica conserva os corpos mortos como se fossem seres vivos, transformando-os em uma espécie de bonecos hiperealistas que são expostos em galerias de arte. Em 2002 von Haggens realizou uma exposição na Atlantis Gallery de vários cadáveres recolhidos em países diversos. Havia, por exemplo, entre eles, uma mulher grávida de oito meses, com o útero aberto mostrando o feto. O trabalho do médico parece estar alcançando notoriedade, pois a televisão inglesa, apresentou um programa denominado “Autópsia ao Vivo” em que ele apareceu para milhões de espectadores dissecando um cadáver. Enquanto retirava o fígado e o pulmão de um indigente, com o auxílio de seus assistentes, comentava para o público o péssimo estado dos orgãos. Para uma melhor 263 vezes no omoplata, nos pés e calcanhares. Já entre os homens os desenhos situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte exterior, mas também há na interior), nas costas, nas panturrilhas e no antebraço, mais raramente na barriga e peito. Estas divisões estabelecidas pelos desenhos inscritos na pele dos indivíduos que pertencem ao grupo estudado configuram a manutenção, digase a reprodução, da gramática das diferenças inerentes às relações de gênero - mas não só-, já que a própria escolha do desenho está inserida em um sistema (adquirido pelo indivíduo através de sua socialização) classificatório que expressa um gosto, uma estrutura lógica de organização, percepção e apreensão (valoração) da realidade. Pensando escolher seu desenho, seja ele um beija-flor, uma carpa japonesa ou uma caveira, o indivíduo é escolhido por todo um conjunto de representações e práticas, estruturas subjetivas e objetivas reproduzidas pelo estilo de vida que ele articula e imita naquele momento de suposto livre arbítrio (Edmonds, 2002). Tal sistema inconsciente aparta, organiza, distingue e constitui as (dis) posições sociais alocando o indivíduo em uma, e exprimindo a sua, condição de gênero e classe. A tatuagem – surgida, como dito acima, entre aqueles anteriormente considerados escória social – tornou-se emblema, ao menos nos casos das academias cariocas de musculação, de um ethos de classe média que confere à exposição estética uma hipervalorização. Ela apresenta-se como o adorno e o acabamento distintivo daqueles que buscam no cultivo do corpo, dos músculos e da ausência de adiposidade o sinal de destaque e superioridade sensitiva característicos de determinada parcela das camadas médias urbanas atuais. Tais extratos engendram uma cultura das sensações – e portanto imediatista – relacionada ao consumo enquanto distintivo de cidadania e poder hierárquico (Canclini, 1995). Cultura diretamente ligada à imagem - boa forma, sensualidade e juventude. Estas estruturas subjetivas e objetivas são inscritas nos corpos daqueles que a ela pertencem – produzem e são por elas reproduzidos - em um duplo processo de “interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade” (Bourdieu, visualização, erguiam a massa encefálica e a visícula do defunto diante do público presente e das 264 1983:47). O aspecto volátil desta ética estética pertencente a tais parcelas da sociedade de consumo é reiterado pelo fato de que, tendo sido a princípio inscrições feitas na pele para o resto da vida, ou seja, supostamente inalteráveis, hoje os grupos de tatuados adotam, por vezes, a estratégia de realizar outro desenho por cima da figura que já não mais satisfaça seu usuário; o que chamam de “cobrir a tatuagem”. A tatuagem também neste aspecto torna-se um objeto de consumo.77 Homens Unissex Mulheres Pitbull Tribal Borboleta Tigre Duende Beija-flor (+) Àguia Marca Agressivo/ Pantera Adidas) Lua Delicado/ Forte Tubarão Coração Rosa Fraco Caveira Deuses(as) Mantras Armas Ideogramas Fada Morte Frases Anjinho (Nike, Estrela (-) Sol Corpo Ambos Corpo Masculino Regiões Feminino que Bíceps demarcam a Costas As regiões sensualidade Antebraço corporais masculina Panturrilha relativas (força, domínio) poder, Peito sexo ao são mantidas câmeras. A audiência foi alta. (Jornal O Globo. Sábado, 12/Abril/ 2003. Caderno Prosa e Verso.p. 2). 77 - Não se pode confundir tal lógica consumista com a lógica da diferença presente na filosofia de Deleuze ou de Nietzsche. Alguns sociólogos denominados pós-modernos ou que teorizam sobre o que entendem ser a pós-modernidade – a época atual - tendem a ver no pensamento e nas práticas da atual sociedade de consumo a evocação coletiva das filosofias de Nietzsche ou Deleuze, como se, repentinamente, o que compreendemos como sendo o ocidente capitalista tivesse produzido uma ruptura com sua milenar tradição metafísica e instaurado inconscientemente filosofias imanentistas enquanto práticas coletivas. 265 Mas o que querem dizer as tatuagens? Qual sua função no contexto estudado? Qual o sentido do ato de tatuar-se? Para adiantar uma possível via interpretativa, podemos repetir, a respeito das tatuagens, que elas, de uma forma ou outra, “conferem ao indivíduo sua dignidade de ser humano; operam a passagem da natureza à cultura, do animal ‘estúpido’ ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição... expressam, numa sociedade complexa, a hieraquia dos status. Possuem, assim, uma função sociológica. (LéviStrauss, 2000:183) O desenho pode significar, para aquele que o tem em seu corpo, uma iniciação, o pertencimento, a identificação e a aceitação em um grupo determinado: ‘“(...) mandei’ esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem tatuagem na academia, e no tatame, os caras mais ‘feras’ têm as mais ‘iradas’, as mais ‘maneras’... aí mandei esse dragão no braço... agora quero fazer um pitbull aqui nas costas” (Carlos. 23 anos. Estudante, fisiculturista amador e lutador de jiujitsu). Também: “ ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... a galera toda lá do curso tinha, aqui na academia as garotas todas têm tatoo e piercing, cê sabe, né? É moda, sei lá... aí eu mandei essa aí na nuca e depois botei o piercing no umbigo... minha mãe reclamou muito, não me deu o dinheiro p’ra fazer, aí eu comecei a vender 266 uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro e fiz. (Tatiana. 18 anos. Estudante). Ainda : “Eu tava a fim de fazer porque sempre achei bacana; aí, minhas amigas todas fizeram e os namorados acharam ‘manero’; aí juntei dinheiro e fui no Banzai e fiz essa flor aqui na virilha [vira abaixando um pouco a bermuda de lycra e mostrando a tautagem]. Doeu muito, cara, uma dor horrível, mas valeu a pena” (Carol. 24 anos. Advogada). A figura estampada na pele permite a distinção como signo que liga a outros signos de consumo representantes de ideologias processadas pela mídia, delimitando as fronteiras identitárias. Assim, o “sofrimento de ser escrito pela lei do grupo [a dor] vem estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser reconhecido, de se tornar uma espécie de palavra identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um texto anônimo, de ser inscrito em uma simbólica sem dono e sem autor” (Certeau, 2002:232). Estas mensagens, não raro, estão relacionadas a uma suposta rebeldia presente nos movimentos estético-musicais de massa: “eu tenho o Bob Marley nas costas, ainda não acabei de fazer, vai demorar um tempo porque tem que colorir toda e é grande, pega toda as costas como ‘cê tá vendo, né?... mandei essa tatoo por que gosto de reggae, me identifico com a mensagem do Bob, desde moleque eu gosto ... de vez em quando aperto um, claro, né?, P’ra acalmar... então a tatoo tem tudo a ver...é um lance cabeça e pele, sei lá. (Filipe. 24 anos. Estudante, fisiculturista e skatista amador). Ou: 267 “esse duende no meu braço direito tá ‘carburando’ [fumando maconha], tá vendo? E aqui no esquerdo eu tenho a planta [vira mostrando um desenho de uma folha de cannabis], fiz as duas quando tinha dezoito anos porque desde moleque eu gosto de punk e rock pesado, tenho uma banda e todo mundo lá da banda fuma de vez em quando, eu não podia ser diferente...” (Rafael. 28 anos. Economista). Perguntados sobre se o uso de maconha não era uma contradição com a prática esportiva todos aludiram ao uso de esteróides anabolizantes como sendo pior do que a “erva” como atesta esse relato, um entre muitos: “todo mundo se droga aqui... chega o verão e até a ninfetinhas tomam bomba p’ra ficar saradas... porque eu não vou fumar um baseado de vez em quando p’ra relaxar? A erva é natural, não faz mal, já bomba é sintética, dá câncer e o cacete a quatro...” (Fábio. 30 anos. Funcionário público). Representações e práticas, portanto, podem ser sugeridas pelos símbolos que os integrantes desse grupo urbano inscreve na pele. As tatuagens mais comuns entre os fisiculturistas e freqüentadores assíduos das academias são aquelas que expressam força, autoridade e poder, sendo que este relaciona-se diretamente à virilidade. Junto a estes símbolos aparecem aqueles ligados ao uso das drogas: ratos com corpo de fisiculturista e duendes musculosos fumando maconha, além de cogumelos de todos os tamanhos em alusão ao alucinógeno chá de cogumelo, e o próprio desenho da planta cannabis sativa. Estas alusões ao mundo da droga merecem uma hipótese. O rito de iniciação de um marombeiro – aquele que vem a se tornar um freqüentador assíduo das academias, futuro fisiculturista – está relacionado ao uso coletivo e por vezes compartilhado dos esteróides. A maioria dos fisiculturistas utiliza tais substâncias para melhorar sua performance. A convivência com este mundo repleto de substâncias químicas é, portanto, fato 268 cotidiano e praticamente inevitável para os atuais freqüentadores assíduos das academias de musculação e fisiculturismo, visto que o próprio uso coletivo de tais “elixires da força” e da saúde, compreendida enquanto boa forma, constituise em um dos principais fatores de aceitação e construção de identidade do grupo. A droga, portanto, faz parte de um processo ritual de iniciação, rito de instituição, estando presente, de forma duradoura, no cotidiano destas pessoas. Do esteróide anabolizante à maconha ou ao ecstasy, e vice-versa, é apenas um passo. Durante o trabalho de campo foi possível perceber que muitos utilizam drogas, além das “bombas”, em festas ou momentos de lazer fora das academias.Tatuar sobre os músculos símbolos relacionados ao consumo de drogas reitera e afirma o pertencimento do tatuado àquelas estruturas objetivas e subjetivas que o perpassam e o constituem. Quando a tatuagem fala sobre a iniciação às drogas ela articula um processo que permite ao tatuado se fazer e se perceber como parte de um grupo. A tatuagem, no caso dos fisiculturistas, pode representar uma extensão e complemento do significado dos músculos e de tudo aquilo que está envolvido no seu cultivo. Figuras de cães ferozes, caveiras e cruzes, morte, e símbolos de super-heróis, tigres, panteras e dragões, enfim animais considerados perigosos, servem como advertência: cuidado sou perigoso! (Diógenes, 1998). O cão pitbull, por exemplo, tido como um dos mais ferozes e de temperamento explosivo, surge na fala dos marombeiros como símbolo de força e daquilo que consideram qualidades: agressividade, destemor, ferocidade e potência: “...esse pitbull aqui [aponta para a panturrilha] é o meu mascote... ele me dá força” (Pedro. 25 anos. Estudante). Ou : “ A tatoo dessa fera aqui, no braço..., nesse braço aqui, é do meu pitbull...eu me identifico com essa raça de cachorro, tem um movimento aí que quer acabar com eles, já ouviu falar, né? Dizem que o bicho é violento e coisa e tal... mas não vão conseguir, a gente que luta, que malha que gosta de esporte radical, a gente se amarra nesse bicho... vamos continuar criando... ele é nosso símbolo... forte. A mordida dele tem mais de 269 uma tonelada de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma tonelada de pressão...” (João. 28 anos. Comerciante). No caso feminino, as figuras remetem à delicadeza, sensualidade e submissão. Tais desenhos acentuam esteticamente a feminilidade – os encantos, particularmente, para os olhos masculinos, dessa feminilidade (Freyre, 1986). Estas figuras, como mostra o quadro acima, são inscritas, geralmente, em regiões específicas do corpo da mulher: quadris, ventre, seios, virilhas, nuca. Se, no caso masculino, os desenhos ressaltam a muscularidade e a masculinidade de regiões do corpo que representam a virilidade e a força, e, portanto, a honra de ser homem, no caso feminino tais desenhos destacam o inverso, ligando a força feminina diretamente à sedução e à sexualidade. A tatuagem torna-se um adorno para as qualidades físicas diretamente ligadas ao gênero e às hieraquias de poder e relações de força a ele inerentes. Mesmo aquelas figuras unissex, que poderiam dar a impressão de mudança de condição disfarçada pela mudança de posição, são inscritas nas regiões específicas do corpo nas quais ficam demarcadas as peculiaridades do poder feminino radicado na dependência da dominação masculina. O desenho aí surge como adorno das qualidades sensuais e sedutoras da mulher – mesmo quando suposto sinal de “liberação” – sugerindo que o uso do corpo e da estética feminina continua subordinado e radicado no ponto de vista masculino: “o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado, [nos jogos de sedução], manifesta a disponibilidade simbólica que... convém à mulher, e que combina um poder de atração e de sedução...adequado a honrar os homens de quem ela depende ou aos quais está ligada, com um dever de recusa seletiva que acrescenta ao efeito de ‘consumo ostentatório’ o preço da exclusividade” (Bourdieu, 1999:40-1). 270 Demarcar regiões corporais que são alvo da cobiça sexual masculina funciona como uma potencialização da sedução: “...a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum... é claro, né?, são lugares de mulher fazer tatoo... por quê? Porque dá um tchan, um destaque naquela parte que você acha que você tem de legal, que atrai os caras e deixa as mulheres com inveja, que te dá aquele charme... entende? Se a mulher tem uma cintura bonita, fininha, um quadril largo, ela manda logo uma tribal no cóccix, se ela tem um peitão bacana manda uma no peito, e aí vai... sacou? Muita mina diz que faz na nuca, no cóccix que é p’ra não enjoar da tatoo, porque ali ela não fica vendo o desenho o tempo todo, tudo bem, pode até ser, mas é muito mais p’ra dar um destaque naquela parte do corpo que ela acha legal. (Juliana. 20 anos. Estudante). Contudo nem todas demonstram essa reflexividade a respeito da função da tatuagem: “fiz tatoo porque gosto, não tem por que... achei legal e mandei no tornozelo, depois esse ideograma na nuca que quer dizer vida e amor; é isso fiz porque fiz, e pronto” (Mariana. 25 anos. Jornalista). Deste modo, ao se servir do seu próprio corpo a mulher tatuada, ao menos neste caso específico, naturaliza uma ética estruturada culturalmente que a constrói como ser-para-o-outro. A tatuagem então surge como uma espécie de adorno que realça e sensualiza determinados dotes físicos conferindo à portadora o poder (ou o contrapoder 78 ) e o quantum da sua feminilidade construída como complemento e contraposição da masculinidade que a define. 78 - Assim, Bourdieu escreve: “simbolicamente votadas à resignação e à discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas só podem exercer por procuração (como eminências pardas)”. (1999:43). 271 Tatuagem e Lógica da Identidade Já a classificação triádica (tatuagem de homem, tatuagem de mulher e unissex) representada pelas figuras desenhadas na pele, tanto de homens quanto de mulheres, pode aludir a uma maleabilidade classificatória relacionada à conquista feminina da igualdade entre os sexos. Tal ambigüidade ilusória apenas reitera que a mulher mudou de posição mas não mudou de condição, pois a disciplina que tradicionalmente se impõe ao seu corpo, delimitando sua situação em contraposição à condição masculina, ressalta a significação moral inscrita não apenas na sua aparência mas em seus atos: costas a serem mantidas retas, andar requebrado e malemolente, quadril empinado, ausência de barriga, pernas fechadas ao sentar, seios propositadamente enfatuados, olhares de soslaio, etc, como se a feminilidade se medisse pela arte de se fazer delicada ou pequena (Bourdieu, Op. Cit. Simmel, 1993). Essas técnicas do corpo feminino têm por efeito paradoxal, através da demonstração de disciplina e contenção, da oferta e da negação da oferta, da suposta dissimulação, concretizar e reiterar a ordem da sedução e da beleza socialmente construída, mostrando e demonstrando, mesmo que circunstancial e sorrateiramente, os atrativos do corpo relacionados diretamente a sua sexualidade, como se toda mulher fosse seu sexo 79. 79 -Tem sido comum a sociologia, e por vezes, a antropologia (principalmente a denominada antropologia urbana) a abordagem teórica que generaliza, ou universaliza a dominação masculina. Assim, grosso modo, procedem as abordagens, por exemplo, de Lévi-Strauss e Bourdieu. Porém, novos estudos direcionados às sociedades tribais não estratificadas da Amazônia e Nova Guiné não aceitam tal proposição de universalidade desta dominação, reiterando que em tais sociedades, em geral, as relações entre os gêneros são permeáveis e equilibradas (Overing, 1984; Viveiros de Castro, 2002e; Gonçalves, 2001; Lagrou, 1998). Tal aspecto pode ser percebido, por exemplo, nas práticas do “couvade”, quando após o parto o homem também fica de resguardo; esta prática seria inerente às sociedades nas quais as tarefas sexuais são relativamente flexíveis e o poder e o status femino são altos. O couvade talvez sirva para estabelecer as tarefas do pai na vida da criança e para equilibrar as funções masculinas e femininas na criação das crianças. Outro comportamento ritual que demonstra a imitação masculina do poder reprodutivo feminino é o “saignade”, ritual de sangramento que imita a menstruação. Embora o sangue menstrual seja universalmente temido, em geral, em muitas culturas acredita-se também que ele carrega grande poder, sendo fonte e causa da saúde superior das mulheres e também causa do seu rápido crescimento. Assim, entre os Menihaku da Amazônia existem inúmeras ocasiões nas quais os homens menstruam simbolicamente, sendo a mais significante o ritual de perfuração das orelhas. Entre os Sambia das terras latas da Nova Guiné o sangue menstrual também é identificado com a vitalidade, longevidade e feminilidade das mulheres. Para garantir saúde similar e longevidade os homens Sambia produzem um ritual doloroso e brutal de imitação da menstruação; neste, provoca-se o sangramento do nariz nos jovens 272 Desta maneira, além da ilusão igualitária radicada na suposta maleabilidade simbólica da tatuagem unissex, o problema da lógica triádica nas classificações dos desenhos da epiderme remete diretamente às classificações ternárias destacadas no pensamento selvagem estudado por Lévi-Strauss (1975a;1975) que sugeriu o caráter contínuo (ou de continuidade dinâmica do mundo) do raciocínio selvagem: “as sociedades que denominamos primitivas não concebem que possa existir uma fossa entre os diversos níveis de classificação; representam [tais níveis] como as etapas ou os momentos de uma transição contínua” (1975a:202). De acordo com o autor, na classificação primitiva não há a concepção estática da realidade, mas esta é percebida como processo dinâmico com ausência de formais escaninhos estanques, como poderia sugerir uma análise apressada do binarismo presente nas temáticas estruturalistas. A binaridade lógica, ou as partições ontológicas, apresentariam uma solução original no pensamento selvagem: sendo relação entre contínuo e descontínuo o universo estaria “representado em forma de um continuum composto de oposições sucessivas” (Op. Cit.:205). As oposições binárias estáticas não estariam presentes nesta onto-lógica na qual a identidade não seria nada mais do que um caso da diferença. Uma antropologia das sociedades complexas, ou urbanas, não deveria se preocupar apenas em encontrar nas culturas e sociedades nacionais de tradição cultural européias ou eurasiáticas, a mesma lógica ou sentido constatada entre os “primitivos”, mas, ao contrário, buscar as diferenças entre tais sociedades. Uma concepção nublada do estruturalismo levou inúmeros pesquisadores de sociedades complexas, de modelos europeus ou asiáticos, a fazerem projeções de termos de uma cultura para outra. Tal equívoco apenas demonstra que uma projeção efetiva deveria ser a do tipo geométrico em que as relações fossem preservadas e não os termos: “o ‘equivalente’ do xamanismo ameríndio não é o neo-xamanismo californiano, ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de durante cerimô nias de iniciação (Counihan, 1996). Esta mesma sacralidade do sangue menstrual, e exaltação do poder feminino, foi percebida por Osório (2002) em relação ao grupo de praticantes da bruxaria moderna no Rio de Janeiro, denominado Wicca. 273 física de altas energias, é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador de partículas de lá.” (Viveiros de Castro. 2002c.: 489). Talvez essa busca pelo imutável, característica da metafísica e da cultura ocidental, possa ser expressa pelas tatuagens circunstanciais. Tais tatuagens buscam eternizar um instante da vida (circunstâncias), um momento, uma data, uma relação através da fixação na pele de um nome ou mesmo um texto com supostos poderes mágico-protetores. Apresentam-se sempre em forma de frases que formam ou não textos, ao contrário dos outros modelos de inscrição epidérmica. Um fisicultursta e instrutor de musculação de uma academia no bairro do Grajáu exibe, além de outras tatuagens espalhadas pelo corpo, uma tatuagem circunstancial – é o nome dado as tatuagens em frases com letras góticas com a inscrição culturismo no antebraço: “Mandei escrever culturismo no antebraço para todas as pessoas verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha vida, a razão do meu viver; tudo que tenho consegui por intermédio do que faço... então mandei escrever isso aí, p’ra todo mundo ver... ainda quero mandar escrever o nome da minha mãe nas costas, ela p’ra mim é mulher mais importante da minha vida” (Pedro, 30 anos. Instrutor de musculação). Ainda uma freqüentadora assídua das salas de musculação da mesma academia: “ Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: palavra Deus em inglês... tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo instante dele, agradecer o que tenho, saúde p’ra correr atrás do que preciso, por isso tautei no pulso... também p’ra todo mundo ver que me protejo, sei lá é meio amuleto também... um poder superior que você carrega no seu corpo.” (Carol. 18 anos. Estudante). 274 Se, a respeito das tatuagens entre tribos “primitivas” e neo-tribos urbanas, uma projeção apressada fosse feita, provavelmente se concluiria que a classificação triádica das tatuagens remeteria a uma concepção dinâmica de universo, na qual a diferença se apresentaria como constitutiva da realidade. Mas não é isso que ocorre. Se os termos forem deixados de lado e as relações transpostas, perceberemos que, apesar de semelhantes nas classificações entre fisiculturistas e ameríndios, a lógica de um e de outro é simetricamente invertida. O aspecto triádico ameríndio está relacionado ao continuum da realidade compreendida como processo; este por sua vez, manifesta-se, tanto em um grupo quanto em outro, pela ampla variedade de desenhos que se algumas vezes possuem os mesmos conteúdos (tema), variam amplamente na forma (estilo). Por exemplo, entre os índios do grupo Pano na amazônia, as tatuagens permitem a identificação imediata do grupo ao qual pertence o indivíduo: “particularmente elaboradas são as tatuagens dos diversos grupos da área Juruá-Purus, caracterizadas por motivos angulares... cuja composição varia de grupo para grupo, tornando possível a imediata identificação” (Signorini, 1968: 179. Apud Erikson, 1986:192). Similarmente, as tatuagens entre os freqüentadores assíduos das academias de fisiculturismo cariocas classificam indivíduos pertencentes a subgrupos específicos em um lógica de “assimilação do mais longínquo conjuntamente a uma diferenciação máxima vis-à vis do próximo” (Erikson, Op.Cit.:192). Os mesmos desenhos, com suas variantes, podem ser encontrados entre subgrupos diferentes da mesma forma que no seio de um mesmo subgrupo podem coexistir motivos bastante diferentes. Uma águia pode ser representada de inúmeras maneiras, aludindo a significados distintos para seções distintas, ou ter o mesmo significado para um grupo específico, porém sendo representada por estilos diferentes; formas que tendem a demarcar a singularidade daquele que porta o desenho. Esta diversidade entre os ameríndios faz alusão à lógica da diferença presente entre os ameríndios em que o mundo é visto e compreendido como processo e, o 275 que para nós seria Natureza 80, enquanto devir, “um todo interconectado de seres não-humanos com intencionalidade e agência semelhantes à nossa, capazes de adotar um ponto de vista”81 (Lagrou, 1998:164). Já entre os praticantes de fisiculturismo e freqüentadores das academias de musculação, este mesmo processo remete ao sentido de uma classificação que tende a buscar na identidade, entendida (de forma avessa à dos ameríndios) enquanto negação da diferença, essência imutável do cosmos. Enquanto para um grupo o movimento expresso pela variação infinita de formas com o mesmo tema significa a identidade da diferença, para outro, o mesmo movimento busca demarcar a identidade compreendida como manifestação do imutável. A tatuagem expressaria a concepção inconsciente de que o cosmos não é um devir, um tornar-se imanente, e sim parte volátil de uma realidade metafísica 80 - Philippe Descola sugere a existência de modelos diversos de “ecologia simbólica” : a naturalista (ocidental) onde vigora uma relação metonímica e natural entre natureza e sociedade, sendo a realidade, em última análise, radicada na Natureza: os seres humanos teriam sua “essência” biológica como animais, diferenciando-se destes apenas pela Cultura. A abordagem “totêmica” na qual a relação é puramente diferencial e metafórica, sendo uma série comparada por analogia a outra série, e, por último, o modo “anímico” (vigentes nas cosmologias amazônicas) em que a relação Natureza/ Cultura é metonímica e social, ou seja, inversamente às cosmologias ocidentais, estas últimas compreendem o cosmos como sendo todo Cultura e não Natureza. Objetos e animais teriam sociedades e se veriam como coletividade social; o animismo seria, portanto, um sociocentrismo ( Descola, 1992; 1996; Viveiros de Castro, 2002e). 81 - Tal processo é conhecido como perspectivismo ameríndio e poderia ser resumido da seguinte forma: “O estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos metereológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos -, é profundamente diferente do modo como estes seres vêem os humanos e a si mesmos.Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que ‘condições’ não são normais. Os animais predadores e os espíritos, entretanto, vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores: o ser humano vê a si mesmo como tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o vêem, contudo, como um tapir ou um pecari que eles matam, anota Baer sobre os Machiguenga. Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos vêem como humanos. Eles se apreendem como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura: vêem seu alimento como alimento humano ( os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes de carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garrras, bicos, etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado identicamente às instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamentos, etc.). Esse ‘ver como’ refere-se literalmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno; de qualquer modo, os xamãs, mestre do esquematismo cósmico dedicados a comunicar e administrar as perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou inteligíveis as intuições. Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma roupa) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Quando estão reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os 276 essencialmente imutável. Se no pensamento domesticado, ou dito ocidental, a identidade é ausência de diferença, o que leva à busca da essência estática do cosmos na filosofia metafísica, no pensamento selvagem a identidade é um caso particular, circunstancial e delimitado da diferença (Viveiros de Castro, 2000a). A mesma variabilidade, praticamente infinita das figuras tatuadas, existente entre ameríndios e marombeiros expressa, em última análise, sentidos opostos. No caso dos marombeiros esta variabilidade é representada pelo fato de o mesmo desenho ser realizado em estilos diversos (tradicional, oriental, new school, tribal, etc.). Por exemplo, há o estilo tribal que pode ser visto em variações tais como a celta, o estilo samoano ou taitiano, há o estilo biomecânico que representa figuras com formas cibernéticas, há o estilo oriental com desenhos inspirados na arte chinesa e japonesa mormente da Yakusa (no caso japonês), etc. Esse movimento – de variação da forma e do estilo - é compreendido pelo fisiculturista como busca pela demarcação identitária que delimita a singularidade da sua pessoa enquanto marca que deseja a imutabilidade e não como demonstração da diferença e do devir imanentes aos cosmos, processo que ocorre no caso ameríndio em que “a distância intensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença intensiva, imanente a uma singularidade dividida” (Viveiros de Castro, 2002f: 293). Enquanto a variabilidade e a continuidade para um significa o próprio movimento cosmológico, o devir; para outro constitui-se como busca pela singularidade identitária, marca de uma “essência” imutável. Se a singularidade é, e afirma, o processo, em um aspecto; em outro, o processo deve ser negado pela própria busca da singularidade. Magia Capilar ou a Louridade da Loura O corpo está no social e o social está no corpo. O agente se sente em casa no mundo – em seu grupo, classe, sociedade, etc. – porque este mundo está nele sob a forma de ação, classificação e percepção deste próprio mundo. animais despem as roupas e assumem sua figura humana. Em outros casos a roupa seria como que 277 Assim, “as injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não ao intelecto” (Bourdieu, 2001:172). A percepção que o indivíduo tem da realidade (inclusive a percepção classificatórias estética) está apreendidas diretamente através da relacionada socialização; às estruturas tais estruturas materializam-se na prática através dos, e nos, corpos. É na ação pedagógica cotidiana – na concretude das práticas sociais - que o corpo e o espírito do agente são moldados. Desta maneira, determinados itens, artigos de consumo ou mesmo condutas características de parcelas dominantes constitutivas das sociedades complexas são adquiridas e imitadas pelas camadas mais baixas com o objetivo de acionar a distinção característica das relações cotidianas de poder. A moda se produz quando um grupo ao qual é conferido o conhecimento e o reconhecimento de elegância e bom gosto tem seu estilo de vida imitado. Contudo, como ela é basicamente distinção social, ao ser imitado pelos grupos considerados socialmente inferiores, o grupo que dita e autoriza a moda abandona o item anterior transmitindo autoridade de distinção a outros modos de expressão social, desautorizando, assim, o modo anterior. Essa magia social de itens temporários, mas de significados constantes, confere àquele que utiliza determinado artigo, ou atitude distintiva, um suposto poder por extensão. A marca, a etiqueta – em seu duplo sentido de comportamento e de símbolo de consumo - ou a atitude corporal confere ao usuário que domina o saber de as utilizar o poder que elas representam (Bourdieu, 1983; Rodrigues, 1980). Esta distinção relacionada porta o paradoxo de inscrever o indivíduo em um grupo social determinado, diluindo-o em uma coletividade, ao mesmo tempo individualizando-o e distingüindo-o do grupo: “ cada forma essencial da vida na história de nossa espécie há suposto, em seu próprio âmbito, uma maneira peculiar de conjugar o interesse pela permanência, a unidade e a igualdade com o interesse pela variação, a particularidade e a singularidade” (Simmel, 1991:27). Assim, a moda relaciona-se com os sistemas de valores, as dimensões afetivas e cognitivas da realidade social, expressando o paradoxo transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos.” (Viveiros de Castro, 2002d: 350-1). 278 da busca pela individualização, pela singularidade, ao mesmo tempo representando o pertencimento a uma tendência coletiva (Idem ). Segundo Leach, o comportamento simbólico não só “diz” alguma coisa, como também desperta emoções e, conseqüentemente, “faz” alguma coisa. Para o autor, “a essência do comportamento simbólico público é que ele é um meio de comunicação; o ator e sua platéia compartilham uma linguagem comum, uma linguagem simbólica” (1983:141). Leach aponta para o fato de que o cabelo é um símbolo universal, sendo o penteado uma característica bastante difundida do comportamento ritual. Em sociedades tradicionais, mudanças marcadas por penteados acompanham, em geral, mudanças de status sexual que ocorre na puberdade e no casamento; contudo o padrão varia. No adulto, a idade é marcada pelo cabelo cortado ou amarrado, mas algumas vezes são as crianças que usam cabelos curtos, enquanto adultos deixam os cabelos cair soltos sobre o pescoço (Leach, Op.Cit.). Lévi-Strauss (1975a), por outro lado, sugere, através da análise dos cortes de cabelo das crianças osago e omahas, que a forma destes cortes servem para destacar o pertencimento do indivíduo às seções das aldeias. Da mesma forma que a tatuagem e a moda, o corte de cabelo, em um processo paradoxal, serviria para singularizar e coletivizar simultaneamente. O cabelo é um dos mais poderosos símbolos de identidade individual e social (grupal). Poderoso, primeiro, porque é físico e extremamente pessoal; segundo, porque apesar de pessoal é também público, muito mais do que privado. As efetivas hierarquias sociais podem ser simbolizadas por intermédio da capilaridade. Gênero, ocupação, idade, fé, etnia, status sócio-econômico e até mesmo orientação política, além de disposições e gostos pessoais – que não deixam de remeter às classes sociais- significam posições na gramática social, radicando-se nas relações de força inerentes às relações entre as pessoas e instituições. Existe mesmo a possibilidade de elaboração de uma teoria do cabelo que sugeriria uma tríade de oposições sintetizadas da seguinte forma: 1) Sexos opostos tendem a ostentar formas opostas de organização capilar; 2) o cabelo da cabeça e o cabelo do corpo tendem a ter significados opostos; 3) concepções de mundo opostas tendem a ostentar formas opostas 279 de cabelo (Synnot, 1993; Leach, 1983). De acordo com Synnot (Idem ), a complexidade do simbolismo capilar é possível por duas razões distintas: primeiro, embora cabelo cresça na maior parte do corpo, em termos simbólicos ele pode ser dividido em três macro-regiões de significado social, que podem ser subdivididas em outras: o cabelo da cabeça, o cabelo da face (sobrancelha, bigodes, costeletas, buços, cavanhaques, cílios, etc) e o cabelo das regiões distintas do resto do corpo (peito, coxa, canela, braço, axilas, costas). Cada uma dessas três regiões possui significado ideológico e de gênero. Segundo, o cabelo pode ser modificado de várias maneiras: comprimento, da máquina zero (careca) até os quadris ou mais; cores e estilos podem ser modificados, e, até mesmo a quantidade do cabelo pode variar ao ser transformada pela utilização de cabelos artificiais e apliques. Esta variabilidade possibilita a enorme riqueza simbólica deste instrumento de comunicação que é o cabelo. O Cabelo do Malhador Nas academias de musculação de fisiculturistas o cabelo possui um grande poder de comunicação e de consagração de hierarquias. Os homens, em geral, usam os cabelos muito curtos e, não raro, é comum vê-los de cabeça raspada ou com cabelo cortado à máquina, (freqüentemente máquina dois). Esta disciplina capilar pode estar relacionada à forte exigência de disciplina cotidiana para aqueles que desejam construir musculatura hipertrofiada. Excessos de gordura e de cabelo são execrados pelos fisiculturistas como se fossem itens profanos de sua cosmologia. Já em relação às mulheres, um certo excesso em relação à capilaridade é interpretado de forma diversa; elas usam cabelos longos que prendem em rabos-de-cavalo ou deixam soltos. Há, também entre elas, uma espécie de fixação por cabelos lisos e claros, de forma que tinturas e alisamentos de todos os tipos são muito comuns. Se há, por parte delas, a tendência de preferir cabelos claros, entre eles ocorre o contrário. Os cabelos são escuros ou grisalhos, salvo raríssimas exceções, descoloridos propositalmente, quase brancos. Há que ser ressaltado o fato de que aqueles indivíduos (tanto homens quanto mulheres) de maior destaque 280 entre os freqüentadores assíduos das academias são justamente os que lançam e seguem estas modas capilares. Em geral, copiam e adaptam o estilo e a moda de algum fisiculturista internacional visto em revistas ou campeonato internacional transmitido por canais de televisão a cabo. Assim, um processo de difusão estética realiza-se do mais destacado para o menos destacado, do centro para a periferia, em um movimento de consagração de instâncias identitárias que tendem a ser tornar globalizadas articulando, através da magia social, aquele ato que “traz a existência a coisa nomeada” (Bourdieu, 1989:116). Esta coisa nomeada só existe socialmente devido ao fato de que aquele que a nomeou tem o reconhecimento e, portanto, a autoridade, conferida por aqueles que acreditam em suas palavras e ações, de nomear e fazer existir coisas e comportamentos através do poder de suas palavras. Ato de magia social. Synnot destaca que nos EUA e Inglaterra a divisão capilar de gênero é manifestada no fato de que as mulheres buscam manter seu corpo com total ausência de pêlos, enquanto homens cultivam cabelos nos peitos pernas e costas, significando virilidade e sensualidade. Se mulheres usam muito cabelo na cabeça e procuram não usar quase nenhum no corpo; homens, por sua vez, buscam tê-los em pouca quantidade na cabeça e muita quantidade no corpo. No caso das academias cariocas de fisiculturistas estudadas tal processo toma aspecto diverso deste destacado pelo autor. Os fisiculturistas depilam ou raspam os pêlos do corpo procurando não deixar qualquer fiapo despontando em sua epiderme. Porém, entre as mulheres, ocorre o cultivo de pêlos – que são constantemente alourados e descoloridos – do joelho para cima, no ventre, (onde fazem uma espécie de caminho louro em direção ao púbis) e na região do cóccix. Esta pelugem, entre elas, assume característica relacionada à sensualidade, posto constituir-se como item simbólico ligado à beleza feminina. Desta forma, enquanto homens tornam-se depilados e lisos por todo o corpo, as mulheres deixam determinadas regiões, que representam e destacam simbolicamente sua sexualidade (ventre, coxa, e ancas), recobertas com pequenos pêlos sempre louros – mesmo que artificialmente. Longe de representarem virilidade, como poderia supor um analista apressado, 281 os pêlos corporais, neste caso, representam o contrário, a feminilidade. Já a ausência de pêlos entre os homens – inclusive faciais, pois raramente usam barba ou bigode - não desvaloriza sua masculinidade, mas, inversamente, é buscada por todos aqueles que cultivam o corpo musculoso. Contudo, canelas e axilas femininas devem estar sempre lisas, sem nenhum pêlo, enquanto nenhum homem deve raspar ou depilar suas axilas, exceto, em alguns casos, em épocas de competição. Há que se ressaltar que o uso de esteróides anabolizantes à base de testosterona provoca aumento de pêlos por todo o corpo – embora provoque calvície – tornando o usuário quase inevitavelmente peludo; tal fato dificulta o processo de depilação e raspagem corporal por parte destes homens. Não é incomum, quando a freqüência às academias é grande, perceber homens totalmente lisos com pequenos cortes em braços, ombros, peitos e pernas provocados pelo uso excessivo de aparelhos de escanhoar utilizados por todo o corpo. Se em alguns grupos sociais o excesso de pêlo masculino faz alusão direta à masculinidade, este não é necessariamente o caso entre os fisiculturistas. Também as mulheres freqüentadoras das academias dizem apreciar homens sem pêlos, falam que não gostam de bigodes e barbas e têm nojo daqueles que possuem pêlos nas costas: “Detesto homem peludo, parece macaco, urso, sei lá. Argh, esse estilo Tony Ramos, me dá um nojo....hummm. Bigode? Piorou!!! Parece que ‘cê ‘tá beijando vassoura!!! (Cássia. 19 anos. Estudante). Outra disse: ”Me dá nojo... aquele cabelo nas costas e no peito, saindo pela camisa, nossa! É horrível, eu detesto, homem peludo, eu detesto. Gosto de homem lisinho, por isso que gosto de marombeiro, eles têm o maior corpaço e não têm pêlos, o único problema é que quando os pêlos estão crescendo começam a espetar... (Ana. 23 anos. Jornalista). Sobre as coisas consideradas nojentas, é sempre necessário perguntar quando, como e por que elas são nojentas e como e quando deixam de ser nojentas (Douglas,1976). As práticas corporais são comportamentos rituais 282 sustentados por crenças míticas. A sociededade asseptizada é automaticamente uma sociedade hierarquizada. A luta contra a poluição, diz Rodrigues (1980;1995), está sempre associada ao estabelecimento de um poder (religioso, econômico, administrativo), ao advento de figuras poderosas (xamãs, heróis, líderes, chefes, visitas) e ao crescimento e a reprodução de uma determinada ordem social. Assim, depilar o corpo constitui-se como um rito cotidiano de purificação dos fisiculturistas. Eles necessitam estar lisos para que seus músculos apareçam com mais definição e clareza. Sua muscularidade é ostentatória e, portanto, pública; toda sua construção física é uma construção para o espetáculo da forma, da estética construída pelo peso das anilhas. Músculos e pêlos são itens antagônicos neste sistema classificatório, contrapõe-se como o público e o privado, o positivo e o negativo. Embora o cabelo da cabeça seja símbolo para o coletivo, na lógica dos freqüentadores de academias os pêlos masculinos podem representar a dimensão da interioridade, da privacidade, da intimidade e do particular. Como extensão da interioridade, e, portanto, daquilo que não deve ser dado a público, o excesso de pêlo corporal masculino causa asco àqueles que com eles se deparam nas salas de musculação. Depilar-se, raspar-se, para estes homens, é um ato de higiene, de despoluição corporal. Da mesma forma, o pêlo das canelas femininas e axilas representam algo impuro que não deve ser apresentado publicamente. Por outro lado, “o que é puro em relação a uma coisa pode ser impuro em relação a outra e vice-versa.” (Douglas, Op.Cit.: 21) Se o cabelo da canela e das axilas é impuro, remetendo muitas vezes, entre os informantes, ao nojo, o do ventre é quase sacralizado. Durante o verão, tornam-se mais perceptíveis quando as mulheres estão muito bronzeadas e com roupas menores do que em outras épocas do ano. Para ressaltar a considerada sensualidade do ventre, existem ainda os piercings de umbigo que são utilizados por quase todas as freqüentadoras assíduas das academias. Desta forma, pêlos alourados e piercings sacralizam uma das regiões consideradas símbolos da feminilidade: o ventre. Ocorre o mesmo processo com coxas e quadris (cóccix) femininos em que a pelugem dourada recobre a 283 forma, destacando as regiões ligadas à sexualidade e, portanto, cobiçadas por aqueles que produzem e reproduzem estes sistemas objetivos e subjetivos. Junto com, - e além dos -, pêlos estrategicamente alourados e posicionados, os homens das academias tendem a exaltar também o cabelo longo, liso e louro das mulheres, visto como sinônimo de feminilidade, de “capricho”, cuidado de si, limpeza e sensualidade: “Cabelo comprido é demais, lisinho, macio cheiroso, é muito lindo... mulher p’ra ter cabelo curto tem que ser muito bonita se não fica muito sem graça...” (Fábio. 30 anos. Funcionário público). Outro fisiculturista falou: “eu sou muito louco por mulher de cabelo comprido e louro, é muito sensual, sei lá, mais feminino.... quando eu saio na night, e vejo um cabelão louro já ligo logo o radar... fico ligado na mulher... só filmando [olhando] se for bonita dou logo o bote, chego junto, tento aproximação...desfilar com um mulherão louro do lado dá a maior presença, abala geral.” (João. 28 anos. Comerciante) A Loura Virtual O cabelo louro e comprido, geralmente liso, exerce um grande fascínio sobre homens e mulheres dedicados ao cultivo da forma e da muscularidade. Porém, longe de ser apenas uma manifestação da preferência estética atual das academias, o cabelo louro, desde o final do século XIX, têm sido no Brasil, em geral, principalmente entre as mulheres, um item de consumo e de busca de distinção. Nas salas de musculação, spinning82 e ginástica, contudo, uma quantidade significativa de mulheres tinge o cabelo e transita por tais instituições ostentando douradas madeixas raramente legítimas. Certa vez, por exemplo, em uma tarde de agosto de 2002, contei em uma destas salas vinte e uma mulheres, dezessete dentre elas tinham o cabelo tingido de louro, sendo 82 - O spinning é uma prática de ciclismo com bicicletas fixas – não ergométricas - dentro de locais fechados nas quais são simuladas as várias etapas de uma corrida de bicicleta ao ar livre em conformidade com ritmos musicais mais ou menos acelerados de acordo com o esforço exigido. 284 que dentre as dezessete, oito poderiam ser consideradas mulatas, que além de tingidos, tinham os cabelos alisados. Mas como compreender o motivo pelo qual as pessoas de um país que tradicionalmente diz se orgulhar de suas morenas, mulatas e negras tenderem a cultivar, na prática, esta espécie de obsessão pelo modelo de cabeleira lisa escandinava? O que simboliza o cultivo das claras madeixas por mulheres ligadas à transformação da forma física padronizada pelas academias de musculação e fisiculturismo ? No final do Império, o Brasil foi invadido por uma série de inovações técnicas que visavam a melhoria da condição industrial. Nesta época, quase tudo era importado da Europa; desde sapatos, descascadores, ventiladores para produtos agrícolas até o gosto pela cerveja. Armarinhos e lojas importavam as novidades das estações, o que era chic em Paris era importado e consumido pelas elites nacionais. A máquina de costura Singer permitia às costureiras copiarem todos os francesismos utilizados pelas damas da corte (Del Priore, 2000). Gilberto Freyre sugeriu que neste processo de consumo das coisas que vêm de fora chegaram as louras; não as de verdade, de carne e osso, mas as bonecas francesas de porcelana e olhos azuis que passaram a povoar o cotidiano e o imaginário das meninas abastadas. De acordo com o autor, o culto “das bonecas sempre louras e sempre de olhos azuis” (1986:98) deve ter concorrido para contaminar algumas destas garotas com certo arianismo para desenvolver no espírito destas meninas e futuras mães a idealização de crianças que nascessem louras e crescessem parecidas com suas “bonecas francesas louras e róseas” (Idem , 1986:33; 1990. Apud. Del Priore, 2000:102). Deslumbradas com o possível desenvolvimento e “progresso” da sociedade brasileira, a elite paulista e carioca via nos modelos de consumo europeu o paradigma a ser seguido. As teses racistas de branqueamento populacional (eugenismo) disseminaram-se entre a intelectualidade que associava o atraso do país à presença efetiva de negros e índios. Oliveira Vianna foi um dos expoentes tardios desse pensamento; sua antropologia do tipo lombrosiano relacionava tipos físicos com comportamentos sociais. Para ele o componente europeu pode ser caracterizado do ponto de 285 vista antropológico em dois grupos: os homens altos, dolicóides e louros que “devem preponderar na classe aristocrática: na nobreza militar e feudal da península e os homens brunos, dolicóides ou braquicóides que formam a base das classes médias e populares” (Vianna, [1922] 1956: 126-7. Apud. Laraia, 1997:30). Oliveira Vianna, expressando o eurocentrismo das elites do início do século XX, demonstrava, como era comum, predileção especial pelos povos germânicos, porque mesmo admitindo que a população portuguesa teve uma formação étnica complexa, fruto de um intenso caldeamento de raças, atreve afirmar que na fidalguia peninsular da era dos descobrimentos dominam os descendentes dos velhos conquistadores germânicos: godos, suevos, normandose borguinhões (Laraia, Op. Cit.). Após ligar a conquista dos sertões à ancestralidade germânica dos primeiros colonizadores, Vianna destaca que os “dolicóides louros [são] capazes de grandes façanhas, suficientemente heróicos para vencer os grandes desafios...” De acordo com ele, “a presença nas suas veias [dos primeiros colonizadores] de glóbulos de sangue germânico bem lhes poderia explicar a sua combatividade, o seu nomadismo...” Os caucasóides de pele e cabelo mais escuros seriam menos nobres; enquanto os primeiros constituiriam naturalmente a aristocracia, os segundos se deteriam em ocupações menos nobres como o comércio e os ofícios manuais (Idem ). Dada a suposta superioridade dos louros germânicos sobre o resto da humanidade, Vianna é pouco simpático com índios e negros culpados de conferir ao Brasil “caos...confusão e discordância [já que] sua capacidade de civilização [principalmente a dos negros, destaca], sua civilizabilidade, não vai além da imitação, mais ou menos perfeita, dos hábitos e costumes do homem branco” (Ibid.:31-2). Diante desta ideologia que, desde o século XIX, reinava nas percepções sociais da elite nacional, a obsessão pela modernidade e civilização levou, esta mesma elite, a propor imigração de colonos europeus para o país com o objetivo de transformar a nacionalidade brasileira em “branca, civilizada e superior” como sugeria Joaquim Nabuco (Dos Santos, 1997:46; Sant’Anna, 1995). Incomodada com a miscigenação e africanização da população e preocupados em construir uma nacionalidade que supunham superior e, portanto, branca, a elite propõe a vinda massiva de imigrantes, 286 sobretudo alemães, considerados modelos exemplares de eugenia. Para arrematar tal processo é promovida também a vinda de prostitutas francesas, polonesas e alemãs. Começa surgir a moda da loura (Del Priore, Op. Cit.), símbolo do sucesso de nações consideradas superiores, representantes do poder estrangeiro, da suposta superioridade étnica e civilizacional. Os jovens da elite paulista, por exemplo, sonhavam serem iniciados no mundo sexual pelas mãos de européias experientes e viajadas, embora jovens, que poderiam trazer-lhes, além dos prazeres do amor, o vislumbre da cultura civilizada supostamente concretizada nos bordéis pela presença destas valquírias hetairas, de carnes brancas e sotaque carregado, tidas no imaginário da época como símbolos da modernidade83 (Rago, 1991). Processo similar ocorria no Rio de Janeiro. Modernização para a elite carioca significava romper imobilismos e caminhar no sentido do progresso, em busca do estabelecimento de uma sociedade de moldes europeus. Neste aspecto, o mito da superioridade européia reproduziu-se nas fantasias sexuais das camadas mais altas da sociedade (Menezes, 1990). A partir de 1867 começaram a chegar no porto do Rio de Janeiro “as polacas”, jovens do leste europeu, freqüentemente judias (muitas louras e ruivas), e que constituiram a maioria das mulheres vendidas no tráfico de escravas brancas para a América do Sul. A vida profissional dessas mulheres era gerida por empresários também judeus 84 que prometiam marido e vida nova na América – não especificavam qual, se a do Norte ou do Sul – para as mulheres pobres dos territórios judeus da Rússia, 83 - A historiadora Margareth Rago mostra o “poder” destas prostitutas estrangeiras: “quando a loira parisiense Marcelle d’Avreux descia as escadas da Pensão Milano, propriedade de Mme. Serafian, em direção ao carro que a esperava na porta, na Rua São João, n. 30, escandalizava os provincianos de São Paulo dos inícios do século [XX]. Todos os olhares se voltavam para suas roupas coloridas e extravagantes e para seu enorme chapéu enfeitado com longas penas de avestruz – as pleureuses - , cuidadosamente encrespadas e emendadas para parecerem mais longas e caras. Ao lado de outras cocotes de fama internacional, como se acreditava, a cançonetista Jeanne Peltier, Mimi Turris, Maria Cabaret, Hèléne Chauvin, recém-chegada de Paris, costumada desfilar pela cidade... Quem sorria eram os ‘coronéis’ recém-chegados do interior, deslumbrados com o visual moderno que coloria seus olhos... e a jeunesse dorée, esperançosa de encontrar alguns flertes e fugazes aventuras românticas” (1991:33). Aspecto um pouco diverso destaca Lená Medeiros de Menezes sobre a prostituição de estrangeiras no Rio: “Cissi Gutridge, menor de idade, havia fugido de sua casa no interior da Inglaterra, indo para Londres, onde foi deflorada por indivíduo que depois a vendeu, por 2 libras, a Laura Scunkler, austríaca, meretriz residente no Rio de Janeiro. Esta a seduziu com promessas de muito dinheiro e jóias, trazendo-a para o Rio e estabelecendo-a em sua casa, onde passou a explorá-la e a viver do produto de seu corpo... Laura ia a europa, de vez em quando, buscar mulheres” (Menezes, 1990:137). 287 para depois violentá-las e mandá-las para bordéis do Rio de Janeiro ou Buenos Aires. Mas havia hierarquia no consumo dessas mulheres européias. Sendo a França, na época, o paradigma de civilização, deitar-se com uma francesa custava caro; portanto a alta prostituição, o meretrício de luxo, estava repleto de francesas. Já as mulheres da Europa central eram usufruidas por homens dos setores médios. Segundo Needell (1993), as mulheres da elite eram facsímiles, mais ou menos bem sucedidos das francesas, tentavam imitá-las comprando todos as modas possíveis provenientes da França e adotando os modos “civilizados” das francesas. Assim, as prostitutas dos locais freqüentados pelos homens da elite eram, em geral, de origem francesa; amostras humanas daquilo que era considerado o “berço da Civilização”, elas poderiam, supostamente, ensinar os cobiçados refinamentos franceses aos seus clientes. A paixão por estas mulheres revelava o fetichismo específico dos homens da elite pelos valores eurófilos. Tais homens concebiam que poderiam absorver, nem que fosse por osmose, a suposta superioridade que as louras européias representavam. A partir da década de 30 do século XX, com o crescimento da hegemonia cultural americana, o poder das platinum blondes é ainda mais fortalecido, embora com uma modulação de sentido. As faces rosadas das estrelas de Hollywood e da indústria musical passam, uma após outra, a dominar o imaginário de homens e mulheres: Jean Harlow, seguida de Marlene Dietrich, Anita Eckberg, Jane Mansfield, Doris Day, Marylin Monroe, Ursula Andress, Jane Fonda, Madonna, passando por Cameron Diaz, Britney Spears, Reese Whitherspoon e Nicole Kidman. Simultaneamente ao sucesso das louras na mídia aprimoraram-se os produtos químicos que permitem àquelas que não o são converterem-se ao chamado blonde power. Neste processo, o cabelo louro, e preferencialmente liso ou ondulado, foi tornando-se cada vez mais, símbolo de status e sedução. No Brasil, apesar do tão propalado ideal multicultural de igualdade entre tipos étnicos diferentes, há uma hierarquia estético-capilar claramente admitida. Basta assistir à televisão brasileira durante algumas horas para perceber que a pele branca e, 84 - O termo popular carioca para gigolô, cáften ou cafetão, advém de caftan, traje tradicional usado pelos 288 principalmente, a “lourice”, são valorizadas (Edmonds, 2002). Essa hierarquia radicada na germanidade e capilaridade dourada pode ser notada no fato de que os dois atuais modelos femininos mais incensados de beleza tem pele branquíssima, cabelos louros e olhos azuis: Gisele Bündchen e Xuxa Meneghel. No patamar subseqüente estão as mulheres brancas de cabelos escuros e olhos claros como Ana Paula Arósio e Daniela Cicarelli, logo em seguida vindo as morenas e, abaixo de todas, as mulatas. Segundo Burdick, “estão excluidas da classificação as mulheres de cabelo duro, crespo, pele muito escura e traços faciais africanos, como nariz largo e achatado” (2002:196). A incensada “beleza negra”, em geral, é representada por mulatas com traços faciais caucasóides. Ela, a mulata, está presente com mais freqüência na TV, e mídia em geral, no período do carnaval, sendo que após a onda da folia momesca, retorna para a lanterna da hieraquia estética midiática da qual as negras estão excluídas. Alguns relatos dos informantes são sugestivos a respeito da louridade da loura - espécie de “essência”, ou alma loura, que não está diretamente relacionada à legitimidade da cor do cabelo. Perguntadas por que clareiam o cabelo algumas entrevistadas disseram: “Não sei! ‘Tá na moda.... Acho que ser loura é legal porque eu fico bem, me sinto bem assim. Quando eu nasci eu era loura, tinha cabelo lourinho, aí foi escurecendo, então no fundo eu acho que sou loura, [risos], mas não sei, me sinto bem e isso é o que importa, porque depois que eu clareei o cabelo muito mais caras passaram a olhar p’ra mim, pode ser que seja porque eu me sinto bem, ou porque eles gostam de louras [risos]”. (Carina. 26 anos. Advogada). Ainda: judeus do leste europeu (Needell, 1993:323). 289 “Eu clareio meu cabelo porque eu me sinto loura... não consigo mais me conceber morena... meu cabelo é castanho escuro, mas eu me sinto loura... acho que ser loura é um estado de espírito. Não adianta a mulher pintar o cabelo de louro se ela não se sente loura, se não tem alma loura, ser loura é..., como poderia dizer, é ... ter charme, seduzir, chamar atenção. Entende? A loura chama mais atenção. Se você tá super-loura, com o cabelo bem claro, bronzeadona, coloca um vestido u j stinho, um salto alto, chega num lugar, numa festa, num barzinho, pronto!!! Todo mundo fica te olhando, você chama a maior atenção. (Sandra. 21 anos. Estudante). Ou: “Eu tenho o cabelo claro já, só que clareio mais, me sinto legal... mas acho que não é qualquer uma que pode sair botando o cabelo louro, tem que ter alguns requisitos... uma pessoa muito morena por exemplo, não fica legal loura, não fica bem, é meio caricatura, né? Se bem que agora até preta tá pintando o cabelo de louro, né? Acho que p’ra ser loura o resto tem que combinar, se não, não dá mesmo. Tem que ser clara ou ter um olho claro p’ra combinar; se não fica esquisito. Outro dia li não sei onde, acho que foi numa revista, que p’ra clarear o cabelo a mulher nem precisa ser loura, mas tem que ter alma loura, é isso: p’ra pintar o cabelo de louro tem que ter alma loura, senão não adianta” (Patrícia. 29 anos. Economista). Os relatos masculinos ressaltam aspectos diversos: “ Eu adoro loura! Sou fissurado, não sei por que... acho que é por causa daquele jeitinho de nenem que elas têm e no fundo 290 são umas diabas... não sei... mistura de ingenuidade com sensualidade.... é isso, a loura parece ingênua, mas não é. Tem aquele ar desprotegido e insinuante, isso me atrai, fico doido quando vejo uma lourinha com esse jeitinho de ‘me protege, me leva p’ra casa, cuida de mim [risos]’” (Pedro. 33 anos. Fisiculturista amador e administrador de empresas). Continuando: “Sou doido por uma loura... cabelo dourado me deixa louco, fora da razão, ainda mais se for daqueles compridos, ah meu Deus, fico doido! Não sei porque, acho que todo mundo gosta de loura, por mais que diga que não; ‘ce vê só, observa só, esses jogadores de futebol, ainda mais se for preto, o cara fica rico arranja logo uma loura. Um carro importado e uma loura p’ra namorar... não é ? Acho que ter uma loura do lado é símbolo de riqueza, de poder, sei lá meu irmão... vai ver que é isso, só sei que eu gosto muito...” (Carlos. 41 anos. Fisiculturista amador e dono de academia). Se não é mais (ao menos de forma explícita) o ideal eugênico que move os homens e mulheres a gostarem e se identificarem com as louras, permanece, no imaginário das camadas médias urbanas, a mística da louridade, com toda a hierarquia capilar que ela estabelece. Sendo símbolo do sucesso, o cabelo louro é mesmo separado da etnia, tornando-se por si só, o sinal de distinção : “eu sei que não sou branca, meu pai é negro, eu sou mulata...Sou criloura!!! [risos]. Eu pinto meu cabelo de louro não é porque quero ser branca, se tivesse na moda pintar de azul, eu pintaria, se fosse verde, eu pintaria, o louro é só uma cor que ‘tá na moda, nada mais... Já pintei de vermelho. Gosto como ‘tá 291 agora... é mais um acessório, como usar uma pulseira, um vestido, é isso. (Josiane. 24 anos. Estudante) O cabelo louro, nas sociedades de consumo que as academias de fisiculturismo, de certa forma, representam, é mais uma marca, uma espécie de etiqueta capilar identitária a ser consumida. Na lógica da distinção delimitada por este símbolo (e pela qual é delimitado), não é qualquer mulher que pode ostentá-lo com eficácia, mas apenas aquelas que trazem a magia social da chamada “essência loura”. Em outras palavras, a legitimidade do cabelo louro não se resume exclusivamente a sua originalidade ou autenticidade, mas a um habitus cultivado e apreendido representado pela postura corporal que constrói a mulher sensual e reduzida ao seu sexo como portadora dos fios dourados. Este fetiche humano, objeto de prazer, tem, nas suas técnicas corporais de sedução feminina que o constituem, o simbolismo imanente de uma suposta louridade (“alma loura”) que transcende a etnia, e a própria cor natural dos cabelos, para encarnar-se em gestos que dependem do status masculino para fiador de sua condição power blonde. 292 Capítulo VII Elogio à Barbárie “Adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, (...) o maior impedimento à civilização.” Sigmund Freud. Se “bárbaro é em primeiro lugar o homem que crê na barbárie” (LéviStrauss, 1976), a princípio os bodybuilders poderiam, e gostariam, de serem chamados de bárbaros por pertencerem a uma cultura que ao mesmo tempo faz apologia e despreza – dependendo das circunstâncias – aquilo que ela entende como tal. Os grupos sociais que integram as chamadas sociedades complexas de origem européia veneram concepções de progresso e evolução. Nesse contexto, tais concepções estão relacionadas às idéias de prosperidade e felicidade. Civilização e progresso parecem constituir categorias mestras do jargão do senso comum. Palavras mágicas que sugerem um suposto reino de felicidade (Arendt,1990). Ser chamado de “evoluído” passa a ser um dos maiores elogios nestas culturas; estando o “bárbaro” e o “selvagem” situado em uma dimensão oposta e mesmo ameaçadora à ordem e ao progresso do sistema social. Entre os fisiculturistas tal ideologia está sempre presente através do constante elogio aos produtos desenvolvidos pela ciência os quais têm por função otimizar a construção do corpo e da forma. Por outro lado, há uma peculiaridade relacionada ao simbolismo da força, da virilidade e da conquista do sucesso presente em todo o imaginário fabricado pela indústria da propaganda que articula imagens de corpos musculosos e supostamente saudáveis. Ser bárbaro, neste caso, pode significar ser forte, rotundo, grosso, vencedor e temido, e portanto, em determinados momentos, representar a positividade. Símbolos são fluidos, maleáveis, voláteis e ambígüos; se o sistema cultural comum às sociedades complexas ocidentais é marcado – uns mais outros menos – pelo racionalismo e formalismo contrapondo-se teoricamente à contradição – sendo o fisiculturismo uma expressão deste 293 processo civilizatório particular -, no caso específico dos bodybuilders ou marombeiros tal aspecto surge portando um certo quantum de paradoxo. Segundo Elias e Dunning (1990;1994;S/d), as sociedades complexas ocidentais passaram por uma esportificação que, por um lado, serviu como uma espécie de antídoto catártico para o excesso de autocontrole exigido pelo cotidiano burocratizado e opressor e, por outro, como interiorização de regras de diversão que passaram a circunscrever a violência em um determinado espaço (ringues, estádios, clubes, etc) promovendo a moderação e impedindo o amplo uso da mesma violência publicamente. Contudo, os autores também apontam para uma regressão desse processo civilizatório; regressão manifesta não apenas, por exemplo, pelo surgimento do nazismo, mas pela aparição eventual dos hooligans nos estádios de futebol. Os sintomas desta regressão talvez possam ser percebidos nos temas a serem tratados a seguir. Quando em Agosto de 2000 efetuei matrícula em uma das academias de fisiculturistas pesquisadas percebi que apesar dela ter o mesmo aspecto das outras academias que haviam sido objeto de estudo para a dissertação de mestrado – muitos pesos (anilhas), quase todas as paredes espelhadas, muitas máquinas de musculação e fachada de cores vibrantes – algo diferente concretizava-se nas atitudes e postura daqueles que permaneciam em seu interior. Mulheres, quase não havia; e aquelas que lá estavam pareciam mais travestis do que mulheres devido o excesso de massa muscular que portavam. O ambiente rústico, um grande galpão construído no interior do que havia sido uma ampla casa, apresentava uma ar mais pesado (como se uma briga pudesse acontecer a qualquer momento) do que o de outras academias85; desde o tipo de música popular que era despejada dos autofalantes nos cantos das paredes (heavy metal, techno, rap, hip-hop e funk86, contrapondo-se ao pop, à música baiana e à dance das outras academias) à aparência do professor – na realidade um instrutor, também fisiculturista, que nunca havia 85 - Os freqüentadores destas academias denominam em tom de deboche “perfumarias” as academais que não são voltadas diretamente para o fisiculturismo. Dizem que tais academias são caras, limpas e cheirosas mas não dão resultado nenhum. Chamam os frequentadores de tais academias de “churriados”, “pangarés” e “merdas”. 86 - Alguns grupos de música popular que pude identificar: Iron Maiden, Sepultura, Prodigy, Run DMC, e os chamados MCs de funk do momento. As letras dos funks e Raps produzidos nas comunidades pobres que falam de sexo e violência, são muito apreciadas pelos freqüentadores destas academias. 294 colocado os pés em uma faculdade de educação física como orgulhosamente gostava de falar - , uma massa de músculos com cabelos em estilo militar descoloridos, quase brancos e arrepiados com gel, tênis Nike roxo e de cano longo em forma de botina, camiseta amarela apertada e rasgada estrategicamente para realçar os músculos denominados de trapézio e dorsal, bermuda colante de ciclista e várias tatuagens espalhadas pelo corpo: um tubarão com a boca aberta com se fosse morder a presa no braço direito, o símbolo do super-homem no braço esquerdo, o símbolo dos X- men tomando quase toda a parte de trás da nuca e a figura de um cão pitbull babando na panturrilha da perna esquerda. A pele deste homem, no momento em que o avistei, pareceu uma síntese do imaginário adolescente presente nos filmes de Hollywood e revistas em quadrinhos. Seu corpo era um estandarte musculoso da indústria cultural. Mas ele não era o único. Muitos fisiculturistas costumam criar cachorros de raças tidas como violentas (rotwailler, pitbull, fila, etc) aos quais dão anabolizantes e comida bastante apimentada para “ficarem nervosos e fortes como os donos”. Certa vez, passando em frente à residência de um fisiculturista no bairro do Grajaú, avistei um gato de tamanho desproporcional para a espécie. Admirado, falei com o dono do animal sobre o tamanho singular do bicho, ele disse: “é bombado! Eu dou comprimido de hemogenin [um dos mais potentes e iatrogênicos esteróide anabolizante que existe no Brasil] p’ra ele...vai botar até pitbull p’ra correr!” Com o passar do tempo, as diferenças entre os tipos de academias pesquisadas foram sendo ressaltadas. Por exemplo, as máquinas de fazer exercícios – chamadas geralmente de “aparelhos” pelos usuários – estão sempres sujas de graxa, nas academias dos fisiculturistas, pois os bodybuilders limpam nelas suas mãos quando encostam, ao se exercitarem, em alguma junção engraxada do mecanismo das mesmas. Jogar pesos no chão produzindo grande estardalhaço e berrar na hora de levantá-los, ou berrar palavrões após os exercícios mais difíceis, aplicar injeções de esteróides em público – certa vez um fisiculturista saiu, de propósito e com ar de troça, do banheiro com uma injeção de decadurabolin espetada no ombro esquerdo e 295 gritou para todos: “Bomba!!!” 87 - , dar arrotos sonoros e soltar flatulências idem são atitudes comuns quando fisiculturistas estão reunidos para treinar. Como manda o bom figurino acadêmico-disciplinar, o antropólogo jamais julgaria tais atitudes como sendo de bárbaros, embora aqueles que as pratiquem pudessem se sentir extremamente lisonjeados de assim serem chamados nestas circunstâncias. Ser comparado a Conan O Bárbaro, personagem interpretado por aquele que é considerado o maior fisisculturista de todos os tempos, Arnold Schwarzenegger, ou demonstrar a frieza e a atitude rude e, por vezes grosseira, de um Extermindaor do Futuro, filme protagonizado pelo mesmo ator, é uma lisonja para estes homens. Imbuídos desta força que julgam selvagem tais indivíduos não hesitam também em utilizá-la quando contrariados, de forma que presenciei inúmeros confrontos com empurrões e xingamentos que acabavam em expulsão das academias ou mesmo com a presença da polícia no recinto. Tatuagens de animais ferozes, e super-heróis recriados pela nova mitologia capitalista, além de piercings, tênis em forma de botina e de solado rústico, roupas rasgadas mostrando músculos e tudo o mais que possa remeter a um sentido de força e peso aludindo ao que por eles é considerado selvagem ou bárbaro e, portanto, valorizado. Mas isto não basta para que se possa compreender tais atitudes. Violência Difusa Indivíduos manipulam códigos, fazem coisas diversas, ou as mesmas coisas de modo diferente, segundo exista ou não determinadas pessoas no recinto, escreve Rodrigues (1995). Este processo indica a existência de ambigüidades semânticas ou de alternativas sintáticas pertinentes aos 87 - Um dos principais fatores de distinção deste tipo de academia para outros mais comuns é o uso público de esteróides (doping). É constante pessoas aplicando umas nas outras, nos banheiros, vestiários ou mesmo nas próprias salas de musculação, as injeções intramusculares de testosterona sintética contrabandeadas, muitas vezes de origem veterinária. Mais comum ainda é a presença do esparadrapo nos ombros indicando que aquela pessoa está recém aplicada. Ao contrário do que acontece em outras insstituições esportivas e da forma a maioria dos frequentadores não escondem o uso indiscriminado de drogas para adequar sua performance aos altos padrões socias hoje exigidos. Ocorre um grande intercâmbio de informações a respeito das inúmeras maneiras de utilizá-las e de seus resultados, engendrando um vasto saber marginal sobre os efeitos de tais substâncias. Tais usuários tornam-se 296 sistemas simbólicos. O fato de haver um grande número de semelhantes, fisiculturistas, nestas academias faz com que o formalismo se afrouxe. Sabe-se que em ambientes ou grupos sociais extremamente hierarquizados são requeridos elevado grau de autocontrole por parte dos indivíduos que tendem, então, a se expressarem com rígida aplicação de regras de pureza e separação. A vigilância sobre os processos orgânicos e os comportamentos menos formais torna-se alta (Douglas, 1976; Dumont, 1993; Rodrigues, Op. Cit.). O comportamento dos fisiculturistas não é assim tão “informal” em academias nas quais constituem minoria ou mesmo são rejeitados pelos proprietários. Por outro lado, estes homens (e mulheres) encarnam as regras da construção corporal calcada na muscularidade infringindo sobre seus corpos forte disciplina. Sendo símbolos de excelência física, têm inscritos em sua pele e músculos as estruturas objetivas e subjetivas da sociedade que buscam afirmar, mesmo cultivando atitudes de marginalizados por esta. Seguem códigos, com rígidas aplicações de regras alimentares, de comportamento e exercícios, sendo a espontaneidade um luxo raro devido o supremo objetivo que se colocam de encarnarem a forma perfeita através das suas fibras musculares. Quando em ambiente no qual não necessitam representar o drama das hierarquias sociais, deixam o corpo livre das regras e códigos rígidos. A pureza reluzente, ascética e asséptica que necessitam apresentar como imagem do poder corporal é, nestes momentos, abondonada em favor da lassidão natural que iguala todos os seres. Porém, tal lassidão igualitária logo é abandonada se algum ato venha a sugerir o esquecimento de que aquela autoridade, embora suspensa, existe. Assim, assim a violência (agressões físicas e verbais) aparece com a ultima ratio diante da ordem hierárquica ameaçada. Victor Turner escreveu que (1974: 133) “em quase toda parte se atribuem às situações e papéis liminares propriedades mágico-religiosas... freqüentemente consideradas perigosas... contaminadoras”. Há, portanto, uma correlação entre a marginalidade social e um certo tipo de poder que difere do utilizado nas estruturais formais de controle (Fry, 1982). A imagem do bárbaro, especialistas testando – como foi dito anteriormente – neles mesmos os poderes químicos de tais 297 supostamente distante da racionalidade, grosseiro e violento, em certos momentos surge no imaginário ocidental como ícone da marginalidade. Imagem de alguém ou grupo que foge às estruturas formais de controle. Mas a tentativa de fuga de tais estruturas pode constituir-se como movimento deletério, perigoso, profano. Ser bárbaro pode ser estigma em determinadas circunstâncias e sinal de status em outras88, justamente devido o fato de apresentar este caráter deletério no sistema classificatório de uma cultura que crê ser a única civilizada.89 Este aspecto pode justificar a busca por parte dos fisiculturistas da aquisição de tal imagem. Aliás, o problema do estigma tão bem analisado por Goffman (1982) alude também ao caráter dúbio que o estigmatizado porta; se ele avisa a existência de alguém ou grupo excluído, simultaneamente pode significar natureza sagrada ou mesmo graça divina. Sagrado e profano em suma são complementares. Outro aspecto a ser destacado é o da violência presente no cotidiano dos construtores da forma musculosa. Em geral, nas academias de musculação pesquisadas, é comum a prática de artes marciais, sendo o jiu-jitsu e o boxe tailandês as lutas da moda nestas instituições. A busca em adquirir e ostentar um ethos guerreiro é uma das atitudes principais da construção de pessoa nestes grupos de adoradores da força e da forma. A masculinidade, entendida como uma exacerbação da virilidade, deve ser constantemente produtos. Alguns, como é de domínio público, morrem por usá-las de forma indevida. 88 - Da Matta (1987) chama atenção para a positividade do ambígüo presente na cultura brasileira. No triângulo amoroso representado em Dona Flor e seus dois maridos a ambigüidade é lida como complementar, sendo capaz de reunir desejo e lei, liberdade e controle, trabalho e malandragem, sexo e casamento, descoberta e rotina, excesso e restrição. O ambígüo é assumido e até desejável, já que o ser humano é, ele mesmo, percebido como um ser repleto de contradições. 89 - A palavra civilizado é entendida por parte da intelectualidade influenciada pelo positivismo ou pelo hegelianismo, e grande parte do senso comum pesquisado, estando associada às idéias de progresso, de evolução, de superioridade moral, de educação e de razão. Apesar de todo o esforço da antropologia, tal concepção ainda reina soberana, tanto em parte significativa da academia quanto ainda mais vasta parte do senso comum. Segundo Cuche (1999), civilização (palavra surgida na Europa iluminista do séc. XVIII) designa o afinamento dos costumes, e significa o suposto processo - instaurado pela primeira vez pelos “esclarecidos” – que tende a arrancar a humanidade da ignorância e irracionalidade. Diante desta acepção, reitera-se que toda forma de governo e organização social deve pautar-se na “Razão” e nos conhecimentos. Civilização é então definida como um processo de melhoria das instituições, da legislação e da educação. Ela deve começar no Estado o qual deve liberar-se de tudo que é ainda “irracional” em seu funcionamento. Finalmente, tal concepção “afirma que a civilização deve estender-se a todos os povos que compõem a humanidade. Se alguns povos estão mais avançados do que outros neste movimento, se alguns... estão tão avançados que já podem ser considerados como ‘civilizados’, todos os povos mesmo os mais ‘selvagens’, têm vocação para entrar no mesmo movimento de civilização, e os mais avançados têm o dever de ajudar os mais atrasados a diminuir esta defasagem” (Idem:22). 298 afirmada através, não apenas das posturas corporais, mas de atos, e estes atos resumem-se às lutas em torneios e brigas de ruas empreendidas pelas “galeras” de marombeiros que saem nos finais de semana para, como eles mesmos dizem: “pegar mulher e brigar”, não necessariamente nesta ordem. Tais indivíduos, todos ainda jovens, travam verdadeiras guerras com outros indivíduos do mesmo tipo, de outros bairros e academias. Tais embates muitas vezes acabam em morte. Quase toda segunda-feira, aparece alguém com hematomas ou gesso em um dos braços ou pernas relatando as aventuras que participou no final de semana na saída de alguma boate da Barra da Tijuca ou baile funk 90. Estes indivíduos, praticantes de musculação e artes marciais, não são necessariamente fisiculturistas, mas se auto denominam pitboys em alusão à violência do cão usado em rinhas. O Status da Briga Estes comportamentos relacionados à freqüência a determinados bailes funk e e boates e à articulação de um certo tipo de violência neles existente, que até recentemente eram típicos das classes baixas (Diógenes, 1998; Abramovay, Waiselfisz et Alii, 1999; Alvim & Gouveia, 2000), estão sendo adquiridos como sinal de distinção e status, ao menos momentâneo, entre número significativo de jovens da classe média. Os bailes funk, e toda a indústria cultural que acompanha este movimento e o expande, têm tido como consumidores cada vez mais freqüentes os jovens dos chamados bairros abastados do Rio de Janeiro (Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca, etc) que, não raro, travam contato com os integrantes do tráfico de drogas e passam a admirar o modus vivendi dos bandidos, tidos como símbolos de força e poder. 90 - Os bailes funk – além dos tradicionais lugares de freqüência de jovens de classe média e média alta como as boates e bares Cozumel na Lagoa, Guapo Loco no Leblon, Nuth na Barra deTijuca e Baronetti em Ipanema - têm sido local de ampla e crescente freqüência de jovens da classe média. Durante o tempo que passei nas academias de musculação pude perceber que existem bailes “para brigar” e bailes “para curtir”, onde quase não ocorrem brigas. Muitos fisiculturistas e lutadores deslocam-se da Tijuca, Copacabana e Grajaú para clubes em Jacarepaguá e outros bairros, pois em sua maioria os bailes de clube são aqueles onde ocorrem enfrentamentos de galeras de bairros diversos e, portanto, “onde a pancadaria come solta”, como dizem. A territorialidade define o pertencimento do grupo em uma espécie de afirmação geopolítica. Já os bailes de comunidade, Porto das Pedras, Morro do Cantagalo, Chapéu Mangueira são bailes onde dificilmente ocorrem conflitos de galeras. 299 Tais jovens organizam-se em “galeras”, “gangues” ou “bondes”, grupos de um mesmo bairro que tem por objetivo construir uma identidade através de atividades tais como brigar com outras galeras ou bondes, fazer pegas (corridas de carro) de madrugada e arruaça. Há grande valorização de roupas de marca, do corpo musculoso e das lutas. Estas marcam as divisões territoriais entre os bairros (Zaluar, 1997). Até bem pouco tempo tais atividades eram tidas pelos analistas como sendo peculiares aos jovens das chamadas classes inferiores em geral habitantes das favelas e comunidades carentes (Vianna, 1997). Com a cultura funk expandindo-se a partir de meados da década de noventa do século XX, o ethos dos dominados que dominam outros dominados, os traficantes e bandidos, adquiriu novo impulso entre parcela significativa de jovens abastados, freqüentadores das academias demusuclação. Talvez tal processo se deva a uma possível falta de perspectiva em relação ao futuro, ao extremo individualismo consumista que vem se fortalecendo e, principalmente, à cultura de uma sociedade que tem sua coesão constantemente ameaçada e que, paradoxalmente, vê no uso da violência que a ameaça a solução de seus problemas conferindo papel de herói a todo aquele que articula de maneira bem sucedida os instrumentos da morte: as armas. Por outro lado, como reação a mudança crescente no mercado de trabalho e o conseqüente enfraquecimento da ética relacionada ao próprio trabalho, pode estar ocorrendo por parte de alguns grupos, a busca de construção de uma identidade coletiva calcada em uma postura de resistência às regras. Este relato de um informante é significativo: “pior do que não ter dinheiro p’ra botar gasolina no carro ou levar uma mulher p’ro motel é ser considerado otário, mané... sem disposição p’ra encarar uma porradaria... neguinho vim tirar onda com a tua cara e tu abaixar a cabeça, engolir a sugestão... ninguém pode admitir uma coisa dessa! Por isso só ando com minha PT [380, pistola de alta precisão]” (João, 23 anos. Universitário). 300 Gangues, galeras ou bondes são termos que necessitam ser esclarecidos para que se faça possível um melhor entendimento do universo das academias de musculação. No Brasil quando um estudo se refere a gangues ele não está falando sobre as organizações criminosas com características empresariais de modelo norte-americano; organizações calcadas em uma racionalidade instrumental que possibilitaria a mobilidade social dos jovens conforme referida no trabalho de Sanchez-Jankowski (1991), que retirou o estudo das gangues da esfera do crimonologia e do desvio alocando-o no âmbito da sociologia das organizações e dos modos de estruturação dos meios proletários. Os critérios de definição de uma gangue em pesquisas americanas, tais como estrutura formal de organização, hierarquia, liderança definida, identificação com um território, interação recorrente, longevidade e engajamento em comportamento violento, não são necessariamente transponíveis para a realidade brasileira, sendo que tais características podem ser identificadas parcialmente em alguns grupos. Já o uso da categoria galera pode estar relacionado à “galère”, noção utilizada por Dubet (1987) em seus estudos sobre a juventude francesa. O autor pesquisou os jovens de periferia descendentes de imigrantes que se organizam em grupos relacionados a situações de violência. A “galère’’ é, a princípio, uma forma de sociabilidade solta, uma forma de deixar a existência à deriva, repleta de niilismo, autodestrutividade e raiva. Esse tipo de sociabilidade pode estar perpassada por criminalidades intermitentes ou por marginalidades difusas (cf. Abramovay et alii, 1999). O uso do termo pelo autor está diretamente referido aos jovens de bairros operários envolvidos com conflitos e tensões decorrentes da imigração, com o desmantelamento de uma possível consciência de classe, e com a falta de perspectiva relativa ao fim da política de esquerda e a falta de perspectiva profissional. Tais características parecem, ao menos no caso da falta de perspectiva de alguns grupos de jovens, se adequar mais à análise do caso brasileiro. Contudo, a aplicação do termo aqui não está diretamente relacionada a grupos de jovens de classe baixa, como foi dito. No caso específico deste estudo, o termo galera, eventualmente gangue, ou bonde (termo nativo ligado aos comboios de ônibus fretados pelos funkeiros para irem 301 aos bailes) será utilizado de uma forma mais genérica para designar o grupo mais ou menos estruturado de fisiculturistas ou marombeiros veteranos que desenvolvem, fora das academias, desde atividades lúdicas até atos de delinqüência – neste caso não deixando de serem tais atos lúdicos para eles – como furtos , brigas e agressões. Os membros deste grupo mantém relações de solidariedade à base de uma identidade incipiente compartilhada que busca, em uma espécie de arremedo, no modelo das organizações criminosas o paradigma de suas atividades e mesmo eventual consumo de bens simbólicos. Tais galeras ou bondes compostos por indivíduos considerados de classe média que, sem necessidade aparente, cometem delitos procurando imitar as práticas e representações dos grupos delinqüentes de classe baixa, poderiam ser consideradas uma extensão eventual da tribo dos fisiculturistas ou marombeiros que, por sua vez, se encaixaria na definição de tribos urbanas presente nos trabalhos de Maffesoli (1987;1995). Tais “tribos” apresentariam um caráter volátil relacionado às suas formações identitárias. Se a tribo é volátil, o bonde ou a galera, no caso específico deste estudo, o é mais ainda, visto não passar de uma manifestação eventual – de final de semana ou noites de farra – do grupo de praticantes assíduos das academias de musuclação do Rio de Janeiro. Outro possível aspecto inerente à esta dinâmica das culturas de classe é aquele proposto por Carlo Ginzburg (1986) sob o título de “circularidade cultural”. Pensando os diferentes enfrentamentos entre cultura dominante e subalterna e afastando a possibilidade de uma assimilação direta da cultura dominante pelos populares, e vice-versa, Ginzburg, analisando o trabalho de Bakhtin91, destaca que o autor exemplifica um processo de absorção de parte da cultura popular por um homem erudito, literato e médico, frequentador da corte – François Rabelais. Em sua obra, aparecem termos chulos, grosseiros e obscenos, estranhos para um homem em sua posição em sua época. A presença de tais termos está relacionada à convivência de Rabelais com o mundo da praça pública renascentista. Esta proximidade, segundo Bakhtin, permitiu a absorção, por parte de Rabelais, de itens culturais que não 302 pertenciam a sua classe. A partir da análise deste aspecto, Ginzburg busca compreender o movimento recíproco e contínuo que influencia os diferentes níveis culturais e que definirá as linhas mestras do seu trabalho sobre Menocchio, apelido de Domenico Sacandella, o moleiro friulano, crítico da Igreja, e que, convocado pela Inquisição, apresenta um sistema cosmológico claro construído por vários itens reapropriados e reinterpretados da cultura erudita da época terminando por ser queimado na fogueira por ter adaptado abstrações filosóficas e teológicas a uma realidade refratária e fortemente marcada pela vivência concreta e materializada dos fenômenos religiosos. Menocchio serviu-se de algo que lhe era familiar, cotidiano, conhecido: comparou a criação do mundo (Gênesis) com o processo de produção de queijos relacionando os vermes à criação dos anjos92. Sendo por isso considerado herege (Hermann, 1998; Ginzburg, 1989). Enquanto Rabelais havia sido influenciado pela cultura da classe baixa, Menocchio o é pela alta cultura letrada. Ginzburg escreve que, apesar desta análise ser micro-histórica, destacando o indivíduo, ela não prescinde de maneira nenhuma da análise conjuntural que fornece a tais agentes sua condição histórico-social. A criatividade de Menocchio, por exemplo, só foi possível devido à Reforma e à criação da imprensa, que expandiu a capacidade de leitura, e as transformações da Época Moderna. Desta forma, se indivíduos de classes inferiores por vezes constroem sistemas culturais reapropriando-se dos itens pertencentes às altas culturas o contrário também ocorre. A apropriação do funk por grupos da classe média e média alta segue um processo comum dos embates entre culturas distintas e não significa, necessariamente, que aqueles grupos que freqüentam tais bailes e compartilham algumas representações e práticas com os moradores das comunidades, morros e favelas, deixarão de fato o habitus que os constitui como elementos da classe a qual pertencem. 91 - Trabalho publicado no Brasil com o título de A Cultura Popular na Idade Média e no Resnascimento. O Contexto de François Rabelais, São Paulo: Hucitec, 1987. 92 - A cosmogonia de Menocchio pode ser resumida da seguinte maneira: no início tudo seria caos, isto é, terra, ar, água e fogo em conjunto; deste volume se fez uma massa como o queijo se faz do leite; neste processo nasceram os vermes, que eram os anjos, sendo Deus criado senhor entre eles com quatro capitães, Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael; quando Lucifer se quis fazer senhor à imagem do rei, Deus mandou que fosse expulso do Céu com toda sua ordem e companhia; então Deus resolveu fazer Adão e 303 Norbert Elias, estudando a sociedade de corte, forneceu instrumentos eficazes para a compreensão desta circulação dos modelos de comportamento. Se o processo civilizatório se caracteriza, a princípio, pela difusão a toda a sociedade das proibições, censuras e controles em termos distintivos da maneira de ser dos homens de um determinado grupo social, tal generalização de comportamentos e condicionamentos próprios em primeiro lugar dos dominantes (no caso do estudo de Elias, os nobres da sociedade de corte) não deve ser entendida como uma difusão unidirecional, atingindo todo o grupo social a partir do grupo que a domina. Ela é antes o resultado de uma luta concorrencial que leva certos grupos dominados (no caso específico do autor, os burgueses) a imitarem as maneiras de ser aristocráticas e que, por sua vez, obriga os dominantes a aumentar as exigências de distinção (civilidade, para Elias) no intuito de voltar a atribuir-lhe um valor discriminativo. Este jogo, esta dinâmica de expropriação e desautorização, parece ser uma forma comum a inúmeras sociedades complexas atuais de renovar as distâncias sócio-culturais. Da mesma forma que a atração exercida sobre as camadas inferiores da sociedade pela cultura da elite não deixa de tornar esta cultura mais exigente, ou ao menos de tentar inovar tal exigência, tais condicionamentos dos dominantes sobre os dominados não deixam de provocar efeitos de retorno, que reforçam nos poderosos os mecanismos de autocondicionamento (Chartier, 1990; Elias, 1983; 1994). Parecem ser as camadas mais jovens das classes altas aquelas que absorvem e fazem entrar na cultura superior os itens característicos das classes baixas, tornando-os moda ou objeto de culto no mercado consumidor, provocando ações de repúdio ou aceitação tácita por parte da camada da qual fazem parte. Como as classes sociais se definem pela oposição que ocupam na estrutura social, sendo esta posição única e não confundida com uma outra, ocorre entre elas uma relação de forças que as atinge em todas as modalidades. Trata-se, grosso modo, de um espaço social caracterizado por tensões entre diferentes modalidades de poderes, cada qual atuando de acordo com lógicas que lhe são próprias e pertencentes ao seu campo específico, formando subestruturas. Sendo assim, Eva e toda a humanidade para substituir os anjos expulsos; a esta humanidade, que não cumpria os seus 304 o espaço das classes seria o espaço ocupado dentro da estrutura social objetiva e subjetiva – espaço este que se situa e estabelece uma posição, num ambiente hierarquizado. Esta hierarquia, radicada na posse de determinados capitais (econômico, cultural, social, etc), e na sua desigual distribuição no espaço, estabelece singularidades relativas às diferentes visões de mundo hegemônicas em seu espaço de existência , e só nele, ou seja, cada classe produziria, e seria produzida, não apenas pela posse do capital econômico mas pelas representações coletivas inerentes a ela. Contudo, havendo a primazia do sistema simbólico enquanto construtor da distinção social, este sistema estaria em constante confronto com outros sistemas reiterando a permanência ou a renovação das relações de força que constituem a estrutura social. O que equivale dizer que nesta estrutura ocorreria uma constante disputa pela hegemonia que tenderia a impôr a visão de mundo da classe que a produz às outras (Bourdieu, 1979; 2001; Nunes & Kholsdorf, 1999). A circularidade cultural aqui citada seria um exemplo desta luta. Portanto, é possível resumir a circularidade cultural como sendo um processo relacionado a valores, sentimentos, idéias, visões de mundo e práticas, vividas e produzidas por certos grupos ou classes, que são absorvidas ou recriadas por outros grupos de uma mesma sociedade ou de outra sociedade, em um tempo específico, ou de tempos diferentes. Dando continuidade ao problema das gangues e galeras, Zaluar (Idem ) escreve que sejam elas de classe média ou não, espelham-se no processo organizacional das quadrilhas de traficantes, embora com a particularidade de não terem chefia instituída, regras explícitas (contudo as têm implícitas) e objetivo de atividades criminais visando o enriquecimento. Porém, alguns aspectos devem ser destacados em relação às galeras aqui analisadas, como pode ser percebido no relato de um freqüentador de uma academia de musculação no bairro do Grajaú: “Eu tava no carro com uma mulher que eu tinha conhecido e tava querendo pegar. Aí chegou um mané e emparelhou [o mandamentos, enviou o seu filho que foi preso e crucificado pelos judeus. 305 carro dele com o meu] e começou a tirar onda com a minha cara, tava querendo botar um pega, aí eu acelerei, ele acelerou e a gente ficou naquela, eu passava, ele passava... de repente o cara deu uma batida no meu para-choque, fiquei puto! Vai se fuder, gritei. Ele me mandou tomar no cu. Ah, malandro... eu peguei a máquina [revólver] e mandei bala p’ra cima dele, só que eu ‘tava tão puto que mandei pelo vidro do meu carro, o cara sumiu e eu fiquei com o vidro todo quebrado. No outro dia arrumei um parceiro e fui procurar um carro igual ao meu para roubar o vidro, a gente encontrou lá em Botafogo, ele abriu o carro, eu entrei e meti o pé por dentro no vidro, ele soltou e a gente levou, mas a cor era meio esverdeada, não ficou bom que nem o outro mas usei assim mesmo (Carlos, 31 anos. advogado). Este relato, um entre muitos do mesmo teor, alude ao fato de que não é apenas a dimensão econômica, de classe social, ou a miséria que leva os indivíduos a cometerem roubos ou mesmo assaltos, além de outros crimes. Entre os indivíduos pertencentes à classe média, freqüentadores das academias , pequenos furtos em estabelecimentos comerciais, roubo de carros, uso de drogas, além da prática de “pegas”, agressões corporais e uso de armas de fogo são práticas comuns que objetivam a aquisição de destaque dentro do grupo. Estes aspectos transcendem as determinações da pobreza e da exclusão social. A convivência próxima que tais jovens têm com o crime organizado nas favelas que circundam seus bairros, convivência estreitada pela freqüência a determinados bailes funk, os leva, muitas vezes, a verem os líderes do tráfico como modelos de poder e paradigmas de autoridade. Somase a isso o uso e o tráfico93, por parte destes jovens, de esteróides 93 - Muitos jovens universitários que praticam musculação e fisiculturismo obtém renda significativa vendendo esteróides e outros tipos de drogas nas academias de musculação do Rio de Janeiro. Esta nota escrita em maio de 2002 é significativa: “Chegando à academia vejo Ricardo conversando em caráter confidencial com um indivíduo de cabelos escuros e lisos e óculos de sol. Me aproximo e Ricardo me apresenta a Márcio, o sujeito vende todo tipo de esteróide possível. Márcio aparenta uns 22 anos, está vestido com uma camiseta de malha escrita Boss, calçado com um tênis Nike e usa cordão e pulseira grossa de ouro. Chego bem na hora que Ricardo está encomendando 22 ampolas de winstrol. Percebo que aquele é o instante para estabelecer contato com um ‘traficante’. Digo que estou interessado em comprar 306 anabolizantes proibidos por lei no Brasil, uso que pode criar um certo sentimento de empatia pelo mundo das drogas e do tráfico. As atividades ilícitas que os fisiculturistas praticam com suas galeras são realizadas de maneira transitória e esporádica. Com o passar do tempo, estes indivíduos tendem a abandonar tais práticas, ao contrário daqueles que entram para o crime organizado, do qual só saem mortos (Zaluar, Id.ibid). Contudo, vale destacar essa tendência crescente à apologia da delinqüência e da violência como uma espécie de novo modus vivendi de uma parcela da jovem classe média do Rio de Janeiro94. O fascínio pela imagem do “bárbaro” violento, armado com seus músculos, técnicas de luta e armas de fogo diversas, que impõe sua autoridade pelo terror, está presente no imaginário de fisiculturistas que formam turmas e têm a marca da virilidade como espécie de ícone sagrado. A necessidade belicosa pode ser exemplificada pelo fato de que apenas o olhar de um homem para outro, em um recinto fechado ou mesmo na rua ou um esbarrão não intencional, já bastam para criar uma briga, posto que o mesmo que Ricardo. Márcio diz que tenho que dar o dinheiro primeiro e ele me traz “a parada” no dia seguinte. Pergunto se ele só tem winstrol e ele diz que tem de tudo. Aí contigo agora? Pergunto. Ele diz que não. No momento só tem durateston, peço para ver, ele diz para irmos ao carro do outro lado da rua. Vou com ele até um carro Vectra todo equipado. Tentando ganhar mais tempo pergunto a ele qual produto é melhor para fazer emagrecer além de crescer músculo. Ele diz que é o Winstrol. Ele me mostra uma caixa de isopor cheia de ampolas de durateston já sem as embalagens. Digo que estou em dúvida que acho que o winstrol seria melhor. Ricardo reitera que o winstrol é melhor mesmo se eu quero perder gordura. Digo que vou ficar com o winstrol que ele não tem no momento. Márcio diz para eu lhe dar o dinheiro. Falo (já suando frio) que só estou com cheque. Ele diz que só aceita dinheiro e que vai estar na academia no dia seguinte pela parte da manhã e que se eu quiser é só procurá-lo. Após Márcio ir embora pergunto a Ricardo se ele conhece o cara há muito tempo. Diz que conhece há um ano e que ele é o seu fornecedor. Como conheço Ricardo desde os tempos da faculdade pergunto sobre a vida de Márcio, ele só me diz que o cara vive disso, de vender ‘bomba’ para tudo quanto é academia e que ganha muito dinheiro com isso, principalmente no verão; diz também que Márcio estuda Educação Física. Depois disso fiquei um mês sem aparecer na academia pela parte da manhã, revezando noite e tarde até Márcio esquecer de mim.” Tem também crescido a venda, por intermédio de farmácias virtuais, de alguns esteróides anabolizantes pela internet. 94 - Necessário se faz reiterar que os dados de campo que apontam para a dimensão cultural da reprodução da violência colocam em xeque as concepções do senso comum que vê na pobreza a causa primordial da violência (Riella, 1999). É certo, porém, que os filhos da classe média carioca atual se deparam com uma realidade econômica em crise que, não raro, os coloca em situação de maior dificuldade econômica se comparada com a de seus pais quando tinham sua idade em décadas passadas. Há hoje convergência entre o aspecto econômico de reorganização do mundo do trabalho – com grande desemprego estrutural - e a dimensão simbólica que radica cidadania ao consumo de bens e serviços que pode levar tais jovens à deliqüência da mesma forma que leva os jovens da classe baixa, não devido necessariamente à mis éria, mas, como foi dito, à importância dada ao consumo como condição sine qua non da dignidade social. Se, para os jovens das favelas, não raro, a violência e o crime são o único meio de conquistar dignidade social – ainda que momentânea – para os filhos da classe média tais atividades podem significar não única forma, contudo, a mais rápida de se destacar socialmente pela aquisição de 307 tais acontecimentos são, em geral, entendidos como desafio, invasão de privacidade e atos de inimigos que devem ser imediatamente destruídos: “as brigas, a porradaria começa com um olhar... o cara encara o outro desafiando, pronto! A porrada já come solta. Se tá olhando muito tá desafiando, tá duvidando de que tu sabe brigar ou tá achando que tu é viado... ou então o cara te dá um esbarrão e aí tu já sai socando... se ele olhar muito e, pior, se mexer com uma garota do grupo também já leva porrada. Mulher dos outros tem que ser respeitada” (Pedro, 21 anos. Estudante). Embora não possuam uma organização com regras rígidas tais como as regras que governam os grupos e quadrilhas do crime organizado e nem mesmo uma chefia devidamente estabelecida, pode-se considerar que a organização das galeras funciona, grosso modo, como a política segmentar dos nuer estudada por Evans-Pritchard (1978). Os nuer dividem-se em aldeias “vinculadas pela residência comum e por uma rede de parentesco e laços de afinidades, cujos membros cooperam em muitas atividades... tendo um forte sentimento de solidariedade contra outras aldeias”, pois têm um “sentimento comum ligado a um território único” (Idem :127;154). As galeras de fisiculturistas organizam-se adotando muitas vezes o nome das favelas e morros que circundam os bairros do Rio de Janeiro dos quais estes homens e mulheres são provenientes: “bonde do Borel”, em alusão ao morro do Boréu situado no bairro da Tijuca, “galera do Cantagalo”, morro do bairro de Copacabana, e assim por diante. Também os nomes dos próprios bairros podem servir de referência. Esses grupos alimentam um forte sentimento bairrista, unindo-se quando surgem disputas com outros grupos de bairros rivais. Essa rivalidade confere o tom organizacional segmentar destes grupos. Quando em um evento qualquer começa uma briga entre indivíduos de grupos diferentes e rivais, todos os indivíduos presentes ao local e pertencentes aos grupos em atrito entram na briga provocando pancadarias generalizadas. bens de consumo indispensáveis para ascender à existência socialmente reconhecida (Wacquant, 2001), 308 Embora diferente, pois aplicado à dimensão política, o sistema organizacional nuer é similarmente segmentado e acéfalo constituído por uma série de seções opostas que se contrapõem de forma cada vez mais aguda a medida que a distância territorial e de parentesco se concretiza. São tais oposições entre valores rivais dentro de um sistema territorial que fazem a essência da sua organização político-social. Enquanto entre os belicosos nuer a separação se dá, a princípio, por seções e segmentações que vão se ampliando em rivalidade e se unindo em luta até chegar à disputa com o estrangeiro, entre as galeras a segmentação principia entre academias do mesmo bairro que podem, em uma disputa maior, estabelecer união. Grupos de uma academia contra grupos de outra do mesmo bairro, conjunto de grupos de academias do mesmo bairro contra outro conjunto de academias de outro bairro e assim por diante se a circunstância sugerir. Vale ressaltar que tal processo não possui a fixidez presente na organização social nuer onde a segmentação é muita mais vital e necessária. Outro aspecto organizacional que vem distinguir as galeras das quadrilhas do crime organizado é a questão do patronímico. Se tanto a quadrilha quanto a galera dão importância ao território, tendo este como um dos focos organizacionais, a última organiza-se em torno de um chefe, uma liderança criminosa (Zaluar. Op. Cit.), o que não ocorre necessariamente com as galeras. Fernandinho Beira-Mar, Marcinho V. P., Isaías do Boréu, etc., são nomes de líderes do tráfico tornados famosos pela ampla divulgação de suas figuras na imprensa e mídia em geral. Tais indivíduos servem de base representacional para organizações criminosas as quais eles comandam, grosso modo, ao estilo da dominação carismática estudada por Weber. Este tipo de violência acima descrito pode ser relacionado àquela citada por Simmel em sua obra, que ressalta que o conflito é indispensável para a unidade dos grupos sociais, mesmo a preço do aniquilamento, mas nunca da destruição total ou do extermínio do adversário. Portanto, a luta ou o conflito seriam condição sine qua non para a coesão social pois os grupos teriam o interesse em manter acesa a luta, em fazer perdurar os conflitos, provocandosendo o destemor em desafiar as leis um destes itens de consumo. 309 os muitas vezes, sem pretender resolvê-los definitivamente para não ver quebrada a unidade que os caracteriza, pois a vitória total de um grupo sobre seus inimigos nem sempre representa uma solução de fato, por debilitar a energia que garante a unidade do grupo, possibilitando o desenvolvimento de forças dissolventes, que sempre estão ativas. Deste modo, pode ser prova de articulação e habilidade política manter ou mesmo provocar a existência de certos inimigos para manter a unidade dos membros de um grupo, e para que o grupo continue consciente de que tal unidade constitui seu máximo interesse vital. Em suma, o conflito (ou a luta) é considerado forma fundamental do processo social (Simmel, 1983;1993). Assim, a segmentaridade conflituosa presente nas academias pode ter um aspecto positivo por ser um meio do grupo manter sua coesão, além de toda a competição formal inerente à prática do esporte. Porém, o conflito constatado nestes grupos sociais não se resume apenas a esta dimensão. Violência Anômica É necessário nos determos em uma dimensão que muitas vezes passa despercebida àqueles que abordam o problema da violência. É comum o uso de exemplos relacionados aos povos africanos e principalmente ameríndios – estes últimos talvez devido o tema do canibalismo que surte um efeito impactante sobre o senso comum - quando se fala de violência. Se nuers ou tupinambás são usados como exemplos de culturas belicosas isso não significa que articulem a violência com o mesmo sentido e conseqüência que os atuais latino-americanos, europeus, asiáticos e norte-americanos, produtores e produtos de sociedades complexas capitalistas95. O tema da violência é polissêmico, polivalente e caracterizado por uma plasticidade de sentidos que propicia manipulação fácil; portanto, há que ser esclarecido: se não existe 95 -A respeito da violência em sociedades denominadas de “Primeiro Mundo”, por exemplo, Wacquant escreve: “a partir da década de 1980, a auto-imagem das sociedades de Primeiro Mundo, como cada vez mais pacíficas, homogêneas, coesas e igualitárias – ‘democráticas’ segundo a noção de Tocqueville, ‘civilizadas’ no léxico de Norbert Elias – vem sendo destruída por explosões estrondosas de desordem pública, por crescentes tensões etnorraciais e pelo surgimento evidente da desigualdade e da marginalidade das metrópoles” (2001: 163). 310 sociedade sem um certo quantum de violência (Mauss, 1981; Girard,1989), foi o Ocidente capitalista, porém, que gestou, criou e articulou a potencialização da violência anômica que, para distinguir um tipo do outro, grafaremos com V maiúsculo, distigüindo-a da comum. O aperfeiçoamento técnico proporcionado por um paroxismo calculante típico das culturas ocidentais na arte da guerra e da estratégia consolidou a lógica da dissolução da diferença na busca do total aniquilamento do outro. Esta Violência (sempre autoritária) tem sido produto de um racionalismo desmesurado que a tudo deseja submeter, abarcar e controlar. Neste movimento peculiar, a alteridade é traduzida enquanto ameaça à identidade. Nesta lógica, o inimigo não deve ser assimilado, mas destruído, aniquilado, exterminado; e as nações denominadas “desenvolvidas” alcançaram durante o século XX, pela primeira vez na história, o ápice do “desenvolvimento técnico dos implementos da violência [a]o ponto em que nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado” (Arendt, 1994:13). Para percebermos as sutilezas que separam a violência constitutiva de todas as organizações sociais e a Violência que ameaça a própria dissolução da sociedade, necessário se faz remeter a estudos inovadores sobre a antropologia política. É interessante que as sociedades que se autodenominaram civilizadas, evoluídas e que reivindicaram o título de portadoras do progresso para o aprimoramento dos “povos bárbaros” tenham materializado em suas próprias ações o significado da palavra barbárie (significado que elas mesmas forjaram para se distinguirem dos “outros”) engendrando, pela primeira vez na história, carnificinas traduzidas em etnocídios e genocídios: o totalitarismo é um fenômeno de origem eminentemente ocidental (Arendt, 1989)96, que parece ter sido exportado para outras culturas. Segundo atestam as inúmeras etnografias, em nenhuma sociedade ameríndia, por exemplo, a Violência existiu a ponto de colocar em risco a 96 - “Os campos [de concentração] destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente 311 existência da estrutura social. Os tupinambá, amplamente conhecidos pela sua belicosidade e canibalismo, articulavam tais práticas em um processo de troca que era constitutivo de sua harmonia social. Se a guerra era violenta ela não portava Violência, pois seu propósito era alimentar a ordem cosmológica, absorver a alteridade tida como honrosa e, portanto, jamais passível de ser destruída. A existência da diferença e da alteridade era essencial para a própria existência tupinambá : “‘a teologia’ de alguns povos tupis formula-se diretamente nos termos de uma sociologia da troca: a diferença entre deuses e homens se diz na linguagem da aliança de casamento, aquela mesma linguagem que os tupinambá usavam para pensar e incorporar seus inimigos... é a troca não a identidade o valor fundamental a ser afirmado... guerra mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica..., vingança canibal e voracidade ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizações de uma alteridade que atraía e devia ser atraída; uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria na indiferença e na paralisia. O outro não era um espelho, mas um destino (Viveiros de Castro, 2002b: 206-7e220”. Grifo nosso). Longe de destruir o outro, a guerra entre os tupinambá era um processo constitutivo de sua própria existência (Fernandes, 1970); ela não visava, portanto, aniquilar a alteridade, mas estabelecer uma relação de troca com o inimigo que sempre era digno de honra e respeito 97. Tal inimigo era morto e devorado em um movimento ritual (exocanibalismo) no qual esperava-se que seus parentes o vingassem matando e devorando, num ritual similar e honroso, aqueles que mataram e devoraram seu parente ou semelhante guerreiro: controladas... da transformação da personalidade humana numa simples coisa” (Arendt, 1989:489. Grifo nosso). 97 - Observa-se que a barbárie é, portanto, uma representação criada pelas culturas ocidentais e que ela se aplica a princípio àqueles que já, apresentando a tendência de praticá-la, inventaram-na para classificar o outro. 312 “A religião tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si – o exterior estava em processo incessante de interiorização, e o interior não era mais que movimento para fora... tratava-se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de cosmologia os outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores europeus – um problema”. (Viveiros de Castro, Op. Cit.:221) O inimigo, era absorvido, transformado, em um ser à imagem dos tupinambá. Este processo se realizava com o cativo sendo depilado e pintado à moda da casa (quando era europeu), comia e bebia com seus captores, dançava e acompanhava-os à guerra e a ele, cativo, era dada uma esposa, o que o transformava em cunhado daqueles que o matariam e comeriam. Desta forma, o exocanibalismo guerreiro era uma empresa de socialização do inimigo. Longe de retirar a dignidade e a honra do outro, seu antagonista, os tupinambá, queriam certificar-se que aquele que seria morto entendesse e desejasse o que estava acontecendo consigo (Viveiros de Castro, Idem .). Ao contrário da Violência típica das sociedades complexas, a guerra tupinambá não era feita com o objetivo de enriquecimento, anexação de propriedades ou conservação de território, mas unicamente pela honra; um sentido de honra que estava diretamente relacionado a outro, o de vingança. Esta vingança, por sua vez, relacionava-se com a concepção guerreira de que “a morte em mãos alheias era morte excelente porque era morte vindicável , isto é justificável e vingável; morte com sentido, produtora de valores e de pessoas...morrer em mãos alheias era 313 uma honra para o guerreiro, mas um insulto à honra de seu grupo, que impunha resposta equivalente. É que a honra, afinal, repousava em se poder ser motivo de vingança, penhor do perseverar da sociedade em seu próprio devir. O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade”(Id. Ibid.: 233-4). O sistema exocanibalista consumia indivíduos para que a sociedade mantivesse aquilo que lhe era essencial: sua relação com o outro. E este deveria sempre ser respeitado e honrado já que a existência dele, e da sua diferença, eram essenciais para a existência do “eu” ou do “nós”. Devia-se, portanto, esperar a contrapartida do inimigo e encará-la com honra, pois o dom no sistema exigia também morte igual daquele que matava. Na hora de sua morte, o cativo, de maneira orgulhosa e destemida, afirmava sua condição de matador e canibal, evocando aqueles inimigos que havia morto em circunstâncias semelhantes as quais se encontrava naquele momento e reivindicava, em uma espécie de eterno retorno nietzscheano, a vingança daqueles que, com a sua morte, estavam se vingando das mortes que outrora ele havia provocado: “o passado de vítima foi o de um matador, o futuro do matador será o de uma vítima; a execução iria soldar as mortes passadas às mortes futuras, dando sentido ao tempo” (Id. Ibid.:238). O modus operandi da violência nestas sociedades “primitivas”, portanto, articula-se enquanto manutenção da própria ordem social (Clastres, 1989) 98 ao contrário da violência anômica (Violência) existente nas sociedades complexas como a brasileira. Este aspecto pode ser aplicado ao entendimento da Violência presente, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro. A expansão, na cidade, do mercado das drogas, com a inserção da cocaína na década de oitenta e o aumento do tráfico de armas, potencializaram a violência de forma a torná-la um risco para a manutenção da organização social. Contudo, parece 98 - Para Clastres, a chefia amazônica funda-se sobre o consenso do grupo; este, para precaver-se contra uma possível violência abusiva que o exercício do poder pode implicar, escolhe, mais ou menos a contragosto, um homem marginalizado e moderado, que possa proteger a sociedade da eventualidade de transformar-se em Estado. 314 que o aumento de ambos os tráficos são sintomas de um processo de longa duração inerente a determinadas sociedades ocidentais somados a tradições culturais que têm no apadrinhamento, na corrupção e na transformação do mundo e do outro em coisa o seu sustentáculo. O seguinte relato colhido em uma academia do Grajaú é sugestivo: “ Eu detono aquele que me desafia... se alguém é alemão [inimigo] eu pego para matar, não quero nem saber, se saio na night então é festa total! Outro dia descarreguei [ a arma] em cima de um otário, tava no carro e vi o mané na rua... eram duas e pouca da manhã, ele tinha mexido com minha mina no baile e aí eu ia enfiar a porrada nele, mas ele sumiu com uma galera no clube, e eu não vi mais, ah, meu irmão, tava passando no carro e vi o otário com outro babaca andando na rua, diminui a velocidade, cheguei pertinho e mandei bala em cima dos dois não sei nem o que deu, saí a mais de cem, sumi... como tava escuro e não tinha ninguém na rua, acho que ninguém viu...” (Paulo, 27 anos. Advogado)99. 99 - A manipulação da identidade é percebida no uso da linguagem relativo ao contexto social na qual o autor está inserido. A linguagem deste advogado – eivada de itens pertencentes ao sistema linguístico das favelas cariocas – só é possível ser compreendida se for tomada pela perspectiva daquele que a profere, na circunstância que a profere: indivíduo pertencente a uma classe superior, e portador de capital cultural legitimado (Bourdieu, 2001; Goffman, 1982). Por outro lado, tal manobra apresenta aquele caráter que Bourdieu, escrevendo sobre a apologia que alguns intelectuais fazem sobre o colorido da linguagem do gueto, tão bem frisou em seu livro Meditações Pascalinas (Op. Cit.: 93) : “ em lugar dos alunos de escolas de elite, a linguagem inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas satisfações estéticas, dos adolescentes do Harlem permanece inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e em quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas entrevistas de empregos... o culto da ‘cultura popular’, não passa, no mais das vezes, de uma invenção verbal e inconseqüente, portanto falsamente revolucionária... essa maneira um tanto confortável de respeitar o ‘povo’, contribuindo, sob a aparência de exaltá-lo, para encerrá-lo ou enfurná-lo no que ele é... acaba proporcionando todas as benesses de uma ostentação de generosidade subversiva e paradoxal , deixando as coisas como estão, ou seja, uns com sua cultura (ou língua) realmente cultivada e capaz de absorver sua própria subversão elegante, outros com sua cultura ou língua destituídas de qualquer valor social ou sujeitas a brutais desvalorizações”. Esta “hipocrisia douta ou esteticismo populista” também muito presente entre alguns antropólogos e sociólogos que estudam as manifestações folclóricas - maracatu, jongo, hip- hop, etc. – (e entre alguns políticos autodenominados de “esquerda” que utilizam a miséria alheia para se promover) surge enquanto manifestação de um processo por vezes comum ao campo acadêmico e político que denega e ignora, no seu inconsciênte escolástico, o processo de apologia e manutenção das desigualdades que esta própria apologia à diferença e a igualdade articula. Esta circularidade cultural que supostamente exalta a cultura popular, não raro o faz com a intenção de manter o status de sua posição analítica e segura, e também o sentimento, mesmo inconsciente ou recalcado, de superioridade confortável daquele autorizado institucionalmente a emitir discursos e julgamentos sobre os sofredores e inferiores do qual se arroga 315 A violência acima descrita carece de reciprocidade ou de vindicabilidade tornando-se gratuita e vazia. Ela denuncia a presença do alto risco embutido em qualquer relação social envolvendo a diversidade cultural atual (Beck, 1996) a qual permite que o medo e sua dissimulação através da reação violenta, ou do porte ilegal de armas de fogo, perpasse as interações, instaurando a concepção de que qualquer um pode ser um inimigo em potencial. O sentimento generalizado de medo é o reconhecimento do grau de risco real das relações em que as pessoas se tratam não como semelhantes, mas como coisas (Machado, 2003). As relações sociais nas quais a violência anômica se faz manifesta têm estado presente no cotidiano daqueles que vivem nos grandes centros urbanos. No dia a dia das academias de musculação e fisiculturismo o processo não é diferente 100. Apesar de ser um como porta-voz eventual, retirando desta profissão de “bom samaritano” suas regalias materiais ou simbólicas, sua posição privilegiada no campo acadêmico, jornalístico ou político. Necessário se faz, portanto, uma constante crítica da crítica cujo objetivo seja compreender, em um processo de análise que Nietzsche (1988) denominou genealogia da moral, as intenções, a vontade de poder, que sustenta subrepticiamente um discurso que se diz e se quer piedoso e igualitário: “ pois todo impulso ambiciona dominar: e portanto procura filosofar... uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder...toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara” (1993: 13, 20, 193). 100 - Nas academias, os praticantes de jiu-jitsu, (fisiculturistas, veteranos ou não), são os que enumeram o maior número de confusões com agressões físicas ou homicídios. O Rio de Janeiro é a capital nacional dos praticantes de tal arte marcial. Em 1999 existiam mais de 400 academias que ensinavam jiu-jitsu; o maior número em todo país (Veja, 3/02/ 1999). No verão do mesmo ano, em um espaço de poucos meses, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas envolvidas em brigas provocadas por lutadores dessa arte marcial. A identificação destes jovens se realiza não apenas pelas tatuagens de animais ferozes ou tribais – com motivos balineses ou pré-colombianos, mas pelas orelhas deformadas pelo constante atrito, nos treinos diários, com a lona do tatame. Atrito provocado por gravatas e chaves de perna. A cartilagem, fraturada e esfarelada por tal atrito, conforme cicatriza deixa a orelha semp re mais torta do que era antes pois ela fica inchada e disforme sem suas divisões características. Por isso, o apelido dos lutadores de jiujítsu é “orelhas de repolho”. Estas orelhas são insígnias entre os freqüentadores dos tatames, verdadeiras medalhas que conferem maior destaque àquele que ostentar o pavilhão auricular mais devastado. O culto à agressão gratuita é outra característica deste grupo: “Se o camarada fica me olhando, vou lá perguntar o que é. Dependendo da resposta, arrebento a cara dele” (Rodrigo. 19 anos. Estudante). Além das tatuagens, outra característica desta “tribo urbana” são os dedos levemente tortos com nódulos nas juntas de tanto dar socos, a mão calejada de musculação e a cabeça raspada ostentando apenas um topete. Estes jovens vão a boates e bailes nos finais de semana com o intuito de brigar. Toda segunda-feira é possível encontrar nos vestiários das academias integrantes deste grupo contando suas proezas. Vão aos bailes em bando, dirigindo suas caminhonetes – este é outro objeto de adoração desta tribo que preza carros grandes e fortes -, apressam-se em consumir bebidas energéticas à base de cafeína e aminoácidos misturadas com uísque e vodka; quando já estão agitados começam a mexer e agarrar as mulheres e aí então inicía-se a pancadaria. Freqüentemente acabam nas delegacias de polícia, mas como são de classe abastada nada a eles acontece, pois subornam policiais ou ligam para pais e conhecidos influentes que os soltam. São também aficcionados por campeonatos de vale-tudo (comp etições em um ringue em que só é proibido enfiar o dedo no olho do adversário ou mordê-lo) e lutas de boxe. 316 esporte no qual não existe contato e a competição é estilizada a um nível de abstração singular, a prática do fisiculturismo muitas vezes tem sido utilizada por alguns indivíduos com o intuito de otimizar a prática da Violência. De acordo com Elias e Dunning (1994), o surgimento do esporte representou um item singular do processo civilizatório, peculiar às sociedades ocidentais, no qual o controle dos enfrentamentos, da brutalidade e da violência destrutiva se manifestou por intermédio da codificação de regras. Estas estabeleceram que os embates entre indivíduos e equipes deveriam se realizar sem colocar em perigo os corpos e as vidas produzindo, pari passu, uma tensão prazerosa através do relaxamento modulado das pulsões emocionais. O conceito de civilizado – ou de processo civilizatório ou civilizador - nesta abordagem nada tem do etnocentrismo peculiar às tradições positivistas; busca apenas destacar as estratégias sociais de longa duração visando a criação de dispositivos de regulação e de controle das pulsões de confronto (Chartier, 1994; Elias, 1993). Esta busca de liberação controlada das emoções parece indicar que as sociedades ocidentais empreenderam estratégias de manutenção de domínio sobre os perigosos vetores pulsonais destrutivos presentes em grupos que desde o início de suas existências buscaram desenvolver um racionalismo gradativo que, paradoxalmente, ao dominar o mundo corria o risco de perder o controle deste mesmo domínio. Elias, herdeiro de uma tradição sociológica alemã anti-hegeliana, compreendia que o processo civilizatório não se apresenta como sinônimo de história-progresso, mas sofre retrocessos que podem ser observados ao longo da história como demonstra o exemplo do nazismo (Elias, 1996). Ao que parece, este retrocesso vem ocorrendo desde pelo menos o início do século XX, sendo ele mesmo o produto de um movimento histórico de longa duração característico daquelas sociedades que se tornaram, ou ao menos tiveram por intenção se tornar, democracias burguesas. Assim, a violência presente nas academias pode ser um sintoma de uma situação muito mais ampla que se reflete e reproduz no funcionamento destas instituições de culto ao corpo e à forma: a situação de violência pervasiva ou difusa aqui denominada Violência. 317 Há que se esclarecer as sutis modulações relacionadas às categoria de poder e violência. Pode-se considerar, grosso modo, poder como a forma de exercício da dominação que se caracteriza pela legitimidade e pela capacidade, proporcionada por esta, de negociar o conflito e estabelecer o consenso, ou seja, o poder é a possibilidade que tem o indivíduo ou o grupo de realizar sua vontade. Ele - o poder - necessariamente estabelece e se baseia na coerção simbólica (Weber, 1995; Bourdieu, 1987), esta sedimenta a organização social fazendo com que um grande número de pessoas siga, obedeça, um número menor. Por sua vez, a prática que concretiza o processo, reproduz a dimensão simbólica que o organiza. Eventualmente, a coerção física é utilizada para reiterar esta ordem, sendo que a intensidade de tal coerção deve estar em harmonia com a legitimidade do sistema simbólico que, por sua vez, tautologicamente a legitima. O aumento de intensidade da coerção física é proporcionalmente inversa à coesão sustentada pela coerção simbólica; o que significa dizer que a desmesura da violência física representa um sintoma de esgarçamento do tecido social e, paradoxalmente, a piora desta condição, haja visto que, quanto mais violência física se utiliza, menos legitimidade se tem (Arendt, 1990; 1994; Riella, 1999). A solidez do poder e da coesão social, portanto, estaria assentada sobre dispositivos disciplinares apreendidos pelos indivíduos em um processo de inculcação institucional que, atuando no inconsciente coletivo, reproduziria a hierarquia da sociedade (Elias, 1983; Bourdieu, Op. Cit.). Quando a intensidade da violência material se expande, chegando ao limite de ameaçar as condições de sobrevivência dos grupos sociais, ela representa a anti-relação ou a “relação social inegociável” (Riella, Idem :137), estabelecendo o fato de que a ordem social se debilita quando se debilitam suas formas efetivas, simbólicas, de controle social. Um fator primordial de manutenção da coesão social é a dádiva, ou que Mauss denominou o dom (Mauss, 1974). O caráter precípuo da experiência do dom é a sua ambigüidade: de um lado, esta experiência é, ou pretende ser, vivida como rejeição do interesse, do cálculo egoísta, como exaltação da generosidade, da dádiva gratuita e sem retribuição; de outro, nunca exclui 318 completamente a consciência da lógica da troca101 que é a de retribuir a dádiva, em um ato de gratidão, seja de que tipo for, quando o momento propício surgir (Bourdieu, 1996a). O Dom, enquanto ato generoso, gratuito e teoricamente sem retribuição necessária, estabelece-se (se for tomada a lógica econômica do lucro capitalista) como economia antieconômica que não se pauta sobre a prática do cálculo racional e, portanto, necessariamente consciente 102. Desta forma, a disposição calculista que surge com o racionalismo ocidental é a antítese perfeita da disposição generosa, ameaçando-a. De acordo com Weber, a ação econômica capitalista se define como aquela “que repousa sobre a esperança de um lucro pela exploração de possibilidades de troca, isto é, sobre chances (formalmente) pacíficas de lucro... o que conta é que uma estimativa do capital seja feita em dinheiro... o importante para nosso conceito, o que determina aqui a ação econômica de forma decisiva, é a tendência efetiva a comparar um resultado expresso em dinheiro com um investimento avaliado em dinheiro” (1985:12). A ordem econômica e social radicada na calculabilidade e na previsibilidade que transforma os seres humanos, como escreveu Mauss, em “máquinas de calcular” (Op. Cit.: 177) apresenta a tendência à dissolução sistêmica, posto que retira da ordem social o espírito de generosidade e, portanto, de coesão. O individualismo racionalista retirou o interesse na generosidade ao postular que o egoísmo individual serviria de base ao bem comum propiciando que a lógica da economia econômica capitalista invadisse as dimensões das relações sociais onde até então reinava a economia interessadamente desinteressada do dom ou dádiva (Weber, 1995; Bourdieu, 101 - A troca é fator primordial de manutenção da sociedade: “ toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião” (Lévi-Strauss, 1974: 9). 102 - Mauss escreve : “Foi preciso a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que fossem postas em vigor e elevadas à altura de princípios as noções de lucro e de indivíduo” (1974:176). 319 Op. Cit.). Este processo de busca suprema pela autosatisfação, reiterada hoje pelo consumo de bens, acaba por transformar relações sociais – e o corpo do outro - em relações de vantagens. Tal fetichismo da mercadoria103 (Marx, 1983) termina por reencantar no consumo o desencantamento que Weber (1981) havia ressaltado como o próprio produto do capitalismo no qual a própria relação coisificada com o próximo produz. Em suma, a calculabilidade e a razão instrumentalizada inerente aos negócios empresariais transbordou para o cotidiano, para a vida particular (Marketing Pessoal) levando as relações a se manterem na efêmera superficialidade das aparências (Luz, 1999). A transposição da economia do lucro para as dimensões às quais ela não está adequada vem engendrando uma não-relação ou mesmo uma anti-relação. O uso do outro como meio de satisfação (objeto do qual deve-se extrair um determinado lucro para depois ser abandonado em detrimento de outro objeto) alimenta esta formação crescente da Violência. Tal característica vem tomando feição singular na atualidade devido a fatores relacionados à mundialização do crime organizado, à diminuição das relações de trabalho e à globalização cultural, além do enfraquecimento do Estado. Os tradicionais mecanismos disciplinares estudados por Foucault (1987;1993;1997) estão gravemente debilitados104, perdendo sua eficácia, justamente pela falta de crença coletiva nas instituições que os aplicavam. Assim, o retrocesso da dominação institucional – percebida pela tentativa desesperada por parte dos governos de todo o mundo em aumentar a repressão à violência utilizando a 103 - “A forma mercadoria... não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Marx, 1983:71). 104 - Não é prudente, contudo, confundir - como fazem alguns - os estudos de Foucault sobre a sociedade disciplinar e o processo civilizatório de Elias. Parece que para Foucault o surgimento da disciplina apresentava, desde o início, a tendência de produzir efeito contrário àquele proposto inicialmente. Se, por exemplo, as instituições disciplinares como o manicômio e a prisão propunham-se – e ainda se propõem – recuperar o louco e o delinqüente, não é isso que produzem: “a organização de uma penalidade de enclausuramento... é enigmática. No exato momento em que era planejada, constituía também o objeto de violentas críticas... formuladas a partir de todos os disfuncionamentos que a prisão[, por exemplo,] podia induzir no sistema [visto que esta instituição] impede o poder judiciário de controlar e aplicar as penas. A lei não penetra nas prisões... a prisão misturando os condenados... constitui uma comunidade homogênea de criminosos que se tornam solidários no enclausuramento e ... no exterior . A prisão fabrica um verdadeiro exército de inimigos interiores... os hábitos de infâmia que marcam as pessoas que saem da prisão fazem com que sejam definitivamente fadadas à criminalidade. Logo, a prisão [e o mesmo pode ser dito do manicômio] ... fabrica aqueles que essa mesma justiça mandará encarcerar, uma ou mais vezes” (Foucault, 1997: 29-30). Assim, ao contrário de integrar os excluídos, tais instituições tenderiam a excluílos de forma mais eficaz. 320 própria violência (Paixão, 1994; Riella, 1999; Wacquant, 1999) - sugere o fortalecimento da violência difusa, concreta (Violência), já que os instrumentos da dominação institucional radicados na violência simbólica perdem sua eficácia. O autocontrole das paixões e dos medos produzido pelo processo civilizatório se dissolve fazendo retornar a disputa aberta calcada na busca desenfreada de prestígio social, bens materiais e gozo a todo custo. O fisiculturismo pode ser classificado como um exemplo de esporte no qual o controle da violência se manifestou de forma efetiva. Sem contato físico, com competições baseadas na performance estética dos participantes e com uma descarga de energia voltada contra os pesos e o próprio corpo, tal prática seria o exemplo de disciplina e autocontrole que objetivaria criar cidadãos altruístas e equilibrados. De fato, todo o discurso presente em livros e publicações voltadas para a musculação ressaltam tal característica105. Como explicar que, ao menos em parte significativa das academias do Rio de Janeiro, a violência esteja tão presente escapando mesmo ao controle ? Dunning, em seu estudo sobre os violentos torcedores hooligans escreve que a maior parte dos componentes destes grupos de jovens desordeiros advém dos extratos inferiores das classes baixas inglesas. Excluída e marginalizada esta parcela da sociedade estaria apartada do processo de civilização pertinente aos outros grupos sociais. Devido a tal exclusão, que não teria permitido a interiorização do controle necessário da agressividade, este grupo construiría a violência enquanto valor social, respaldando a concepção de status inerente àqueles que se vêm, e desejam 105 - No editorial de uma das principais revistas de fisiculturismo, publicada pelo mega empresário do bodybuilding e fitness Joe Weider, vendida em quase todo o mundo está escrito: “strive for excellence, exceed yourself, love your friends, speak the truth, practice fidelity, and honour your father and mother. These principles will help you master yourself, make you strong, give you hope and put you on the path to greatness.” (Muscle and Fitness, sept. 1998: 12). Fato é que nos últimos 20 ou 30 anos pode ter ocorrido uma mudança significativa nas práticas de adeptos do fisiculturismo e dos esportes de academias em geral; práticas que têm se radicado em uma cultura das sensações e não dos sentimentos. Cultivar a forma musculosa pode ter deixado de ser o símbolo da disciplina e reprodução de projetos pessoais ligados ao coletivo (família, amizade, honra à tradição, etc.), passando a ser a busca solitária pela imagem refletida na beleza, na categoria saúde e na juventude consideradas itens fundamentais para o consumo individualista da existência. Os mandamentos acima talvez reflitam uma ética que já não mais funciona na prática das academias. Tal aspecto pode ser percebido pelas análises de antigas revistas de fisiculturismo da primeira métade do século XX. (La Culture Physique. Paris: 11e année. N. 216 1.er janvier 1914; Charles Atlas. Salud y fueza perdurables, NY. 1947; Howett, George. How to Achieve Nerves of Steel Muscles like Iron. New York: The Jowett Institute of Phisical culture, 1950). 321 ser vistos, como outsiders (Dunning, Murphy & Willians,1994), em consonância com o fato de que tal postura liminar e antiestrutural confere sentido de poder aos que a sustentam. Contudo, os freqüentadores de academias de musculação e fisiculturismo aqui estudados são, em sua maioria, provenientes do que se pode denominar camadas médias urbanas, como dito anteriormente. Em vez de serem excluídos por forças estruturais de carência ou impedimento institucional, estes jovens cultivam o fascínio da condição de excluído tendo, porém, como fiduciário a sua condição de pertencentes a um extrato social brasileiro que, apesar de ter sofrido redução em seu poder aquisitivo nas últimas décadas, ainda se mantêm, mutatis mutandis, como superior. O seguinte acontecimento, registrado em meu diário de campo, em outubro de 2000 em uma academia do bairro da Tijuca pode sugerir tal concepção: Chego à academia, são 15:49. Este horário ainda apresenta um número reduzido de freqüentadores; eles vão chegando gradativamente até que às 18:00 todas as salas de musculação e ginástica estão superlotadas de corpos suados, barulhos do ferro dos pesos em colisão e o falatório geral. Mais ou menos as 16:10 chega Daniel, um fisiculturista que veio de São Paulo com sua namorada e que agora está morando em um apartamento no bairro do Estácio. Daniel parece bastante irritado. Penso: deve ser por causa dos esteróides. A testosterona deixa o usuário mais irritado que o normal. Logo percebo que não é o efeito colateral dos anabolizantes que o deixa assim, mas que algo de errado aconteceu entre ele e outro rapaz de nome Gilberto. Pergunto à Glória, a recepcionista, o que está acontecendo. Ela diz: “Hoje vai ter briga aqui... o Daniel está aborrecido com o Gilberto por que ele andou dizendo que o Daniel tá saindo com a Carla, e a mulher dele (do Daniel), parece que ficou desconfiada e brigou com ele”. Quando Gilberto chega Daniel vai tomar satisfações e rapidamente surge uma discussão entre os dois repleta de acusações e impropérios. Gilberto agride 322 o outro que se atraca com ele, mas apesar da audácia, ele é menor e mais fraco; os dois caem por cima dos aparelhos e a gritaria e o alvoroço é geral. Na mesma hora fico pensando no perigo que me ameaça, já que logo vão me pedir para ajudar a separar a contenda entre os dois brutamontes. Mas felizmente não é preciso, Gilberto joga uma anilha de 10 quilos no pé de Daniel e sai correndo com a camiseta rasgada em direção à rua, fugindo. Daniel diz que não está machucado e fica tentando explicar para todos que estão chegando, sem saber de nada a respeito do ocorrido, o motivo da agressão. Quando eu já pensava que Gilberto havia sumido e que provavelmente não apareceria mais na academia, pelo menos durante uns bons meses, ele reaparece com três camburões da Polícia Militar. Destes descem seis soldados e um oficial (um capitão) que é quase idêntico ao Gilberto – obviamente irmão gêmeo dele. Os policiais, dois portando fuzil, um com uma pistola em punho e o oficial segurando algemas, entram na academia em busca de Daniel que não tem como escapar. O irmão de Gilberto dá voz de prisão a Daniel dizendo: ah, você que é o valentão, né? Vai tomar porrada p’ra ver o que é bom. Um dos soldados mantém constantemente o fuzil apontado para ele. O capitão então desfere um tapa no rosto de Daniel, algemando-o com as mãos para traz. Como as algemas ficam muito apertadas, Daniel reclama, o que apenas agrava sua situação, pois o sósia fardado de Gilberto aperta ainda mais as pulseiras de aço, levando o fisiculturista para a caçapa do camburão parado na calçada em frente à academia. Vão todos para a delegacia. Após este acontecimento Daniel sumiu da academia. Encontrei com ele no Estácio, por acaso, em uma tarde de domingo. “Viu só o que aquele otário fez comigo? Ele se garante na familiazinha dele, por isso que é folgado, ele deu parte de mim e naquele dia fiquei a noite toda na delegacia, mas tudo bem agora tô malhando lá na 323 Neves; o pior é que não posso fazer nada com aquele mané, por que a polícia tem meu endereço, telefone, tudo...” A prática da musculação, em determinadas circunstâncias – assim como a prática das chamadas artes marciais -, pode servir de instrumento para a potencialização da agressividade e expansão de um egocentrismo fadado a não perceber “que o mundo não foi feito para nossa conveniência pessoal” (Lasch, 1995:278). Diante disto, o domínio das técnicas corporais do fisiculturismo (do mesmo modo que as técnicas das artes marciais) podem ser um exemplo de desvio de propósito que caracteriza um possível retrocesso civilizatório atual. Se os indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas não passam pela privação direta dos meios de sobrevivência ou pela exclusão institucional, eles, ao menos neste caso, cultivam um certo fascínio que a marginalidade supostamente confere àqueles que dela se utilizam. Tal atitude de amor à marginalidade e ao poder que dela emana, talvez seja exacerbada pelo tradicional autoritarismo característico das relações cotidianas no Brasil. Se a lógica do “sabe com quem está falando” está presente em várias circunstâncias da vida nacional, no caso específico das academias de musculação ela se faz ainda mais atuante. Não é incomum acontecer, por exemplo, de alguém com aparência mais fraca – um neófito ou freqüentador pouco musculoso – ser impedido (apesar de pagar as mesmas mensalidades que os veteranos e fisiculturistas) de fazer exercícios em determinadas máquinas ou pesos pelo simples fato de haver um ou mais “influentes” no campo (fisiculturistas ou veteranos) monopolizando tais aparelhos. É cena comum nas academias – principalmente a partir da primavera em diante – grupos de veteranos e fisiculturistas encostarem-se em aparelhos ou carrregarem pesos para o local no qual estão reunidos impedindo assim qualquer indivíduo que não pertence ao mesmo grupo, utilizá-los. Tal aglomeração de seletos cultuadores dos músculos também impede o trânsito de pessoas comuns nos recintos. Muitas vezes observei indivíduos exercitando-se em abdominais a principal passagem de entrada e saída das academias impedindo o trânsito normal das pessoas, como se tal indivíduo 324 tivesse o direito de se apropriar, de privatizar, um espaço coletivo crucial e estratégico para o grupo. Certamente, tal prática sugere a existência de uma violência simbólica característica de dimensões societárias relacionais como a brasileira. Característica do tão falado “jeitinho” que propicia ”levar vantagem em tudo” (Da Matta, 1979; 1991; Barbosa, 1992; 1999). Tal aspecto pode vir a acirrar uma possível dimensão anômica das relações de poder nas academias de musculação. Desta forma, o uso ilegítimo da violência é capaz de nos levar a repetir com Ortega y Gasset (2002:107) a análise de uma prática peculiar em uma era singular: “o homem sempre recorre à violência: algumas vezes esse recurso era simplesmente um crime... outras vezes a violência era o meio a que se recorria depois de se terem esgotado todos os outros para defender a razão e a justiça que se acreditava ter... a civilização não é outra coisa senão a tentativa de reduzir a força à ultima ratio. Agora começamos a enxergar isso com extrema clareza, porque a ‘ação direta’ consiste em inverter a ordem e proclamar a violência como prima ratio; a rigor como única razão. Ela é a norma que propõe a anulação ... [da] norma, que suprime todo interregno entre nosso propósito e sua imposição. É a Charta Magna da barbárie.” 325 Considerações Finais Atualmente, vem ocorrendo um fenômeno que pode ser classificado como uma epidemia silenciosa: o uso de esteróides anabolizantes em academias de musculação e fisiculturismo na cidade do Rio de Janeiro. Esse uso tem uma relação direta com a visão de mundo do grupo que constitui os freqüentadores dessas intituições, com suas regras alimentares, relações de gênero calcadas no elogio à masculinidade, e com a exaltação de um determinado tipo de violência e estética. Os esteróides surgem como um novo tipo de nova droga que pode tanto ser contraposta ao uso das drogas “recreativas” tradicionais, como maconha e cocaína, quanto se associar a estas, objetivando a construção da chamada “forma física ideal”. Essas drogas fazem parte do ritual de construção identitária dos fisiculturistas e, em contraposição às opiniões vigentes que associam o seu uso ao desconhecimento por parte do usuário das conseqüências de seu consumo, o próprio conhecimento dos riscos do uso de tais substâncias configura-se como item fundamental de sua eficácia ritual. Ou seja, o risco é conhecido e seu conhecimento é fundamental para a eficácia dos ritos que consolidam e perpetuam a estrutura do grupo, pois, conforme sugeriu Bourdieu (1996), os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos aos quais se submeteram. O consumo de esteróides apresenta também uma função hierarquizante na estrutura do grupo, visto que confere status àqueles usuários que demostram perícia em relação à manipulação e o saber que têm do uso das drogas na fabricação de um corpo otimizado. Como tais substâncias são, em sua maioria, hormônios sintéticos masculinos, atuando, portanto, na produção de caracteres sexuais secundários, tais drogas são masculinizantes, o que sugere a existência de um louvor tanto estético quanto ético dos princípios fundantes da masculinidade dominante na cultura brasileira atual. Este louvor ao princípio da masculinidade por parte das mulheres fisiculturistas representa um fenômeno aqui denominado Complexo de Piegan. 326 O consumo de drogas masculinizantes realiza-se nas academias da Zona Norte a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Porém, nas academias do bairro de Copacabana é possível perceber, de maneira mais evidente, o desenvolvimento de um saber prático relacionado ao corpo e à manutenção deste que é constantemente “exportado” para as outras instituições e, também, para outras atividades esportivas que não o fisiculturismo. A invenção destas técnicas corporais pode ser observada in locu nas academias do bairro de Copacabana. Isso não significa que tais práticas não existam nas academias da Zona Norte. De fato, nos bairros da Tijuca, Vila Isabel, Grajaú e Andaraí é possível encontrar atualmente instituições com tais características. Contudo, em Copacabana, o número de freqüentadores fisiculturistas nas academias é significativamente maior do que nos outros bairros cariocas, principalmente quando o verão se aproxima, época na qual muitos fisiculturistas residentes no subúrbio deslocam-se para o bairro da Zona Sul com o objetivo de aprimorar a sua estética. As últimas novidades sobre musculação, provenientes do exterior, as técnicas mais recentes, as drogas mais eficazes e a forma de usá-las chegam primeiro nas academias do bairro de Copacabana espalhando-se pelo resto da cidade através do fluxo de fisiculturistas que atuam como treinadores e professores nas instituições da cidade. O saber sobre este novo tipo de uso de novas drogas se realiza, também, através da associação destas mesmas substâncias com outras como remédios de vários tipos e suplementos alimentares que são freqüentemente experimentados pelos próprios bodybuilders em sua busca de construir um corpo cada vez mais musculoso e sem adiposidades. Este processo poderia ser enquadrado em um movimento maior denominado medicamentalização (Dupuy & Karsenty, 1979), presente nas sociedades contemporâneas, e que significaria um tipo de crença quase mágica no poder dos produtos farmacêuticos-científicos. Por sua vez, a medicamentalização poderia ser enquadrada em outro movimento de cunho ainda mais amplo denominado utopia da saúde (Sfez, 1995), que também significaria, nas culturas das sociedades complexas capitalistas, a presença de um sistema simbólico no qual a busca de um corpo eternamente jovem e belo, desfrutando a ausência 327 da mortalidade e com plena saúde, apresentar-se-ia como o paradigma organizador das práticas de um número crescente de adeptos da boa forma e do “corpo perfeito”. Se, por um lado, o capitalismo, conforme escreveu Weber (1992), apresenta a tendência de desencantar o mundo esvaziando o sentido da vida, por outro, ele reencanta, através do marketing e da propaganda (Rocha, 1995), o universo de tantas outras pessoas. Reencantamento baseado na busca intermitente de um desejo que nunca cessa de consumir e que, portanto, está sempre insatisfeito, se desencantando para, em seguida, se reencantar e assim sucessivamente. Processo que alimenta crescente consumismo. O surgimento do esporte, de acordo com Elias e Dunning (1994), representaria a estilização das práticas violentas, servindo para consolidar o processo civilizatório no qual tais práticas tenderiam a ser controladas não apenas pelas instituições diretamente coercitivas, mas principalmente pela absorção de valores, regras e normas de disciplinarização das relações sociais por parte dos indivíduos e coletividades. Interiorização do controle necessário da agressividade. Segundo os autores, este processo estaria ligado também ao fortalecimento do Estado Moderno, fiduciário último da civilidade. Neste movimento disciplinar (estudado, também, de certa forma, por Foucault), o bodybuilding poderia supostamente assumir um caráter de estilização ainda maior da violência física devido ao fato de não apresentar qualquer tipo de contato corporal entre os competidores, radicando as disputas apenas na forma física apresentada pelos atletas. Contudo, se a tese da estilização da violência pode ser sustentada, os dados colhidos durante os anos de trabalho de campo entre os fisiculturistas vêm sugerindo que esta violência sofreu modulações continuando presente no cotidiano dos indivíduos de forma acirrada em sua dimensão simbólica. Esta, por mais abstrata que possa aparentar ser, se atualiza no corpo e, conseqüentemente, na vida daqueles que sofrem sua coerção. Tal violência simbólica é consolidada através da busca, a qualquer preço, de um corpo perfeito que possa trazer a felicidade ao indivíduo. Neste processo, para atingir o ideal do sucesso, todos os recursos são utilizados, inclusive a paradoxal destruição do próprio corpo em nome da manutenção da 328 saúde e de um ideal de masculinidade que pode levar à apologia da agressão física e do desrespeito a alteridade. Neste aspecto, dentre as sugestões presentes neste estudo sobre a construção do corpo entre fisiculturistas, há uma em especial, devido o seu alcance teórico, que deve ser ressaltada: as representações e práticas presentes no cotidiano do grupo pesquisado sugerem que as atuais culturas de tradição ocidental parecem estar atravessando um processo descivilizatório (processo de descivilização, de acordo com Elias). Movimento que pode ser percebido na violência anômica presente nas interações entre determinados indivíduos e grupos destas culturas. Esta violência se manifesta na “coisificação” do outro e do próprio corpo individual transformado em mercadoria a ser consumida ou em capital a ser investido. Assim, parece que em sociedades nas quais imperam os valores e a lógica do mercado, ocorre a tendência de a relação com o outro tornar-se relação com coisas suprimindose, de forma crescente, a lógica e os valores que sustentariam as interações das economias solidárias do Dom. 329 Referências Bibliográficas Abramovay, Mirian. Waiselfizs, Julio Jacobo, et alii. Gangues, Galeras, Chegados e Rappers. Juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Brasília: Garamond/UNESCO, 1999. Andrieu, Georges. Force et Beauté – Histoire de L’Esthétique en Education Physique. Bordeux: ED.PUB, 1992. Almeida, Maria Isabel Mendes de. “Nada além da epiderme: a performance romântica da tatuagem” In: Psicologia Clínica. Rio de Janeiro: vol. 2. N.2.p.103-123, 2000. Alvim, Rosilene. Gouveia, Patrícia (orgs). Juventude Anos 90.Conceitos, imagens e contexto . Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2000. 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