CORP-O-RALIDADES Esse texto dá continuidade ao texto: “Escola: Um corpo vibra nesse novo espaço!”. Boa leitura! Um espaço de oralidades corporais se abre quando nos dispomos ao outro... aquele que nos cerca, que nos afeta. Um movimento de braços, mãos, pernas, dedos, compõe uma nova escrita. Uma escrita que registra o outro em nossa vida. Escrita-experiência que inverte o sentido que conhecemos da escrita... o de comunicar. O outro não está ali com palavras... Está nos sentidos que atribuímos aos gestos, sons, passagens. O outro se torna atravessamento. Um atravessamento daquilo que vejo e sinto e daquilo que represento e entendo. O outro em movimento me alcança. Alcança-me e já não está mais lá fora... está dentro de mim, com meus sentidos e significados. Assim as crianças aprendem a ler... bem antes de existirem letras, números, essas formas codificadas de representar o mundo. Criança vê as nossas palavras nos gestos, no afeto do grupo em suas vidas. Criança entende o mundo como se as coisas que acontecessem nele e por ele fossem ideogramas. Ideogramas que representam seus sentimentos e funcionam em rede com outras ideias. Um choro representa a saudade de casa, representa um querer interrompido, representa a fome, uma dor... um choro que não pode ser escrito, pois é composto de uma ideia, de uma representação, de uma relação com o mundo. Uma relação que não está fora, como a linguagem social, mas dentro... dentro de um esquema de sentidos pessoais... de um movimento generoso de negociação com o mundo. O ideograma da comunicação num espaço da não-linguagem, de uma infância. Uma infância como ideia, como modo de vida... um modo pessoal, experimental. Um modo que nos costura ao mundo. Socializar é costurarse ao mundo. Essa costura acontece por meio desse ideograma comunicativo. Uma costura que pressupõe línguas, muitas vezes, numa forma babélica de se entender e expressar, de linhas pessoais, com vontades e quereres diferentes dos meus. Nesse vai-e-vem entre pontos, atravessam-se conceitos, culturas. Deslocam-se os pontos marcados para compor novas tranças. Tranças que se entrelaçam numa sinfonia de texturas. Minhas, suas, nossas... de ninguém. Dessa forma a criança aprende. Aprender é deslocar pontos. Deslocar sentidos ao mundo. Sentidos múltiplos, que se utilizam de não-palavras para existirem. Sentidos que precisam de corpos. A criança aprende a falar com o corpo. Aprende o mundo por e com ele. Os adultos desaprenderam isso... essa incrível forma de atribuir sentido às coisas. Corpo é relação... é a boca que não se pode calar. Corpo é linguagem... não a que se quer entender, mas a que quer escolher, quer vibrar, quer. Um corpo aprendiz é um corpo que não se contenta em estar num lugar apenas. Nesse espaço especialista, determinado, marcado. Mas também há o anagrama escolar. Um anagrama que compõe o que é a língua, no corpo. Relações e atribuições de sentidos. A criança vê no adulto, em seu corpo, a expressão de culturas. Percebe que é lá que habita o registro daquilo que está no mundo e se cola em nossos corpos como pictogramas de uma linguagem analfabeta. O professor tem a marca de uma cultura. Seu desafio é se desprender da cultura escolar – marcada, determinada, especialista – e ampliar as entradas à cultura. Não é possível que continuemos usando as mesmas entradas, as mesmas portas, os mesmos acessos. Precisamos criar fissuras, janelas, linhas de fuga, para que as crianças percebam outros registros culturais e componham a sua linguagem, componham uma linguagem mundana, cigana, nômade... que está realmente em movimento. Um registro para além daquilo que se prevê, que se espera. Aprendemos nas surpresas e indeterminâncias das culturas. Elas nos deslocam, obrigando-nos a sermos estrangeiros, a nos abrirmos ao novo, às diferenças. A linguagem na criança é como um habitar estrangeiro. É como o movimento daquele que desbrava, que caminha sem direção, para todos os lados. O estrangeiro que quer conhecer, que quer ser assimilado, degustado pelo rizoma cultural que, até então, não o ocupava. Uma infância que não quer falar, que quer ser sempre estrangeira, pois desbrava, cria mundos, cria línguas, cria culturas, costura-se ao outro, aos outros, às coisas, mas continua seu caminho de relações. Habitar o mundo é se relacionar. Habitar é relação, não é sedimentar-se. Habitar anagramas... como possibilidade de se multiplicar, de se reinventar. Toda produção discursiva pretende montar um anagrama, um rizoma de ideias. A criança, em seu rizoma, consegue atravessar conceitos, frequentar possibilidades em suas transgressões linguísticas. Viver fatos não acontecidos, mas inventados, criar situações não verídicas, mas possíveis, criar amizades impossíveis, mas intensas... são as maneiras de frequentarmos esse anagrama linguístico, composto de tantas culturas.