A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE NOS CONTOS DE RUBEM FONSECA Fernanda Machado BRENER (UEL) ISBN: 978-85-99680-05-6 REFERÊNCIA: BRENER, Fernanda Machado. A representação da cidade nos contos de Rubem Fonseca. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 364-371. “Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.” (Passeio Noturno I ,1994, p. 396). 1. INTRODUÇÃO Rubem Fonseca é autor de um projeto literário que prima por pintar a sociedade brasileira com cores que tendem a ir muito além dos limites socialmente estabelecidos. Em seus contos, o escritor dá voz aos fantasmas da cidade, àqueles que são vistos e contudo ignorados: as prostitutas, os mendigos, os ladrões e assassinos. Justamente a população produzida e ao mesmo tempo rejeitada pela urbe. Neste sentido, Rubem Fonseca produz uma literatura que representa as transformações da cidade herdeira da tradição de Macedo, Alencar, Machado de Assis e João do Rio (ABREU, 2004, p.1). Contudo, seu texto dialoga com a realidade de forma transgressora na medida em que provoca a reflexão contundente sobre os dejetos da cidade, aquilo que não lhe interessa e é descartado. A cidade sempre foi matéria de interesse da literatura, palco singular de uma concentração de indivíduos cujos mecanismos de interações e condutas tanto a regem como são por ela regidos. Renato Cordeiro Gomes (1994), define a cidade como a materialização da história do homem, o resultado concreto de seu desafio à natureza. A cidade é o receptáculo das experiências humanas e a escrita tem papel fundamental na fixação da memória desse trabalho coletivo. “O texto é o relato sensível das formas de ver a cidade; não enquanto mera descrição física, mas como cidade simbólica, que cruza lugar e metáfora, produzindo uma cartografia dinâmica, tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas” (GOMES, 1994, p.24). 364 Citando Barthes, Gomes (p. 153) afirma que há uma construção recíproca entre cidade e habitantes, um fala ao outro e assim se definem mutuamente. A cidade é lugar onde o diálogo com o outro se realiza e, por conseguinte provoca a definição da própria identidade. A ficção brasileira pós-moderna, ainda segundo Renato Cordeiro Gomes (2000, p.67) expõe a crise da cidade contemporânea justamente a partir da “perda do contato direto e credível entre as pessoas” provocada pelo acelerado crescimento urbano desordenado somado ao patente empobrecimento da população. O último censo (IBGE, 2000) acusou que 15% da população brasileira vive em apenas oito das capitais, cinco delas na região sul-sudeste, e que algumas delas são mais populosas que estados inteiros. Está claro que cidades tão populosas podem se converter em verdadeiras gaiolas de ratos, onde os indivíduos tem que lidar com uma gama cada vez maior de situações conflitantes. “Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo de marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora, tem até falso mendigo disputando o nosso papel com a gente.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro ,1994, p.613) As transformações espaciais internas sofridas pelas metrópoles acabam por provocar mudanças também em seus moradores cujas conseqüências incluem, dentre outras, a angústia resultante da instabilidade urbana e os conflitos advindos do contato forçado entre diferentes culturas. A cidade pós-moderna, segundo Wally (2004, p.104), “exibe a diversidade social, étnica, política, evidenciando que as classes subalternas não mais “reconhecem seu lugar”, lugar este que lhe fora conferido pelo planejamento da cidade moderna, em sua organização excludente e esterilizadora.”. Assim sendo estes indivíduos apartados povoam as praças e ruas da cidade, insistindo em serem vistos, incluindo-se, à revelia, ao cenário urbano. Nesse sentido a região central assume um caráter todo especial na medida em que guarda em si, e para ela convergem, as forças geradas pela pólis. O centro das grandes cidades brasileiras ainda abriga a organização político-administrativa, os grandes bancos e instituições financeiras, estabelecimentos culturais como museus, bibliotecas e teatros apesar do surgimento de novos e menores núcleos em outros pontos de seu perímetro. Por outro lado, deixou de ser o lugar da vida privada, da moradia e, conseqüentemente das relações afetivas. Assim sendo, parte da população de apartados sociais escolhe “morar” no centro da cidade, e corporifica os personagens, a matéria prima viva, dos contos de Rubem Fonseca. É este justamente o discurso de Zé Galinha, personagem do conto A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, morador de rua convicto, presidente da União dos Desabrigados e Descamisados. “Queremos ser vistos, queremos que olhem a nossa feiúra, que sintam nosso bodum em toda parte; que nos observem fazendo nossa comida, dormindo, fodendo, cagando nos lugares bonitos onde os bacanas passeiam ou moram (...) temos que feder e enojar como um monte de lixo no meio da rua. (...) Eles tiram a gente da rua e a gente volta. E se matarem algum de nós (...) a gente pega o corpo e exibe a carcaça pelas ruas como fizeram com a cabeça do Lampião.” (1994, p. 623624). 365 Na representação da realidade, o contista invariavelmente escolhe aquilo que quer retratar. Segundo Cortázar (1993, p.151), o conto é como a fotografia bem realizada cujos limites são impostos pelo fotógrafo mas que, apesar de limitada, paradoxalmente provoca uma ampliação da realidade. Esse significado contido no fragmento de realidade que extrapola os limites provoca uma grande atmosfera de tensão no conto constitui o veículo privilegiado para retratar a cidade pós-moderna. A velocidade é outra característica do conto que favorece a representação da cidade. A urbe urge. As grandes metrópoles impõem um ritmo acelerado vida de seus habitantes, o progresso e a modernização não podem ser retardados. Do mesmo modo o conto imprime uma velocidade à narrativa que não dá margens a divagações. (CORTÁZAR, 1993, p.152). De acordo com Gil, (2004, p.37) o conto de Rubem Fonseca revela um escrito atento às transformações engendradas dentro da sociedade pela história contemporânea cujo ritmo tenta transpor para seu texto. Tendo em vista esses aspectos da obra de Rubem Fonseca pudemos identificar alguns elementos constituintes da representação de cidade em quatro contos. A escolha dos contos foi particularmente difícil já que o autor é reconhecido por produzir uma literatura de temática com clara predominância urbana. Optamos pelos contos em que a interação dos personagens com a cidade fosse predominante ou decisiva para a trama. São eles: A coleira do cão de 1965, A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro de 1992, O outro de 1996 e Família é uma merda de 2002. Em todos os contos os personagens caminham pelas ruas da cidade e com ela estabelecem uma relação singular. Augusto de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, e o Delegado Vilela de A coleira do cão, caminham por ruas as quais não pertencem procurando desvendar sua misteriosa tessitura para então redimensioná-las. Já a relação que os narradores dos contos O outro e Família é uma merda mantém com as ruas da cidade é muito diferente. O primeiro se vê forçado a sair de seu mundo hermeticamente protegido do contato social imposto pela calçada para, uma vez face a face com o dessemelhante, sofrer as angústias da proximidade com o estranho. O segundo, ao contrário, tem total identificação com a paisagem urbana a se reconhece nas pessoas e ruas por onde passa estabelecendo a cartografia afetiva de sua comunidade. 2. A DEGRADAÇÃO A degradação aparece nos contos de Rubem Fonseca com muita freqüência. A degradação está presente tanto nos habitantes quanto nas coisas da cidade, nas paredes repletas de grafites ilegíveis, nas ruas esburacadas e nos edifícios abandonados. Nos modernos e luxuosos cinemas que outrora eram freqüentados por personalidades públicas e que agora exibem filmes pornográficos. Na poluição e na sujeira que comprometem a percepção do belo. Mesmo ao observar a natureza, Augusto, personagem de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, tem seus sentidos contaminados pela degeneração do lugar: “As águas do mar fedem. A maré sobe e baixa de encontro ao paredão do cais, causando um som que parece um suspiro, um gemido. É domingo, o dia surge cinzento; aos domingos a maioria dos restaurantes do centro não abre;como todo domingo, será um dia ruim para os miseráveis que vivem dos restos de comida jogados fora.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, p.627). 366 O mar fétido e o gemido das ondas são resultados das ações do homem, são frutos da cidade. O céu acinzentado da capital carioca no dia mais importante da semana é espelho da condição degradada daqueles seres humanos. A representação da natureza dilacerada pela ação humana torna-se uma característica particularmente interessante considerando-se que quase a totalidade dos contos de Rubem Fonseca tem o Rio de Janeiro como cenário. Famosa mundialmente por ostentar uma beleza exuberante, a “cidade maravilhosa”, cartão postal do Brasil, é observada bem de perto por aquele que vive e caminha por suas ruas. A visão pormenorizada impossibilita a construção de um panorama geral que salientasse os encantos da metrópole. A certa distância não se vê os defeitos nem os dejetos produzidos. Novamente o lixo, a putrefação, o mau cheiro são representantes da degradação causada pelo homem. Nessa passagem de A coleira do cão, o personagem Vilela e mais dois outros policiais vão “interrogar” um suspeito em um depósito de lixo. Naquele lugar fétido convivem urubus e homens, cada qual garimpando seu sustento, os primeiros em clara vantagem de número e com a opção de ficar ou procurar melhores pastos. “Uma luz cinzenta começava a clarear o ambiente. Os monturos de lixo adquiriam nitidez. Via-se uma cabana baixa, quase escondida por uma alta pilha de lixo. Havia dezenas de urubus” (A coleira do cão, 1994, p.233). Este ângulo de observação tão aproximado é ressaltado no conto A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro através da presença dos ratos que habitam os subterrâneos da cidade. Eles personificam os serem que rastejam escondidos por entre as vielas e becos da cidade, “transmitindo doenças horríveis” sem contudo serem vistos. Alimentam-se dos restos da civilização de maneira seletiva e espalham-se como uma praga que não consegue jamais ser contida. A visão pormenorizada resultante do caminhar, contudo tem particularidades que o cidadão urbano comum, devido o ritmo acelerado do dia-a-dia, ignora. A rua , para ser compreendida não deve ser mero lugar de passagem e sim local de convívio e estabelecimento de relações humanas. Este é o objetivo primordial do personagem de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro que procura redimensionar as ruas do centro da capital carioca ao percorrê-las a pé. Augusto é o observador da cidade, o flâneur, que transita entre os grupos distintos sem no entanto pertencer a nenhum deles.“Se a cidade é a paisagem do flâneur, a rua é sua moradia.” (ABREU, 2004, p.2). Como sugere o título do conto, caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro não é uma ação comandada simplesmente por um par de pernas, constitui uma “arte” e como tal, pode ser aprendida através da observação atenta e detalhada das coisas e pessoas. “Em suas andanças pelo centro da cidade, (...) Augusto olha com atenção tudo o que pode ser visto, fachadas, telhados, portas, janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não, buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente pessoas.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, p.594) Do mesmo modo trabalha o personagem Delegado Vilela de A coleira do Cão, que “no processo de desvendamento do crime que o desafia (...) promove ao mesmo 367 tempo um desvendamento da própria textura da cidade”.(ABREU, F, 2004, p.28). Os dois personagens procuram recompor a ordem perdida pela cidade caótica através da observação detalhada de suas ruas, casas e habitantes. O que eles conseguem é o retrato da cidade esfacelada e decaída. “Flores artificiais sujas dentro de uma jarra de falso cristal. Móveis velhos estragados. Nem um livro sequer à vista. Roupas desbotadas. Um Sagrado Coração de Jesus na parede, também desbotado. O menino descalço. Houve um momento em que a tristeza das coisas foi maior do que a dor das pessoas.” (A coleira do cão, p.234) 3. A SEGREGAÇÃO A cidade pós-moderna retratada por Rubem Fonseca traz em si a antítese da comunhão. Seus habitantes não cooperam entre si pela sobrevivência, ao contrário, disputam freneticamente cada palmo de chão e o direito de permanência no lugar escolhido. A solidariedade humana é somente uma utopia e a forma de diálogo mais praticada é o da violência. A modernização e o progresso das cidades não contiveram o avanço da violência e a desumanização da sociedade. (DIMENSTAIN, 1996 apud GINZBURG, 2000, p.278). Diferentemente do homem medieval, cujas altas muralhas das cidades os separavam dos inimigos, o homem contemporâneo vive a angústia de não ser capaz de reconhecê-los.Além disso há a questão das diferenciações sociais já enraizadas e dos variados graus de segregação social como tratado por Maiolino e Mancebo (2005). A presença de indivíduos socialmente heterogêneos altera a percepção da ameaça. O inimigo passa a ser percebido como algo que está inserido na cidade, e não mais um fator externo, o desconhecido e o incerto estão por todos os lados. Em A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, os diversos representantes do vários grupos de habitantes do centro se excluem e agridem mutuamente. Essa atitude acaba por sugerir a nostálgica lembrança de uma cidade do passado, onde os moradores vivessem em comunhão. Kelly,a prostituta protegida de Augusto, estabelece as diferenças sociais claras entre meretrizes e mendigos. “Não me pega não, aqueles mendigos devem estar com sarna, você vai ter que tomar um banho antes de se encostar em mim. (...). As putas não gostam de mendigos, Augusto sabe.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, p.615) Ainda há classes diferentes de “desabrigados”, o clã do Benevides, que recolhe papel na Rua Cândido Mendes, o português Mané da Boina que recolhe vidro, e o clã do Zé Galinha que se preocupa em defender seu direito de permanência no centro. Nenhum dos grupos reconhece o outro como seu igual. A multidão torna-se ainda mais heterogênea e estratificada se a ela juntarmos os trabalhadores, os ambulantes, os ladrões, os policiais, os seguranças, os pastores de igreja e seus rebanhos, as velhinhas que alimentam os pombos, os executivos, banqueiros e bancários que também povoam o centro da cidade. O centro sozinho abriga representantes de quase todas as classes sociais cujo contato parece inevitável. Sem dúvida, o sentimento maior de segregação se dá entre as classes dominantes, representantes do poder, e aqueles a quem ela escolhe ignorar. Devem ser 368 apagados, destituídos de características humanas, como ratos no porão. O contato entre os dois grupos é sempre causador de violência ou repudio. “Quando chove desce tudo (os excrementos) pelas valas, misturada com urina, restos de comida, porcaria dos animais, lama e vem parar no asfalto. Uma parte entra pelos ralos, outra vira poeira fininha que vai parar no pára-lama dos automóveis e nos apartamentos grã-finos das madames, que não fazem a menor idéia que estão tirando merda em pó de cima dos móveis. Iam todas ter um chilique se soubessem disso.” (A coleira do cão, p.221) A invisibilidade dos membros da classe “subalterna” é mais patente no conto O outro, de 1996. Nele um executivo se vê assediado por uma pessoa que precisa de dinheiro. Durante todo o conto, narrado pelo executivo, percebemos como a imagem do pedinte é construída em sua mente e que essa imagem não representa necessariamente a realidade. Assoberbado pelas funções que exerce na empresa onde trabalha, o executivo recebe a recomendação médica de caminhar, “pelo menos duas vezes por dia” (p.38). A caminhada o expõe ao “outro”, primeiramente um “sujeito” qualquer. Em um segundo momento, inquietado pela impossibilidade de avaliar com precisão seu potencial de ameaça, este sujeito adquire feições mais claras, “Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos.” (p.38) O fato de ser ‘um homem branco e forte’ se opõe a fraqueza sentida pelo narrador. Contudo, apesar de estar doente e fraco, ainda ocupa uma posição superior à do pedinte já que detêm o dinheiro. Com o passar do tempo, o narrador começa a se sentir acuado pelo rapaz e interpreta olhar do pedinte como cheio de rancor e ódio. “...ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era eu rosto, cínico e vingativo.” ( O outro, p.40) O narrador está aterrorizado por aquele indivíduo que percorre as ruas a seu lado. As ruas não são seguras. Diferente de Augusto, o personagem andarilho de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro , ele deseja não ter que enxergar aquele indivíduo, não possui a “arte” da observação. “Eu não queria mais ver aquele sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre?” (p. 41). A convivência é insuportável para este personagem e à proporção que seu medo cresce a imagem que faz do pedinte se avulta. “Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador” (p.41). A tensão se torna incontrolável e conduz á um desfecho violento. E é só quando recobra o controle da situação que o narrador vê a real fisionomia de seu oponente. “Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo sua face, conseguiu esconder”. (O outro, p.42) 4. A NOSTALGIA A cidade de Rubem Fonseca está marcada pela transformações impostas pelo progresso. O crescimento urbano é impulsionado pelo interesse financeiro, o pensamento capitalista dá forma e funcionalidade às ruas, edifícios e ações das pessoas. A cidade constitui assim um organismo em permanente mutação em favor do 369 crescimento econômico. Antigos edifícios dão lugar às novas necessidades da vida moderna, o progresso recusa a tradição. Neste processo, o centro da cidade, principalmente o centro do Rio de Janeiro, tornou-se um lugar de não permanência, de passagem. Já não há mais residências, somente empreendimentos. Os moradores que resistem constituem um grupo decadente e rechaçado. Augusto, de A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, procura recuperar nas ruas do centro as memórias perdidas de sua infância, da casa do avô e de fachadas familiares. A cidade transforma-se em seu objeto de desejo (GOMES, 1994, p.154) e ele almeja unir-se a ela. Em suas caminhadas estabelece um mapa afetivo da cidade, repleto de conexões significativas, “quer encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade.” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, 1994, p. 600). Metaforicamente ele tenta se unir às árvores do Campo de Santana a procura de suas raízes profundamente fincadas naquele solo. Porém, apesar de transitar entre seus ocupantes ele não pertence àquele lugar, seus verdadeiros habitantes são os excluídos, aqueles que fazem das calçadas e marquises suas casas. O catador de papel Benvides, resume sua posição quando ameaçado de ser expulso de sua calçada, “Não quero sair daqui, (...) E eu estou aqui há dois anos, o que significa que ninguém vai mexer com a nossa casa, faz parte do ambiente, entendeu?” (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, 1994, p. 614) O que resta é a nostálgica sensação de que a cidade do passado era mais romântica, mais humana, e formava uma comunidade no sentido mais verdadeiro da palavra. Já Oduvaldo, o narrador do conto Família é uma merda, estabelece uma relação diferenciada com seu bairro, Santo Cristo, localizado no centro velho do Rio de Janeiro. O narrador se reconhece na cidade e sente-se inserido na comunidade. Seu bairro ainda mantém a sensação de continuidade e preservação, da comunhão almejada por Augusto. Oduvaldo não cobiça nada da vida da classe média alta da zona sul carioca, nem mesmo a praia. A namorada que se mudou para a Barra deixa de ser interessante. Reconhece nos edifícios sua própria história,e estabelece sua cartografia afetiva, por isso o bairro é ‘perfeito’. ‘Santo Cristo é um lugar perfeito, nasci e me criei lá, não tem boteco, loja, oficina, casa que eu não conheça, pelo menos por fora. Sei onde se pode comer uma boa gororoba, claro que o melhor lugar é o restaurante do meu irmão. Santo Cristo é um paraíso, eu podia passar a vida sem sair do bairro nem pra ir à praia.” (Família é uma merda, p.32). A cidade de Rubem Fonseca assume diversas formas, mas principalmente as da violência que atravessam a sociedade, da segregação e degradação tanto social quanto espacial. Assume ainda as formas da tristeza pela perda da comunhão entre os habitantes, a falência afetiva, representada pelo anonimato conferido pela multidão e a indiferença. Porta-voz dos personagens invisíveis que habitam as cidades, o contista vai revelando ao leitor, numa linguagem por vezes brutal, imagens de uma cidade multifaceta cuja realidade se mostra implacável. 370 “Raimundo treme convulsivamente e cai, desmaiado. Fica estendido por algum tempo com a cara na sarjeta, molhado pela forte chuva, uma espuma branca escorrendo do canto da boca, sem despertar atenção das almas cariocas, da polícia ou dos transeuntes em geral. (A Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, 1994, p.621) Contudo, por mais cruéis que possam parecer, os personagens são capazes de momentos de humanidade e sensibilidade, o delegado Vilela é uma pessoa sensível que lê poesias ou a prostituta Kelly que se preocupa em alimentar os ratos e trata o Velho com respeito. O choque mais bárbaro está presente no encontro entre classes sócioculturais distintas, em sua incapacidade de conviver com a alteridade. Denunciando a cidade desumana, talvez consiga construir, mesmo que não materialmente, uma cidade cujo coração de concreto não martirize nem seja martirizado por seus habitantes. REFERÊNCIAS ABREU, Fernanda Rangel de Paiva. Cidade e Literatura: reflexões sobre a Paris do romance policial de Leo Malet. 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) UFRS/IFCS - Rio de Janeiro. ABREU, Jean Luiz Neves. O flâneur e a cidade na literatura brasileira: proposta de uma leitura benjaminiana. Mneme – Revista Virtual de Humanidades, n.10, v.5, abr./jun. 2004. Disponível em http://www.seol.com.br/mneme CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1993. FONSECA, Rubem. Contos Reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ______. Rubem. “O outro”. In: Contos pra um Natal brasileiro. Rio de janeiro: Relume-Dumará: IBASE, 1996. ______. Rubem. Pequenas Criaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GIL, Fernando C. 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