Intervenção Precoce nos Transtornos Psíquicos das Crianças
Daniele de Brito Wanderley
A Psicopatologia e a Intervenção Precoce
Em 1943 Kanner (apud LOPES,1995) descreve o autismo infantil precoce, enfatizando
que a síndrome seria diagnosticada em função do aparecimento dos sintomas até os três
anos de idade.O autismo surge, desde então, como entidade nosográfica e tem
impulsionado inúmeros estudos, todos inconclusivos do ponto de vista da etiologia ou de
uma clara determinação orgânica. Os pesquisadores têm concordado mais com o fato de
se tratar de uma multifatorialidade. Apesar de sua pequena prevalência, o autismo tem
promovido amplas discussões tanto no meio médico, como psicanalítico, advindo daí
inúmeras contribuições, inclusive, de detecção cada vez mais precoce.
Neste sentido o autismo continua a lançar polêmicas e impulsionar o campo do saber uma
vez que, a partir desta entidade clínica, a psiquiatria biológica muito tem se esforçado
para encontrar elementos orgânicos envolvidos nesta patologia, gerando, inclusive, uma
clara distinção entre sua abordagem e a de orientação psicanalítica. Por muitos anos, e
por que não dizer até os dias atuais, há um claro debate entre a organogênese e a
psicogênese.Discussão em que se acrescenta a posição de Laznik (2004), na França,
que, sem ignorar possíveis fatores de vulnerabilidade orgânica, aposta na direção do
tratamento pela via da interação pais-criança, detectando-se os transtornos o mais cedo
possível através de dois indicadores por ela propostos, a saber a não instalação do olhar,
especialmente quando a mãe não se apercebe disto, e a não instalação do terceiro tempo
do circuito pulsional completo,em que situa a criança como oferecendo-se ao gozo do
outro (materno inicialmente).
A intervenção precoce não tem sido uma preocupação apenas dos profissionais que
trabalham com o autismo mas também vem sendo proposta especialmente no campo da
reabilitação para bebês sindrômicos ou com seqüelas neurológicas desde o nascimento.
A realidade da estimulação precoce já conta com aproximadamente 30 anos (nos países
pioneiros), trazendo uma clara mudança no desenvolvimento e nas possibilidades de
inserção social destas crianças.
Da mesma maneira, o campo da saúde mental encontra hoje o desafio de intervir
mais cedo, diminuindo assim o impacto da patologia para o sujeito, para a família
e para a sociedade. Surge mundialmente o conceito de psiquiatria, psicologia ou
psicopatologia perinatal, que segundo Golse (2002) designam, todos elas os mecanismos
que permitem ao adulto influenciar o bebê ou ao bebê influenciar o adulto e até
constituírem juntos círculos viciosos psicopatológicos. Voltada para o período anterior e
logo após o nascimento, esta especificidade clínica tem se concentrado, nas últimas
décadas em pesquisas, estudos e na clínica orientada para bebês, no sentido de
compreender patologias no início do seu aparecimento para que a terapêutica seja mais
eficaz e os efeitos patológicos menos graves.
Ainda com relação à psicopatologia, estudos apontam para uma taxa de 12% a 29% de
prevalência de transtornos mentais na infância em países em desenvolvimento.Outro
achado deste estudo é que os profissionais da atenção primária identificam em média
apenas 10% a 22% dos casos de transtornos mentais que chegam aos serviços (Giel e
outros, 1981). Ou seja, entre 80% e 90% dos problemas de saúde mental infantil são
perdidos (não diagnosticados) na atenção básica. Estes achados retratam a falta de
preparo dos profissionais no reconhecimento do sofrimento psíquico das crianças e
refletem a ausência de atenção das políticas públicas nesta direção.
No Brasil tem sido crescente o aparecimento de publicações relativos ao tema da
intervenção precoce em saúde mental, também culminando em temas de vários
congressos, além de uma pesquisa financiada pelo Ministério da Saúde em que propõese validar Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil, 1 a partir de um
instrumento criado por psicanalistas, que parte da interação do bebê com seus pais, para
uso do pediatra. Deste modo espera-se contar com a possibilidade do médico perceber
cada vez mais cedo as dificuldades na relação pais-bebê e suas incidências na
constituição psíquica da criança.
Intervenção Precoce e atendimento institucional
Na Europa, foi a partir dos anos 40-50, especificamente no período do pós guerra que
muitos países conduziram modos de intervenção precoce no campo da saúde mental, em
virtude dos inúmeros estudos surgidos com bebês e crianças pequenas separadas dos
seus pais. Assim, nos anos quarenta, Spitz (Apud Golse, 2003) ) descreve a depressão
anaclítica em bebês privados do contato com seu cuidador primário e deste modo propicia
uma discussão em torno das condições de hospitalização da criança o que repercutiu
numa clara tentativa de mudança por parte dos hospitais, que via de regra hospitalizam
crianças pequenas com a presença constante de seu cuidador habitual.
Em relação aos bebês institucionalizados, Bowlby (1988) em 1948 através das Nações
Unidas promoveu um estudo sobre as necessidades das “crianças sem lar”, ou seja,
aquelas que, órfãs ou separadas de suas famílias por motivos diversos, necessitam de
cuidados em lares substitutos ou outras instituições.
Nos seus estudos Bowlby (1988) concluiu que a separação pais-crianças apresenta
efeitos danosos desde a idade mais precoce, especialmente no que se refere ao
desenvolvimento da linguagem. Ele acrescenta ainda que:
“Existem, de fato, fortes razões para acreditar-se que a separação prolongada de uma
criança de sua mãe (ou mãe substituta) nos primeiros cinco anos de vida ocupa o primeiro
lugar entre as causas de uma personalidade delinqüente.” Bowlby, 1988. Págs 39 e 40.
Em 1964 ele escreveu no prefácio da segunda edição do livro que refletia os dados da
sua pesquisa:
“Embora, atualmente, a consciência do problema seja mais aguda e em diversos
países estejam sendo realizados grandes esforços para melhorar os serviços, ainda resta
muito por fazer. Portanto os pontos de vista que expressei em 1951, com pequenas revisões,
ainda são atuais. Espero que chegue o dia em que estejam ultrapassados.” Bowlby,1988.
Pág.10..
1
Esta pesquisa está sendo realizada pelo denominado GNP(Grupo Nacional de Pesquisa, formado
por psicanalistas especializados no atendimento à infância), em várias capitais do país e vem
sendo financiada pelo convênio Ministério da Saúde- FUSP.
Em 2004 constatamos na maioria de abrigos para bebês e crianças pequenas as mesmas
características apontadas como danosas ao desenvolvimento infantil, identificadas
naquela ocasião, a saber, a ausência de referências afetivas estáveis para as crianças,
que criadas na coletividade contam com um grande número de adultos sem, entretanto
estabelecerem com eles relações mais individualizadas. Assim ainda constatamos em
crianças institucionalizadas atrasos na linguagem e na aprendizagem.
O mesmo não se pode dizer das condições de hospitalização dos bebês. Após os
estudos de Klaus e Kennel (1993) e Brazelton (1988) inúmeras são as tentativas de
intervenção precoce em serviços de neonatologia, em que a ênfase é na interação paisbebê- equipe, como atestam os trabalhos de Catherine Druon (1999) e Catherine Matelin
(1999), na França.
Pesquisa envolvendo crianças nascidas de parto prematuro e hospitalizadas desde o
nascimento (Apud Klaus e Kennel, 1993) revela a grande incidência de espancamento e
síndrome de falência de crescimento nestas crianças (oito vezes mais) que na população
normal. Por sua vez, Brazelton (1988) enfatiza a necessidade de atuar precocemente na
formação do apego entre o bebê prematuro e seus pais, considerando que bebês
prematuros não organizam condutas interativas com o mesmo sucesso que os nascidos a
termo, o que implica que seus pais necessitam consolá-lo e estimulá-lo mais vezes,
guardando a cautela de não superestimulá-lo, o que pode causar o evitamento do bebê.
Situações em que pais ansiosos superestimulam podem criar um ciclo vicioso em que o
bebê recua se defendendo do excesso e os pais continuam a estimulá-lo para tentar
captar a atenção do bebê desinteressado.
A partir destas referências tem-se preconizado a presença de psicanalistas ou psicólogos
no próprio ambiente de UTI neonatal para que pais e bebês possam ter favorecidos os
processos de apego, em geral dificultados pelas condições acima citadas.
Bebês e Psiquismo
Tomando o estudo do psiquismo com referências a diversos teóricos na perspectiva
psicanalítica, podemos seguir diferentes abordagens com relação à este período inicial da
vida. Perceberemos alguns pontos de concordância e também divergências no que se
refere à concepção mesma do aparelho psíquico do bebê e principalmente em relação às
propostas terapêuticas.
Para Klein (apud Segal, 1975), que nos anos 20-30 observou e teorizou a respeito do
primeiro ano de vida a base do desenvolvimento psíquico se daria no primeiro ano de vida
momento em que se estabeleceriam as posições esquizo-paranóide e depressiva.Para
ela a posição esquizo-paranóide revelaria uma não percepção da totalidade do objeto, ou
seja, ele é vivenciado sob uma dualidade objeto bom/ objeto mau, em que a
retenção/incorporação tenta integrar o objeto bom e a expulsão , mais tarde correlato da
projeção, irá rejeitar o objeto mau. A mãe ora seria o seio bom que satisfaz, ora o seio
mau que frustra. A partir do segundo semestre haveria uma elaboração deste objeto total
em que a mãe passa a ser o representante destas duas dimensões, o que resultaria na
posição depressiva.
Também Spitz (1979)fala através da noção dos organizadores, em estabelecimento da
relação objetal a partir do segundo semestre, momento em que pode surgir a angústia
frente ao estranho, justamente por uma possibilidade neste momento de diferenciar o
familiar (a mãe) do estranho.
Winnicott, (1988) por sua vez, vai desenvolver a noção de objeto transicional. Para ele, a
mãe suficientemente boa é aquela capaz de desilusionar progressivamente seu filho, no
sentido de ir estabelecendo intervalos entre sua demanda e a resposta materna. Desta
forma o bebê vai diferenciando-se da mãe e, também, podendo investir objetos ditos
transicionais que operam no sentido de estabelecer uma zona intermediária entre o eu e o
não eu.
Já para Lacan (1988) que em 1949 teorizou esta relação precoce com o denominado
estádio do espelho, trata-se de um momento decisivo na constituição do eu, que se dá
dos 6 aos 18 meses. Ele também ampliou bastante o conceito de objeto na teoria
psicanalítica acrescentando também a dimensão do terceiro, sempre incluída na relação
dual, daí a célebre fórmula mãe- falo- criança, em que esta última constituiria seu desejo a
partir da percepção da falta da mãe e dos representantes desta falta( falo). (Lacan,1999)
Deste modo ele se diferencia dos teóricos kleinianos que centram a relação objetal na
díade mãe-criança.
...”é igualmente impossível, segundo a experiência, conceber que a criança esteja no mundo
ambíguo que nos apresentam os analistas kleinianos, no qual não existe realidade a não ser a da
mãe. O mundo primitivo da criança, segundo eles, é ao mesmo tempo refém deste objeto e
inteiramente auto-erótico, uma vez que a criança está tão inteiramente ligada ao objeto materno, que
forma com ele, literalmente, um círculo fechado. Com efeito, como todos sabem, e para isto basta vêla viver, a criança pequena nada tem de auto-erótica... Interessa-se por toda sorte de outras coisas
na realidade.Evidentemente, essas não são coisas qualquer. Existe uma à qual conferimos uma certa
importância e que, no eixo das abscissas, que é aqui é aqui o eixo da realidade, apresenta-se no
limite desta realidade. Não se trata de uma fantasia mas de uma percepção. “ Lacan, 1999. Págs
232-233.
Lacan vai ainda acrescentar o estádio do espelho é o encontro do sujeito com aquilo que
é a realidade e ao mesmo tempo não é. É nesta imagem que o ser humano vai se ver
capturado e isto desempenhará sua referência par ir organizando suas atitudes.
Em relação à psicopatologia precoce, Francis Tustin (1975), a respeito do autismo e
psicoses infantis vai falar do autismo como uma regressão ao estado inicial ou fixação
numa fase normal do desenvolvimento que seria a do autismo primário normal. Entretanto
após ter contato com as pesquisas de Daniel Stern(1992) a respeito de toda gama de
possibilidades de interação do bebê com o outro, a própria Tustin (1995) teve
oportunidade de rever sua teorização e retira, em 1992, a noção de fase do autismo
normal.
Para Stern (1992) a organização psíquica do bebê teria desde o início um senso de eu
que, progressivamente, iria concluindo sua constituição. Com relação a sua percepção do
outro, ele não acredita na noção de fusão inicial com a mãe em que um e outro não
seriam diferenciados. Entretanto, ele não negligenciou a função materna e introduziu o
termo, sintonia afetiva para designar uma correspondência entre os comportamentos dos
pais e os do bebê que se efetuariam sobre uma transmodalidade, ou seja, a capacidade
dos pais de perceberem o estado emocional do bebê através do seu comportamento e
responder a isto, ainda que sob o modo de outra modalidade expressiva, diferente da
manifestada pelo bebê, o que permitirá à ele compreender que a reação parental tem
relação com a sua própria experiência emocional.
Também Lacan, no seminário de 1957/58, teceu um breve comentário sobre os
processos de simbolização em bebês. Dizia ele:
“...antes mesmo que a aprendizagem da linguagem seja elaborada no plano motor e
no plano auditivo, e no plano de que ele compreenda o que lhe é dito, já existe simbolização – desde a
origem, desde as primeiras relações com o objeto, desde a primeira relação da criança com o objeto
materno como objeto primordial, primitivo, do qual depende sua subsistência no mundo. Esse objeto,
com efeito, já está introduzido como tal no processo de simbolização, e desempenha um papel que
introduz no mundo a existência do significante. E isso num estágio ultraprecoce. “ Lacan, 1999. Pág
230.
Ainda com relação às competências precoces dos bebês Dolto (1995) vai destacar desde
sempre a apetência do bebê pela linguagem antes mesmo de ter contato com as
pesquisas de psicolingüística, e vai falar que o bebê é um ser de comunicação. Para ela
,a concepção e o nascimento são provas da existência do desejo humano. Assim,uma
mãe que rejeitou seu bebê ao nascer não deixou de desejá-lo, prova disto sendo seu
nascimento que também atesta para o bebê em questão seu desejo de vida. Dolto(1995)
vai intervir desde cedo nas relações pais-bebês e bebês-cuidadores (quando atuava no
abrigo para bebês e crianças órfãs ou abandonadas) dirigindo-se ao bebê, situando-o na
sua história pois para ela, os bebês também adotam ou não seus pais. Tendo sido muito
criticada pelo fato de insistir em falar com os bebês, ela respondeu, certa vez:
“Sempre há pessoas, mesmo advertidas, que acham loucura falar com os bebês,
entretanto, a partir do momento em que começamos a fazê-lo, nos damos conta de que loucura é não
tê-lo feito antes”. Dolto, 1995. Pág 79
Atualmente com os dados da psicolingüística retomados por Bardies (1996) sabe-se que
o que ela captava da sua clínica tem um valor de verdade. Foi descoberto que os bebês
discriminam os sons em forma de categorias. Os recém nascidos preferem escutar a voz
de suas mães que a de outras mulheres. A prosódia natural “força“ a escuta dos bebês,
diz a autora:
“As mães tanto sentem bem isto que ampliam as variações de entonação e brincam
com suas vozes quando falam com seus filhos. Graças à estas variações, não somente os
bebês não perdem sua capacidade de discriminação , mas elas se encontram mais reforçadas
pelo exagero do ritmo e dos contornos prosódicos”. Bardies, 1996. Pág 40
A esta forma de dirigir-se aos bebês tem-se chamado mmanhês ou manhês, referindo-se
modo particular com que as pessoas, em especial, a mãe, se dirige ao bebê. Para Laznik
(2004) este termo deveria ser modificado para parentês, uma vez que tanto mãe, pai se
utilizam deste recurso , que é comum a todas as culturas.
Em relação à terapêutica precocemente instituída na relação pais-bebês devemos citar
alguns autores Europeus que têm se dedicado à esta modalidade clínica assim como a
transmitir estes conhecimentos a um público cada vez maior de profissionais diversos que
atuam com a primeira infância. Entre eles estão Kreisler e Kramer (1981) e Lebovici
(1986) que vão propor, no mesmo período o conceito de interação fantasmática ou seja, a
dimensão imaginária e inconsciente da interação que oferece o suporte das interações
comportamentais observáveis entre o bebê e seus pais. Desta forma eles incluem o
psiquismo dos pais na vida mental do bebê.
Por sua vez Lebovici et Stoléru (1983) propuseram o estudo da interação pais-bebê a
partir da noção de funcionamento intersubjetivo de duas psiquês definido pela sua
intrasubjetividade, considerando que, a noção de dificuldades relacionais entre o bebê e
seus pais podem ser compreendidas como um sinal de uma adaptação mútua
problemática onde o lugar para a “ mãe má” ou para o “mau bebê” não tem nenhum
sentido absoluto.
É a partir do ponto de vista da psiquiatria infantil que se vai atribuir uma enorme
importância à intervenção precoce : conhecer os fatores de risco e os disfuncionamentos
interativos permitem uma ação terapêutica sobre o bebê e sua família o que repercute em
mudanças rapidamente observáveis. Esta eficácia é possível graças à dependência do
psiquismo do bebê em relação ao de seus pais assim como à plasticidade deste primeiro
momento da constituição psíquica.
Intervenção Precoce e Política Públicas
Na França, no período do pós-guerra vai surgir um movimento em torno da atenção à
primeira infância que repercutirá em um grande número de ações governamentais de
proteção à infância. Surgirá, neste momento os ambulatórios multidisciplinares de
atendimento às crianças de zero a seis anos de idade, os centros de PMI- Proteção
Materno- infantil. Nos anos 80, surge a ampliação deste movimento, através do
documento P, (Soulé e Noel, 1980) que regulamenta ações preventivas na infância com
enfoque na saúde mental.
Neste documento propõe-se o reconhecimento dos sinais considerados de alerta, assim
designados em virtude da alta incidência destes fatores relacionados a diversas
patologias psiquiátricas, e, a partir deles se estabelece um atendimento integrado com
ginecologistas, pediatras, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais a fim de que estes
profissionais possam transmitir suas impressões acerca destes pacientes, e encaminhálos aos serviços específicos de assistência. Esta atenção à primeira infância se inicia com
uma avaliação precoce da dinâmica psicopatológica que permite o estabelecimento de
uma clínica precoce para bebês e a criação de modos de ação terapêutica para o bebê e
sua mãe, de modos de assistência interdisciplinares cedo instituídos. (Soulé e Noel,
1980).
“A prevenção visa proteger a criança. Nas crianças de famílias desfavorecidas as
chances são mais rapidamente diminuídas e os danos podem se instalar mais rápido e mais
gravemente.”
Soulé e Noel, 1980. Pág. 51
A partir deste momento todos os profissionais que atendem à infância são convocados a
seminários de capacitação permanente e convidados , na maioria das vezes a discutirem
entre os diversos profissionais envolvidos, casos que apresentam dificuldades nos
serviços onde são atendidos. Esta forma de atuação preventiva é intimamente atrelada
ao juizado de menores que pode ser acionado em casos cuja assistência oferecida não
esteja sendo suficiente para viabilizar a segurança física e/ou emocional da criança.
Nestes casos a retirada do pátrio poder é providenciada ainda que se continue a oferecer
serviços que se propõem a manter o vínculo pais-criança, em condições controladas e
assistidas pelo serviço responsável.2
Em relação à atuação desta política preventiva, Bernard Golse (2003) acrescenta sua
reflexão;
2
O serviço referido é o de Placement familiale que se responsabiliza pela escolha e capacitação
permanente das famílias de acolhimento, mantém um trabalho com estas famílias e as crianças
acolhidas, mantém contato com os serviços de atendimento aos pais da criança e promovem e
monitoram os encontros pais-crianças fixados segundo ordem judicial.
...”a prevenção é benéfica, a prevenção visada, observar as crianças em risco, as
crianças que têm necessidade de nós...mas adoecê-las num vir a ser que denunciamos, é
reforçar o próprio risco de tornar-se o que denunciamos, e temos de lutar com toda força
sobre estas posições, assim como em relação nossas instâncias de tutela e talvez em relação
ao pensamento político...” . Golse, 2003.Pág. 22
No Brasil estamos longe de estar questionando os excessos da prevenção. Ainda
estamos no tempo de tentar instituí-la, com todas as preocupações, riscos e ganhos que
comporta. Neste sentido cabe a pergunta: O que o conceito de prevenção em
psicopatologia quer abranger quando se propõe a embasar políticas públicas de
assistência á saúde mental?
Tomando as definições de prevenção da OMS (Apud Soulé e Noel 1980), teríamos que
prevenção se refere ao conjunto de medidas que visam evitar ou reduzir o número e a
gravidade das doenças ou acidentes. Assim, a prevenção primária compreende os atos
que visam diminuir a incidência de dada doença e, portanto, reduzir o risco de aparição de
casos novos com medidas individuais e coletivas, o que acarreta, necessariamente, em
um programa de melhoria da qualidade de vida e reforma das instituições sociais. A
prevenção secundária compreende todos os atos que visam diminuir a prevalência de
uma doença, logo reduzir a duração da evolução desta. Ela se ocupa da detecção
precoce e do tratamento dos primeiros sintomas. E como terciária, temos os atos que
visam diminuir a prevalência das incapacidades ou recidivas de uma doença.
Retomando Soulé e Noel (1980), eles nos acrescentam:
“Nós chamamos de “precoce” a prevenção de que tratamos aqui: porque ela se situa
precocemente na vida da criança, e, desde antes do seu nascimento; e em segundo lugar porque ela
se situa no encontro das definições de prevenção primária e secundária. “ Pág 2.
Portanto falar em prevenção em saúde mental é propor medidas coletivas por meio das
instituições sociais de modo a poder implementar e garantir o direito das crianças em
termos de saúde física e mental já que são conhecidos inúmeros mecanismos e situações
que contribuem para o adoecimento mental.
Se campanhas imensas são feitas para combater inúmeros males do corpo, por que só
tão recentemente temos tido ações sociais para tentar diminuir a exploração do trabalho
infantil, o abuso sexual e os maus tratos, para falar apenas das situações mais
aberrantes?
Temos acompanhado que Brasil continua liderando as estatísticas de exploração de
trabalho infantil e tem sido apenas em função da divulgação destes dados pelos órgãos
internacionais que temos tido alguns programas lançados nesta direção. Por que será que
apesar de termos o belo estatuto dos direitos da criança e do adolescente, ainda temos
ausência de creches e pré-escola na rede pública (esta é a realidade da Bahia e talvez de
tantas outras capitais)? Por que será que apesar de campanhas para adoção de crianças,
temos cada vez mais crianças em abrigos? Por que tantas famílias entregam suas
crianças ou perdem seus direitos de guarda apesar de quererem muito educá-las e nesta
terrível ruptura nenhum programa de acompanhamento destas famílias é proposto para
diminuir estas duras separações, na maioria dos casos?
Na França conversando com um Juiz de menores sobre estas retiradas de guarda ele me
confessava: “As mães engravidam novamente num grande número de casos, para
substituir a criança perdida”. Jamais esqueci este depoimento que eu mesma constatava
na experiência em um centro materno em Paris embora estas rupturas fossem propostas
depois de um imenso trabalho de tentativa de suporte e restabelecimento da relação mãecriança.
Intervir Precocemente do ponto de vista da psicanálise é Prevenir?
Esta é uma questão que tem levantado polêmica no meio psicanalítico. Se, do ponto de
vista da psicanálise, as experiências do sujeito só são significadas no só depois, como
conceber que, antecipadamente se possa supor um sofrimento, que se revelaria no futuro
e, em nome disto, propor uma intervenção terapêutica ? Quando Freud, em 1932, reletia
sobre esta questão, pensava em termos de profilaxia.
“O reconhecimento de que a maioria das nossas crianças atravessa uma fase
neurótica no curso desenvolvimental impõe medidas de profilaxia. Pode-se levantar a questão de
saber se não seria adequado vir em auxílio de uma criança com a análise, embora não mostre sinais
de algum distúrbio, como forma de salvaguardar sua saúde, do mesmo modo como atualmente
vacinamos as crianças contra a difteria, sem esperar para ver se contraíram a doença. .. Á grande
massa de nossos contemporâneos a simples sugestão de tal medida pareceria uma ofensa
monstruosa, e , em vista da atitude para com a análise, manifestada pela maioria das pessoas na
condição de pais, qualquer esperança de colocar em prática tal idéia deve ser abandonada, na época
atual. Semelhante profilaxia contra a doença neurótica, que provavelmente seria muito eficaz, também
pressupõe uma constituição bem diversa da sociedade. “ Freud, 1969. Págs. 181 e 182
Entretanto, atualmente não pensamos em prevenção como uma antecipação de um
suposto adoecimento futuro. Tendemos a pensar numa intervenção precoce que se situe
sim, mais cedo, antes do atravessamento do Édipo, talvez no momento mesmo da
instalação das estruturas psíquicas, mas se houver um sofrimento instalado.Se
pensarmos na definição de prevenção secundária como visando diminuir a duração da
evolução de uma doença então podemos dizer que a intervenção precoce pode servir a
fins preventivos embora não seja ela própria uma prática preventiva e que tenha sempre
seus efeitos sentidos no aposteriori e nunca antecipadamente.
Colete Soler (1997) no seu texto A criança Interpretada ela fala que a criança por seus
sintomas, como sintomas do Outro, empresta seu corpo àquilo que da verdade do Outro
se goza, ou seja,são crianças-sintoma e propõe a pergunta:
“A questão desde então é de saber como se articula para cada criança, em cada
etapa, seu “ ser sintoma” e o sintoma, sintoma que seria o seu, dando seu nome de gozo.
Soler,1997. Pág 17
Desta forma ao tomarmos como referência a clínica precoce, estamos pensando em
intervir neste momento em que o fato mesmo de situar-se como sintoma do Outro,
respondendo ao desejo do Outro, põe em dificuldade sua própria constituição psíquica. 3
Na clínica com bebês, trata-se de uma clínica de um sujeitinho suposto, a se constituir, já
que estamos testemunhando um momento de inscrição. Neste caso, o sintoma da criança
ainda não se articulou, mas é o seu ser-sintoma que já traz transtornos sentidas
principalmente a partir do seu corpo ou do seu ser-com-o-outro.
3
Ver CABASSU,G. A clínica Precoce in GILLE,M L. Boi da cara preta. Salavador. Ed Ágalma,2003.
Isto não quer dizer que esta intervenção seja preventiva no sentido de evitar a formação
de um sintoma ulterior, mas sabemos que, atuando cedo, conta-se com a maior
plasticidade e maleabilidade próprios de um aparelho psíquico em formação. Isto adquire
especial importância quando tratamos de sinais de patologias graves da relação com o
Outro, como no caso do autismo, pois sabemos que, aí sim, o tempo conta e muito. Neste
caso evitar que um agravamento do quadro que, via de regra compromete enormemente
o desenvolvimento de forma global e a socialização em particular, pode representar uma
prevenção secundária e até terciária.
Marie-Christine Laznik (2004) justifica a necessidade de uma intervenção precoce como
uma forma de recolocar em funcionamento estruturas em vias de constituição.Quando se
refere especificamente ao autismo, sua aposta é de que a tarefa clínica seja a de
recolocar em funcionamento o laço pulsional com o Outro.
Wanderley (2002) afirmava que o trabalho pais-bebê se constrói de forma diferente
daquele em que se toma apenas os pais em escuta.
“Ao meu ver a realidade do bebê convoca ao trabalho mais centrado em torno da
maternidade e da paternidade. O bebê chora, se consola, olha para seus pais, sorri ... ele é
tomado como interlocutor. O analista por vezes oscila na sua posição: ora se desloca para a
posição materna quando se dirige ao bebê, supondo um sujeito onde ali ainda não há,
operando em espelho no lugar do bebê, falando por ele, refletindo o que percebe dos seus
sinais e manifestações, ora atua como agente da função paterna quando faz corte no excesso
materno.” Pág. 118
Se para Freud (1969), seu desafio era pensar uma clínica com crianças, já que o infantil
ele tratou nos adultos, o caso Hans tendo sido uma primeira aproximação com a criança,
para nós talvez nos caiba a tarefa de determinar a natureza e os limites da clínica com
bebês, o que exigirá um trabalho mais extenso e cuidadoso.
Bibliografia:
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CABASSU,G. A clínica Precoce in GILLE,M L. Boi da cara preta. Salavador. Ed Ágalma,2003.
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GOLSE, B. O que temos aprendido com os bebês. In: CORRÊA, L F; CORRÊA, M H G e FRANÇA,
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Ibid_____. Será que existe para a criança uma ligação entre depressão e hospitalização?
In:GILLE, M L. ( org.) Boi da Cara Preta- crianças no hospital. Salvador. Editora Àgalma,/Edufba,
2003. Pags77-105.
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Notas :
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