Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 1 http://www.nova-acropole.pt Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 2 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 3 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 4 Título: Florbela Espanca - A vida e a alma de uma poetisa Título Original: Florbela Espanca - La vida y el alma de una poetisa Autor: José Carlos Fernández Coordenação Editorial: Cleto Saldanha Paginação: Gabinete Gráfico da Nova Acrópole Tradução: Maria Bastos | José Antunes | Cleto Saldanha Revisão: Severina Gonçalves | Mariana Esteves | Isa Baptista | Rita Correia Design da Capa: Daniel Oliveira Impressão: ????? Distribuição: Sodilivros — Tel.:213 815 600 1ª Edição: Fevereiro 2011 ISBN: ??????????? Depósito Legal: ?????????? Copyright da tradução: © José Carlos Fernández Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 5 FLORBELA E S PA N C A A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA José Carlos Fernández Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 6 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 7 à minha amada e companheira Maricarmen, a mais bela flor do meu Jardim Encantado Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 8 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 9 Índice Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Biografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319 Florbela Espanca e o Imperador-Filósofo Marco Aurélio . . . . . . . . . . . . 321 Florbela Espanca, alma gémea de Fernando Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325 Carta Astral de Florbela Espanca . . . . . . . . . . . . . 331 9 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 10 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 11 Flor, verso, estrela ou ideia. Uma biografia de Florbela Espanca Prefácio por António Cândido Franco Durante muitos anos, ao longo do século passado, sobretudo numa tradição que enraizou e irradiou a partir da Europa central, ou até de leste, a escrita de biografias sobre autores poéticos foi encarada como um anacronismo despiciendo e infrutuoso, além de desprestigiante, que nenhum valor juntava àquilo que interessava ao leitor ou ao estudioso, a obra. O paradigma dos estudos poéticos do século XX, dado à luz ao mesmo tempo que as primeiras vanguardas se impunham por toda a Europa como um modo novo de encarar, melhor, de fazer Arte, foi assim marcado nos vários momentos da sua desenvolução, do Formalismo russo ao pós-Estruturalismo francês, pelo apagamento progressivo do autor, tão ou mais notado quanto a visibilidade deste era colossal com o impressionismo crítico romântico, de que os estudos de Carlyle são bom exemplo, e a História literária de tipo positivista, com Sainte-Beuve, Brunetière, Lanson ou Teófilo Braga. O que o novo método crítico veio dizer é que a Poesia ou a Literatura não eram feitas pelo autor, segundo o modelo determinista anterior, que via na obra um reflexo da personalidade do 11 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 12 ANTÓNIO CÂNDIDO F RANCO autor ou do meio em que surgira, mas pela literariedade, uma noção morfogénica, interna ao desenvolvimento da própria obra. Neste paradigma, a poesia gerava-se a si própria, a partir de tópicos poéticos recorrentes, oscilando entre a imitação de modelos anteriores tidos como superiores e a ruptura, o que levou um crítico francês, Roland Barthes, no acume deste processo teórico, a decretar a morte do autor – e até a da obra, substituída pela noção de texto, muito mais apta a expressar segundo ele a autogestação duma literatura sem autor. Estamos hoje em condições de perceber que o fechamento da Poética no século XX, tendendo para uma abordagem exclusivamente morfológica da obra, representou um empobrecimento no modo como entendemos e abordamos o fenómeno poético. Mesmo aceitando o suposto que o centro de interesses do leitor de poesia é o texto a ler, e reconhecendo até que o trabalho da forma é em Poesia a condição sem a qual nada mais existe, o que levou Aristóteles a tentar perceber as regras básicas da tragédia grega recorrendo em exclusivo ao acervo escrito, fica sempre por explicar porque razão o conhecimento da vida dum autor, entendendo aqui por vida a esfera psíquica do ser, não é caminho proveitoso para se entender, no mínimo, uma das fontes do poema que lemos, já que nunca se poderá negar que algum elo existirá entre o autor e a obra ou entre o texto e o tecelão, por mais anónimo ou colectivo que este seja. Basta esta hesitação para se perceber quanto perdemos na ancoragem do fenómeno poético no momento em que passámos a proscrever as biografias dos estudos poéticos. A proibição não foi felizmente observada com rigor e mesmo num país como a França, que tantos subsídios de valor deu ao desenvolvimento da poética formalista, com o Estruturalismo e a Semiótica, a obra biográfica de André Maurois, um contemporâneo das roturas vanguardistas, impôs-se ao longo do século XX como um monumento de proficiência na compreensão crítica dalguma obras capitais da literatura europeia. Assinale-se aqui como exemplar uma das suas muitas biografias, e escreveu-as com impressionante regularidade de 1923 a 12 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 13 PREFÁCIO 1965, À la recherche de Marcel Proust (1949), contemporânea das primeiras lucubrações antibiografista de Roland Barthes, que pouco depois dava à estampa Le degré zero de l’écriture (1953), primeiro grande manifesto do Estruturalismo poético. Ninguém pode negar que essa heterobiografia, pelos materiais que carreou, pelas novidades que soube indagar e exumar, pelo escrúpulo que pôs na reconstituição da esfera psíquica e do meio social, pelo cuidado e outrossim pelo à-vontade com que usou a omnisciência e outras prerrogativas do narrador, se tornou num marco intorneável dos estudos sobre Proust. Também em Portugal – país tão atreito à imitação acéfala, que mais depressa se contagia pelas maleitas dos outros que eles por elas – houve o labor monumental dum Gaspar Simões, que nos deu pelo menos duas biografias modelares, ainda hoje de muito proveito, a de Eça (1945) e a de Fernando Pessoa (1950), não obstante uma importação acrítica e quase imediata dos novos paradigmas parisinos. É neste quadro que encaro o trabalho de José Carlos Fernández sobre Florbela Espanca. Por um lado, é impossível ao estudioso fazer de conta que a obra que lê vive por si só, sem autor; por outro, num movimento de retracção ante as infinitas possibilidades que tal constatação abre, pois qualquer vida é sempre um viveiro sem fim, ele mostra-se sumamente cauteloso na construção narrativa que tem entre mãos, reconstituindo passo a passo os anos da biografia com documentos fiéis, em geral epístolas, saídos das mãos da própria biografada. Talvez aquilo que mais parece de assinalar no trabalho que de seguida se lê seja mesmo o escrúpulo com que o autor procede no levantamento da vida que escreve. É um tal processo que nos permite afirmar que em nenhum momento este trabalho confunde biografia e romance, risco maior e para bem dizer inevitável de qualquer biógrafo. A biografia literária é um retrato da alma singular que se manifestou neste plano da existência e quanto mais próxima estiver da verdade mais pertinente se torna para o conhecimento da obra a que se associa; o romance é um tecido ficcional que não tem por meta a verdade mas tão-só a verosimilhança. 13 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 14 ANTÓNIO CÂNDIDO F RANCO A questão que se coloca, e que baralha a linearidade destas asserções, é que a verdade dificilmente se deixa dizer em si mesma. Por esse motivo qualquer verdade pode fazer a vez duma mentira e qualquer mentira pode tomar o lugar duma verdade, quer dizer, aquilo que designamos por verdade não passa duma probablidade mais ou menos próxima. Neste sentido um romance apenas verosímil pode dar um contributo mais acerado para o conhecimento da realidade do que qualquer ciência documental, estribada apenas no real verificável ou na verdade imediata. Daí que a dramaturgia de Shakespeare, toda ela tecida com os fios invisíveis da imaginação, seja mais verdadeira no entendimento da alma humana ou dos factos históricos que qualquer tratado de História ou de Psicologia. E daí ainda que o livro de Agustina Bessa-Luís sobre Florbela Espanca, que o autor do estudo biográfico que de seguida se lê tanto castiga, de resto na linha doutros respeitáveis estudiosos da autora calipolense, como Eugénio Lisboa, possa conter verdades inesperadas e dereitas, ainda que escritas em linhas tortas, para aludirmos parafrasticamente a uma máxima popular de largo alcance. De qualquer modo, com a direcção que lhe é própria, procurando nunca resvalar para a ficção, separando em absoluto os dois géneros, biografia e romance, mantendo e respeitando as apertadas prescrições do jogo biográfico, o trabalho que aqui se apresenta dum investigador que escreve e pensa na língua tersa de Cervantes é um contributo muito estimável para o conhecimento da personalidade da grande poetisa ibérica de língua portuguesa, tomando a palavra personalidade como sinónimo duma psique viva e vendo nesta o crivo decisivo da criação. Para usar palavras que são caras ao autor deste estudo, diremos que o corpo é pó, o espírito é mistério, e a alma nome ou obra. Ao descrever com tanto desvelo a vida desta personalidade enigmática que passou pela Terra e se chamou, talvez para nos iluminar com a beleza das coisas raras e etéreas, posto que corpóreas, Florbela, é natural, quer dizer, conforme àquele elo imprescritível que liga o autor à obra, que ele, o autor do livro, tenha tocado 14 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 15 PREFÁCIO nas cordas puras que a poetisa nos legou, fazendo vibrar em círculos cada vez mais largos a significação das suas palavras. Por isso o estudo biográfico de Fernández é também um ponto a favor da compreensão da riquíssima alquimia verbal florbeliana, como se vê nas páginas finais, em que o estudioso numera algumas figuras expressivas da poesia de Florbela. Nessas notas estilísticas pretende-se um entendimento simbólico de cada tropo, já que um poema, naquilo que tem de mais essencial, a Poesia, não é redutível a uma forma visível. A forma vê-se, presa que ficou num tropo, mas a significação, ao ser poética, escapa à morfologia, porque sendo livre e inesgotável é invisível. A Poesia não depende da arte, menos ainda da técnica, porque não se confunde com as palavras; é anterior a elas. Se dependesse, qualquer um de nós faria altos e inspirados poemas, para tanto bastando o aturado estudo dum manual de instruções. Um poema não tem equivalente numa construção mecânica. Aprende-se a construir um carro, da mesma forma que se aprende a montar um lego. Com o poema não é assim; a criação dum poema não se aprende, experimenta-se. Se quiser cristalisar em forma a sua essência mais soberana que é a Poesia, o poema necessita dum momento de possessão, ou de aparente despersonalização, absolutamente espontâneo, estando além disso fora do quadro vulgar da intenção estética, e por isso da sua apreciação, e próximo da potenciação máxima, em termos expressivos, do automatismo psíquico. José Carlos Fernández é um recém-chegado a Portugal que logo elegeu Florbela como sujeito de interesse, e até de paixão, já que não é crível que alguém se devote a um poeta como ele faz sem por ele sentir um elo de misteriosa simpatia ou de escaldante fraternidade. Mas José Carlos Fernández é também um homem que ama o conhecimento e por isso o livro que ora dá à luz é um repositório daquela sabedoria ancestral, de matriz socrática e cratiliana, que vê na linguagem verbal uma dádiva divina. Florbela Espanca foi – para usarmos as palavras de Teixeira de Pascoaes, com quem a autora do Livro de Soror-Saudade tem as melhores afinidades, infelizmente pouco exploradas – uma cria15 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 16 ANTÓNIO CÂNDIDO F RANCO dora, quer dizer, uma cúmplice de Deus no crime da Criação, não uma versejadora ou uma artista do verso. Nesse sentido Florbela não pertence à História da Literatura, mas ao Universo, do mesmo modo que uma pedra ou uma labareda não pertencem à Ciência mas à Vida. Por esse motivo o autor deste estudo pôde contemplar maravilhado a essência da Criação nos versos da poetisa e ver nos poemas que ela nos legou a irradiação dum génio ou dum arcano; ele viu no verbo de Florbela o rasto luminoso duma ideia sublime. E se isto assim era desde que a poetisa trastagana incendiou a Terra com os seus versos sáficos, fez-se porventura mais necessário e até mais verdadeiro a partir do momento em que ele o disse, revelando-o aos nossos olhos. 20 de Janeiro de 2011 16 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 17 “um livro de belos versos debaixo do braço, um livro que nos fizesse sonhar, um livro que nos fizesse sorrir...” 1 “Uma corajosa rapariga, sempre sincera para consigo mesma. (…) Honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, recta sem princípios e sempre viva, exaltantemente viva, miraculosamente viva, a palpitar de seiva quente como as flores selvagens da tua básbara charneca!” 2 “As almas das poetisas são todas feitas de luz como as dos astros: não ofuscam, iluminam... (À margem dum soneto)”3 Sem dúvida que Portugal é uma terra de poetas e sonhadores. A suave doçura do seu clima, o encontrar-se afagado pelas ondas em todo o seu litoral ocidental, ou talvez o sangue celta que corre pelas veias dos seus filhos, fazem com que a sua alma se solte e ______________ 1. Carta nº 56, Vol. V das Obras Completas de Florbela Espanca, Publicações Dom Quixote, material compilado por Rui Guedes. 2. Anotação no diário feita no dia 12 de Janeiro de 1930, mesmo ano em que morreu. Em Florbela Espanca, Contos e Diário, pág. 214, Editorial Bisleya, 2009. 3. Conto “À margem de um soneto”, Florbela Espanca, Contos e Diário, pág. 72, Editorial Bisleya, 2009. 17 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 18 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ agite como uma bandeira ante os ventos da poesia e do sonho. Emotivo, melancólico, introvertido e fiel como ninguém perante quem é capaz de trazer-lhes mensagens de uma beleza e uma razão que não são as deste mundo mas as de um Rei desconhecido e sempre esperado, o português é por natureza um enamorado da poesia. E os séculos da sua história são séculos em que ressoam os cantos dos seus poetas. Mas a sua maior poetisa que melhor expressa a saudade e necessidade de voltar ao seu perdido reino, essa espécie de fada de amor de trágica existência e de cantos ritmados na forma métrica de sonetos, que ilumina com a beleza dos seus versos o primeiro terço do século XX, é Florbela Espanca. Injustamente vilipendiada depois de morrer, pelo Estado Novo, é em Portugal cada vez mais lida: ela é a poetisa do amor; e a alma enamorada lê os seus versos como em Espanha se podem ler os de Becquer ou como no mundo os de Pablo Neruda. O seu erotismo sáfico e puro, arrebatado e, ao mesmo tempo honesto, parece um manancial que em cascata corre perdendo-se entre as sombras íntimas de um bosque sagrado. A sua poesia, orgulhosa e íntima, triste e serena por vezes, outras desgarrada pela necessidade de um sonho impossível, brota livre e espontânea, e nada deve ao mundo nem ao seu tempo; nem tampouco às correntes estéticas do seu século… tal é a sua independência e sinceridade! Florbela Espanca nasce pouco depois da meia-noite, ao começo da madrugada4 do dia 8 de Dezembro do ano 1894, em Vila Viçosa (Alentejo). O seu nome completo é Flor Bela d’Alma da Conceição Espanca. É filha de João Maria Espanca que, impossibilitado de ter filhos com a sua esposa e de comum acordo, tem-no com Antónia da Conceição Lobo, dramática situação que hoje chama- ______________ 4. Mais especificamente, nasce às 2 da madrugada, na casa do casal Espanca em Vila Viçosa. Rui Guedes, no seu Acerca de Florbela, narra como recebeu o nome: “Entre agonias e em dores tamanhas disseram-lhe: [a Antonia Lobo, que estava em trabalho de parto] – É uma menina, é uma flor! E Antónia respondeu: Flor se chamará... (Acerca de Florbela, Rui Guedes, publicações Dom Quixote, Lisboa 1986, pág. 24). 18 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 19 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA ríamos de “mãe de aluguer”. É criada pela esposa do pai, Mariana do Carmo Inglesa, que também é sua madrinha. Para facilitar o processo legal, Florbela é acolhida como uma “filha da vida”, isto é, legalmente desconhece-se quem é o pai e a mãe. O mesmo acontecerá com o irmão mais novo da poetisa, Apeles, fruto também da união do seu pai com Antónia Lobo e que nascerá três anos depois. O pai, filho de um sapateiro, aprendera e exercera com este a mesma profissão, mas a sua inquietação cedo o levou a trabalhar como antiquário, vendedor de guarnições de cavalaria, decorador, fotógrafo e pintor. E inclusive, desde 1898, fazendo projecções de filmes viajando por todo o país com o seu vitascópio de Edison, o que o torna num dos pioneiros da difusão da sétima arte em Portugal. Apaixonado pela cultura grega e de vida boémia e aventureira, viajou também por Espanha, Marrocos e França, e naufragou no Mediterrâneo. A sua mãe – mãe biológica – também tinha sido “filha da vida”, não tinha conhecido os seus pais e tinha sido criada na miséria por uma mulher que lhe deu o seu apelido, Lobo. João Espanca raptaa e dá-lhe casa na Rua Angerino, na mesma em que tinham vivido os seus pais e ali concebeu tanto Florbela como o seu irmão Apeles. Falecerá jovem, em 1908 aos 29 anos de idade, o mesmo ano em que foi assassinado o rei de Portugal, D. Carlos. A sua vida, uma vida de dificuldades e de dor, seria expressa pela nossa poetisa com os versos: “A minha pobre Mãe tão branca e fria / Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!” e também num poema em que funde o seu pesar com a da sua mãe, o pesar de uma vida inundada de dor a que não encontra nenhum sentido: “Ó Mãe! Ó minha Mãe, p’ra que nasceste? / Entre agonias e em dores tamanhas / P’ra que foi, dize lá, que me trouxeste // Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido / Somente o fruto amargo das entranhas / Dum lírio que em má hora foi nascido!...”5 Pelo facto do seu pai ter sido fotógrafo, dispomos mesmo em anos tão precoces, de numerosas fotografias tanto suas como do ______________ 5. Poema “Deixai entrar a morte”. 19 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 20 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ seu irmão. Numa delas, com seis anos6, aparece rodeada de livros, sua grande paixão – juntamente com as flores – da infância e juventude. O seu pai deu-lhe uma esmerada educação, dentro das limitações próprias do âmbito rural em que se desenvolvia. Durante os anos da sua infância Florbela desfrutará da vida pacífica do campo e do jovial carácter do pai. As fotografias desta época mostram-na junto a ele em piqueniques e passeios, penetrando na planície e nas charnecas do Alentejo que depois tantas vezes cantaria nos seus versos. A vocação poética e uma extrema sensibilidade a todas as vozes da natureza despertaram muito precocemente na sua alma: “Aos oito anos já fazia versos, já tinha insónias e já as coisas da vida me davam vontade de chorar.Tive sempre esta mesma sensibilidade doentia, esta profunda e dolorosa sensibilidade que um nada martiriza, esta mesma ternura apaixonada pelos bichos inocentes e simples. Ficava horas debruçada sobre um formigueiro, dizia coisas ternas aos sapos e às aranhas, e era eu quem criava os pardais e as andorinhas caídos dos ninhos que o meu irmão, solícito, me levava para que eu lhes servisse de mãe. Quando matava as moscas para alimentar as andorinhas, já o triste problema da injustiça da sorte me atormentava. Porquê sacrificar as moscas em benefício das aves? Não compreendia: se ambas tinha asas!...”7. Conservamos dois poemas escritos nesta idade, dois poemas em que é evidente a sua pluma infantil mas nos quais já há expressões e imagens espantosas. Um chama-se “vida e morte”, que título para uma criança de oito anos!, e diz8: A Vida e a Morte / O que é a vida e a morte/ Aquella infernal enimiga/ A vida é o sorriso/ E a morte da vida a guarida/ A morte tem os desgostos/ A vida tem os felises/ A cova tem as tristezas/ ______________ 6. Na obra Fotobiografia de Florbela Espanca, por Rui Guedes, Publicações Dom Quixote, 1985. 7. Carta nº 150, Vol. V de Rui Guedes... 8. Em Florbela Espanca, Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Lisboa 2007, compilação realizada por Rui Guedes, pág. 30. 20 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 21 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA I a vida tem as raizes/ A vida e a morte são/ O sorriso lisongeiro/ E o amor tem o navio/ E o navio o marinheiro. O segundo começa com um verso que faria sonhar o mais subtil dos filósofos platónicos: “A bondade o som de Deus”, escrito na forma métrica de um soneto que usaria em praticamente todos os seus poemas9: A bondade o som de Deus/ A bondade e a Iducação/ A gente sempre ama os pais/ A estrella do coração.// A bondade ai a bondade/ Aquele anjo de amor/ Aquella santa felis/ E a bondade da flôr// O anjo vem dar a bondade/ A bondade do coração/ A bondade para todos// E uma bõa iducação/ Feliz de quem tem bondade/ E sempre sempre um bom irmão. Vários meses depois escreve outro poema como presente de aniversário ao seu pai e que começa: Hoje é o dia dos teus annos/ Não quero que te faltem meus parabens/ Que sejas muito felis/ E que todos te estimem bem. Desde muito pequena, Florbela teve a clara consciência de que a vida é como uma peregrinação sobre a qual não sabemos exactamente de onde nem para onde vamos, e menos ainda o por quê. Intelectualmente precoce, a sua vida interior avançava de uma forma impetuosa, penetrando nas selvas da dor e recolhendo experiências tão aceleradamente ao ponto de, com vinte e cinco anos, se considerar a si mesma velha. No mês de Abril de 1916, portanto com vinte e um anos, escreveu o conto “A Oferta do Destino”10 que expressa muito bem o mistério da sua alma, demasiado grande para ser vulgarmente feliz neste mundo: ______________ 9. Florbela Espanca, Poesia Completa, pág. 31. 10. Págs. 27 e 28 das Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. III, Contos. 21 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 22 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e disse-me: “Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha... Caminha sempre, sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas, não pares nunca!...” “A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar os rouxinóis.” “Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim, os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!” Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve. Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes, cantavam nas matas os rouxinóis... Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de algum imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida! E os sapatos inda se não romperam! Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!... Em 1907, com doze anos, Florbela escreve o seu primeiro 22 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 23 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA conto11 com o título Mamã! em que reflecte como num espelho, o do seu inconsciente, a imagem invertida do que foi o seu próprio nascimento: Noite negra e tempestuosa! No céu não luzia uma estrela, o vento soprava com violência, e flocos de neve envolviam, como em alva mortalha, a aldeia adormecida. Só ao longe milhares de luzes ardiam no soberbo castelo. Perfumes, flores, sedas, rendas e cá fora, numa humilde choupana à beira da estrada, fome, miséria e lamentos. Vivia ali uma pobre camponesa com dois filhinhos. Magros, doentes, pediam esmola pelos casais. Agora choravam. Tinham fome e não tinham pão, os míseros pequeninos. No único aposento via-se apenas uma enxerga onde, com a cabeça entre as mãos, a pobre mãe pensava, talvez, no futuro bem negro dos filhinhos. A contrastar, porém, singularmente com a miséria do casebre, via-se um berço elegante e lindo. Envolviam-no rendas e arminhos. Dentro um pequeno gentil dormia, com a linda cabecita emoldurada nos anéis doirados do seu cabelo loiro. Nos lábios pairava-lhe um sorriso meigo de anjo dormente. Abre-se a porta de repente. Uma mulher divinalmente formosa, envolta em ondas de rendas e sedas, arrastando altiva a longa cauda, entra na choupana. A camponesa ergue-se admirada, enquanto a fidalga adulada, invejada, que tinha a seus pés um mundo de adoradores, não receando amarrotar as rendas caras do seu opulento vestido de baile, ajoelhou humilde ante o bercito do filho do crime, que tinha de beijar furtivamente; inclinou a cabeça, e duas lágrimas brilhantes como gotas de orvalho se desprenderam dos olhos, resvalando-lhe pelas faces, que foram cair nas do pequenito que, a sorrir no seu sorriso de anjo, balbuciou mimoso: Mamã! ______________ 11. Obras Completas de Florbela Espanca volumen III, Contos, pág. 23 e 24. 23 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 24 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ E com esta mesma idade escreve postais com versos de amor, postais12 que desconhecemos o destinatário: Escrevi o nome teu/ Na branca areia do mar/ Vieram as ondas brincando/ Teu lindo nome beijar.13 Em 1908 a mãe de Florbela morre em Vila Viçosa numa das camas do Hospital da Misericórdia, apenas com 29 anos, oficialmente de neurose. Florbela, com treze anos, veste luto. A família Espanca instala-se em Évora, na rua Aviz nº 61, para que a sua filha pudesse estudar nesta cidade, no Liceu André de Gouveia. Os pais não poupam gastos para a educação de Florbela, mas ela é principalmente uma apaixonada pelos livros. Sempre o será, pelos livros e pelas flores. Muitos anos depois, recordará numa das suas cartas14: “Tive os melhores professores de tudo na capital do Alentejo (que se são melhores não são bons), de bordados, de pintura, de música, de canto, e afinal sou uma eterna curiosa de livros e alfarrábios e mais nada.” Neste Liceu é onde Florbela diz que passou “os melhores anos da minha vida, aqui nasceram todas as ilusões, todos os sonhos, todas as quimeras que eu tenho visto perder e fugir para sempre.”15 No 5 de Outubro de 1910 encontra-se instalada com a sua família no hotel Francfort, no Rossio, em Lisboa, quando rebenta a revolução que instauraria a República em Portugal. Embora o seu pai fosse declaradamente antimonárquico, nada sabemos de como eles viveram esse dia de mudança histórica no destino de uma nação. Rui Guedes, que realizou a compilação da obra completa de Florbela e passou vários anos a investigar como um jornalista profissional tudo o que pudesse resgatar do passado relativo à poetisa, especifica no seu Acerca de Florbela, os livros que pediu na Biblio- ______________ 12. Carta nº 15 da edição de Rui Guedes. 13. Florbela Espanca, Poesia Completa, pág. 34. 14. Carta nº 58 da edição de Rui Guedes. 15. Carta nº 50 da edição de Rui Guedes. 24 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 25 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA teca Pública de Évora: Lírio do Vale de Balzac, Os Três Mosqueteiros e A Dama das Camélias de Alexandre Dumas, Amor de Salvação de Camilo Castelo Branco, A Morte de D. João de Guerra Junqueiro, o mais vigoroso dos poetas lusitanos. A estrela de Amor que inundaria depois toda a sua vida, em sonhos, esperanças e desgraças, começa a aparecer no seu horizonte. O sorriso da deusa Vénus, o seu doce olhar, apresenta-se de um modo inocente, sem necessidade de quebrar ainda muros e diques, sem necessidade de arrastar a alma nos torvelinhos da Necessidade: Amei16 um dia… um dia… eu já nem sei Há quanto tempo foi que assim amei… E esse amor foi rir!... Tinha talvez quinze anos, quinze anos apenas… Alvorada de lírios e açucenas… E esse amor foi rir!... 17 Em 1911, com 16 anos, inteira-se da relação íntima que o pai tinha com uma das suas empregadas domésticas (e que terminaria em casamento), Henriqueta, a quem escreve com grande maturidade e superando todos os preconceitos da época. Preconceitos que tanto farão sofrer Florbela durante toda a sua curta vida e que, como veremos mais adiante, não deixaram repousar o seu cadáver. Eis a carta, datada de 27 de Maio, que escreve à nova namorada do seu pai: Deve18 se amar sempre o homem que Deus escolheu para ser nosso companheiro na vida. A amizade é o maior sentimento que não morre. ______________ 16. Poema sem título, em tercetos. Pág. 49 de Florbela Espanca, Poesia Completa. 17. O poema completo, escrito com vinte e dois anos, continua dizendo como depois deste amor chegou outro que já não foi somente rir, mas sim que nele se entrelaçaram os bons sonhos e os enganos; nele pôde apenas sorrir, como orar num altar, que se murmura cantando. O seguinte, inundando a sua alma, traz apenas “Soluço triste em turbilhões de dor, admiração / É só chorar, chorar...”. 18. Carta nº 21 da edição de Rui Guedes. 25 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 26 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ Toda a mulher que acarinha os filhos de outra tem uma alma bem formada. Em 1912 é já oficialmente noiva de Alberto Moutinho que conhecia desde criança pois tinha andado na escola primária com ele. Mas, estando na praia da Figueira da Foz, em finais de Setembro inicia uma relação sentimental profunda com um tal “José”, relação que será devastadora para a alma da poetisa. Este enamoramento, pelo qual rompe o seu primeiro noivado, foi acompanhado de uma abundante correspondência da qual, infelizmente, apenas conhecemos uma pequena amostra. Apesar da tenra juventude da nossa autora, a sua alma e génio criador tornam-se evidentes nestas cartas. Na seguinte, datada de 26 de Setembro de 1912, na Figueira da Foz, responde a um amor suplicante deste jovem, “José”, e diz claramente que ela já está comprometida. Mas pelas sucessivas cartas chegamos a conhecer a paixão amorosa que nasceu em Florbela, um amor de quatro meses que seria, talvez, o grande amor da vida da poetisa. Meu amigo19 Vou responder à sua carta de 24, e ao mesmo tempo pedirlhe mil desculpas das minhas maldades de ontem. Fui indelicadíssima para consigo, mas espero da sua bondade o perdão para todas essas indelicadezas. Posso contar com ele? Eu não sou muito má, mas, em compensação, sou extraordinariamente orgulhosa, e de todos os meus imensos defeitos é esse que eu mesma mais tenho combatido em vão. Magoou-me muitíssimo o seu procedimento, que afinal me parece hoje naturalíssimo, depois das suas desculpas tão habilmente arquitectadas... confesse... Mas já me esquecia que a minha carta não é um pretexto para lhe dizer por outras palavras o mesmo que lhe disse ontem, talvez injustamente. Envio-lhe o livro que tão gentil- ______________ 19. Carta nº 23 da edição de Rui Guedes. 26 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 27 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA mente me enviou, junto com a carta que contém o “célebre” pensamento que tantos desejos mostra em possuir. E tem muita razão, porque preciosidades destas não se desprezam. Agora falemos a sério, que já é tempo disso. Pensei em não responder à sua carta porque era, afinal, o que ela muito bem merecia, mas como sou muito boazinha (modéstia à parte) faço precisamente o contrário do que penso. O seu amor, sendo sincero como creio, é dos que lisonjeiam uma mulher, seja essa mulher a mais digna das criaturas. Eu tenho a convicção que será bem ditosa a mulher que for sua durante uma vida inteira, tenho a certeza que será feliz a mulher que lhe consagrar a existência; mas, meu bom amigo, essa mulher não serei eu, nem sequer é possível pensar em tal loucura. Pense no que eu lhe digo e verá que tenho razão. Obriga-me a proceder contra o que a minha consciência me ordena, obriga-me a ouvir-lhe falar de uma coisa que eu não devia consentir a ninguém que não fosse ao meu noivo, ao homem a quem devo completa lealdade. Eu julgo que a mulher verdadeiramente digna é aquela a quem repugna uma traição, seja ela de que natureza for. Ele quer-me muito, tem confiança em mim, e eu que faço? Abuso assim daquele grande amor, daquela cega confiança, escrevendo-lhe e lendo as suas cartas em que me fala de um amor que eu não posso nem devo compartilhar. O que nos reserva o futuro senão acabar de vez com esta loucura? Quanta desilusão, quantas mágoas nos causará tudo isto? Pense bem, meu amigo, peço-lhe. “Tenhamos fé no futuro”. Mas o que espera desse futuro que eu hei-de consagrar, por enquanto, a alguém que não há-de ser o Sr.? Por Deus lhe peço, por esse amor que diz ter-me, afaste o pensamento de mim, procure outra mulher, que as há tão dignas por esse mundo, que o tornará tão feliz quanto eu desejo sê-lo. Ficarei sendo sempre sua amiga, um pouco querida e um pouco esquecida, que de longe pensará muitas vezes nestes dias que temos passado juntos. Guarde sempre da minha estima uma recordação, porque a mereço, creia. Enoja-me a mentira; é por isso que sinceramente hoje lhe escrevo, tão sinceramente como lhe tenho falado. Que atractivos encontra em mim para que tanto me queira, conhecendo-me há apenas oito dias? Não 27 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 28 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ posso saber nem compreendo o que em mim o encantou, conhecendo-me eu a mais simples de todas as mulheres, que tão encantadoras algumas se tornam com a intrincada rede dos seus lindos caprichos. Disseram-me hoje uma coisa que me magoou bastante. De todas as coisas que a seu respeito me têm dito, foi esta talvez a que mais me custou pela significação humilhante, para mim, que tem: disseram-me que a sua mãe o tinha quase proibido de falar comigo, que se tem mostrado desagradavelmente surpreendida com a sua assiduidade junto de mim. E isto porquê? Não sei. Nunca mendiguei o favor de me falarem e, como já lhe disse, sou suficientemente orgulhosa para não aceitar semelhantes favores. Faça pois a vontade a sua mãe, sim? Eu nunca senti o quanto há de santo no amor de uma mãe boa como é a sua. O amor das mães tem destes egoísmos que eu compreendo, meu bom amigo. Eu não tenho o direito de lhe causar uma angústia, e creia que não lha causarei, por muito injusta que ela possa ser para comigo. Foi ontem à noite que eu detalhadamente soube isto. Peço-lhe que o não diga a ninguém: faz-me esta vontade, sim? Contaram-me, também, uma coisa que me magoou e que me não devia magoar, uma coisa a respeito de uma prima sua de que já me tem falado algumas vezes. Para que me dizem estas coisas? Para quê? Para me torturarem, creio eu. São coisas que dizem respeito à sua vida íntima, com o que eu nada tenho, mas que apesar de tudo me fazem ver o que há de mau nesta gente que só é feliz quando faz sentir bem fundo o luto de uma amargura. Têm-me causado muitos desgostos nestes últimos dias e isto para a minha vida simples, para os meus gostos de sossego e tranquilidade, é tudo quanto há de mais triste, pode crer, meu amigo. Tem sido o Sr. o causador de tudo isto, vê? Involuntariamente, bem sei, e eu perdoo-lhe. Digo isto apenas para ver as primeiras consequências da sua loucura e da minha. Uma única pessoa tem sido boa para mim: a D. Josefina, que é ao mesmo tempo muito sua amiga. Podem dizer-lhe muito mal de mim que ela não diz nada. É muito boazinha, não é verdade? Eu gosto imenso dela, e talvez porque, para ela, o Sr. 28 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 29 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA não tem defeitos. É uma das senhoras mais dignas que tenho encontrado. Não é da minha opinião? Aproveito a ocasião para lhe dizer que lhe não dou o meu retrato e que lhe não tornarei a escrever. Sou má? Talvez, mas faço nisso o que devo e o que já há muito devia ter feito. Não me censure, não? Não torne a falar comigo, não digo já por mim, mas por si, que vai causar contrariedades a quem deve tudo, à única pessoa que merece todo o amor da sua alma bondosa. Hei-de hoje pedir-lhe uma coisa. Será apenas um momento a dizer, descanse, meu amigo, que eu sei fazer sempre o que devo. Sinceramente afeiçoada, a sua amiguinha Florbela Evidentemente, o amor tem razões mais poderosas que o intelecto e a nossa vontade, e toda a fortaleza dos argumentos de Florbela cederá ante o empurrão do mais poderoso dos Deuses, aquele que abre as portas da vida e lança os seus dardos mesmo para lá das portas da morte. A poetisa inicia relações sentimentais com esse “José”. Escreve-lhe versos muito simples, de grande beleza, em português e francês: Avec tout ton coeur aime-moi Car tout mon coeur n`aime que toi Je ne puis te voir sans émoi Je t’aime bien plus que ma vie.20 -------------O que mais me comove e me contrista Neste pesar que se apossou de mim É não saber (que tenebrosa egoísta) Se te lembras de mim! ______________ 20. Com todo o teu coração ama-me / Pois todo o meu coração só a ti te ama / Eu não posso ver-te sem emoção e amo-te muito mais do que a minha vida. 29 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 30 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ Qualquer pesar em que a memória insista Recorda a nossa angústia. É uma aflição. E eu vivo a repetir: longe da vista... Longe do coração...21 No mês de Fevereiro do ano seguinte, em 1913, e devido a pressões da família dele, a poetisa termina o idílio com o seu amado. Fica moralmente destruída. Numa carta que Florbela escreveria vários anos mais tarde, expressa a ruína desse desamor, embora não saibamos se é devida a essa experiência ou simplesmente ao facto de que a alma sente, a partir dos 16 ou 17 anos, o peso da vida; esta é a idade que os egípcios chamavam “da deusa Hathor”, idade na qual a alma desperta na sua prisão de carne e sangue. Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não conhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos, compreendi muita coisa que até li não tenha comprrendido e parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite. Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre. Podiam hoje sentar-me num tronco, canonizar-me, dar-me tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era... É a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes.22 Este “José” era, na realidade, João Martins da Silva Marques que chegaria a trabalhar como director do Arquivo Histórico da Torre do Tombo e que pediu, ao serem editadas essas cartas, que ______________ 21. Carta nº 26 edição de Rui Guedes. 22. Carta nº 57 da edição de Rui Guedes, Vol.V. 30 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 31 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA se substituísse o nome de João pelo de José. Muitas das páginas da sua futura prosa estão dedicadas a ele e à pureza do amor que viveram juntos. É o amor da sua juventude, Mário no seu conto “Amor de Sacrifício”, o amor de quem a fatalidade e o dever que esta impõe nos separa; Karl na “Alma de Mulher”; e sobretudo o Dr. Manuel de “Amor de Outrora”, conto de sublime beleza escrito já na plena maturidade da autora. Neste conto descreve cenas deste amor de ouro, não contaminado pelo desejo23, que são histórias vividas ou imaginadas artisticamente na sua relação com o seu primeiro amado: Viu o outro24, o verdadeiro, aquele que era dela ainda, que trazia ao pescoço como uma medalhinha benta capaz de todos os milagres. Ah! Aquele Manuel de romântica capa negra dos seus sonhos de rapariguinha! Aquele que tinha um sorriso já tão triste desenhado num sinuoso traço rubro tão bem feito, sobre a palidez da face! O Manuel que lhe chamava Nita, que punha no seu nome o afago que ninguém mais lá pusera, que lhe mandava molhos de violetas e amores-perfeitos que lhe escrevia em grandes cartas todas as palavras lindas que há no mundo, todas as blandícias perfumadas e santas, três vezes santas, do seu amor de sortilégio. (...) E lembrava-se, lembrava-se das noites em que falava com ele à janela, às horas sossegadas em que o silêncio rumoreja pelas ruas desertas. O luar banhava tudo; as casas, no largo, desmoronavam-se e caíam em linhas rectas sobre a branca toalha estendida. As fadas andavam por toda a cidade estendendo os seus lençóis de linho... e os olhos da rapariguinha apaixonada viam as fadas andar na sua lida, que os olhos de quinze anos são como varinhas de condão no mundo feio e lôbrego, os olhos de quinze anos vêem tudo onde por acaso pousem!... — Boa noite. ______________ 23. Amor que Agustina Bessa Luis, no cinismo e mordacidade que a caracterizam, chama depreciativamente “amor de verão”. E certamente o é aos olhos do mundo e dos costumes vulgares, mas desde a extrema sensibilidade da poetisa é muito mais que isso, é a primeira vez que o amor chama às portas de uma alma enamorada. Ver a sua biografia Florbela Espanca, a vida e a obra. 24. Florbela Espanca, Contos e Diário, editora Leya Biis, págs. 88 e 89. 31 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 32 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ — Boa noite. Ah, a voz dele a vibrar no silêncio, nítida como um cristal intacto! Que se diziam depois? Lembrava-se lá! Aos trinta anos sabe-se lá bem o que bocas puras murmuraram em noites luarentas, em românticos balcões debruçados sobre o largo rio de luar, enquanto o mistério dos destinos vai afagando as almas para as estrangular! Sabe-se lá!... E nunca nessas horas ruivas, a rir como bacantes, nunca sentira latejar nos seios o desejo de uma carícia proibida, nunca sonhara com os beijos da sua boca triste, nunca as suas mãos tremeram na obsessão de um contacto mais envolvente e mais perturbador. Não, nunca! Toda a castidade, toda a doçura, o seu sonho ia mais alto que as asas das cotovias e desconhecia tudo o que ia por cá abaixo, os caminhos ignorados por onde mais tarde havia de caminhar, fazendo pó e lama. Mas um dia, um dia morrera tudo, desabara tudo. Os fortes alicerces da sua catedral de ouro abanaram como se um ciclone sacudisse uma humilde choupana de colmo, e tudo desabara como um frágil castelo de cartas. Porquê? Sabia lá! Nem já se lembrava! Intrigas... calúnias... sabia lá! A vida começava a cumprir as suas promessas, que a vida é boa pagadora e não esquece nunca as suas dívidas... Viu-se de um dia para o outro mais pobre que Pedro Sem25, viu-se despojada de toda a sua grandeza, sem mesmo saber porquê e, asas esfarrapadas, espantada, tonta, pousou na terra e teve medo... mas a vida lá a arrastou, pegou-lhe na mão e lhe levou!.... Para onde? Com a alma destruída26 pela forçada separação, Florbela pede ______________ 25. Personagem que era um mercador rico à custa da desgraça alheia, mas que, tomado pela arrogância, desafiou Deus afirmando que nem este o poderia fazer pobre. Nesse momento uma tempestade afundou as suas naus cheias de especiarias e bens preciosos e um raio destruiu o seu palácio. Arruinado Pedro Sem passou a pedir esmola na rua lamentando-se: “Dê uma esmolinha a Pedro Sem, que teve tudo e agora não tem...”. 26. Na carta nº 28, finalizando esta turbulenta relação, escreve: “Pena é não haver um manicómio para corações, que para cabeças há muitos!”. Vol V., edição de Rui Guedes, pág. 89. 32 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 33 FLORBELA ESPANCA: A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA ao seu pai que venha buscá-la à Figueira da Foz, que está presa na angústia e desesperada: Minha amiga27 Recebi a carta do papá. Domingo, sem falta, quero-os cá, porque isto não pode continuar assim. É preciso tomar uma resolução, seja qual for. Já tenho as minhas cartas, rasguei-as todas, tudo está acabado. Eu tenho sofrido tanto como nunca pensei sofrer. Nunca pensei que isto custasse tanto. Ele era o meu maior amigo. Não sei o que hei-de fazer, tenho a cabeça doida, tenho febre. Eu não volto ao liceu. Quero ir-me embora, mesmo que seja para Vila Viçosa. Eu não posso viver assim. Ele escreve-me cartas que me fazem medo. Que dó que eu tenho dele, nem calculas! Diz ao papá que venha domingo para ir a Lisboa e ter ocasião de resolver tudo. Eu quero acabar com este inferno, quero ir-me embora. Estou doente. Tem dó de mim, dá-me conselhos, eu quero-te cá. Quero ver o meu pai querido, estou doente. Eu nem sei o que escrevo. Pela saúde do meu paizinho, vem tu depressa ou leva-me daqui. Adeus. Beija-te muito. A tua grande amiga. Florbela Neste mesmo ano, 1913, talvez como uma fuga psicológica frente ao seu trauma amoroso, restabelece o seu noivado com Alberto Moutinho, emancipa-se antes da idade legal e no dia 8 de Dezembro28, dia da Lua, une-se com ele num casamento civil. ______________ 27. Carta nº 30, edição de Rui Guedes. 28. Dia em que cumpria 19 anos, portanto. Como veremos mais adiante, a data de 8 de Dezembro, dia da Nossa Senhora da Conceição em Portugal ou da Imaculada Virgem em Espanha, foi uma data em que a nossa poetisa se desposava com o Destino, quer fosse para nascer, para casar-se ou para morrer. 33 Florbela_Backup_03_02:Layout 1 03-02-2011 22:29 Page 34 J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ É fácil de determinar o quanto há da vida de Florbela no seu breve conto “Amor de Sacrifício”29: Ao som daquela voz tão bela, Armanda estremeceu e, levada por aquele encanto infinito, pôs-se a recordar todo o seu passado, passado de sonho e amargura que ela tinha acalentado dentro do peito como uma criança que se adormece e que acordava agora, ao som daquela voz profunda e evocadora que gemia saudades e agonias. Por diante dos seus olhos castanhos, de uma luz casta e doce, perpassou rapidamente a visão daquele seu primeiro amor, nascido um dia à luz de dois olhares trocados por acaso, e morto um ano depois, deixando-a para sempre aquela criatura triste e pacífica, tão diferente daquela alegre rapariga de lábios vermelhos e olhos petulantes que ela tinha sido! Depois, o seu casamento com outro, aquela aventura nascida de um enorme despeito e dum orgulho excessivo. Era preciso esquecer, e era o único meio! Esse mesmo falhou, porque o sonho não morrera nunca, estava apenas adormecido, e ela sentia-o despertar agora, ao som da voz do humilde soldado que continuava a gemer saudades da noiva ausente! No entanto tinha encontrado, no marido, um grande amigo e um grande coração. Ela estimava-o muito, sem dúvida, era mesmo muito amiga dele, mas... Mário... Mário era esse o nunca esquecido, era esse a agonia vivida cada vez mais funda e mais dolorosa, era essa a chaga sempre sangrando, a amargura infinita e o supremo encanto da sua triste vida! Onde estaria ele? Em que canto da terra viviria o seu amor? Nunca mais o vira! Florbela e o seu marido instalam-se no Redondo, nas proximidades da serra d’Ossa. Dão aulas a crianças num regime de semiinternato, de manhã à noite, apertados pelas dificuldades económicas. Florbela ensina Francês, Inglês, Geografia e História e queixa-se nas suas cartas de como se lhe “derretem” as escassas receitas. ______________ 29. Conto incluído no caderno Trocando Olhares e datado de 11 de Abril de 1916. Não se sabe quem é o Alex da dedicatória, talvez o seu amor já distante no tempo e no espaço mas nunca esquecido. 34