A CLÁUSULA GERAL DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 Fabio Murilo Nazar1 RESUMO O presente artigo pretende uma análise sobre o princípio da função social dos contratos, previsto sob a forma de cláusula geral no artigo 421 do Código Civil de 2002, enfocando sua repercussão perante o direito obrigacional. Busca-se verificar os novos paradigmas traçados pela socialidade nas relações contratuais perante as partes e ante terceiros que são afetados direta ou indiretamente pela relação jurídica firmada, bem como, as conseqüências trazidas pelo novo modelo paradigmático de normatização por cláusulas gerais e aplicação da norma por concreção frente ao antigo perfil normativo subsuntivo e individualista. Palavras-chave: Instituto. Função. Social. Contratos. 1. INTRODUÇÃO A introdução ao tema passa pela análise primeva da própria função do Direito, informação que é pressuposta para a compreensão do papel social do Direito Civil e das mudanças principiológicas pelo qual o mesmo passou a partir da transição do antigo Código Civil de 1916, individualista e de modelo subsuntivo, para o novo estatuto jurídico promulgado em 2002, socializante, de interpretação concretiva e baseado em cláusulas gerais. O Direito tem como papel central a integração e pacificação do homem em seu meio social e consigo próprio, enfeixando um duplo aspecto de adaptação do ser humano ao Direito, que passa a reger sua vida gregária, traçando-lhe normas de conduta que respondam às necessidades humanas retratadas dentro do meio coletivo. Ubi societas, ibi ius, adágio que expressa a idéia de que só há Direito onde há sociedade, pois esta não pode desprezar a função organizadora e tranqüilizadora que a ciência jurídica traz ao homem socialmente integrado. Em todas as fases da história, por mais rudimentar que esta tenha sido, sempre haverá o comparecimento do fenômeno 1 Procurador do Estado de Minas Gerais. Advogado. Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG. Professor de Direito Civil da Faculdade Arnaldo Janssen de Belo Horizonte. jurídico a partir de regras representativas de uma pauta mínima de preceitos para a coexistência humana. Caio Mário da Silva Pereira, numa tentativa de conceituação precisa do Direito, leciona que: Diante de todas as tentativas dos grandes pensadores, Kant, ou Von Ihering, Regelsberger ou Levy-Ullman, Kelsen ou Del Vecchio, Savigny ou Radbruch, impotentes para darem noção que se congrasse por uma receptividade pacífica, limitemo-nos a dizer que o direito é o princípio de adequação do homem à vida social. Está na lei, como exteriorização do comando do Estado; integra-se na consciência do indivíduo que pauta sua conduta pelo espiritualismo do seu elevado grau de moralidade; está no anseio de justiça, como ideal eterno do homem; está imanente na necessidade de contenção para a coexistência. Princípio de aspiração divina para uns, princípio de submissão à regra moral para outros, princípio de que o poder público reveste de sanção e possibilita a convivência grupal, para outros ainda. Sem ele não seria possível estabelecer o comportamento na sociedade; sem esta, não haveria nem a necessidade nem a possibilidade do jurídico, já que para a vivência individual ninguém teria o poder de exigir uma limitação da atividade alheia, nem teria a necessidade de suportar uma restrição à própria conduta.2 (grifos do original) No entanto, ao contrário do sistema natural que representa o mundo do ser e parte de regras físicas fechadas, absolutas e imutáveis, as normas jurídicas, estão no campo do dever-ser, caracterizado pela liberdade de escolha da conduta a ser seguida a fim de manter o ideal de justiça e o equilíbrio nas relações jurídicas havidas no seio da sociedade. O Direito, e em especial o Direito Civil, é formado a partir do influxo sóciocultural de cada momento histórico. Seu regulamento muda segundo as perspectivas, anseios e necessidades de cada passagem cultural. Se o Direito é formado a partir de um sistema que visa dar-lhe adequação interna e unidade, este não é imóvel e fechado, como se imaginava no ápice da codificação, mas aberto aos novos axiomas que respondam adequadamente, segundo o momento de sua aplicação, ao seu fim de justiça e ordenação. Paulo Nader disserta a respeito da importância da adaptação do objeto do direito ao seu tempo e à sua cultura: Como objeto cultural que busca permanentemente adaptação à vida em sociedade, o Direito Positivo se acha impregnado de historicidade. Sob este aspecto dinâmico o Direito é ser transformado e transforma-se, ou seja, não permanece invariável no tempo e no espaço. Em grande parte o Direito contemporâneo compõe-se de instituições nascidas no passado e atualizadas no presente, seja por iniciativa do legislador ou por via judicial.3 (grifos do autor) 2 3 PEREIRA DA SILVA, 1994, p. 5. NADER, 2003, p. 20. O direito civil, dentro da multiplicidade do direito, é o ramo específico que busca reger as relações comuns entre todas as pessoas na sua expressão privada. Desde o nascimento, passando pelos atos comuns ocorridos no curso da vida da pessoa, como a compra e venda de um bem móvel ou imóvel, a contratação de uma escola para o nosso aprendizado, a compra de um veículo, o casamento, a filiação, até chegarmos ao ocaso da vida com a morte, tudo está impregnado das normas civis. Francisco Amaral sintetiza de modo lapidar o conceito de Direito Civil, afirmando-o como: [...] o conjunto de princípios e normas que disciplinam as relações jurídicas comuns de natureza privada. É o direito privado comum, geral ou ordinário. De modo analítico, é o direito que regula a pessoa, na sua existência e atividade, a família e o patrimônio.4 Assim, o Direito Civil, tem como finalidade primitiva regular a pessoa em suas relações com outras pessoas desprovidas do poder de império. O Direito Civil é o direito do homem que vive na polis desprovido de poder soberano. Várias foram as fases por que passaram as normas civilísticas, sendo que nos interessa no presente momento e estudo apenas o capítulo vivido após a promulgação da “constituição cidadã” de 1988 e do Código Civil de 2002, cujos valores de solidariedade, de eticidade e de igualdade material, passaram a conviver com o princípio da liberdade, tão caro ao homem civil. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, o Direito Civil é vislumbrado a partir da idéia de constitucionalização do direito, sofrendo o sopro do vento de novos valores que rompem a interpretação dos princípios históricos da seara privada e sua aplicação aos seus personagens centrais que são o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador. O foco de aplicação da norma é mudado a fim de se atingir a dignidade da pessoa humana. Os ares constitucionais passam a plasmar o âmbito civil de modo formal e material. Formalmente a partir da introdução de normas tipicamente civilísticas no texto constitucional vigente, tal como se vê no instituto da usucapião (artigos 183 e 191 da Constituição Federal de 1988), na previsão da responsabilidade civil pelo dano moral, dever antes rechaçado pela doutrina e pela jurisprudência anterior à 1988 (artigo 5º, 4 AMARAL, 2003, p. 105. incisos V e X, da Constituição Federal de 1988) e pelas regras inerentes á família, descritas no artigo 226 e seus parágrafos do documento jurídico político de 1988. Materialmente, a constituição passa a traçar valores que servem de guia às regras civis, deslocando axiomas antes amalgamados no Código Civil para a Constituição Federal. Muda-se, portanto, o referencial antes situado no estatuto civil como o principal instrumento jurídico do cidadão para a constituição que passa a cumprir o papel de referencial do Direito positivo contemporâneo. No que tange ao ramo civilístico, a mudança axiomática é visível. Basta imaginarmos o instituto da família que com a vigência da “constituição cidadã”, tratou de reconhecer a união estável, a igualdade entre os filhos havidos ou não na constância do casamento, e a família formada por entes diversos do velho modelo composto pelo pai, mãe e filhos. O caráter material da constitucionalização do direito privado é sentido sobremaneira nos contratos que sofreu o influxo de novos valores. Neste passo, mister se faz a doutrina de Luis Renato Ferreira da Silva: Sob o ângulo formal, não haveria muito o que se falar de constitucionalização quanto ao direito dos contratos. É que o texto constitucional brasileiro não editou regras estruturando ou modificando as regras civis do direito dos contratos. Entretanto, sob o ponto de vista material, certamente as afirmações da Carta Constitucional abrangem e alteram significativamente as regras postas do direito contratual. Esta evolução, que já vinha sendo, timidamente, desenvolvida pela jurisprudência, acaba por encontrar ressonância nos três princípios basilares que estruturam a teoria geral dos contratos no Novo Código.5 O fenômeno da constitucionalização do Direito arrefece o muro separativo entre o direito público e o direito privado fortalecendo o ideal de interdisplinariedade jurídica a partir de pontos comuns de contato entre os dois grandes ramos do direito, tendo em mira a preservação dos princípios norteadores da República. A Constituição Federal de 1988, cujo texto nos remete como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, da Constituição de 1988), passou a regular institutos jurídicos antes exclusivos da legislação civil ordinária, rompendo induvidosamente com o sistema clássico, cuja liberdade e a igualdade formal eram os valores máximos e irrefreáveis para o Estado não interventor. Se o direito civil teve e tem como base os valores da igualdade e da liberdade, que se expressam na livre iniciativa e na autonomia da vontade (autodeterminação da 5 FERREIRA DA SILVA, 2006, p. 129. pessoa), estes axiomas, que foram recepcionados e estão presentes na moldura constitucional, passam a coabitar com outros interesses, tais como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, a igualdade substancial e a erradicação da pobreza com a redução das desigualdades sociais, promovendo o bem de todos, conforme determinam os artigos 1º e 3º, da Constituição Federal de 1988. O Código Civil de 2002, inspirado pelo humanismo que impregna o texto constitucional, repita-se, inovou nos cinco principais personagens do Direito Civil, penetrando a figura do proprietário, do contratante, do empresário, do pai de família e do testador que passaram a ter nova roupagem interpretativa com base no princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade, da justiça e da liberdade. São três os princípios reitores do Código Civil de 2002: a socialidade, a eticidade e a operabilidade. Sobre estas bases houve a construção do mais importante diploma civil brasileiro, que pugna pela realização, na maior medida possível, dos valores da justiça social e da igualdade material, sem desprezo da liberdade que lhe é própria. O estudo dos princípios reitores do Código Civil de 2002 é de fundamental importância, pois todo o arcabouço jurídico civil descrito no texto normativo de 2002 deverá seguir as diretrizes traçadas pela socialidade, eticidade e operabilidade, cuja matriz, antes de mais nada, é a norma constitucional fundante. Celso Antônio Bandeira de Mello, em seu estudo sobre o Direito Administrativo, que não obstante ser típico ramo do direito público aplica-se plenamente ao Direito Civil, basilou de maneira ímpar a importância da preservação dos princípios fundamentais do sistema jurídico, ao descrever qual a conseqüência da desatenção aos princípios, afirmando que: Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremessível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.6 Nesta introdução é mister perpassar as linhas gerais de cada um dos três princípios reitores do diploma civil, indicando os contornos básicos de cada um deles, lembrando que o tópico a que se propõe estudar está voltado para a socialidade inerente 6 MELLO, 1984, p. 230. aos contratos, especialização que será deixada para os capítulos posteriores em um estudo mais aprofundado da temática, sempre com vistas para a aplicação da função social dos contratos como uma das cláusulas gerais do direito obrigacional. A sociabilidade é a grande ambição do projeto Miguel Reale, pois esta cria óbice ao exercício egoístico dos direito patrimoniais e não patrimoniais privados, regulando o exercício do direito subjetivo que se expressa pelo poder conferido pelo ordenamento jurídico à pessoa de agir e exigir de outrem um certo comportamento. A socialidade cumpre o importante papel de compatibilização entre a autonomia privada, expressão do direito subjetivo individual, e a sociedade livre, justa e solidária prevista como objetivo do Estado brasileiro. A liberdade (autonomia privada) só será justificada em seu exercício se houver conciliação com a busca da justiça, da solidariedade e da igualdade material, valores que devem ser preservados, acima de tudo, pelo homem comum. Ao prever a função social dos contratos e da propriedade, o Código Civil, com apoio na Constituição da República, valoriza o exercício dos direitos subjetivos segundo o que melhor atender à finalidade (função) do bem comum (social). Função social está afeto ao bem comum que melhor atenda as partes envolvidas e terceiros, quando da prática do ato jurídico. Quanto à eticidade, cabe-nos afirmar que se a ética é a ciência do fim para o qual a conduta do homem deve ser orientada, a eticidade traça o fundamento axiológico do direito civil, representando o valor justiça a partir da boa-fé objetiva, abuso do direito, equidade e bons costumes. Se o positivismo extremo buscou extrair do Direito toda a carga valorativa ou ética, restringindo à vontade prescrita pelo legislador, na contemporaneidade o valor do justo, do probo e do correto, passa a nortear toda a conduta humana em suas relações jurídicas. Por derradeiro, a operabilidade, último dos princípios do Código Civil, mas não menos importante que os demais, visa, sobretudo, imprimir às normas civis uma maior efetividade, a partir da facilitação da interpretação e aplicação do Direito Civil, desapegando-se do formalismo jurídico que foi a tônica do Código de 1916. Asseverese que a modernização da legislação não pode passar ao largo da maximalização da eficácia de seus institutos. A ninguém interessa uma legislação extensa, mas inaplicável às situações da vida cotidiana. 2. AS CLÁUSULAS GERAIS E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 Afastando-se da técnica utilizada no antigo diploma normativo de 1916, cujo espírito era o de criação de um código completo e que exaurisse ao máximo as situações sociais que possivelmente surgiriam, gerando, por conseguinte, a plenitude do direito legislado, com uma interpretação baseada em um processo de mera subsunção do fato à norma descrita, mediante um encaixe entre conceitos, no tradicional argumento de três partes, premissa maior, premissa menor e conclusão, cujo trabalho do julgador é o de mero aplicador mecânico da lei posta com nenhuma, ou quase nenhuma, apreciação valorativa, o Código Civil de 2002, buscou na forma de cláusulas gerais a produção de suas normas mais importantes, sendo o princípio da função social dos contratos uma de suas melhores expressões (artigo 421 do Código Civil de 2002). A doutrina aponta algumas características das cláusulas gerais, das quais devem ser citadas três: a) inicialmente, a vagueza do conceito; b) também, a sua necessidade de precisão; c) por fim, o fato de estarem expressas no ordenamento jurídico, não havendo cláusula geral implícita. Fabiano Menke, citando doutrina de Judith Martins-Costa, leciona que: Como ensina Judith Martins-Costa, ‘considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou ‘vaga’. A vagueza, então, pode ser apontada como uma das características das cláusulas gerais. Ao lado da vagueza está a necessidade de precisão, ou präzisierungsbedürfigkeit, a que faz alusão a doutrina alemã, ou seja, não se cuida de norma pronta e acabada, mas sim de norma que demanda precisão, construção, por parte do intérprete. Outra característica fundamental das cláusulas gerais é a de que elas serão sempre expressas. Enquanto um princípio pode integrar um sistema jurídico em que pese não positivado, como o era o princípio da boa-fé objetiva antes do Código Civil de 2002, jamais haverá cláusula geral implícita, uma vez que se trata de técnica legislativa. O que pode ocorrer, todavia, é a presença de uma cláusula geral que contenha um princípio, ‘reenviando ao valor que este exprime, como ocorre com o reiteradamente citado § 242 do BGB. Aí, sim, se poderá dizer que determinada norma é, ao mesmo tempo, princípio e cláusula geral.7 A partir das características supra apontadas e mediante a técnica da inscrição de cláusulas gerais, que afasta a expectativa de uma codificação exaustiva e completa, o Código Civil de 2002 cria um sistema aberto e móvel, com uma porosidade 7 MENKE, 2004, p. 14. suficientemente capaz de captar o universo axiológico do seu tempo e que lhe fornece substrato interpretativo, a fim de providenciar de modo mais adequado a justiça no caso concreto. Assevere-se que as cláusulas gerais permitem uma clara manifestação de que há outras fontes do direito além da efetivamente legislada e que podem contribuir para aclarar a justiça no caso concreto posto sob a discussão dos julgadores. Há o reconhecimento de que o texto codificado é incompleto e lacunoso, devendo passar por um trabalho de integração preponderantemente judicial, mediante o emprego de fontes internas e externas à legislação escrita e codificada. Ao interpretar a cláusula geral, o juiz passa a atuar como um “legislador”, porém limitado ao campo do caso concreto que lhe é posto para decisão. No Direito visto como linguagem, as cláusulas gerais cumprem a função de adequação da linguagem do texto normativo à ocasião histórica, ao caso discutido em espécie, ao contrário da casuística que anseia um código total, a-histórico e adaptável a todos os momentos, o que é improvável, já que a linguagem se perde socialmente com o passar do tempo. O papel da interpretação do texto normativo, na contemporaneidade, não é o de meramente descrever o significado do texto, mas sim, de construir e constituir este significado segundo os vários momentos. A visão de Humberto Ávila sobre a fixação do conteúdo e alcance das normas jurídicas nos informa de modo ímpar o significado da linguagem e do intérprete no processo hermenêutico: De um lado, a compreensão do significado como conteúdo conceptual de um texto pressupõe a existência de um significado intrínseco que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal. [...] Sendo assim, a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constituiu a significação e os sentidos de um texto.8 As cláusulas gerais, modelo utilizado pelo Código Civil de 2002, expressam a teoria tridimensional do direito, cujo principal expoente e defensor é o professor Miguel Reale, autor intelectual do Código Civil em vigor. Na teoria tridimensional o papel do 8 ÁVILA, 2008, p. 31-32. juiz é relevante, pois caberá ao magistrado, em cada passagem histórica, traçar a dialética entre o fato, o valor e a norma, reconstruindo, segundo o momento vivido, a norma a partir do valor justiça. Há uma direta correlação entre o modelo das cláusulas gerais e o maior poder interpretativo do juiz. A partir da adoção deste modelo, o magistrado terá um incremento em seu mister de interventor nos negócios jurídicos privados, colocando em maior destaque o trabalho do julgador, possibilitando o ingresso dos valores constitucionais na esfera civil, pois as cláusulas gerais são recipientes captadores das variantes sociais. Passa-se à técnica de aplicação do direito pelo modo da concreção ou concretização, onde o esforço intelectivo do intérprete e aplicador do direito é maior em razão da necessária complementação valorativa que as cláusulas gerais exigem, buscando em outros círculos do sistema, e até mesmo fora deste, a fonte que motivará sua decisão. Ao magistrado caberá a firme tarefa de preencher a norma de textura aberta, buscando uma justificativa racional e fundamentada para o decisum diante do caso concreto. Mais uma vez a doutrina de Fabiano Menke deve ser trazida à lume: Na aplicação do direito por meio da concreção, o juiz analisa o caso concreto em toda a sua potencialidade. Não parece apenas da compreensão da norma para perquirir se os fatos colocados em questão nela se encaixam. Consoante salienta Humberto Ávila, ocorre ‘uma mescla de indução e dedução’, onde são analisadas todas as circunstâncias do caso: o conteúdo da norma, os precedentes judiciais e quaisquer outros elementos que venham a ser considerados relevantes.9 Kal Larenz, introdutor do termo concreção (konkretisierung) na doutrina jurídica, descreve de modo lapidar este processo, indicando como seu ponto central o fato de ser um meio de individualização reguladora do caso concreto, mediante uma efetiva criação judicial para a proposição fática questionada e posta sob a apreciação do magistrado. O pensamento de Larenz deve ser transcrito mediante a seguinte passagem de sua doutrina: Na apreciação do caso concreto, o juiz não tem apenas de ‘generalizar’ o caso; tem também de individualizar até certo ponto o critério; e precisamente por isso, a sua atividade não se esgota na subsunção.10 9 MENKE, 2004, p. 20 e 21. LARENZ, Lisboa, 1997, p. 147. 10 Franz Wieacker, retratando a Alemanha do início do século XX, onde houve o incremento da técnica de aplicação das cláusulas gerais previstas no Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), a fim de conter injustiças formadas pelo pós I guerra mundial, analisando o papel do magistrado nesta seara, leciona que: A jurisprudência civilista alemã mostrou-se suficientemente adulta para satisfazer as exigências que as cláusulas gerais colocam à ‘obediência inteligente’ do juiz (Heck) quando ela, a partir das crises da primeira guerra mundial, começou com uma calma e refletida ponderação, a preencher as cláusulas gerais com uma nova ética jurídica e social e, assim, a adaptar a nova ordem jurídica burguesa à evolução social [...].11 A partir da técnica das cláusulas gerais a formação da norma jurídica passa a se dar em dois momentos distintos. Um primeiro havido na função legislativa criadora da norma geral e outro, no campo judicial através da aplicação da cláusula geral ao caso concreto posto sub examine. Há uma cooperação entre a função legislativa e jurisdicional que possibilita uma melhor produção normativa mediante regras e princípios eficazes à pacificação social, fim último do direito. O estatuto civilístico em vigor privilegiou as cláusulas gerais, consagrando-as como modelos a serem seguidos, positivando-as em várias passagens da codificação civil. A maioria delas simbolizam a positivação dos princípios da socialidade, da eticidade e da operabilidade que escoram o sistema normativo cível do Brasil e servem de norte interpretativo. Há que se ter em vista que a positivação das cláusulas gerais, fato ocorrido no ordenamento normativo nacional, traz segurança ao aplicador do direito e a quem sofre sua aplicação, o cidadão, o homem comum, pois com a positivação o julgador passa a ter referência legal concreta em seu modo de agir, justificando sua decisão dentro de parâmetros previamente traçados, evitando o risco do decisionismo judicial motivado apenas pelos valores pessoais e individuais do julgador da causa. A positivação é fato importante na tentativa de rechaçar o voluntarismo judicial, impedindo que o julgador paute sua decisão apenas pelo seu espírito e opinião pessoal. A importância da positivação das cláusulas gerais é vista por Clóvis do Couto e Silva como um fator de segurança, pois sem o referencial do texto dispositivo “a 11 WIEACKER, Lisboa, 1993, p. 546. percepção e a captação de sua aplicação torna-se muito difícil, por não existir uma lei de referência a que possam os juízes relacionar a sua decisão”.12 Se a vagueza é característica das cláusulas gerais, esta seria ainda maior sem que houvesse a sua positivação em um texto normativo. Ademais, a precisão do conteúdo da cláusula geral, que é também uma de suas características, demanda trabalho de construção do magistrado a partir do modelo expresso no texto do dispositivo normativo, sem esquecermos que neste trabalho de precisão, o texto é o ponto de partida, o referencial a ser seguido, mas não o único e exclusivo fator interpretativo, em razão da abertura do sistema. Outro aspecto deve ser realçado a fim de se atingir segurança na aplicação das cláusulas gerais. A técnica do método da concreção impõe ao julgador um dever de motivação mais aprimorada, contundente e extensa que a aplicável na mera subsunção normativa, pois somente a partir da devida e criteriosa motivação do julgado, segundo os valores sociais e jurídicos captados pela sensibilidade judicial, será possível demonstrar a razoabilidade, racionalidade e adequação de sua decisão ao caso concreto. Com dito alhures, o Código Civil de 2002 privilegiou as cláusulas gerais. Várias as passagens da codificação civil que simbolizam os princípios da socialidade, da eticidade e da operabilidade. Alguns exemplos devem ser citados como os artigos 113 e 423 do Código Civil que disciplinam: “Art. 113 - Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. “Art. 423 – Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação que for mais favorável ao aderente”. Nestes dispositivos, há típica indicação dos princípios da eticidade em razão da boa-fé, e da operabilidade, pois a interpretação conforme os usos do lugar e a que melhor expressa o desejo de dar efetividade à declaração que vontade, fim que se espera em qualquer negócio jurídico, bem como a fixação do marco interpretativo para os contratos de adesão. Por sua vez, o artigo 187 do Código Civil determina que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites 12 COUTO E SILVA, São Paulo, 1980, p. 62. impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Neste dispositivo, a socialidade e a eticidade estão presentes sob a forma de cláusula geral. Também o artigo 421 do Código Civil, objeto central do nosso trabalho, que nos indica de modo solar que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, bem como o artigo 422 do mesmo diploma ao impor às partes do contrato o axioma de que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Ambos os dispositivos foram descritos na norma civil sob a forma de cláusulas gerais que representam a eticidade e a socialidade. Por fim, o Código Civil do século XXI é repleto de cláusulas gerais cujo escopo é o de representar positivamente seus princípios reitores de socialidade, eticidade e operabilidade, a fim de se atingir os valores máximos da liberdade, solidariedade e justiça. 3. A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO A noção funcional do direito é inerente ao pensamento contemporâneo, a partir da idéia de que o ordenamento jurídico é um conjunto de princípios e regras que busca alcançar certos objetivos e finalidades. Atribui-se a um determinado instituto jurídico um fim a ser buscado, garantindo-se o direito subjetivo ao seu titular apenas e tão somente quando este alcança a sua função (finalidade) ao qual o mesmo se dirige. Assim, a todo direito subjetivo corresponderá, para o seu titular, um dever jurídico que corresponde ao cumprimento da função (finalidade) que se espera no exercício da prerrogativa atribuída ao sujeito. Ao ente dotado de personalidade jurídica será garantido o direito subjetivo desde que o seu exercício se dê de acordo com o fim esperado. A dogmática do direito subjetivo passa a estar impregnada pela noção de poder-dever, segundo a funcionalização da prerrogativa jurídica que está assegurada ao sujeito. Luis Renato Ferreira da Silva descreve com propriedade a funcionalização do direito, indicando-nos que: A idéia de função está presente no direito, no plano da compreensão global, quando se pensa em que o conjunto de regras positivas deve ter um tipo de finalidade e buscar alcançar certos objetivos. Neste sentido, fala-se em função promocional do direito, pois no Estado social, o legislador emprega técnicas de encorajamento, mais do que as tradicionais regras de desencorajamento. Por outro lado, pode-se ver tal noção vinculada a algum ou a alguns institutos jurídicos específicos. Neste sentido é que se fala em função social da propriedade ou função social do contrato. Ao supor-se que um determinado instituto jurídico esteja funcionalizado, atribuise a ele uma determinada finalidade a ser cumprida, restando estabelecido pela ordem jurídica que há uma relação de dependência entre o reconhecimento jurídico do instituto e o cumprimento da função social. Mais do que um poder atribuído ao titular (no sentido de direito subjetivo atributivo de faculdades) estáse falando de um poder-dever, ou seja, uma faculdade que está umbilicalmente ligada ao cumprimento do fim por conta do qual é aceita no direito.13 Com o intuito de alcançar a funcionalização do direito, a técnica jurídica passa por três fases distintas, mas interdependentes. Em um primeiro momento, reconhece-se o direito básico. Após, define-se qual a função, qual o escopo a ser atingido pelo sujeito que exerce o direito subjetivo básico assegurado. Por fim, cunha-se um aparelho de coação que visa garantir o cumprimento da finalidade (função) que se busca atingir na prática do direito assegurado. Para elucidar o pensamento, podemos citar o seguinte exemplo prático. O artigo 5º, inciso XXII, da Constituição da República, ao assegurar o direito de propriedade, afirma que o mesmo deve ser exercido segundo a sua função social. O mesmo texto constitucional de 1988, agora nos artigos 182, § 2º e 186, indica ao titular da propriedade imobiliária urbana que a sua função social será obtida quando o uso, gozo e disponibilidade do domínio estiverem adequados às normas de ordenação da cidade descritas no plano diretor, bem como elucida ao dono da propriedade rural que seu fim social será atingido quando a propriedade for exercida de modo produtivo. Em derradeiro, o constituinte criou meios de coação aos titulares da propriedade urbana e rural com vistas a que estes não descurassem da função social a que as mesmas se destinam, impondo, por exemplo, a desapropriação do imóvel rural, por interesse social, quando a produtividade for baixa ou inexistente, bem como a desapropriação do imóvel urbano para fins urbanísticos. Neste exemplo, vislumbra-se de modo solar a técnica de funcionalização de um direito subjetivo segundo os três estágios apontados. O Código Civil de 2002, inovou ao funcionalizar o instituto do contrato, indicando às pessoas de direitos e deveres na ordem civil que o exercício do direito básico de contratar está delimitado em razão e nos limites da função social, condicionando a liberdade de contratar à consecução de um fim socialmente significativo, sem o que, não mais será assegurado ou admitido o exercício deste direito 13 FERREIRA DA SILVA, Porto Alegre, 2006, p. 129. subjetivo. A conservação e manutenção da liberdade de manifestar vontade com o intuito de adquirir, reguardar, transmitir, modificar, extinguir ou conservar direitos e deveres entre partes contratantes passa a ter como condição legitimadora o cumprimento da finalidade social do contrato. No entanto, um hiato restou configurado. Ao contrário da função social da propriedade, onde o ordenamento brasileiro segue os três passos a serem percorridos para a funcionalização do direito (reconhecimento do direito básico, indicação da função a ser perseguida e imposição de meios coercitivos), no caso dos contratos o texto codificado não indica de modo preciso qual a sua função social (finalidade a ser atingida) e quais os mecanismos para a garantia de seu cumprimento, restando à doutrina e à jurisprudência fazê-lo através do método da concreção que é próprio do modelo das cláusulas gerais seguido pelo Código Civil em vigor. No próximo capítulo tentaremos elucidar o significado da função social do contrato descrita no Código de 2002, objeto central do nosso trabalho. 4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS As obrigações, das quais o contrato é a sua mais expressiva espécie, exerceu e exerce até hoje relevante função econômica, servindo ao anseio humano de circulação de bens e serviços. A ordem econômica e jurídica tem no contrato o porto seguro para a regulação de seus interesses apreciáveis economicamente. Diz Orlando Gomes que “Todo o contrato tem uma função econômica, que é, afinal, segundo recente corrente doutrinária, a sua causa”.14 Serve o contrato à economia possibilitando a circulação de riqueza e a concessão de crédito que autoriza a ação empreendedora, promovendo a colaboração mútua entre as partes para atingir seus fins pecuniários. O contrato cumpre o fito de prever riscos desnecessários, bem como o de prevenir controvérsias que naturalmente surgem entre as partes no cumprimento das obrigações ajustadas que trazem imenso desgaste às relações humanas de índole econômica e jurídica. Ademais, visa o negócio jurídico contratual à conservação e acautelamento dos resultados desejados e esperados pelas partes. A 14 GOMES, Rio de Janeiro, 1996, p.19. segurança jurídica é preservada nos contratos, nos moldes do artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal de 1988 que assim dispõe: “XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Cada contrato específico exerce sua função econômica para o qual foi moldado, ou seja, se pretendo a aquisição de um bem, há o contrato de compra e venda, ou de troca. Caso tenha em mente a garantia do pagamento de um débito, utilizo-me da fiança. O intuito de unir esforços e recursos para atingir um fim comum, molda-se na sociedade. Caso o efeito esperado não se amolde a nenhum modelo previamente descrito em lei, há a possibilidade de criação de novas formas a partir dos contratos atípicos que hoje encontram previsão legal explícita no artigo 425 do Código Civil de 2002, que assim dispõe: “Art. 425 - É lícito ás partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”. San Thiago Dantas nos informa que o progresso por qual passamos nos últimos tempos, século XIX e XX, deve muito ao instituto dos contratos que possibilitou nos regimes democráticos libertos das amarradas feudais Os meios simples e seguros de dar eficácia jurídica a todas as combinações de interesses; aumentou, pela eliminação quase completa do formalismo, o coeficiente de segurança das transações; abriu espaço à lei da oferta e da procura, levantando as restrições legais à liberdade de estipular; e se é certo que deixou de proteger socialmente os fracos, criou oportunidades amplas para os socialmente fortes, que emergiam de todas as camadas sociais, aceitando riscos e fundando novas riquezas 15. Enfim, o contrato sempre serviu à economia como o principal meio de circulação da riqueza. Estará o contrato cumprindo sua finalidade social enquanto permitir a circulação de bens e serviços, ou seja, enquanto for o fio condutor das trocas econômicas. O combustível do mercado é o contrato, fato que foi percebido pelos economistas franceses a partir da década de setenta, segundo a visão de Éric Brosseau, cuja citação se faz necessária: 15 DANTAS, São Paulo, p. 195-144. ... les contrats apparurent comme le moyen de rendre compte de la coordenation dans une économie décentralisée au sein de laquelle les agents se coordonnent deux sans secrétair de marche em fonction des seules contraintes dont ils ont conscience. Le succès de cette approche de la coordination économique fut fulgurant. À tel point qu’aujourd’hui l’économie des contrats est devenu une des bases de tout cursus em economie et que les théories des contrats sont mobilisées dans tous les domaines de l’économie appliquée.16 Tamanha a importância dos contratos como fato econômico que seu regime disciplinar constitui o estereótipo do modelo econômico da comunidade em que se insere, não tendo sequer sido ignorado no regime socialista implantado no leste europeu em contraposição ao capitalismo. A agilidade do mercado depende da estrutura do contrato, único capaz de traduzir de modo célere as expectativas e ansiedades das pessoas em cada momento econômico vivido pela sociedade de direito privado Mas, a contemporaneidade busca fincar raízes na socialidade do direito (o direito servindo não só ao homem, mas à toda sociedade). Além da função econômica, o contrato passa a ter uma função social proeminente. De mero servidor da economia, o contrato passa ao serviço da sociedade como um todo. Não basta mais o adimplemento da função econômica para a qual o acordo se destinou, é fundamental que ao lado desta expectativa econômica seja atingida a expectativa social. O contrato passa a ter uma função econômico-social unindo os dois interesses em jogo entre as partes e outros interesses ligados a outros sujeitos que não participaram do acordo, mas que sentem seus efeitos, gerando conseqüências intersubjetivas e, também, cada vez mais, implicações trans-subjetivas. Na afirmação de que há um interesse social a ser preservado, o que se quer defender, em síntese, é que o contrato deve ser útil no meio em que se insere de modo a que haja um interesse público na sua tutela. A autonomia da vontade, princípio que nasceu no seio do individualismo e do liberalismo econômico, passa a ser exercida em prol das partes e da sociedade. A função social cumpre no cenário jurídico o importante papel de promoção e realização da justiça comutativa, efetivando a igualdade material em detrimento da igualdade meramente formal. A liberdade de contratar, em suas três facetas, passa a ser subordinada aos efeitos que melhor atendam à coletividade como um todo. 16 BROSSEAU, Paris, 2001, p. 154. O professor Carlos Roberto Gonçalves, tratando do tema em apreço, nos informa a partir de sua dogmática que: É possível afirmar que o atendimento à função social pode ser enfocado sob dois aspectos: um, individual, relativo aos contratantes, que se valem do contrato para satisfazer seus interesses próprios, e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nessa medida, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social 17. Na disciplina da função social dos contratos, percebe-se nitidamente o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, que é sentida na previsão constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme o disposto no artigo 3º, I, da Constituição da República de 1988. No entanto, a norma constitucional, a fim de ganhar concretude instrumental, passa por uma especificação no Código Civil de 2002. Judith Martins-Costa leciona que: Se às Constituições cabe proclamar o princípio da função social – o que vem sendo regra desde Weimar -, é ao Direito Civil que incumbe transformá-lo em concreto instrumento de ação. Mediante o recurso à função social e também à boa-fé – que tem uma face marcadamente ética e outra solidarista – instrumentiza o Código agora aprovado a diretriz constitucional da solidariedade social, posta como um dos ‘objetivos fundamentais da República’.18 A sociabilidade é a grande ambição do projeto Miguel Reale. Visa este princípio, sobremaneira, impor óbices ao exercício egoístico dos direito patrimoniais privados, regulando a prática dos direitos subjetivos que podem ser traduzidos pela visão de um poder conferido pelo ordenamento jurídico à uma pessoa de agir e exigir de outrem um certo comportamento que lhe satisfaz. Representa, portanto, o direito subjetivo, a senhoria do querer como expressão do direito de liberdade. A função social busca compatibilizar a autonomia privada, expressada por intermédio do exercício do direito subjetivo, com o paradigma de uma sociedade livre, justa e solidária. Liberdade (autonomia privada), justiça e solidariedade são valores a serem preservados e ponderados na aplicação das normas jurídicas. 17 18 GONÇALVES, São Paulo, 2004, p. 6. MARTINS-COSTA, São Paulo, 2002, p. 144. O sintagma função significa a finalidade do direito subjetivo exercido pelo sujeito no caso concreto. Sociabilidade, por seu turno, significa a busca do bem comum que pode variar no tempo e no espaço, cabendo ao intérprete da lei, nos moldes da técnica de concreção, aferir o bem comum segundo o momento vivido. No direito obrigacional, segundo o nosso sentir, o termo função tem significado próprio, indicando a busca do adimplemento, termo que expressa a prática efetiva do comportamento ao qual se obrigaram ambas as partes envolvidas na relação jurídica. Neste ponto, há que se ter em mira que o adimplemento só será atingido se a troca e a circulação de riqueza, havida por intermédio do contrato, der-se de modo justo, útil e equitativo para ambas as partes, pois, caso contrário, a quebra destes valores levará ao inadimplemento que resultará na frustração da finalidade última do instituto contratual e de seu substrato liberdade de contratar. O contrato cumprirá sua finalidade (função) sempre que estiver ao serviço do alcance e conservação de acordos produzidos pela livre manifestação da vontade das partes em condições paritárias, justas e úteis, ainda que em detrimento do absolutismo da vontade inicialmente expressa pelas partes envolvidas no negócio jurídico. Mais uma vez a lição de Luis Renato Ferreira da Silva: Estabelece-se como critério limitador da expansão contratual o seu desenvolvimento útil e justo. Entende-se que o essencial no contrato não é a manutenção absoluta da vontade inicial, mas a conformidade com a justiça comutativa (...) A comutatividade contratual importa em ver as partes em equilíbrio, tornando o pacto em algo útil (inclusive no sentido econômico do utilitarismo), adotando este como norte objetivado pelo contrato. Por outro lado, a justiça, também no sentido comutativo, passa a ser o elemento protetor nas relações contratuais. Ela faz às vezes de elemento limitador dos excessos prejudiciais às partes e prejudicial da otimização do contrato, dando-lhe um sentido de utilidade.19 A fim de manter uma relação comutativa, o direito passa a trazer institutos que relativizam o princípio pacta sunt servanda e a máxima res inter alios acta tercio nec nocet, neque potest, valores que passam a ser quebrados em prol da função social e da busca do adimplemento contratual. Observe-se que, no desenvolvimento histórico do contrato, no período em que se exacerbava o individualismo, a satisfação do interesse próprio, significava a busca pelo bem individual. A soma de todos os bens individuais consagraria o bem comum da sociedade. Garantia-se a força da vontade através do princípio do pacta sunt servanda, 19 FERREIRA DA SILVA, Rio de Janeiro, 2001, p. 38. cuja segurança se tencionava garantir a fim de uma preservação patrimonial do sujeito de direitos civis (o proprietário, o marido, o testador e o contratante). Após, especialmente, a segunda guerra mundial, percebe-se que a todo o direito subjetivo deverá corresponder uma função social. Sociabilidade que significa a busca do bem comum que na atualidade é representado pelo interesse comum do devedor, do credor e dos que integram a sociedade. Assim, toda a relação jurídica, composta de direito subjetivo e dever jurídico, será pautada pela busca do interesse comum entre o devedor, o credor e a sociedade em questão. A função social do direito obrigacional consiste na manutenção de uma relação de coordenação entre seus partícipes e entre eles e a sociedade, a fim de que seja possível, ao término da relação obrigacional a consecução do bem (fim) comum da obrigação que é o adimplemento de modo mais satisfatório ao credor e menos onerosa para o devedor e à sociedade. Assevere-se que, ao contrário do que muitos podem pensar, a função social não significa a prevalência do coletivismo (social) frente ao indivíduo. Não se pode abandonar o individualismo exacerbado em nome do coletivismo, colocando a coletividade como essência da sociedade, despersonificando o indivíduo em favor do todo. A função social, como dito alhures passa a moldar a atuação das partes envolvidas no contrato criando óbice à prática egoística dos direitos patrimoniais. Mediante a função social há uma elasticidade dos efeitos do negócio jurídico contratual para além das partes originárias verificando-se as conseqüências do ato também perante o corpo social que passa a ser considerado. A preservação da liberdade, mesmo no estado liberal, não pode desprezar uma necessária e adequada intervenção estatal na vontade descrita e manifestada pelas partes no momento em que entabulam um contrato, intervencionismo que tem como fim manter a utilidade deste instituto jurídico, circulação de riquezas, segundo padrões éticos de conduta. Claus-Wilhelm Canaris, apesar de manifestar-se de modo contrário ao maciço intervencionismo estatal nos negócios jurídicos privados, em artigo intitulado “A liberdade e a justiça contratual na ‘sociedade de direito privado’”, leciona em certa passagem sobre a necessidade de, em alguns momentos, o Estado exercer função corretiva e reequilibradora do negócio a fim de lhe de resgatar a utilidade e a justiça, dizendo que: Domínios importantes da vida jurídica e econômica devem, conseqüentemente, ser regulados através de meios de direito privado. [...] Decisivo é, portanto, na minha opinião, um ponto de vista orientado em função da ética do direito, ao passo que o ponto de vista utilitarista tem, tão só, um significado suplementar e apenas justifica uma intervenção corretora quando se assiste a desenvolvimentos patentemente errôneos. [...] Não deverá, por conseguinte, exigir-se que os resultados ‘justos’ estejam assegurados, mas contentar-se com as conseqüências de que as injustiças graves sejam evitadas 20. A ingerência estatal permite a utilidade, a justiça e a eticidade no tráfego de riquezas, bens e serviços, fazendo com que o contrato cumpra a sua função social permitindo trocas econômicas justas e adequadas às necessidades das partes envolvidas. Cabe transcrever o pensamento de Luis Renato Ferreira da Silva que descreve de modo exímio o caráter econômico e social do contrato: Hoje em dia é inegável que a economia se estrutura, fundamentalmente, a partir de relações contratuais. Relações que traduzem uma troca de bens e valores a permitir assim a circulação de riquezas. Os contratos são os instrumentos jurídicos de circulação e ativação da economia moderna. Sua importância e precedência com relação a outros institutos que, em momentos outros da evolução humana tiveram destaque (como a propriedade imobiliária para o Código Civil de 1916, por exemplo), fez com que se percebesse o caráter transcendental dessas relações no que diz respeito ao interesse dos contratantes. Quero dizer que se passou a considerar que o contrato atende ao interesse dos contratantes, mas extrapola a estes interesses na medida em que atinge toda a cadeia econômica em que se insere. Neste sentido, o contrato, típico ato de autonomia privada, passa a ter uma faceta pública, no mínimo em relação àqueles que possam estar indiretamente vinculados ao adimplemento ou á quebra de um contrato. Admitindo-se o encadeamento das relações econômicas como antes cogitado, certo que os contratos passam a entretecer uma rede na qual cada um nó, tende a esgarçar toda a rede 21. Há negócios jurídicos contratuais que atendem ao interesse puramente egoístico das partes nele envolvidas, mas sem refletir a utilidade social que hoje que se espera. O desprezo à sociabilidade os faz se tornar contrários ao direito positivo vigente. Mônica Bierwagen, a partir de um exemplo prático, elucida a função social dos contratos com a doutrina de que: Há contratos que, embora atendam aos interesses individuais dos contratantes, nem sempre se mostram compatíveis com o interesse social. É o caso, por exemplo, do terreno que é alugado por uma empresa para armazenamento de lixo tóxico sem tratamento, ou da distribuição de amostras grátis de bebida alcoólica em frente a uma unidade dos Alcoólatras Anônimos. Não há como negar que, nesses casos, há um interesse que decorre dos direitos sociais – de ter um meio 20 21 CANARIS, Porto, 1997, p. 51. FERREIRA DA SILVA, Porto Alegre, 2006, p. 136. ambiente limpo ou a recuperação do alcoólatra – que não pode ser desprezado em favor da liberdade contratual 22. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso IV, ao disciplinar os princípios fundamentais da República prevê o valor social da livre iniciativa. No mesmo passo, ao tratar da ordem econômica e financeira, a Constituição norteia a livre iniciativa a partir de sua visão social que passa a ser valor a perseguir no exercício da autonomia privada econômica. Assim o disposto no artigo 170 da Constituição da República em vigor: Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios. Antônio Junqueira de Azevedo, comentando o princípio da função social dos contratos, ensina-nos que: A idéia de função social do contrato está claramente determinada pela Constituição ao fixar como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte hoje do ordenamento positivo brasileiro – de resto, o art. 170, caput, da Constituição da República, de novo salienta o valor geral, para a ordem econômica, da livre iniciativa 23. (grifos do autor) A função social faz com que os efeitos do contrato ajustado transcendam seus contratantes, gerando conseqüências jurídicas, direitos e deveres, obrigações positivas e negativas, também para outros que não participaram diretamente do que foi clausulado no acordo de vontades manifestado. Não significa que o terceiro passe a ser parte do contrato, mas a ele serão opostos alguns efeitos positivos e negativos dos quais um deles é o dever de respeito às conseqüências jurídicas previstas pelas partes originárias. Cumpre-nos, neste momento, para melhor elucidação do pensamento posto, trazer à luz o artigo 421 do Código Civil de 2002, cujo teor dispõe que: Art. 421 - A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. 22 23 BIERWAGEN, São Paulo, 2003, p. 42, 43 e 47. Parecer Civil. RT-750: 1998. p.116. Assevere-se que o texto do artigo 421 do Código Civil compatibiliza dois princípios basilares do contrato contemporâneo, afirmando em primeiro lugar a liberdade de contratar, direito subjetivo que se expressa pela autonomia da vontade, e um segundo pilar que é a função social que se espera do sujeito, parte do contrato, quando exercita a sua prerrogativa da liberdade de contratar. O direito de liberdade não se mostra mais absoluto, mas traz deveres anexos, positivos e negativos, inerentes à função social que abrangem os contratantes e repercutem sobre terceiros, numa sociedade livre justa e solidária, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 3º, I, da Constituição Federal de 1988). Há que se ter em mira que a liberdade individual desprende-se do mero interesse do sujeito que declarou sua vontade para atingir o mercado, as relações negociais, a economia, enfim, toda a sociedade que está interligada por contratos que compõem elos da cadeia de riqueza. Assim, a liberdade individual, que é abonada pelo ordenamento jurídico, passa a ter esta garantia limitada ao exercício do direito conforme o que melhor atenda à sociedade. O valor socialmente relevante passa a ser o legitimador da autonomia da vontade individual. Neste momento o objetivo da solidariedade se projeta no plano contratual. Emile Durkhein nos explica de maneira lapidar a legitimação social que hodiernamente se exige no momento em que a autonomia da vontade individual é manifestada para a formação do contrato, in verbis: É verdade que as obrigações propriamente contratuais podem fazer-se e desfazerse unicamente com o acordo das vontades. Mas não se deve esquecer que se o contrato tem o poder de ligar, é a sociedade que lhe confere este poder (...) Portanto, todo o contrato pressupõe que por trás das partes que o estabelecem, há a sociedade pronta para intervir a fim de fazer respeitar os compromissos assumidos; por isso ela só presta essa força obrigatória aos contratos que, por si mesmos, têm um valor social, isto é, que são conforme as regras do direito.24 Pelo artigo 421 do Código Civil, verificamos que a liberdade é limitada pela função social (imposição de limite à autonomia da vontade – deveres negativos) e deve, também, como um segundo requisito ser exercida em razão da função social, sendo que o termo em razão caracteriza um escopo a ser seguido no exercício desta liberdade imputando deveres positivos aos sujeitos obrigados no ajuste. 24 DURKHEIN, São Paulo, 1999. p. 89. Ao vislumbramos a primeira vertente que indica o exercício do direito de contratar limitado pela função social, verificamos a aplicação da dogmática traçada por Otto Von Gierke que pugnava pela funcionalização do direito, impondo limites ao exercício dos direitos subjetivos. Ou seja, como dito alhures, se há direito, por conseqüência há deveres que limitam o seu exercício. Os direitos subjetivos não poderiam ser vistos de maneira ilimitada e sem a presença de deveres correlatos de ordem externa ou interna. Por esta vertente, a função social cumpre o papel de limitar a vontade produzida em um contrato. Cabe neste passo trazer à lume a doutrina de Judith Martins Costa, in verbis: O início do séc. XX veio traçar uma nova trilha, agora em direção à funcionalização do direito subjetivo. São formuladas teorias negativas ao conceito de direito subjetivo, substituindo-o por outras figuras. Entre as mais relevantes estão a de Léon Duguit, que reconstrói a idéia de direito subjetivo afirmando existirem posições vantajosas para certas pessoas porque garantidas pelo poder estatal, na medida em que desempenham funções dignas dessa garantia; e de Otto Von Gierke, sustentando a existência de ‘limites imanentes’ aos direitos decorrentes da impossibilidade da existência de direitos sem deveres. Desde então, toda a teoria do direito subjetivo está polarizada entre duas teses: a dos limites internos ao direito, e a dos limites externos. Ambas podem ser assim sintetizadas: 1. Teoria interna: Os direitos e respectivos limites são imanentes a qualquer posição jurídica; o conteúdo definitivo de um direito é precisamente, o conteúdo que resulta dessa compreensão do direito ‘nascido’ com limites; logo o âmbito de proteção de um direito é o âmbito de garantia efetiva desse direito. 2. Teoria externa: os direitos e as restrições são dimensões separadas; as restrições são sempre ‘desvantagens’ impostas externamente aos direitos; o âmbito de proteção de um direito é mais extenso do que a garantia efetiva, porque aos direitos sem restrições são opostos limites que diminuem o âmbito inicial de proteção 25. O segundo pilar da função social nos indica o dever de exercício do direito em razão da função social. Assim, a sociabilidade atribuída ao negócio jurídico denominado contrato, teria por escopo ser a pedra angular do modo de exercício do direito subjetivo liberdade contratual. Modo de exercício que imporia efeitos para as partes presentes na relação contratual (eficácia intersubjetiva), e também para terceiros determinados ou indeterminados (eficácia trans-subjetiva) que não participam diretamente do vínculo de atributividade que deu origem à relação jurídica acordada, mas que, ainda assim, sofreriam suas conseqüências. Mais uma vez, nas palavras de Judith Martins-Costa: 25 Notas sobre o princípio da função social do contrato – extraído do <http://www.realeadvogados.com.br/pdf/judith. > PDF acessado em 04.09.08 às 16:07 horas. sítio A função social não opera apenas como um limite externo é também um elemento integrativo do campo de função da autonomia privada no domínio da liberdade contratual26. A eficácia intersubjetiva do contrato teria no princípio da função social o substrato para a imposição aos contratantes de deveres positivos, tais como o exercício do direito segundo valores coletivos em detrimento de axiomas individuais; a visão de contratos essenciais por força da indispensabilidade do bem da vida que lhe serve de objeto; e outros chamados pela doutrina de contratos comunitários por afetar à toda a coletividade. Por sua vez a eficácia trans-subjetiva é a que mais claramente nos mostra o contrato sendo realizado em razão da função social, pois o contrato passa a interessar não apenas às partes nele envolvidas, mas também terceiros que, segundo a visão individualista jamais seriam atingidos por direitos ou deveres advindos de uma relação estranha à sua vontade declarada. O contrato deixa de ser impermeável à coletividade que o circunda. As condicionantes sociais passam a afetar o contrato gerando efeitos perante outras pessoas determinadas ou indeterminadas que não são sujeitos da relação jurídica originária. Com a função social, o princípio da relatividade dos contratos passa a sofrer ranhuras em sua construção dogmática para aceitar efeitos jurídicos não só perante as partes, mas, sobretudo, perante terceiros estranhos à relação contratual base. Várias são as proposições jurisprudenciais e doutrinárias que evidenciam a quebra do princípio da relatividade, dentre as quais podemos citar a tutela externa do crédito, onde há a proteção ao interesse do contratante de não se ver surpreendido pela investida de terceiros sobre a relação obrigacional outrora formulada com o único fito de destruí-la ou impedir que a mesma produza os efeitos e conseqüências desejadas pelas partes contratuais originárias, impondo ao terceiro verdadeira oponibilidade dos efeitos do contrato firmado entre outros sujeitos, sob pena de responsabilização civil deste terceiro. Outro exemplo é o caso da responsabilidade das seguradoras, onde o Superior Tribunal de Justiça, firmou jurisprudência que reconhece a legitimidade para a vítima de um dano cobrar a indenização diretamente do agente segurador. Assim a jurisprudência: 26 Notas sobre o princípio da função social do contrato – extraído do <http://www.realeadvogados.com.br/pdf/judith.> PDF acessado em 04.09.08 às 16:07 horas. sítio Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Atropelamento. Seguro. Ação direta contra seguradora. A ação do lesado pode ser intentada diretamente contra a seguradora que contratou com o proprietário do veículo causador do dano. Recurso conhecido e provido.27 Mais uma hipótese, já sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça, assegura a ineficácia, perante o adquirente de imóveis, da hipoteca firmada entre o agente financeiro da habitação e o incorporador sobre as unidades imobiliárias construídas, após a sua devida quitação pelo comprador. Assim a súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel. Em todos estes casos o princípio da relatividade dos contratos é minorado em prol da função social descrita no ordenamento jurídico, a fim de garantir que o contrato cumpra seu papel de meio condutor da circulação de riquezas a partir de trocas justas, úteis e equânimes, permitindo o devido adimplemento das avenças contratadas. Noutro passo, a função social dilui o princípio do pacta sunt servanda, antes intangível nos tempos do liberalismo clássico. Vários são os mecanismos de revisão do contrato a fim de, em último plano, assegurar a sua manutenção comutativa e, por conseguinte, seu adimplemento, não interferindo na corrente econômica da qual o contrato é um elo. A teoria da lesão, positivada no artigo 157 do Código Civil de 2002 e a teoria da onerosidade excessiva, insculpida na norma do artigo 478 a 480, também do estatuto civil brasileiro, dão a tônica de como a função social do contrato deve ser garantida, impedindo o inadimplemento que é causador de uma série de males sociais. Assim, o disposto no artigo 421 do Código Civil como cláusula geral da dogmática contratual, expressa o valor da solidariedade social que deve imperar nas relações jurídicas, que no caso dos contratos, deve primar por uma relação de coordenação das vontades apostas no ajustes e de colaboração entre as partes, e o elemento social, a fim de que a obrigação ajustada seja cumprida de modo mais útil, 27 Recurso especial n. 294057/DF, proveniente da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sendo Relator o Min. Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 28.06.2001, publicado no Diário Oficial da União de 12.11.2001, p. 155. justo e adequado ao interesse dos indivíduos contratantes e dos terceiros que sentem a eficácia do contrato. Se a vontade manifestada, outrora, representava apenas res inter alios acta, na contemporaneidade, em face da funcionalização social do direito de contratar a vontade transcende a manifestação de seus agentes para atingir outros que podem ser afetados pelo ajuste, trazendo-lhes, como consectário, deveres jurídicos e direitos subjetivos em razão da relação travada mesmo sem o seu consentimento expresso e manifesto. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Constitui, portanto, a função social dos contratos uma das significativas inovações trazidas pelo novo Código Civil de 2002, cláusula geral de relevo que tem despertado a atenção dos estudiosos que buscam precisar de modo devido e através do método da concreção o seu sentido e alcance. Assim, o tema exsurge como algo natural neste momento, vez que estamos diante de uma cláusula geral deveras expressiva e que rompe o paradigma da relatividade dos contratos e da obrigatoriedade das avenças em nome de axiomas maiores. A função social é, hoje, princípio vetor de toda a dogmática afeta aos pactos civis e empresariais. A sociedade não pode mais ignorar a existência do contrato formado entre partes especificadas, como se este ato jurídico não lhe dissesse respeito, ou lhe fosse insignificante. De outra banda, o sujeito envolvido no ajuste não pode desprezar a existência de deveres correlatos ao direito subjetivo que lhe é outorgado (noção de poder-dever). A partir da contemporaneidade e da busca da preservação da confiança, todos devem se comportar de modo a evitar que o contrato se frustre, pois o processo obrigacional que visa coordenar atos a fim de se atingir o adimplemento, exige das partes envolvidas, e também de toda a coletividade, a busca do fim último das obrigações que é o cumprimento da avença não apenas segundo o que foi estipulado, mas, sobretudo, de modo útil, justo e equânime. Limita-se a liberdade em prol do fim social dos contratos, que é ser adimplido pelos estipulantes de maneira mais eficaz para o credor, menos gravosa para o devedor e que atenda à sociedade. Uma sociedade justa, livre e solidária, objetivo da nação brasileira, deve acolher a função social dos contratos em seu ordenamento jurídico a fim de possibilitar a comutativa circulação das riquezas. ABSTRACT The current paper intends to carry out ananalysis as regards the principle of the social function of contracts as perthe general clause in article 421 of the 2002 Civil Code by focusing on itsrepercussions vis-à-vis obligational law. We seek to verify the new paradigmsstemming from sociality in human contractual interactions before the partiesand third parties involved that are affected either directly or indirectly bythe legal relationship established, as well as the consequences brought aboutby the new paradigmatic model through general clauses and the application ofthe norm through concretion when set against the former subsuntive andindividualistic normative profile. Keywords: Institute, Function, Social, Contracts. REFERÊNCIAS AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. AZEVEDO, Antônio Junqueira. Parecer Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. v. 750. BIERWAGEN, Mônica. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. BROSSEAU, Eric. 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