DOUTRINA
Foto: Amaerj
Suplemento Especial da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro • Edição No 24 • Junho de 2011
Sucessão Hereditária:
Quando o cônjuge concorre com os descendentes
José Roberto Portugal Compasso
Juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ)
e titular da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões
Introdução
O
processo de divórcio foi difícil e, ao final, a ela
coube a filha e o apartamento na Zona Sul do
Rio de Janeiro. O recomeço foi igualmente
difícil. Não estava preparada para manter-se a
si própria e a filha. A pensão destinada a esta última era
insuficiente e sequer havia regularidade no pagamento.
Também era a primeira vez que se via sozinha no mundo.
Antes fora sempre conduzida pelos pais; depois, pelo
menos, a figura do marido, que fornecia algum tipo de
segurança. Agora, ninguém mais e, ainda por sua conta, a
filha pré-adolescente para cuidar.
Márcia lançou-se ao trabalho, mas o equilíbrio emocional
e a prosperidade só vieram tempos depois, quando
conheceu Paulo, que tinha ideologia. Desta vez o casamento
tornou-lhe a vida suportável, por vezes agradável.
O marido cercava-lhe de cuidados. O tempo passava e
não esmorecia a natureza companheira e atenciosa de
Paulo. Foi através dele que Márcia encontrou o seu sereno
modo de existir.
A peculiaridade de Paulo era a ideologia, que envolvia
certa aversão às leis do mercado. Sua visão de mundo era
complexa. Na prática, traduzia-se no fato de que não era
dado ao trabalho. Mas a verdade deve ser dita: naqueles
anos todos, ao menos para o cigarro e para o uísque, seus
insumos vitais, nunca dependeu de Márcia.
O encontro que ninguém quer, tão inesperado quanto
inevitável, veio súbito em um domingo. Logo após as
primeiras palpitações, Márcia compreendeu o que se
passava. Pensou um pouco na vida vivida, na filha e se foi.
Na segunda-feira tudo já estava resolvido, registrado e
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Junho de 2011 • Amaerj Doutrina
consumado. Márcia era só memória, um nome na certidão.
Dias depois, foi a doutora Sylvia, advogada e amiga da
família, quem convocou a filha de Márcia para uma
conversa. Havia notícias para dar à jovem, que durante a
vida, pelo menos até aquele momento, nem por um
segundo sequer havia se preocupado com a própria
subsistência. A primeira notícia era que a pensão paterna
já não estava mais sendo paga, desde que ocorrera sua
formatura, poucos meses antes, no curso de jornalismo.
Na verdade, o pai não estava mais obrigado a qualquer
tipo de contribuição.
A notícia boa era que o apartamento da família
valorizara-se muito nos últimos anos e era estimado em
um milhão de reais. Por outro lado, por força de seu
trabalho intenso e de sua preocupação com o futuro da
filha, Márcia havia juntado uma pequena fortuna,
aproximadamente seiscentos mil reais, tudo em aplicações
financeiras. Emocionada, a filha imaginou que aquele
valor de fato ajudaria, sobretudo até que pudesse concluir
o curso de pós-graduação e encontrar trabalho.
Havia, contudo, mais alguns detalhes a esclarecer. O
dinheiro não seria todo entregue a ela. É que sua mãe
havia casado pelo regime da comunhão de bens, explicou
a advogada, e neste caso, os bens adquiridos são
considerados frutos de um esforço comum. A advogada
explicou que metade do dinheiro acumulado seria
entregue a Paulo. Tomada de indignação, a moça
ponderou que o único esforço de Paulo era as apostas e
que o dinheiro perdido era sempre o da mãe.
Não adiantou. A advogada não se comoveu. Metade
era do Paulo. E tinha mais: além da meação, havia também
o direito sucessório. Além de meeiro, Paulo era também
herdeiro, o que significava dizer que dos trezentos mil
reais restantes, Paulo ainda ficaria com cento e cinqüenta
mil reais.
A filha de Márcia entendeu, mas pensou que não
entendeu: falando assim, parece que dos seiscentos mil,
Paulo vai ficar com quatrocentos e cinqüenta mil e eu com
cento e cinqüenta mil? A advogada confirmou, era aquilo
mesmo. A moça perdeu a voz.
Passado o susto, sobreveio algum tipo de resignação.
Ao menos ficaria livre do escroque. Ele que levasse o
dinheiro e desaparecesse para sempre. Para ela ainda
restariam cento e cinqüenta mil reais. Sobreviveria.
Havia, porém, outras despesas inevitáveis, que seriam
deduzidas dos cento e cinqüenta mil reais da jovem, disse
a advogada. Só do imposto de transmissão incidente
sobre o apartamento, do qual ela passava a ser única
proprietária, teria de pagar quarenta mil reais. Os
honorários seriam módicos, não mais do que cinco por
cento sobre o valor do monte. O resto era coisa pouca,
despesas de transporte, custas etc.
A filha chegou logo à conclusão óbvia: os seiscentos
mil reais escorreram-lhes todos por entre os dedos. Mas a
mãe era trabalhadora e recolhia todos os impostos. Ela
ficaria, então, com a pensão paga pelo governo e se
arranjaria. Mais uma vez a advogada disse não. Ela já era
maior de idade e não precisava da pensão, que ficaria para
Paulo. Mas ele também é maior de idade, argumentou a
moça, novamente tomada pela indignação.
A advogada explicou a finalidade da pensão
previdenciária. Era para amparar o cônjuge sobrevivente
na velhice. Não adiantou a moça dizer que Paulo havia
passado pouco dos 40 anos e tinha muito boa saúde. Mas
aquilo era irrelevante e não mudava a natureza da pensão
previdenciária, pontificou a doutora Sylvia.
Sem acreditar no que ouvia, a moça pensou em retaliar
com o instrumento que estava a seu alcance e gritou: dez
dias, dez dias e nem mais um minuto. Ele tem dez dias
para deixar o MEEEEEEEEEEEU APARTAMENTO.
A advogada respondeu rápido: “direito real de habitação” e disse que o viúvo tinha o direito de continuar morando no imóvel. “Mas a senhora mesmo acabou de dizer
que eu sou a única proprietária do apartamento. Isso significa que o apartamento é meu, não é?” “Sim, o apartamento é seu”, respondeu a advogada. “Então agora entendi. Está resolvido. Ele sai e sem demora”, disse a jovem.
“Você não entendeu”, disse a advogada. “Mesmo
sendo seu, você não pode tirar ele de lá. Isto se chama
direito real sobre a coisa alheia, entende?” Por um instante
a moça pensou que estivesse dormindo. Aquilo já ocorrera
antes, coisas impossíveis acontecendo sucessivamente e,
de repente, acordava. Tentou acordar, não conseguiu.
Desta vez não era sonho.
Quando conheceu Paulo, houve um encantamento
imediato, depois o desprezo, o confronto velado, a guerra
aberta. Na verdade, ela nunca entendeu porque a mãe
aceitava manter aquele casamento, a seu ver tão frustrante
quanto o primeiro.
Agora a ideia de ser obrigada a continuar convivendo
com Paulo, mesmo na falta da mãe, lhe causava repugnância. Alguma solução devia haver. Ponderou que a convivência seria impossível, que não podiam morar na mesma casa.
A advogada a tranqüilizou, não haveria convivência.
Direito real de habitação era como acolher uma pessoa
necessitada em casa. A única diferença é que o
“necessitado” assumia o comando, ou seja, decidia quem
podia e quem não podia permanecer na casa, explicou a
doutora Sylvia. Naquele caso tudo já estava decidido por
Paulo: ele ficaria e a moça sairia.
A jovem reuniu as últimas forças para organizar o
pensamento. O apartamento havia sido de seu pai; depois,
com o acordo de divórcio, ficara para sua mãe, exatamente
porque um dia seria dela. Nasceu naquele apartamento e
ali passou toda a sua vida. Agora estava sendo despejada
da própria casa, da história de sua família, de seu mundo.
Não havia qualquer sentido naquilo.
Desta vez não houve indignação. A filha de Márcia
levantou-se devagar, percorreu a interlocutora com o
olhar e disse pausadamente: doutora Sylvia, a senhora
bebeu? E sem esperar resposta foi embora.
Vínculo matrimonial e vínculo de sangue
A Constituição do Império não tratou do casamento,
senão o da Princesa Herdeira presuntiva1, que só
poderia ocorrer a gosto do Imperador, ou, não havendo
um Imperador, com a autorização da Assembleia Geral.
De qualquer forma, o marido não teria parte no governo
e somente seria tratado por Imperador depois de
cumprida sua obrigação, ou seja, se a Imperatriz viesse
a ter filho, ou filha. É de se notar, ainda, que só os
descendentes legítimos do Imperador poderiam sucedêlo no Trono2, o que significa dizer que a existência ou
não da formalidade do casamento entre os pais
determinava as qualidades dos descendentes, mesmo
entre os de sangue azul.
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A primeira Constituição da República cuidou apenas de
ressaltar que somente seria reconhecido o casamento civil3.
Perante a sociedade daquela época não parecia necessário
reafirmar o óbvio: o casamento seria indissolúvel e
exclusivamente através dele haveria a formação da família,
aquela que pudesse merecer proteção jurídica específica.
Todas as Constituições subsequentes reafirmaram que
a família seria constituída pelo casamento, sendo este
indissolúvel4. Além de ligar vitaliciamente os cônjuges, o
vínculo matrimonial se prestava a impedir que os cônjuges
reconhecessem ou fossem obrigados a reconhecer filhos
havidos fora do regulamento.
Este panorama – casamento indissolúvel e fonte única
da família – sofreu o primeiro abalo em 28.6.1977, com a
Emenda Constitucional nº 9, que preparou o terreno para a
Lei do Divórcio. O art. 175, § 1º, da Constituição de 1969
passou a ter a seguinte redação: “O casamento somente
poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde
que haja prévia separação judicial por mais de três anos”.
Antes, porém, algumas leis ordinárias já haviam
minado o sistema, como a que permitiu o reconhecimento
de filhos extraconjugais, desde que houvesse o desquite
(Decreto-lei nº 4.737/42).
A Constituição de 1988 já encontrou o casamento
debilitado e inverteu a lógica empregada até então. A
família (independentemente do casamento) passava a ser
a base da sociedade. O casamento seria apenas uma das
modalidades de formação da família. Ainda assim havia
restrições ao desenlace e o divórcio só podia ocorrer “após
prévia separação judicial por mais de um ano nos casos
expressos em lei, ou comprovada separação de fato por
mais de dois anos” (redação original do art. 226, § 6ª).
A pá de cal veio pouco mais de 33 anos depois da
Emenda Constitucional nº 9, de 1977. Em 13.7.2010 foi
promulgada a Emenda Constitucional nº 66 e, desde
então, o § 6º, art. 226, da Constituição da República,
passou a ter a seguinte redação: “O casamento civil pode
ser dissolvido pelo divórcio”. O casamento, portanto,
rendeu-se incondicionalmente ao divórcio. Não há mais
qualquer anteparo entre o divórcio e a vontade unilateral
de qualquer dos cônjuges.
O comodato por tempo determinado é hoje, de certa
forma, mais protegido que o casamento. No mínimo, o
comodante está obrigado a aguardar o decurso do tempo
previsto para só depois extinguir o contrato. O casamento
admite denúncia vazia, a qualquer tempo e sem notificação
premonitória.
O vínculo sanguíneo da filiação, por sua vez, fez o
caminho inverso, ganhou força e não se encontra mais
sujeito a qualquer tipo de condicionante jurídica. As
redações originais do art. 358, do Código Civil de 1916
(“Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser
reconhecidos”) e do § 1589, al. 2, do Código Civil Alemão
(“um filho ilegítimo e o seu pai não são parentes”) hoje
seriam manifestamente inconstitucionais, incompatíveis
com a dignidade da pessoa humana.
A filiação não é mais um produto da ordem jurídica,
nasce à sua revelia e nunca pode ser conformada por ela.
Abstratamente considerados, não há mais termo de
comparação entre o vínculo matrimonial e o vínculo
sanguíneo da filiação. O primeiro é transitório, sujeito aos
limites estabelecidos pelo direito e fungível; o segundo,
perene, intocável e único. Há, nitidamente, precedência
3
do vínculo sanguíneo sobre o vínculo matrimonial, que
deixa de ser a base da família, passando a ser apenas mais
um de seus elementos. A família, por sua vez, alcança
especial proteção não em razão de seus vínculos formais,
mas por ser instrumento de promoção e realização pessoal
de seus integrantes, particularmente os filhos.
A razão de ser da família é, pois, a promoção de seus
integrantes, o reconhecimento de suas individualidades, o
que reclama a divisão equilibrada de seus bens materiais e
imateriais. A função social da propriedade, no âmbito
específico da família, significa a manutenção e promoção
prioritária da prole.
Veja-se a lição de Gustavo Tepedino:
Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230 da
Constituição Federal, que o centro da tutela
constitucional se desloca do casamento para as
relações familiares dele (mas não unicamente dele)
decorrentes; e que a milenar proteção da família
como instituição, unidade de produção e
reprodução de valores culturais, éticos, religiosos e
econômicos, dá lugar à tutela essencialmente
funcionalizada à dignidade de seus membros, em
particular no que concerne ao desenvolvimento da
personalidade dos filhos.
(...)
Assim sendo, a família, embora tenha ampliado,
com a Carta de 1988, o seu prestígio constitucional,
deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz
de merecer tutela jurídica pelo simples fato de
existir, passando a ser valorada de maneira
instrumental, tutelada na medida em que – e
somente na exata medida em que – se constitua
em um núcleo intermediário de desenvolvimento
da personalidade dos filhos e de promoção da
dignidade dos seus integrantes.
Dito diversamente, altera-se o conceito de unidade
familiar, antes delineado como aglutinação formal
de pais e filhos legítimos baseado no casamento,
para um conceito flexível e instrumental, que tem
em mira o liame substancial de pelo menos um dos
genitores com seus filhos – tendo por origem não
apenas o casamento – e inteiramente voltado para
a realização espiritual e o desenvolvimento da
personalidade de seus membros.” (Tepedino,
Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999. p. 349/350)
A prioridade dos descendentes tem razões inafastáveis.
Nenhum dos nossos antepassados diretos morreu
impúbere5. Todos eles, rigorosamente, alcançaram a
maturidade e procriaram. Somos todos compelidos, por
forças naturais, a não quebrar esta corrente imemorial. A
própria ideia de sucessão hereditária tem a ver com a
manutenção da linhagem, com a transferência de
conhecimento e sobras materiais para as gerações futuras.
Garantida a sobrevivência e a procriação, os esforços
excedentes são, naturalmente, destinados à promoção
dos filhos, dos filhos dos filhos e assim por diante.
A transferência forçada de recursos em favor da
linhagem alheia viola, de alguma forma, a pulsão que
cada um tem de perpetuar-se a si próprio, ainda que
através de sua prole. Foi contraditoriamente e exatamente
ao fim do embate constitucional que resultou na
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Junho de 2011 • Amaerj Doutrina
subjugação das relações formais pelos vínculos naturais,
que o Código Civil de 2002 trouxe o direito sucessório do
cônjuge em detrimento dos descendentes.
O Inciso I, do art. 1891, do Código Civil
Apesar do evidente declínio do casamento, o Código
Civil de 2002 introduziu entre nós a possibilidade de o
cônjuge concorrer na herança com os descendentes do
morto. Para evitar a “hipertrofia dos direitos sucessórios
reconhecidos à viúva ou ao viúvo” 6, o legislador
estabeleceu a interferência do regime de bens do
casamento sobre o direito à herança do cônjuge,
limitador que não existe no direito português7, que
também admite, desde 1977, a concorrência de cônjuge
sobrevivente e descendentes.
Na parte que interessa a este trabalho, o legislador
assim regulou o tema:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na
seguinte ordem:
I – aos descendentes, em concorrência com o
cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o
falecido no regime da comunhão universal, ou no
da separação obrigatória de bens (art. 1.640,
parágrafo único); ou se, no regime da comunhão
parcial, o autor da herança não houver deixado
bens particulares;
A interpretação deste dispositivo sofre a influência de
duas causas distintas. A primeira é a redação pouco
elucidativa. A segunda, a resistência generalizada de
conferir direitos que possam parecer exagerados ao
cônjuge sobrevivente, em detrimento dos descendentes. E
o ponto essencial é realmente este: o agraciamento do
cônjuge importa em um imediato e proporcional
decréscimo do quinhão dos descendentes.
As diversas correntes interpretativas do inciso I, art. 1.829,
do Código Civil são frutos deste contexto beligerante.
Embora tenha tratado do julgamento de um caso que
envolvia o direito hereditário do cônjuge casado pelo
regime da separação de bens, o didático e bem elaborado
voto da Ministra Nancy Andrighi, que foi relatora do REsp
992749/MS8, cuidou de tratar dos demais regimes e arrolar
os diversos entendimentos doutrinários sobre o tema.
A primeira corrente, entre aquelas descritas no julgado,
é a homologada na III Jornada de Direito Civil organizada
pelo Conselho da Justiça Federal, cujo conteúdo é expresso
no Enunciado nº 270:
O art. 1.829, inciso I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime
da separação convencional de bens, ou, se casados
nos regimes da comunhão parcial ou participação
final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a
tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser
partilhados exclusivamente entre os herdeiros.
Esta interpretação guarda coerência com o texto legal,
que é explícito quanto aos dois extremos da sociedade
conjugal teoricamente considerada, ou seja, de um lado,
no regime da comunhão universal, não há direito
sucessório do cônjuge. Na outra ponta, na separação
convencional de bens, há direito sucessório do cônjuge.
Infere-se daí, a conclusão que é a mesma do enunciado
transcrito: onde há comunicação de bens, não há sucessão
do cônjuge; onde não há comunicação, a sucessão
hereditária do cônjuge é, pelo menos, possível.
Outro mérito desta corrente vem a ser a ideia de cindir
a herança em bens particulares e bens comuns e admitir
que os direitos sucessórios do cônjuge possam ser limitados
a somente um destes grupos de bens. Não vai nisto qualquer
violação ao princípio da indivisibilidade da herança, que é
concebido para outros fins, como revela o próprio teor do
parágrafo único, do art. 1.791, do Código Civil.
O problema desta interpretação decorre, como visto
antes, da fluidez do casamento como é hoje concebido.
Há cônjuges e cônjuges. Há os que participam em grande
parte do enredo da vida do outro, há os que ingressam do
meio para o fim. Há, ainda, os que mal têm parte no
epílogo. Antes o viúvo ou a viúva era, quase sempre, a
mãe ou o pai dos filhos do falecido; esta coincidência está
cada vez mais rara, de modo que o direito sucessório do
cônjuge importa em subtração de bens que, antes, eram
destinados à linhagem do morto.
A resistência está em aceitar que o bem trazido do
leito anterior e mantido particular por força do regime
escolhido pelos nubentes, possa, por força da morte, vir a
integrar o patrimônio do novo cônjuge, justamente em
prejuízo dos descendentes do autor da herança,
especialmente se forem descendentes deste mesmo leito
anterior. São perplexidades como esta que geram outras
interpretações do inciso I, do art. 1.829.
A segunda e majoritária corrente doutrinária mantém
o mesmo elemento diacrítico da anterior, ou seja, no
regime da comunhão parcial de bens, haverá ou não o
direito sucessório do cônjuge, conforme o autor de
herança tenha ou não deixado pelo menos um bem
particular. Só que, neste caso, havendo algum bem
particular, o quinhão do sobrevivente será apurado sobre
todo o monte, alcançando bens particulares e bens
comuns. Não havendo, eventualmente, bem particular, o
sobrevivente nada recebe a título de herança.
A terceira corrente, defendida por Maria Berenice Dias,
inverte a anterior e exclui os direitos sucessórios do
sobrevivente no caso de o morto ter deixado bens
particulares. Só haveria a sucessão quando no monte
somente houvesse bens comuns.
Estas duas últimas correntes, muito embora contrárias,
têm um fundamento comum, a observância irrestrita ao
chamado princípio da indivisibilidade da herança (não a
secciona entre bens particulares e comuns) e leva a uma
situação de “tudo ou nada”. Ou o cônjuge preenche o
requisito (para uns a existência de bem particular, para
outros, a inexistência) e tem o quinhão apurado sobre
todo o monte, ou não é herdeiro.
Note-se que há aqui espaço entendimento diverso dos
anteriores, o de excluir o direito sucessório do cônjuge
quando houver pelo menos um bem comum. Ocorre
que a existência ou não de bens particulares, por si só,
sem outros critérios, é meramente acidental. Pessoas
casadas pelo regime da comunhão parcial podem, ao
longo do tempo, constituir elevado patrimônio comum,
tudo independentemente do fato de um deles ter
recebido, por herança, algum bem módico. Este último
episódio, por vezes insignificante, é que iria, ao final,
condicionar a existência ou não do direito sucessório.
Amaerj Doutrina • Junho de 2011
Esses critérios, que admitem como requisito do próprio direito sucessório do cônjuge a simples inexistência
ou existência de bens de determinada natureza (comuns ou particulares), guardam tanta lógica quanto o
sistema do “par ou ímpar”, ou seja, nos óbitos ocorridos nos meses pares, preservar-se-ia o direito sucessório do cônjuge; nos meses ímpares, tal direito seria excluído.Além de seu caráter puramente arbitrário, as
segunda e terceira correntes, na medida em que ora
admitem que o quinhão do cônjuge recaia sobre os
bens particulares, ora sobre os bens comuns, ora sobre
ambos os grupos, também merecem as mesmas criticas
à primeira corrente. Ora o quinhão do cônjuge vai alcançar bens particulares que eventualmente nada tenham a ver com sua história pessoal, ora seu quinhão
vai ser exacerbado desarrazoadamente em detrimento
do descendente, eis que se tratando de bem comum,
soma-se à meação o quinhão hereditário.
A quarta corrente é exatamente aquela introduzida e
esposada no já notório voto proferido no REsp 992.749/
MS, da Ministra Nancy Andrigui. O entendimento adotado
teve por fundamento a preservação da livre manifestação
da vontade, por meio da autonomia da vontade e da
autonomia privada, estas colocadas a salvo da intervenção
estatal pelo escudo do princípio da dignidade da pessoa
humana. Apesar de o caso julgado decorrer de um
casamento celebrado pelo regime da separação
convencional, a eminente ministra, como já dito, tratou
também da controvertida solução sucessória a ser aplicada
em casos de comunhão parcial.
Entre outros pontos relevantes, o voto transcorre assim:
Se em vida os cônjuges assumiram, por vontade
própria, o regime da comunhão parcial de bens, na
morte de um deles, deve essa vontade permanecer,
sob pena de ocorrer, por ocasião do óbito, o
retorno ao antigo regime legal: o da comunhão
universal, em que todo o acervo patrimonial,
adquirido na constância ou anterior ao casamento,
é considerado para efeitos de meação.
A permanecer a interpretação conferida pela doutrina majoritária de que o cônjuge casado sob o regime
da comunhão parcial herda em concorrência com os
descendentes, inclusive no tocante aos bens particulares, teremos no Direito das Sucessões, na verdade,
a transmutação do regime escolhido em vida – comunhão parcial de bens – nos moldes do Direito Patrimonial de Família, para o da comunhão universal,
somente possível de ser celebrado por meio de pacto
antenupcial por escritura pública. Não se pode ter
após a morte o que não se queria em vida. A adoção
do entendimento de que o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com os descendentes do falecido a todo o
acervo hereditário, viola, além do mais, a essência do
próprio regime estipulado.
Por tudo isso, a melhor interpretação é aquela
que prima pela valorização da vontade das partes
na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges.
Desse modo, preserva-se o regime da comunhão
parcial de bens, de acordo com o postulado da
autodeterminação, ao contemplar o cônjuge so-
5
brevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja
ou não bens particulares, partilháveis, estes, unicamente entre os descendentes.
Este entendimento confirma a possibilidade da cisão
da herança em bens particulares e comuns. Veja-se que
aqui não se trata de considerar a existência de bens
comuns como um requisito do surgimento do direito à
herança, mas considerar sua existência em si mesma. Não
havendo bens comuns, o cônjuge deixa de herdar porque
não há a herança específica. Esta corrente não sujeita a
sucessão hereditária do cônjuge ao acaso. Onde houver
bem adquirido na constância do casamento, haverá
meação e quinhão hereditário; onde houver bem
particular, ou seja, aqueles adquiridos antes do casamento,
não haverá meação e não haverá herança.
Assim, nos casos do regime da comunhão parcial, que
é também o regime legal, o direito sucessório do cônjuge,
quando concorrer com descendentes, nunca vai recair
sobre bens particulares. Em contrapartida paga-se um
preço que ainda parece alto, eis que nos bens comuns o
cônjuge terá para si, além da meação, o seu quinhão
hereditário, ensejando um prejuízo evidente e indesejado
aos descendentes do morto.
A fictícia doutora Silvia, na história que serve de
introdução a este trabalho, sugeriu esta solução sucessória,
eis que se tratava ali de casamento pelo regime da
comunhão parcial, com bem particular e comum. A
dificuldade desta tese estaria na própria redação do art.
1.829, I, do Código Civil. Para sustentar a afirmação de
que a herança do cônjuge somente recai sobre bens
comuns é preciso agredir o dispositivo legal exatamente
naqueles pontos onde ele é inequívoco.
É que parece certo não haver direito sucessório do
cônjuge no regime da comunhão universal, o que sugere fortemente a idéia de que o quinhão do cônjuge, em
qualquer caso, não deve recair sobre bens comuns.
Também não há direito sucessório do cônjuge no regime da separação obrigatória, o que sugere fortemente
a idéia de que, a contrário senso, há direito sucessório
no regime da separação convencional e, neste caso,
está a falar-se exatamente de direito sucessório sobre
bens particulares.
Para repelir o direito sucessório do cônjuge casado
pelo regime da separação convencional de bens, foi necessário que a eminente Ministra Nancy Andrighi afirmasse em seu já mencionado voto que a separação
obrigatória de bens é o gênero e que as espécies são a
separação obrigatória legal (art. 1.641, do Código Civil)
e a separação obrigatória convencional. Ocorre que não
há qualquer obrigatoriedade na adoção do regime convencional da separação de bens, como o nome já diz.
Na origem, os nubentes podem, em regra, adotar qualquer outro regime e mesmo depois de confirmado o
pacto de separação, ainda assim não persiste qualquer
obrigatoriedade, eis que as doações recíprocas podem
ser realizadas a qualquer tempo9, assim como nada impede que os bens venham a ser adquiridos em condomínio comum pelos cônjuges. É possível, ainda, até que
haja a comunicação forçada dos bens, desde que o cônjuge preterido comprove o efetivo esforço comum na
sua aquisição10.
6
Junho de 2011 • Amaerj Doutrina
O regime convencional de bens não é obrigatório, seja
na sua formação, seja na sua execução. Na verdade, a
obrigatoriedade existe apenas no sentido inverso, ou seja,
adotado o regime comunhão dos aquestos é que um dos
cônjuges, sozinho, não poderá adquirir bens particulares. A
autodeterminação dos nubentes, enfim, deve ser
preservada, mas não parece ser justa causa para a dupla
incidência em prol do cônjuge (meação e quinhão
hereditário), com significativo prejuízo para os descendentes
do morto.
Focando o problema
O cônjuge sobrevivente quando concorre com
descendentes do morto não deve ser considerado sucessor
em bens particulares eis que, em regra, estes foram
adquiridos pelo autor da herança antes de qualquer
participação do consorte. Estes bens, em muitos casos, já
se encontram afetados à família originária formada por
laços de sangue (monoparental), que antecedeu o próprio
casamento e, como tal, gozando de especial proteção
constitucional.
Também não parece conveniente que o cônjuge
sobrevivente deva ser considerado herdeiro dos bens
comuns porquanto isto implicaria em excessiva proteção,
mediante a acumulação de quinhão hereditário e meação,
em detrimento da família de sangue, exatamente quando
toda a evolução constitucional aponta para precedência
desta última sobre a família civil. Por outro lado, o cônjuge
sobrevivente não pode deixar de ser reconhecido como
herdeiro, ainda que concorrendo com os descendentes,
exatamente porque tal direito foi expressamente
reconhecido pelo Código Civil de 2002.
Como não se mostra razoável que o cônjuge venha a
herdar bens particulares, assim como não é possível que
sua quota-parte seja apurada sobre bens que já se
comunicaram e, ainda, porque não pode deixar de ser
considerado herdeiro, o problema parece não ter solução
e, de fato, não tem. Este impasse decorre, de um lado, do
instrumento utilizado para solver a questão, ou seja, a lei
e sua óbvia incapacidade prever situações específicas e, de
outra parte, as infinitas configurações que o casamento
atual pode apresentar. Cabe, então, encontrar uma
solução que ao menos minimize as conseqüências
indesejadas da intervenção legal sobre uma realidade que,
de fato, não se pode antever.
Buscando uma solução
Reprisem-se os termos do art. 1.829, I, do Código Civil:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na
seguinte ordem:
I – aos descendentes, em concorrência com o
cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o
falecido no regime da comunhão universal, ou no
da separação obrigatória de bens (art. 1.640,
parágrafo único); ou se, no regime da comunhão
parcial, o autor da herança não houver deixado
bens particulares;
O raciocínio fica embotado quando se imagina que o
regime da comunhão parcial é apenas aquele que exclui
os bens que cada cônjuge possui ao casar e inclui os que
sobrevierem na constância do casamento.
Ocorre que à luz do art. 1.639, caput, do Código Civil
(“É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento
estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”), o
regime da comunhão parcial de bens poderá configurar
infinitas modalidades de comunhão. É comunhão parcial
tudo aquilo que admitir a comunicação de bens, mas
não de forma universal. Este ponto já foi abordado por
Carvalho Santos:
Donde o corolário de que a comunhão parcial pode
se apresentar sob variados aspectos, em modalidades por assim dizer infinitas. Enquanto que o regime da comunhão universal é um só, vários e inúmeros podem ser os regimes de comunhão parcial,
tudo dependendo da vontade das partes. (...) A comunhão parcial, ao contrário, por ser convencional,
resulta da vontade dos cônjuges: ela é por essência
livre, quanto à sua adoção, dependendo apenas da
livre vontade das partes. Ora, a vontade muda ou é
suscetível de mudar, em cada indivíduo; o regime
matrimonial que resulta daí pode, pois, apresentar
os mais variados aspectos. Não se poderá, portanto, dizer que há apenas um regime de comunhão
parcial, como se poderia depreender do texto do
Código. Ao contrário, cada contrato antenupcial
que altera o regime da comunhão universal, importa em uma comunhão convencional própria, especial, particular (Cfr. LABORARI, cit, verb. Communauté conjugale, n. 453). (Santos, J M Carvalho.
Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. V, 12ª ed,
Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1981, p. 87).
Dito isto, a parte final do inciso I, do art. 1.829, do Código Civil, passa a admitir outras possibilidades interpretativas
até aqui não mencionadas. Mostra-se falsa a idéia de que
havendo bens particulares no regime da comunhão parcial (a
parte final do inciso I, art. 1.829, do Código Civil os menciona), estes bens seriam necessariamente os adquiridos antes
da formação da sociedade conjugal.
É que regime da comunhão parcial previsto no inciso I,
do art. 1.829 não é, necessariamente, o regime tipificado
(artigos 1.658 a 1.666, do Código Civil), mas qualquer um
que admita ora a comunhão, ora a exclusão de bens. Será
o da comunhão parcial, qualquer regime em que não haja
a irrestrita comunicação de bens11.
Há hipóteses, portanto, de aquisição de bens,
onerosamente, na constância de sociedade conjugal
regida por pacto de comunhão parcial, sem que estes
bens venham a se comunicar.
O direito sucessório dos cônjuges casados pelo regime
da comunhão parcial tem a ver com estes bens. Tanto
quanto no regime da separação convencional, como no
da comunhão parcial, o quinhão do cônjuge, quando
concorre com descendentes, deve ser apurado com base
nos bens adquiridos onerosamente na constância do
casamento e que não se comunicaram.
É através do regime de bens escolhido, por força do
princípio da autonomia da vontade (REsp 992.749/MS)
que sobrevém o direito sucessório do cônjuge, no que diz
respeito aos bens futuros. Quanto aos bens presentes, os
que cada cônjuge já tem consigo por ocasião do
casamento, eles próprios cuidaram de antever o seu
destino. Ou se comunicam, conforme o que lhes aprouver,
ou ficam, para sempre, a salvo de qualquer contaminação
pela sociedade conjugal, excluindo até mesmo o direito
sucessório, no caso de haver descendentes.
Amaerj Doutrina • Junho de 2011
São os termos do casamento (regime de bens) que
batem a trilha do direito sucessório do cônjuge. Desde
a origem, pois, o rumo se acha traçado. Este direito tem
a ver exclusivamente com os bens futuros, não os
presentes. Quanto a estes, os próprios nubentes
decidem, livrando-os da alçada da sucessão legítima,
quando qualquer deles vier a disputar a herança com a
prole do outro.
Há aqui espaço para a autodeterminação, mas também
para alguma intervenção legal, esta imposta por três
condições supervenientes: a prosperidade da sociedade
conjugal (no sentido de aquisição de bens), sua extinção
por uma causa específica, o decesso de um de seus
integrantes e a privação do cônjuge sobrevivente, em
favor de quem os aquestos não se comunicaram.
Há autonomia e há intervenção, uma orientando os
limites da outra, mas ambas concorrendo para um
desenlace patrimonial harmonioso.
Bens que se comunicam em razão do casamento não
integram a base de cálculo para apuração da quota-parte
do cônjuge sobrevivente, quando este concorre com
descendentes do falecido. Nas mesmas condições, ou
seja, quando há o concurso com descendentes, a herança
do cônjuge deve ser calculada com base nos bens
particulares, mas somente aqueles adquiridos na
constância do casamento, tal como ocorre na sucessão do
companheiro (art. 1.790, caput), seja em razão da
autodeterminação dos próprios cônjuges, seja porque
assim se infere da Constituição da República, que confere
precedência à família de sangue, nas hipóteses em que
esta se vê confrontada pelo vínculo matrimonial.
Tudo, enfim, se traduz no seguinte: a) no regime da
comunhão universal não há direito sucessório do cônjuge sobrevivente, ao concorrer com descendentes, eis
que todos os bens se comunicaram ainda em vida; b) no
regime da separação obrigatória, também quando há
concurso com descendentes, não há direitos sucessórios do cônjuge, eis que os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento já se comunicaram,
por força a Súmula 377 do STF, ainda em vigor; c) no
regime da separação convencional há o direito sucessório do cônjuge sobrevivente, que, ao concorrer com
descendentes do morto, se limita aos bens adquiridos
onerosamente na constância do casamento, os quais
não se comunicaram; d) nos regimes de comunhão parcial há o direito sucessório do sobrevivente, ainda que
concorrendo com descendentes do morto, mas desde
que haja no monte sucessível bens particulares adquiridos onerosamente na vigência do casamento; e e) o
mesmo ocorre nos regimes de participação final nos
aquestos, quando há concorrência com descendentes,
o cônjuge só é herdeiro no caso de haver bens particulares adquiridos onerosamente na constância do casamento e excluídos da participação final.
Conclusão e efeitos colaterais da proposição
a) Concorrendo com descendentes, o direito sucessório do cônjuge pode ser resumido no que se
segue. No regime da comunhão universal, não há
direito sucessório do cônjuge. No regime da separação obrigatória, não há direito sucessório do
cônjuge. No regime da comunhão parcial há direito sucessório do cônjuge, mas seu quinhão so-
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mente recai sobre bens que tenham sido adquiridos onerosamente na constância do casamento e
que se tenham mantido, por qualquer razão, particulares. Quanto a todos os demais regimes,
também o direito sucessório do cônjuge somente
incidirá sobre bens particulares adquiridos onerosamente na constância do casamento.
b) Esta solução enseja a aproximação entre a sucessão
do cônjuge e a sucessão do companheiro, eis que
em ambos os casos o quinhão do sobrevivente
somente seria apurado entre os bens particulares,
desde que adquiridos onerosamente na vigência da
sociedade conjugal, tal como o que se infere do
caput do art. 1.790, que revela um princípio
decorrente do próprio sistema, incidindo sobre os
dois tipos de sucessão.
c) Permite permear a sucessão do companheiro com
as mesmas regras defendidas, ou seja, havendo
meação, não haverá herança atribuída ao
sobrevivente. A sucessão do companheiro também
fica limitada aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável e que, por força do regime
escolhido, não se tenham comunicado.
d) Preserva-se a historicidade e a tradição das
intervenções legais e jurisprudenciais nesta área,
entre elas a Súmula 377, do STF, sempre no sentido
de garantir em alguma medida, seja em propriedade,
seja em usufruto, as conseqüências dos aquestos
ao cônjuge sobrevivente, nos casos em que a
sociedade conjugal alcança, de certa forma, suas
finalidades iniciais, ou seja, quando perdura até a
morte de um dos cônjuges.
e) Respeita-se a autonomia da vontade dos cônjuges
enquanto deve ser respeitada. Escolhido o regime
de bens, cada cônjuge pode dispor livremente dos
bens particulares, havendo plena aplicação da
norma do art. 1.687, do Código Civil. A existência
de um potencial herdeiro necessário, seja cônjuge,
seja filho, não impede que o titular do bem o aliene.
O que seria restrição da autonomia da vontade
somente incide para depois da morte, por força do
princípio da dignidade humana, que impõe, em
algum grau, a proteção do cônjuge sobrevivente.
f) Retira o caráter aleatório da sucessão do cônjuge
ao conferir, em regra, caráter diferenciado a
situações diferenciadas. Em outras palavras:
casamentos mais longos tendem a formar maior
patrimônio; casamentos mais curtos implicam em
um menor número de aquisições em sua vigência.
É a interpretação que leva ao equilíbrio sucessório,
resguardando tanto os interesses do cônjuge
sobrevivente, quanto os dos descendentes do
falecido.
g) Reconhece a primazia dos descendentes sobre os
bens adquiridos antes do casamento, especialmente
nos casos em que o vínculo matrimonial se dá
posteriormente à formação da família monoparental.
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Junho de 2011 • Amaerj Doutrina
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
Art. 120, da Constituição Política do Império do Brasil, 1824.
Art. 117, idem.
3
Art. 72, § 4º, da Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil, 1891.
4
Art. 144, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil,
1934.
Art. 124, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1937.
Art. 163, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1946.
Art. 167 e § 1º, da Constituição do Brasil, 1967.
Art. 175 e § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, 1969.
5
Giannetti, Eduardo. O valor do amanhã. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005, p. 32.
6
Pereira da Silva, Caio Mário; Instituições de direito civil, vol. VI, 17ª
edição, Rio de Janeiro, Forense, 2009.
7
“Ressalte-se que a evolução legislativa, que acima se resumiu, foi
criticada por prestigiosa doutrina. Do diploma que instituiu a reforma do direito sucessório português, em 1977, foi dito que era “marcado pela hostilidade à família de sangue” e que teria levado “para
além de toda a razoabilidade a tutela sucessória do cônjuge sobrevivo”; além disso, “o esquema do usufruto legitimário era muito
mais simples e correspondia melhor aos interesses práticos” (Oliveira
Ascensão, Direito Civil: Sucessões, nº 11, pág. 29, e nº 196, pág.
343): escreveu-se que o Decreto-Lei nº 496/77 seria “obstinadamente apegado a uma valorização da posição sucessória do cônjuge
sobrevivo, em termos realmente injustificados na sua amplitude”
(Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, vol.
II, nº 252, pág. 176) e que melhor teria sido atribuir à viúva ou viúvo
“uma posição de sucessível legitimário, mas como usufrutuário da
respectiva quota”, solução “incontestavelmente mais adequada a
uma justa harmonização dos interesses e valores em causa” (id.,
ob. Cit., vol. Cit., nº 104, pág.70, nota nº 92); censurou-se a nova
lei ao argumento de que “transformar um cônjuge em herdeiro
forçado do outro é (...) acentuar ainda mais a comunhão patrimonial perante um casamento cada vez mais flexível e cada vez mais
temporário” (Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e
das Sucessões, Almedina, 1990, pág. 602). “ (Caio Mário da Silva
Pereira, op. cit; pág. 129).
8
STJ, 3ª T, REsp 992.749, Rel. Min. Nancy Andrighi, j: 01.12.2009,
acórdão unânime.
9
Wald, Arnoldo. Direito de Família, 9ª Ed.São Paulo: RT, 1992, p. 93.
10
STJ, 4ª T., REsp 286514, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. em
02.8.2007.
11
“Há sistemas jurídicos como o brasileiro em que se admite amplamente tal liberdade (art. 256 do CC), enquanto em outras legislações as
partes só podem escolher um entre os diversos regimes legalmente estabelecidos, não podendo modificar suas disposições, como ocorre no
direito suíço, por exemplo (art. 179, II, do Código Civil suíço).” (Wald,
Arnoldo, op. cit., p. 88).
* O art. 256 mencionado corresponde ao art. 1.632, do Código Civil
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2
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