LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 399 Conclusões Resistência à homogeneização do gosto, da gestão da produção e do seu escoamento será, talvez, a expressão mais razoável para explicar as dificuldades que surgiram desde início e obstacularizaram a implementação harmoniosa do ensino de desenho industrial, no nosso país, no último quartel do século XIX e, mais concretamente, a partir de 1884. A reforma do ensino técnico, sustentado pelo lema “desenvolvimento e progresso”, veiculado pelo sistema de valores liberais, vinha de trás e estava implícito no espírito da lei de 20 de Dezembro de 1864 de João Crisóstomo. Em 1884, António Augusto de Aguiar legisla tomando o modelo de South Kensington como o mais interessante para Portugal. Previa-se numa escala, ainda modesta, a distinção entre escolas de desenho e escolas industriais que administrariam os conhecimentos indispensáveis aos alunos oriundos do operariado e das artes tradicionais, articulando-se o funcionamento escolar com as instituições museológicas anexas, hierarquicamente responsabilizadas perante dois grandes institutos e respectivos museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto. A estes cabia regularizar e dinamizar o sistema. A uma primeira fase, de que é responsável António Augusto de Aguiar, segue-se uma segunda etapa, sob a tutela de Emídio Navarro que se viu confrontado com a necessidade real de encontrar técnicos com a formação adequada, no momento em que ficou decidido que a reforma não poderia ficar restringida a algumas cidades do país, mas teria que ser alargada na sua base, como garante de sucesso e impedimento de contestações justas. Em vez de optar pela criação de Escolas Normais, onde se fizesse a formação dos quadros internos, proceder consentâneo ao espírito de igualização esperada, Emídio Navarro decidiu recrutar professores já com formação que, não se encontrando no país, deveriam ser procurados no exterior, dando cumprimento ao Art.º 4.º § único do Decreto de 3 de Janeiro de 1884, promulgado pelo seu antecessor. A clivagem entre os elementos humanos ligados à reforma parece ter tido origem neste Artigo porque, ao contratar professores estrangeiros, introduziria metodologias incontroláveis, face à adopção dos modelos de trabalho, tornando dependentes destes os resultados do ensino e a sua eficácia. 400 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA As vozes que se levantam críticas, desde o primeiro momento, se, por um lado, estão cientes da necessidade imperiosa da criação de um ensino do desenho industrial dividem-se, quanto às orientações a seguir. Teoricamente, era indiscutível que a reforma profunda do ensino do desenho deveria levar ao entendimento correcto da correspondência entre a forma e o objecto, como se escrevia no relatório dirigido pelo marquês de Sousa Holstein e, pragmaticamente, não havia dúvidas de que era indispensável a ligação da indústria às necessidades das classes trabalhadoras, adoptando-as judicialmente às necessidades locais, como reconhecia, mais tarde, António Arroio. Suscitavam polémica o modo de realização, a concepção do modelo e a definição das prioridades, que deveriam constar do currículo, sobre o tipo de desenho rigoroso ou artístico, aquele visando as indústrias mecânicas, este tendo em vista as artes e ofícios. Ao aceitar-se a entrada de professores estrangeiros no processo, abria-se o precedente de admitir também a coexistência de vários modelos de orientação no ensino, embora este estivesse sujeito a um currículo único, em termos formais. Especialista na matéria, formado no estrangeiro e profundo conhecedor do modelo austríaco, porventura mais exigente por isso mesmo, Joaquim de Vasconcelos não negará o contributo valioso que os professores estrangeiros podiam prestar ao ensino nacional, mas discordará sempre quanto à didáctica e aos materiais utilizados. Será ele uma das pessoas mais conceituadas do país, na matéria, que teve o mérito de congraçar, através da sua opinião, a crítica mais consistente ao processo reformador. Por outro lado, seria injusto afirmar que foi em vão todo o esforço de que se revestiu a busca e a aquisição no estrangeiro do que de melhor e mais actual se encontrou, entre a oferta de materiais e de equipamentos didácticos, para o ensino do desenho rigoroso e artístico, mas também não se pode afirmar que, com a importação daqueles, se tenha verificado a optimização dos efeitos perspectivados. Residirá neste aspecto a questão de fundo, persistente e perturbadora do processo, visto que desemboca aqui, sem alternativas, o problema da orientação estética e filosófica que se pretendia dar ao ensino de desenho industrial. Confrontar-se-ia aqui com o fundamental que era o de encontrar, em definitivo, sob os pressupostos ideológicos do liberalismo, uma alternativa aos métodos de produção e da sua aprendizagem utilizados pelas corporações dos ofícios extintos constitucionalmente. E, por isso, alguns pugnavam pelo reconhecimento das realidades locais e da sua compreensão, através da aliança entre a escola e a oficina, contra a tendência centralizadora e massificadora do ensino, que a lei e as sucessivas alterações à mesma vinham agravando, conforme pensavam. Deste modo, o processo desenrolar-se-ia entre a aceitação de atitudes conciliatórias que permitiam ir ao encontro de tendências LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 401 localizadas e a necessidade de manter a coordenação do processo, através de medidas centralizadas, numa tentativa constante de evitar o desvirtuamento dos objectivos propostos. A discussão acabaria por girar em volta da adequação do modelo ou dos modelos de ensino importados ou a importar e da sua consubstanciação estética, tendo em vista a opinião abalizada daqueles que ditavam os parâmetros internacionais do movimento, que se imporia na Inglaterra e alastraria à restante Europa. Em Portugal, o debate veicula-se através dos conceitos nacionalizar e desnacionalizar o ensino e, por extensão, as artes, quando o problema se confina ao desenho artístico. Daí que Joaquim de Vasconcelos criticasse, desde cedo, a omissão de cadeiras de estética aplicada às artes industriais e o conhecimento dos estilos não integrasse as cadeiras de desenho arquitectónico e mecânico, bem como a inexistência de materiais didácticos nacionais relacionados com o ensino destas cadeiras, ao mesmo tempo que considerava indissociáveis estética prática e história de arte que estimulassem a criação de um gosto nacional próprio, que o ensino baseado em estampas, sobretudo estrangeiras, fazia perigar. Por outro lado, a admiração que alguns intelectuais portugueses nutriam pelas teorias de Ruskin e pela prática de Morris, adverso ao culto do abstracto, como o definia Manuel de Macedo instaurava, a nível de debate, o alinhamento que se devia seguir, deixandose alguns, como Ramalho Ortigão, tomar pela paixão ilimitada em favor das teses de Ruskin e outros, pela necessidade de manter o processo controlado, através do pragmatismo, como defendia António Arroio. Na discussão pública, evita-se falar ou fala-se pouco, talvez por desconhecimento ou insatisfação, de exemplos que se vinham já constituindo, fruto do trabalho de campo que ia sendo realizado. Constituíam-se, apesar de tudo, realidades diferenciadas que procuravam aliar tendências estéticas e criar, para dar-lhes resposta, modelos de aprendizagem que valorizassem a tradição portuguesa. A pesquisa incidia sobre a tradição cultural e patrimonial das localidades onde tinham sido criadas as escolas industriais e de desenho indus-trial e na região envolvente redescobrindo-se hábitos, usos, costumes e modos de produção ancestrais. Assim, foram-se construindo modelos heterogéneos que procuravam responder às solicitações do ensino e do desenvolvimento económico do país. Esta situação é comprovada pelos dados que se podem apurar e do estudo dos mesmos. Concorreram para essa heterogeneidade de soluções as diferentes circunstâncias que antecederam histórica, geográfica e socialmente a inserção das instituições escolares, além das diversificadas formações do corpo docente de cada uma delas determinadas, inclusivamente, pela origem nacional dos professores envolvidos, que vieram a coexistir num mesmo espaço de trabalho. É de assinalar, no contexto assim definido, o 402 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA papel de alguns professores mais proeminentes e, especialmente, o concurso profissional de quase todos os directores homens escolhidos, segundo Marques Leitão, de forma isenta e correctíssima. Não deixou de se fazer sentir a influência da sua formação individual e das opções políticas e estéticas, cuja imprevisibilidade parecem ter querido sujeitar aos interesses das comunidades eivadas, contudo, de tendências que não poderiam deixar de se manifestar. É de salientar o empenhamento da família real, nas pessoas dos reis e dos príncipes, pela causa do ensino, de que deram provas ao incentivar com a sua presença e mesmo ao apoiar com verbas pessoais o desenvolvimento de projectos autónomos. É um esforço extraordinário face a uma causa que parecia comum à nação e a eles e da qual pareciam perceber que dependiam os seus próprios futuros, também. O déficit financeiro, constantemente recordado, ao longo dos últimos anos da monarquia, foi tomado, por muitos, como a causa próxima dos insucessos verificados com a reforma do ensino industrial. Por oposição, deve referir-se que um elevado número destas escolas, criadas a partir de 1884 e ampliadas em 1888, chegaram até 1975 tendo, desde a fase inicial, contribuído para suscitar e dinamizar forças produtivas em presença e concertar esforços entre entidades distintas que não permitiram que o processo retrocedesse ou fosse invalidado pelas dificuldades múltiplas. Cite-se, a título exemplar, as escolas industriais do Porto, Braga, Guimarães, Viana do Castelo, Coimbra, Covilhã, Portalegre, Lisboa, Funchal e Angra do Heroísmo que participaram activamente na formação das populações, durante várias décadas. Mas aquelas não eram questões pacíficas porque se o fossem não teriam dado origem aos múltiplos pontos de vista sobre a identificação e a adequação ao campo do ensino artístico daquilo que deveria ser tido por inquestionável. E se as artes e o seu ensino eram assunto de controvérsia, as correntes literárias, que se vinham afirmando e Coimbra vê florescer, trarão mais achas que, sob outros prismas, contribuirão para tornar o debate mais rico, com vantagens para a cultura nacional. Deste modo, coexistindo com a primeira fase da vida artística de Battistini em Portugal, o pintor estará em contacto directo com os iniciadores dos novos movimentos literários, cuja projecção se mistifica conjuntamente com os seus nomes: António Nobre, Manuel da Silva Gaio, Eugénio de Castro e Afonso Lopes Vieira. Conhecidos os meandros por onde Battistini circulou e a forma como entabulou relações pessoais com estes nomes ilustres da nossa literatura importa reflectir, em síntese, sobre aquilo que de todos recebeu e transparece na sua própria obra, enquanto pintor e ceramista. O pensamento destes cultores das letras portuguesas evidencia-se, em tempos diversos e aparentemente anacrónicos, na obra de Battistini. Isto é, LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 403 tendo Leopoldo Battistini conhecido e nutrido grande afinidade pelo pensamento de António Nobre, que se antecipou à amizade posterior de Battistini por Eugénio de Castro e por Silva Gaio, estes acabam por constituir-se como catalisadores das primeiras prestações artísticas de Battistini em Portugal. Concretizando, de Battistini se dirá que guardou de Nobre “memória em flor” até ao fim da vida, mas foi Eugénio de Castro que dominou a primeira fase da sua vida de pintor em Portugal, em parte à revelia da amizade de Battistini por Manuel da Silva Gaio que acabou preterido, em relação a Castro. O pensamento de António Nobre pairará inevitavelmente sobre muitas reflexões de Battistini, posteriormente, que o terá por símbolo do lirismo nacional, devido ao saudosismo que o caracteriza e com o qual se identificará na sua vivência de exilado. Só a partir de 1894, Battistini poderá desfrutar do companheirismo permanente de Eugénio de Castro, quando o poeta volta e se fixa definitivamente em Coimbra, tornando a leccionar na escola Brotero. Simultaneamente, regressará também Silva Gaio e chegará Afonso Lopes Vieira. Deste ano até cerca de 1899 a obra de Battistini ficará marcada pela influência deste círculo intelectual que, em volta de Castro, constituirá a sua corte, como o próprio os designou. Talvez por afinidade de temperamento, Battistini veio a trabalhar primeiro com Gaio e só depois com Eugénio de Castro, embora se conheça apenas um título resultante da colaboração entre Battistini e Silva Gaio. De resto, isto seria natural, numa altura, em que este escritor aparenta ter-se deixado seduzir pela linha estética decadentista do simbolismo além-Pirinéus, de que se afastará depois, nas palavras de Aníbal Pinto de Castro. De facto, Silva Gaio é tido por introdutor do movimento nacionalista em Portugal, contido mais na expressão do que na matéria, enquanto interpretação dos elementos universais que definem a Arte. Neste ponto, o pensamento de Silva Gaio sobrepor-se-ia ao de António Nobre, segundo Castelo Branco Chaves. Battistini mais inclinado a um entendimento estético com a linha preconizada, então, por Eugénio de Castro, não estava disponível para entender o alcance do pensamento de Silva Gaio. Por conseguinte, só num fase posterior, mais amadurecida, Battistini compreenderá melhor o escritor de Coimbra. A destacar-se, na primeira fase artística de Battistini em Portugal, o pintor criará, a partir da obra de Eugénio de Castro, Sagramor e Nereide de Harlém. Salomé será um esboço que o pintor não chegou a terminar, já muito depois, em Lisboa. Tanto Sagramor como A Nereide de Harlém são o resultado de um trabalho conjunto, gerado numa espécie de confraria artística – de que, em certa medida, Silva Gaio fizera parte – semelhante, em vários aspectos, àquelas que reuniram escritores e pintores em Inglaterra, França, Alemanha e Itália. No primeiro país, destaca-se como pioneira, na sequência dos Na- 404 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA zarenos alemães, a irmandade pré-rafaelita e na Itália, trabalharão de forma parecida, mais tarde, D’Annunzio e de Carolis. Entre os pré-rafaelitas havia o pressuposto de fazer renascer a arte de pintores primitivos, sobretudo italianos, cujas obras se tornavam fontes de inspiração formal. O pensamento estético-ideológico dos pré-rafaelitas ingleses repercutir-se-ia, igualmente, na poesia simbolista francesa. Esta é uma conclusão de Denyse Chast, estudiosa da obra de Eugénio de Castro que se inclina para a influência do simbolismo francês em Castro que não ignorava, antes pelo contrário, as pinturas dos elementos do grupo, nomeadamente de Dante Gabriele Rossetti, de quem era admirador. Se, por um lado, se verifica a influência do simbolismo francês em Castro, por outro, é conhecida a admiração de Battistini por D’Annunzio cujas obras, a partir de dada altura, são ilustradas por A. de Carolis. Aquelas obras de Castro sintetizam, literaria-mente, os aspectos característicos do movimento simbolista, numa aliança de pessimismo, misticismo e fabuloso, com incursões no misterioso e no fascínio pelo exotismo representado pela natureza, pelos sons, pelas cores e pelos perfumes. Battistini procurou captar este ambiente, sendo de sublinhar, na Sagramor de Battistini, o reflexo pagão que Vitorino Nemésio reconheceu no poema de Castro e apelidou de esoterismo mais ou menos délfico, bem patente na pintura de Battistini, através do instante iniciático e em todo o cenário que o envolve. Em relação à Nereide de Harlém, fruto do mesmo ambiente de confraria, Battistini conseguiu elaborar um trabalho de rara elegância que transmite, caligraficamente, a intenção do poema/lenda que Nemésio designou por sonho e poesia. É uma peça que resulta da mesma atitude mental dos dois artistas, que estariam a par de obras idênticas, de cariz hermético, como as de Aubrey Beardsley e Charles Ricketts e de outros ilustradores em obras literárias de autores ingleses, como Oscar Wilde. Esta primeira etapa da vida artística de Leopoldo Battistini, no nosso país, dominada pela tendência estético-ideológica simbolista, que se antepôs a outras, porventura subjacentes e que irão afluir, posteriormente, atingiria o seu zénite à volta dos anos de 97/98, a partir dos quais, o artista parece abandonar esta corrente tornando-se, tal como Castro, mais cristão, ainda que sempre panteísta. Para tal abandono terá contribuído a alteração do estado civil de ambos, artista e poeta, que vêm a casar sensivelmente na mesma época. Supõe-se que prioridades de índole não artística determinaram o afastamento dos confrades. De resto, os elementos do grupo, que eram estu-dantes, terminaram os seus estudos por aquela altura, também. Ainda importante, durante esta etapa da vida de Battistini, pelo menos do ponto de vista social, embora de pouco significado na sua vida artística, é o facto de o pintor se ter tornado membro do Instituto de Coimbra, onde os seus amigos já tinham sido aceites: LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 405 Eugénio de Castro, Silva Gaio, António Augusto Gonçalves e Charles Lepierre. Contudo, o opúsculo que redigiu naquela ocasião, mostra-se de grande interesse para se conhecer a evolução estética-ideológica do artista italiano. Foi, ainda, no decurso da fase coimbrã que Leopoldo Battistini acompanhou as pesquisas desenvolvidas pelo engenheiro Charles Lepierre, acerca da cerâmica portuguesa. Desta forma, o artista italiano pode assistir às demonstrações e tomar conhecimento de um mundo que, provavelmente, ignorava sob o aspecto da análise química dos materiais, enquanto ouvia as explicações sobre técnicas tradicionais de produção do azulejo e da faiança portuguesa, mais razoavelmente da região de Coimbra, de que Augusto Gonçalves era um conhecedor. Aliás, Gonçalves participou com um artigo sobre esta matéria na obra, que veio a ser editada mais tarde. Quis Battistini, levado pelo entusiasmo, experimentar o trabalho em cerâmica, datando desta época os seus primeiros painéis de azulejo, produzidos em Portugal. Cerca de cinco anos depois de se ter casado, Leopoldo Battistini abandona Coimbra, passando a viver em Lisboa e a trabalhar como professor na escola industrial Marquês de Pombal. Exporá, em 1903, 1904 e em 1909, na SNBA apresentando-se com pinturas a óleo e a pastel, técnica a que recorre de agora em diante, com mais frequência do que antes. Os catálogos das exposições permitem saber que Leopoldo Battistini continuava a estudar e a interessar-se, sobretudo, por temas de inspiração em tipos e paisagens nacionais. Já em Lisboa, mas coincidindo com o período que corresponde à segunda fase artística, evidenciando sinais de ruptura, Battistini expõe nos Salões do Século e da Ilustração Portuguesa, em moldes bastante diferentes do que acontecia com exposições anteriores. Menos pretensioso, o espaço contribuía, na opinião dos promotores, para uma maior empatia entre artistas e o público. O facto de Battistini ter procedido à divulgação dos painéis decorativos destinados a uma casa particular, evidencia preocupações de outra natureza a que o artista pretende também abranger, indo ao encontro de um público comprador em expansão. Contudo, os restantes trabalhos presentes na mostra, permitem perceber uma linha de orientação voltada para a especialização na técnica da pintura a pastel, ao serviço de fórmulas estéticas que o pintor irá desenvolver, posteriormente. A inspiração em temas simbolistas deixara de se verificar. A etapa seguinte, aqui proposta como a terceira fase da vida artística de Battistini, irá decorrer entre os anos de 1907 e 1921, havendo a assinalar, neste período de cerca de quinze anos, dois momentos distintos: 1914 e 1917/19 que correspondem às datas das outras exposições do pintor. Estas datas carregam consigo o peso da História e, talvez não seja por acaso, que a obra de Battistini apresenta mudanças que acabam por reflectir o ambiente político- -social que o rodeia sem, contudo, como assinalara Alfredo Pimenta, 406 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA oferecer o quotidiano dos tarados, das misérias e dos plebeísmos, no conjunto de quadros que expôs em 1914, tal como o não fará nas exposições seguintes, embora nunca deixe de abordar temas inspirados na realidade envolvente. De facto, embora logo a seguir à exposição de 1907 e até à revolução de 1910 os acontecimentos políticos do país fossem dramáticos Battistini, que não podia deixar de os ter vivido e sentido, aposta em apresentar-se como pintor de arquétipos, concebidos a partir de uma interpretação tomista da arte em que o belo e o bom se equivalem. Na verdade, o artista reflecte nas suas obras o quotidiano social, qualquer que seja a inserção dos personagens escolhidos, fazendo emergir deles qualidades que a expressão física aparenta, remetendo o observador para um mundo sem deformações físicas nem morais. Aliás, o pintor acabará por constituir com as obras expostas em 1914, uma escatologia de valores, para além do bom e do belo, em que são intencionalmente retratados princípios de ordem moral. A técnica a pastel permite-lhe, porventura, acentuar os pressupostos moralistas, encerrados no círculo do bem e do mal, tirando partido da cor, como veículo do simbólico. As obras da mostra seguinte denunciam a mesma atitude estético-ideológica, embora de forma menos visível. O pintor deixar-se-á absorver por temas mais ou menos contemplativos, inspirados na natureza e, daí, o número significativo de quadros voltados para a paisagem e as naturezas mortas, entremeados com abordagens de questões de ordem social ainda que evite, deliberadamente, expor com realismo a miséria e o sofrimento, invertendo a leitura para a esperança, apesar de tudo. Desaparecem os temas e os tipos de inspiração popular mas, sendo colectivas as duas últimas exposições, surgem materiais cerâmicos e outros, voltados para a representação de artefactos nacionais, embora não da autoria de Battistini. Leopoldo Battistini foi surpreendido pelo trabalho de restauro dos painéis encontrados no mosteiro de S. Vicente de Fora, pelas conclusões de José de Figueiredo, publicadas em 1910 e pelo posterior achamento das tapeçarias de Pastrana, que tanto aquele erudito como o seu amigo Reinaldo dos Santos atribuíram ao mesmo pintor ou à sua escola. Tais estudos e conclusões agravaram as certezas de Leopoldo Battistini acerca da individualidade artística da Idade Média, interrompidas pelo classicismo renascentista, em Itália, sobre as quais o pintor emitira opinião própria, logo em 1896. O quanto a questão dos primitivos portugueses abalou ou consolidou as suas ideias feitas resultou numa reflexão pessoal e na generalização das mesmas, em relação à arte do mesmo período, na restante Europa. Leopoldo Battistini terá ocasião de exprimir artisticamente, na década de 20, as suas convicções, quando se torna propícia a sua emergência. Esta fase artística, que decorre até 1921, apresenta-se como a mais agitada para Leopoldo Battistini, também em termos pessoais – o LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 407 divórcio, a mudança para S. Vicente de Fora, o início da relação com Maria de Portugal, a expulsão das instalações de S. Vicente, na sequência da morte de Sidónio Pais – mas é também o mais profícuo, em relação à maturação de ideias e à preparação de um período de trabalho inteiramente diferente. O artista italiano contava, então, 55 anos de idade. Na fase artística que se inicia a partir de 1921, coincidente com a decisão de Leopoldo Battistini em adquirir a fábrica de Cerâmica Constância, o artista terá finalmente a ocasião, que parece ter sido obrigado a adiar, devido a imponderáveis da sua vida pessoal e profissional, constantemente. E se há males que vêm por bem, o provérbio ganhará a sua razão de ser se aplicado a Leopoldo Battistini que, deixou prevalecer o desafio, ao aceitar a imprevista sugestão de reabrir a decadente fábrica de cerâmica, às Janelas Verdes, quando foi expulso da sua habitação. Na contingência de perda de toda a segurança, inalienável do conforto e bem estar a que aspira qualquer ser vivo, num período tão agitado política e socialmente, Battistini acreditou que era possível dar lugar à concretização de um sonho. Através das faianças apresentadas no ano de 1924 no museu arqueológico do Carmo, por Battistini secundado por Viriato Silva, numa mostra que foi acompanhada pela divulgação dos pressupostos estéticos subjacentes aos motivos de inspiração e à execução das peças, por um lado e à profusão de santos e de figuras históricas que povoam o universo das produções da fábrica, por outro, podem fazer-se algumas leituras sobre esta derradeira fase da vida de Leopoldo Battistini. Com efeito, parece ter sido possível ao artista dar aso às suas aspirações como produtor de arte, nos moldes que ele sabia ser os da Century Guild, nos remotos tempos do movimento, impulsionado por William Morris. Todos os elementos que foram reunidos, uma vez analisados, conduzem à conclusão que Leopoldo Battistini estava consciente de que estavam criadas as condições para introduzir, ainda que tardiamente, nas indústrias artísticas ligadas à cerâmica portuguesa, um tipo de laboração semelhante àquela que ocorrera em Inglaterra nos últimos anos do século XIX. Isto mesmo está implícito nas notas explicativas da exposição do Carmo de 1924. Tratava-se de uma ocasião única para, sob a sua orientação, dar continuidade aos ensaios que experimentara em Coimbra, onde António Augusto Gonçalves fora percursor com os seus trabalhos e incentivos aos colegas em dar escola aos artesãos locais. Dispunha agora o artista italiano de condições tecnológicas, inspiradas nas técnicas de produção tradicionais, que iria reunir na fábrica Constância com a ajuda de Viriato Silva. Sob o ponto de vista estético, as mesmas notas são igualmente bastante elucidativas: reconhecia-se a existência de um estilo antigo português com carácter próprio, inspirado nas diversas épocas tanto na cor, como no desenho e na pincelada e reconhecia-se a existência de características 408 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA individualizantes da cerâmica portuguesa, assentes na maneira ingénua como eram trados os assuntos, que se procurara também conservar. Tecnicamente, recorria-se à experiência dos antigos para apuramento das cores mais usadas como o verde, o azul, o amarelo e o roxo, às quais se acrescentava a malva e o vermelho, com o sentido renovador que as novas tecnologias permitiam, mas as tecnologias tradicionais de fabrico eram mantidas, inclusive no vidrado e na pintura a cru, para não se alterar com processos mecânicos a resistência final e o carácter antigo das peças. No que respeita à faiança que passaria, de agora em diante, a sair com a marca da Fábrica Constância, Battistini sentia-se satisfeito por reconhecer naquelas peças a identidade nacional que julgava encontrar na poesia de António Correia de Oliveira, cuja feição estética lhe parecia assegurar o arcaísmo chão, presente na arte portuguesa. Era Correia de Oliveira um poeta daquela nova geração de literatos, cujas obras apontavam, na opinião de Veiga Simões, para a contemplação universal como alargamento do nacio nal. O lídimo representante desta corrente, entre nós, segundo o ensaísta, era Silva Gaio. Este escritor encontrava seguidores em Teixeira de Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, além do próprio Correia de Oliveira. A ser assim, não se tratava, portanto, de um simples pretexto, mas de razões estéticas que o ceramista fundava numa relação antiga e nas lições que escutara a Silva Gaio em Coimbra, revivificadas no discurso de Correia de Oliveira, de que o pintor era confesso admirador, senão amigo, como quer Maria de Portugal. A partir da pesquisa e do estudo da cerâmica decorativa portuguesa, orientados segundo a linha estético-ideológica enunciada, Leopoldo Battistini assimilou os princípios que imprimiu à pintura figurativa de azulejo e nas peças de cerâmica decoradas também com elementos figurativos, nomeadamente aqueles em que os motivos são baseados nos costumes tradicionais, ligados às actividades locais das diferentes regiões do país visível nos painéis de azulejo que pintou para as estações da CP, por exemplo. Dentro desta linha estética, Leopoldo Battistini criou peças, com temas inspirados na agricultura e na pesca. Em todas estas representações pictóricas, o pintor recusa uma cenografia verista ou uma representação coreografada das cenas. Esta mesma orientação estético-ideológica permeia todas as representações histo riográficos em painéis de azulejo ou de inspiração histórica, sendo de admitir que na base desta opção estética tenha pesado a interpretação iconográfica, sobre a pintura dos primitivos portugueses, estudados e postos em evidência, de 1910 em diante. Sob o ponto de vista temático, é bastante significativa a quantidade de peças que saíram das mãos de Battistini, num período relativamente curto LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 409 – cerca de quinze anos, apenas – com representações de figuras de heróis, de santos e de altares. Esta preferência temática deveu-se, em parte a encomendas, mas um número significativo das mesmas parecem ter sido criações voluntárias do artista. Torna-se evidente que esta selecção de assuntos se circunscreve a uma exigência de carácter ideológico, que encontra expressividade numa ambivalência de princípios morais e religiosos. A escolha dos temas encontra na técnica azulejar o suporte ideal da representação, que vai ao encontro da tradição artística portuguesa, situação a que a escolha do pintor não é alheia. Battistini encontraria no azulejo o substituto privilegiado pela arte portuguesa, que corresponderia formalmente à pintura a fresco, em Itália, praticada por artistas como Fra Angélico ou Giotto. Em relação à arte italiana, os trabalhos reunidos demonstram que o artista nunca se separou das suas origens, havendo temas, sobretudo de carácter erudito, em que deixa claro que se inspirou nos artistas do quatrocentto e também do trecentto de cujos limites temporais não se demarca, deliberadamente. Estas são apenas algumas das vertentes que a leitura iconográfica das suas obras sugere, podendo dizer-se que o artista procura colocar a sua arte ao serviço de valores temporais e espirituais, obedecendo a uma lógica de esbatimento de antagonismos entre poderes. A temática a que as opções ideológicas de Battistini conduziram dificilmente encontrariam paridade nas de António Augusto Gonçalves e de outros amigos dos seus tempos de Coimbra, como Quim Martins ou Eugénio de Castro ou Silva Gaio. Poder-se-ia dizer que, por isso, junto do círculo coimbrão Battistini formulou as premissas, mas as conclusões são suas. Para a formulação das ilações contribuíram outros dados, estranhos ao ideário estético-ideológico daquele grupo e que aparentam estar mais próximas do da geração que se seguiu e, em termos intelectuais, Vitorino Nemésio apelidou de despaisados. É a geração de Bento Coelho da Rocha que este mesmo des-creve como anti-demo-liberal e da qual fizeram parte Joaquim Leitão e Alfredo Pimenta que não negam ter feito parte dos grupos anarquistas e anticonstitucionalistas, que passaram pela cidade universitária, à volta de 1907. Alguns dos elementos daquela geração inflectiram o seu percurso ideológico e incursionaram pela oposição à República, tendo emigrado e defendido a causa monárquica, como fez Joaquim Leitão, que veio a travar conhecimento com Leopoldo Battistini depois do exílio, provavelmente. Outros aderiram ao movimento integralista cuja causa cindiram com os monárquicos constitu cionalistas, dando origem à fundação da revista Nação Portuguesa – veículo da ruptura a partir de 1914 – para em 1918 se tornar moda ser integralista, como anotava Cunha Leal. É provável que Battistini tivesse nutrido alguma simpatia 410 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA pelos ideias veiculados pelo movimento de Charles Maurras, na medida em que estas faziam o apelo à ruptura com o liberalismo e o constitucionalismo, propondo o regresso a uma Europa anterior à revolução fran-cesa, norteada por princípios não parlamentares e, por consequência, defendiam a instauração de uma ordem social organicista, à maneira da Idade Média. Aquilino Ribeiro chamava a atenção para o perigo que a força destas ideias, supostamente inovadoras, representavam para a República. Por outro lado, o assassinato de Sidónio Pais não pôde deixar também de criar receios fundados, no espírito daqueles que tinham visto no seu consulado o apaziguamento dos antagonismos entre o poder do Estado e o da Igreja de Roma. Sidónio Pais tinha contribuído para a recuperação da confiança de monárquicos e não monárquicos que temiam o radicalismo anticlerical que separava os portugueses numa cultura secular e que ameaçava voltar, de novo. O sidonismo, enquanto movimento suportado pela ideologia republicana e maçónica, se despertava expectativas favoráveis em pessoas como Battistini, monárquico e católico convicto, não poderia ser o garante definitivo, a não ser para alimentar o equívoco em que os monárquicos creram. Mas Battistini, como tantos outros, talvez visse em Sidónio Pais – que ele conhecia bem – o homem da reconciliação e da aliança entre o poder político e o poder religioso, que interessava àqueles que assim o desejavam. O desapareci-mento de Sidónio Pais deixa em aberto um caminho, neste sentido restrito, que facilitaria a entrada em cena de outros políticos formuladores de teses regeneradoras e anti-liberais. Por outro lado, Battistini mantinha-se também atento ao que se passava, por esta altura, em termos políticos, em Itália. Mussolini e o seu movimento, transformado em partido, tinham contribuído para fazer recobrar a confiança abalada dos italianos, ao longo de décadas, divididos em lutas políticas internas, agravadas pela primeira guerra mundial. O artista italiano extrapolara e viu, certamente, nas ideologias nascentes em Itália e em Portugal a ambicionada atmosfera de paz e de concórdia que permitiria estabelecer e criar uma sociedade mais justa, baseada em relações controladas pela intervenção do Estado, entre patrões e trabalhadores. Também neste contexto, é importante situar Battistini como um amante da cultura mediterrânea, que tirava prazer das leituras de D’Annunzio que era, antes de mais, um grande escritor da sua geração e um defensor do Risorgimento italiano e das culturas latinas. Estes pressupostos deixam antever que Battistini acreditou, sobretudo, num jogo de equívocos. Por tudo isto, Leopoldo Battistini parece ter aderido ao partido fascista e teve honras fúnebres prestadas por um secretário do fascio, numa data anterior à perda de todas as ilusões. Não consta, porém, que Battistini tenha obtido recompensas de qualquer tipo, porque LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA 411 nem Maria de Portugal nem Joaquim Leitão o teriam escondido, dado que os tempos que decorriam eram de molde a não ocultar essas revelações. Nem mesmo o discurso de Maria de Portugal faz qualquer menção a benefícios do regime a favor de Battistini. Além disso, o repositório de peças produzidas por Battistini depois daquela data não denuncia nenhuma viragem ideológica na obra do pintor, nem se conhece outra peça de glorificação a Mussolini ou ao movimento liderado por ele. Pelo contrário, os painéis e demais peças inventariadas são sobretudo inspiradas em temas hagiográficos ou em heróis nacionais. Saber-se que Battistini nutria sentimentos antiburgueses, enquanto sentimento estético, poderá levar à tentação redutora de relacionar esta aversão do artista com os ascendentes ideológicos dos regimes totalitários, emergentes na Europa, de pós tratados de paz de 1919. Deve ter-se em consideração que o artista italiano revelava já em períodos anteriores, uma atitude de desconfiança, face aos valores reintroduzidos na cultura ocidental, durante a Idade Média valores que, para muitos, são considerados elementos exteriores ao desenvolvimento natural da mesma. De resto, esta opinião é a espinha dorsal do pensamento filosófico de Ruskin. Nesta alteração estaria envolvida uma mentalidade condizente com o papel da burguesia, enquanto força social, não incorporada numa sociedade de ordens e não regida por princípios de carácter vinculativo. É verosímil que a existir em Battistini uma linha ideológica definida, ela possa derivar de uma génese anterior, que se reveria no pensamento da igreja, contido na encíclica Rerum Novarum. As afinidades entre os princípios doutrinários ali contidos e a linha ideológica do fascismo não são o objecto deste estudo, não havendo bases para negar, ainda assim, as simpatias que ambas despertassem em Battistini. Com esta atitude mental, Battistini demonstra alguma incompreensão do processo histórico, na medida em que para o artista e para aqueles que perfilhavam o mesmo raciocínio, a burguesia era tida como elemento anorgânico do sistema que, por isso, contribuía para a desintegração dos grupos ou ordens harmoniosamente estabelecidos. Battistini deixava, assim, de perceber que aquele grupo social que se avoluma, numérica e influentemente, era o resultado da dinâmica da própria sociedade, não importa a duração implícita na maturação das situações. Leopoldo Battistini ao menosprezar o protago nismo social daquela classe, tenderá a crer na possibilidade da sua anulação, numa sociedade de permanências e, por conseguinte, intemporal. Deste modo, o artista remete-se, inconscientemente, para um domínio supra terreno onde, de facto, a harmonia seja uma probabilidade, abolidos que sejam os factores de antagonismo, que é indispensável conquistar. Neste domínio, situar-se-iam 412 LEOPOLDO BATTISTINI: REALIDADE E UTOPIA as divindades que colaborariam na superação de todo o mal, através de um exercício de fé que suplantaria a realidade. É também um mundo no feminino, característica dominante da obra do pintor, ao mesmo tempo sinónimo da força geratriz da vida, a que o elemento masculino se subjuga, de livre vontade.