Jorge Amado, um Testemunho de Leitura
Uma obra fundadora de identidade e reveladora do protagonismo histórico de um povo, o povo baiano, deve ser
analisada sob vários pontos de vista. Não sou especialista em produção literária, portanto não comentarei a escrita de
Jorge Amado. Como cidadão comum, leitor de Jorge Amado, sinto a oportunidade de dar um depoimento sobre a
leitura
de
minha
vida,
que
se
juntará
às
justas
homenagens
da
Bahia
ao
seu
romancista.
A análise da produção literária não dá conta da avaliação da pertinência cultural de uma obra. A escrita tem a sua
historicidade, os seus condicionamentos psicológicos, os seus paradigmas narrativos e estéticos. No entanto, o autor
não tem o controle de sua obra após a publicação. Lembro-me da sabedoria de menino empinador de arraias.
Dizíamos com convicção:
-Arraia no ar é passarinho! Ou seja, qualquer um pode pegar.
A leitura tem também a sua historicidade e seus condicionamentos. Mais grave ainda quando há
evidentes conflitos entre a escrita e a leitura de uma obra. Uma obra universalista como a de Jorge
Amado permite leituras variadas, às vezes conflitantes e rebeladas contra o escritor. Não podemos
também esquecer o aparecimento de surtos de uma patologia de nossa civilização, um regicídio virulento
que tem vitimado pessoas que atingem grandes índices de exposição na mídia e gozam de grande
prestígio e admiração nas sociedades. A casuística é farta, Da Imperatriz Sissi, a John Lenon, muitas
foram
as
vítimas.
Porque
não
Jorge
Amado?
Afinal
é
chic
criticar
Jorge
Amado.
Lembro dos meus distantes 15 anos, aluno do Central que se preparava para o vestibular. Em plena
ditadura, o acesso aos grupinhos que estudavam o marxismo-leninismo era uma verdadeira aventura.
Dentre outros desafios estava o de ler conceitos teóricos saídos da filosofia e da sociologia (descoberta
do curso colegial). Trazia na minha bagagem de ginasiano o gosto pela história e pela literatura. Como
entender realmente a “luta das classes”, “o proletariado”, “a classe operária revolucionária”? Ler Jorge
Amado foi a minha valia. Ali estavam em carne e osso os conceitos dos manuais. O povo baiano era um
exemplo do proletariado explorado. Eram os lavradores de Ilhéus abatidos em tocaias pelos coronéis
latifundiários, eram os pobres urbanos discriminados e abandonados: pescadores, negros, meninos de
rua, bêbados e prostitutas. No interior deles, os operários e sindicalistas, organizados pelo movimento
comunista internacional, davam o sentido revolucionário às lutas do povo. Os personagens amadianos
eram os portadores desses conceitos sociológicos. Balduíno foi o meu grande herói. Menino negro, órfão,
criado por um babalaô-Jubiabá, boxeur e freqüentador do brega, era também um estivador sindicalista,
grevista e comunista. Aí eu entendi o conceito lucaksiano de classe em si e classe para si. Negro do
candomblé era o pertencimento histórico de Baldo ao proletariado baiano. Grevista estivador era o seu
pertencimento à classe trabalhadora revolucionária. Afinal dizia Jorge: -A greve é a festa do povo!
Ao fim dos anos 50 e início dos anos 60 um terremoto abalou a militância comunista em todo o mundo. A
revisão do estalinismo e a revelação dos seus crimes no 20º Congresso do Partido Comunista da União
Soviética provocou uma debandada, principalmente de intelectuais que buscavam no socialismo a
materialização de um ideal de justiça social e de igualdade e não apenas o exercício do poder. Jorge
Amado foi um deles. E a sua escrita mudou. Ficou descomprometida, fútil ou de direita como afirmam
alguns
dos
seus
detratores?
Eu
não
li
isso
em
Jorge
Amado.
Os tempos mudaram e minha leitura também. Minha geração operou uma ruptura majoritária com o
estalinismo, generalizaram-se as descontências e as dissidências, que terminaram por reduzir à
insignificância o velho Partidão brasileiro. Motivos não faltaram: a invasão da Hungria, o esmagamento da
primavera de Praga, a universalização do Maio de 68 francês. Deixei de buscar na leitura de Jorge
Amado a historicidade das lutas das classes. Passei a buscar a complexidade das lutas do povo,
considerado
em
seus
particularismos
e
na
sua
diversidade
cultural
e
política.
É como se os vários segmentos proletários experimentassem sua emancipação da ditadura operária.
Quincas Berro d’água não precisa mais de um estivador revolucionário para dar sentido à rebeldia do seu
“lumpenproletariado” do Pelô. As mulheres saem da escravidão da família burguesa patriarcal para
exercerem a sua liberdade sexual, profissional e humana. Nunca mais uma mulher amadiana, destruída
pelo conservadorismo, jogada no meretrício, precisaria de um Baldo revolucionário para lhe criar o órfão.
Agora, Gabriela aprendera a monitorar o seu querido corninho turco, Dona Flor se dava ao luxo de gozar
com
dois
maridos
e
Tieta
do
Agreste
se
soltava
como
prostituta
modernizadora.
Outra imprecisão dos críticos de Jorge Amado é a confusão entre a sua aposentadoria da militância
comunista, que aliás foi completa (profissionalismo, clandestinidade, prisão, exílio) e a possível conivência
do escritor com a ditadura militar, representada na Bahia por Antonio Carlos Magalhães. Segundo a
sabedoria da cantora Carla Perez, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa! Uma certa trégua
entre velhos, com favores recíprocos e respeitos recíprocos não caracterizam cooptação ou traição. (Este
é um conceito pejorativo que anda em moda ultimamente). Para mim, não diminui em nada minha
admiração pelo revolucionário cubano Fidel Castro, amigo do então governador da Bahia ACM. São
coisas de velhos que nós devemos respeitar. O importante é que não me lembro de nenhum texto
amadiano de apoio à ditadura. Às vezes um autor atira no que viu e mata o que não viu. No seu
despretencioso livro Farda, fardão e Camisola de dormir, Amado analisa e ridiculariza a tentativa da
ditadura do Estado Novo (1937) de implantar um acadêmico biônico na Academia Brasileira de Letras.
Parecia que ele estava escrevendo para toda uma geração, que enfrentava em 1976 a ação nefasta das
ASI- Assessorias de Segurança e Informação, sempre dirigidas por um coronel aposentado, que nas
Universidades formavam a lista negra dos subversivos e impediam qualquer candidatura destas ao
magistério superior. Para mim e para outros que compunham estas listas, foi preciso toda a habilidade e
conspiração
receitada
por
Jorge.
É nos anos 70 que a escrita de Jorge Amado e a minha leitura dão um salto significativo. A sinergia entre
a escrita de Jorge Amado e a minha leitura foi perfeita. O intelectual orgânico do movimento comunista
passa a assumir o papel de intelectual orgânico do movimento negro do candomblé. A virada se dá no
romance Tenda dos Milagres. A cultura negra do candomblé sempre esteve presente na obra amadiana,
como integrante do naipe dos explorados e perseguidos. Neste romance, Jorge Amado participa do
surgimento do Movimento Negro Unificado que busca a autonomia programática e operacional do
movimento contra o racismo e pela reparação da população negra das seqüelas da escravidão. Neste
romance ele dá vida a um personagem que passa a ser um paradigma do movimento negro: o Oju Obá
Pedro Archanjo. Se Balduíno foi o primeiro herói negro de nossa literatura, do candomblé, foi acima de
tudo um socialista e sindicalista, Pedro Archanjo foi um herói negro autônomo, dedicado exclusivamente à
luta contra o racismo e portador de todo um conhecimento religioso, histórico, sociológico e antropológico
obtido
dentro
do
Candomblé,
pelo
mecanismo
próprio
da
iniciação.
Quando exerci a direção do CEAO/UFBA (1999-2003), A luta mais difícil e mais radical que enfrentei foi
contra a vetusta congregação da Faculdade de Medicina da UFBA. Eles insistiam em expulsar do prédio
da velha faculdade no Terreiro de Jesus o Museu Afro-Brasileiro, administrado pelo CEAO, uma criação
do babalaô acadêmico Pierre Verger. O verdadeiro líder de todos eles era o egun do Prof. Nilo Argolo que
buscava uma revanche contra Pedro Archanjo. Rejeitavam tudo que havia no Museu. Eram peças vindas
de África, da Europa e da Bahia. Para eles era tudo lixo. A pressão já estava em um grau insustentável.
Eles marcaram uma reunião conjunta entre a Congregação da Medicina e o CEAO, na qual
provavelmente se resolveria a questão. Eu tremi nas bases. Do nosso lado, somente eu, diretor, tinha
uma titulação completa. Era licenciado, era bacharel, era mestre e doutor, mas era sozinho. Do lado deles
certamente estariam uns dez doutores, ex-diretores, gente de poder. Por um momento pensei em ser um
Pedro Archanjo. Faltava-me legitimidade. O meu conhecimento era da mesma natureza do deles. Era um
simples 10 X 1. Reli a Tenda. Tive o bom senso de fazer uma romaria para a Senzala do Barro Preto para
pedir socorro a um verdadeiro Pedro Archanjo, Antonio Jorge dos Santos, o Vovô do Ilê Ayê, Obá de
todos nós. Não deu outra. Quando os doutos da congregação, todos fardados de jaleco, com um
estetoscópio pendurado no pescoço, mesmo os aposentados, me viram entrar com Vovô, eles tremeram
nas bases. Vovô foi perfeito, um verdadeiro Oju Obá. Educado, cerimonioso, falando com toda a
autoridade de um líder negro, rebateu com energia os argumentos dos médicos. Após isso, eles nunca
mais
nos
ameaçaram.
O
personagem
de
Jorge
Amado
vive!
Este depoimento é para materializar a minha convicção de que Jorge Amado é merecedor de todas as
homenagens do povo da Bahia.
Ubiratan Castro de Araújo
Da Academia de Letras da Bahia
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