REFLEXÕES DE CRIANÇAS A RESPEITO DO PAPEL DO
PROFESSOR NAS ESCOLAS DE INFÂNCIA
Ecleide Cunico Furlanetto - UNICID
Grupo de Trabalho –Educação da Infância
Agência Financiadora: CNPq
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo principal depreender os sentidos atribuídos
narrativamente por crianças (de 4 a 10 anos de idade) à escola e ao papel do professor. Partese do pressuposto de que as crianças são capazes de narrar suas experiências, refletir sobre
elas, e construir sentidos próprios a respeito de suas vivências. Dessa forma, essas crianças
contribuem com informações importantes para a formação docente e a renovação das práticas
escolares. Apresentamos, primeiramente, as referências que dão sustentação à pesquisa. Para
isso, dialogamos com pesquisadores que se dedicam aos estudos da infância, notadamente
Corsaro e Sarmento, e com quem desenvolve estudos a respeito da pesquisa narrativa, Galvão
e Passeggi, entre outros. Na sequência, descreve-se o traçado metodológico da investigação,
que se apoia em rodas de conversa realizadas com grupos de três a cinco crianças, que
frequentam a escola pesquisada. Finalmente, com base nos dados empíricos, discutem-se as
percepções das crianças sobre a atuação de seus professores. Observa-se que as crianças são
capazes de expressar seus pontos de vista sobre o desempenho do professor na sala de aula e
os sentimentos provocados por suas atitudes. As formas de ser do professor (características
pessoais) e seus modos de interagir com os alunos parecem impactar de tal modo as crianças
que se fazem perceber nas narrativas. Os dados mostram que quando o professor adota uma
estratégia de descontração e confiança, ele desperta sentimentos que estimulam a escuta e a
cooperação por parte das crianças. Quando, ao contrário, são utilizadas práticas educativas
coercitivas (gritos, castigos), elas provocam sentimentos de desconforto que afastam as
crianças do professor e consequentemente da escola, dificultando os processos de
aprendizagem dos conteúdos escolares e de atitudes mais autônomas.
Palavras Chave: Narrativas infantis. Pesquisa (auto) biográfica. Escolas da infância. Atuação
do professor.
_________________
*Professora da Universidade da Cidade de São Paulo; Pós-Doutora em Educação pela Universidade Autónoma
de Barcelona. [email protected]
ISSN 2176-1396
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O início do caminho
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
Manoel de Barros1
As sociedades contemporâneas vêm passando por inúmeras mudanças e nessa
perspectiva a visão de infância gestada no seio da modernidade também se encontra em vias
de transformação. Por muito tempo, as crianças foram consideradas invisíveis, reconhecidas
pelos adultos como seres incompletos e, portanto, incapazes de ocupar um lugar na ordem
social antes de se tornarem adultas e consideradas prontas para serem incluídas (CORSARO,
2011). Na modernidade esse quadro tendeu a se alterar e no dizer de Sarmento (2004), em
decorrência de uma institucionalização da infância, consequência de inúmeros fatores entre
eles destaque-se: a criação de instâncias públicas de socialização e a elaboração de uma gama
de saberes sobre a criança que passou a se constituir em objeto de conhecimento o que
originou uma série de normas, atitudes, prescrições a respeito da infância. Como fruto desse
movimento, a escola expandiu-se e universalizou-se, as famílias, por sua vez, reorganizaram
suas maneiras de lidar com as crianças, e os saberes disciplinares sobre a infância se
desenvolveram e ganharam autonomia. Nessa direção, a maior parte dos trabalhos produzidos
academicamente foi sobre a criança e não com as crianças o que resultou na desconsideração
e no desconhecimento de seus pontos de vista, Esses trabalhos focavam, preferencialmente,
no processo de desenvolvimento infantil, no que tange à Psicologia e no processo de
adaptação social das crianças no campo da Sociologia.
Mais recentemente, estudos realizados por diferentes autores que se dedicam ao
aprofundamento da temática da Infância nos quais se incluem: Sarmento (2004,2005); Pino
(2005); Cruz, (2008); Corsaro, (2009, 2011); entre outros, atestam que as crianças são atores
inseridos socialmente e não seres incompletos e imperfeitos em processo de vir a ser.
1
Disponível em: http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/. Acesso em:
10 de julho de 2015.
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Descrevem que a socialização na infância não se reduz somente à apropriação das culturas
adultas, mas implica, também, criação e transformação. Manoel de Barros, na epígrafe
introdutória, faz referência a essa capacidade infantil de fazer “peraltagens” com as palavras,
desmontando velhos sentidos e montando novos para elas. As crianças, além de brincar com
as palavras, brincam com os diferentes artefatos sociais rearranjando-os das mais diferentes
formas participando, dessa maneira, da (re)criação da cultura o que vai ao encontro do que
Sarmento (2005) diz, para ele, as crianças, são capazes de criar suas próprias culturas na
medida em que elaboram modos de significação do mundo e das ações que nele interferem,
distintos dos modos dos adultos. Dessa forma, as culturas infantis se apresentam como um
conjunto de ideias, atividades, rotinas que as crianças produzem e compartilham com seus
pares, produzidas na interação com as outras culturas da sociedade, entre elas a escolar.
O presente trabalho articula-se a uma pesquisa desenvolvida a nível Nacional
denominada: “Narrativas da infância: o que pensam as crianças sobre a escola e os
professores sobre a infância”2 que congrega instituições educacionais de municípios de quatro
estados da federação: Natal|RN; São Paulo|SP; Recife|P; Rio de Janeiro|RJ. O estudo em
questão deriva dessa pesquisa e assume como objetivo principal: depreender os sentidos
atribuídos pelas crianças de 4 a 10 anos sobre o papel do professor que atua nas escolas de
infância. Ele parte do pressuposto que as crianças são capazes de, ao narrar, refletir e
construir sentidos próprios a respeito de suas vivências e dessa forma contribuir com
informações importantes sobre a atuação e formação dos docentes que nelas trabalham
Narrando as crianças entrelaçam e significam suas experiências
No caminho, antes, a gente precisava
de atravessar um rio inventado.
Na travessia o carro afundou
e os bois morreram afogados.
Eu não morri porque o rio era inventado.
Manoel de Barros3
2
Coordenada por Profa. Dra. Maria da Conceição Passeggi – UFRGN financiada pelo (MICTCNPq|EditalUniversal-14/2014, processo nº 462119/2014-9). Por sua vez, a pesquisa articla-se a um projeto
internacional de investigação que congrega grupos de pesquisa de diferentes países, com o objetivo de colocar
em diálogo as significações construídas, narrativamente, pelas crianças acerca das escolas da infância,
coordenado por Martine Lani-Bayle, na Universidade de Nantes.
3
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_infantil/manoel_de_barros.htm. Acesso em 3 de julho de 2015.
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A pesquisa com a qual esse estudo está vinculado apoiou-se na abordagem qualitativa
por considera-la mais adequada aos objetivos propostos. Optou-se por utilizar a narrativa
como recurso de produção de dados e para isso partiu-se da premissa que o ser humano é um
ser contador de histórias por excelência, capaz de refletir e construir significados para suas
experiências. Para Passeggi et al (2014, p.89): “É importante salientar que as formas
narrativas existentes em nossa cultura são transmitidas de uma geração para outra.” Essa
transmissão se dá por meio da interação da criança com os adultos e com seus pares.
Ouvindo histórias sobre diferentes pessoas, com distintas perspectivas sobre o
mundo, emoções e intenções, em diferentes lugares e épocas, a criança vai tomando
consciência sobre seu próprio ponto de vista e existência situada num contexto
específico. Começa a entender que sua história começa bem antes do que consegue
lembrar, passando-se em lugares diversos, e se projetando para o futuro.
(BRANDÃO, SMITH, SPERB E PARENTE, 2006, p.12)
Ao narrar, a criança se percebe parte do cotidiano familiar, capaz de desempenhar
papéis nas histórias que se desenrolam ao seu redor e, também, de produzir sentidos próprios
para elas. Torna-se capaz, de contar o que lhe acontece e, dessa forma. Se insere no campo da
produção de cultura. A criança, é capaz também de inventar histórias e dessa maneira ela
interpreta e recria a realidade, penetrando no território do faz de conta ela inventa novos
mundos e Manoel de Barros, mais do que ninguém, é capaz de traduzir em palavras essas
viagens empreendidas por elas. Elas inventam carros, bois e rios e sobrevivem ás aventuras
porque tudo era inventado.
Cumpre salientar que os diferentes gêneros narrativos se apresentam como modos de
representação escolhidos por narradores para apresentar simbolicamente uma sequência de
acontecimentos articulados por um determinado tema e relacionados no espaço e no tempo.
Nessa perspectiva, as narrativas possuem um caráter social explicativo, pois refletem a
paisagem em que se vive, mas, também, um caráter individual, pois dizem dos sujeitos que as
contam. Ao narrar nos diz Galvão (2005, p.328): “vamos construindo um percurso individual
feito de cruzamentos de histórias que vivemos ou que ouvimos contar”.
O procedimento utilizado para a produção dos dados foi similar a uma roda de
conversa em que a naturalidade, a espontaneidade e as possibilidades de desenvolvimento do
imaginário da criança, aspectos privilegiados na pesquisa, puderam estar presentes. Tais rodas
foram realizadas em média com 05 (cinco) crianças, agrupadas em torno da mesma faixa
etária, elas foram gravadas em áudio e vídeo e, posteriormente, transcritas para constituição e
análise dos dados empíricos. A roda de conversa se organizou em função da presença de um
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ET, representado por um boneco que veio visitar a escola.4 O pesquisador pediu às crianças
que conversassem com o ET que desejava saber como era escola no planeta Terra, pois tinha
ouvido falar dela em seu planeta. A partir dessa consigna, as crianças foram estimuladas a
narrar suas experiências na escola.
Como foi explicitado anteriormente, o presente trabalho está integrado a um estudo
maior que entre outros objetivos, visou construir um banco de dados composto pelas
narrativas infantis coletadas nos quatro estados da federação. No presente estudo, voltou-se ao
banco de dados com vistas a investigar as significações construídas narrativamente por
crianças sobre o papel do professor nas escolas da infância. Para efeito desse estudo, foram
utilizadas as narrativas produzidas pelas crianças que frequentam a escola de São Paulo.
Contou-se para a análise, com dois grupos de crianças Um composto por crianças de 4 e 5
anos que estão na Escola Infantil e outro integrado por crianças de 6 a 10 anos que frequentam
as séries iniciais do Ensino Fundamental
A escola e o professor
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
Manoel de Barros5
Ouvir as crianças com atenção, procurar entender seus pontos de vista apresenta-se
como uma tarefa instigante. A todo o momento, elas surpreendem e provocam deslocamentos
na forma de olhar e pensar dos adultos e, nesse sentido, aproximar-se de suas narrativas
requer um cuidado todo especial em busca de preservar e amplificar seus olhares para o
mundo. Elas, como salienta Manoel de Barros, são capazes de fazer as palavras delirarem
quando possibiltam entre elas encontros e desencontros inusitados. As narrativas das crianças
provocaram os pesquisadores, inicialmente, a pensar a respeito da função social da escola.
4
O procedimento pautou-se em pesquisa realizada com a mesma metodologia (ROCHA E PASSEGGI, 2014),
Disponível em: http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/ Acesso em:
20 de julho de 2015.
5
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Para as crianças, a escola serve para aprender, isso lhes foi dito pelos adultos. Elas sentem-se
inacabadas, algo lhes falta e a escola pode contribuir para que o adquiram. Uma das crianças,
ao dar conselhos para o ET deixou claro: “Meu conselho pra ele é estudar bastante pra ser
alguém na vida”. Esse conselho, aprendido com os adultos, reflete uma percepção desses
últimos sobre a escola considerada, por muitos, em perspectiva econômica, uma instituição
social destinada a preparar os jovens para que tenham uma profissão e possam dessa forma
entrar para o mercado de trabalh.
As crianças ainda têm mais a dizer sobre a escola. Os pequenos da Escola Infantil já
sabem para que serve a escola: “é pra aprender coisas, porque senão, se chegar em casa sem
estudar, ai não vai conseguir aprender nada, então tem ir na escola pra estudar”. Os que se
encontram no Ensino Fundamental sinalizam que vão para escola: “Pra fazer lição, estudar
pra prova, aí depois nós crescemos e depois nós vamos aprendendo a ler e ajudando o filho”.
Uma delas complementa: “Ah! Pra mim a escola é legal, porque a gente aprende, a gente
estuda e aprende coisas novas. A gente não sabe o significado da palavra, aí, aqui na escola. A
professora vai lá e ensina pra gente o que é, pra mim a escola é muito legal”!
Os relatos dos grupos, além de mostrarem que as crianças sabem que vão para escola
para aprender, salientam que elas se sentem motivadas para entrar em contato com o novo.
Existe algo que as mobiliza e que as predispõem a descobrir. No dizer de Charlot (2000,
p.53), em perspectiva antropológica: “Nascer, aprender, é entrar em um conjunto de relações e
processos que constituem um sistema de sentido, onde se diz quem eu sou, quem é o mundo,
quem são os outros”. É possível dizer que aprender é próprio do humano, pois a natureza
acabou a maior parte de suas obras, mas deixou ao homem a difícil tarefa de se concluir e isso
é sabido pelo homem.
No entanto, as crianças além de incorporar a visão dos adultos a respeito da escola são
capazes de construir sentidos próprios para ela e, nesse sentido a escola é, também, um lugar
para brincar e fazer amigos. Um dos pequenos disse: “na escola eu encontro os meus amigos,”
os maiores confirmam os que seus colegas menores disseram: “Eu acho a escola legal porque
a gente brinca com bastantes amigos e em casa a gente quase não tem ninguém pra brincar, e
a gente, também, aprende várias coisas”. Outro explica: “A escola é muito legal porque as
professoras ensinam outras coisas que a gente não sabe e também aqui tem bastante criança e
a gente pode fazer amizade, essas coisas”.
Cabe destacar que ao falarem do que mais gostam na escola, os pequenos são
unânimes em dizer que gostam de brincar: “Eu gosto de brincar no parquinho, na quadra e de
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história”. Os maiores não dizem explicitamente que gostam de brincar, mas ao se verem
estimulados a falar dos espaços que mais gostam na escola fazem referência àqueles nos quais
é possível brincar e a sala de aula não está incluída entre eles. Destacam: a quadra e o solário,
espaços segundo eles em que: “a gente pode brincar e não fica preso”. Também dizem gostar
da sala de informática onde: “A gente brinca, pesquisa e essas coisas”. Por meio de suas
narrativas as crianças vão revelando que o aprender vai ficando aprisionado na sala de aula,
enquanto o brincar vai sendo empurrado para fora dela. (FURLANETTO, GOMES, e
PASSEGGI, 2014) Parece existir na escola uma cisão entre e aprender e brincar que vai
aumentando com o decorrer do processo de escolarização.
Ao contar suas experiências na escola, as crianças teceram comentários sobre o papel
do professor. Para elas, ele cumpre um papel importante nos processos de aprendizagem. Para
os pequenos da Escola Infantil: “Eles ensinam a fazer lição difícil e ainda ajudam a fazer
coisa fácil”. O professor parece assumir a função de um mediador que circula no “espaço do
entre” entre as crianças e os objetos de aprendizagem e isso se torna visível quando dizem: “é
muito difícil fazer coisa difícil e não dá pra fazer e alguém tem que ajudar.” O professor
circula, também entre as próprias crianças mediando suas relações, pois necessitam do
professor para ajuda-las a interagir com os colegas em meio a disputas e brigas. O professor é
aquele que coloca limites estabelece regras de convivência quando necessário, isso fica
explicitado em suas narrativas: “Não pode brigar e se brigar não vai brincar com o
brinquedo”.
Os alunos do Ensino Fundamental, como seus colegas menores, consideram o
professor responsável por ensinar: “A escola é muito legal porque as professoras ensinam
outras coisas que a gente não sabe”. Dizem que a escola: “É legal! Porque aqui a gente pode
aprender coisas que em casa a gente não aprende”. Para essas crianças, a professora continua
sendo aquela que ensina, mas também coloca limites e pune: “A professora sempre fala pra
gente: é na hora da recreação que a gente conversa, se conversar na sala a gente fica sem
recreação”. Ao contarem para o ET como é a escola na Terra, avisaram que na escola é
necessário se comportar pois caso contrário: “pode tomar advertência, ocorrência e
suspensão”.
Com o decorrer das conversas, as crianças foram tentando explicitar como o professor
deve ou não agir contrapondo o que com consideram um bom professor a um professor que,
sob seus pontos de vista, age de forma inadequada. Para aqueles que se encontram na Escola
Infantil a professora; “tem que ser muito boazinha porque as crianças não sabem fazer nada.
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Os bebes não conseguem fazer nem lição.” As crianças nos contam que é necessário ter
paciência com quem está aprendendo e acolher não só o saber como o não saber e para isso é
necessário que a bondade se faça presente nas relações de aprendizagem.
Os alunos da Escola Infantil mostraram, também o que não gostam na professora:
“Não gosto quando ela fala com a gente gritando.” E outra completou: “eu também não gosto
que ela brigue” As crianças sentem-se incomodadas com a professora que briga e grita e não
parecem concordar com práticas educativas coercitivas aceitas culturalmente. Para alguns
adultos, é permitido gritar, brigar e colocar de castigo e até bater em crianças.
Numa tentativa de explicar o que é o bom professor, uma aluna do Ensino
Fundamental fez um comentário que merece destaque: “Eu gosto de professor que tem muito
cuidado pra não me machucar.” No contexto da pesquisa não foi possível saber a que tipo de
machucado ela estava se referindo, se falava de machucados físicos ou se referia a
machucados de ordem simbólica? No entanto, fica claro que ela considera ser possível uma
criança ser machucada na escola, não somente por seus pares, mas também pelos professores.
Um adulto pode machucar uma criança de diferentes formas: agredindo-a física ou
verbalmente, mas também a abandonando, ignorando suas necessidades e essas crianças
mostram-se capazes de reconhecer quando isso acontece. Elas parecem saber que é necessário
o professor estar presente na relação com elas para poder agir com cuidado e respeito.
Na sequência, uma delas disse gostar muito do professor de Educação Física. A
pesquisadora pediu para que ela explicasse o porquê e ela prontamente respondeu: “Porque
ele é muito lindo”. Mais uma vez, não se tem como saber o que significa ser lindo para essa
criança, A beleza é somente um atributo físico, ou também está relacionada às atitudes do
professor? Essa criança com sua afirmação abre espaços de pensamento. Ela provocou pensar
na dimensão estética da docência, salienta algo que Freire (1997) deixou claro em sua obra:
não pode haver aprendizagem longe do encontro, da boniteza e da alegria.
As crianças do Ensino Fundamental foram mais além na tentativa de explicar o que é
um bom professor, deram exemplos para deixar bem claro o que estavam querendo dizer:
“Quando você está fazendo uma lição, exemplo, você está conversando com seu amigo, aí ele
fica brigando com você, pra parar de conversar, o professor é legal quando você está
conversando ele fala: - Para de conversar, por favor! Já o professor bravo dá gritos com
você”. O grito e a braveza do professor parecem incomodar os alunos do Ensino
Fundamental. eles têm clareza, como seus colegas menores, que não gostam de professores
bravos: “É porque têm alguns professores que são bravos e a gente não gosta muito.” O bom
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professor para eles: “não seria bravo e tinha que ser alegre com as crianças.” A alegria é
resgatada pelas como um elemento que se contrapõe a braveza e, consequentemente, deve
transformar o clima de sala de aula. No dizer de Bolsoni-Silva e Mariano (2014), os
professores se apoiam em práticas educativas coercitivas nas escolas quando se sentem sem
alternativas frente aos comportamentos dos alunos. No entanto, a revisão de literatura e a
pesquisa, ambas realizadas pelas autoras acima citadas, mostram que as práticas educativas
coercitivas tendem a aumentar, ao invés de diminuir, comportamentos inadequados por parte
dos alunos. Ao contrário, se o professor mantiver a calma, der atenção aos alunos, ajudá-los a
resolver os conflitos que afloram na interação com outras crianças ou mesmo durante a
realização de atividades pedagógicas, os problemas de comportamento que prejudicam o
andamento das rotinas escolares se atenuam. As crianças se aproximam das pesquisas ao
dizerem o que mudariam na escola, uma delas explicitou: “Eu mudaria o professor e outra
completou: “Eu acho que todos aqueles professores que só deixam de castigo.” Essa
afirmação confirma que as crianças são capazes de refletir sobre suas experiências na escola e
podem pensar em possibilidades de transformação do contexto em que vivem.
Continuaram dizendo ao se referir ao professor: “Se ele quiser fazer brincadeiras, tem
que pegar todas as crianças para fazer e não tirar uma e deixar fora, mesmo que ela tenha feito
bagunça, tem que dar uma chance pra ela.” Além do professor não ser bravo na perspectiva
das crianças é necessário que não exclua nenhum aluno das atividades, mesmo aqueles que
não se comportam de acordo com o esperado. Um aluno citou a Profa. Helena 6 como exemplo
de boa professora: “Ela quase nem da bronca. Quando ela dá bronca, a bronca dela é
explicando como faz. Um outro complementou: “Ela brinca na sala”. Para os maiores a
bronca, o grito parecem prejudicar a qualidade de comunicação e também o vínculo entre o
professor e alunos. As crianças parecem saber que os limites são necessários, pois quando
colocados adequadamente proporcionam segurança e até mesmo protegem as crianças de
viver situações nas quais as emoções não sejam expressas de forma estruturante e moderadas.
O grito do professor parece ser um sinal de que a situação se encontra fora do controle, nem
os alunos e nem o professor estão sendo capazes de encontrar uma saída para os conflitos que
estão constelados na relação entre eles e dessa forma só resta gritar, pois simbolizar ou seja
traduzir em palavras o que estão sentindo e pensando não está sendo possível no momento.
6
Personagem da novela infantil Carrossel, exibida pelo canal SBT
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Considerações possíveis
"Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica
nem com balanças nem barômetros.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento
que a coisa produza em nós."
Manoel de Barros7
O olhar dos pesquisadores para as narrativas infantis possibilitou, inicialmente, que
eles se encantassem com elas e dessa forma demostraram o seu valor, pois na sua
simplicidade e singeleza explicitavam como as as crianças percebem a escola e a atuação dos
professores nesses espaços. Foi possível observar que as crianças são capazes de refletir sobre
suas vivências na escola e sobre os sentimentos que elas despertam. Para isso, apoiam-se no
que a cultura dos adultos disponibiliza, mas, também, constroem sentidos próprios para o que
vivem. Elas sabem que vão para a escola para aprender e concordam com isso, mas a escola
significa mais para elas, pois nela podem fazer amigos e brincar com eles.
Fica claro que a maneira de agir dos professores em sala de aula impacta os alunos
que frequentam as escolas de infância e, frente a isso, eles respondem, com os recursos de que
dispõem. Quando o professor adota uma estratégia de descontração e confiança parece
despertar sentimentos que estimulam a escuta e a cooperação por parte das crianças. Ao
explicar como é a professora que consideram “legal” se utilizam de exemplos tais com: “a
professora legal” é aquela que pede silêncio brincando e não brigando, pede por favor e não
exclui e nem segrega. Na perspectiva das crianças, o bom professor parece ser aquele que
estabelece um clima agradável em sala de aula alimentado pela alegria e pela ludicidade.
O professor, ao respeitar a alteridade da criança e sua capacidade de refletir, sentir e
de se posicionar, abre espaços para que a criança não somente reaja a ele e àquilo que ele
representa, mas interaja com ele e com os conteúdos a serem aprendidos e possa dessa forma
construir sentidos próprios para suas vivências, por meio do que lhe é próprio a capacidade de
brincar, de penetrar no mundo do faz de conta que se potencializam na interação com as
outras crianças.
7
Disponível em http://veredasdalingua.blogspot.com.br/2011/09/eu-escrevo-com-o-corpo.html Acesso em 2 de
agosto de 2015.
27611
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