História, imagem e narrativas
No 21, outubro/novembro/2015 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Tempo Desabitado: Ensaios Sobre a Vivência e a Experiência na Academia
José Aparecido Celorio,
doutorando, UFPel, PPGE
[email protected]
Richard Gonçalves André
Professor doutor, UEL, CCH/HIS
[email protected]
Resumo
Vivemos um tempo múltiplo, promulgado pelo modo como vivemos e concebemos a vida e pelo valor que
atribuímos a esta ou aquela prática. No intuito de abrir um diálogo sobre o tempo, refletimos se o tempo vivido
em nosso trabalho universitário possibilita não apenas a vivência, mas a experiência, permeada pela reflexão.
Ultrapassar o ritmo frenético das produções acadêmicas parece ser possível mediante a adoção de um tempo que
traga ao cenário universitário uma prática que reúna o rigor e a imaginação, de modo que os nossos trabalhos
sejam mais identificados com a nossa história de vida, menos reprodutíveis e mais originais, que contemplem
não apenas a escrita metódica, mas também a escrita poética como modo de construir e divulgar os saberes.
Palavras-chave: Tempo. Vivência. Experiência. Ciência. Pesquisa.
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Podemos dizer que as diferentes construções sobre o tempo perpassam culturas
situadas em contextos históricos variados: seja pelo assombro diante da physis, seja pelo
despertar do ser humano diante de sua finitude, o tempo tem sido representado de formas
múltiplas, ora contraditórias, ora antinômicas. Talvez por isso, não iremos nos aventurar em
dizer o que é o tempo. Afinal, ele existiria para além dos seres que o pensam e o sentem?
Nossa preocupação inicial é: como o tempo vivenciado em nosso trabalho na universidade
nem sempre pode ser considerado como um tempo experienciado; o tempo de nossas
produções, nosso trabalho, como pessoas que pensam o conhecimento, geralmente é apenas
vivenciado, dificilmente marcado pela experiência e pela reflexão. É na esteira da vivência e
da experiência que pretendemos dialogar sobre como o conhecimento, diante das variações
temporais em que vivemos ou da face plural do tempo, pode ser construído, desconstruído,
pensado e repensado e imaginado.
Nossa tarefa não se resume apenas em construir conhecimentos, em fazer ciência.
Como uma missão, como professores-pesquisadores – seguidos ou não por nossos alunospesquisadores – também precisamos acompanhar a construção e a desconstrução dos saberes
ao longo da história, para podermos visualizar não apenas as fusões que deram origem a
novas perspectivas sobre a natureza e a humanidade, mas também a insurgência de
pensadores e pensamentos que abriram brechas que lançaram a humanidade em outros
territórios do olhar, do sentir e do viver. Para além da compreensão, a alteridade nos oferece
possibilidades de experiências que transcendem as nossas. A desconstrução está na coragem
de pensar o pensamento, de rever o modo como abraçamos uma teoria e a crença que
atribuímos a ela, que, muitas vezes, pode ser a nossa própria pretensão em abarcar a
totalidade. Essas ações e esse acionamento teórico ocorrem em um determinado tempo, ou
melhor, cada face do tempo proclama um gesto e um olhar específico sobre o nosso trabalho
no mundo da universidade ou no mundo dos saberes. A especialidade de cada face nos carrega
ou para uma vivência solitária, ausente dos dramas e das tramas de um viver singular-plural
(JOSSO, 2010) ou para uma vivência experienciada, de um viver engajado na existência que
nos torna originais, mais cônscios do que somos, do que pensamos e do que sentimos e, por
isso, mais aptos a nos relacionar com um saber sem que estejamos completamente absortos de
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nossa própria história de vida, individual e coletiva. É, de alguma modo, buscar aquilo que
nos enraíza no mundo plural e criador.
É dessa maneira que acreditamos que toda a experiência é experiência porque toca em
algum ponto de nossa história; todo o saber faz sentido para nós porque faz emergir em nós
significados; toda a abordagem de um saber – ou mesmo um novo saber – é original quando
concebido no corpo caloso do mundo que faz da nossa existência um intercâmbio entre uma
história pessoal e uma imagem coletiva. Ou, em outras palavras, a originalidade é medida a
partir do grau de experiência que temos diante do que estudamos e pesquisamos. Cabe,
portanto, perguntamos, qual seria o tempo necessário para que a vivência também seja
experiência.
A nossa prática atual, na universidade e também na escola, parece não caber mais no
tempo em que vivemos. É comum ouvirmos de colegas e de alunos que o tempo se esgota
rapidamente, que o tempo "voa", resultando em tarefas não cumpridas, sonhos não realizados
e projetos inacabados. É o tempo da insuficiência, como se ele, o tempo, não coubesse nele
mesmo. Há pouco, afirmamos que não nos cabe apenas fazer ciência. Por mais que os
paradigmas científicos tenham passado por mudanças desde o século XVII até a atualidade,
de Bacon a Hawking, é válido questionar se, de fato, fazemos ciência hoje, principalmente nas
universidades, lócus teoricamente privilegiado para a construção sistemática do
conhecimento. O ritmo de produção industrial parece ter adentrado na esfera acadêmica, de
modo que os saberes têm sido produzidos de forma cada vez mais rápida e em maior escala.
Professores e alunos de pós-graduação precisam produzir certa quantidade de artigos em
determinados períodos, prescindindo do tempo de maturação necessário para “ruminar”
conhecimentos, utilizando a expressão de Nietzsche (1999), e não engolir pedras de saber. E,
além disso, os materiais têm sido rankeados por meio de classificações, como os Qualis, cujos
critérios são no mínimo discutíveis... sendo esquecido que Qualis teoricamente deriva da
expressão “qualidade”. Todavia, como já havia percebido Max Weber (1982), o tempo para a
produção do conhecimento é vagaroso, reflexivo, quase estático. É cheio de idas e vindas,
insights e hesitações, pistas e becos sem saída. Não coincidentemente, um movimento
originado na Alemanha, o Slow Science, defende fazer a ciência em seu ritmo, que se
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assemelha mais a um balé circular que a uma corrida de curta distância. Entre Botafogo e
Bolt.
Sem ignorar os debates sobre as novas tecnologias, se afetam ou não a insurgência de
um tempo fugidio (ver SILVA, 2015), parece-nos mais adequado rever em nosso cotidiano as
escolhas que fazemos, sobretudo as escolhas que afetam diretamente o tempo. Ou, ainda,
pensar o próprio tempo como um construto a partir do ritmo que decretamos para a nossa
própria vida. Antes de ficarmos lamentando o fim de uma época ou fase histórica,
supostamente – sempre – melhor do que a atual, seria interessante vestirmos a máscara do
deus Janus e, simultaneamente, olhar para trás e para frente, com a intenção de ativar o
pressentimento de que os nossos pés estão amarrados em raízes arquetípicas. É assim que "se
pode apreciar o presente como garantia do que deve advir no futuro" (MAFFESOLI, 2015, p.
44).
O tempo não é "apenas a sua contabilização, sua quantificação, sua média, mas
também sua afinação, seu ritmo, sua qualidade, seu sentido" (PINEAU, 2004, p. 13). Por isso,
para além do tempo que marca sem piedade os nossos passos, alentamos outros tempos, dos
quais certa musicalidade possa vir à tona para abrandar os ruídos ensurdecedores de uma
rítmica desfeita pela miséria da irreflexão.
As faces do tempo
O enfrentamento entre o ser humano e as faces do tempo, entre a vida e a morte, foi
responsável por criar todo um imaginário coletivo e individual que repercute constantemente
em nossas vidas. A imaginação humana produz imagens que se organizam de tal forma a
permitir aos homens e mulheres construírem suas vidas, mesmo diante da iminência do fim.
Não seria um temor da morte, somente, mas, fundamentalmente, um modo de se manter vivo
por mais tempo. Isso se forma, seja pela via de uma face diurna, marcada pela racionalização
da vida ou mesmo pela busca de explicações e causas que podem enfraquecer a nossa
tendência ao perecível; seja pela via da face noturna, marcada pela busca da compreensão e
pautada por uma razão sensível que integra as nossas sensibilidades às sensibilidades do
mundo (DURAND, 2004). No entanto, a educação ocidental (formal e não formal) da qual
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somos herdeiros, foi sendo construída a partir de uma base monoteísta, promotora de uma
visão unilateral do mundo. Aprendemos que o caminho mais seguro é aquele feito sob a luz
do sol, que a salvação se encontra num deus único e eterno e de que uma única crença deve
ser adotada por todos. Além disso, deus encontra-se fora de nós, constituindo uma entidade
pertencente à esfera dos objetos, devendo ser cultuada numa atitude de extroversão e não de
introspecção, como no caso das religiões orientais (JUNG, 2012). E a vida penumbral? E a
escuridão dos vales? Onde se aloja essa dimensão noturna em nossas vidas? A natureza
humana, como diz Carl Gustav Jung (2012, p. 29) "não é constituída apenas de pura luz, mas
também de muita sombra [...]", por isso, esse lugar escuro da vida, é guardião de
potencialidades criadoras, é sede de um mundo a ser descoberto, mas por ter sido ocultado
pelo fascínio apolíneo, acabou por se tornar lugar da derrota, do mal e daquilo que precisa ser
afugentado para que a paz seja alcançada. É isso o que acontece quando apenas um polo do
imaginário prevalece. O efeito perverso disso – na esfera coletiva e individual – não é
decorrente apenas do excesso de luz, mas da ausência de sombra. É no emergir das forças
escuras que encontramos poderes que estão para além do ego. Coletivamente, é revendo a
profundidade do passado – um presente remoto – que a humanidade descobre forças para
além do pensamento único que tem dominado a concepção de existência da maioria das
pessoas. Ao descer até o vale, encontramos a multiplicidade da alma, seu jogo de faces que
torna a vida uma dinâmica e dita um ritmo que proclama uma vida politeísta – de muitas
potências, de muitos caminhos e de muitas moradas. Essa dinâmica é criadora, pois afasta o
mesmo e atrai o diferente, acolhe o outro como um rosto irmão e faz do mundo um lugar de
comunhão.
O tempo de Kronos e o tempo de Kairos
A cada instante somos devorados por um tempo que parece não respeitar os nossos
ritmos, as nossas biologias e as nossas necessidades reflexivas. O tempo do relógio é "para o
homem o que a coleira é para o cão: o instrumento de domesticação" (PINEAU, 2004, p. 14),
e esse instrumento, para muitas pessoas, acabou por se tornar um objeto de culto. De forma
semelhante, o tempo, representado pelo relógio, também pode se tornar um objeto de culto.
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Enquanto é objeto de culto, esse tempo freia qualquer ação de cultivar essencialidades, ou
seja, de cultivar aquilo que nos diferencia dos demais, daquilo que nos é genuíno e nos faz ser
um ponto formador na teia da diversidade.
Desde, pelo menos, o Iluminismo no século XVIII, temos supervalorizado uma
categoria particular de tempo: a teleologia ou a escatologia. A duração, única e retilínea,
marcharia para uma finalidade embalada pelo ritmo do progresso, ironicamente ridicularizada
por Voltaire, homem das luzes, por intermédio de seu personagem Panglos, que acreditava
que tudo sempre caminharia para o melhor. Esse thelos ou finalidade tem perpassado a
história da filosofia em forma de filosofias da história, que concebem um sentido histórico a
priori: a natureza kantiana, o espírito universal hegeliano, a sociedade positiva comtiana e o
comunismo marxiano (GARDINER, 1984), em suas diferentes epistemologias idealistas e
materialistas que oscilam do sótão ao porão e vice-versa, são teorizações desse tempo que
deveria avançar para um futuro utópico, hoje convertido em distopias nas representações
televisivas pós-apocalípticas. De qualquer forma, no Ocidente o passado tem sido esquecido
ou convertido em cinzas em nome de um porvir reluzente, como alegorizado por Paul Klee no
quadro Angelus Novus, no qual um anjo avança para o futuro a partir das cinzas de um
presente que acabaria de se tornar passado. Entretanto, o progresso não é uma ideia natural,
como, de resto, qualquer ideia: no Japão e na China até o século XIX, o ideal de tempo era
estático, sem avanço ou recuos, como prescrevia a moral confucionista voltada para a
estabilidade social (BUCCAILLE; PESEZ, 1989).
Se, por um lado, o tempo de Kronos, esse tempo na sua face diurna (e não parece
coincidência que o símbolo iluminista seja justamente a luz), estanca boa parte do sangue que
vitaliza a nossa existência, definindo caminhos e metas padronizadas para todos, também nos
silencia, na sua face noturna, obrigando-nos a pensar o pensamento, a olhar o que vemos e a
sentir o que presenciamos. O tempo do Kronos-diurno é o tempo da fábrica, da indústria, da
produção em série, dos relógios e das sirenes; o tempo do kronos-noturno é o tempo interno –
nosso biorritmo –, é o tempo da alma, da flexão sobre si e sobre o outro, é o tempo marcado
não pela rítmica dos ponteiros, mas pelo ritmo dos desejos, daquilo que nos liga e nos religa
ao mundo. É o tempo (quase um não tempo) da introspecção, do mergulhar no universo
sombrio do ser, do perder-se no vazio do espaço e do tempo, como sugere a meditação Zen
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(SEKIDA, 2008). E afinal, como interpretou Jung (2005) no prefácio do livro de Daisetz
Teitaro Suzuki sobre o Zen, é mergulhando nas sombras que se encontra a iluminação. Não
aquelas das luzes ocidentais, mas da completude do ser cuja persona aceita e abraça sua
sombra, transcendendo as dicotomias e despertando o poder das antinomias1 .
No entanto, ressalvamos que tanto a predominância de uma face ou outra é inadequada
e pode ser prejudicial para a existência. Se nos centrarmos apenas sob os auspícios das horas
mecânicas, podemos perder de vista as imagens intemporais da nossa psique, se nos
centrarmos apenas sob as horas desfeitas pelas brumas noturnas, corremos o risco de perder o
rigor e a precisão, fundamental para o discernimento e o bom senso. Como diz Bateson (1986,
p. 223), "a rigidez sozinha é morte paralítica, mas a imaginação isolada é insanidade".
No entanto, é a nossa capacidade imaginativa que consegue essa equilibração entre
esses polos (DURAND, 1988), é o que pode aliar os ritmos solares – as certezas – com os
ritmos lunares – as incertezas. A imaginação é "de verdade extraordinária; não importa quão
conhecida, é sempre capaz de surpreender, chocar, horrorizar ou explodir em estonteante
beleza" (HILLMAN, 2010, p. 111). Nesse sentido, recuperando a ideia de estrutura
disseminatória de Gilbert Durand (1988), é possível instaurar, por meio da imaginação, uma
razão hermesiana capaz de fazer dialogar os polos de modo que haja uma vivência e uma
experiência do claro-escuro da vida. Em vez da corrida ou do repouso, é preciso buscar a
dança, o entrelaçamento entre esses dois movimentos, que recupera a temporalidade cósmica,
na qual estamos inseridos. É como se nós voltássemos a viver o calendário na forma como foi
concebido tradicionalmente: um modo de experienciar a relação entre os ciclos dos céus com
os ciclos da terra. Antes de ser um regulador do tempo quantitativo, consultava-se o
"calendário para conhecer os momentos de culto e as festas e para saber o tempo propício
para este ou aquele empreendimento" (BÄUMER, 1975, p. 97). Estamos, portanto, também
no terreno de Kairós, essa temporalidade em que se
celebra a 'justa medida' do agir técnico, que não pode se perder na dilatação ilimitada do
tempo, como ocorre na projetualidade utópica ou na esperança salvífica, mas deve contrair-se
1Segundo
Jung, a persona seria uma máscara social, uma personagem criada pelo indivíduo com o intuito de
construir uma autorepresentação perante o outro. Em contrapartida, a sombra diz respeito aos conteúdos que
repousariam no inconsciente pessoal, alimentado, por sua vez, por elementos do inconsciente coletivo (JUNG,
2015).
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naquele 'tempo oportuno', no qual há uma justa medida entre o objetivo antecipado e os meios
que naquele momento estão disponíveis" (GALIMBERTI, 2006, p. 39).
Essa ideia do tempo oportuno nos remete à concepção astrológica de que todo o tempo
tem uma qualidade, que pode ser mensurada por meio da análise das configurações celestes.
Com a prevalência do tempo das fábricas, que reduz os tempos ao tempo da produção, e, por
conseguinte, ao tempo do consumo, a qualidade do tempo começou a perder espaço para a
quantidade do tempo. A reflexividade, fundamental para a construção e desconstrução de
conhecimento, dá-se por meio da qualidade do tempo e de suas fruições. É preciso dançar,
portanto! Da mesma maneira, podemos dizer que a formação humana se dá na esfera de uma
espera salutar, por isso também propicia uma autoformação, uma reflexividade sobre o
próprio processo de aprendizagem e da própria existência. Essa qualidade que nos abre para a
vivência e a experiência do tempo se dá ao recuperarmos em nós mesmos a força poética que
reside em nossa psique, para que a nossa existência seja devolvida aos braços da alma do
mundo, para que o tempo possa ser novamente habitado pelas nossas instâncias arcaicas.
Assim, precisamos aprender com os poetas e com os neuróticos, pois
El poeta y el neurótico - es muy lamentable - son los únicos que experimentan 'normalmente' el
tiempo vivido, y que sacian la sed de su alma en las fuentes eternas del mito. Todos los demás
se han acostumbrado al reloj y al espacio homogéneo como si realmente existieran. Pero
profundamente dentro de nosotros reposan los viejos tesoros, los antiguos monstruos y los
antiguos dioses, el inferno y el paraíso (LEEUW, 1970, p. 202).
Se na universidade é o conhecimento científico que precisa ser construído, em nosso
caso, o das ciências humanas, como ficam os demais conhecimentos tão caros à cultura
humana, como, por exemplo, a literatura, a poesia, a música e a pintura? Esses assuntos,
apesar de serem tratados no âmbito acadêmico, o que acaba prevalecendo é o teor lógicocientificista que está na base das análises. Utilizando uma imagem talvez arquetípica, sob as
luzes brilhantes da lógica, residem esses conteúdos sombrios cujas demarcações são difíceis,
fugidias e plásticas demais para uma amostra que pode ser circunscrita numa placa de metal.
Afinal, é difícil colocar Dostoiévsky num tubo de ensaio. Nas universidades, não é incomum
um senso comum segundo o qual a loucura (aquela de Leeuw) encontra-se nos centros de
ciências humanas, como se na alma dos cientistas exatos e aplicados, para utilizar categorias
comuns no meio acadêmico, não pudesse residir alguma chama desse delírio. Quer matar a
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força poética ou a força literária? Defina sua essência, tente perscrutar algo que opera em
outra lógica. A universidade, como espaço de saberes, poderia abarcar o conhecimento
produzido pelo ser humano e inseri-lo em um debate maior que é saber o papel deles na
construção de um mundo onde todos possam viver em relações construtivas e duradouras,
pautadas pelo respeito e pela diversidade. No entanto, o que vemos são trabalhos produzidos
em série, que seguem determinadas normas que os tornam ainda mais reprodutíveis. São
trabalhos que possuem rigor, mas são duros, conservadores e seguem um padrão geral
adotado em boa parte das universidades, principalmente por aquelas que ocupam um espaço
mais ou menos hegemônico no campo acadêmico. Aquilo que mencionamos anteriormente, a
falta de originalidade, de toque pessoal, de engajamento em um objeto de pesquisa (e aqui a
palavra “objeto” é emblemática) que toca o pesquisador de algum modo, é sintoma de falta de
poética e sensibilidade nas escritas científicas, inclusive nas pesquisas produzidas nas ciências
humanas. E o que isso tem a ver com tempo? Essa padronização dos trabalhos, e aqui não
estamos falando somente de normas técnicas, mas da maneira como eles são feitos e
pensados, adequa-se perfeitamente ao tempo da fábrica, ao tempo do Kronos-diurno,
marcado, sobretudo, pelo rigor técnico e metodológico. O tempo linear, do relógio, que regula
a vida acadêmica, exige uma pesquisa linear, feita em quantidade, mas não necessariamente
em qualidade. A reflexão perde espaço para a irreflexão. Por isso, atrelar rigor e imaginação é
salutar para promover pesquisas que estimulem a vivência e a experiência como modus
operandi de fazer ciência. Talvez assim, consigamos viver e experienciar um tempo que nos
faça ultrapassar o ritmo frenético das produções (ou reprodução) acadêmicas e no mesmo
instante, andar por um tempo em que o ritmo seja marcado pela qualificação e reflexão, não
pela mero ranking de produtividade tão vigente e preponderante nos espaços acadêmicos. Em
outras palavras, é poder, novamente, habitar o tempo ainda desabitado.
Referências
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