SOBRE O CONTATO VIA INTERFONE
ENTRE ADVOGADO E CLIENTE PRESO
12
Como é notório, diversos estabelecimentos carcerários do País só têm permitido o contato entre advogado e cliente através de interfones, sempre colocados à disposição numa sala separada ao
meio por uma parede que contém diversas janelas de vidro, pelas quais ambos
podem se ver. Para que a comunicação
não se dê por outro meio, há isolamento
acústico.
Esta prática, que vem se tornando cada
vez mais usual nos presídios brasileiros(1), fere de morte o sagrado e constitucional direito de defesa dos acusados presos, afrontando, ainda, o texto expresso
da Lei de Execução Penal e do Estatuto
da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ciente de que o Estado só tem sentido
se for voltado para o bem estar do ser
humano (art. 1º, III, CF), a Carta Política
institui inúmeros direitos e garantias individuais de forma irrevogável (art. 60, § 4º, IV).
Dentre eles, para o que nos interessa,
estão o devido processo legal (art. 5º, LIV),
que pressupõe a garantia do contraditório
e da ampla defesa (art. 5º, LV) a todos os
acusados, principalmente num processo
penal, que lida com um dos mais fundamentais direitos humanos: a liberdade.
O contraditório, como é cediço, tem
como elementos essenciais a necessidade de plena informação e a possibilidade
de reação. Aquela consubstancia-se na
obrigação de que cada uma das partes tenha efetiva ciência da acusação, de todas
as provas constantes dos autos, dos atos e
termos processuais, enquanto esta na necessidade de previsão legal que possibilite a resposta da parte adversa(2).
Por outro lado, a ampla defesa consiste na garantia conferida ao acusado de
trazer para o processo todos os elementos necessários para esclarecer os fatos e
construir a reação à imputação. Para
Rogério Lauria Tucci, consolida-se referida garantia quando ocorrer, “seja qual
for o processo, a conjugação de três realidades procedimentais, a saber: a) o direito à
informação (nemo inauditus damnari
potest); b) a bilateralidade da audiência
(contraditoriedade); e c) o direito à prova
legitimamente obtida ou produzida (comprovação da inculpabilidade)”(3).
Para que se façam concretas ambas as
garantias, portanto, é necessário que o
acusado tome pleno conhecimento da
imputação que contra ele pesa desde o
início da investigação e, da mesma forma, possa contrariá-la, no momento
oportuno, de forma efetiva. E isto se faz
por meio de seu advogado que, para tan-
to, deve com ele comunicar-se plenaNão é à toa, assim, que se utilizaram
mente.
os termos entrevista pessoal e reservada:
Visando dar concretude a tais garan- previu-se, para que não pairem dúvidas
tias, o Constituinte previu, em seu art. acerca do sigilo da conversa, um modelo
133, que “O advogado é indispensável à ad- que simplesmente impossibilita por
ministração da justiça” e garantiu, a todos completo que qualquer outra pessoa, por
que não puderem arcar com a própria qualquer meio, tome conhecimento de
defesa, a prestação de “assistência jurídica seus termos.
integral e gratuita” (art. 5º, LXXIV).
Neste sentido, além de ser óbvio que
Para a delicafalar ao interfone
da situação danão é entrevistarComo se vê, toda a legislação
queles que se ense pessoalmente,
ordinária criada em torno das
contram presos,
desnecessário digarantias constitucionais visa
foi ainda mais
zer que tal conlonge, deixando
versa, realizada,
resguardar o sigilo e,
expresso ser-lhe
por exemplo,
principalmente, na prática,
“assegurada a asdentro das desistência da famípendências da
deixar os interlocutores à
lia e de advogado”
Polícia Federal(5),
vontade para debaterem sobre
não tem o con(art. 5º, LXIII).
tudo o que for preciso para
dão de deixar
Complemenqualquer dos intando e tornando
elaborar uma ampla defesa.
terlocutores seconcreto o sistema de garantias aos acusados, a LEP pre- guros para falar o que bem entender.
Afinal, se não se pode dizer que a insvê que todo o recluso, ainda que cautelar
(art. 2º, parágrafo único), tem o direito talação de tais aparelhos se preste para a
de “entrevista pessoal e reservada com o finalidade temida, também não é menos
certo que, de fato, a interceptação pode
advogado” (art. 41, IX).
Devido a sua importância, a previsão ocorrer!
A mera ciência de que há a possibilifoi repetida sob a óptica dos defensores: é
prerrogativa intocável, instituída pelo dade de gravação da conversa já impede
EOAB, a de “comunicar-se com seus clien- que cliente e defensor se manifestem
tes, pessoal e reservadamente, mesmo sem da forma como deseja a Constituição
procuração, quando estes se acharem presos, Federal e, por via de conseqüência, cerdetidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ceia o direito de defesa do acusado na
ou militares, ainda que considerados inco- sua raiz, impedindo sua adequada
municáveis” (art. 7º, III, Lei nº 8.904/94)(4). orientação.
Por se tratar de pilar fundamental para
Questão semelhante, também praticaa estruturação da tese defensiva, o advo- mente inédita em nossas Cortes, já foi anagado, com o conhecimento da prova con- lisada pelo Supremo Tribunal Federal.
tida nos autos, e o cliente, possivelmente
Tratava-se da comunicação entre precom a experiência fática sobre o que ne- so num processo de extradição e seu pales narrado, devem ter ampla liberdade trono. Como o acusado só falava chinês,
para discutirem a acusação e a estratégia era necessária, para que se comunicasse
defensiva de reação.
com seu defensor, a intervenção de um
Em razão disto, para que o acusado intérprete. O juiz corregedor responsáesteja absolutamente tranqüilo e seguro vel pelo presídio onde o acusado se endo segredo da conversa em que ele confi- contrava preso, todavia, só permitia que
dencia os detalhes da causa e de sua vida a tradução dos diálogos fosse realizada
ao advogado, o EOAB prevê como prer- por um intérprete juramentado, e não
rogativas deste diversas formas de invio- pelo profissional de confiança do advolabilidade profissional (art. 7º, II) e im- gado e de seu cliente.
põe, como infração, a violação deste sigiAo decidir, com peculiar apego às galo (art. 34, VII).
rantias individuais, deixou assentado o
Como se vê, toda a legislação ordiná- ministro Celso de Mello: “(...) Esse diria criada em torno das garantias consti- reito [a prerrogativa inscrita no art. 7º,
tucionais visa resguardar o sigilo e, prin- III do EOAB] — que traduz instrumencipalmente, na prática, deixar os interlo- to de concretização da cláusula constitucutores à vontade para debaterem sobre cional que assegura a plenitude de defetudo o que for preciso para elaborar uma sa, com os meios e recursos a ela inerenampla defesa.
tes (CF, art. 5º, LV) — não pode sofrer
BOLETIM IBCCRIM - ANO 13 - Nº 156 - NOVEMBRO - 2005
André Pires de Andrade Kehdi
SOBRE O CONTATO VIA INTERFONE ENTRE ADVOGADO E CLIENTE PRESO
André Pires de Andrade Kehdi
SOBRE O CONTATO VIA INTERFONE ENTRE ADVOGADO E CLIENTE PRESO
permitir o contato entre réu e advogado
através de interfone.
Notas
(1) Apenas como exemplo, cite-se as carceragens
da Polícia Federal em São Paulo e Distrito
Federal, bem como o Presídio Adriano Marrey, de Guarulhos (SP) e a Penitenciária de
Presidente Bernardes (SP).
(2) Antonio Scarance Fernandes, Processo Penal
Constitucional, 2ª ed. rev. e atual., São Paulo:
RT, 2000, pp. 51-52.
(3) Direitos e Garantias Individuais no Processo
Penal Brasileiro. Tese para concurso de
Professor Titular de Direito Processual
Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993, p. 206 – grifos
do original.
(4) O direito à plena e intangível comunicação
entre acusado e defensor, incindível que é
da idéia de devido processo legal, vem também expresso nos mais variados tratados
internacionais: art. 8º, 2, d da Convenção
Americana Sobre Direitos Humanos e art.
14, 3, b do Pacto Internacional Sobre os
Direitos Civis e Políticos, ambos vigentes
no Brasil.
(5) O temor ganha especial relevo nos dias de
hoje, nos quais assistimos, estarrecidos, a
diversas violações à inviolabilidade de escritórios de advocacia — garantia, assim como a
conversa pessoal e reservada, existente para assegurar o sigilo das informações prestadas pelo
cliente, o direito à ampla defesa e ao contraditório, como muito bem anotado pelo professor
David Teixeira de Azevedo neste Boletim (“A
Invasão nos Escritórios de Advocacia: A Corrosão da Democracia”, Boletim IBCCRIM ,
153, agosto-2005) —, perpetradas exatamente
pela Polícia Federal, órgão Estatal no qual é
mais frequente a existência do malsinado interfone.
(6) Antes decorrente apenas da Constituição Federal (o que, na prática, para a jurisprudência amplamente majoritária, significava nada
– vide, por exemplo, no STF, RHC nº 84.178
2ª T., rel. min. Gilmar Mendes, DJ
04.02.2005) e, agora, por força da alteração
imposta pela Lei nº 10.792/2003, expresso no
art. 185, § 2º do CPP.
(7) Art. 8º, 2, c do Pacto de San José da Costa
Rica.
(8) As Nulidades no Processo Penal. Ada Pellegrini
Grinover, Antonio Scarance Fernandes e
Antonio Magalhães Gomes Filho, 7ª ed.,
São Paulo: RT, 2001, p. 25.
(9) A inadequada comunicação entre o cliente e
seu patrono impossibilitará também a melhor escolha das testemunhas a serem arroladas na defesa prévia. Como não é possível a substituição destas fora da previsão
do art. 405, também por este motivo, nulo o
processo: com a equivocada escolha, toda a
defesa do réu no curso da ação penal estará
comprometida.
BOLETIM IBCCRIM - ANO 13 - Nº 156 - NOVEMBRO - 2005
André Pires de Andrade Kehdi
ilícitas interferências do Poder Público e belecimentos em que não se permite o connem expor-se a exigências inaceitáveis tato pessoal, exatamente por causa da divique lhe dificultem ou, até mesmo, frus- são que separa o acusado de seu patrono!
trem o seu regular exercício, especialPor fim, se é verdade que a realização
mente se considerar, também na perspec- de entrevista reservada do réu com seu
tiva da pessoa que se acha presa, que esta advogado(6) pode suprir a deficiência de
tem direito público subjetivo de manter comunicação enquanto aquele se encon‘entrevista pessoal e reservada com o ad- trava preso, não é menos certo que: i) invogado’ (Lei nº 7.210/84, art. 41, IX). (...) felizmente, ainda não existe, na maioria
Essa exigência de intérprete juramentado, absoluta das instalações do Judiciário, local adequado para
além de introduzir
tal ato e ii) depenum fator de buroNulo, portanto, desde o
dendo da comcratização inadinterrogatório, o processo no qual plexidade do camissível nas relações privadas entre
o acusado não pôde se comunicar so, não é incomum que, nos
o Advogado e o
de forma pessoal e reservada
poucos minutos
cliente que se enusualmente concontra sujeito ao
com seu defensor.
cedidos ao acusapoder de custódia
do Estado, permitirá, ainda, que de ma- do e seu patrono para o contato antes do
neira reflexa, a interferência do Poder interrogatório, seja impossível a apreciaPúblico num domínio que, por referir-se ção de todos os elementos, o debate acerà esfera de intimidade que se estabelece ca deles e a estruturação da tese defensiva;
entre aquele profissional do Direito e a em suma, que seja impossível a elaborapessoa presa que o constituiu para ção de uma ampla defesa.
Só no caso de o juiz disponibilizar lodefendê-la, acha-se necessariamente excluído de qualquer possibilidade de in- cal e tempo(7) adequados para a garantia
tromissão estatal. Sendo assim, (...) oficie- expressamente inscrita no art. 185, § 2º
se ao senhor diretor da Casa de Detenção do do CPP, o devido processo legal estará
São Paulo, para que se abstenha, sob pena de garantido. Isto, no entanto, não exclui o
responsabilização criminal, de impor inde- reconhecimento do anterior desrespeito
vidas restrições ao regular exercício da ati- ao claríssimo texto do EOAB e da LEP.
Concluindo, permitir ao advogado e
vidade profissional do defensor de Q.H.(...)”
(Extradição nº 633, rel. min. Celso de ao seu cliente preso tão-somente o contato através do interfone é inconstitucioMello, DJU 25.06.96 – grifamos).
A decisão é irretocável. A utilização nal, porque, afrontando-se o texto exdo interfone é, assim como a do intérpre- presso do disposto no art. 7º, III do
te juramentado, uma intromissão inde- EOAB e no art. 41, IX da LEP, fazem-se
vida do Estado. Se acusado e patrono qui- inócuos a ampla defesa e o contraditório
serem, sentirem-se confortáveis e segu- (art. 5º, LV, CF), o que impede que o acuros, podem até utilizá-los — tanto o in- sado desfrute de um devido processo letérprete quanto o interfone —, mas se as- gal (art. 5º LIV, CF).
A errônea orientação inicial, por sua
sim não o desejarem — como ocorreu
no precedente —, não podem ser força- vez, compromete toda a instrução processual, já que é por meio do interrogados a comunicar-se desta forma.
Não só pelo cerceamento à livre e am- tório que a tese defensiva será apresenpla comunicação, no entanto, verifica-se tada para, posteriormente, buscar-se
a afronta às garantias constitucionais do comprová-la durante o curso do processo. Nulo — de forma absoluta, porque
imputado.
Muitas vezes, defrontam-se, cliente e em razão de atipicidade constitucioadvogado, com processos volumosos, re- nal(8) —, portanto, desde o interrogatócheados de documentos diversos: que- rio, o processo no qual o acusado não
bras de sigilos bancários, interceptações pôde se comunicar de forma pessoal e retelefônicas, buscas e apreensões, etc. servada com seu defensor(9).
Longe de procurarmos os motivos que
Para que a correta apreciação de tudo
neles contido, é preciso folhear os au- têm levado os estabelecimentos prisionais
tos, olhar os diversos documentos neles a rasgar a Carta Maior, a LEP e o EOAB
contidos, estudar e, principalmente, — o que demandaria outro artigo para
refutar os argumentos certamente totalidebater o seu teor.
Esse importante processo de estudo tários que viriam em respaldo desta práconjunto das provas — relevantíssimo tica — esperamos, sinceramente, que,
para a elaboração da tese defensiva, como com a chegada da questão aos tribunais,
é sabido —, destarte, é impossível nos esta- cesse, na raiz, esta crescente praxe de só
Andre Pires de Andrade Kehdi
Advogado em São Paulo e membro
do IDDD – Instituto de Defesa
do Direito de Defesa
13
Download

boletim n 156_NOVEMBRO_BK.pmd