CENTRO UNIVERSITÁRIO SÃO JOSÉ DE ITAPERUNA CURSO DE PSICOLOGIA EVELYN FERREIRA CHAGAS A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO Itaperuna/RJ Dezembro/2012 1 EVELYN FERREIRA CHAGAS A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO Artigo apresentado à Banca Examinadora do Curso de Psicologia do Centro Universitário São José de Itaperuna como requisito final para obtenção do título de Psicólogo. Orientador: Boechat. Itaperuna – RJ Dezembro/2012 Profª Esp. Ieda Tinoco 2 EVELYN FERREIRA CHAGAS A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO Artigo apresentado à Banca Examinadora do Curso de Psicologia do Centro Universitário São José de Itaperuna como requisito final para obtenção do título de Psicólogo. Orientador: Boechat. Profª Itaperuna, 05 de dezembro de 2012. Banca Examinadora: Profª Esp. Ieda Tinoco Boechat (Orientador) UNIFSJ – Itaperuna Prof. Ignael Muniz Rosa (Examinador 1) UNIFSJ – Itaperuna Profª Esp. Débora Cristina Rosa Fernandes (Examinador 2) UNIFSJ – Itaperuna Esp. Ieda Tinoco 3 A MISSÃO FAMILIAR E O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO Evelyn Ferreira Chagas* Ieda Tinoco Boechat Resumo: Este estudo busca lançar luzes sobre a missão familiar que o indivíduo recebe ao nascer. Objetiva analisar quando a missão pode ser considerada saudável e quando se torna patológica. Se a missão dada pela família e aceita pelo indivíduo é favorecida pela diferenciação, este pode exercê-la com originalidade, beneficiando, assim, seu próprio desenvolvimento, o de seu sistema familiar e o da sociedade; entende-se, aí, que a missão mostra-se saudável. Se, no entanto, o indivíduo não consegue diferenciar-se, escolhendo perpetuar padrões de comportamento pautados em valores de seus antepassados sem reflexão e sem atualização ao novo contexto familiar, histórico e sociocultural, a missão, que tenta cumprir a todo custo, mostra-se patológica. Palavras-chave: Família. Individuação. Missão. Patologia. Introdução Ao nascer todo indivíduo é recebido em uma família, onde já existem padrões de interação pré-estabelecidos e existe uma história que perpassa gerações, cheia de segredos, medos, expectativas, conquistas. Assim, esse novo indivíduo recebe, antes mesmo de nascer, toda essa bagagem familiar, que será ainda acrescida da missão que a família lhe destinará, a qual terá seu cumprimento favorecido ou não pelo processo de diferenciação. Este é o tema a que o presente estudo pretende dedicar-se. O artigo ora apresentado justifica-se pela experiência em Estágio Específico Supervisionado em Psicologia Escolar e no Estágio Específico Supervisionado em Psicologia Clínica na Clínica São José, ao se perceber que as famílias perpetuam padrões de comportamento, pautadas em valores de seus antepassados, e o fazem muitas vezes sem reflexão e sem atualização ao novo contexto histórico e sociocultural em que se inserem. A pesquisa tem por objetivo discutir a missão familiar, destacando seus aspectos saudáveis e também mostrando quando ela se torna patológica. Pretende_______________________________ *Graduanda do Curso de Psicologia do Centro Universitário São José de Itaperuna. Psicóloga. Terapeuta de família. Psicopedagoga. Professora do Curso de Psicologia do UNIFSJ e Professor-Orientador do CEJA-Itaperuna. 4 se, ainda, discutir questões como as expectativas das famílias nuclear e extensa, a missão patológica, os conceitos de legado de lealdade e a projeção multigeracional. O presente estudo de caráter bibliográfico busca uma revisão de literatura específica, norteada pela obra de autores como Murray Bowen, Vera Calil, Moisés Groisman, Mônica Lobo e Regina Cavour. 1 Família e o processo de individuação A família e o indivíduo são sistemas que estão sempre em evolução, atuando de forma interdependente junto com o meio e perpassando todos os fatores externos que influenciam seu funcionamento e transformação. Com base na teoria de Von Bertallanfy (1972), a família pode ser considerada como um sistema aberto, devido ao movimento de seus membros dentro e fora de uma interação uns com os outros e com sistemas extrafamiliares (meio ambiente-comunidade), num fluxo recíproco constante de informação, energia e material. A família tende também a funcionar como um sistema total. As ações e comportamentos de um dos membros influenciam e simultaneamente são influenciados pelos comportamentos de todos os outros. (CALIL, 1987, p. 17). A família e seus membros são interdependentes, o comportamento e as escolhas de cada membro influenciam direta ou indiretamente o comportamento e as escolhas de todos os outros componentes da família. Além de sofrer também influências do meio em que vivem, e também de influenciá-lo. Segundo Andolfi (1989, p. 18), a família é um sistema ativo que se altera constantemente e, ao mesmo tempo, um grupo cuja coesão garante sua unidade. Tal processo caracterizado pela continuidade e crescimento psicossocial de seus membros, promove a diferenciação dos mesmos. A família está sempre em transformação, por estar sempre em movimento, passando por alterações provocadas pelo ambiente, pelas exigências sociais e pelas questões da própria família, como o papel desempenhado pelo indivíduo nesta, e pela própria transformação que cada um experimenta no cotidiano. Os membros de uma família são interdependentes: a mudança em uma parte afeta todas as outras partes componentes desse sistema, ou seja, as vivências de um membro da família 5 vão interferir de maneira direta ou indireta nas vivências dos outros familiares, invariavelmente. É nesse jogo recíproco de forças – as relações intrafamiliares – que o indivíduo aprende, em primeira mão, sobre si e sobre o outro. Faz-se necessário enfatizar: [...] a importância da família tanto ao nível das relações sociais, nas quais ela se inscreve, quanto ao nível da vida emocional de seus membros. É na família, mediadora entre o indivíduo e a sociedade, que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos nele. É a formadora da nossa primeira identidade social. Ela é o primeiro “nós” a quem aprendemos a nos referir. (REIS, 1999, p. 99). A família não somente tem papel fundamental no que tange à identidade social, mas também tem relevante participação na constituição da identidade pessoal. No convívio familiar aprende-se não somente a relacionar-se com os outros, mas também a olhar para si mesmo, a perceber-se e, assim, construir sua identidade pessoal. Segundo Andolfi (1989, p. 19), o processo de diferenciação é o processo de separação-individuação, em que o indivíduo tem a capacidade de se diferenciar de sua família, de se expressar de forma única, em que ele tem a liberdade de mudar ou não, a autonomia para pertencer ou separar-se e alcançar um equilíbrio funcional por meio de fases de instabilidade e desorganização, necessárias à mudança. “[...] Isso pode acontecer somente se a família é capaz de tolerar a diferenciação de seus membros.” (ANDOLFI, 1989, p. 19). A instabilidade e a desorganização necessárias à mudança somente acontecem em famílias dispostas a aceitar mudanças. Logo, a diferenciação só pode ocorrer satisfatoriamente nas famílias que suportam tal instabilidade. A partir do conceito supracitado, Andolfi (1989, p. 22-25) propõe que a família pode ser saudável, em risco ou rígida. A família saudável promove um equilíbrio entre a diferenciação individual e a coesão grupal, cada indivíduo tem autonomia para se diferenciar e ao mesmo tempo mantém a estabilidade da família, onde um desequilíbrio temporário pode trazer mudanças. Na família em risco, um membro mantém toda tensão sobre ele, a fim de preservar a estabilidade e a coesão do grupo, em que cada membro estabelece sua função em relação a ele; ele adoece, mas a família busca alternativas. Na família rígida, não há espaço para autoexpressão e crescimento pessoal, não acontecem mudanças nem 6 aprendizagens, visto que esta é fechada a toda nova experiência. Se um de seus membros adoece, ele permanece adoecido, pois a família não se abre a procurar ajuda. Tudo o que é vivido na interação entre os membros da família passa a orientar as escolhas do indivíduo: “a experiência humana de identidade tem dois elementos: um sentido de pertencimento e um sentido de ser separado. O laboratório em que esses ingredientes são misturados e administrados é a família, a matriz de identidade.” (MINUCHIN apud GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 39,40) A matriz familiar funciona como um modelo de interação aprendido no decorrer da vida, uma marca adquirida pelo convívio em família, que é observada nas relações e na vivência do indivíduo. [...] a matriz representa o que foi impresso, carimbado no corpo e na mente, enfim, no self, e que funcionará, enquanto uma estrutura, como uma resposta interacional em todas as relações presentes e futuras, como um negativo de uma fotografia onde as silhuetas, construídas através da vivência com membros de nossa família de origem, se delineariam de forma clara ou escura de acordo com a carga emocional dessas experiências. (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 40, grifo do autor). A família está em constante transformação por interagir não somente com seus membros, mas por lidar também com toda a influência do meio externo em que vive. Seus membros são interdependentes. A família é a primeira formadora da identidade social do indivíduo e esta contribui, também, para a construção da sua identidade pessoal, podendo favorecer ou não o processo de diferenciação dos seus membros, caso suporte vê-los se expressarem com autonomia e liberdade, caso tolere vivenciar a instabilidade que requer esse processo, que se caracteriza por permitir a separação e garantir o pertencimento. As relações vivenciadas na família de origem são impressas no self do indivíduo e conduzirá suas relações atuais e futuras. 2 Missão familiar Toda família possui sua própria história e sua forma de funcionamento diferente das demais. Cada nova família constituída une a história de duas pessoas diferentes, que tiveram uma criação diferente, em lugares diferentes. Com o 7 nascimento do primeiro filho, a nova família passa por um conflito em que precisa se reorganizar para receber o novo membro. O nascimento do primeiro filho deflagra uma crise, criando um conflito necessário ao crescimento e evolução daquela família nuclear, provocando uma desorganização no sistema que tem de buscar novas formas de equilíbrio e funcionamento, ampliando-o no sentido vertical, família de origem, e horizontal, família nuclear. (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 101, 102). Este novo membro, antes mesmo de nascer traz com ele as expectativas dessas duas pessoas diferentes – os pais –, além das expectativas dos avós e demais parentes. Ele também vem inserido em uma cultura e em uma sociedade que também esperam algo dele. O meio em que ele nasce, a época, as circunstâncias, o funcionamento da família nuclear e extensiva, as crises familiares, tudo isso irá influenciar na missão que este indivíduo receberá. Groisman; Lobo; Cavour (2003, p. 29), fazendo menção a Stierlin e Bowen apontam que a criança ao nascer já participa de uma história familiar que abrange várias gerações e recebe uma série de expectativas e delegações além de projeções dos pais, avós e da família extensiva. Cada indivíduo, tendo seu nascimento planejado ou não, desejado ou não, recebe uma missão familiar, um papel a ser cumprido para perpetuar os aspectos que caracterizam determinada família. O indivíduo recebe essa missão de transmitir algo considerado importante por esta família, sejam seus valores, princípios, tradições que se mantém por gerações, ou até mesmo questões mais pessoais como substituir um membro da família que já se foi, como realizar algo desejado, porém não realizado pelos pais, como ser resposta aos anseios e medos da família. Falar sobre missão familiar implica necessariamente conceituar legado e lealdade. O legado pretende comunicar e transmitir às próximas gerações a essência da família atual: “[...] o legado é o fenômeno que revela para as gerações seguintes os principais aspectos da família atual e o que se espera que tenha continuidade.” (FALCKE; WAGNER, 2005, p. 39). A lealdade tem por objetivo unir as gerações passadas e futuras de uma família e “[...] institui uma força saudável ou não, que cria vínculos de conexão entre gerações passadas e futuras numa família.” (PACCOLA apud FALCKE; WAGNER, 2005, p. 29). 8 Todo indivíduo recebe delegações, a missão familiar é inevitável. “Todo ser humano tem uma missão familiar a cumprir, explícita ou implícita, grande ou pequena, possível ou impossível.” (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 30) Nem sempre a missão familiar se mostra possível ou saudável. Por vezes, o indivíduo pode receber uma missão contrária as suas habilidades e interesses, o que pode trazer um conflito ao indivíduo, porém cabe a cada um aceitar ou não a missão familiar que lhe foi conferida. O indivíduo que aceita uma missão que lhe é prejudicial, tem algum ganho, de alguma forma; ele não pode ser considerado vítima, visto que também recebe benefícios. Se olharmos o indivíduo e sua família no aqui e agora de uma forma circular, tornar-se-á mais fácil o entendimento de que o paciente referido não é uma vítima dos pais ou do sistema. Existem lucros e prejuízos de ambos os lados. (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 30). De acordo com Groisman, Lobo, Cavour (2003, p. 31), é possível perceber a missão familiar que o indivíduo recebe a partir da observação da função que exerce na família, da sua profissão e seu nome, das demais relações que estabelece, estando a missão diretamente relacionada à história geracional familiar. O conhecimento da história geracional do indivíduo deve ser alcançado tomando-se para estudo pelo menos três gerações. Murray Bowen formula o conceito de transmissão multigeracional, assim entendido por Groisman, Lobo, Cavour (2003, p. 102,103): [...] incorporação feita pelo(a) neto(a) na terceira geração de fragmentos maiores ou menores das famílias de origem materna e paterna. A relação emocional que existia, ou que foi interrompida por morte ou separação, entre o filho ou a filha na segunda geração com seus respectivos pais é transferida para a terceira geração. De acordo com a carga positiva ou negativa dos conflitos não resolvidos nas gerações anteriores, ela é incorporada pelos netos. Essa distribuição se dá aos netos que vão nascendo em função do momento do ciclo vital da família nuclear e extensiva. Cada um vai receber através de seus pais traços maiores ou menores da personalidade de seus avós. Esse fenômeno caracterizado por nós como “incorporação” de um dos avós, ou deles combinados, caracteriza a tentativa na terceira geração de resolver padrões de relacionamento anteriores. Provoca uma intervenção na construção da família, uma vez que o neto no lugar do avô produz um desbalanceamento nas relações com os pais, que ficam no lugar de 9 filhos, impedindo ou bloqueando a formação da terceira geração e, consequentemente, da família nuclear. Questões não resolvidas ou mal resolvidas nas famílias de origem podem ser transferidas às gerações seguintes, dificultando as relações nas novas famílias nucleares que se estabelecem. Quando o sistema familiar não favorece a diferenciação de seus membros, estes tendem a repetir os padrões de comportamento e de interação nas próximas gerações. Na relação familiar, é possível observar a indiferenciação dos pais com suas próprias famílias de origem. Bowen (1976) afirma que o processo emocional mostra o modo como a indiferenciação dos pais, vivida nas experiências com as suas famílias de origem, é expresso na sua própria relação familiar. O processo de transmissão multigeracional postula a passagem do processo de projeção familiar de geração para geração, que fica explicitado por frases como: "ele tem o gênio do avô", "ela é vaidosa como os Almeida" etc. Esse processo de projeção familiar aplica-se em maior ou menor grau de flexibilidade, impedindo movimentos de mudança pessoal. (BATISTA, 2009, p. 15). Todo indivíduo que pertence a um sistema familiar é fortemente influenciado por legados e lealdades, e possui uma missão estabelecida por sua família nuclear e/ou extensiva. Missão esta que pode favorecer o desenvolvimento, crescimento e a autonomia deste indivíduo. Ou, por outro lado, pode mantê-lo indiferenciado e sendo um repetidor de padrões familiares, que, por vezes, podem estar desatualizados e inadequados ao contexto em que vive. 3 Missão familiar e o processo de individuação A missão familiar tem grande influência no processo de individuação; esta poderá favorecer ou prejudicar o referido processo, tornando-se saudável ou patológica. Segundo Martins; Robinovick; Silva (2008, p. 182), inicialmente, todo indivíduo ao nascer encontra-se indiferenciado em relação à sua família. Deverá, então, conquistar sua independência e autonomia através da diferenciação. A família é o lugar onde se experimenta o pertencimento e a diferenciação: o primeiro refere-se a sentir-se participante das crenças, valores, segredos e mitos familiares; o segundo, 10 diz respeito a colocar-se como singular e poder pensar e manifestar-se a despeito do que seus familiares consideram importante. A missão familiar é saudável quando o indivíduo tem a liberdade e autonomia para expressar-se de forma diferente dos demais membros da família e, se desejar, modificar o que aprendeu em seu sistema familiar, modificar algumas de suas crenças e valores, sem que isso traga um rompimento ou distanciamento de seus familiares a ponto de não mais sentir-se pertencendo a esse sistema. Tal movimento promove o desenvolvimento não só do indivíduo como também de seu sistema familiar e da sociedade na qual está inserido, já que são sistemas mutuamente interdependentes, em que o funcionamento de um interfere no do outro. Ele consegue com originalidade desempenhar sua missão, atualizando-se e buscando adequação ao contexto histórico e sociocultural, em que vive. A possibilidade de cada indivíduo, no desempenho de sua missão, conferir um toque de originalidade ao seu sistema familiar é o que vai propiciar o seu desenvolvimento, o daquele sistema e, consequentemente, o da sociedade. As famílias deixam de ser meras estações repetidoras para se tornar estações transmissoras. (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p. 32). Importa ressaltar que, quando um só membro da família muda, todo o sistema familiar é convidado a passar por uma mudança também. É preciso reorganizar o sistema para atender as mudanças de cada indivíduo. A mudança favorece a atualização dos indivíduos dentro da família ao assumirem novas funções e do sistema familiar dentro de um contexto social mais amplo. A mudança nas funções de um membro do sistema acarreta mudança simultânea nas funções complementares dos outros e caracteriza tanto o processo de crescimento do indivíduo como a reorganização contínua do sistema familiar através de seu ciclo de vida. (ANDOLFI, 1989, p. 19). Contrariamente ao exposto, ou seja, se o indivíduo não pode diferenciar-se, se é impedido de alternar funções pela imposição do sistema, tem dificultada a afirmação de sua personalidade, comprometido seu nível de autonomia e sua diferenciação. Pode acontecer de as regras de associação e comunicação que governam o sistema familiar impedirem a individuação e a autonomia de membros isolados. Essa falta de autonomia, vista na 11 incapacidade de alterar funções durante um período de tempo, resulta em pessoas que coexistem apenas a nível de funções, isto é, cada um é forçado a viver apenas como uma função dos outros. Nessa situação, cada um encara a dificuldade de afirmar e reconhecer sua própria identidade, bem como a dos outros. Ninguém pode sempre escolher livremente entre elaborar certas funções ou libertar-se. Cada um acha-se forçado a ser sempre aquilo que o sistema impõe. (ANDOLFI, 1989, p. 19). A missão familiar se torna patológica quando ela é, por exemplo, impossível, ou seja, quando não é compatível com as possibilidades do indivíduo, com suas habilidades. Um exemplo disso seria quando um pai espera que seu filho seja jogador de futebol e este, além de não desejar o mesmo, não possui nenhuma habilidade para tal. Também, a missão pode ser patológica, quando está pautada em valores ou crenças que se impõem sem reflexão ou atualização condizentes com o novo contexto histórico e sociocultural, o indivíduo apenas pode repetir o que foi aprendido. A patologia se instala quando a família é mais uma estação repetidora do que transmissora: a missão precisaria se realizar segundo os desígnios das gerações anteriores, sem possibilidade de transformação por parte do agora designado paciente referido. (GROISMAN; LOBO; CAVOUR, 2003, p.32) A missão familiar pode ser cumprida com originalidade, se favorecida pela diferenciação que a família oportuniza ao transmitir seus valores e verdades, a partir de reflexões e abertura a mudanças. Porém, quando a família se atém apenas a repetir o que lhe foi passado, além de não promover a diferenciação, exige o cumprimento de uma missão a todo custo, o que poderá produzir o adoecimento de um de seus membros. 4 Uma história clínica como ilustração A partir dos conceitos aludidos, faz-se o relato do caso clínico “A Maldição da Múmia”, apresentado por Groisman; Lobo; Cavour (2003, p. 33-38), a fim de contextualizar e clarificar tais conceitos. Júlia, 15 anos, usando antidepressivos, vem à terapia familiar encaminhada por seu psiquiatra. Ela sente-se ora magra ora gorda; ora está excitada ora triste; tem a 12 sensação de seus dentes estarem caindo e de sua pele estar grossa; retrai-se, isolase, não se relaciona com seus pares, troca sempre de escola, por não se adaptar. O pai de Júlia descende de uma família italiana; é o caçula e tem sua irmã mais velha como sua segunda mãe. O avô de Júlia era um homem rígido, com o qual seu pai tinha dificuldade em se relacionar. Ao contrário de sua mãe, que o tinha como companhia. A mãe de Júlia era filha de pais separados, vivia com o pai. Quando os avós maternos de Júlia foram à terapia, foi descoberto um segredo mantido desde a separação. Júlia sempre teve apenas a versão da avó, por ser muito próxima a ela. Esta dizia ser maltratada pelo marido. O avô de Júlia nunca falara a respeito com os filhos e manteve sem relatar seu lado da história. Ficou subentendido que houvera adultério por parte da avó. A separação dos avós de Júlia não era comentada, e todos viviam na tentativa de apagar o passado. Quando a família paterna de Júlia comparece à terapia, dois de seus tios não aparecem. Dentre eles, um é Suzana, a qual é tida como “a vergonha da família”. Ao conseguir que Suzana participe de uma das sessões, um temor vem à tona: o pai de Júlia receia que ela siga os passos de sua tia. Suzana se recusava obedecer ao pai. Engravidou cedo, casou-se três vezes, ficou viúva por duas vezes e um de seus maridos enlouqueceu. Ela relatou que vive na tentativa de voltar à terra natal, que sente-se como a maldição da múmia, por achar que faz mal a tudo que toca. Júlia possuía, então, uma missão impossível, segundo a hipótese da equipe terapêutica: como primeira filha do casal inaugura a família nuclear, que deve separar-se das respectivas famílias de origem, e ao mesmo tempo, demonstra sempre o desejo de unir todos numa grande e única família. Isso fica evidente na realização do genograma. Logo após a mudança da família de Júlia para longe da casa de sua avó materna, ela começou a ter depressão. Os sintomas apresentados por ela deixaram claro o conflito entre a tentativa de eternizar a família, fazendo com que seus pais permaneçam unidos às suas famílias de origem, e a necessidade de seu processo de individuação, que proporcionará a ela a construção futura de sua própria família. É possível perceber a dificuldade de Júlia em encontrar sua própria identidade. A partir da descoberta da missão familiar, o trabalho terapêutico auxiliou no desenvolvimento de Júlia, que passou a se relacionar mais com seus pares. E seus 13 pais desviaram o foco de atenção sobre ela. A família passou a se preocupar menos com o que acontecerá no futuro com Júlia. O processo de individuação de Júlia entrou em conflito com a missão familiar que ela recebeu de sua família e também aceitou-a, por esta ser impossível, e por isso, tornou-se patológica. A depressão de Júlia mostrou a necessidade da diferenciação e de uma reavaliação de sua missão. Como esta não era saudável, houve necessidade de atualização da mesma. Todo indivíduo tem a necessidade de se diferenciar, e esta necessidade pode ou não entrar em conflito com a missão recebida pela família. É nesse momento que o indivíduo decide colocar ou não sua marca na missão recebida. Este, ao decidir colocar sua marca, a partir de sua liberdade e autonomia para tal, ele pode atualizála, modificá-la, ou apenas dar um toque de originalidade, tornando-a possível e de acordo com seus desejos e pretensões. Por outro lado, ele pode decidir não diferenciar-se, e continuar repetindo os padrões familiares, não atualizando sua missão que pode não ser saudável, como no caso de Júlia. O processo de diferenciação, então, pode ser um aliado para a realização da missão familiar, e em contrapartida, pode ser um empecilho. Neste caso ela se torna patológica. A família de Júlia deu-lhe uma missão, missão esta que ela abraçou e tentou a todo custo cumprir. Sua lealdade era tal que ela preferiu adoecer a decepcioná-los. Como sua família não permitia que Júlia fizesse seu processo de individuação, coube-lhe apenas cumprir a missão. Por falta de autonomia não conseguia atender às expectativas da família e também as suas. Considerações Finais A família está sempre em transformação, podendo ser influenciada pelo meio em que vive, sobre o qual também exerce influência. Além de ser a formadora da primeira identidade social de seus membros, pois é onde o indivíduo aprende a se relacionar, a família também promove a construção da identidade pessoal, que se funda essencialmente no processo de diferenciação, onde o indivíduo é estimulado a se diferenciar e, ao mesmo tempo, pode sentir-se pertencendo ao seu núcleo familiar. 14 Dentro da família, o indivíduo recebe sua missão familiar, a partir de expectativas não só dos pais, mas também da família extensiva. Além de influências históricas e socioculturais. A missão oferecida pela família pode ser aceita ou não pelo indivíduo que é alvo de delegações e expectativas familiares. Este, a partir do grau de diferenciação alcançado, pode atualizar e modificar a missão que lhe foi estabelecida ou mesmo cumpri-la cabalmente com originalidade. A missão pode ser saudável, por exemplo, quando é possível ao indivíduo cumpri-la, e quando a família permite que o indivíduo atue com originalidade, podendo modificá-la quando achar necessário, tendo autonomia para tal. A missão pode ser patológica quando se mostra, por exemplo, impossível de ser cumprida e quando não permite que o indivíduo faça modificações a partir de uma reflexão sobre sua missão. O indivíduo, então, passa a ser um mero repetidor de padrões familiares, que podem não estar coerentes com o contexto histórico e sociocultural em que vive nem com suas próprias aspirações e desejos. A partir deste estudo, foi possível observar que a família, com suas delegações, expectativas e a missão atribuída ao indivíduo, pode promover a saúde ou favorecer a instalação de uma patologia em seus membros. O que vai conduzir a uma situação ou a outra é o processo de diferenciação. Referências ANDOLFI, Maurizio e cols. Por trás da máscara familiar. 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