Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Formação de Professores
Departamento de Educação
VALÉRIA DE OLIVEIRA VILHENA
EXPERIÊNCIA E NARRATIVAS NOS CAMINHOS DA FORMAÇÃO
INVENTIVA DE PROFESSORES
SÃO GONÇALO/RJ
2013
VALÉRIA DE OLIVEIRA VILHENA
EXPERIÊNCIA E NARRATIVAS NOS CAMINHOS DA FORMAÇÃO
INVENTIVA DE PROFESSORES
Monografia apresentada do Curso de
Pedagogia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro como requisito parcial à obtenção
do grau de Pedagogo.
Orientadora: Profª. Drª. Rosimeri de Oliveira
Dias
SÃO GONÇALO
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/D
V711
Vilhena, Valéria de Oliveira.
Experiência e narrativas nos caminhos da formação inventiva de
professores/ Valéria de Oliveira Vilhena. – 2013.
53f.
Orientadora: Profª Drª Rosimeri de Oliveira Dias.
Monografia (Licenciatura em Pedagogia) - Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores.
1. Educação – Formação de professores. 2. Formação inventiva. 3.
Inclusão em educação. 4. Experiência. I. Dias, Rosimeri de Oliveira. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de
Professores, Departamento de Educação.
CDU 37
ii
VALÉRIA DE OLIVEIRA VILHENA
EXPERIÊNCIA E NARRATIVAS NOS CAMINHOS DA FORMAÇÃO
INVENTIVA DE PROFESSORES
Monografia apresentada do Curso de
Pedagogia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro como requisito parcial à obtenção
do grau de Pedagogo.
Orientadora: Profª. Drª. Rosimeri de Oliveira
Dias
Aprovada em.......
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Profª. Drª. Rosimeri de Oliveira Dias (orientadora)
Faculdade de Formação de Professores da UERJ
______________________________________
__
Profª. Drª. Estela Scheinvar (Parecerista)
Faculdade de Formação de Professores da UERJ
SÃO GONÇALO/RJ
2013
iii
DEDICATÓRIA
Ao companheiro de vida e de trabalho
Arthur Alvarenga
iv
Agradecimentos
À professora Rosimeri de Oliveira Dias como reconhecimento ao investimento feito na
minha formação, pelo acompanhamento, mais que próximo, amigo e ético. Pelos
momentos de alegria e por não se furtar de suas posições políticas na Educação pelas
diferenças.
Aos meus filhos, Eduardo e Beatriz, por estarem comigo, por serem a força do amor na
minha existência.
À Mariza Alvarenga, pelo olhar atento e cuidadoso, no incentivo para que desse
continuidade aos estudos.
Ao meu pai, que embora ausente de corpo, está presente nos meus desejos de conquistas e
à minha mãe, pelo colo quente a me acolher, ainda hoje.
À minhas irmãs que colorem meus caminhos e dissipam nuvens. Porque contar com elas é
fundamental para uma vida bela.
À professora Estela Scheinvar pela generosidade de ser parecerista desta monografia, pelo
carinho e ética na avaliação, bem como pela contribuição de sua obra para a mesma.
Às minhas cunhadas, Marilene e Mariângela, professoras e parceiras de percurso e a
Maristela amiga de todas as horas. À minha sogra, Gabriela, por acreditar na minha
formação.
À professora Gláucia Guimarães, pelo encontro delicado que provocou mudanças em mim.
Aos professores, funcionários e alunos do Colégio Estadual Conselheiro Macedo Soares
pela abertura feita à pesquisa e pelo carinho dedicado.
Aos (as) professores (as) da Faculdade de Formação de Professores. Para sempre,
inesquecíveis. Inesquecíveis! Especialmente às professoras Vanessa Brea e Anelice
Ribetto, pelo aprendizado de uma Educação Especial sem as convenções vigentes.
Aos colegas do grupo de pesquisa, que estão presentes neste trabalho, como estão em mim
na constituição daquilo que experienciamos juntos: Bruno Macedo, Ariana Fonseca, Joice
Gabriela, Micheli Lanes e Luana Tavares.
Às minhas colegas do grupo 2008/2. Amigas, que trouxeram juventude para meu fazer
acadêmico e para a vida.
À FAPERJ, pelo investimento que propiciou a participação no grupo de pesquisa
“Formação Inventiva de Professores”
Ao pessoal de apoio da FFP, na produção de uma rotina organizada e fraterna.
Ao Centro Espírita Therezinha de Jesus.
v
O problema da formação inventiva de professores coloca em
análise nossa capacidade de lidar com a alteridade, com a diferença
que circula na formação e que também nos habita. Com isto, é
possível afirmar que formação não é simplesmente dar forma ao
futuro professor, mas produzir um território que se compõe como
um campo de forças criando ética, estética e politicamente outras
formas de habitar, de pensar e de fazer formação.
Rosimeri de Oliveira Dias
vi
SUMARIO
Introdução ................................................................................................................01
Capítulo 1 EXPERIÊNCIA E NARRATIVAS NOS CAMINHOS DA
FORMAÇÃO INVENTIVA DE PROFESSORES...............................05
Capítulo 2 O TEMA DA INVENÇÃO NA FORMAÇÃO E SEUS EFEITOS EM
SALA DE RECURSOS.........................................................................27
2.1 A EXPERIÊNCIA NA OFIP: OFICINA DE FORMAÇÃO
INVENTIVA DE PROFESSORES..................................................27
2.2 A GRADUAÇÃO OPERANDO NO ESTÁGIO E NA NARRATIVA
COMO EXPRESSÃO DOS PROCESSOS EM CURSO DE UMA
SALA DE RECURSOS....................................................................33
CONCLUSÃO..........................................................................................................52
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................55
vii
RESUMO
Vilhena, Valéria de Oliveira. Experiência e narrativas nos caminhos da formação inventiva
de professores. São Gonçalo, 2013. Monografia (graduação em Pedagogia). Centro de
Educação e Humanidades, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo. 2013;
Este é um trabalho de restituição na perspectiva proposta por René Lourau. Trás
uma narrativa de percurso da graduação em Pedagogia na Faculdade de Formação de
Professores da UERJ. Narra uma experiência de formação como trans(formação) (DIAS,
2011), que acontece no encontro entre formanda e pesquisa sobre Formação Inventiva de
Professores. Tendo como eixos de análise e intervenção uma formação atravessada entre
pesquisa, estágio e Sala de Recursos na Educação Especial. Para tanto, num primeiro
momento, analisa-se as narrativas e experiências nos caminhos da formação inventiva. Em
seguida, será estudado o tema da invenção na formação de professores e seus efeitos em
uma Sala de Recursos, na perspectiva da Inclusão de alunos com necessidades de
Atendimento Educacional Especializado (AEE). A invenção, que possibilita fazer ver o
que está ali, no caso, os processos de ensino e de aprendizagem, fazendo uso da narrativa
benjaminiana como ferramenta de viver experiências pelas leituras, arte e contação de
história foram as práticas usadas no trabalho do estágio.
Palavras Chave: FORMAÇÃO INVENTIVA, NARRATIVA, EXPERIÊNCIA, DALA DE
RECURSOS.
viii
INTRODUÇÃO
... O conselho só pode ser, portanto, dado se uma história conseguir ser dita,
colocada em palavras, e isso não de maneira definitiva ou exaustiva, mas
pelo contrário, com as hesitações, as angústias de uma história “que se
desenvolve agora”, que admite, portanto, vários desenvolvimentos possíveis,
várias sequências diferentes, várias conclusões desconhecidas que ele pode
ajudar não só a escolher, mas mesmo a inventar, na retomada e na
transformação por muitos de uma narrativa a primeira vista encerrada na sua
solidão. (GAGNEBIN, 2007, p.63).
Este trabalho apresenta uma restituição (LOURAU, 1993) que é forjada na
narrativa de um percurso de formação em Pedagogia, na Faculdade de Formação de
Professores, (FFP/UERJ). É um exercício de restituição feito em palavras, “não de
maneira definitiva, mas pelo contrário, com as hesitações, as angustias de uma história
que se desenvolve agora”. Para Lourau, uma restituição “deve enunciar “coisas”, não
denunciar outrem” (LOURAU, 1993, p. 52). Tal restituição acontece pela narrativa que
esteve e está presente em um modo de viver que se inicia na infância, em Belo
Horizonte, Minas Gerais. Ao mesmo tempo, passa por um aparente silêncio, que
coincide com o afastamento das carteiras escolares por trinta longos anos, e culmina no
reencontro, de maneira singular e intensa, com o retorno à formação mergulhada no
desejo de viver uma experiência narrativa.
Na infância, em companhia de meu pai, que além de trazer os livros, fazia
ilustrações com papeis coloridos, desenhos de jardins floridos de uma profusão de cores
e formas, provocando tal encantamento que ainda sinto o cheiro da cola que ele usava.
As árvores que montávamos em colagens e desenhos, ainda as vejo nas estradas pelas
janelas dos carros em movimento. Ah, as árvores! Lindas e frondosas como as da minha
meninice vivida em liberdade e em contato com a natureza. A história lida ganhava
2
ilustrações feitas por ele e por nós, seus filhos, ainda que isto não estivesse planejado,
anteriormente. Era nossa expressão, nosso olhar, nossa percepção da leitura ganhando
corpo. Era nossa obra de arte, vida! (DELEUZE, 2004)
Depois, aos cinqüenta anos, iniciando o curso de graduação em Pedagogia, já no
primeiro período, vivi uma greve dos professores da UERJ. Então, tive a oportunidade
de passar uma temporada em Salvador (BA) e fazer um curso de contação de história
pela prefeitura daquela cidade, na Biblioteca Thales Azevedo. Foram quinze dias de um
curso que também afetou meu olhar para a narrativa. A professora Betty Coelho nos
falava, de um contar histórias, antes de tudo, pela delícia de viver outras histórias entre
professor/contador e aluno, pelo que acontecia naquele momento. Além das técnicas
aprendidas, a percepção da força daquilo que é expressão, me constitui. Na ocasião,
senti que meu desejo circulava entre narrar e contar histórias, mas ainda não sabia que
esta temática transformar-se-ia em investigação monográfica e foco de um trabalho
final.
No semestre seguinte, na disciplina de Psicologia da Educação, aconteceu o
encontro com a professora Rosimeri Dias. Neste encontro, muitos outros se sucederam.
Ali, tive oportunidade de conhecer, pela leitura e pelos debates ocorridos nas aulas, os
autores com os quais a pesquisa que ela desenvolve sobre “Formação Inventiva de
Professores”, articula, tais como: Gilles Deleuze, Félix Gattari, Michel Foucault,
Francisco Varela, René Lourau, Estela Scheinvar, Virginia Kastrup e Walter Benjamin
entre outros, inclusive a própria. O fazer pesquisa ali se constituía, entre outras coisas,
em leituras e posteriores conversas sobre esses textos lidos. Nesses encontros de estudos
potencializávamos as leituras pela expressão. Algo parecido com uma produção de
subjetividade (MACHADO, 1999). Nesse território de pensamento multiplicado nas
vozes participantes é que me percebi em transformação constante. A força da leitura e
da narrativa feita em grupo era caminho de possibilidades. Esse percurso de formação
como invenção (DIAS, 2012) é o que trago no Capítulo I.
Sendo esta restituição uma narrativa dos efeitos, o tempo dos acontecimentos se faz
numa trama. Não há, portanto, uma cronologia. Trata-se de uma deriva, não obedecendo ao
a priori de um tempo marcado por início, meio e fim, mas de um percurso em que me
constituo nas experiências e narro pelos afetos. A noção benjaminiana de experiência
(BENJAMIN, 1994, p. 115), é um referencial a mais que me auxilia a expressar a
intensidade do experimentar, do narrar, do fazer e do ser afetado e transformado.
3
Nos estudos, caminhando com Walter Benjamin, narrativa e experiência são
movimentos de reunião e de restauração, não do mesmo, mas de um outro que pela
experiência do narrar nos transforma.
Tudo acontece na Odisséia como se houvesse, implicitamente, uma força de
narração que faz esquecer e, explicitamente, uma força rememoradora, as
quais se conjugam para constituir a narração. (GAGNEBIN, 2007. p. 4)
Assim, investigando a força das lembranças da narrativa no fazer do agora,
pergunto: como o fazer pedagógico possibilita dar corpo àquilo que nos passa? Quais
trilhas nos possibilitam estar atenta ao processo de ensino e de aprendizado que o aluno
vive? O que se transforma nesse caminhar? Antes, quais encontros transformaram a aluna
que chegou à faculdade pensando em treinar funcionários? O que acontece com essa aluna
que tem a oportunidade de participar de um grupo de pesquisa como bolsista? Por que uma
Sala de Recursos? Não seria uma escolha micropolítica, os estudos ressoando no estágio?
Portanto, o primeiro capítulo narra este percurso de formação pelos encontros,
tendo como eixo a Formação Inventiva de Professores (DIAS, 2011).
O segundo capítulo articula a ideia da arte como ferramenta de expressão e de fazer
ver, experienciado na OFIP (Oficina de Formação Inventiva de Professores), com o estágio
em Sala de Recursos de uma escola da rede privada. Traz o relato de perceptos e afetos
com alunos da Educação Especial e as perspectivas de uma proposta de inclusão destes.
Para tanto, faço uso da Análise Institucional proposta por René Lourau e do Método
da Cartografia de Gilles Deleuze e Félix Gattari (DELEUZE, 2004). Walter Benjamim
(1994), afeta meu trajeto nos conceitos de experiência e narrativa e constitui aquilo que
sinto ser a paixão do fazer pedagógico com alunos da Educação Especial. A Formação
Inventiva de Professores (DIAS, 2012), é o acontecimento transformador deste percurso, e
a OFIP uma experiência que reverbera na sala de recursos. Assim é escrito pela própria
condição da citação abaixo que não trabalha com uma ideia de história estática, mas
refluxos, devires, dobras do outro em nós.
O que estes movimentos nos forçaram a pensar no contexto das oficinas, foi
que, hoje, não se pode prescindir de relações mais estéticas e livres consigo
e, consequentemente, de formulação de críticas às ditas verdades
proclamadas. No campo da formação de professores, este desafio e
resistência ao regime estabelecido é uma possibilidade de insurgência e
aviva um frescor indispensável. Num exercício e ensaio permanentes das
4
estéticas da existência, é preciso configurar a vida em relações mais
inventivas. (DIAS; 2010, p.14).
Contudo, há neste trabalho a expressão de um caminho formativo, evidenciando o que
acontece quando o princípio de formar concebe produção de subjetividade e invenção de si
e do mundo.
CAPÍTULO I
EXPERIÊNCIA E NARRATIVAS NOS CAMINHOS DA FORMAÇÃO
INVENTIVA DE PROFESSORES
Segundo Lourau (1995), Merleau-Ponty procurou superar as antinomias do
psicológico e social, da compreensão e da explicação, propondo a passagem
da concepção objetivista à simbólica dos fatos sociais cuja existência em si
vincula-se à existência de quem os observe. Para os fenomenólogos, o único
sistema de referência possível é o vivido existencial e toda procura de
objetividade é condenável. O argumento decorrente é que o observador
inserido em seu campo de observação transforma, por definição, seu objeto
de estudo. A necessidade de incluir-se, portanto, no processo investigativo, a
subjetividade de quem pesquisa como categoria analítica já se apresenta aí,
anunciando as bases do conceito institucionalista de implicação. (PAULON,
2005. p. 22).
Como dito anteriormente, esse trabalho é uma restituição. Como proposto por
Renê Lourau (1993), que pensa não como uma escrita distanciada e fria, ou ainda como
prestação de contas, mas como implicação. Para Lourau implicação não é neutralidade,
mas uma desnaturalização do processo de Análise e Intervenção. É neste sentido que tomo
esta monografia, para poder narrar minha graduação na FFP. E, mostrar que ela se dá como
efeito das práticas, das aulas, dos grupos de estudos e das pesquisas.
Sem intenção de aprofundar as discussões das abordagens de pesquisa, mas como
política de evidenciação, como também o é a restituição aqui apresentada, farei uso de um
esquema proposto por Simone Paulon (2005, p. 22), que permite diferenciar a Pesquisaação da Pesquisa-intervenção. A pesquisa-ação tem como finalidade a ação planejada,
intencional, reflexiva, e por objetivo somar conhecimentos e promover a ação
transformadora conscientizadora. Trabalha a partir de um sujeito ativo que atua sobre o
objeto de pesquisa. Neste modelo de pesquisa, o pesquisador possui seu lugar de ação
6
definido e seu referencial teórico é o materialismo dialético (MARX, 2007 apud PAULON,
2005) e a psicossociologia (LEWIN, 1994 apud PAULON, 2005).
A Pesquisa-intervenção (ROCHA e AGUIAR, 2003) interpõe-se, vem no entre.
Não há um sujeito de pesquisa a priori, mas modos de subjetivação (DOMINGUES,
1999), modos de existência. O pesquisador tem seu lugar no não lugar, é um fazer pela
análise de implicação que não separa pesquisador e objeto. Por isto, não se separa sujeito e
objeto de pesquisa, eles são co-emergentes ao ato de pesquisar. O referencial teórico é a
Filosofia da Diferença deleuziana e a Análise Institucional de René Lourau. Seu objetivo é
criar e identificar dispositivos analisadores que favoreçam a produção de acontecimentos.
A autora, inclusive, cria um lema para esta modalidade de pesquisar: “Conhecer é fazer”.
A pesquisa intervenção inverte a forma:
Em seu lugar, a idéia de transformar para conhecer nos religa à sabedoria
trágica, instalando o tensionamento entre os saberes, suas exigências de
aquisição, de transmissão e de respostas, e o permanente movimento de
interpelação de um pensamento-acontecimento, carregado de inquietações e
de incertezas. Portanto, o implicar-se do intelectual-pesquisador não se
refere apenas à politização de demandas e encargos, pesquisandointerpretando as condições de sua produção social, mas exige que nos
instalemos nessas condições, num engendramento sempre presente, e
façamos da própria investigação-formação matéria de intervenção.
(ROCHA; AGUIAR. 2003 p. 657)
Este movimento de viver em análises de percursos pelas linhas da pesquisa
intervenção aconteceu no encontro com a professora Rosimeri de Oliveira Dias, nas aulas
de Psicologia da Educação. Esta foi a transformação naquilo que eu entendia como
formação, e ganha consistência nas escolhas feitas durante a graduação, participando das
pesquisas como bolsista1, como organizadora e participante da OFIP2, nas diversas
atividades de extensão das quais participei, no estágio na Sala de Recursos, e na produção
do artigo em “Encontros e Conversas sobre estética, experiência e amizade” (MACEDO;
FONSECA; GABRIELA; VILHENA, 2012) feito por mãos que forjam uma educação
1
Bolsista UERJ de Iniciação à Docência, atuante no projeto “Formação inventiva de professores e políticas
de cognição como dispositivos para a criação do conselho escolar do Colégio Estadual Conselheiro Macedo
Soares/FAPERJ/2010”, e PIBIC/UERJ (2010) pesquisa: Formação Inventiva: pesquisa, experiência e
aprendizagem de adultos na formação de professores.
2
OFIP- Oficina de Formação inventiva de Professores, ocorrida no Colégio Conselheiro Macedo Soares,
Barreto, Niterói. No capítulo 2 colocarei em análise este dispositivo.
7
pelas invenções. Uma formação que se cria diversa da que regularmente ocorre. Como
destaca Machado (2012, p. 8):
...essa ousadia só se sustenta em um processo de criação de multiplicidades.
Tarefa inventiva, sensível e tensa, que nos ensina que a tensão não é um
problema a ser contido, é um indicador de que está havendo, como relatam
os autores deste livro, afetação, diferença, (e não indiferença), dúvida,
ressonância, turbulência, enfrentamento, composição. E essas produções se
dão quando habitamos novas formas de comunidades e de experimentar a
alteridade.
Neste sentido, ouso narrar uma formação nas intensidades do percurso de estudante,
aluna, estagiária trabalhando em Sala de Recursos, bolsista, aprendiz de escritora, de
contadora de história, ilustradora de livros, aprendiz de cartógrafa, mãe, mulher, que se
abre para composições nas multiplicidades que me habitam em deriva de uma formação
pela invenção. Invenção, como nos diz Virgínia Kastrup (2012, p.141)
Inventar vem do latim invenire, que significa encontrar relíquias ou restos
arqueológicos (Stengers, 1983). Tal etimologia indica o sentido do termo, tal
como ele é particularmente utilizado no campo da psicologia cognitiva. A
invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, da instantaneidade. A
invenção implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que
ocorre no aveso do plano das formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de
experimentação e de conexão entre fragmentos sem que este trabalho vise
recompor uma memória, produzindo a partir dela, bifurcações e
diferenciações. O resultado é necessariamente previsível. Após ter estado no
centro do pensamento de filósofos como Henri Bergson, o problema da
invenção é na atualidade estudado pela física dos sistemas.
Como uma prática experiencial, o território dos estudos ganha consistência no
grupo de pesquisa, com orientações de referencias atravessadas por muitas conversas que
mantêm o campo problemático vivo. Foi neste contexto que fui apresentada a Walter
Benjamin. Um dia, na casa de uma cunhada, encontrei uma reportagem sobre este autor.
Depois de tê-la lido meus sentidos abriram-se mais para ele. Em outro momento, lendo o
artigo da professora Rosi, efetivei meu encontro com Walter Benjamin:
Toda experiência profunda deseja, insaciavelmente, até o fim de todas as
coisas, repetição e retorno, restauração de uma situação original, que foi seu
ponto de partida. ‘Tudo seria perfeito, se pudéssemos fazer duas vezes as
coisas’: a criança age segundo essas palavras de Goethe. Somente, ela não
quer fazer a mesma coisa apenas duas vezes, mas sempre de novo, cem e
mil. Não se trata apenas de assenhorear-se de experiências terríveis e
primordiais pelo amortecimento gradual, pela invocação maliciosa, pela
8
paródia; trata-se também de saborear repetidamente, do modo mais intenso,
as mesmas vitórias e triunfos. O adulto alivia seu coração do medo e goza
duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria
essa experiência, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja
esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar
e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da
representação, como da brincadeira, não é ‘fazer como se’, mas ‘fazer
sempre de novo’, é a transformação em hábito de uma experiência
devastadora. (BENJAMIN, 1996, In: Dias, 2010, p.5)
... essa citação de Walter Benjamim pareceu-me familiar. Era familiar não nas palavras
exatas, mas em um modo de fazer e pensar experiência que na sala de aula, na pesquisa e
na escolha de um modo de viver. Isto diz da ressonância entre invenção e experiência.
Walter Benjamim traz um conceito de experiência associada à narrativa que me
afeta, como citado por Gagnebin (2007, p. 57): “palavras tão duráveis que possam ser
transmitidas de geração em geração como se fossem um anel”, afirmando, ainda, que a
língua humana antes de ser discurso é comunicação, é nomeação (Ibidem, p. 20). A
potência do pensamento de Benjamim na proposta da formação inventiva de professores
acontece, também, no conceito de origem:
“a saber, que a exigência de rememoração do passado não implica
simplesmente a restauração do passado, mas também uma transformação do
presente tal que, se o passado perdido ai for reencontrado, ele não fique o
mesmo, mas seja, ele também, retomado e transformado.” (GAGNEBIN,
2007,p. 16)
A origem, portanto, na atualidade transforma-se e se faz transformadora. Isso é
formação inventiva. Essa é a narrativa que persigo. Possibilitadora de um fazer outro, o
não dado, não programado, mas como expressão daquilo que está em nós, nos acontece.
Quando se evidencia, narra, expressa-se aquilo que nos constitui, o que estamos sendo,
fazendo, operando. É produção de subjetividade. Conceito fundamental para uma vida
invenção. Opõe-se à pesquisa de “a origem”, não buscando um acúmulo evolutivo e
ordenado dos fatos, mas um conjunto de acidentes de movimentos.
Trabalhamos a partir de uma ideia de subjetividade que vem questionar a
presença de uma interioridade em separado de uma exterioridade, tais como
as polarizações clássicas: sujeito e objeto, consciência e mundo, corpo e
alma ou individual e social... Ha uma crença de que a “natureza” da
subjetividade estaria referida à uma interioridade, à intimidade ou à
idiossincrasia, e assim, tratamos uma forma-subjetividade que é
contemporânea. (MACHADO, 1999, p. 211)
9
A autora seguirá fazendo distinção entre modos de subjetivação (modos de
existência) e formas-subjetividades (aspectos presentes na constituição da subjetividade)
que são fixos como mapas, ou abertos como uma cartografia. Os modos de subjetivação
são configurações de um território movente. Do devir que é transformação das formas
instituídas, daquilo que está cristalizado. “Os modos de subjetivação também são
históricos, contudo têm para com a história uma relação de processualidade e por isso não
cessam de engendrar outras formas”. (Ibidem, p. 212).
Voltamos, sem nunca ter saído, à questão da origem. Narro, portanto, um viver a
experiência de minha graduação operando na formação inventiva de professores que se
orienta nos acontecimentos do percurso, escapando da formação como formato para um
professor que atenda a pré-requisitos de conformação. Para afirmar uma prática forjada na
experiência.
“Algo parecido com uma formação experiência, colocando atenção naquilo
que nos passa e nos acontece, para acompanhar processos e torná-los
visíveis, quando sequer tenham sido expressos. Poderíamos dizer com isso
que uma formação inventiva de professores toca em diferentes modos de
aprender e de conhecer e que estes modos não são dados como pressupostos:
temos que cartografá-los, fazer análises e produzir intervenções. (DIAS,
2012, p.149)
Uma das práticas que aprendi no decorrer de minha participação das pesquisas
sobre formação inventiva foi o uso do diário de campo. Com este dispositivo produzi
registros e escritas que atravessam a escrita monográfica. Tais registros, junto com os
autores e suas analíticas, expressam uma proposta explícita de análise e de intervenção na
produção de subjetividade, na constituição da existência. As escritas em diários são linhas
soltas que me forçam a acompanhar os processos em curso (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2009), compondo narrativas daquilo que me afetou e estão presentes nesta
experiência de restituição. Ao mesmo tempo, serão dispositivos concretos de análise e de
intervenção:
Às vezes a gente não consegue esperar um tempo supostamente adequado
para escrever o diário. Não há molho de macarrão no fogo, não há hora do
jantar que convença a dona de casa, aprendiz de cartógrafa, que ela deva
esperar. Tudo em mim está afetado pelo encontro dessa tarde, na FFP.
...Interrompi a escrita. Volto dias depois sem de fato ter me afastado do
diário. A paixão nos tira da condição de viver em determinado tempo ou
10
espaço. Possibilita-nos múltiplos viveres extra espaço/tempo. Estou vivendo
este diário desde terça feira. Na quarta, quando conversei com Rosi falamos
sobre o início da feitura dos diários. Lembrei-me de ter pensado que não
teria tempo para fazê-los. Hoje, se não os escrevo, eles ficam aos borbotões
como se fossem sair pelos poros. Preciso, então, dar corpo àquilo que está
vivo em mim. E, assim, estamos sempre outro, em devir. (Diário de Campo,
2010)
Assim, os diários são ferramentas de poder viver nas intensidades dos percursos
cartográficos e de poder expressá-las. Quando não escrevo, não faço o registro daquilo
que me afetou, não durmo com facilidade. Fico revivendo a experiência em pensamentos.
Quando registro, o próprio ato da escrita além de deixá-la “como um anel que pode
passar de geração a geração”, ou seja, poderá ser transformado em pensamento outro
quando acolhido por outrem, me possibilita rever pensamentos, atitudes e num devir
criança, fazer de novo.
Desejando encarnar um narrador benjaminiano, que difere do historiador que conta
uma história que pretende ser fiel a uma verdade, conto como alguém que usa, com
liberdade, as muitas vozes que trazem os fragmentos das experiências. (BENJAMIN,
1994 p.14)
Formação inventiva, Experiência, produção de subjetividade, Pesquisa Intervenção
e implicação são ferramentas que me ajudam a narrar esta experiência fazendo análise do
trajeto que me colocará na condição de Pedagoga. Considero alguns efeitos diretos na
família como atravessamentos que fizeram emergir outros modos de olhar: meu marido
fazendo uma segunda graduação, a casa como encontro para trabalhos da faculdade; minha
filha fazendo sua primeira graduação, a casa como lugar de estudos, os lanches que eu
preparava para eles, as conversas que me intrigavam; o namorado da filha, cursando
Engenharia Civil, estudando muitas horas seguidas e eu, ali, um pouco mãe dele e também
aluna já que foi ele quem me ajudou nas ciências exatas para o vestibular; a cunhada atenta
que me provocou a fazer a inscrição para a UERJ. Nesse cenário de estudantes, me refiz
estudante, como disse a professora Estela Scheinvar, minha casa era uma república de
estudantes. Era mesmo!! Mas não posso deixar de lembrar que a questão profissional da
falta do diploma do nível superior dificultava o acesso a um salário digno. Fui buscá-lo
com perspectivas diferentes das de hoje. Meu diário de campo me ajuda a contar:
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São Gonçalo, 26 de maio de 2010... Lembrei-me de ter buscado a
universidade para abrir possibilidades no meu campo de trabalho. Minha
intenção era a de trabalhar com treinamento de equipes, no amplo sentido de
moldar o funcionário para aquilo que a empresa entendia ser o ideal, dar
perfil da empresa ao contratado. Sim, era assim que eu trabalhava.
Entrevistava, admitia, ou não, e treinava em acompanhamento próximo e
diário para adequação. Ao final do primeiro semestre este projeto já não
atendia muito aos meus propósitos...
A chegada à universidade aconteceu, como disse anteriormente, por uma
necessidade relacionada ao campo do trabalho. Mas ao chegar ali produzi uma abertura
para o novo. Com dedicação aos estudos, às relações de aprendizado com professores e
colegas. Abordando de maneira ampliada, as questões da formação, a escolha dessa
unidade, a FFP de São Gonçalo, vale destacar, possibilitou um certo modo interiorano no
que se refere a seu tamanho, número de alunos, arquitetura, havendo entre mim e esse
território, uma identificação. Provavelmente afeição por minha origem mineira do interior.
Assim, aos 50 anos de idade, reinicio uma trajetória que, aparentemente, foi rompida aos
dezoito anos.
O relato que segue, embora polêmico, fala de um encontro entre aluno e professor
que acolhe inquietações. Provocando também, aberturas para estudar, restituir e aprender.
No segundo semestre do curso de Pedagogia, como já foi dito, iniciaram as aulas de
Psicologia da Educação. Nestas aulas chega uma professora que iniciava às 7h da manhã a
aula marcada para as 7h da manhã. Começo sempre afirmado pelo relato da aula anterior,
pela voz do aluno, pelo registro da experiência. Ela trazia autores incomuns, abordava
estudos de produção de subjetividade, em uma sala (des)arrumada em círculo, não
conceituava, habitualmente, no quadro negro, não fazia avisos prévios daquilo que
aceitaria ou não como prática de aluno, mas deixava claro a importância de se ler os textos,
da abertura para o encontro com esse texto, que não tem certo ou errado nas respostas, que
nem mesmo espera respostas. Propunha, então, problemas, encontros, rodas de leituras,
narrativas. Estes seriam os primeiros momentos, na universidade, de ser ouvida livremente
naquilo que o texto pode provocar. Não é fácil fazer uso desse espaço, não é fácil deixar o
peso da resposta boa, do aluno nota alta, para viver essa experiência. Quanto reboliço na
turma! Como somos prepotentes nos julgamentos! Não nos era, ainda, possível
dimensionar esse modo diferente de “dar aula”. Os incômodos, o novo, o desconhecido que
tira da área de conforto, faz emergir atitudes que, muitas vezes, colocam o viver como
repetição do mesmo. Movimentos diferentes aconteciam na turma, era um semestre de
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altos e baixos na disciplina. E foi essa maneira diferente de cada um fazer, colocando-se
em território de escolhas, que capturou minha atenção. Inclusive com os debates, entre
alunos, acontecendo depois das aulas. O que estava acontecendo? Na tentativa de
responder a essa questão, no final do curso, quando tínhamos um trabalho para dissertar
sobre Produção de Subjetividade, fiz um questionário com meus colegas de turma
buscando os por quês nas reações tão diferentes e acaloradas que aconteciam ali. O
material que colhi com os colegas possibilitou fazer uma análise de que as maiores
dificuldades ocorriam com aqueles que não haviam lido os textos. Por que aqui aquele que
não leu o texto não conseguia participar? Pela condição de implicação que é proposta da
formação inventiva? Por não ser uma aula ditada por um saber do professor, mas uma
narrativa coletiva da experiência que se viveu na leitura? Em “O Narrador” (BENJAMIN,
1994, p.197) diz “São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”,
porque se aprende a narrar, narrando. ...“É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”.
Ora, então nos constrangemos de narrar por estarmos pobres de experiências? Por
vivermos um mundo feito de informações superficiais e, portanto, sem ter vivido
experiências? Sem termos, no caso, lido os textos? Pela escrita dos diários da aula anterior,
como exercício de análise e mesmo da autoria? Estas inquietações ainda ressoam e as
desejo como caminhos de análises de percursos e de intervenção. Esta passagem auxiliame:
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos
pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam
acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que
acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da
informação. Metade da arte narrativa esta em evitar explicações. {...} mas o
contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma
amplitude que não existe na informação. (BENJAMIN, 1994. p. 203)
A força transformadora da narrativa já me habitava, a expressão daquilo que
acontecia comigo era latente. Apesar disto, a dúvida de terminar o trabalho era grande.
Estaria eu dando um passo para além do permitido ao expor possíveis discordâncias de
alunos sobre o método da professora? Conseguiria escrever, dar visibilidade àquilo que
realmente afligia-me? O que me afligia seria a perda da oportunidade de fazer um caminho
que era novo para mim? Como a professora receberia esse movimento? E meus colegas?
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Se estes não o desejavam, o que teria eu com isso? Não bastaria seguir eu mesma nesse
caminho, sem o resto da turma? Entreguei o trabalho com receio do resultado, mas não
saberia fazer outro. A experiência vivida nas aulas, textos, encontros, me afetaram e
provocaram estas questões. Ao ter o trabalho recebido e lido com abertura, pela professora,
percebi que havia ali uma possibilidade de fazer um movimento trazendo algo comigo:
minhas dúvidas, que ressoam trançando outros encontros, estreitando o laço entre formar,
aprender e pesquisar.
Meus primeiros encontros na sala da pesquisa na FFP, como voluntária,
aconteceram no final do ano de 2009. Trago um pequeno verso que fiz para presentear meu
amigo oculto, que diz mais do que eu poderia repetir agora:
Encontros
Se da vontade, faço-me participante
Na busca chego ao encontro
Na ansiedade do momento, eu ofegante
Ilusão, nada está pronto
Alegrias, atritos, tudo incessante
Nos encontros, outros encontros
Assim, nesse movimento dentro de um grupo que já se reunia, trabalhava, pensava
com estes autores, caminhei para a bolsa de Iniciação à Docência. Nos encontros de terça à
tarde, nossas leituras se concentravam no livro “Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade”. Este era o livro para base dos estudos do
semestre. Trago, aqui, o saber pela técnica que compõe nossos estudos/encontros de
pesquisa. Procuro dar visibilidade aos movimentos que ocorreram na minha formação
como um todo, mantendo a política de evidenciação, atravessando as disciplinas do curso e
sendo atravessada por elas. Transitando com a pista 1 “A cartografia como método de
pesquisa-intervenção (PASSOS, KASTRUP, ESCÓSSIA, 2009, p 30)
“Defender que toda pesquisa é intervenção exige do cartógrafo um mergulho
no plano da experiência, lá onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis [...]
Conhecer é, portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo, o que tem
conseqüências políticas [...] O método, assim, reverte seu sentido, dando
primado ao caminho que vai sendo traçado sem determinações ou
prescrições de antemão dadas.”
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O livro propõe oito pistas para um fazer cartográfico, que auxilia um ensaio pela
(trans)formação (Dias, 2011), uma política cognitiva na formação de professores, tomando
o conhecer como um ethos, uma atitude de invenção de si e do mundo.
Enquanto a graduação acontecia, os estudos da pesquisa tensionavam meu pensar,
instituindo outras formas de saber que são também formas de fazer. Para tornar visível este
momento da análise, trago, as experiências como acontecimento nas disciplinas do curso.
Na aula de Educação Artes e Ludicidade II, com a professora Arabel Issa, na
proposta de apresentação de um trabalho de final do semestre, fazendo a narrativa pelas
trilhas da contação de história, ilustrei “A Margarida Friorenta” de Fernanda Lopes e tive a
oportunidade de contá-la no auditório da FFP, para alunos das séries iniciais do CIEP 236,
Professor Dejair Cabral Malheiros, do bairro Paraíso, São Gonçalo, RJ.
A ilustração foi pensada para uma distância entre o palco, onde eu estaria, e a
platéia, que pode ficar a uma distância consideravelmente grande. Eu não queria abrir mão
do livro na mão. Havia um desejo de que o livro estivesse presente como afirmação de sua
importância e poder de encantamento. O fiz grande, medindo um metro e meio de altura e
80 centímetros de largura, quando fechado. Hoje, o uso também, com crianças com baixa
visão. Eis o livro, que seria o primeiro de muitos:
O livro ilustrado: “A Margarida Friorenta”
Enquanto pensava/fazia a ilustração, cortando, colando, montando e enfeitando, a
história da margarida carente de afeto foi se fazendo em mim. A mão que dá corpo,
expressa esse afeto, é ao mesmo tempo coração, sangue que corre, suspiros de margarida
carente. Não havia mais uma Margarida e uma Valéria, havia um devir margarida friorenta.
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Era a expressão de uma política cognitiva (DIAS, 2011, Kastrup, 2005) que configura o
“conhecer e fazer tornando-se inseparáveis”. Quando terminei de montar o livro, ainda
ensaiei a contação, mas eu e a história já éramos um. Antes de narrar, ainda e sempre
ouvinte constituía-me em narradora, aprendendo com Walter Benjamim (2010, p. 2004)
Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncie às sutilezas
psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte,
mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais
irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia.
Este tecer outras narrativas, esse fiar que faz misturas nos próprios fios de uso
constituídos de outras histórias se expande para a graduação, nas disciplinas curriculares.
Os estudos chegam acompanhados por outros estudos que são escolhas para trabalhar com
o conhecimento tecido a muitas mãos, como o pertencimento que ocorre na experiência de
se fazer um livro manualmente, por exemplo.
Outros foram feitos, agora na disciplina de Literatura Infanto-juvenil, com a
professora Gláucia Guimarães. Na referida disciplina, a feitura de livros se expandiu para
toda a turma. Nas aulas de segunda feira, os livros e histórias feitos pelos alunos, recontos,
processos de produção pelo se refazer em outras histórias, eram trazidos de casa. A ação
transformadora da leitura, dos estudos e da narrativa, que vivemos se fez em texto
apresentado por mim, com a professora Gláucia no III Encontro Nacional “O Insólito como
Questão na Narrativa Ficcional: O insólito e a Literatura Infanto-juvenil”, realizado pelo
SePEL, UERJ, no Instituto de Letras, em abril de 2011. Como é possível ver em
Guimarães (2010 p 15), por meio de imagens e histórias produzidas pela turma.
Trago outros livros e histórias, feitos neste período, que possibilitam perceber a
presença da pesquisa da qual participava, nas aulas de Literatura Infanto-juvenil, e viceversa. Reafirmando que a proposta da Análise Institucional, da cartografia e da formação
inventiva nos permite uma abertura transdiciplinar que é potente para a formação, no caso,
de uma pedagoga.
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A História de Pedro aborda a formação como algo pensado para um resultado prédado, com metas de sucesso deste formar. Pretende, em seis faces, mostrar como nos
transformamos em seres previsíveis e individualizados. Seu formato cúbico desenha
esse modo de estar no mundo. A circularidade sem ângulos, o sem lado de fora e
dentro que desejo não acontece na formação pensada desta maneira.
Dias, (2012, p.27) ajuda a pensar quando diferencia a formação inventiva de
uma formação conscientizadora e de aquisição de competências e habilidades.
“Tais reflexões consideram que o conceito de formação repousa sobre o
pressuposto de um sujeito que deve ser educado em vista de um fim. Desse
modo, a formação assume a noção de “dar forma a”, por meio de duas
versões: uma que toma a formação como capacitação impregnada da idéia de
competências e habilidades adquiridas. A outra versão se refere à
conscientização e ao compromisso político, destacando a ideia de que
consciência critica posssibilita que os educadores possam interferir nos
processos sociais, podendo desarranjar a ordem social que ai está.”
A pequena “História de Pedro”, escrita no início do curso de Pedagogia, enuncia
uma graduação nas trilhas da formação inventiva (DIAS, 2012) e se desdobra na história
abaixo, em produção de subjetividade, no refazer-se em percurso do viver. Este é um
relato da minha própria história com meu irmão querido. O “Lela Vilhena” é o nome
que uso para assinar minhas histórias e, também, o nome pelo qual meu filho, esse ai,
no final da história, me chama.
Nasce uma Estrela
Lela Vilhena
Esta é a pequena história de dois irmãos.
Era uma vez dois irmãos muito amigos. Parceiros mesmo, de toda a sorte de
travessuras possíveis entre crianças do século passado. Filhos de uma família
enorme, no total de nove irmãos.
As primeiras três crias dessa família eram meninas, só depois ele chegou.
Tão esperado esse garoto! Ele correspondeu à tamanha expectativa. Era um
menino tão doce que cativava a todos. Eu disse que era doce, mas, também,
era um garoto que gostava de jogar bola, paquerar, viajar, estudar e... ajudar.
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Por estranho que pareça, sua irmã, (a terceira na linha de nascimentos) não
desgrudava dele. Não havia brincadeira de casinha com as irmãs que lhe
atraíssem tanto quanto qualquer motivo para estar com o irmão. Foi assim
que ela se viu como goleira do time, fazedora oficial de rabiola para cafifas,
chefe de torcida nos rachas, assídua freqüentadora do Mineirão, e mais tarde
do Maracanã. Viu-se, também, namorando os amigos do irmão e ele,
namorando suas amigas. Eram namoros de outras épocas, quase platônicos,
mas eram muito bons também.
A infância passou, então. Ficou uma amizade, a alegria de ficar juntos,
estudar nas mesmas escolas, assistirem aos mesmos filmes, dividirem
preocupações.
Um dia um acidente terrível aconteceu. Terrível. A irmã desejou
profundamente poder fazer algo. Doar um órgão, conseguir um milagre,
qualquer coisa para mantê-lo ao seu lado. Nada foi possível. Quando o dia
clareou, ela ouviu uma música que tocava ao longe, era a música tema de um
filme que eles haviam assistido poucos dias antes. Na imensidão da sua
tristeza ela olhou para o céu e viu uma única estrela a brilhar. Ainda hoje,
passados muitos anos, ela busca essa estrela, suspira com ela no seu reluzir.
A estrela está sempre lá, guardando todas as lembranças de dias muito
felizes que não se perderam, ela os trás na própria constituição daquilo que
ela é.
Quanto ao dia do acidente fatal, um ano depois, na mesma data, ela viu
nascer seu primeiro filho. Vejam vocês, ganhou uma estrela que suspira com
ela e um filho que também é um companheiro e amigo.
A vida se refaz, nós nos refazemos nela.
Nos estudos da disciplina de Literatura Infanto-juvenil, estudo era prática, fazendo,
também, um ensaio para as salas de aula. A formação inventiva de professores reverberava
no meu fazer literário com muitas perguntas: como fazer da leitura experiência pelo viver
um texto? Como buscar a compreensão do texto se ele é um outro em cada um de nós, e
portanto, não há uma compreensão? Quantas maneiras existem para se viver esse texto? A
delícia é perceber que são muitos textos em um, que nossa leitura se refaz na leitura do
outro, nossa visão de mundo se amplia e possibilita outras vidas naquela que nos parecia
uma só. Vivia-se a alteridade, ainda que não o soubéssemos. O não saber, não retira de nós
aquilo que nos fica quando a experiência nos chega como acontecimento, é o transformar
para conhecer. Se o conceito ainda não era possível de ser traduzido em palavras, já era
uma maneira de ouvir e viver a narrativa. Isso também é uma proposta da formação
inventiva de professores, entre outras coisas, a transversalidade dos saberes como uma
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escolha para viver a Pedagogia. Sempre rompendo com a questão cronológica do tempo,
trago outro diário para narrar:
Meu percurso na FFP contou com um encontro que propiciou um atalho nas
minhas buscas e inquietações. Havia em mim um sentimento de insuficiência
durante a formação. Para além das perguntas originadas pelos
conhecimentos técnicos, havia uma recorrente: é assim que se faz? Essa
pergunta surgia após o desconforto das receitas do fazer e dos conceitos
fechados. Durante a leitura do livro “Deslocamentos na formação de
professores”, (DIAS, 2011), já no primeiro capítulo conhecendo os
deslocamentos feitos na sua formação, percebi o atalho que esse encontro
propiciou para nas respostas ao “é assim que se faz?” e poder tecer essa
formação que escapa da condição de professor que transmite saberes para
um outro modo, ou modos, de desmanchamento daquilo que “sabemos” para
um ensino e aprendizagem que se articula nas problematizações que
acontecem entre professor e aluno. A potência desse modo de estar na
questão do ensino e do aprendizado transformou minha graduação
possibilitando minha entrega pela paixão que, penso, acontece quando nos
percebemos em campos de possibilidades. Se os discursos sobre as
dificuldades do campo da educação minaram algumas paixões de colegas de
curso, em mim já havia uma escolha de escape das receitas e do instituído
(LOURAU, 1993) para um novo, um desconhecido, um porvir que dependia
de uma capacitação técnica aberta aos saberes forjados no modo da
Formação Inventiva. Na formação que passa pela transformação. Nos
caminhos de nossa professora, ela nos deixa fios soltos nos quais podemos
fiar outras tramas. (Diário de Campo, março de 2012)
Neste livro, (DIAS, 2012) que me chega agora, faço um encontro com minha
formação de hoje, e a de minha professora, há alguns anos atrás. Mas agora, aquilo que me
toma é o perceber que minha história foi transformada. É isso que me importa, então:
estamos no outro e o outro está em nós. Não há o outro, portanto. Há alguma coisa
composta de viver experiências, de perceptos e afectos. Hoje aqui, escrevendo, já outra.
Cito este diário pela convicção de que essa trilha que escolhi, oportunizou o
encontro com autores que me ajudam a pensar a Educação pelas possibilidades. Como
aquilo que nos chega como efeito, em devir, como aprendizado acontecendo entre
professor e aluno, escapando do lugar comum da Escola que fala todo o tempo “da falta”,
“da insuficiência”, esquecendo que somos a escola, a fazemos no cotidiano não naquilo
que pensamos já estar lá.
Caminhando por estas trilhas, escolhi a professora Estela Scheinvar para a
disciplina de Estágio Supervisionado I. Em especial, pela oportunidade de trabalhar com
autores da pesquisa em disciplina da grade curricular. Neste momento, assim orientada,
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esse estágio me colocou dentro da escola pública de Educação Infantil pelas linhas da
Análise Institucional de René Lourau.
Nesta oportunidade, a prática da disciplina de Estágio Supervisionado I, se
desdobrava nos encontros de restituição daquilo que ficou como experiência na escola, nos
debates dos textos que potencializavam minhas questões e ajudam a ver para além do dito
e do estabelecido como comum, na escola pública. Mas, chegar à escola para estagiar não
foi simples. A prefeitura de Niterói tem suas próprias normas para estagiários, e no
momento em que o fiz, a FFP e mesmo a UERJ Maracanã não estavam muito preparadas
para atendê-las. Mais uma vez, meu diário ajuda a contar, e se o faço, é antes como análise
do que se institui como perfil do funcionário público e também daquele que toma a vida
pela autogestão, que, como nos diz Lourau (1993 p.64) “não é estudável em manuais; é
uma construção política permanente que se apóia, principalmente, sobre a restituição”. É
política porque interfere, pode escapar do poder que traça as linhas de autorização, e
permanente porque requer uma atenção constante às nossas práticas. Como já mencionei,
não há queixas aqui, mas análise de percursos que nos possibilitam fazer escolhas no modo
de viver e isto é um exercício constante para a autogestão.
Terça feira 12/04/2011
Estou no CETREINA. Eles abrem às 9h. Cheguei às 10h por já saber que
antes disso não encontro alguém com poder de decisão. O atendente me diz
que só resolvo com Pablo ou Tânia. A que horas? Pergunto. Ele não sabe
informar. O Pablo deve estar chegando. Pessoas que o substituam? São duas.
Uma não chegou, a outra deu uma saidinha. O atendente se faz de
constrangido, talvez esteja mesmo. Dane-se, eu estou constrangida, me
sentindo impotente para atender a um currículo que a mesma universidade
que me cobra me inviabiliza de fazê-lo.
Ligo pra Estela, deixo recado na FFP, ligo para o seu número pessoal e ouço
aquela voz conhecedora dos modos instituídos nestes espaços, que de
alguma forma me conforta. Não estou mais como cega em tiroteio. Aviso
que, mais uma vez, saio dali sem solução, não sei como agir. Ela me diz que
vai levar ao conhecimento da FFP, pede para falar com a Tânia, aviso que
ela não se encontra. Combinamos que se eu não conseguisse solução ligaria,
e então, ela veria o que fazer. Oferece-me, também, sua sala de pesquisa,
caso eu precisasse da internet, pois dados como CNPJ da Prefeitura de
Niterói, teriam que constar do contrato.
São 10h45minh, ninguém chegou. Vou preencher um protocolo e deixar,
mais uma vez, um pedido de solução. Agora, dou vazão a minha raiva e
indignação. Argumento que estou tentando dar solução para um problema
que não criei, estive aqui cinco vezes e blá blá blá. Uma funcionária se
aproxima, o nome dela é Maria Alice, perguntando o que se passa. Faço todo
meu relato, ela afirma que a FFP tem cópia desse contrato, que lá já
deveriam ter me dado uma cópia. Orienta-me a ir até o 12º andar na Xerox
da secretaria, tirar três vias do Contrato de Estágio que se encontra na pasta
de Termos Contratuais para Estágio Supervisionado. Vou rápido, encontro,
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xeroco, preencho a mão as três vias. Ela assina e vou para Niterói. Antes,
ligo para Estela, aviso que está resolvido.
Iniciar o estágio e viver este episódio é quase um presente pela oportunidade de
articulação com Lourau (1993). Fazendo a releitura do texto, e releitura é peça chave para
as narrativas, pude perceber a relação com o vivenciado e a leitura de René Lourau (1993).
Nas páginas, 11,12 e 29 ele nos fala das forças instituídas pelo grupo “... o nosso modelo
de análise do grupo se funda na compreensão de alguma coisa que é invisível, e
terrivelmente presente no grupo, como um espectro; isto é, a instituição”. Aquilo que
encontrei foi um modo de tratar com a dificuldade em oferecer uma resposta que levasse
ao documento necessário, porém durante dias, visitas à unidade e telefonemas, estive em
um vai e vem de informações desencontradas que me possibilitaram ver que a instituição
não é um prédio, uma arquitetura de cimento, mas nós mesmos em nossas práticas que
moldam determinados modos de fazer. Assim como Maria Alice (também funcionária), ao
se interessar pelo que acontecia, pode, enfim, me orientar. A mesma análise faço dos
diários dos dias 21 e 24 de março, aqui apresentados:
Às 08h40minh, chego à Rua Visconde do Uruguai... Chegando lá em cima,
ouço a voz de uma mulher ao telefone. Aguardo, aguardo, aguardo. Chega
um rapaz, peço orientação, ele me diz que só as 09h30m. Beleza. Aguardo.
10h30minh chega outro rapaz com uniforme e nos avisa (sim, agora já
éramos quatro) que a pessoa que trabalha às 2ª, 4ª e 6ª, chega pontualmente
às 09h30minh, mas a de 3ª e 6ª não vem antes de 11: 00h, geralmente chega
ao meio dia. Inconformada me retiro com os registros de que tem gente que
cumpre o horário.
5ª feira, 24/03
Volto ao centro de atendimento ao estagiário, da prefeitura de Niterói. Chego
às 10h10min e saio às 10h40minh. Não consegui o encaminhamento para
entrar na creche. Falta o número da apólice de seguro a que o estagiário tem
direito e a assinatura da UERJ, no termo contratual, (só agora eu tinha esses
documentos em mãos) sem os quais não entro na creche. Pergunto se devo
ligar antes de trazer os documentos, relembro minha espera da visita
anterior, e a partir daí formou-se um leve tumulto. Elas (eram duas)
afirmavam estar ali desde as 09h00m no dia mencionado, que apenas não
foram avisadas de que estariam esperando por elas. Afirmo que essa não é a
versão verdadeira, e isso gerou o leve tumulto.
O que pude observar nos encontros com as pessoas das quais precisei, nos fala
daquilo que ouvimos por toda a vida: “Funcionário público não tem horário; às vezes está
com vontade de trabalhar, outras vezes só está presente de corpo.” As leituras e estudos
auxiliaram, também, na problematização daquilo que é lugar comum, que está dado como
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verdade inquestionável, aqui no que se refere ao funcionário público. A pessoa que ouviu
meu problema na UERJ e mostrou o caminho a seguir, assim como a funcionária da
Prefeitura de Niterói, que trabalha às 2ªs, 4ªs e 6ªs feiras, fazem diferente do instituído,
forçam uma forma dada, transformando-a em outros modos de se fazer um trabalho. Isso é
escolha, é autogestão (LOURAU, 1993). No dito popular, é não caminhar como mais um
boi dentro da boiada. Isso fala, ainda, de nós mesmos. Das escolhas a serem feitas, de uma
estética da existência (FOUCALT, 2010) que passa por uma escolha que é política. O
professor também o faz na sala de aula, faz-se todo o tempo, na vida. Para forçar um
desmanchamento destas formas rígidas de se operar, a pista 2 “o funcionamento da atenção
no trabalho do cartógrafo” (KASTRUP, 2009 p. 32) do livro “Pistas do Método da
Cartografia” (PASSOS, KASTRUP, ESCÓSSIA, 2009), auxilia possibilitando ver que a
atenção não ocorre em uma seleção de elementos supostamente mais importantes que
outro, mas de viver em um campo perceptivo que é ele mesmo efeito dessa abertura aos
processos em curso. Meu diário reafirma isso:
Naquela data havia uma avaliação a ser feita que se resumia em duas etapas:
escrita do nome sem fazer cópia e a mesma escrita com cópia. Somente L
não consegue, ainda, fazer as duas etapas. A professora da turma relata ter
recebido a visita de uma equipe da Secretaria de Saúde que teria
diagnosticado, pelas características de L, sequelas que ocorrem em filhos de
pais alcoólatras. Pergunto se além do suposto diagnóstico não lhe disseram,
também, como ajudar a aluna nas suas dificuldades. Ela responde que não,
mas que pensando bem, acha que poderiam ter feito isso. Completo: Com
certeza sua diretora tem o telefone da pessoa que esteve aqui, você ainda
pode falar com ela. Ela disse que faria isso.
Relendo “Crises e Deslocamentos como Potência” de Maria Lívia do
Nascimento e Estela Scheinvar que se inicia na pag. 11, a abordagem do
“Desenvolvimento Organizacional, que atua na lógica de inicialmente
conhecer os problemas, explicá-los, para em seguida buscar soluções
técnicas para os mesmos”, me possibilita repensar a articulação feita com a
professora. A mudança que opera em mim passa pela possibilidade de fazer
uso da sócioanálise, das ferramentas com as quais ela trabalha para
problematizar essa prática que coloca nas mãos dos pais a culpa pelo que a
criança traz, enquanto poderíamos pensar nas muitas possibilidades do
momento e trabalhar com o processo em curso que a L vive. (Diário de
Campo, 04/2011)
Faço um corte, não pela necessidade de trazer um resultado para a questão da aluna,
mas para continuar uma exposição do trabalho da professora que me acolheu em sua
turma. Ao final do semestre, a aluna estava escrevendo seu nome e iniciando uma escrita
mais abrangente. Sentia-se segura para arriscar e arriscava muito. Trazia para a sala de aula
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o comportamento do pátio. Lá, era uma líder, inventava brincadeiras, movimentava-se com
desenvoltura e alegria. De alguma maneira aluna e professora criaram caminhos para os
estudos. O diagnóstico da Secretaria de Educação não fez com que a professora desistisse
de L. E ela? Essa era pura potência! Porém, não foi para a turma de alfabetização, ficou
“retida”, como sua professora relatou quando, um ano depois, voltei à escola, para fazer
uma visita.
Ainda no estágio e na mesma turma estive presente em momentos de avaliação dos
alunos. Como disse, o estágio aconteceu em 2011, mas um ano depois lendo
“Deslocamentos na formação de professores” (DIAS, 2012), no Deslocamento I ela analisa
o conceito de inteligência da teoria triárquica de Robert J. Esternberg e suas “leis gerais e
princípios invariantes que funcionam a serviço da lógica do mercado”. Expõe a questão da
lógica da informação e da solução de problemas que está no eixo deste projeto. Enquanto
lia o Deslocamento I me lembrei do meu diário. Se eu não tivesse feito tal registro, seria
possível usá-lo na intensidade que o retorno a esta experiência provocou em mim? Feliz
por tê-lo feito, trago agora:
Na sequência, uma avaliação para os alunos. Segundo ela, para verificar
quem desenvolveu o raciocínio lógico. Era assim: Quatro peças em madeira,
cada uma com uma imagem supostamente sequencial. 1ª – semente (com
desenho de um rosto, olhos fechados). 2ª – semente na chuva (os olhos estão
abertos). 3º - brotos daquilo que agora já é uma planta. 4º - planta coberta de
flores. A professora chama uma criança, põe a pilha na frente em desordem à
sua frente. Antes, cortamos os quadros idênticos às imagens, a ideia é que a
criança monte a “lógica” sequencial para que seja colada, por ela, em folha
de resposta da avaliação. Apenas três crianças fizeram a sequência esperada
pela professora. Estava visível seu abalo, talvez por ter ocorrido na minha
presença. Ela não imagina que aquele teste para mim, não quer dizer nada
quanto ao aprendizado das crianças. Aquilo que vi foram crianças fazendo
duas histórias, não uma. Para elas havia uma história quando a semente tinha
cara e outra, quando já não havia semente, que ali sim, identificavam como
planta.
Viver esse momento na escola faz pensar na formação inventiva, em
políticas de cognição que se fazem em processos de aprendizado em
movimentação de saberes, como emergentes entre professor e aluno. Apesar
de não dito, concluo que essa avaliação atende a uma idade biológica de
suposto desenvolvimento que capacitaria o aluno daquela turma a fazer a
montagem considerada certa. Como resultado, a decepção da professora. Ela
se decepciona porque está comprometida com resultados que, infelizmente,
estão dados à priori, que chegam à escola antes dela ou dos alunos. Outros
desdobramentos estão por vir, quando saírem notas das avaliações. Pensando
bem, acho que nessa fase escolar eles não recebem notas, talvez rótulos.
(Diário de Campo, 05/2011)
23
Os testes de inteligência como processamento de informação, a meritocracia, as
competências/performances se diluem nas palavras de Dias (2011, p. 46):
“... Com efeito, uma escola - ou, mais especificamente, uma formação que
produz performances – deixa de investir na diferença, na invenção e na
possibilidade de engendrar um mundo outro, que derive do suposto mundo
dito “real”, em que é possível somente traçar metas, competências,
habilidades a serem trabalhadas, alcançadas e executadas, quase como uma
sentença que aprisiona o conhecer nas rédeas da solução de problemas. Por
isso, a seguir, serão analisados os avanços e os limites das teorias para
pensar a formação não por competências, resultados e produtos, mas pelo
movimento do conhecer engendrando forças para lutar com as
imprevisibilidades do mundo, da vida, da escola, da forma-ação...”
E, Dias (Ibidem. P. 57) continua:
...Assim, destaco que para estudar o conhecer, não é suficiente mapear os
passos mentais para solucionar problemas. É preciso traçar uma cartografia
em que se aprenda a capturar o movimento do conhecer para produzir um
“caminho caminhando” (VARELA, 1990) e, então, engendrar uma analítica
da experiência...
Viver esta experiência em sua intensidade passa pela formação que acontece em
composição com os autores que tenho estudado. Sempre buscando outros caminhos na
certeza de que é uma escolha diária e uma formação que não termina com a graduação, que
o fazer habitual na vida escolar, nas práticas escolares, não está desassociado das políticas
públicas, tensionando a demanda capitalista que também interfere nos currículos e
avaliações. O desejo de viver encontros com alunos, no dia a dia, aberta ao imprevisto, ao
não dado, as pequenas invenções se potencializam nas leituras e fazeres diários.
Ainda pensando a Escola que, mais que atravessada pela avaliação, se faz, a cada
dia na rotina, um caminhar para testes que digam em notas o valor do professor e o valor
do aluno, seu status dentro do mercado para o amanhã que nunca chega, tomando o
conhecer como invenção, abordo sua atualização em disciplinas, em práticas de formação,
no Estágio Supervisionado I. E, ao mesmo tempo, coloco em análise os atravessamentos
Escola-Avaliação.
Esta discussão faz ressonâncias com o texto de Callai (2011) estudado nas aulas de
Avaliação. Nas palavras da autora e, também professora: “acreditar que ao ouvirmos as
crianças podemos resignificar a permanência de concepções pedagógicas que atravessam
24
os saberes da Educação Infantil”. Nesse momento ela questiona esse cotidiano escolar que
ainda classifica a criança pelo não saber, pela ausência. Como no estágio, o
desapontamento da professora ocorre pelas expectativas anteriores ao acontecimento,
quando ela já tinha um modelo de respostas e acertos.
Há intensas ressonâncias quando se coloca em análise um modo de se tornar
Pedagoga. Por isso, retomo um trecho de diário de campo escrito na ocasião em que se
estudava Foucault (2006), “A Hermenêutica do Sujeito”. Destaco que tal leitura foi
realizada dois anos antes da experiência da Disciplina Estágio Supervisionado I:
As discussões sobre o texto de Foucault, falando do eu que é a alma, o corpo
separado dela e que é pecador. A busca do inatingível, um Deus que
pretendem nos mostrar como aquele que espera de nós mais que podemos
oferecer: nossa suprema imperfeição. Tudo está presente, basta olhar para
percebermos a força da representação em nossas vidas. E nós, buscando
maneiras de educar, formar, que se façam abertas. Modificando-nos a cada
encontro, na vida feita de fazeres, viveres, perceberes. Estamos todo o
tempo, em contato com as imperfeições. Seriam imperfeições? Pode-se dizer
que há imperfeição naquilo que não está pronto?
Espera-se das crianças um tanto, uma quantidade de acertos que o adulto não aceita
quando o mesmo ocorre com ele.
Podemos pensar que na rotina escolar já não se
questiona a prática na sala de aula? A quem buscamos satisfazer nesta busca de uma
suposta perfeição? Seria um bálsamo para nossos próprios “erros” o “erro” ou a “falta” do
outro? Foucault nos diz que aprender as virtudes é desaprender os vícios, nos convida a
pensar:
Trata-se da noção de desaprendizagem, essencial nos cínicos, reencontrada
nos estóicos. Ora, essa idéia de desaprendizagem que, de todo modo, deve
começar ainda quando a prática de si se esboça na juventude, esta
reformação crítica, reforma de si que tem por critério uma natureza – mas
uma natureza jamais dada, jamais manifestada como tal no indivíduo
humano, de qualquer idade – tudo isto assume, muito naturalmente, a feição
de um desbaste em relação ao ensino recebido, aos hábitos estabelecidos e ao
meio. (FOUCAULT, 2006, p.117)
Em exercício de desaprender os vícios, ficam muitas perguntas: Por que estudantes
diferentes precisam ser avaliados sistematicamente de maneira igual? Quem valida esses
diferentes aprendizados ou a falta deles?Aquilo que um adquiriu como aprendizado
25
interessa a ele? O conhecer está relacionado ao interesse, à afetação? A quem interessa?
Por tudo isso, reafirmo meus caminhos possíveis na formação pela invenção, um devir
conhecimento, ainda que as instituições nos tragam testes prontos, caminhos a seguir, e
perfeições a alcançar, vou por trilhas nada retas, não necessariamente nos levando a
clareiras abertas, mas sem dúvida não idealizadas para o outro. Seria um caminhar com o
uso da leitura e da narrativa que tem me ajudado a fazer uma trajetória singular e inventiva.
Meus trabalhos como bolsista, apresentados na UERJ sem muros, trazem estes
movimentos.
Participar de estudos de pesquisa, tenho dito, intensifica a graduação. Quando nas
salas de aula ouvindo discursos de bolsistas de diversas pesquisas pode-se perceber um
pensar implicado com os estudos que faz grande diferença, pois nos chegam densos,
encorpados, repletos de questões e relatos de uma intensidade que não é comum no aluno
que não participa de uma pesquisa. O apoio recebido pela FAPERJ oportunizou-me viver
esse modo de fazer a graduação e de registrá-lo em trabalhos apresentados em eventos e
artigo publicado.
O momento de expor nosso aprendizado na pesquisa acontece na UERJ sem Muros.
Para a bolsa de Iniciação à Docência, apresentando um pôster na UERJ Maracanã, ficamos
com um compromisso de escrita que nos força a um movimento de exposição, de afinidade
com o tema exposto e mesmo de restituição ao investimento feito em nós. Vive-se ali
prazeroso burburinho de estudantes e orientadores, expressões de ansiedade e alegria se
confundem. Nesta multiplicidade acrescento o sentimento de ser a primeira pessoa da
minha família, como já disse, composta por nove filhos, a estar numa Universidade. Aos
52 anos rompia com uma formação que se encerrava no Ensino Médio. Desejei que meu
pai estivesse ali para viver comigo essa turbulência revigorante. O pôster apresentado
trazia o tema: “Produção de subjetividade no ato de narrar: Iniciação à docência,
cartografia e o ato de narrar uma experiência”. Era o primeiro anúncio desta monografia,
ao mesmo tempo em que se corporificava uma prática cognitiva como trans(formação)
(DIAS, 2011). Vivía-se, portanto, em produção de subjetividade. Eu vivia, ainda, um
momento de intensa felicidade.
Quando bolsista de Iniciação Científica, pela UERJ/FAPERJ, fechando um ciclo,
apresentei o trabalho na modalidade oral, “Leitura e narrativa pelos caminhos da Formação
Inventiva de Professores.”, escrevendo, muito resumidamente, o que faço aqui de maneira
26
ampliada: a narrativa de uma graduação nas intensidades das propostas pela formação
como invenção.
Uma das ressonâncias destes processos se dá no olhar para a Educação Especial,
atenta à proposta da Educação Inclusiva. Este desdobramento da pesquisa provoca um
direcionamento para os possíveis dentro daquilo que nos passa como difícil e mesmo
impossível. As Políticas Cognitivas da Formação Inventiva dão ferramentas para trabalhar
com aluno que não é aquele idealizado, visto que não pretende atender a uma demanda
prévia de resultados. Trabalhando com a feitura diária do conhecimento em curso, em
processos de conhecimento que passam pela singularidade do sujeito em seu ambiente
coletivo, em produção de subjetividades é que escolhi a Educação Especial como área de
atuação. A decisão de deixar a pesquisa para viver o chão da escola não foi fácil.
Havia paixão no fazer da pesquisa, nossos encontros eram momentos de intenso
problematizar dos quais saía com muitas questões e alegrias. Riamos juntos, éramos
parceiros, eu sabia a intensidade da transformação em mim por estar com o grupo. O
tempo entre estudos, pesquisa, estagiária e dona de casa era sempre curto. Precisei fazer
uma escolha, e assim, fui trabalhar em uma Sala de Recursos. Este é o tema central do
próximo capítulo.
CAPÍTULO 2
O TEMA DA INVENÇÃO NA FORMAÇÃO E SEUS EFEITOS EM
SALA DE RECURSOS
2.1 A experiência na OFIP: Oficina de Formação Inventiva de professores
Será possível a tarefa de educar na diferença? Felizmente, é impossível
educar se acreditamos que isto implica formatar por completo a alteridade,
ou regular sem resistência alguma, o pensamento, a língua, e a sensibilidade.
Porém, parece atraente, pelo menos não para poucos, imaginar o ato de
educar como uma colocação, à disposição do outro, de tudo aquilo que o
possibilite ser distinto do que é, em algum aspecto. Uma educação que
aposte transitar por um itinerário plural e criativo, sem regras rígidas que
definam os horizontes de possibilidades. (DUSCHATZKY; SILVIA;
SKLIAR, 2011, p. 137)
Lendo esta passagem do livro Habitantes de Babel, escolho-a para iniciar este
capítulo. Por quê? Porque, apenas aparentemente, ela trás respostas. Mas, instiga o pensar
que defina o campo de atuação do pedagogo da Educação Especial. Porém os limites deste
campo se expandem, expandem...sem contornos definidos. Este transitar por um itinerário
plural e criativo (que escapa do sentido hoje usual do criativo como qualidade de um
sujeito), sem regras rígidas que definam os horizontes de possibilidades, fala do devir
como aprendizado acontecendo entre professor e aluno. São portas abertas para a invenção
28
com alunos do AEE (Atendimento Educacional Especializado) em Sala de Recursos, como
Kastrup nos fala:
O conceito de aprendizagem inventiva é aquele que vai mais diretamente
desembocar na ideia da formação inventiva. Seguindo a abordagem da
cognição inventiva a aprendizagem não é apenas um processo de solução de
problemas, a experiência de problematização. O aprender começa como uma
experiência de problematizção, de invenção de problemas ou de posição de
problemas. E envolve, também, a invenção de mundo. Não é questão de
adaptação a um mundo preexistente. (KASTRUP, 2012, p.53)
Estas propostas de aprendizagem e de formação pela experiência de
problematização possibilitam pensar nas práticas pedagógicas do estágio na EE (Educação
Especial). Neste sentido, foi por estes meios que me orientei e escrevo este trabalho: Uma
abordagem da Educação Especial na perspectiva da Inclusão que tensiona o que está posto,
ao mesmo tempo em que acolhe a experiência e a narrativa como caminhos de expressão
do trabalho em uma Sala de Recursos. Neste modo de viver o curso de Pedagogia, em
abertura para a educação que não espera por fórmulas de ensino e aprendizagem prontas, a
experiência com a Educação Especial foi um movimento involuntário, não programado,
porém, em sintonia com leituras, práticas e estudos. Como disse anteriormente, das
análises e de uma formação inventiva de professores
Neste turbilhão, algumas questões:
Agora, mais um risco; como deixar claro que uma hipercrítica a tais políticas
de inclusão não implica, em absoluto, uma negação a elas, não implica uma
recusa à própria inclusão? E, voltando a uma questão que é anterior a essa:
como não deixar a impressão de que não varrer a sujeira para debaixo do
tapete não significa querer conviver com a sujeira? (VEIGA NETO, 2011, p.
109)
Um dos momentos essenciais para pensar a perspectiva da invenção para a
Educação Inclusiva aconteceu na Oficina de Formação Inventiva de Professores (OFIP),
realizada no Colégio Estadual Conselheiro Macedo Soares, localizado no bairro Barreto,
em Niterói, no ano de 2010. O diário de campo expressa alguns registros:
Como não poderia deixar de ser, muita coisa se transformou neste período.
...O trabalho da pesquisa na escola vejo como uma oportunidade. Havia uma
vontade de estar dentro do espaço escolar, e isso se deu de forma diferente
do esperado. Deu-se nos encontros, com professores e alunos, e também com
o pessoal da OFIP. Este composto me dá certa tranqüilidade, que não quer
dizer facilidade. Faz-se tranquilo por ter o acompanhamento do grupo, por
29
vivermos nossos estudos naquele espaço. Difícil, por estarmos o tempo todo
atentos às nossas práticas.
Em processo de cartografia, encontro, muitas vezes, conforto por
trabalharmos com os possíveis. Aos poucos, consigo agir sem as amarras de
um ideal de pessoa que me foi imposto e acolhi. Venho, com vontade,
desfazendo os nós que trago, pondo em análise minhas atitudes. É difícil,
não finda e requer abertura mesmo, como atitude de um modo de operar e
agenciar com a vida, que é sempre imprevisível. Só é confortável porque não
existe uma perfeição a ser alcançada, mas um compromisso com um modo
de viver que entendo, hoje, como aquele que desejo. Esta é a grande
mudança que me passa. As leituras, as conversas, o fazer, os encontros, tudo
me possibilita uma graduação feita com intensidade. Esse semestre não
termina aqui. Estará comigo, sempre.
Os encontros artísticos potencializaram os estudos, as leituras e o
aprendizado. Perceber que a arte, o fazer artesanal é uma ferramenta pedagógica,
reafirma o que o diário acima expressou: “Esse semestre não acaba aqui”. Resoou na
Sala de Recursos, um ano depois. Dias (2012 p. 33) afirma:
Em cada encontro, um artista e sua obra comparecem para colocar em
análise as naturalizações do campo da educação e da formação. Desse modo,
e junto com os conceitos afetos a uma formação inventiva, as oficinas
acontecem por meio da fabricação de experimentações artesanais para
manter vivo um campo problemático e a composição de uma perspectiva
ética, estética e política.
A experiência artística da OFIP possibilitou ver, no emergir dos trabalhos feitos ali,
que estas são formas de dizer, de expressar, de dar corpo àquilo que está em nós. Havia no
ar, que nos envolvia, uma dimensão para além da presença física, alguma coisa que, a cada
momento trazia à tona a vida que há no outro. Mas nunca era um outro só, solitário, mas
desdobramentos daquilo que nos acontecia no coletivo da experiência artística que
vivíamos. Perceber essa imanência de sentidos foi transformador no meu fazer pedagógico.
Caminhando com a perspectiva da invenção, cheguei a uma Sala de Recursos. O
estágio em uma escola da rede privada se fez como extensão das experiências na OFIP,
porque na oficina mistura-se arte, filosofia da diferença, análises e intervenção. Com tais
misturas forja-se um devir artista, que inventa vida. Os diários de campo são corpos destas
experiências. Vamos a eles:
Diário de campo: 15-09-2010
Primeiro dia de oficina no C. E. Macedo Soares. Hoje não tive aula na FFP,
por isso, me visto em casa. Penso em algo que fique leve, suave, assim como
estou sentindo-me. Aberta as experimentações. Sair de casa para encontrar
pessoas em ambiente descontraído, essa ideia dá prazer.
A sala está muito cheia, mistura heterogênea. Rosi abre a OFIP deste ano.
Ela está feliz, intensa, trabalhou antes e aquilo que nos chega é o artístico
dela. Nas artes de Iberê Camargo, Ferreira Goulart, chega por Michel
30
Foucault, Deleuze, tudo que nos compõe. Após a apresentação, eu ainda não
o sabia, mas nos transformaríamos também em outras feituras já, então, de
muitas outras mãos. É isso que trago para minha arte feita na oficina deste
dia. Mãos coloridas de linhas de carretéis, na nossa multiplicidade. Outras
mãos em material diferente, representando as não visíveis, presentes ali.
Mãos não visíveis que nos habitam. Linhas de continuidade que se
entrelaçam, se tocam, roçam, enfrentam, afetam e modificam todo esse
percurso. (foto abaixo)
...Houve um momento em que Lorranna3 me fez pensar em meus filhos.
Quantas delícias eles nos trazem! Quanta beleza na fala dela! Como cada um
de nós percebe e narra diferente! Essa riqueza de perceptos é nosso tesouro.
O carretel sem linhas é para mim o osso. Exposição de si.
As moças da cozinha chegam com banana, rosquinha, café e refresco. Mais
mãos presentes.
Diário de campo 10/11/2010
Rosi chega com um texto de Lygia Clark, “1964 Caminhando”. O próprio
nome nos sugere a necessidade de um desejo que viabilize a vida naquele
momento brasileiro. Como a autora nos diz, “o caminhando tem todas as
possibilidades ligadas à ação em si: ele permite a escolha, o imprevisível, a
transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto”.
A experiência vivida no caminhando provocada na oficina põe-nos em
contato com o conceito de experiência, tema tão caro nos nossos estudos.
Como se vive uma experiência? O que é uma experiência? Tudo aquilo que
nos passa, nos acontece? Vamos seguindo, cortando a fita de Moebius4. (foto
abaixo) Cortando, fazendo escolhas, se para lá ou para cá, serão sempre
escolhas. É a ética que se fará corpórea pelas nossas escolhas. Somos nós ali
naquela fita, expressões de nós. Walter Benjamim se achega, está ali, junto
de nós a nos dizer da raridade da experiência nos dias de hoje. Na feitura,
3
Bolsista de Iniciação Científica Junior/FAPERJ, do projeto “Formação Inventiva de Professores e Políticas
de Cognição como dispositivos para criação do Conselho escolar do Colégio Estadual Conselheiro Macedo
Soares/FAPERJ”.
4
A fita de Moebius, como a artista definiu “quebra os nossos hábitos espaciais: direita-esquerda, anverso e
reverso, etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” (CLARK,
1983, p. 151).
31
vamos cortando, colando, colorindo, vamos caminhando, fazendo um modo
de viver.
Agora eu estou também em outras experiências. Estou fazendo meus livros,
inventando outros modos de viver. Artesanalmente reconstituo-me nos
livros, na fita de Moebius, no grupo, na fala da Rosi, nas imagens trazidas.
Uma outra eu, em muitas eus que estou em nós.
Além do conceito de experiência estamos falando, também, de autogestão
(LOURAU, 1993). A autogestão possibilitou escolhas no fazer pedagógico. Escolher os
caminhos é uma atitude ética, estética e política. Sempre as fazemos de alguma forma. O
cuidado nas escolhas é uma pista para um viver inventivo. Tomar para si o momento atual
e vivê-lo em sua intensidade com aquilo que nos chega e no que o transformaremos. Em
atenção ao presente, fazendo da vida uma obra de arte.
Diário 06-10-2010
Se existe uma coisa que sempre se repete em nossos encontros, ela é a
variedade. Variedade de lugares, de conhecimentos, de textos, de discursos,
recursos. Tudo é variante aqui. Nós mesmos, Oxalá! Nunca somos os
mesmos. Isto posto, imagine qual a programação de hoje? Estudar o
dicionário analógico. Essa ferramenta complexa, curiosa, rica, nos chega
para ser conhecida. Eu, romântica, sinto-me próxima a Chico Buarque (ele
está cantando aqui, agora, na minha aparelhagem de som), ao saber que, em
um desses, ele fez mil consultas para escrever as maravilhas que nos
chegam. Assim, daquilo que poderia ser um aprendizado chato, fizemos de
maneira inventiva. Cada um trouxe suas buscas, e nos divertimos
aprendendo, rindo, questionando, falando muito (todos). Também comíamos
biscoitos e bebíamos guaraná.
Em alguns momentos Rosi precisava organizar as conversas. Estávamos com
conversas paralelas. Aliás, tenho observado que o formato da mesa que
usamos na nossa sala do Macedo Soares propicia que isso ocorra. Sua forma
retangular, longa, não permite que todos se vejam ao mesmo tempo, então,
no pequeno descuido, já estamos falando com o vizinho próximo, visto que
32
não visualizamos, momentaneamente, aquele que narra. Se estivermos
atentos, podemos fazer diferente.
O terceiro diário não fala, objetivamente, de um momento na OFIP, mas de uma
pesquisa atravessada por muito estudo, leituras, debates, abertura para viver textos
que abordam temas complexos, textos “difíceis” como nós, estudantes, gostamos de
chamar. Os alunos bolsistas do Ensino Médio participavam e contribuíam muito neste
percurso de viver o texto, assim como alguns professores da escola que fizeram uma
escolha pela invenção ao trabalharem nas salas de aula. Além da OFIP nossos encontros de
estudos eram mantidos no CECMS, e na FFP. Vivíamos uma pesquisa de maneira intensa e
densa.
Perceber que o formato da mesa retangular nos separa, consolida um fazer na sala
“des-arrumada” em círculo. Usar este conhecimento na Sala de Recursos facilitou o
trabalho e ajudou na afirmação de que o trabalho ali não difere, em termos de práticas, do
trabalho na sala de aula regular. O que fazemos aqui ou ali está permeado pela atenção a si
e ao outro. Tudo tem importância, tudo é linha solta para ser pega. A pista dois, do livro
“Pistas do método da cartografia” (PASSOS, KASTRUP, ESCÓSSIA, 2009), nos fala da
atenção no trabalho do cartógrafo. Esta atenção possibilita colher material de trabalho e
viver na expressão do outro um devir transformado e transformador. A atenção àquilo que
os alunos da Educação Especial narravam foram as pistas, as linhas soltas para o fazer
naquele espaço. Por exemplo, M. que tem TID (Transtorno Invasivo do Desenvolvimento)
me deu pistas para além da escolha do caminhar com ele. Seu medo do lobo mau, nas
histórias contadas na Sala de Recursos, trouxe esta personagem para nossas aulas, primeiro
na contação de histórias, depois no uso dos fantoches. No diário de campo, o registro:
Hoje, M. contou a história dos “Três porquinhos e o lobo mau”. Sua alegria
em conseguir chegar ao desfecho da história ficou registrada em vídeo. Vejo
o filme várias vezes. Gargalho de alegria, sozinha no meu quarto. Ouvindo-o
ainda escolhendo o porquinho da casa de tijolos como preferido, é que
analiso esse processo: O medo do lobo era grande. A mediadora falou que
em casa, quando o pai contava esta história, ele ficava apavorado com o
lobo. Iniciamos, então, uma contação feita pelos colegas. Ele tapava os
ouvidos, mas não queria que parássemos. Depois, na sua vez, dava ênfase ao
porquinho da casinha de pedra. Era sua segurança de que ali o lobo não
entraria. Mas ele conseguiu! (abril, 2011).
Continuando com o percurso do M., nos encontros posteriores, ele só queria entrar
na “casinha do faz de conta”, como na imagem abaixo. Desejava contar sempre de novo
33
(BENJAMIN, 1996). Depois, usamos fantoches dos três porquinhos e do lobo. Chegou o
dia em que ele quis ser o lobo. Fez voz grossa, correu atrás dos porquinhos e viveu uma
plenitude de M. Lobo Mau. Deslocar-se do lugar do medo e da negação foi possível ao M.
por ter vivido o lobo mau que havia nele. Além disto, foi divertido. Sua felicidade ficava
expressa no sorriso amplo. Para vivê-lo, no fantoche, se constitui na contação da história
feita pelos colegas e por ele mesmo. O fato de ter uma dificuldade de comunicação, que é
característico do Transtorno Invasivo de Desenvolvimento, não o impediu de viver essa
experiência que o expõe ao mundo.
A “casa do faz-de-conta”, os fantoches que punham em nossas mãos aquilo que estava encoberto
2.2 A graduação operando no estágio e a narrativa como expressão dos
processos em curso em uma Sala de Recursos
Chego ao momento esperado. Narrarei a experiência em uma Sala de Recursos. Tal
momento emerge das disciplinas de Educação Especial que cursei com as professoras
Anelice Ribetto e Vanessa Brea. Pude pensar escola, profissionais, alunos, pais e,
principalmente, sociedade civil, articulando leis àquilo que pude experienciar no chão da
escola.
No decorrer do curso de Pedagogia, em abertura para a Educação Especial, sua
expansão aconteceu na disciplina de Educação Especial I com a professora Vanessa Brea.
Cito a escolha dos autores como destaque para a intensidade das discussões nas aulas com
essa professora. Em mais de uma oportunidade de estudar com ela, alguns textos foram
fundamentais para meus questionamentos e desejo de apropriação da discussão. Destas
34
leituras5 pode-se desconstruir uma ideia daquele que foi rotulado como deficiente. O
“achado” para mim, é o de poder perceber que o anormal se dá após o estabelecimento do
que seria normal. Uma normalidade dada a partir de interesses, percepções particulares,
contextos sócios culturais e políticos. Rever os rótulos de anormalidade nos possibilita um
trabalho que não trás os limites dados pelo a priori, mas uma reformulação no encontro
com o estudante e com o mundo. O acesso às leis, conhecê-las, saber onde consultá-las,
nos possibilita, também, questioná-las.
Nesta disciplina, realizando um trabalho que aborda a questão do autista na escola,
com um olhar para o estudante na amplitude do contexto sócio-econômico-cultural, o
primeiro encontro com estas crianças, as entrevistas com familiares, psicólogas,
fonoaudiólogas, professores e diretoras, afirma a não dualidade entre teoria e prática.
Terminei o semestre com mais perguntas que respostas por trazer um olhar que
desconstruía minhas ideias prontas para viver uma educação que trabalha com a produção
de subjetividade: Ressonâncias com uma formação inventiva de professores.
Nos encontros, no trabalho de campo nas escolas, destaco alguns como aqueles que
nos fazem pensar e desconstroem o que trazíamos como certeza. Viver essa experiência
ajuda a ver que as certezas não são tão boas companheiras, mas as dúvidas é que nos
provocam movimentações. A fala do outro provoca mudanças, como a da psicopedagoga
(do CIEP 236, Professor Dejair Cabral Malheiros, do bairro Paraíso, São Gonçalo, RJ). Ao
nos conceder uma entrevista relatou que aquele local havia sido uma escola de tempo
integral para atendimento exclusivo de alunos da Educação Especial, até o ano de 1998.
Contavam, então, com psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas, fisioterapeutas e
promoviam oficinas pedagógicas. Ela referiu-se àquele período como “um sonho”.
No modelo de hoje, que segue a perspectiva da Educação Inclusiva, como se
sentem os profissionais da Educação? Esta é uma pergunta que faço e encontro muitas
respostas, sempre acompanhadas da observação de que neste campo, o da Inclusão, tudo é
muito novo e que temos todos muito o que aprender no fazer pedagógico e no
desmanchamento de um modelo educacional que ainda é pensado para um ideal de aluno,
que, sem dúvida, não é o aluno da EE. Das respostas encontradas destaco que é comum a
afirmação de que a Escola não está preparada para esta tarefa. Com efeito, é possível
5
. FOUCAULT (1992); ASSIS (1994); MACHADO (2005); GLAT (2007); Declaração de Salamanca;
Resolução nº 2, de 11 de setembro de 2001, que institui Diretrizes Nacionais para Educação Especial; Lei de
Diretrizes e Bases, lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
35
pensar o quanto é, ainda hoje, difícil desconstruir a ideia de anormalidade que se instituiu
entre nós. Há muito que se caminhar para se efetivar uma proposta Inclusiva.
No ano de 2000, o MEC encerrou as escolas exclusivas para alunos da EE. Ainda
neste mesmo ano, o referido CIEP conserva, para a população, a visão de ser um pólo de
Educação Especial. Diante disso, encontramos ali um grande número de alunos com algum
tipo de necessidade de AEE (Atendimento Educacional Especializado). O próprio Núcleo
de Apoio Pedagógico Especializado (NAPES) de São Gonçalo está localizado ali, tem sua
central no mesmo prédio, avaliando e encaminhando os alunos, orientando os pais e
oferecendo o apoio pedagógico, que é seu objetivo primeiro.
Na visita a outra escola foi possível conhecer um universo distinto. A Escola Fórum
Cultural não é pública como a primeira. Está situada em São Francisco, bairro de classe
média alta de Niterói. É uma casa ampla de dois andares e suas dependências receberam
acabamento e decoração refinados. Nas paredes das salas de aula estão expostas cópias de
obras de artes. Cada sala possui, ainda, uma pequena biblioteca. Os turnos podem ser
parciais ou integrais, dependendo da escolha dos pais ou da necessidade do aluno. Possui
cozinha própria onde os alimentos, ao serem preparados, podem ser visualizados através
dos vidros que a contornam. Aqui, o encontro acorreu com psicóloga, psicopedagoga e
fonoaudióloga da referida escola. Cito algumas particularidades desse território:
1-Cada turma tem entre 15 e 20 alunos com, no mínimo, duas professoras.
2-Sempre haverá pelo menos uma mediadora quando houver um aluno com necessidade de
atendimento especial. Hoje a maioria das salas conta com quatro profissionais presentes
durante todo o turno.
3-As mediadoras (ou professoras de apoio) são pagas pela escola e pelos pais de alunos,
mas são contratadas pela escola, seguindo assim, sua linha de trabalho.
4-Elas enfatizam que usam o método fônico6 por acreditarem na melhora expressiva que
eles trazem para a linguagem. Pela experiência, defendem que a criança precisa conhecer a
língua como um sistema que necessita de várias unidades.
5-Afirmam que condições financeiras propiciam ao aluno uma assistência maior.
6-O aluno ficará na turma em que ele esteja socioafetivamente inserido.
7-Acreditam que o aluno regular fica prejudicado se a professora estiver muito envolvida
com aquele que tem necessidades especiais.
6
- O Método fônico de alfabetização privilegia a construção dos sons e o aprendizado a partir deles.
36
8-Garantem aos alunos um atendimento pedagógico particularizado.
9-Trabalham com Fonoaudióloga, Psicomotricista, Psicopedagoga e professora de Belas
Artes.
Uma questão que surgiu neste contexto escolar, de variados recursos, refere-se ao
modo como os pais e mesmo os alunos recebem a presença destes alunos. As
representantes da escola dão ênfase à afirmativa que é uma relação construída pela escola,
isto não ocorre espontaneamente.
As observações feitas por ela para uma possível análise do professor, e
encaminhamento para o diagnóstico médico foram: quanto mais cedo o diagnóstico,
maiores as chances de ajudar o aluno; é mais comum que ele seja acompanhado de algum
tipo de retardo que de superdotação; dislalia (atraso de linguagem) muito grande; difícil
socialização; trabalha com a negação; incapacidade de se por no lugar do outro; necessita
de rotina.
Trago parte da conclusão do trabalho, aquilo que o grupo definiu como importante
de ser citado, na época:
Durante o semestre, nas aulas de Educação Especial, muitas questões
ficaram conosco. As leituras, os contatos e entrevistas nos ajudaram em
muitas delas e trouxeram outras. Por exemplo: 1- Antigamente escola mista
não era aquela que reunia meninos e meninas no mesmo espaço? No CIEP
foi feita esta referencia quando queriam dizer Escola Inclusiva. Parece
mesmo que tudo depende de um modo de olhar. 2- Será possível que em
uma turma de 15 alunos, sendo 7 com algum tipo de necessidade de AEE,
como ocorre no CIEP 236, a adaptação curricular ocorra sem a ajuda de
mediadores e de salas de recurso? Ao perguntarmos se Maristela trabalhava
com mediadores ela nos respondeu que a mediadora era a própria professora.
Aqui elas são a 1ª, 2ª e 3ª pessoas. 3- Os CIEPs parecem ter facilidades para
receber alunos (no que se refere à arquitetura dos prédios), pois todos têm
rampas de acesso. 4- Não adianta ter um grande aparato de recursos técnicos
se os profissionais não estiverem dispostos a usá-los. 5- A escola particular,
em nenhum momento trouxe as questões das leis para a conversa, enquanto
na pública, a lei vem atravessada no seu decorrer. 6- A fala da Escola Fórum,
em nenhum momento se desvincula do lado comercial. Na pública, as
primeiras palavras são sempre de afeto, naquilo que se refere aos alunos. 7Na segunda escola não nos foi dado um nº exato de alunos com TID
(Transtornos Invasivos do Desenvolvimento) matriculados naquele
momento, mas sabemos que apenas uma era menina. Na primeira, todos os
seis, eram meninos. 8- Chamou-nos a atenção o fato da professora (CIEP
236) precisar acompanhar seus alunos ao banheiro e fazer-lhes a higiene.
Quem fica com os outros nesse intervalo de tempo que não é curto? 10- É
fundamental, para alcançarmos os objetivos pedagógicos, que façamos uma
interlocução entre médicos, familiares do aluno com TID, familiares dos
outros alunos e até com os colegas de classe. Enfim, todo o aparato escolar
precisa receber este aluno como alguém que, momentaneamente, precisa de
37
cuidados diferenciados, mas nem por isso deverá ser tratado diferente. Como
foi dito no CIEP 236, “leis, temos muitas, mas nós é que temos que fazer”.
Acrescentamos, em relação às leis, que elas nos trazem a possibilidade de
entendimento, da parte dos responsáveis por essas crianças, de que elas têm
direito a educação, regular ou não....
Chamo a atenção para o fato de que, nesse grupo de oito alunas que fizeram a
pesquisa para a disciplina de Educação Especial, três trabalham, atualmente, com alunos da
EE. As possíveis dificuldades observadas não inviabilizaram as propostas das estudantes
de Pedagogia. Elas ampliaram a visão para aquilo que seria a Educação Especial, ao nos
colocar em contato com outras formas de estigmatização, como a do aluno indisciplinado,
por exemplo, ou o “pobre que tem família desestruturada”. Se não estivermos atentos,
podemos acreditar que o bom comportamento e a sorte de ter uma família padrão são
critérios para a aprovação, assim como a suposta capacidade para dar a resposta certa e ter
um corpo “organizado” física e mentalmente. A pista que nos ficou naquele momento é a
de romper com as dicotomias também na Educação, inventarmos a vida escolar todos os
dias no fazer com como nos sugere a Formação Inventiva de Professores (DIAS, 2012).
Em estudos que se complementam, não me furto de usar um texto que a professora
Anelice Ribetto nos ofereceu nas aulas da disciplina eletiva de Educação Especial. Tal
escolha é feita por entender que sua clareza e atualidade me auxiliam na abordagem e
articulação com o trabalho do estágio na sala de recursos, experiência essa que é o centro
da discussão que trago agora. Este texto foi assim organizado pela professora da disciplina,
Anelice Ribetto, a partir de documentos do MEC (Ministério de Educação e Cultura):
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
A Educação Especial é uma modalidade que perpassa todos os níveis, etapas
e modalidades da educação.
É a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional7 a que define
Educação Especial como modalidade de educação escolar, oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino para portadores de necessidades
especiais. Esta lei garante o serviço de apoio, quando necessário, aos alunos
com deficiência. E abre espaço em seu artigo 4º inciso III para o
“atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com
necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino” (LDB
9394/96, ARTIGO 4º inciso III). Em seu Capítulo V encontramos
7
BRASIL. Lei Nº 9.394 (LDBEN). Brasília. 1996 2 BRASIL. Política Nacional de Educação
Especial da Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília. 2008 3 BRASIL. Nota Técnica
SESP/GAB/11. Brasília. 2011
38
sustentação e orientação de como o ensino deverá ser organizado, visando o
amplo atendimento aos diversos tipos de deficiências.
Na discussão sobre a educação especial com foco na inclusão
destaca-se a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva (2008), que considera a inclusão como novo paradigma
educacional e social. O documento considera que a educação especial foi
tratada por muito tempo como uma educação paralela a rede regular de
ensino, enfatizando a deficiência e as impossibilidades de aprendizado dos
alunos. Na perspectiva da educação inclusiva, a educação especial passa a
integrar a proposta pedagógica da escola regular, promovendo o atendimento
às necessidades educacionais especiais de alunos com deficiência. (Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008,
pág.9). A partir deste momento orienta-se uma proposta pedagógica ampla e
inclusiva visando o público da educação especial e a proposta passa a ser
uma proposta suplementar ou complementar ao ensino regular.
Segundo a nota técnica – SESSP/GAB/Nº 11/2010, caracteriza-se como
público alvo da educação especial os alunos com deficiência, transtornos
globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. E compete à
escola matricular esses alunos no AEE (Atendimento Educacional
Especializado). Portanto, terão dupla matrícula (sala regular e AEE).
O documento supracitado orienta e organiza o AEE em salas de Recursos
Multifuncionais, a serem implantadas nas escolas regulares. Sendo este um
serviço da educação especial que identifica, elabora e organiza o apoio
pedagógico e estrutural que possibilita a participação plena dos alunos com
deficiência no ambiente escolar, considerando sempre suas necessidades
específicas.
Na prática, muitas vezes, não temos os diagnósticos médicos que definam estas
especificidades que o aluno trás e, mesmo com os diagnósticos podemos perceber
claramente que eles não definem o aluno na sua amplitude e singularidade. Por isso, fiz um
trabalho com a micropolítica, uma experimentação ativa. (DIAS, 2011)
A chave para o trabalho com estes estudantes, como percebo, está no escape do
diagnóstico, ou na ampliação dele, de certa maneira. Por exemplo, em visita à Associação
Médica Fluminense, em Niterói, RJ, com a professora Vanessa Breia, encontro alguns
alunos com paralisia cerebral. Entre duas crianças, aparentemente com o mesmo grau de
lesão, uma delas, uma menina, falava com os olhos. Não me recordo de ter encontrado
olhar tão expressivo em minha vida. Quando lhe fazia perguntas, conversava com ela,
tocava seu rosto, seu olhar exprimia um sentimento de concordância ou não. Iluminava-se
ou se fazia franzido. Hoje, quando conto uma história, pretendo essa intensidade no olhar,
é desejo de um devir Menina da Associação Médica, aquele olhar me habita. Já o Menino
da Associação Médica, precisaria de mais tempo com ele para encontrarmos uma forma de
comunicação.
39
Assim, com estes diferentes referenciais de análise e de intervenção, cheguei à Sala
de Recursos. Sentidos aflorados pelas intensidades da graduação e da pesquisa. Com
algumas certezas e muitas dúvidas. Mas com o aprendizado de que para viver uma
experiência com meus alunos, seria preciso estarmos juntos na processualidade entre
ensinar e aprender, da forma descrita no texto coletivo da pesquisa:
Nossos questionamentos emergem pelos encontros, atritos e não pela
contemplação. Não há desconforto no distanciamento. Trabalhamos, então,
com a ideia de que pelas conversas, leituras, afetos, estudos, podemos
experienciar outros modos de pensar e fazer. Pensamos que a proximidade, o
fazer com, como nos diz Virginia Kastrup neste mesmo livro, nos possibilita
uma formação inventiva, nunca pronta, sempre em feitura. ... A autora diz,
ainda, que conhecer é praticar, agir e experienciar. (FONSECA; MACEDO;
BARROS, VILHENA, 2012, p 123).
Um texto que emerge como face de uma restituição da pesquisa, mostrando uma
maneira de fazer uma formação inventiva. Assim como pintar um quadro a quatro mãos,
coletivamente, colorimos a experiência de Iniciação Científica traçada pela invenção de si
e do mundo.
Articulando estudos, pesquisas, trabalhos de campo, leituras, entrevistas e debates,
considero que estar na Educação Especial pode parecer uma realidade das escolas de hoje,
mas acredito que seja uma escolha. Trata-se de um modo de habitar estes espaços com
abertura ao imprevisto, e essa abertura não ocorre acompanhada de padrões
preestabelecidos, nem de boa professora, nem de bom aluno. As muitas possibilidades no
trabalho com alunos da Educação Especial passam, também, pela condição de
distanciamento das fórmulas de sucesso, verdade, homogeneidades presentes em nós. Um
certo estado de liberdade do pensamento que pode ser exercitado. Aqui é ferramenta
criativa e possibilitadora de fazer emergir aquilo que lhes constitui. Quando nos
desvinculamos da ideia do certo ou do errado, a narrativa acontece como expressão de uma
experiência, de transformação, acontecendo em nós, como produção de subjetividade.
A escolha da leitura e da narrativa como eixo para o meu trabalho na Sala de
Recursos, aconteceu, portanto, pelas experiências narrativas na pesquisa e na OFIP, pelos
trabalhos apresentados na UERJ sem Muros, na feitura de livros infanto-juvenis, nos
debates acalorados das salas de aula durante a graduação, pelo curso de contação de
histórias feito em Salvador e por ter vivido com meu pai, uma paixão pelos livros, na
infância.
40
Minha chegada à escola, onde estagiei na sala de recursos, aconteceu como resposta
a um pedido meu, feito enquanto cursava o segundo período da faculdade. Isto não foi
possível já que existe uma cláusula da UERJ, quanto à possibilidade de se estagiar somente
a partir do quinto período. Neste momento o aluno terá direito a um seguro. Sem ele, a
escola não faz o contrato com o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola). Portanto,
quando cursava o quinto período, fui chamada para o estágio. Devo dizer que não
considero ser difícil uma oportunidade de estagiar na EE. Não são muitos os estudantes de
Pedagogia que fazem esta escolha.
Procurei esta escola, em primeiro lugar, por saber que ali existe uma Política de
Inclusão ampla. No total de 100 alunos, 30 são da EE. Além disto, meus filhos estudaram
nesta escola, no mesmo lugar, havia um vínculo entre nós.
Esta é, como disse, uma escola da rede privada, em Niterói. No turno da tarde
recebe os alunos da Educação Infantil e do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. O
trabalho na Sala de Recursos era feito por turmas, três vezes por semana para cada turma,
no mesmo turno. O tempo de permanência na Sala de Recursos variava entre 01h20min e
40 min. Apesar de ser estagiária, recebia os alunos sem acompanhamento de um professor,
exceto terças e quintas feiras quando contava com a presença da coordenadora da
Educação Especial.
Mas a vida é atravessada por encontros. Em um destes, uma aluna me deu pistas.
Aliás, durante o ano colhi pistas para o fazer pedagógico. Nossa rotina sempre aconteceu
por atravessamentos. Vou contar:
Na primeira semana na escola, precisei substituir uma professora que estava de
licença. Nesta sala, com 19 alunos, três eram da Inclusão. Nesta turma, conheci L, uma
menina, então, com 14 anos de idade que tem Down. L estava fechada. Enquanto escrevia,
tampava com os braços sua escrita, não deixava que víssemos sua produção. Sentada sobre
as pernas, ficava com o corpo fechado como um caracol, assim como sua comunicação.
Durante três dias foi assim. Consegui, furtivamente, perceber que sua escrita não atendia a
uma norma de construção de poder. Eram letras soltas, sem significado aparente. Depois
percebi, o significado era de que ela não queria ficar sem fazer as propostas trazidas para
os exercícios em sala de aula, mas como não estava entendendo do que se tratava, fazia
aquilo que podia. Depois, já na sala de recursos, percebi que após a leitura de uma pequena
frase, L não conseguia falar sobre o que havia lido. Além do medo de errar, ela era
analfabeta funcional, como chamamos comumente. O que fazer? Escolhi fazer como
41
ensaiamos no grupo de pesquisa e na OFIP, dando corpo ao texto. Narrando,
transformando em “obra de arte”.
A prática, portanto, se faz pela leitura de um texto escolhido pelo grupo dentre
algumas sugestões, ou aquele que percebo oportuno pelo que emerge do grupo. Este texto é
debatido, relido, esmiuçado, suas palavras são “desmontadas”, seus conceitos expressados
em corpo e voz. Quantas vezes o mesmo texto? Não sei. O processo do grupo o dirá. As
singularidades ditam o tempo e ele não tem hora para acabar, fica conosco enquanto
estudamos o que parecem ser outras disciplinas. Apenas parecem, pois o conhecer
relaciona-se a uma multiplicidade de temas que escapa aos currículos fechados. No
Abecedário de Deleuze, na letra P de professor, ele nos diz desejar alunos que na semana
seguinte, na aula seguinte, tragam as continuidades daquilo que foi abordado na aula
anterior. Ele não esperava respostas certas no momento da abordagem, mas perguntas
outras, desdobramentos de uma aula que não se encerra quando toca a sineta. Nessa
amplitude de tempo, tema, espaço, não se persegue uma “resposta certa”, pelo
conhecimento transmitido do professor para o aluno. Forçando um desmanchamento de
hábitos é que leitura e narrativa me possibilitam o uso da expressão de um grupo como
constituição de saberes. Trabalhando com alunos da Educação Especial, buscamos as
possibilidades de enfrentamento da leitura como trilha para viver aquilo que acontece
como aprendizado na Sala de Recursos.
Assim, aos poucos aquele espaço foi ganhando alguns contornos. Um simples texto,
uma história contada, virava teatro. Os leões rugiam, pássaros cantavam, borboletas
voavam. O verbo, nas frases, parecia ser a maior questão. A ação, talvez pela falta de
autonomia destes alunos, não era captada na frase. Ficava uma ideia solta de que alguém
estava no texto, mas este alguém não ganhava vida na narrativa deles. Incorporamos os
personagens. Fizemos casas e castelos de papelão, usamos chapéus, ensaiamos expressões
de caretas, de alegria, de dor, medo, montamos móveis e utensílios que usaríamos naquele
espaço valorizando o uso de material reciclado. O que nos cercava virava experiência.
Parecia um delírio para quem estava de fora, mas eles queriam estar ali. Não havia
desconforto do certo ou do errado, mas expressões daquilo que nos afetava.
42
Cortando, colando, montando um espaço de uso coletivo.
Viver o caos foi um prazer imenso! Do não possível, do incorreto, do triste, do não
lugar fizemos uma invenção. Aquele espaço não existia, nós o fizemos em cada detalhe
visível e não visível. As paredes eram nossa galeria de arte, nossa janela foi coberta por
uma cortina colorida de retalhos de nós e ainda provocou uma iluminação inesperadamente
aconchegante. Não havia separação entre o material e o humano, estávamos em tudo ali.
Esse caos estava ressoando...
A leitura do texto “Educação e Saúde: coletivização das ações e gestões
participativas” (ROCHA, 2001) é material rico aqui para nossas conversas.
Rosi nos fala, logo no início, que “estamos de tal forma individualizados que
inviabilizamos o nosso trabalho no caos. Para operar no caos, precisamos da
força do coletivo” Pronto, quase parece não ser mais preciso continuar a
discussão sobre o texto. Voltemos ao título e novamente à fala da Rosi: “A
escola não é um caos? Não estamos individualizados? Não estamos doentes
pelo desgaste daquilo que parece sem solução? E as dificuldades em lidar
com aquilo que surge? Será que ao falarmos em força coletiva não estamos
pensando em força corporativa?” É preciso muita atenção para não voltar a
um comportamento do qual já conhecemos os resultados. Não estamos
pensando em coletivo de professores e ou coletivo de alunos. Estamos
pensando em coletividade. Em um fazer juntos, onde não há um acerto ou
um erro, vamos no percurso, em um caminhar juntos naquilo que é possível.
(Diário de campo, 08/2010)
Aquilo que é possível, fala do não previsível, não dado, não comum. Viver
coletivamente uma experiência de aprendizado passa por escape das fórmulas de
solução de problemas e daquilo que é uma prática de um fazer pedagógico como o
único possível.
A ideia do comum analisada por Pélbart elucida a lógica de explicação no
campo da formação, que totaliza modos de produzir aulas, sequestrando e
colocando alunos e professores como cúmplices de políticas cognitivas que
43
mantêm vivas práticas de solução de problemas. Tais práticas essencializam
formas únicas de fazer a vida na formação e na escola, propagando a ideia de
competências e habilidades em manuais, currículos, Plano Nacional de
Desenvolvimento... Este modo de fazer a formação sequestra dos formandos
e dos professores seus territórios de pensamento. Diferente desta dimensão
explicadora, é possível tecer territórios de formação implicados com um
espaço-tempo de pensamento. Como dito anteriormente, lutamos para dar
visibilidade a ferramentas afetas à constituição de territórios de pensamento,
que lutam para entender escola e formação como usuárias e usinas do
conhecimento. (DIAS, 2011 p. 280)
Caminhando assim, a narrativa e a contação de histórias aconteciam. Os muitos
medos de arriscar, de experimentar, estavam sempre presentes. Em devir criança, vivemos
bruxa, lobo mau, urso faminto, projeção de todo o tipo de medo que eles possibilitaram que
conhecesse. A confiança entre nós crescia. Arriscar nos era possível. Arrisca-se por
entender aprendizagem como o compartilhar experiências e criação de uma política
cognitiva (KASTRUP, 2012, p 53). No reconto, as histórias ganhavam outras formas. Uns
discordavam dos outros e assim, ouvíamos o outro. Aquele que tinha medo do lobo mau,
agora queria ser o lobo mau. Aquela que era só uma princesa indefesa queria ser a bruxa e
amedrontar os outros, correndo atrás deles, gargalhando e fazendo caretas com o corpo
forçadamente contorcido.
Ensaio geral, no pátio da escola
A essa altura, as casas de papelão já não podiam conosco. Elas não aguentavam
tanta agitação. Fizemos uma casa com armação de madeira,8 janelas com cortinas, muitas
8
A estrutura da casa de madeira foi um trabalho feito por Arthur Alvarenga, grande parceiro daquele espaço.
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flores e colorido. Era a nossa “casinha do faz de conta”. Ferramenta indispensável, além
dos livros e da formação que amparava um fazer pela produção de subjetividade.
L. demorou a entrar na casa, não contava histórias, não representava. Um dia,
chegando à sala, foi até a estante de livros, escolheu uma pilha deles, entrou na casinha
(hábito criado por eles, quando queriam ler alguma coisa para o grupo), e começou a ler.
Dois tempos de aula se passaram, o recreio começou e acabou. O horário já era de outra
turma e ela estava ali, lendo em voz alta para mim, pois os outros já haviam desistido. Um
livro após o outro, leu, deu risadas, engrossou a voz, fez cara de má e de boazinha. Por
duas vezes parou e me perguntou: “Você me ama? Por que você me ama tanto?” Depois
deste dia, L foi uma das participantes mais ativas da casa do faz de conta. Já permitia que
víssemos seus exercícios de escrita, não se recusava a sair do balanço e voltar para a sala
de aula, ficava entre os amigos no recreio, antes era solitária, batia nos outros, e não era
aceita pelos colegas. O trabalho com ela foi um esforço da escola como um todo. Na sala
de aula, se antes fazia cópias imensas para uma mão e um corpo hipotônicos, agora recebia
os textos impressos e adaptados, seus exercícios estavam afinados com seus
conhecimentos. Estava namorando o M, aluno da escola. Demonstrou a beijoqueira que
havia ali. Tivemos trabalho para contornar seus desejos com os da escola e da família, mas
isso é uma outra história.
Vivendo assim neste espaço de criação coletiva, um dia JP, aluno de 14 anos de
idade, dislexo, com baixa audição, sensível ao convívio com os colegas, sempre trazendo
ideias, sempre desejando fazer diferente, sugeriu que fizéssemos um teatro para apresentar
na escola. JP queria que todos vissem o que acontecia ali, e ao mesmo tempo, demonstrava
estar realizando alguma coisa que lhe pertencia e transformava o menino excessivamente
prestativo, que estava sempre fazendo alguma coisa pelo outro, em autor da sua vida. Já
não lhe bastava viver fazendo favores e não viver sua própria história. Ele tinha uma vida à
qual desejava se dedicar, enfim.
JP sabe a imensa mudança que provocou em mim no percurso de sua
transformação? O JP contido, de braços colados ao corpo e sua infinita ânsia
em ser útil naquilo que lhe parecia ser o útil, não o vejo mais. Vejo um
menino que gesticula, um gogó que sobe e desce, rapidamente. Sim ele tem
pressa. Seus olhos já não fogem a todo o momento, sua perna está apoiada
na mesa porque ele se desvencilhou da postura “correta” para uma postura
que o é, o diz. Para um modo de expressão que acontece na plenitude de
estar. Como isso se desdobra em mim? Eu estou em devir JP. Um gesticular,
um estar solto que é JP em mim. Como é bom estar JP e soltar-me em gestos
fartos de afetos! Como é feliz ser JP Babélico! 07/01/2012
45
Essa idéia do JP me deixou apreensiva, mas não a neguei. Começamos a conversar
sobre ela. Qual texto seria? Quem participaria? Teríamos cenários? Figurinos? Demos
tratos à imaginação. Eles falavam em grandes castelos, roupas magníficas, mas fomos
chegando a um campo de possibilidades. Votamos entre textos escolhidos e venceu a
opção “A Bela e a Fera”, para esta turma. Acertamos que os papeis seriam definidos por
sorteio. Assim aconteceu, ninguém reclamou, embora todas desejassem ser A Bela e todos
queriam o papel da Fera. Somente L não quis participar, queria ser a Bela e não abriu mão,
portanto, não ensaiou uma personagem, mas participou de ensaios dando sugestões,
dançando e cantando conosco.
Muitas vezes me perguntei se tudo daria “certo”. Não um certo quanto à qualidade
das interpretações, da perfeição do cenário ou do figurino. Estes, eu sabia, seriam ótimos.
Não havia uma perfeição almejada, mas uma expressão artística do grupo. Os receios eram
outros, por exemplo, L, autista que tem a fala, mas muito poucas vezes deseja falar, seria o
Maurício, pai da Bela. Os alunos me perguntavam: “Como ele vai participar se não fala?”
respondia que veríamos no decorrer dos ensaios, não precisávamos nos preocupar agora, a
gente ia descobrir ou ele teria vontade de falar, quem sabe? Mas ele não falou. Então, a
solução foi pela narrativa ao fundo, nas cenas dele. O processo com ele foi muito
interessante, pois não havia abertura para o toque no corpo, não usava chapéu ou figurinos,
não aceitava. Depois de dois meses, todos nós o tocávamos, ele sorria muito, gargalhava,
dançava, e sabia sua hora de entrar em cena. Sentava-se na sua cadeira, dirigia-se para
frente do castelo com chapéu na cabeça e figurino. Os colegas quebraram estas barreiras
quando o tocavam sem pedir licença, mas o toque era afetuoso e foi acolhido. Se em algum
momento, para eles, a participação de alguém que não fala foi uma questão, agora não era
mais.
A ida para a Sala de Recursos era por turma: o 5º ano ia três vezes por semana, o
quarto, terceiro, segundo e primeiro também. Sempre separados por série. Para possibilitar
a encenação da peça, misturamos turmas. Essa mistura fortaleceu o grupo de amizades,
ampliando os encontros para fora da escola. Ao perceber o fortalecimento dos laços,
incentivei a troca de contatos por telefone. Eles, então, começaram a sair nos finais de
semana para o cinema, shopping, festas de aniversário. No segmento da Educação Infantil,
havia apenas um aluno, que vinha sozinho, mas depois, forçamos uma convivência com
outros grupos.
46
Muitas histórias aconteceram nestes encontros. Amores juvenis, revelações
artísticas, mudanças de hábitos. Uma das cenas que mais chama atenção, experimentamos
no dia da prova de roupas das peças. Antes, as roupas foram feitas por mim e pela
coordenadora da Educação Especial, nas cores originais das personagens dos livros.
Portanto a Rosa, de A Bela e a Fera, vestia um manto e vestidos rosa. Ao sair da sala para
mostrar, muito orgulhosa, a roupa para a diretora da escola, deparou-se com V, aluno que
tem Down, assim como ela. Ao vê-la, ele ajoelhou-se no chão e lhe disse: “Eu nunca vi
uma garota tão linda!”. M correu para o banheiro, seu rosto estava rubro, seu sorriso era
maior que a boca, ela me abraçou e seu coraçãozinho estava disparado. Ela disse: “Tia,
você sabia que eu gosto do V?”. Pronto, tínhamos mais um casal de namorados. V
demonstrou ser um romântico, rasgava-se em elogios para sua predileta e ela, era só
suspiro. Mas V também era de uma espontaneidade rascante. Muitas vezes magoou sua
amada por ter dificuldades com as palavras. Enfim, a vida ali não era diferente em nada. A
formação ali era vida com seus afetos e perceptos.
M. vestida para viver a Rosa
Assim, a “Bela e a Fera” era a peça do 4º e 5º anos, “Duas Cabritinhas e o Lobo
Guará”, do 5º e 3º anos. O 2º ano não teve uma peça nesse modelo, mas algumas
experimentações da aluna A, com colegas de outras turmas, numa tentativa de socialização
47
através das brincadeiras. O 1º ano trabalhou com um relato de uma experiência vivida no
grupo. Todos os trabalhos se transformaram em livro digital e de papel. O livro digital foi
uma técnica adquirida nas aulas da disciplina de Informática e Educação II, com o
professor Rogério Coutinho.
O semestre corria intercalado por ensaios e por aulas com conteúdos curriculares. A
Sala de Recursos, muitas vezes, foi vista como um espaço para o reforço escolar. Havia
uma cobrança dos pais e da coordenação neste sentido. Como responsável pelas atividades
ali executadas, vivia um sentimento de que estava fazendo alguma coisa na qual não
acreditava e não desejava. Naquele momento, no meu entendimento, estávamos dando
forma a um grupo que embora incluído na escola, não fazia, até então, suas escolhas e seu
círculo de amizades. Contudo, algumas vezes defendi que o uso da régua, por exemplo, na
feitura de cenários, a leitura, a interpretação dos textos, a escrita e o reconto contemplavam
atividades de qualquer currículo. Um trabalho curricular que acompanhasse a sala de aula,
para mim, poderia esperar, mas não pôde. Também estes momentos de tensão faziam parte
daquele espaço. Trago diários de campo que relatam a expectativa de atendimento por uma
demanda que passa pela aquisição de conteúdos curriculares.
A professora da turma que estava na sala de recursos entrou sem bater.
Jogou os livros de matemática das duas alunas dela em cima da mesa e disse:
“Elas precisam fazer estes exercícios, lá na sala não dá para acompanhar
com a turma, elas não dão conta e eu tenho prazo a cumprir. Ao invés de
ficarem aqui brincando elas deveriam estar estudando. Sabia que os pais
estão reclamando? Eles pensavam que a sala de recursos seria para ajudar
nos estudos.” Não respondi de imediato. Esperei que ela se retirasse e
continuei fazendo a atividade para a qual havia me preparado. Depois, pedi
que não discutíssemos estas questões na frente dos estudantes. Desde então,
não recebi sequer um bom dia desta professora. (Maio/2011)
A atividade na Sala de recursos naquele dia consistiu-se na “árvore pedagógica”.
Um jogo no qual se faz uso de adição e subtração. Havia um ambiente descontraído, no
qual alegrias e contrariedades podiam ser expressas. O que não havia era uma
simultaneidade entre atividades de Sala de Recursos e Sala de Aula.
...Valéria, você pode me ajudar com o V? Li um texto para ele que fala de
medo. A Estrela, no texto, passou por uma experiência de medo que ensina a
conviver com as dificuldades. Pedi que V fizesse um relato de um momento
em que ele teve medo e ele escreveu: “Acordei de madrugada na casa nova.
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Estava tudo escuro. Tive vontade de ir ao banheiro, mas fiquei com medo de
cair e bater com a cabeça. Pode isso? Achei tão sem graça essa experiência
dele comparada com a da Estrela!”. Conversamos, então, sobre a casa nova
ser um ambiente desconhecido, a provável dificuldade de encontrar o
interruptor, de sua baixa visão, dos possíveis tombos que levou na vida e de
sua preocupação em proteger a cabeça e principalmente sobre a real
possibilidade de avaliarmos o que seria uma experiência sem graça para o
outro. Depois da conversa ela ainda me disse: “Assim, dificilmente eles vão
melhorar a escrita, você acha explicação pra tudo que eles fazem” (outubro
de 2011)
Não referindo ao conceito de escrita melhor ou pior, V. já havia feito muitos
movimentos. Não parei, antes daquele momento, para perguntar: O que V. aprendeu hoje?
Não o sabia e não o pretendia saber na exatidão das palavras. Sabia que ele não escrevia,
no início do ano, duas frases que imprimissem uma lógica, dentro da nossa capacidade de
entender “lógica” com princípio, meio e fim. Percebia um desejo imenso de se expressar e
fazer entender naquilo que estava lá, mas ainda não era possível de ser visto. Dias (2011, p.
257) sustenta este pensar:
As perspectivas que conhecia, que havia aprendido antes do doutorado, não
me permitiam “tornar visíveis forças que não são visíveis” (DELEUZE,
2007, p. 62), porque elas operavam na inércia de colocar aprendizagem e
cognição num processamento evolutivo e linear que já estava dado no início.
Deste modo, somente poderia representar o que aconteceu: ou seja,
representar as formas dadas e explicá-las... Com os estudos e as leituras,
escritas e reescritas, fui identificando que o a priori não permitia que a
invenção acontecesse. Era necessário abrir-me aos movimentos da invenção.
Ler sem compreender, estudar pelas sensações para ser afetada. Depois, pude
achar as explicações, dar visibilidade e enunciar o que acontecia. (DIAS,
2011, p. 257)
Portanto, não havia um “achar explicação para tudo o que eles fazem”. Havia algo
parecido com um investimento no tempo entre fazer e conhecer. Não havia pretensão de
fazer uma arguição a respeito daquilo que foi abordado na Sala de Recursos.
L, todos os dias passa em frente a minha sala na hora da entrada. Não fecho
a porta antes que ele passe. Então, chamo seu nome. Isto acontece ha seis
meses. No início ele apenas parava, não movia o pescoço na minha direção.
Quando parava, sabia que estava me ouvindo. Com o passar do tempo,
resolveu olhar para mim, após o chamado. Ainda não havia expressão no seu
olhar. Hoje, antes que o chamasse, olhou para mim e disse “bom dia
Valéria”, depois, jogou um beijo em retribuição aos seis meses de beijo que
lhe joguei. Estou feliz!!! (Diário de Campo, 06/2011)
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A Educação Especial ensina a dar atenção aos pequenos gestos. Estes diários
possibilitam uma cartografia dos processos em curso, mesmo que pequenos. Quando
cartografamos, temos oportunidade de olhar de novo, planejar, tensionar aquilo que está
em curso e enfim, viver essa transformação pelas escolhas feitas entre a análise e a
intervenção. O relato do terceiro diário faz recordar uma reunião com a mãe do L, que é
autista e fez o personagem do Maurício, pai da Bela do nosso teatro. Ela questionava a
relação do filho com a sala de recursos. Citou a necessidade de insistir com ele para que
vencesse as dificuldades e deu como exemplo uma experiência traumática que o fez ficar
dentro do carro durante um ano, sem entrar na igreja com a família e que ela precisou
insistir durante este ano inteiro, para que ele arriscasse o retorno. Depois de ouvir meu
relato da espera por um contato que viesse da vontade dele em se comunicar comigo,
amparado pela minha demonstração diária de desejo de criar laços, ela me disse:
“Caramba! Você precisou deste tempo todo para conseguir isso?” Apesar da análise, que
entendo como contraditória feita pela mãe, o que foi bacana nessa experiência foi o fato de
que ela, aos poucos, percebendo as transformações do filho, abriu-se para olhar as muitas
possibilidades que ele trazia quando aconteciam estes encontros.
Nos dois diários anteriores a este, o que destaco é que ainda pensamos as Salas de
Recursos como locais para aula de reforço escolar. A lei nos diz: “Segundo a nota técnica –
SESSP/GAB/Nº 11/2010; O documento supracitado orienta e organiza o Atendimento
Educacional Especializado (AEE) em Salas de Recursos Multifuncionais, a serem
implantadas nas escolas regulares. Sendo este um serviço da educação especial que
identifica, elabora e organiza o apoio pedagógico e estrutural que possibilita a participação
plena dos alunos com deficiência no ambiente escolar, considerando sempre suas
necessidades específicas”. Uma das questões recorrentes é quem identifica estas
necessidades específicas? Até que ponto uma escola da rede privada deve permitir a
interferência dos pais na definição das atividades, no caso, pensadas para a promoção de
um ambiente que potencialize o aprendizado? Por que a sala de aula é um local de respeito
ao professor e a sala de recursos não recebe o mesmo olhar?
Estagiar em uma Sala de Recursos foi uma experiência intensa e, também por isso,
prazerosa. Na proposta da formação inventiva de professores (DIAS, 2012) que se
articulada com a Análise Institucional (LOURAU, 1993) e o Método da Cartografia
(DELEUZE, 2004) o trajeto passa pelos afetos. Portanto, aquilo que emergia do grupo
50
seria o nosso material de trabalho. Nosso fazer acontecia de maneira implicada com os
processos em curso. A invenção, com a qual articulamos, está referida àquilo que já existia,
mas até aquele momento não pode ser visto, percebido. Inventar, nesta proposta, é tornar
visível, fazer emergir o que está ali e fazer de novo, de maneira transformada. Com as
turmas da Sala de Recurso, em produção de subjetividade, reafirmo uma formação pelas
possibilidades, tecidas micropoliticamente nas relações, nos encontros. Trabalhar nesta
perspectiva provocou deslocamentos que viabilizaram um fazer escapando da frase comum
na escola do “dessa maneira não é possível”. O deslocamento aqui é o escape de uma
prática que se pretende dada antes de viver a processualidade. É invenção de si e do mundo
(KASTRUP, 2007). Quando não se projeta um determinado objetivo a ser alcançado,
abrindo-se para o encontro com os estudantes, vive-se uma imprevisibilidade que é potente
no fazer pedagógico. Isto não seria possível sem uma graduação feita de muito estudo,
pesquisa, leitura, e enfrentamento das dificuldades que nós, alunos de uma graduação, seja
ela qual for, experimentamos no percurso que tem como eixo a noção de formação
inventiva (DIAS, 2012).
Durante a graduação, como pretendi narrar, estive em algumas Salas de Recursos,
outras tantas escolas nas salas regulares, seminários e mesas de debates. Percebo, nesta
trajetória, que cada escola tem uma Sala de Recursos. Assim como cada uma delas tem o
seu PPP (Projeto Político Pedagógico). O que difere uma das outras é como as pessoas se
articulam com estes espaços, como lêem as leis, as trilhas que escolhem para fazer o
trabalho. René Lourau (1993) nos diz que a instituição não é um prédio, um endereço
conhecido, mas aquilo que aqueles que compõe aquele espaço escolhem como práticas no
fazer diário. Escolhi, então, um fazer que não se refira a um estágio pela representação de
um ideal de Sala de Recursos, que não acredito existir. Foi feito um investimento que
possibilitasse o emergir daquilo que ainda era difícil para meus alunos, suas muitas
possibilidades, desejos, medos, enfim aquilo que lhes constituía. Também eu vivia estas
questões. A narrativa, acompanhada de leitura, produção de textos, expressões de corpo,
voz, contação de história, montagem de cenários, ensaios de canto, dança, conversas soltas
e encontros extraclasses foram os dispositivos9 para afirmar um espaço de aprendizagem.
Aprendemos juntos e ainda estamos vivendo aquelas experiências.
9
KASTRUP (2009), p.76-91
51
O problema da formação inventiva de professores coloca em análise nossa
capacidade de lidar com a alteridade, com a diferença que circula na
formação e que também nos habita. Com isto, é possível afirmar que
formação não é dar forma ao futuro professor, mas produzir um território
que se compõe como um campo de forças criando ético, estética e
politicamente outras formas de habitar, de pensar e de fazer formação. Ético,
porque abre-se a possibilidade de fazer escolhas, remetendo à análise de
nossos atos, nossas implicações com as instituições em jogo; estético, para
pensar a formação como invenção de trajetórias de aprendizagens em meio a
múltiplas forças e, político, porque este coloca em desafio a constituição de
um campo de intervenção, problematizador e crítico, intensificador de
encontros. (DIAS, 2012)
Analisar a “capacidade de lidar com a alteridade, com a diferença”, é um exercício
diário. Abertura para os encontros é uma pista que persigo, não só para a Educação
Especial, mas para a vida.
52
CONCLUSÃO
A aposta de uma formação inventiva é fazer com o outro, e formar é criar
outros modos de viver-trabalhar, aprender, desaprender e não apenas
instrumentalizar o outro com novas tecnologias ou ainda, dar consciência
crítica ao outro. Uma formação inventiva é exercício de potência de criação
que constitui o vivo, é invenção de si e do mundo, se forja nas redes dos
saberes e fazeres produzidos histórica e coletivamente. (DIAS, 2012, p.36)
Este trabalho fez ver, pela narrativa, os processos de uma formação em Pedagogia.
Uma política de evidenciação daquilo que está acontecendo. Sempre referido ao
acontecimento como produção de subjetividade, não narra um percurso de formação que
resulta apenas em um certificado de conclusão do curso, mas uma formação como
(trans)formação (Ibidem, 2012), atravessada pela pesquisa de formação inventiva de
professores.
Com a certeza de que não foram contemplados todos os atravessamentos ocorridos,
procurou afirmar as intensidades provocadas quando se faz um curso com a oportunidade
de participar de uma pesquisa na universidade, levando a sério a estreita relação entre
formar e pesquisar.
Este tem como objeto de análise e de intervenção, experiências narrativas em uma
Sala de Recursos na noção de formação inventiva de professores. A maneira implicada de
viver essa experiência possibilitando abertura para disciplinas curriculares, fazendo durante
a graduação uma articulação entre estudos, pesquisa e estágio.
Este trabalho não pretendeu dizer que esta ou aquela seriam formas melhores ou
piores de se tornar Pedagoga. Procura restituir uma experiência de percurso, tendo nos
encontros uma potência no fazer inventivo e a Educação Especial como um campo de
trabalho na área da Educação.
Neste percurso, a Análise Institucional (LOURAU, 1993), foi uma importante
intercessora para um fazer que investiga os movimentos instituintes, suas diferentes linhas
para uma prática que se dê em relações política, ética e estética e faz da autogestão
potência transformadora de uma pedagogia que atenda a um ideal de aluno, escola,
formação e professor, facultando deslocamentos para um fazer possível.
As Pistas do Método da Cartografia (PASSOS, 2009) sua política de escrita,
narratividade e atenção, ampliam a proposta de Lourau na dissolução de pontos de vista
fechados, possibilitando uma cartografia dos processos instituintes, tendo como ferramenta
53
o diário de campo, sem o qual esta restituição não poderia ser feita na maneira como foi
proposta.
A invenção, que possibilita fazer ver o que está ali, no caso, os processos de ensino
e de aprendizagem, fazendo uso da narrativa benjaminiana como ferramenta de viver
experiências pelas leituras, arte e contação de história foram as práticas usadas no trabalho
com estudantes da Educação Especial na perspectiva da Inclusão.
A participação na OFIP e no grupo de pesquisa sobre formação inventiva de
professores ressoando na sala de recursos, afirmam uma graduação feita na amplitude que
as pesquisas nas universidades podem propiciar aos graduandos, não só de Pedagogia.
Reconhece ser uma política de investimentos na formação que contribui com técnicas e
práticas além das disciplinas curriculares, provocando transversalidades no ensino e na
aprendizagem atentas à ideia de que formação é transformação de si e do mundo. Isso
requer o refinamento e a prática de conceitos ferramentas que nos ajudem a tomar práticas
profissionais como uma experiência. Ao fazer isto, é possível narrá-la. Mas, para tanto,
vivi sempre entre, estudar, escrever, estagiar, pesquisar, aprender. Mais do que ensinar, a
tarefa do Pedagogo é aprender a percorrer uma trajetória que se faz em permanente
transformação. Claro, se ele toma tanto ensino, como aprendizagem como processos de
invenção.
Sobretudo, o estágio em uma Sala de Recursos, fala de estranhamento, de busca, de
complexidade, de diversidade, de micropolíticas e de diferença, utilizando e me remetendo
a referenciais que desautorizam as prescrições e sublimam a necessidade de se penetrar
atentamente no presente. Mais do que divergir, diferir:
Pouco importa a veracidade autorizada da palavra diante da sua história. A
maneira pela qual o logus se instituiu em nossa cultura nos levou a perda das
incomensuráveis dimensões da existência na palavra articulada com as
potências, movimentos e transitoriedades da natureza. Aprisionada em
dicionários, por fim, elas dizem sobre esta ordem das coisas, com seus
sinônimos e antônimos dispostos para expressarem diferir. Entretanto, mais
do que divergir, prolongar, distinguir-se ou prorrogar ou alguns de seus
contrários como apressar, assemelhar-se ou abreviar, o verbo ou a alocução
diferir não nos remete apenas ou diferente, em seus antagonismos de
combate ou capturas para a convivência pacífica, mas a uma maneira de
viver a diferença. O diferente não está circunscrito a uma uniformidade.
Escapa das classificações e da tranquilidade oferecida pelo significado. Um
diferente provoca confluência de palavras dispostas no enunciado porque
antes de qualquer coisa ele as ouviu provenientes de uma relação. Diferir é
compartilhar com alguém que ouça antes de falar; que se encontre na
54
mutável e surpreendente natureza disposto a abolir o poder de domesticá-la e
incorporá-la como uma substância numa suposta natureza humana; que
saiba distinguir entre opiniões e estilos de existência. [...] Diferir: divergir e
concordar no potente, prorrogar e abreviar as circunstâncias, aproximar-se
honrado, prolongar e apressar a brevidade da vida. Diferir: atitude própria de
amigos iguais - diferentes, corajosos, destemidos, revoltados, afetivos,
heterotópicos. A vida permanece urgente fora das substâncias e das
assimetrias. (PASSETI, 2012, p. 141-143)
O estágio em uma Sala de Recursos faz ver um trajeto para além das competências
como conceito de aptidão para um conceito dos possíveis (DELEUZE, 1992) de uma
atualidade daquilo que se experiencia sendo a própria potência do aprendizado em curso.
Foi um estagio que, além de consolidar a escolha do trabalho na área da EE, consolida o
fazer na maneira, como foi dito na p.39 deste trabalho: “o que nos cercava virava
experiência”.
Caminhar na Educação, no contexto das políticas de educação em nosso país, não
parece tarefa simples. Buscar outros caminhos que escapem da ideia de professor executor
de tarefas pré-definidas para alunos pré-dados parece ser um caminho possível para este
fazer/ser. Cartografando ficam-nos pistas, sempre fazendo escolhas, fico com a noção de
formação inventiva.
55
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e