EDUCAÇÃO FÍSICA NA EJA POTENCIALIZANDO DIFERENTES SUJEITOS E CONHECIMENTOS Rosa Malena Carvalho ( Comunicação coordenadora/Coordenadora) Cintia de Assis Maria Cristina Silva Torres Buscamos dialogar atributos do humano, geralmente condicionados à determinadas faixas etárias (como o brincar, o jogar, a alegria), com os sentidos predominantes desenvolvidos pela Educação Física Escolar na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Através da pesquisa com/nos cotidianos escolares, parte-se da hipótese de que a EJA favorece esta discussão, pois a diversidade de situações, experiências e sujeitos encontrados possibilitam tensionar as noções predominantes de conhecimento, de corpo e das práticas corporais desenvolvidas nestes cotidianos escolares. Falar em EJA é afirmar a educação como direito e devir, diferenciando-a dos sentidos de carência e suplência, abordando o valor e os significados das práticas pedagógicas para os jovens, adultos e idosos. E, neste fluxo, interroga-se o que é considerado “básico” na educação. Discussão que integra o curso de especialização em educação física escolar, oferecido pelo Instituto de Educação Física (IEF) da UFF. Aqui, aproximadas pela disciplina “corporeidades e processos escolares” deste curso de especialização, através de nossas pesquisas, objetivamos potencializar as práticas corporais, lúdicas e de lazer, como linguagem e patrimônio sócio-cultural e, portanto, disposições coletivas de criação e enunciação. A corporeidade, neste movimento, pode constituir-se em uma das possibilidades de pensar os sentidos que damos à condição humana e os processos educacionais como lugares de encontros, com diferentes e potentes práticas pedagógicas – incluindo a educação física escolar. Palavras-chave: educação física escolar, corporeidades, EJA, conhecimento, cotidiano escolar. EDUCAÇÃO FÍSICA NA EJA - LUGAR DE CORPOS POSSÍVEIS Profª Cintia de Assis (CESAE / [email protected]) O presente trabalho ensaia uma análise sobre os corpos no cotidiano escolar, especialmente na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Dialogar com a atuação de professores de Educação Física e as reais possibilidades de intervenção nas aulas. Também traz à tona a necessidade de ampliação do olhar, de todos os docentes, das diferentes áreas, sobre a voz e vez dos alunos neste território (EJA), considerando o corpo como construção social. Construção cultural essa que perpassa por suas experiências anteriores, em seus grupos sociais, em suas aulas de Educação Física no decorrer de sua história de vida. A Educação Física chega a esse corpo como uma das tantas possibilidades de tirá-lo de sua zona de conforto, desafiando-o e trazendo-o à 2 atividade. A questão é: como intervir, se muitos de nós professores desconhecemos ou nos recusamos a dialogar com os símbolos apresentados pelos alunos? Em princípio é preciso estudo, espaço de diálogo para que possamos decifrar o que está à frente de nossos olhos e olhares. É interesse a ênfase na função social da escola e especialmente da Educação Física no contexto da EJA. É imperioso ressaltar que não há conhecimento que possa tomar lugar da relação. Não tem como estar em um espaço de aprendizagem, onde a corporeidade é a grande vedete e não nos lançarmos ao outro, não nos disponibilizarmos para a troca. Desta forma, através de inúmeras provocações, trabalharemos com uma das maiores qualidades do ser humano - se não a maior - que é a incompletude forjada no corpo de aluno da EJA. Neste movimento, contamos com a colaboração de Paulo Freire, Silvio Gallo, Denise Najmanovich, Azoilda Trindade e Jocimar Daolio. Palavras-chave: cotidiano escolar; corpo; cultura; educação física. Introdução O diálogo com o cotidiano nas aulas de educação física na Educação de Jovens e Adultos traz à tona a necessidade de um olhar diferenciado das lentes convencionais. Esse modo de ver desejado por nós destaca a importância da corporeidade de todos (alunos, professores) compreendendo que estes corpos se formam através das experiências vividas, demonstrando que foram, são e serão forjados na cultura. O cotidiano nos torna mais capacitados para compreender e intervir de forma responsável nestes corpos, através de vivências de práticas corporais, conhecimento dos alunos, enfim da dinâmica da vida escolar na EJA, tão cheia de possibilidades. Esta intervenção tem como aporte a cultura corporal. O texto dialoga com vivências pessoais, leituras e debates enriquecedores realizadas no curso de Especialização em Educação Física Escolar, principalmente nas aulas da disciplina Corporeidade, onde conceitos acerca de cultura, educação, educação física escolar e com o foco da discussão, que é o trabalho com educação física na EJA foram levados em consideração. As problematizações foram pinçadas neste cotidiano, com intuito de ampliar o conhecimento e favorecer um diálogo a partir do olhar da cultura, evidenciando, ainda que nos choque, que como disse certa vez a professora Rosa Malena “há vida além de nós na escola, é preciso descobrir que vida é essa.” Um olhar sobre o cotidiano nas aulas de Educação Física Escolar 3 É importante ressaltar que são muitas situações de observação, que por serem parte do cotidiano acabam passando-se por corriqueiras, porém com um olhar mais apurado podemos dizer que são importantes e indispensáveis ao conjunto de ações que formam a nossa prática enquanto educadores. Um tema que tem sido motivo de reflexões é o “torpor” demonstrado por parte de muitos alunos e alunas do turno da noite, no que diz respeito às propostas de atividades. Destaco esse comportamento nas aulas de Educação Física, mas ouvi depoimentos parecidos por parte de outros professores, das variadas disciplinas. Ao refletir e buscar respostas, encontro primeiramente o cansaço por um dia de trabalho de grande parte dos alunos; a dificuldade das acomodações do espaço físico da escola (não tem um banheiro, um vestiário em condições decentes de uso) - o que tem gerado reclamações sobre voltar para a sala suados e sujos, após a aula de educação física; percebo também, que a questão relacionada à nutrição é bastante relevante, pois alguns relatam que ficam muito tempo sem se alimentar, o que é inadequado para o bom funcionamento do organismo. Observo a falta de motivação no que diz respeito à novas experiências corporais, parecendo que estão acomodados em permanecer parados, sem contato com o que está ocorrendo; deixo para última análise o fato de que muitos não tiveram acesso à diferentes vivências corporais, ao menos no que se refere à Educação Física Escolar, pois nas avaliações diagnósticas sempre se reportam ao esporte, relatando que não gostam de X esporte, meninas dizem que não conseguem jogar com meninos, por isso preferem ficar fora da atividade, muitos relatam que nos anos escolares anteriores fizeram muitas atividades iguais ou parecidas, e que não gostaram ou não pretendem repetir o que já conhecem. Que corpo é esse? Eu quero saber! No início das reflexões tentei localizar na vida - linha de tempo - de cada aluno onde se deu o nó, se é que se deu algum nó, onde a coisa emperrou e fez com que deixassem a curiosidade, o desejo e o desafio de lado. É sabido que experiências mal fadadas podem traduzir-se, mais tarde em bloqueios nas diversas áreas da vida, porém o objetivo maior não pode ser uma volta ao passado na procura por algo que não “deu certo”, por algum dispositivo que tenha gerado o “torpor”, mas sim uma viagem de cada 4 um a si mesmo, em tempos diferentes para rever e caso desejem, fazer diferente nas situações atuais. Azoilda Trindade (2002) adverte sobre os corpos no cotidiano escolar “movimentos de corpos vivos, relações corporais que implicam embates, conversas, entendimentos e desentendimentos, encontros, desencontros, vida, muita vida.” Analisando a partir deste olhar, fica difícil nos colocar como docentes, como interventores deste/neste corpo se não nos dispormos a compreender esse corpo em toda sua trajetória. Nós temos deixado que o aluno fale? Que conte sua trajetória? Ele tem chance, através de das intervenções, de dialogar consigo mesmo? E nessa trajetória, onde e como esse aluno está localizado agora, neste período? A EJA vem trazer questões interessantes para a discussão. Qual é o papel, ou melhor, papéis da escola? A pergunta é complicada, pois nos remete a uma análise do que se têm em relação às diferentes concepções que estão na dinâmica escolar, tais como: concepções de sujeito, aprendizagem, sociedade, cultura, etc. Podemos arriscar que esta recusa em participar das aulas pode dever-se, em parte às experiências corporais diversas que deixaram de ter e que poderiam ser constituintes de sua corporeidade. Segundo Daólio (1995), é possível discutir o corpo como uma construção cultural...Tornar-se humano é tornar-se individual, individualidade esta que se concretiza no e por meio do corpo. Pode-se dizer que o torpor não pode ser somente por parte do aluno enquanto individualidade, mas é um evento cultural que tem constituído uma marca nesse aluno. Essa construção cultural perpassa por suas experiências anteriores, em seus grupos, em suas aulas de educação física no decorrer de sua história de vida. Considerando a importância da educação física, vale lembrar que Daólio diz que “atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual esse corpo está inserido” (Daólio, 1995, p.42), logo vale a insistência em repensar a nossa prática, legitimando essa pessoa, esse aluno como um sujeito da vida social. É importante também ressaltar que no destaque que estamos analisando, as técnicas corporais podem ser aparentemente ausentes, já que os alunos que não querem realizar as atividades demonstram uma paralisia. Mas é o contrário, acaba sendo uma utilização da técnica corporal de afastar o professor e manter-se confortável, parado, sem desafios. 5 Esta técnica corporal, como tantas outras pode ser atribuída ao desejo, à opção do aluno em expressar-se desta forma, mas, muitas vezes a escola, a sociedade na qual está inserida dita, direta ou indiretamente, a forma como ela deve se comportar diante das inúmeras situações da vida. No que se refere à escola, sabemos que há muitos “nãos”, “não pode” e “ não é assim que se faz” no percurso/trajetória escolar dos estudantes. São mantras que se levados ao pé da letra podem naturalizar-se e impedir novas tentativas, criando assim posturas “encaixotadas”, prontas para serem usadas diante de variados momentos da vida. Em se tratando da Educação Física Escolar, e na EJA, percebe-se que em muitas aulas práticas, onde todos estão expostos, pelo menos aparentemente, não é necessário o mantra já citado, basta algum olhar, alguma situação onde a falta de cuidado do professor se faça presente, para que se desqualifique este “corpo” e a ousadia que nos torna seres humanos capazes de enfrentar situações adversas passe a ficar trancafiada, e a capacidade de adaptar-nos aos ambientes diferentes passe a ser mais utilizada, fazendo com que nos acostumemos a ficar de lado, a não tentar porque já sabemos que erraremos, ou pelo menos acreditamos nisso. Desistimos assim de nos jogar, de arriscar e até de participar de ações simples, que temos certeza que sabemos. A forma indireta - mas evidente - de ditar os comportamentos e ações das pessoas, neste caso os alunos da EJA, é a ideologia dominante, diante de tantas contradições , que preconiza que a vida é assim, que as aulas de educação física são assim mesmo, que devem ser para quem gosta e sabe, internalizando que o esporte e outros conteúdos mais voltados para competição e utilização de habilidades/valências físicas específicas não servem para todos. Educação Física Escolar e EJA- caminho de possibilidades no território da cultura A Educação Física chega à esse corpo como uma das tantas possibilidades de tirá-lo de sua zona de conforto, desafiando-o e trazendo-o à atividade. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), Entende-se que a Educação Física escolar como uma disciplina que introduz e integra o aluno na cultura corporal de movimento, formando o cidadão que vai produzi-la, reproduzi-la e transformá-la, instrumentalizando-o para usufruir de jogos, esportes, danças, lutas e das ginásticas em 6 benefício do exercício crítico da cidadania e da melhoria da qualidade de vida. (vol.7, p.225) Desta forma entendemos que as intervenções nas aulas de educação física na EJA devam ter a preocupação de considerar que os jovens e adultos que ali estão tem direito e possibilidades de acesso a múltiplas atividades que lhes façam sentido. Neste aspecto é importante ressaltar que a oferta de vivências corporais deve aproximar-se de seu interesse e oportunizar a curiosidade e experimentação. Temos então alguns temas que podem ser propostos para as aulas na EJA: capoeira, jogos e brincadeiras populares, ginásticas, danças que fazem parte de suas vidas, jogos cooperativos, entre outros. Corremos o risco de os alunos não quererem arriscar-se, mostrar-se, expor-se, porém isso não é impedimento para a tentativa de desenvolver um trabalho coerente. Podemos considerar também que muitos denotam dificuldades em participar das atividades. Principalmente aquelas já citadas que tem como foco, evidente ou não, a comparação, a competição. Voltamos a pensar no fato de que os atores da escola (alunos, professores, funcionários), a escola, a rua da escola, o bairro, a cidade, o estado, são elementos de uma sociedade que ainda é composta/influenciada por um sistema binário, onde vigoram algumas ideologias e padrões de tratamento, por exemplo, brincadeira é coisa de criança, ginástica é coisa de mulher, futebol é para homens e escola é lugar para ensinar. Este sistema muitas vezes difunde a idéia de que as alunas e os alunos da EJA estão alocados fora do “tempo escolar”, como se este tipo /modalidade de ensino fosse um arremedo da dita educação formal e que estes educandos devessem ser cuidados. Nosso olhar nos permite saber que o trabalho com a EJA se propõem diferenciado assim como qualquer outro no que se refere ao seu currículo, suas estratégias, porém a “pessoa”, o ser humano que ali está é que vai nortear o trabalho, afinal, vivemos tempos interessantes, em que buscamos enquanto educadores, não mais fazer aquele planejamento anual, a ser entregue no início do ano letivo, com os conteúdos já distribuídos em números de aulas, e sim convocamos os alunos para uma construção coletiva de um planejamento executável e vivo. Mais uma vez nos reportamos a Paulo freire, que diz que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo‟. 7 Fica difícil, quase impossível conceber um programa/planejamento de educação física onde não se ouse ouvir a voz dos alunos, seus conhecimentos, suas necessidades, seus interesses. Principalmente quando se trata de alunos jovens e adultos, onde as experiências/marcas são o grande diferencial. Acreditamos na incompletude de todo ser humano, que nos permite pensar que não há uma “falta”, uma “ausência” de algo que estabelece uma dificuldade, e sim a dinâmica humana em constante construção, em processo contínuo, onde cada um tem sua bagagem, suas experiências. Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se sabe como tal. Mais ainda, a inconclusão que se reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca. Histórico-sócioculturais, mulheres e homens nos tornamos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele (FREIRE, 1996, p.55). Aí entra uma Educação Física que se faça capaz de intervir sem com isso ditar o trâmite do processo (tempo, conteúdos, abordagem) de forma a encaixotar/uniformizar todos sem a maravilhosa distinção que nos faz únicos. Como intervir se muitos de nós professores desconhecemos ou nos recusamos a dialogar com os símbolos apresentados pelos alunos? Em princípio é preciso estudo, espaço de diálogo para que possamos abrir a mente e decifrar o que está à nossa frente. Uma outra análise acerca da indisponibilidade dos alunos fazerem a aula de educação física nos remete ao que essa aula oferece. Apresenta-se então uma questão bastante delicada para nós educadores. De onde se fala? Para quem se fala? O que se fala? Como se fala? Por que e para que se fala? Se o professor busca, em seu planejamento, considerar as concepções de homem, de sociedade e educação que legitimam o aluno como sujeito histórico, como ator do processo, já há certa distância percorrida para um trabalho de qualidade, pois as ações não poderão ser estáticas, prontas, planejadas de forma irreversível. Pelo contrário, é uma dinâmica evolutiva, experimentando, acertando, se equivocando, refazendo. O fim do processo é importante, mas a caminhada vale muito, é ela que 8 permite que apareça o que somos, o que vamos construindo. E o processo de aprendizagem da educação física baseado na Cultura Corporal deve ser contextualizado. Quando falamos em contextualização estamos considerando que os conteúdos (conhecimentos científicos) da área de educação física devem estar bem próximos da vida dos alunos, suas experiências, o mundo na qual ele habita. Mundo este com sua cultura própria. Estamos tratando a os conteúdos da cultura corporal como patrimônio da humanidade. Se há então preocupação com esta questão pode-se dizer que acontece a oportunidade de o aluno encontrar significado nas experiências vividas nas aulas de educação física, de maneira que possa aplicar em seu cotidiano. E a educação física, com suas infinitas/múltiplas possibilidades, deve trabalhar em prol de oferecer o máximo de vivências corporais para os alunos, para que haja escolhas e desafios que possam resultar em acréscimo para todos. Essa oferta de vivências deve fazer parte de um conjunto de conhecimentos trazidos por todos os envolvidos no processo, principalmente pelos educandos. É imperioso ressaltar que não há conhecimento que possa tomar lugar da relação. Não tem como estar em um espaço de aprendizagem, onde o corpo é a grande vedete e não nos lançarmos ao outro, não nos disponibilizarmos para a troca. Neste sentido, dialogando com Denise Najmanovich (2001, p.99), quando esta diz que a perspectiva vincular traz à tona a necessidade de nos percebermos como seres “forjados na história humana”, onde estamos sempre “profundamente entrelaçados”. Estas afirmações são muito sérias! Elas nos colocam em evidência perante nós mesmos e os outros, no caso os alunos, nos obrigando, ou melhor, nos oportunizando ampliar a visão do que é viver, do que é ser um corpo com possibilidades de manifestação no Planeta Terra e, em particular, nas aulas de educação física da EJA. Esse panorama pode causar certo desconforto, por abalar nossas estruturas tão “seguras”. Por outro lado permite abrir as porteiras da corporeidade de cada um de nós, sem medo de ser exposto, sem medo dos erros, afinal o que vale é saber que somos (nós e nossos alunos) seres possíveis, corpos possíveis. Sendo assim, é preciso relatar que as observações sobre os alunos tem agora novas possibilidades, diria libertadoras. Como diz Denise Najmanovich “O corpo não é somente o território próprio, mas o lugar de encontro” (op. cit., p.103). Entendi que não tem como estar só. É preciso 9 estar junto, é assim que aprendemos, criamos, nos despojamos de nossas amarras do egoísmo, da ignorância, do orgulho. Somente com o outro é que podemos ser quem realmente somos, e isso é muito bom. Melhor ainda é ratificarmos que somos todos seres incompletos. Isso nos proporciona uma perspectiva quanto aos nossos alunos da EJA. Há possibilidades. Mesmo sendo eles adultos em sua maioria, podem ampliar seus esquemas motores, seus desejos e vivências. Tais reflexões nos deixam em situação bastante crítica. Onde? Como? Quando? Podemos e devemos intervir de forma justa, coerente com nossa prática pedagógica de forma que não atrapalhemos, não impeçamos o pleno aprendizado de nossos alunos? Até que ponto as nossas construções equivocadas, às vezes irresponsáveis podem prejudicar as construções do outro (aluno)? Encontrei algumas considerações que me ajudaram muito a começar a responder tais questões. (...) tudo isso clama profundamente por uma nova perspectiva para pensar tanto a corporalidade quanto a subjetividade, o pessoal e o social, o ético e o estético, reclama que sejamos capazes de nos repensar, de encontrar novos sentidos, que só poderão nascer a partir de novas formas relacionais, de procuras que estimulem as práticas da liberdade e o entrelaçado dos afetos, que sigam o caminho das “paixões alegres” e assim nos afastem das sombrias trevas dos campos. (NAJMANOVIC, 2001, p.107) Outro aspecto que merece destaque é a forma que enxergamos os alunos, sua corporeidade. Ainda está na moda o termo tolerância, mas, após algumas análises e leituras, fica claro que muitas vezes não nos dispomos ver, compreender e trazer para o debate as diferentes formas, ou melhor, corporeidades dos outros, principalmente dos alunos. Reforçamos que deve haver mais respeito às diferenças, mais paciência com alunos, tendo em mente que eles têm muitas dificuldades, que estão defasados. Mas será que desejamos e sabemos como trabalhar tais questões? Gallo (2006) afirma que “Uma atitude de tolerância não significa o respeito à liberdade do outro, mais justamente seu afrontamento, na medida em que escolho, por mim e por ele, viver em um mundo “tolerante”” (op. cit., p.11). Colocando essa percepção no cotidiano da escola, temos alunos que não querem participar da aula porque, segundo o que relatam e evidenciam, são obesos, magros demais, tímidos, preguiçosos, gays, religiosos, idosos, não habilidosos, entre outros. 10 Nós professores também nos colocamos em posição de defesa em muitas situações. Afirmamos que trabalhamos com x ou y tema porque não dominamos, não levamos jeito, ou não gostamos. Aí está nossa dificuldade, que jogamos para debaixo do tapete. Escondemos e não ficamos expostos, já os nossos alunos... E nós vamos trabalhando, os dias vão passando - o que fazemos? Temos então a responsabilidade, enquanto professores, de aceitarmos o convite a uma “pedagogia da potência” (TRINDADE, 2002), de fazermos, através de nosso trabalho, intervenções que fortaleçam, que oportunizem o pleno desenvolvimento integral de nossos alunos. Como diz Azoilda Loretto da Trindade, “Uma tal educação deseja que a vida seja forte, que o corpo e o pensamento aumentem suas potências de agir e pensar e aprendam o quanto antes a conviver com os perigos e desejar o desconhecido” (op. cit., p.86). É isso! As primeiras reflexões foram feitas e registradas. Cabe agora a ação em si. A mudança de muitos olhares, a revisitação de outros e a certeza de que é possível desenvolver um trabalho de qualidade. Afinal estamos todos no mesmo barco (educação), logo navegar é preciso e ao mesmo tempo impreciso. Precisamos de coragem e compromisso. Referências DAÓLIO, Jocimar. Da Cultura do Corpo. Campinas: Papirus, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, Saberes necessários à prática pedagógica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra . ___________. Pedagogia do Oprimido, 9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. GALLO, Silvio. Corpo ativo e a filosofia. In MOREIRA, Wagner (ORG.). Século XXIa era do corpo ativo. São Paulo: Papirus, 2006, p.9-30. NAJMANOVICH, Denise. O Sujeito Encarnado – questões para pesquisa n/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. TRINDADE, Azoilda loretto. Do corpo da carência ao corpo da potência: desafios da docência. In: GARCIA, Regina Leite (org). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 11 http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/propostacurricular - acesso em 25/09 /2010 EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR NA EJA: UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA BASEADA NA PEDAGOGIA CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA Profª Esp. Maria Cristina Silva Torres (CIEP Brizolão 390 – [email protected]) O aprendizado está relacionado com os eventos que acontecem no mundo e influenciam direta e indiretamente nossas vidas. Aprendemos na interação com os outros, na comunicação com o corpo, com as palavras, com gestos, expressões etc. Os saberes da Educação Física Escolar são construídos historicamente, devem ser usufruídos e ressignificados, onde podem contribuir para o desenvolvimento humano, num contexto 12 político, social, cultural, econômico, filosófico, entre outros. No contexto educacional, a Educação Física pode trazer grandes contribuições aos jovens e adultos, através de seus conteúdos, fazendo com que os alunos pensem criticamente, sejam conscientes de seus atos, criativos, participativos e que reivindiquem uma sociedade justa e igualitária. A prática pedagógica da educação física desenvolvida na EJA pode contribuir para desmistificar o que está inserido na sociedade, pelo senso-comum, que utilizam os conhecimentos acríticos que nascem das experiências do cotidiano. Esses conhecimentos fazem com que muitas pessoas afirmem que os conteúdos da Educação Física são os esportes, visto que, por muitos anos somente estes conteúdos foram transmitidos nas aulas, sendo o professor alguém que buscava talentos e aprimorava técnicas dos alunos mais habilidosos. Essa relação com o saber deve acontecer de modo que o professor seja o mediador e o facilitador deste processo, levando seus alunos a transgredirem do senso-comum à consciência filosófica. De outra forma, o professor estaria ensinando e os alunos aprendendo uma prática pedagógica sem objetivos, ensinando por ensinar, fazendo por fazer, sem questionar o porquê dos conteúdos que estão sendo desenvolvidos nas aulas. Sabe-se que essa mudança é difícil, pois ir contra uma ideologia que domina e impera, acarreta muito desgaste e incessante luta, mas é possível uma prática pedagógica voltada para a formação de jovens e adultos autônomos, críticos e conscientes de seus atos. Palavras-chave: conscientização, criticidade, EJA, educação física. Introdução A motivação deste trabalho foi propiciada pela observação de raros estudos na Educação Física Escolar sobre a prática pedagógica desta disciplina na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ao iniciar um trabalho com a EJA no Centro Integrado de Educação Pública – CIEP Brizolão 390 – Chão de Estrelas, localizado no Município de Nova Iguaçu – RJ, foi observado o quanto é desafiador lecionar aos jovens e adultos que têm suas características pessoais, sociais, profissionais e culturais. O senso-comum estava fortemente presente na minha prática de ensino e quanto ao que os alunos imaginavam ser o conteúdo da educação física, ou seja, definiam como sendo os esportes de quadra. Muitos diziam que não gostavam da disciplina porque não praticavam esportes ou não gostavam de bola, futebol ou ter que correr. O trabalho, no entanto, começou justificando o ensino da educação física no ensino noturno e, conseqüentemente, na EJA. Aulas expositivas, debates e mostra de alguns dos conteúdos a serem ensinados e dialogados foram acontecendo e mudanças de opiniões e comportamentos foram surgindo. Porém, não se via relação entre a teoria e a prática nas aulas. O conteúdo teórico estava pautado em questões de saúde e qualidade de vida e a aulas práticas eram voltadas para o divertimento com jogos cooperativos. 13 Os estudos no Curso de Especialização em Educação Física Escolar na UFF ampliaram as minhas concepções de ensino, provocando mudanças significativas no trabalho realizado no CIEP 390. O diálogo e as reflexões sobre os conteúdos passaram a ser fundamentais, juntamente com a abertura à participação efetiva dos alunos. Motivar os alunos a participarem de maneira crítica e autônoma nas aulas também pode ser um dos objetivos dos professores, uma vez que esses jovens e adultos não tiveram acesso ou continuidade dos estudos em idade equivalente. Muitos são os motivos pelos quais não estudaram ou desistem de estudar, tais como, econômico, familiar, cultural, entre outros. O motivo econômico é justificado porque quase todos precisam trabalhar, visto que são da classe desfavorecida, onde em alguns casos, não podem conciliar horários de trabalho e estudo. Outro motivo é o familiar, porque alguns, principalmente as mulheres, têm a dupla jornada, a de trabalhar fora e dentro de casa, cuidando da família. Ainda têm os motivos de ordem cultural e social, uma vez que, os mais velhos sentemse receosos em “voltar” a estudar, achando que serão discriminados pelos mais jovens ou pensam não ter mais condições mentais para acompanhar o ensino das disciplinas. Esta atuação profissional deseja contribuir com a formação de jovens e adultos emancipados, uma vez que os saberes são contextualizados na realidade dos alunos, levando-os a refletirem e a questionarem a utilidade deles para suas vidas. Com isso, pretende-se formar cidadãos críticos, autônomos, conscientes de seus atos numa sociedade que contempla desigualdades e injustiças sociais para a transformação dessa realidade. O aprendizado está relacionado com os eventos que acontecem no mundo e influenciam direta e indiretamente nossas vidas. Aprendemos na interação com os outros, na comunicação com o corpo, com as palavras, com gestos, expressões etc. Os saberes da educação física escolar são construídos historicamente, devem ser usufruídos e ressignificados, onde podem contribuir para o desenvolvimento humano, num contexto político, social, cultural, econômico, filosófico, entre outros. Segundo Charlot (2000, p. 60) “adquirir saber permite assegurar-se um certo domínio do mundo no qual se vive, comunicar-se com os outros seres e partilhar o mundo com eles, viver certas experiências e, assim, tornar-se maior, mais seguro de si, mais independente”. A Educação de Jovens e Adultos (EJA), de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 96), é destinada àqueles que não tiveram acesso ou 14 continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade equivalente. Algumas razões de caráter social, econômico e cultural podem ter influenciado esse contexto, onde Cupolillo (2001, p.184) descreve que “O retrato da realidade atual revela que as políticas educacional, social e econômica, sob a égide do neoliberalismo hegemônico, estimulam e confirmam a exclusão dos indivíduos que, pretensamente, deveriam favorecer”. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2000) descrevem que o objetivo do ensino nessa modalidade da educação é formar e incentivar o leitor de livros e as múltiplas linguagens visuais juntamente com as dimensões do trabalho e da cidadania. No contexto educacional qual seria o papel da educação física na formação social, profissional e humana dos alunos da EJA? É possível o ensino de uma Educação Física que possa contribuir com a formação de alunos emancipados, autônomos, críticos, reflexivos, conscientes, participativos e atuantes numa sociedade marcada pela desigualdade? Nos estudos de Kunz (2006) ele revela o quanto o homem é alienado nas sociedades atuais, com o avanço da tecnologia e o crescimento da indústria cultural. Podemos observar que esse processo de alienação acontece também na escola e especificamente nos conteúdos lecionados, mas com o esclarecimento e a análise crítica desses saberes essa realidade pode ser modificada. A educação física escolar pode trazer grandes contribuições aos jovens e adultos, através de seus conteúdos, fazendo com que os alunos pensem criticamente, sejam autônomos, criativos, participativos e que reivindiquem uma sociedade justa e igualitária. Nesse sentido, Barbosa (2004, p.21) relata que “o principal papel da Educação Física Escolar, incluída num contexto mais amplo, que é a Educação, é de formar cidadãos críticos, autônomos e conscientes de seus atos, visando a uma transformação social”. Segundo Freire (2001) o educador deve contribuir para que o saber anterior dos alunos, influenciado pelo senso-comum, seja superado por um saber mais crítico e menos ingênuo em sua atuação no mundo. O currículo da educação física possui temas amplos e diversificados, portanto, podemos levar os alunos a refletirem, a questionarem a utilidade desses conhecimentos, para que eles transcendam os livros, a sala de aula, a 15 quadra de aula, entre outros espaços para construção de saberes, os quais visam uma preparação profissional e humana. A Educação Física Escolar e os Desafios da Prática Pedagógica Os estudos na área da educação física escolar têm evoluído significativamente, e isso, deve-se em grande parte à contribuição da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, entre outras áreas que estudam o homem e suas relações no mundo. Mas, infelizmente, muitas universidades oferecem a graduação em Educação Física dando maior ênfase e destaque às disciplinas que ensinam os esportes, o treinamento desportivo ou ainda, aquelas que dissociam corpo e mente. Barbosa (2005, p. 52) descreve que “nos cursos há uma ênfase no aspecto técnico da formação profissional, priorizando as disciplinas ditas „específicas‟ ou profissionalizantes, em detrimento das disciplinas que fazem parte do campo das Ciências Humanas”, que segundo Chauí (apud BARBOSA, 2005), referem-se àquelas ciências que tem o próprio ser humano como objeto. É importante em nossa prática diária, como educadores e profissionais, termos consciência de que os saberes da educação física que transmitimos são necessários ao processo de ensino-aprendizagem. Esse processo pode contribuir para desmistificar o que está inserido na sociedade, pelo senso-comum, que utilizam os conhecimentos acríticos que nascem das experiências do cotidiano. Esses conhecimentos fazem com que muitas pessoas afirmem que os conteúdos da educação física são os esportes, visto que, por muitos anos somente estes conteúdos foram transmitidos nas aulas, sendo o professor alguém que buscava talentos e aprimorava técnicas dos alunos mais habilidosos. Não se pretende afirmar que os referidos esportes não façam parte dos saberes culturalmente e historicamente transmitidos pelo homem e que devam ser abolidos das aulas na EJA, mas levanta-se a possibilidade de se dialogar e de se construir coletivamente saberes significativos para os educandos, com consciência de sua importância, assumindo uma postura crítica e reflexiva do que acontece nas aulas. Essa relação com o saber deve acontecer de modo que o professor seja o mediador e o facilitador deste processo, levando seus alunos a transgredirem do sensocomum à consciência filosófica. 16 De outra forma, o professor estaria ensinando e os alunos aprendendo uma prática pedagógica sem objetivos, ensinando por ensinar, fazendo por fazer, sem questionar o porquê dos conteúdos que estão sendo desenvolvidos nas aulas, ou seja, dançando conforme a música tocada pelas elites dominantes. Nesse contexto Luckesi (1990, p.98) relata que “se não buscarmos o sentido e o significado crítico, consciente e explícito da ação docente, seguimos o sentido e significado dominante desse entendimento que se tornou senso-comum”. Sabe-se que essa mudança é difícil, pois ir contra uma ideologia que domina e impera, acarreta muito desgaste e incessante luta, mas é possível uma prática pedagógica voltada para a formação de jovens e adultos autônomos, críticos e conscientes de seus atos. A Educação Física Escolar na EJA sob a Concepção Crítico-Emancipatória A escola acaba sendo um dos espaços propícios à imposição de uma determinada cultura, de certos saberes alienados, daquilo que é permitido fazer, segundo uma classe social, como afirmam Nogueira e Nogueira (2004, p.83), com bases em estudos de Bourdieu, “ela é concebida como uma instituição a serviço da reprodução e da legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes”. Analisamos com os estudos de Cotrim (apud BARBOSA 2004, p.18) que há uma saída para usufruirmos os conhecimentos da elite, pois “ao receber o saber dominante, ainda que contaminado pela ideologia oficial, as classes dominadas terão a chance de reelaborar criticamente este saber, contrastando-o com a realidade concreta de suas vidas”. Com base nesses esclarecimentos, procuramos justificar a prática pedagógica da disciplina educação física na EJA, através da Pedagogia Crítico-Emancipatória, do autor Elenor Kunz, onde revela que o trabalho desta pedagogia “precisa, na prática, estar acompanhada de uma didática comunicativa, pois ela deverá fundamentar a função do esclarecimento e da prevalência racional de todo agir educacional” (KUNZ, 2006, p.31). Nesse contexto, onde o aluno é o sujeito do processo de ensino, as aulas devem preparar e capacitar os jovens e adultos para se expressarem, refletindo criticamente e problematizando os eventos inerentes à sociedade. 17 Para Adorno (1995), um dos autores que influenciaram os estudos de Kunz (2006) emancipação significa o mesmo que conscientização e racionalidade de uma realidade em questão, e assim, com o ensino da educação física escolar pretende-se colaborar com os jovens e adultos, utilizando práticas educativas que os façam agir com autonomia em seus contextos sociais. Também pode contribuir para uma conscientização das boas e más influências sociais, para uma leitura crítica da realidade e do contexto histórico, social, político e cultural. É importante que os estudantes conheçam os vínculos sociais de dominação e alienação que acontecem nos esportes, na política, nos sistemas de ensino, nas empresas, entre outros ramos. Sobre essa questão, Kunz (2006) descreve: O aluno enquanto sujeito do processo de ensino deve ser capacitado para sua participação na vida social, cultural e esportiva, o que significa não somente a aquisição de uma capacidade de ação funcional, mas a capacidade de conhecer, reconhecer e problematizar sentidos e significados nesta vida, através da reflexão crítica. (op. cit., p. 31) Habermas (apud KUNZ, 2006) contribui com seus estudos relatando que, através do esclarecimento, a classe desfavorecida poderá reconhecer a origem e os determinantes da dominação e da alienação imposta pela elite dominante. O mesmo autor analisa a importância do trabalho coletivo de forma responsável, da interação entre todos os envolvidos no processo educacional e das ações comunicativas, que abrangem os diversos meios de comunicação, como, a linguagem dos movimentos, a linguagem verbal, a linguagem gestual, linguagem por imitação etc. Neste trabalho não se pretende um aprofundamento nos estudos de Kunz, mas a concepção crítico-emancipatória possibilita grandes avanços no processo ensino e aprendizagem, ou seja, o aluno tem mais espaços e oportunidades em dialogar e de se posicionar nas aulas. Assim, para o referido autor essa pedagogia busca alcançar com as atividades corporais de movimentos, o desenvolvimento da autonomia, da competência social, através da interação e da competência objetiva, sendo essa, os conteúdos específicos da disciplina, ou seja, os saberes culturais e historicamente acumulados, que são apresentados aos alunos e analisados criticamente. 18 As atividades corporais de movimentos na EJA podem ser integradas à proposta de ensino dos conteúdos da cultura corporal, em seu sentido mais amplo. Barbosa (2004) explica sobre a importância das aulas de Educação Física e seus conteúdos nas escolas: (...) aulas de Educação Física de qualidade são as que através dos conteúdos específicos da disciplina, trabalham reforçando a solidariedade, o trabalho em equipe, a resolução de problemas que surjam nas atividades... Dessa forma, poderemos dizer que a escola em geral, e a Educação Física especificamente, estão preparando os alunos para a vida, para o exercício de uma real cidadania (op. cit., p.91). Nas aulas de educação física na EJA observa-se alunos de diversas faixas etárias, onde quase todos passam em média oito horas de serviço por dia, alguns se deparam com viagens exaustivas de ida e volta para o trabalho, outros, na maioria as mulheres, ainda têm os afazeres domésticos e família para cuidar, tornando-se um grande desafio permanecer na escola. A prática pedagógica da educação física escolar na EJA deve contribuir na formação desses jovens e adultos, entendendo suas características (idade, sexo, profissão, família, saúde e etc.) e seus anseios. É importante colaborar para a construção, junto com os alunos, de um ambiente favorável ao aprendizado dos saberes significativos, que façam sentido para suas vidas, que os façam criar, elaborar, modificar, avaliar, experimentar, sentir, pensar, agir, entre outras ações. Conteúdos envolvendo questões observadas no dia-a-dia dos alunos são de extrema importância para contribuir com algumas mudanças de hábitos, de pensamentos, de atitudes e de qualidade em suas vidas. É necessário (re) construir, (re) elaborar, (re) criar e (re) significar saberes que darão bases para uma formação cada vez mais humana, cada vez mais integrada com o não conformismo social. Os saberes construídos nas aulas podem contemplar além dos esportes, das danças, das lutas e das ginásticas, conhecimentos sobre corpo humano, saúde, qualidade de vida, nutrição, políticas públicas de lazer, primeiros socorros, questões de gênero e sexualidade, entre inúmeros outros. Juntamente a esses conteúdos, os professores da área de educação física também podem transmitir saberes que estudam o homem e seus determinantes sociais, assim 19 estarão contribuindo para o estudo dos conhecimentos da Educação Física com um olhar mais crítico e mais consciente. Veja a seguir algumas propostas de conteúdos desenvolvidas no primeiro semestre do Primeiro Ano do Ensino Médio – EJA, no ano de 2009, no CIEP Brisolão 390 – Chão de Estrelas: EIXOS TEMÁTICOS OBJETIVOS CONTEÚDOS ESTRATÉGIAS PERCEPÇÃO CORPORAL Conhecer os tipos de estresses existentes, os agentes causadores e como cuidar desse problema. Estresses de natureza bioquímica, física, mental e social. Benefícios dos exercícios de alongamento e relaxamento para o corpo. Aulas expositivas com prática de exercícios de alongamento e relaxamento corporal. Diálogos e reflexões sobre o tema. POSTURA CORPORAL Analisar a posição postural em diversos ambientes, conhecer os riscos decorrentes de posturas inadequadas e experimentar alguns métodos de prevenção de problemas posturais. Conhecendo as Lesões por Esforços Repetitivos(L.E. R) e o Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho (D.O.R. T). Os métodos de prevenção. A importância dos exercícios físicos para a postura corporal. Aulas expositivas e mostra de reportagem em video sobre o tema. Trabalho em grupo. Aulas práticas com exercícios de alongamento, ginástica muscular localizada e relaxamento corporal. SAÚDE E QUALIDADE DE VIDA Investigar e identificar os males causados pelo sedentarismo. Conhecer a importância de realizar exercícios físicos regularmente. Sedentarismo e suas conseqüências para a saúde. Os benefícios para o corpo proporcionados pela prática regular de exercícios físicos, como por exemplo, a danças circulares. Aulas expositivas. Conversas e debates com a turma sobre nossos hábitos diários. Aulas práticas com danças circulares propostas pelo professor e pelos alunos. (PARTE I) 20 A seguir, uma proposta de conteúdos desenvolvida no segundo semestre de 2009, na turma do Segundo Ano do Ensino Médio - EJA do CIEP Brizolão 390 – Chão de Estrelas: OBJETIVOS CONTEÚDOS ESTRATÉGIAS SAÚDE E QUALIDADE DE VIDA (PARTE II) Conhecer os perigos da obesidade e da hipertensão arterial. Investigar como medi-las e como preveni-las. Obesidade e seus riscos à saúde; meios de prevenção; cálculo do Índice de Massa Corporal e medição da circunferência abdominal. Hipertensão arterial e seus riscos à saúde; meios de prevenção e aferição da pressão arterial. Aulas expositivas e mostra de reportagem sobre a obesidade e hipertensão arterial. Aulas práticas de medição da circunferência abdominal e aferição da pressão arterial. CORPOREIDADE E JOGOS COOPERATIVOS Conhecer questões da corporeidade; compreender diferenças entre competição e cooperação e conhecer os objetivos dos jogos cooperativos. Corporeidade e Jogos Cooperativos no contexto social, histórico e cultural. Aulas expositivas, debates sobre o tema e aulas práticas com jogos cooperativos. EIXOS TEMÁTICOS Segundo Freire (2001) os conteúdos a serem ensinados aos jovens e adultos não podem ser totalmente estranhos a eles, como também, não há prática educativa sem os conteúdos e que através do ensino desses, os educadores podem e devem levar os alunos a pensar criticamente. A educação física tem um currículo diversificado, rico, aberto, flexível, com temas e saberes transmitidos social, cultural e historicamente que podem colaborar no desenvolvimento social, cognitivo, profissional, psicológico e afetivo dos alunos. Para que isso aconteça na Educação de Jovens e Adultos, é necessário construir um currículo objetivando a formação de alunos capacitados para atuarem na sociedade atual, que não nega ser injusta, competitiva e individualista, contribuindo para o 21 desenvolvimento de pessoas conscientes, que reivindicam direitos, melhores condições de vida, sistema educacional de qualidade, igualdade social e humana. Considerações Finais O Curso de Especialização em Educação Física Escolar na Universidade Federal Fluminense fez grandes contribuições ao trabalho que desenvolvo nas escolas públicas. Trabalho com crianças, adolescentes, jovens e adultos, porém na EJA essa prática pedagógica é diferenciada e desafiadora. Observo que poucos trabalhos são direcionados a essa modalidade de ensino, especificamente na Educação Física Escolar, sendo difícil buscar fontes que possam orientar e contribuir com minha ação docente. Os estudos, debates e reflexões que surgiram nas aulas do curso de especialização foram de grande valia para que o senso-comum, outrora muito presente em minhas concepções de trabalho, fosse esclarecido, cedendo lugar ao pensamento mais crítico e observador de questões sociais e humanas. Em algumas aulas por mim ministradas não existiam relações entre teoria e prática, simplesmente as aulas práticas eram propostas objetivando o lazer e o movimento, conforme uma Educação Física alienada. Pretendo colaborar com os alunos da EJA, levando-os à reflexão de uma educação física para além da escola, do movimento corporal e dos conteúdos. Dessa maneira poderei contribuir para a formação de alunos livres, autônomos, conscientes e esclarecidos e que busquem não só a capacitação para o mundo do trabalho, mas também para a vida. Entendo que esse deve ser nosso objetivo enquanto educadores. Referências ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995. BARBOSA, Cláudio Luís de Alvarenga. Educação Física Escolar: as representações sociais. Rio de janeiro: Shape, 2001. _______. Educação Física Escolar: da alienação à libertação. 4. ed., Petrópolis: Vozes, 2004. _______. Educação Física e Filosofia: a relação necessária. Petrópolis: Vozes, 2005. BRASIL. Parecer CNE/CEB 11/2000. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adultos. 22 _______. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96. CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. CUPOLILLO, A. V.; SOARES, A. M. D.; OLIVEIRA, L. M. T.; PAULA, L. A. L. & CHIQUIERI, A. M. C. Educação de Jovens e Adultos: a experiência da UFRRJ com o Programa Alfabetização Solidária. In: Rev. Univ. Rural, Sér. Ciênc. Humanas. Vol. 23(2): 183-188, jul./dez. 2001. FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 2001. KUNZ, Eleonor. Transformação didático-pedagógica do esporte. 7. ed., Ijuí: Unijuí, 2006. LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 1990. NOGUEIRA, Maria Alice e NOGUEIRA, Cláudio M. M. Bourdieu e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CORPOREIDADES Profª Dr Rosa Malena Carvalho (UFF / [email protected]) Considerando que produzimos, coletivamente, diferentes sentidos para o que dizemos ser “corpo”, os movimentos, os esportes, as lutas, as danças, enfim, as diversas experiências corporais e lúdicas, nos processos de escolarização, podem ser entendidas como direito e como produção sócio-cultural. O que significa falar em corporeidades, a qual indica os corpos como conhecimentos, linguagens e patrimônio cultural, inseridos em contextos que constroem maneiras específicas de (re)conhecê-los. Com a colaboração de Michel de Certeau, Boaventura Santos, Humberto Maturana, Jorge Larrosa e Gilles Deleuze, problematizo as concepções predominantes sobre o corpo, as quais são frutos de ideário linear e cartesiano que naturalizam as condições sóciohistóricas formadas e formadoras de nosso contexto, inclusive na idéia que hierarquiza 23 os seres humanos - de acordo com a etnia, o gênero, a opção sexual, o tônus muscular, a idade, etc. Ao questionar estas concepções, no diálogo com os diferentes saberes e sujeitos que compõem a Educação de Jovens e Adultos (EJA), busco fortalecer o entendimento da educação como direito, em processo que é permanente e, o qual pode favorecer formas societárias solidárias e heterogêneas, com diferentes sujeitos, saberes, tempos e espaços, em um conjunto de múltiplas oportunidades educativas que ampliem as maneiras de encaminhar todas as dimensões da vida, inclusive nas escolas. Neste movimento, a educação física escolar traz algumas contribuições. Palavras-chave: corporeidades, EJA, multiplicidade, cotidianos escolares. Conhecimento e escolarização “corporificados” (...) Muita coisa a gente faz Seguindo o caminho que o mundo traçou Seguindo a cartilha que alguém ensinou Seguindo a receita da vida normal Mas o que é vida afinal? Será que é fazer o que o mestre mandou? É comer o pão que o diabo amassou Perdendo da vida o que tem de melhor (...) (“Verdade Chinesa” música de Carlos Colla e Gilson, cantada por Emílio Santiago) As músicas, filmes, poesias, histórias - produções ricas em imagens visuais, auditivas e verbais, possibilitam perceber e imaginar outras culturas, com diferentes formas de falar, andar, enfim, interagir com o mundo. Vejo, ouço o filme, a poesia, a música, as histórias, imaginando aquelas situações e pessoas, em um processo de associação e reconhecimento da realidade em que vivo... Porém, como relacionamos as experiências, suas associações e reconhecimentos com a atitude de conhecer, aprender? Libâneo (1995) ao pensar a aprendizagem como uma relação entre o sujeito e o conhecimento, defende que o conjunto de habilidades, hábitos, modos valorativos e atitudinais organizados pelas escolas, poderiam ter como objetivo principal levar os alunos a colocá-los em interação com suas práticas cotidianas. Nos processos predominantes de escolarização, quais perspectivas de sociedade, ser humano e conhecimento são privilegiados na organização dos tempos, espaços e 24 saberes presentes no interior das instituições escolares? Como estas idéias e valores sobre corpo, movimento, ludicidade e lazer foram sócio-culturalmente constituídos? Quando olhamos para o interior da escola, encontramos a Educação Física como área do conhecimento “responsável” por tratar e educar o corpo, seus hábitos e movimentos. Por sua vez, a forma como seleciona os conteúdos específicos, os desenvolve, a relação que estabelece com as demais áreas do conhecimento acabam valorizando um determinado tipo de técnica (em particular, a excelência dos gestos de alguns esportes, em sua forma competitiva), negando outras experiências, principalmente dos que fazem parte dos grupos e camadas socialmente desfavorecidas auxiliando, assim, a excluir as histórias e a memória corporal daqueles que têm suas histórias e memórias normalmente despotencializadas, apagadas. Neste movimento curricular, o corpo ideal de aluno ainda é o imóvel, em silêncio, jovem, saudável, limpo, disciplinadamente trabalhando as atividades propostas... Ao mesmo tempo, olhando com curiosidade e estranhamento para o nosso dia-adia, encontraremos cenas, situações, acontecimentos que materializam a não subordinação dos sujeitos ao silêncio e à imobilidade. Podendo, assim, compreender como exemplos de criatividade e não conformismo o que anteriormente só entendíamos como apatia, desinteresse, carência e não aprendizagem. Certeau (2002) refere-se a essa interferência dos sujeitos sobre as regras através da idéias de uso – ou seja, as imprevisíveis e diferentes maneiras, criadas pelos sujeitos, diferentes do previsto pelo poder instituído... Na concepção ainda predominante de conhecimento, as diversas experiências dos sujeitos constituem-se ora em obstáculo daquilo selecionado para ensinar e aprender na escola, ora percebidas em sentido utilitarista, ou seja, como algo menor, que serve apenas de meio para o que de importante a escola selecionou como conhecimento válido. Por isso, muitos ainda percebem as brincadeiras, por exemplo, dissociadas de aprendizagem, de atividade culturalmente produzida ou, como meio de aprender o que é “mais importante”, como Matemática, Português, ... Talvez nós, professores, aprendemos a valorizar pouco às nossas experiências cotidianas... Quase um (...) sujeito incapaz de experiência, aquele a quem nada acontece, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade. (LARROSA, 2004, p. 163) 25 Uma das experiências pouco valorizadas é o movimento e a expressão corporal, principalmente o que realizamos em nosso tempo livre – pela conjuntura perversa em que vive a grande maioria da população brasileira: trabalhando para sobreviver... pela lógica capitalista / mercantilista que diz que “tempo é dinheiro”... Assim, o divertimento, a alegria, o espontâneo ainda está localizado na criança, permitindo-lhe brincar e jogar. Na medida em que os alunos avançam na idade e na escolarização, esta discussão vai perdendo espaço, pois a seriedade impera em uma sociedade em que “muito riso é sinal de pouco siso”... E os alunos e alunas da EJA, com quais experiências corporais circulam nas escolas? Valorizadas? Negadas? A experiência é o que nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que passa ou o que acontece, ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos acontece ou o que nos toca. A cada dia passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que passa está organizado para que nada nos passe. (LARROSA, op. cit., p. 154) Seguindo estas pistas de Larrosa, podemos dizer que experiência é tudo que nos afeta – corporal, emocional e cognitivamente... Ao aproximarmos estas idéias com os processos de escolarização, os quais priorizam o “pensamento”, entendido como capacidade exclusiva do cérebro, concordamos com Lovisolo (1989), quando este diz que pensar é abstrair, mas a partir das semelhanças e diferenças existentes, a partir de uma realidade e tradição que registram seletivamente o vivido. O que inclui tudo que tocamos, cheiramos, vemos, fazemos - explorando sentidos, entendendo-os como conhecimentos... Por que, então, deixar o corpo, suas expressões e significados “de fora” do projeto pedagógico que construímos? O corpo compreendido isoladamente da natureza e da sociedade é abstrato, distante da realidade em que se faz. Ao situá-lo em sua realidade histórica, cultural e, portanto, social, percebemos que as formas de conhecer o corpo estão inseridas nas relações e sentidos sociais (produto coletivo da vida humana). Ao pensar assim, falamos em corporeidade, a qual 26 (...) pretende expressar um conceito pós-dualista do organismo vivo. Tenta superar as polarizações semânticas contrapostas (corpo/alma; matéria/espírito; cérebro/mente) (...) constitui a instância básica de critérios para qualquer discurso pertinente sobre o sujeito e a consciência histórica. (ASSMANN, 2001, p. 150.) O corpo que era visto como um dado (“natural”, “divino”), é colocado como construção/processo pela corporeidade - nos permitindo questionar paradigmas pautados no dualismo, na linearidade, nas hierarquias, nas formas cartesianas de habitar e compartilhar o mundo. Afirmar a diversidade de corporeidades pode significar, como diz Bruhns (1999), fortalecer um corpo-sujeito, superando o conceito de corpo-objeto que constitui as sociedades capitalistas, como a nossa (cujas principais características deste sistema estão associadas ao rendimento; às normas de comparação, idealizando o princípio de sobrepujar; à regulamentação rígida; à racionalização dos meios e técnicas – mantendo e reproduzindo desigualdades e hierarquias sociais). Em outra perspectiva, valorizar múltiplas formas de expressões corporais - incluindo as habitualmente excluídas e negadas - pode auxiliar a organizar e dar sentido emancipador à escola. Na materialização de projetos educacionais, quando consideramos a necessidade de “partir do aluno, conhecer e socializar suas experiências de vida, para adequar os novos conhecimentos que serão ensinados aos interesses e ao seu nível de compreensão, garantindo desta forma que ele avance (...)” (FARIA, 1986, p. 84), expressamos um determinado sentido social para nosso trabalho na escola pública. Assim, poderemos contribuir para a superação da exploração e da exclusão em que vive a maior parte da população. O que significa necessidade e desejo por diferentes formas de ser e existir. Neste processo, a corporeidade pode constituir-se em uma possibilidade de pensarmos o humano e os sentidos que damos à condição humana - assim, corpo individual e corpo coletivo articulam-se, formando-se dialeticamente. Maturana e Varela (1997) afirmam que os sistemas vivos se auto-organizam por processos que envolvem todas as partes, de formas altamente complexas e capazes de manterem e reproduzirem a vida, conservando sua capacidade autopoiética - ou seja, sua condição de auto-organização. O que convida a pensar o quanto nosso corpo é múltiplo – pela autopoiese, pelas potências, virtualidades e limites, o que inclui o diálogo, as adaptações, as mudanças, as rupturas.. 27 Assim, os sentidos coletivos, comuns, partilhados, gerais, tradicionais (por „marcarem‟ uma história comum) se entrelaçam com os sentidos tecidos por cada indivíduo, de forma particular, singular – o que nos faz pensar nas inúmeras experiências que jovens e adultos têm a compartilhar nos processos de escolarização. A ludicidade como uma das marcas da corporeidade na Educação de Jovens e Adultos (EJA) Neste país de pouca renda senhoras costurando pela injustiça vão rezando da Bahia ao Espírito Santo Brasília tem suas estradas mas eu navego é noutras águas E como começo de caminho quero a unimultiplicidade onde cada homem é sozinho a casa da humanidade (Brasil Corrupção (Unimultiplicidade). Música de Ana Carolina e Tom Zé.) Nossa Constituição estabelece que "a educação é direito de todos e dever do Estado e da família..." e ainda, que o Ensino Fundamental é obrigatório e gratuito, sendo sua oferta garantida para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria. Mas, o que significa garantir o direito à educação? Aprender precocemente os conteúdos escolares? Sendo jovem e adulto, considerá-lo uma obrigação imposta pela lei, pois o “tempo de aprender passou”? Como fica o direito ao lúdico, ao lazer, à expressão livre e criadora, à curiosidade, ao desejo de aprender mais, cada vez mais? Observando os anos iniciais do Ensino Fundamental, encontramos o predomínio do tratamento disciplinar dos conteúdos escolares, com a presença do jogo e da brincadeira como meio de extravasar as tensões diárias... Ou, outro lado da mesma moeda, impera-se a perspectiva propedêutica - como a psicomotricidade, que ganha espaço em função de objetivar preparar as crianças para o processo de alfabetização ou, com a perspectiva de corrigir possíveis distúrbios motores (os quais também poderiam comprometer a aprendizagem da leitura e da escrita). 28 Dentro deste quadro, também existem experiências que procuram refletir sobre o corpo em movimento: sem nos fragmentar; sem negar as possibilidades da beleza, da criação, do desejo como parte dos processos ensino-aprendizagens desenvolvidos pelas instituições escolares; questionando o ideal de aluno ser aquele que não fala, não sai do lugar que lhe foi designado como seu... Principalmente se o prazer e o divertimento forem motivadores do “agito”! Quem pode ser educado na interação trabalho, recreação e lazer? Exercitando a capacidade crítica, acreditamos que esse é um dos momentos em que o trabalho coletivo, desenvolvido nos cotidianos escolares, poderá ser potencializado pela contribuição da ludicidade nos processos de socialização e de aprendizagem. Ao buscarmos identificar aproximações da temática com o trabalho realizado pelos diversos professores e profissionais que constituem as escolas, também questionamos os quatro preconceitos sobre o lúdico, apontados por Camargo (1998): diversão é preocupação de ricos; trabalho é mais importante do que o lúdico; a diversão atrapalha o trabalho, o dever; trabalhar é difícil, divertir-se é fácil. Compreendendo a ludicidade enquanto manifestação cultural, possuindo os significados do contexto sócio-histórico em que se constitui e, ao mesmo tempo, auxilia a constituir, surgem algumas indagações: como é codificada a realidade conhecida - seja através de palavras, práticas costumeiras e rituais, sua arte, religião, esportes e jogos, tecnologia, ciência, política, formas de brincar e lazer, etc? Ao querer entender o lúdico em sua realidade histórica, cultural e, portanto, social, percebemos o quanto não é tratado da mesma forma por todas as pessoas, grupos sociais? Como os conteúdos a serem trabalhados na escola podem ter associação com o fenômeno lúdico? Na tentativa de construir possíveis respostas para estas perguntas, as atividades lúdicas deixam de ter um caráter apenas de simples “passatempo” e passam a ter um caráter histórico e social. Neste processo, os professores/as podem vir a reelaborar o conceito predominante, na sociedade e na escola, sobre a ludicidade. Associando estas idéias com o mundo da cultura, as diversas formas de ludicidade tornam-se expressões, criações de realidades vividas, historicamente criadas e socialmente desenvolvidas - possíveis, portanto, de habitar o interior das escolas, como elementos constituintes do projeto pedagógico desenvolvido. Considerando a ludicidade e os momentos de lazer como possibilidade de aprendizagem, questionamos a forma de organização escolar e a visão de mundo 29 hegemônica, pois começamos a associá-los com as formas instituídas de criação e manutenção das relações sociais - identificamos estas noções quando avaliamos como “nossos espaços arquitetônicos e urbanos são organizados na perspectiva da sociedade de consumo.” (SENAC, 1998, p. 29). O que nos parece “perda de tempo”, é, muitas vezes, vida correndo com outros princípios... O que acontece no cotidiano vivido, porém, muitas vezes não é valorizado. Nesse sentido, as práticas pedagógicas podem ser pensadas como espaços de potência, de interação e produção de sentidos diferentes da „pedagogia do desastre‟, do „dever ser‟, assim definida por Lins (2005): A pedagogia do desastre: falar pelo outro, pensar para o outro, fabricar a criança, o aluno insere-se na tentação conservadora, mais próxima do estudo dos monstros que da pedagogia. (op. cit., p. 1236) Os processos educacionais podem ser, a partir daí, entendidos como lugares de encontros, com diferenças antes não vistas, entre tudo aquilo que cada um traz de suas experiências, em vontade permanente de desejar. O que vai ao encontro de uma política de educação de jovens e adultos que privilegie não só aumento de escolaridade, mas educação permanente e inclusão no mundo do trabalho. Em uma perspectiva de educação emancipadora, em que a complexidade, a contradição e o conflito estão presentes, o brincar, o divertimento e o prazer tornam-se imprescindíveis quando queremos entender, em plenitude, o processo de formação do ser humano. As experiências estão relacionadas com o processo de humanização – na medida em que se tornar humano significa estabelecer uma rede de relações com outros seres humanos, os quais nos auxiliam na constituição de nossa identidade pessoal e, ao mesmo tempo, social. A tessitura de conhecimentos, em rede, pode ajudar a superar a lógica da educação “compensatória”, na qual a falta e a defasagem imperam. Desejando fazer parte desta rede, uma proposta curricular que considere as corporeidades e experiências dos seus sujeitos (alunos, professores e demais profissionais que atuam nas escolas, independente da idade) tem como referência, discute, estuda, explora o que os alunos e alunas trazem para as escolas – o que significa diálogo entre saberes: práticas pedagógicas e vida fora e dentro da escola... Assim, práticas sociais como futebol, capoeira, samba, funk, hip-hop, cirandas, etc, ao serem 30 consideradas práticas culturais, sinalizam experiências aprendidas e recriadas – portanto, conhecimento... Neste movimento, considerando o lúdico como jogo, divertimento, prazer, alegria, podendo acontecer em qualquer momento do cotidiano – como disse Camargo (op. cit.) -, a abordagem sobre o lúdico pode inserir-se de forma importante e singular em uma proposta educativa que busque consolidar a capacidade de ser sujeito presente em cada um, reconhecendo e respeitando suas especificidades biológicas e fisiológicas, assim como a história, cultura e necessidades do contexto em que este ser em formação está inserido. Elementos para pensar as crianças, mas também os adolescentes, jovens e adultos – pois, além da dimensão lúdica ser um dos componentes formadores de um ser humano integral, identificamos como os momentos de diversão, lazer e prazer são negados para uma determinada parcela da população que não tem tempo liberado do trabalho e das obrigações diárias de sobrevivência. Neste processo, é de fundamental importância pensarmos sobre a atuação do educador – na medida em que o desenvolvimento de uma proposta pedagógica requer comprometimento profissional crítico aliado à competência técnica, à visão de coletividade, ao respeito mútuo. Construindo, assim, base para uma ação pedagógica efetiva, a qual pode tornar-se, ao longo do seu desdobramento, uma intervenção política sócio-cultural. Pensar a corporeidade na formação dos diversos profissionais da Educação, pode representar um dos espaços em que os educadores refletem sobre o processo pedagógico, coletivo, que constroem e desenvolvem. E, ao mesmo tempo, representa um dos momentos de sua formação – permanente - de professor e de adulto. Muito temos a avançar nesta discussão, mas também percebemos indícios de aberturas provocadas pela atuação de educadores e educadoras que consideram educação um direito, seja criança, jovem ou adulto, com necessidade especial ou não. Mais do que “preparar cidadão”, um exercício de cidadania... Corporeidade e formação de professores Ao aproximar esta discussão da formação de professores, afirmamos o desejo por uma educação permanente, pela criação de uma sociedade solidária e heterogênea, com diferentes sujeitos, saberes, tempos e espaços, em um conjunto de múltiplas 31 oportunidades educativas, integrantes do processo de ampla leitura do mundo. O que vai ao encontro de uma política de educação que privilegie não só aumento de escolaridade, mas educação permanente e inclusão no mundo do trabalho. Em termos de legislação, a LDB, ao tratar das disposições gerais da Educação Básica, em seu artigo 26 aponta que Os currículo do ensino fundamental e médio devem ter uma Base Nacional Comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. (...) § 3º A Educação Física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos E, no Artigo 27: Os conteúdos curriculares da Educação Básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: (...) IV – Promoção do desporto educacional a apoio às práticas desportivas não-formais O que possibilita incluir elementos da cultura corporal, sistematizados pela educação física, na matriz curricular da EJA – assim, as experiências corporais e lúdicas no processo de escolarização são entendidas como direito e como produção sóciocultural – o possibilita afirmar a cultura corporal como conhecimento, linguagem e patrimônio cultural. O acesso a esse universo de informações, vivências e valores é compreendido aqui como um direito do cidadão, uma perspectiva de construção e usufruto de instrumentos para promover a saúde, utilizar criativamente o tempo de lazer e expressar afetos e sentimentos em diversos contextos de convivência. Em síntese, a apropriação dessa cultura, por meio da Educação Física na escola, pode e deve se constituir num instrumento de inserção social, de exercício da cidadania e de melhoria da qualidade de vida. (MEC. Educação Física. Vol 3, p. 194) Entendendo a educação como direito, o Curso de Especialização em Educação Física Escolar, do Instituto de Educação Física da UFF – no qual, no momento, estou Coordenadora -, vem buscando problematizar a atuação da educação física, realizada 32 principalmente nos estabelecimentos públicos de ensino, no âmbito da educação infantil, ensino fundamental e médio. Com o principal objetivo de que os pósgraduandos, docentes em exercício, tornem-se mais fortalecidos para orientarem suas praticas pedagógicas com um conjunto de reflexões que consideram a natureza da educação física escolar em diálogo com o conjunto da escola e da sociedade. Assumir este compromisso é contribuir para a formação de corporeidades marcadas pela diferença, em que os diferentes gêneros, sexualidades, etnias, idades, etc façam parte, constituam os projetos políticos pedagógicos da educação básica e das formações de professores. Ao compartilhar estas idéias, colocando-as em discussão, com outros profissionais da educação, afirmamos desejo por trabalho coletivo, em movimento que auxilie a potencializar políticas educacionais públicas, fortalecendo a educação como direito das crianças, jovens e adultos, com necessidades educacionais especiais ou não. Referências: ASSMANN, Hugo. Reencantar a Educação – rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 150. BRUHNS. O Corpo Parceiro e o Corpo Adversário. 2ª ed. Campinas: Papirus, 1999 CAMARGO, Luis. Educação para o lazer. São Paulo: Moderna, 1998 CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2002 FARIA, Ana Lúcia – Ideologia no livro didático. 4ª ed. São Paulo: Cortez e Autores Associados, 1986. LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. LIBÂNEO, José Carlos. Didática. 9ª ed . São Paulo: Cortez, 1995. LINS, Daniel. Mangue’s School ou por uma pedagogia rizomática. In EDUCAÇÃO & SOCIEDADE: Revista de Ciência da Educação – Dossiê Deleuze e a educação. Vol. 26, n. 93, Campinas: CEDES, set/dez 2005, p. 1129-1256. LOVISOLO Hugo. A Memória e a Formação dos Homens. Rio de Janeiro: FGV, Revista Estudos Históricos,1989, vol. 2, n. 3, p. 16-28. MATURANA, Humberto & Varela Garcia, F. De Máquinas e Seres Vivos: Autopoiese – a organização do vivo. 3ª ed., Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 33 SENAC. Lazer e recreação. Rio de Janeiro: SENAC Nacional, 1998.