O grito da floresta: O bem viver e afirmação Kaingang no seu território.
No sul do Brasil, nós Kaingang nos vemos intimados a reafirmar nossa
existência enquanto um povo indígena Jê Meridional que se reconhece em continuidade
histórica com um passado milenar, latente nas nossas narrativas, nos cantos, nas danças,
nos sonhos, nas pinturas, nas metades e nos símbolos que compõem nossa cosmologia e
nossa existência. Os símbolos estão presentes em vários “lugares” e se materializam,
por exemplo, na natureza.
A vida Kaingang no seu território tem como centro do pensamento e das ações a
noção de Gá/terra. Entretanto, Gá é mais do que um limite fundiário: reúne um conjunto
de elementos naturais e sobre-naturais reconhecidos como próprios de uma terra
tradicional Kaingang, na lógica deste povo indígena. Com o resgate dessa categoria
central, temos como premissa do presente ensaio, partir do pensamento Kaingang e de
sua percepção do meio e suas composições, pensar um bem viver indígena Kaingang
nas suas diferentes dimensões e contextos. Se não considerarmos essa premissa
corremos o risco de reproduzir erros já cometidos no passado na relação do Estado com
os povos indígenas, que desde sua episteme produziu barreiras intransponíveis nas
relações do Estado e os povos indígenas.
A desconsideração da enunciação cultural na mediação em circunstâncias de grande
distanciamento lógico entre aquele que se apresenta como agente estimulador do
"desenvolvimento" e aqueles reduzidos à condição de "público alvo" de políticas,
programas e projetos pode além de não atingir os objetivos servir como mecanismo de
fragmentação de modos particulares de viver.
No horizonte cultural kaingang Gá é reconhecida como um lugar onde a vida pode
florescer e frutificar. O reconhecimento de que antepassados viveram e morreram em
seus espaços é fundamental. A presença desses antepassados - denominados ká sἷ/
tronco velho - consolida um sentimento de parentesco com a terra e produz um
sentimento de tár/ força visualizado nos goj kujá, no fág, nos wên kagtá, que mobiliza
toda a energia da sociedade Kaingang para se manter em um determinado território e
orienta nossas reivindicações por nossas terras tradicionais, que sublinham o antigo
território Kaingang no planalto meridional. Embora a fisionomia contemporânea de Gá
se apresente na forma de “áreas degradadas”, em virtude dos sucessivos usos coloniais
que modificaram sua paisagem natural e por pouco não fez os Kaingang desaparecerem
completamente, ainda
assim
os
Kaingang reconhecem
seus
espaços
como
essencialmente íntegros e neles desejam permanecer. Mais do que isso: é a própria
presença Kaingang que poderá concretizar o devir Gá de um determinado lugar, sendo a
chave para a recuperação de seu aspecto integral, atualizando elementos do
Waxa/passado no Uri/presente. Ou seja, conjugar metodologias científicas/tecnológicas
contemporâneas de intervenção e relacionar essa metodologia com valores e princípios
culturais do povo Kaingang os quais orientaram nossa existência historicamente.
Nesse sentido estamos aqui afirmando nossa existência enquanto povo indígena
diferente. Não temos que provar para o Estado de nossas lógicas e sim exigimos o
reconhecimento dessas, para minimamente pagar sua divida histórica com nossa nação.
Seu reconhecimento deve imediatamente começar pelo reconhecimento do nosso
território por parte do Estado Brasileiro, solicitando sua identificação e delimitação,
seguida de demarcação e homologação nos ternos do artigo 231 da CFB/1988, Decreto
1775/96 e Portaria 14/96.
O grito da floresta e nosso bem viver se constitui nessa perspectiva: de um
desafogo, desabafo e nosso grito como guerreiros que sempre fomos. Atualmente Gá se
apresenta na forma desfigurada pelos usos coloniais sobretudo de monocultura, mas em
sua essência é terra Kaingang, terra dos mortos que nela habitaram e dos vivos que
lutam para recriar seu mundo e devolver a plenitude a Gá (mãe terra). Porém, não
poderemos alcançar esses anseios sem a sensibilização e relativização cultural dos
instrumentos e políticas públicas do Estado que contemplem de forma eficaz nossa
alteridade.
Com o exposto Gostaríamos de enfatizar aqui que o Estado deve se aproximar
dialogicamente com as territórios indígenas, no sentido de fornecer subsídio e
solucionar
as
problemáticas
socioambientais,
socioculturais
e
sociopolíticas
inicialmente inseridas pelo próprio Estado. Essa é peça chave na busca de uma
autonomia e bem viver dos Kaingang na sua dimensão mais ampla.
Eixos de Ações:
1) Mapeamento dos Goj Kusá – fontes de água fria que irá nos balizar no
sentido de pensar a gestão da bacia hidrográfica e sua recuperação.
Reconstituição das florestas próximas aos Goj kusa. As fontes de água fria
são o coração de Gá e a partir delas o fluxo da vida poderá ser reativado e
revitalizado.
2) Identificação das ilhas florestais remanescentes - assim teremos o
zoneamento ambiental, que irá nos auxiliar para a recuperação das áreas
degradadas e recuperação de ecossistemas. As ilhas florestais remanescentes,
por menores que sejam, representam bancos de germoplasma e informação
de Gá. Um único indivíduo de araucária, de grápia, de angico, de erva-mate,
deve ser entendido como potencial de uma floresta inteira.
3) Reconstituição de corredores ecológicos entre as ilhas florestais e de campos
naturais remanescentes, com ênfase na araucária e na erva-mate,
incrementadas com frutas que atraem a fauna, bem como espécies vegetais
de uso no artesanato. Os corredores ecológicos facilitarão a recuperação dos
tecidos de Gá e seu potencial como fonte de alimentos íntegros – alimentos
não cultivados, frutos da mata - vitais para Gá e seu bem viver.
4) Zoneamento da terra a partir das famílias da comunidade, potencializando
sistemas agroflorestais, agricultura de base familiar incrementados com
cultivares tradicionais da culinária Kaingang – mandioca, milho, abóboras,
kumin, pixé,. A força produtiva das famílias - respeitando sua autonomia a
organização social e política kaingang baseada no sistema de metades, no
respeito pelo jambré, pelo rengré, pelo kakrõ, pela fí,(esposa, filha, sogra) ,
pelo kujà, pelos pén, pelo poj-màg , essa é a força Gá. Estes sistemas
produtivos interligam as hortas com a merenda escolar, e tem potencial de
receber incentivos da agricultura familiar. As famílias são o centro pulsante e
elas são a força de produção e reprodução, pela sua própria existência, de
Gá.
Temas transversais para articulação dos eixos:
- Soberania alimentar - com identificação de espécies utilizadas na
alimentação tradicional Kaingang, identificando no território as unidades de
recursos disponíveis atualmente e as potencialmente recuperáveis;
- Medicina Tradicional - com identificação de espécies utilizadas na
farmacopéia tradicional Kaingang identificando no território as unidades de
recursos disponíveis atualmente e as potencialmente recuperáveis
- Arte e artesanato – a mobilidade Kaingang no território e a visibilidade dos
valores culturais estão na língua e no artesanato, atualizados no parentesco e
na circulação do artesanato em todo o território. As políticas públicas devem
potencializar, valorizar, incrementar o sistema produtivo do artesanato de
cipó, taquara, os cestos e outros objetos da cultura material Kaingang,
- Cultura - danças, cantos, rituais, festas, língua, elementos que revitalizam o
sistema de metades e a lei do respeito, próprias da sociedade Kaingang
quando em sua forma de vida em Gá.
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