Reflexões acerca da conjuntura da presença Kaingang na paisagem de Porto Alegre/RS
através de uma antropologia da estética.1
José Rodrigo Saldanha
[email protected]
IFCH/UFRGS2
Resumo
A partir do contato com os Kaingang e sua ambiência na paisagem da “cidade de Porto
Alegre”, este ensaio versa sobre o cotidiano Kaingang em meio às diversas apropriações e
considerações estéticas acionadas pelos fög3 em diálogo com a presença Kaingang nesta
“cidade”. Descrevendo alguns elementos de discurso e pontos de vista fög sobre aspectos
visuais tanto do artesanato Kaingang comercializado por estes na cidade quanto da vida social
destes em seu sistema doméstico, sua aldeia, busca-se refletir estes elementos enquanto
representações visuais pertencentes a um sistema simbólico visual fundamentado em
multifacetadas visões estetizadas e estetizantes da presença Kaingang acionadas por
segmentos fög distintos. Através destes elementos surgidos do contato inter-étnico realiza-se
uma reflexão quanto às apropriações e considerações fög inseridas numa noção antropológica
de tensão conjuntural marcadamente constituída por uma ambigüidade estética, esta apontada
nos discursos e elementos referenciais fög em relação aos Kaingang e sua presença em Porto
Alegre.
Palavras-Chave: Kaingang, estéticas da paisagem, ambigüidade estética.
Passado cerca de nove anos do meu primeiro contato com a etnia Kaingang e suas
especificidades - a propósito, um tímido contato enquanto apenas um estudante de graduação
em Ciências Sociais - deparo-me hoje com a possibilidade de contemplar um pouco mais
profundamente suas sócio-dinâmicas no espaço dito “urbano” de Porto Alegre/RS. Nesse
tempo, na interação e diálogo com alguns dos Kaingang na cidade, foi-me possível perceber
alguns dos múltiplos elementos da permanente busca por espacialidades e respeito de suas
1
“Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho,
Porto Seguro, Bahia, Brasil.”
2
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, mestrando em Antropologia Social PPGAS/IFCH/UFRGS.
Pesquisador do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais – NIT/UFRGS, do Laboratório
de Antropologia e Etnologia – LAE/UFRGS, e do Laboratório de Observação Social – LABORS/UFRGS.
3
Termo Kaingang na qual estes usam para referir-se aos indivíduos e comunidades “não-Kaingang”, e, por
extensão da conjuntura atual, os “não-índios”, brancos, ou estrangeiros.
1
formas de viver por parte dos fög, seu sistema sócio-dinâmico em expansão geopolítica
constante4 e as leis escritas destes.
A partir desse contato com os Kaingang e sua ambiência (BAUDRILLARD, 1993) na
paisagem da “cidade de Porto Alegre”, este precoce ensaio versa sobre o cotidiano Kaingang
em meio às diversas apropriações e considerações estéticas acionadas pelos fög5 em diálogo
com a presença Kaingang nesta “cidade”.
Tendo como viés central à própria presença Kaingang no espaço de Porto Alegre
enquanto inserida numa noção – aqui, obviamente tencionada antropologicamente – de
estética, ou “estéticas da cidade”, objetiva-se neste ensaio problematizar as inúmeras e, antes
de tudo, multifacetadas visões estetizadas e estetizantes da presença Kaingang acionadas por
segmentos fög distintos. Descrevendo alguns elementos de discurso e pontos de vista fög
sobre aspectos visuais tanto das substâncias materiais quanto da vida social Kaingang em seu
sistema doméstico, sua “aldeia”, busca-se refletir estes elementos enquanto representações
visuais pertencentes aos sistemas simbólicos visuais (MUNN, 1973). É importante
visualizarmos a dimensão do encontro e convivência pós-contato dos diferentes sistemas
simbólicos e estéticos e daí decorre a pertinência em analisar na conjuntura de Porto Alegre o
entrecruzar dos sistemas estéticos fög e Kaingang.
É imprescindível termos sempre as dimensões macro de relacionalidade do trabalho de
antropólogo enquanto uma conseqüência, uma decorrência, de uma gama de elementos que
ousamos através das Ciências Humanas denominar fenômenos sociais. Como eixo analítico
mais caro dessa proposta repousa a preocupação epistemológica conjuntural constituída nesta
presença Kaingang no cotidiano citadino de Porto Alegre e suas especificidades, e a partir
desta conjuntura efetuarmos um olhar antropológico sobre as especificidades estéticas
decorrentes dessa presença.
Partindo então de uma antropologia do contato e das fronteiras étnicas (BARTH,
2000), é possível descrever o que poderemos denominar uma antropologia das percepções e
relações estéticas entre Kaingang e fôg. O objeto central em questão neste ensaio, portanto,
são determinadas noções estéticas fög em relação à: a) a cestaria e artesanato em geral
4
Um bom exemplo para ilustrar essa macro conjuntura seria o crescimento das zonas “urbanas”, as ditas
“cidades”.
5
Termo Kaingang usado para referir-se aos indivíduos e comunidades, bem como elementos do cosmos nãoenglobados, ou ainda não-englobados, “não-Kaingang”, e, por extensão da conjuntura atual, é usado para os
“não-índios”, brancos, ou estrangeiros e seus elementos. Utilizando-nos ainda hoje do já clássico e instituído
termo “índio”, cunhado afoitamente pelos colonizadores europeus para referir-se aos Kaingang, utilizo o termo
Kaingang “fog” para referir-me aos não-índios mencionados na tentativa de uma antropologia mais simétrica
(LATOUR, 1994) das fronteiras e do contato. Cabe ainda ressaltar que este termo é acionado relacionalmente, na
fronteira étnica, não podendo ser essencializado no olhar e interação, mas refletido na relação social dos
Kaingang e seus coletivos em relação aos outros grupos e seus coletivos. Tudo leva-nos a indicar que este termo
não é usado para categorizar os indivíduos, comunidades e elementos advindos da presença negra e de outras
etnias indígenas no horizonte cosmológico Kaingang.
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comercializado pelos Kaingang através de seus pontos de comércio estabelecidos em duas
feiras da cidade e b) alguns dos elementos diacríticos visuais do cotidiano Kaingang na Aldeia
Tupeng Pó interpretados pelos fög e acionados enquanto provas de, por exemplo, a “nãoindigenicidade” dos Kaingang por estes. Através destes elementos surgidos do contato interétnico realiza-se uma reflexão quanto às apropriações e considerações fög e Kaingang de
elementos constituídos a partir das respectivas perspectivas estéticas.
Os Kaingang e uma conjuntura estética da paisagem da cidade.
Os habitantes de Porto Alegre, de sua região metropolitana e demais visitantes da
cidade que se dirigirem no fim de semana a Rua José Bonifácio, transversal entre as Avenidas
Osvaldo Aranha e João Pessoa, circundantes do Parque Farroupilha, referenciado pelos
habitantes da cidade enquanto Redenção, na região central da cidade, terão a chance de
prestigiar duas grandes feiras ambulantes semanais: a Feira Agroecológica e de Artesanato de
sábado e o “Brick da Redenção” no domingo.
Todo sábado pela manhã, inicia o estabelecimento dos feirantes ambulantes no largo
central da Avenida José Bonifácio. Agricultores familiares agroecologistas, apicultores,
padeiros e cozinheiros habilidosos nas técnicas da cozinha vegetariana, macrobiótica, ou dita
“alternativa”; rendeiras, vendedores ambulantes de doces, pipocas, pintores, livreiros, entre
outros. A feira, ao se configurar enquanto espaço de comércio de rua estabelece no cotidiano
do bairro Bom Fim uma outra possível configuração estética ao espaço da rua em relação a
sua habitual estética dos dias da semana. O intenso trânsito de pessoas entre as barracas, a
variedade de produtos oferecidos e os próprios feirantes compõem, junto aos participantes da
cena urbana em questão todo um colorido, uma dinâmica, uma diversidade de ofertas em
estímulos visuais e sensitivos em geral, compondo específicas estéticas da paisagem a cada
olhar imerso à cena.
Da mesma forma, todos os domingos, a paisagem configura-se novamente enquanto
feira ambulante de rua através do “Brick da Redenção”, onde inclusive a Rua José Bonifácio
tem seu fluxo cotidiano de automóveis barrado e as pessoas ganham à rua, como antes da era
do automóvel e dos demais veículos automotores6. Aqui, com exceção dos agricultores de
sábado, muitos outros expositores e feirantes de seus produtos frutos de artesanato e ou
arrecadações de artigos “especiais”, “históricos”, “raros” ou “colecionáveis”, podem ser
encontrados: os vendedores ambulantes de vinis usados ou de artigos de “antiquário” em
geral, desde maçanetas antigas, cantis militares, abajures ou mesmo botões de roupa, como até
6
Estes configuram aqui também uma outra faceta estética da cidade contemporânea em geral.
3
mesmo colecionadores de cartões de telefones e moedas. Pintores, escultores, bordadeiras,
marceneiros. Vendedores de balões, algodão doce, guloseimas variadas, refrigerantes.
A rua, as calçadas, o largo são preenchidos pelos feirantes, muitos que já haviam
incorporado-se a paisagem com sua específica estética corporal e “material” – expressa por
seus artigos expostos – na feira do dia anterior. Entre esses últimos, em especial atenção neste
ensaio, encontram-se expositores Kaingang, habitantes da cidade de Porto Alegre, que,
geralmente em seus grupos familiares, deslocam-se de suas aldeias para ofertarem
comercialmente aos freqüentadores da feira suas cestarias, adornos corporais e demais
produtos frutos de artesanato próprio ou mesmo de outros grupos étnicos autóctones, como os
Guarani.
Entre os Kaingang – especialistas na arte da cestaria e do artesanato em geral com
cipós e outros materiais na confecção de adornos corporais e outros produtos – podemos
encontrar Dona Lurdes (Ninplê), kujã (xamã) kaingang de uma das aldeias de Porto Alegre.
Junto aos seus companheiros, todos com suas esteiras, panos ou bancas onde se depositam os
artefatos, encontramos a exposição dos objetos trazidos por Ninplê: Balaios confeccionados
em cipós de diferentes modelos, tamanhos, e tonalidades; bolinhas feitas com cipó enrolado
que cada vez mais tem uso difundido entre os fög como objeto de decoração de casas e
mesmo estabelecimentos comerciais; grandes balaios de taquara, decorados com motivos
iconográficos, confeccionados por artesãos guarani; e figuras zoomorfas talhadas em madeira,
também feitas por artesãos guarani.
Além de artefatos como os de Ninplê, os Kaingang também apreciam comercializar
uma ampla gama de adornos corporais, feitos de sementes, contas, caroços, plumas, penas em
geral, sementes da Amazônia ou peças fabricadas com casca de coco do Nordeste do Brasil.
Estas são matérias primas vindas da paisagem, da “natureza”, como estes apontam.
Relacionando-se com a paisagem7 “urbana” fög contemporânea e sua multiplicidade
estética, ambientados nesse cotidiano do contato permanente com os fög enquanto
pertencentes de outras comunidades – uma vez que os Kaingang vêem a cidade como uma
grande aldeia - alguns Kaingang também apreciam utilizarem na confecção de seus adornos
corporais matérias-primas fög. Estas são adquiridas no próprio cotidiano da urbanicidade, em
atacados ou lojas especializadas, como ferrolhos ou os barbantes de nylon, uma vez que os
7
A pertinência da discussão entre as noções antropológicas a serem alicerçadas e as noções ditas de “heranças”,
“bagagem” histórico, moral “naturalizadas” e legitimadas acentuam-se nesse recorte metodológico estabelecido
no ensaio entre “noções normatizantes estabelecidas” e “noções extraídas da percepção antropológica relacional
dialógica”. Nesse sentido, é correto nos valermos da percepção das diferentes noções de “natureza” erigidas
pelos grupos étnicos. Decorre disso a utilização da noção estética de paisagem por dialogar fluidamente com
algumas das noções que possam surgir para categorizar o ambiente, e num sentido antropológico para nós, o que
podemos nominar como habitat.
4
Kaingang sabem que os fög gostam de adornos corporais com esses detalhes. Esta apropriação
de elementos materiais fög pelos Kaingang em seu comércio e artesanato pode ser melhor
analisada ao apontarmos certas especificidades de englobamento e incorporação de elementos
e seres da paisagem em sócio-dinâmicas imanentes a suas concepções cosmológicas. Uma das
especificidades da sócio-dinâmica Kaingang é a apropriação de elementos dos “outros” que
habitam o cosmos. Um dos princípios centrais de sua cosmologia é a complementaridade
entre as metades kamé ou kajrú nas quais o cosmos encontra-se dividido (CRÉPEAU, 2002).
Em sua pesquisa etnoarqueológica dos grafismos Kaingang, Silva nos relata a relação
milenar constatada arqueologicamente entre os grupos Proto-Jê meridionais - ancestrais dos
atuais Kaingang - e os grupos Proto-Guarani (SILVA, 2001). Nesse sentido, Schmitz também
aponta que os Kaingang fazem parte de uma “história viva de milênios, num ambiente em
transformação, no qual havia competição interna e relações amistosas e conflitivas com
vizinhos e antecessores” (SCHMITZ 2007, p. 03). É nessa conjuntura relacional – através
deste princípio de interação com os outros - que hoje podemos compreender o contato entre
Kaingang e fög e a partir deste a incorporação em seu sistema simbólico de elementos
materiais produzidos pelos fög ou mesmo a comercialização do artesanato Guarani pelos
Kaingang.
Sentados, normalmente confeccionando algum novo artefato, acompanhados de suas
crianças - que rapidamente espalham-se em brincadeiras e correrias por entre as bancas,
feirantes e apreciadores da feira - trazendo esta multiplicidade de artefatos sucintamente
listados aqui, os Kaingang inserem-se na multiplicidade estética da paisagem gerada pela feira
em sua completude.
Além desses locais usuais de comércio de sua cestaria e artesanato em geral, cabe
ressaltar também que os Kaingang possuem no Centro de Porto Alegre outros pontos onde se
estabelecem para a realização da exposição e comercialização de seus produtos com os fög.
Um dos pontos utilizados também por artesãos e comerciantes Kaingang é uma cotidiana feira
de artesanatos e variedades localizada nas vias e passeios da Praça da Alfândega, no Centro
de Porto Alegre. Além desses locais, eventualmente os Kaingang em ocasião de eventos,
congressos, ou mesmo atividades acadêmicas em que estão relacionados, são convidados a
exporem seus artefatos em espaços como os da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ao longo do tempo em que vêem constituindo suas exposições e vendas de cestarias e
artesanatos em geral nas ruas da cidade, os kaingang vêem também adquirindo algum
reconhecimento e respaldo por parte de determinados atores sociais e esferas de exercício do
“poder público”. As formas fluídas deste reconhecimento podem ser percebidas como
inseridas nessa participação Kaingang nas múltiplas estéticas da paisagem da cidade. Hoje os
5
Kaingang já usufruem e usufruíram outros espaços de utilização para fins de mostra e
comercialização de suas cestarias e artesanatos em geral em “importantes” paisagens de Porto
Alegre. O recente “Espaço Kaingang de Sustentabilidade” fica no Mercado Público, Largo
Glênio Peres, próximo a Prefeitura da cidade, no “coração” do Centro, e foi criado com apoio
da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana8. Os Kaingang já
utilizaram uma sala para fins de exposição e de comércio no quiosque comercial derivado na
atualidade do antigo Bar Escaler, na Redenção. Apesar de possuírem espaços como estes,
ressalto aqui a preferência que os Kaingang têm pela utilização dos espaços públicos e
abertos, como feiras e praças, pontos de movimento e de grande fluxo de pessoas no cotidiano
da cidade.
Tendo sucintamente descrito os elementos da interação e incorporação Kaingang
nas estéticas das paisagens configuradas no contexto de comércio e exposição pública, de rua,
ambulante, nas modalidades de feira, através da oferta de suas cestarias e outros produtos de
artesanatos não só seus, mas também de artesãos Guarani, podemos refletir acerca do
pertencimento Kaingang na estética da paisagem da cidade, e assim, em esferas sociais como
a dos “circuitos de arte” da cidade.
Uma tensão conjuntural foi percebida por mim em campo muitas vezes, sempre
surgida em contextos de discussão com fög inseridos nos “circuitos de arte”, como artistas e
estudantes de artes e apreciadores da “arte indígena” existente na cidade.
Conversando com pessoas vinculadas ao estudo e campo de exercício da “arte”, em
Porto Alegre, tornou-se recorrente ao falarmos da vinculação com estudos antropológicos a
respeito do campo de estudo e percepção da “arte popular” e “arte indígena” enquanto áreas
de “interesse” de algumas dessas pessoas. Um tema sempre trazido à tona por parte dessas
pessoas nas discussões em que a “arte Kaingang” era citada, era o da assimilação que estes
faziam de matérias-primas “sintéticas”, muitas vezes referidas como “industriais” em suas
composições. Para estes “especialistas”, apreciadores da “arte”, e em particular, da “arte
indígena”, era notório muitas vezes que os Kaingang estavam “se descaracterizando enquanto
indígenas, uma vez que ‘índios’ deveriam utilizar-se apenas de matérias-primas e substâncias
vindas da ‘natureza’”. Estavam assim os Kaingang distanciando-se de uma específica
“essência”, um modo específico e estático de se “ser índio”. Alguns dos materiais
incorporados ao conjunto de adornos corporais apresentado pelos Kaingang para comércio
com os fög era visto então criticamente, pois distanciavam-se do sentido “exótico” que os
8
Ressalto aqui que não tenho detalhes ou experienciei ainda de vivências junto aos Kaingang relacionadas a este
seu espaço, pois o universo étnico Kaingang na “Grande Porto Alegre” e no “Rio Grande do Sul” é relativamente
plural, além de meus trabalhos de campo terem sido interrompidos temporariamente por motivo de saúde no
realizar deste ensaio.
6
demais artefatos artesanais – os balaios de cipó, por exemplo – parecem desempenhar no
sistema simbólico visual acionado por estes apreciadores para significar a “arte Kaingang”.
Pensando sobre esses elementos discursivos, transparecem o que seriam noções de
uma “autêntica arte indígena” enquanto um referencial norteador das percepções dos próprios
apreciadores acerca dos Kaingang e sua sempre questionável “essencialidade índia”, seja no
âmbito de sua corporalidade como no âmbito do que chamarei aqui da expressão física de sua
materialidade artística, ou seja, sua cestaria e artesanato em geral oferecido em comércio.
Percebe-se assim a tensão conjuntural que se relaciona as pré-concepções estéticas produzidas
e acionadas por estes apreciadores de arte no jogo entre o exótico (o elemento “índio”) e o
familiar (as próprias matérias-primas sendo incorporadas por “índios”, como no caso em
questão). Estas pré-concepções apontam uma forma de essencialização desta denominada
“arte indígena” nos discursos em questão.
A respeito dessa apropriação discursiva dos sentidos estéticos que pode apresentar a
“arte Kaingang” para apreciadores “não-índios” em seu discurso sobre a “arte indígena”, trago
à tona apontamentos de Geertz, discutindo sobre a experiência artística e estética em
diferentes grupos sociais espalhados pelo mundo e a relação da percepção dos elementos
resultantes dessa experiência aos termos de uma conceitual “arte” enquanto noção ocidental
padronizadora de um sentido universal de beleza:
“Esse sentido pode ou não existir, mas se existe, em
minha experiência, não parece tornar as pessoas capazes de
reagir às artes exóticas com outra coisa além de um
sentimentalismo etnocêntrico, na ausência de qualquer
conhecimento sobre o que significam aquelas artes, ou
qualquer compreensão da cultura onde se originaram. (O uso
que o Ocidente faz da obra de “primitivos”, deixando de lado
o valor que essas obras certamente possuem em seus próprios
termos, contribuiu para acentuar essa ausência de
conhecimento);” (GEERTZ, 2003, p. 181).
A sensibilidade destas percepções estéticas não-índias (fög) para a “arte”, o artesanato
dos Kaingang e seu modo de vida pode ser relacionada às concepções dicotômicas entre
“natureza” e cultura dos apreciadores em questão. Esta noção dicotômica das relações com a
“natureza” transparece em noções decorrentes em termos de “desenvolvimento” e “atraso
tecnológico”. A contestação da “não-pureza” ou “não-originalidade” de parte da atual “arte
indígena” pelos “espectadores fog” funda-se numa dicotomia entre a atual “plasticidade” da
atualidade civilizatória9 em contra-posição a uma “ancestralidade” da “natureza”. Essa
9
Essa atualidade civilizatória que podemos apontar antropologicamente é simbolizada e expressa pela difundida
categoria laica “modernidade”, constante em muitas das formas de pensamento e expressão midiática
massificada nos grandes centros urbanos contemporâneos. Para maiores análises dessa questão, ver Latour, em
“Jamais Fomos Modernos”, 1994.
7
percepção fög é sustentada por um processo de substancialização material pela interpretação da
utilização de matéria-prima “natural” no artesanato “autenticamente indígena” enquanto prova
de uma pré-noção – também não-índia – de que os “índios” um dia viveram em harmonia com
esta “natureza”, e que devem assim continuar vivendo. Logo, os Kaingang não são mais, para
muitos fög, “índios autênticos”, uma vez que estes não utilizam apenas matérias-primas
“naturais” na confecção dos adornos corporais que comercializam, por exemplo.
A sensibilidade que escapa aos fög, necessária a uma possível fundamentação das
interpretações da “arte Kaingang”, é aquela que deve ser exercida por nós no fazer etnográfico
e antropológico, capaz de captar as especificidades da relacionalidade do fazer artístico
Kaingang com os demais elementos de sua esfera social:
“Segundo a tradição ocidental, as artes são
conceitualmente separadas de outras esferas da vida social e
cultural, ainda que nem sempre tanto quanto se pretenda. Nas
sociedades indígenas, as artes são uma ornamentação para as
manifestações públicas e os talentos manuais, mesmo os mais
individualizados, são bastante compartilhados pela
população: as coisas são feitas por artesãos locais e por
intermédio de processos que todos conhecem.” (VIDAL &
LOPES DA SILVA, 1992, p.281).
No momento em que se evidencia a necessidade de percepção das especificidades de
um determinado grupo social para podermos ter uma dimensão significante de sua “arte” a
partir dos elementos diacríticos, seus próprios referenciais culturais, podemos evidenciar a
fragilidade dos discursos fög em questão enquanto parte do público espectador, no caso,
externo e alheio às sócio-dinâmicas Kaingang, que, dessa forma, poderiam apenas erigir um
discurso generalizante a partir de suas próprias pré-noções e referenciais gerais utilizados na
definição do que venha a ser “arte”:
“Segundo Geertz (1983), um discurso genérico sobre
a arte parece inútil. A ação sobre a matéria não é criadora por
si mesma: é preciso remetê-la à dinâmica geral da experiência
humana. Sendo assim, os trabalhos de arte acabam por ter
uma significação cultural localmente elaborada.” (VIDAL &
LOPES DA SILVA, 1992, p.282).
Essa determinada “significação cultural localmente elaborada”, mencionada por
Geertz e trazida à tona por Vidal & Lopes da Silva é o elemento necessário à constituição do
que seria uma percepção etnográfica a respeito das propriedades estético-artísticas do
artesanato Kaingang na contemporaneidade de Porto Alegre.
Estética e paisagem do “índio” na cidade pelos fög.
8
Seguindo o caminho proposto neste ensaio, o que nos direciona agora é a noção
antropológica relacional de tensão conjuntural que pode ser percebida em outro contexto de
contato dos Kaingang com os fög. Trata-se da tensão gerada a partir das percepções estéticas
também pré-concebidas de alguns moradores do bairro Sétimo Céu em relação a uma
essencialização estetizante do que seria diacriticamente julgável pelos fög enquanto um “ser
índio”, e que foi usado nos processos sociais de não aceitação do estabelecimento dos
Kaingang em 2004 no Morro do Osso. Este morro (Zona Sul da cidade), na atualidade
completamente circundado por casas, condomínios e prédios de moradia, além de vilas
populares, ainda possui uma área de aproximadamente 220 hectares de paisagem dita
“natural”, ainda não ocupada, não-urbanizada.
Ao longo das últimas duas décadas, um movimento de evidência da necessidade de
“preservação” destes espaços “naturais” do morro conduzido por ambientalistas, biólogos e
alguns moradores do entorno, culminou na proposta de um processo de transformação de uma
parcela do morro em “parque natural”. Mas o processo burocrático institucional público
ocasionou a liberação no ano de 2003 da construção de mais um condomínio habitacional
privativo nas encostas do morro, e uma área de mata seria derrubada nesse processo de
“urbanização”. Paralelamente, os Kaingang de Porto Alegre possuem relativa ambiência
nestes espaços não-urbanizados do morro, sendo que este se configura enquanto espaço onde
muito os Kaingang manejam as manchas de cipó em meio à mata de onde extraem o material
principal de suas cestarias (FREITAS, 2006). Sabendo da eminência de morte da mata, os
Kaingang decidiram ocupar-se do morro, uma vez que este é espaço indígena, pois o
conhecido nome decorre da difundida idéia de existência de um cemitério indígena
ancestral10.
A partir do momento em que os Kaingang se estabeleceram enquanto habitantes no
Morro foi possível acompanhar esse fato social como a inserção dos Kaingang numa estética
da paisagem cotidiana da localidade do Morro do Osso.
Na primeira semana de abril de 2004, um grupo Kaingang proveniente da Aldeia da
Lomba do Pinheiro11, bem como de algumas vilas da cidade de Porto Alegre, estabeleceram
10
Maiores detalhes sobre a conjuntura de estabelecimento dos Kaingang no Morro do Osso podem ser obtidos
em recentes materiais produzidos a partir de interações antropológicas de recentes pesquisas com a referida
comunidade Kaingang: RAUBER, Rita Cristina. O conflito de ocupação territorial do Morro do Osso em Porto
Alegre, RS, Brasil, entre um grupo Kaingang e a Prefeitura Municipal de Porto Alegre. In. VI Reunião de
Antropologia do Mercosul (RAM). GT 12. Montevideo. 2005; SALDANHA, José Rodrigo, PRADELLA, Luiz
Gustavo S. A Presença Kaingang no Morro do Osso entre diferentes perspectivas sócio-discursivas. In. VII
Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM). GT 43. Porto Alegre, 2007.
11
Área cedida para os Kaingang pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre no bairro de mesmo nome.
Atualmente habitam nesta 26 famílias, somando cerca de 120 pessoas.
9
acampamento às margens da estrada principal que leva ao parque Natural do Morro do Osso,
junto à sede deste, aos pés de uma Acácia Negra. Em sua maior parte, aqueles provenientes da
Aldeia da Lomba do Pinheiro eram membros de uma facção que há muito vinha rompendo
com a liderança daquela aldeia e com os seus buscavam outros espaços onde pudessem viver
segundo seus referenciais.
No dia dezessete de abril do referido ano, os Kaingang estabelecidos no Morro do
Osso foram surpreendidos por uma intervenção orquestrada pela Prefeitura de Porto Alegre, e
conduzida por seus funcionários com o apoio de soldados da Brigada Militar que tinham o
intuito de removê-los dali. Foram deixados logo após uma cancela, no bairro popularmente
conhecido como Sétimo Céu, do outro lado do Morro do Osso, no que seria um limite entre a
área do Morro enquanto parque natural e as demais áreas do morro. Pouco tempo depois, na
mesma tarde, aqueles que haviam permanecido próximo à sede deslocaram-se também para
este outro lado do morro, onde juntos constituíram um novo acampamento. Com o passar do
tempo este acampamento provisório deu origem à Aldeia Kaingang Tupeng Pó (Pé de Deus).
Para chegarmos até a aldeia do Morro do Osso, precisamos atravessar o Morro,
passando por dentro de sua área de “parque natural”, ou subir o Morro pela outra margem, por
entre os caminhos oferecidos pelas ruas do Bairro Sétimo Céu, em meio a casas de moradores
de expressivo poder aquisitivo. Assim, grandes casas de fino acabamento erguem-se com seus
planejados jardins, suas grades e muros de proteção e isolamento de seus limites.
As ruas do Bairro dispõem-se na íngreme face do morro de forma curvilínea, e é
relativamente fácil para alguém que não conhece a localidade passar mais de uma vez na
mesma rua na tentativa de chegar ao topo do Morro12, onde se encontra no fim de uma dessas
ruas a cancela que marca o início da área do parque. Antes desta cancela, dispostas às
margens dos últimos metros da rua que vai sendo engolida pelo início de uma mata,
encontram-se as casas que compõem a aldeia dos Kaingang.
Ao estabelecerem-se no Morro do Osso, os Kaingang se incorporaram ao cotidiano de
uma forma de paisagem que há muito lhes é habitual. Partindo da perspectiva de sua
ambiência com as formações de mata, campos e demais aspectos da paisagem preferidos por
estes, sustentados pela legitimidade de suas conexões com as ancestralidades indígenas que
outrora ocuparam o Morro do Osso, os Kaingang exerceram suas noções estéticas ao
valorizarem o espaço do morro enquanto possibilidade para sua morada. Mas seus novos
vizinhos e demais fög envolvidos com o cotidiano ou com as questões de “preservação” do
parque ou do espaço não-urbanizado do morro como um todo, não valer-se-iam das noções
estéticas, cosmológicas ou mesmo da sócio-dinâmica Kaingang, como nós, antropólogos,
12
Isto já aconteceu inclusive comigo.
10
normalmente devemos fazer, ao tentar interpretar um panorama de ambiência autóctone. Ao
contrário, os fög “sensibilizados” com a questão do estabelecimento da comunidade Kaingang
no Morro do Osso, ao visualizarem os Kaingang em seu recentemente constituído espaço de
aldeia, doméstico, explicitaram elementos de discurso e os demonstraram através de
determinadas ações que gostaria de analisar aqui como pertencentes a esta tensão conjuntural
da presença Kaingang enquanto presença “índia” na cidade. A meu ver, uma ambigüidade
estética pode ser percebida tanto no contato – se é que podemos denominar de contato Kaingang com determinados segmentos fög no cotidiano da aldeia Morro do Osso quanto no
contato também com determinados segmentos fög nos diversos pontos de comércio
estabelecidos pelos Kaingang na cidade.
Para elucidar minha percepção trago à tona um fato que muito preocupou a
comunidade Kaingang acerca de dois anos atrás. Um juiz de Porto Alegre, a partir de uma
denúncia de moradores do Bairro Sétimo Céu, precisamente vinda da Associação de
Moradores deste bairro, colocou em questão o direito das crianças Kaingang de
permanecerem com seus pais, pois estes foram acusados por moradores fög do bairro de não
estarem cuidando bem de seus filhos. Assim, os Kaingang temiam que agentes do Conselho
Tutelar Municipal viessem recolher seus filhos. Os Kaingang não foram importunados
efetivamente pelo Conselho Tutelar Municipal, ou tampouco por quaisquer outros tipos de
atores sociais em relação a esta denúncia, pois esta era infundada. É sabido por mim e demais
colegas de trabalho na antropologia, ou demais fög que possuem certa interação com os
Kaingang, que as motivações principais de moradores do Sétimo Céu eram, e continuam
sendo, atacar os Kaingang de modo a estes abandonarem sua busca pela demarcação de uma
área indígena no morro. Assim, eram motivações geopolíticas que estavam em jogo nessa
manobra fög. Mas a centralidade que esse evento adquire aqui não repousa no fato dos fög
denunciadores
terem
sido
motivados
politicamente
ou
humanitariamente
(mesmo
contraditoriamente as especificidades desconhecidas por estes da vida social Kaingang), mas
sim por estes fög, como os fög críticos da “arte indígena”, terem se alicerçado em noções préconcebidas baseadas em seus próprios padrões estéticos para a tomada de ação referida aqui.
Elucidar este evento envolve a descrição de alguns elementos visuais da cena cotidiana dos
Kaingang no Morro do Osso.
Ao chegarmos a Aldeia Kaingang Tupeng Pó, nos deparamos com o cotidiano
Kaingang constituindo-se ao ar livre, no meio da rua, uma vez que, como descrito, as casas e
demais instalações da aldeia estão dispostas ao longo do fim dessa rua, na intersecção entre o
morro “parque”, e o morro “bairro”. Ali, vemos mulheres sentadas mais novas e mais velhas,
manuseando cipó e confeccionando suas cestarias, cozinhando ou mesmo junto aos tanques
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lavando roupas. Da mesma forma, vemos também homens sentados como as mulheres, no
chão ou em bancos desenvolvendo sua arte ou em outros afazeres à sombra de árvores ou à
frente de suas casas. Assim, o espaço da aldeia, entorno das casas, configura-se como espaço
de sociabilidade, prática de sua cestaria e demais artesanatos e da realização de grande parte
de seus afazeres domésticos.
Nosso panorama ainda pode ser melhor apresentado com uma breve descrição de
alguns aspectos físico-materiais que podemos contemplar ao chegar à aldeia, e que também
dizem respeito aos discursos e tomadas de ações fög apontadas enquanto originárias de noções
estéticas destes sobre a presença Kaingang no morro e, em geral, na cidade.
Formada atualmente por casas feitas em madeira advinda de reflorestamentos, como
pinus e eucalipto (árvore norte-americana e australiana trazida pelos colonizadores),
relativamente pequenas e simples para os padrões do bairro fög Sétimo Céu, é comum nos
depararmos com objetos como peças de roupas, calçados, panelas, bacias plásticas ou alguns
brinquedos dispersos no entorno das casas e em pontos do pátio. O vivo colorido destes
objetos fög utilizados pelos Kaingang destoará mais na paisagem se olhos menos atentos ou
desavisados não perceberem a grande quantia, a todo o redor, de pequenas réstias e rebarbas
de cipós de diferentes tamanhos e colorações resultantes da arte da cestaria com estes
vegetais. Pequenas fogueiras acesas em frente às casas ou na sombra de árvores, formadas por
círculos e semi-círculos de pedras, ou mesmo algumas destas apagadas e pequenas pilhas de
lenhas apontam o uso e a dimensão coletiva do fogo para os Kaingang: adultos, entre estes
idosos e também crianças formam grupos no entorno dessas fogueiras. Ali cozinha-se,
esquenta-se água para chás de ervas, confecciona-se cestaria ou esquenta-se o corpo no frio,
entre muitas outras atividades. O tom do movimento à cena é dado pelas crianças que correm
de um lado para o outro, em brincadeiras entre si e risadas uma atrás da outra, com a mesma
espontaneidade com que os adultos ali, naquele pátio, em frente às casas, no entorno dessas,
ou em baixo de árvores desenrolando e trançando cipós, vivem o desenrolar de seu cotidiano.
Arrisco-me aqui a refletir quanto a um constrangimento cosmológico provocado pelos
objetos fög e o possível “desprezo e desapego” em relação ao tratamento que os Kaingang dão
a estes, uma vez que objetos destes vistos em situação similar numa casa de um “não-índio”
seriam considerados “lixo”. Logo no início do espaço utilizado pelos Kaingang, um conjunto
de tanques de lavar-roupa em concreto foram instalados pela Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, para atender as famílias Kaingang, junto com caixas-d’água e banheiros em fibra-devidro, das utilizadas em eventos públicos.
A força do evento descrito envolvendo as crianças Kaingang do Morro do Osso e seu
visual “aspecto de desamparo” para moradores fög do Morro do Osso enquanto evento
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reflexivo na percepção da conjuntura estética dos Kaingang e o sistema estético fög em Porto
Alegre está no conflito gerado no sistema estético dos habitantes fög do Sétimo Céu no
momento em que a comunidade Kaingang se estabelece em seu cotidiano, que possuía uma
estética corriqueira específica.
A especificidade da “denúncia” é um marcador que constitui-se enquanto alicerce
referencial à percepção nos Kaingang pelos fög de aspectos visuais que lhes remetem ao olhar
que estes fazem da cotidiana “pobreza” encontrada na “periférica Porto Alegre”, ou seja,
aquela que não lhes diz respeito, aquela gerada pelo crescimento urbano não-planejado, onde
pequenas casas se aglomeram e as crianças, por exemplo, correm livremente no entorno
destas, como as crianças Kaingang do Morro do Osso.
No cenário estético contemporâneo vivido pelos moradores que se sentiram
“comovidos” com a situação dita por estes “precária” das crianças Kaingang, não há espaço
na configuração da “cena estética” do bairro “Sétimo Céu”, na visão destes, para crianças
“índias” correrem livremente, muito menos com seus pés muitas vezes “descalços”, seus
cabelos “despenteados”, “sujas”, ou “mal –agasalhadas”. As questões pertinentes a uma
interpretação antropológica deste evento centralizam-se sobre os elementos referenciais
sustentados pelos discursos dos fög denunciantes. Estes elementos, estes sinais diacríticos que
mencionam, são acionados por partirem da unilateralidade de uma pré-concepção gerada
pelos próprios referenciais fög que prioriza arbitrariamente uma concepção de cuidado com
crianças. Esta, por ser a sua forma de cuidar de crianças, e por partirem de seus padrões, é a
forma considerada “correta”, “ética”, ou mesmo “saudável”. Trago um dos discursos
apontados por Rauber (2005) que apresenta o crítico olhar fög em relação às práticas
corporais das crianças Kaingang na aldeia Kaingang do Morro do Osso:
“Eles têm que aprender junto com o homem branco a evoluir.
Eles não querem que essas crianças vão à escola. Aquelas crianças
caminham de pés descalços nos paralelepípedos, é sobre-humano.
Buscam baldes pesados de água. Considero isso trabalho infantil.”
(Funcionário do Parque Municipal do Morro do Osso apud RAUBER
2005, 16).
A visão de considerada liberdade e relacionalidade com a vida coletiva da aldeia de
que as crianças Kaingang usufruem através de suas brincadeiras e demais atividades, sejam
quais forem, junto a seus referenciais mais velhos, os adultos, ou entre si, no entorno do
espaço da rua que se constituiu na aldeia Kaingang, sem uma percepção dialogada, partilhada,
negociada, com os próprios elementos gerados pelos Kaingang, assemelha-se as primeiras
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posturas dos ancestrais europeus renascentistas que depararam-se com a existência dos que
erroneamente chamaram “índios” no novo mundo.
O que vemos ao debruçarmo-nos sobre “o passado formador” do que hoje
denominamos “Brasil” e, alguns continuam mesmo em nossos “meios intelectuais
acadêmicos” a mencionarem de forma pueril e essencialista enquanto “nação brasileira”, nada
mais é que a configuração histórica de uma preocupação expansionista geopolítica
eurocentrada13 que, aliada ao constrangimento cosmológico do contato com o “outro”
desconhecido, negou desde o primeiro contato as possibilidades de coexistência com o
diferente, expressando-se nas formas dominadoras da escravidão, do massacre, da servidão,
da redução e, mais tardiamente, da “pacificação” do “indígena”. Essa conjuntura geopolítica
histórica colonialista foi crucial no processo de formação das pré-noções contemporâneas dos
descendentes europeus em relação às comunidades indígenas. Dessa forma, uma vez que
outrora, como aponta Ganbini (1988):
“A cruz, ou seja, o cristianismo, seria a perspectiva
através da qual o contato com o desconhecido poderia ser
compreensível para uma consciência européia, da mesma forma
como seria o padrão escolhido para moldar a nova realidade.
Isso quer dizer, os seres humanos a priori conquistados que
porventura habitassem o território teriam que ajustar-se à cruz e
a viver por ela” (GANBINI, 1988, p. 75).
Hoje, na contemporaneidade, a “civilização”, ou seja, o advento de uma vida
individualista consumista como modelo em “crescimento”, à “desenvolver-se” “para todos” é
a perspectiva através da qual – parafraseando Ganbini - o contato com o desconhecido “índio”
(aqui, Kaingang) contemporâneo pode ser compreensível para um olhar urbano não-Kaingang
(“fög”). Assim, os Kaingang devem cuidar de suas crianças pelos padrões “civilizados”, tendo
que se ajustarem a estes?
As reflexões sobre a questão ainda apontam que, sem um diálogo com os Kaingang no
Morro do Osso sobre a condição de cuidado com suas crianças, a ação fög tratando das
condições de integridade das crianças Kaingang e sua permanência com seus pais constituem
um paralelo estético, ou um panorama estético que conecta a imagem que os fög tem de
“abandono” e de “descaso” com crianças em sua “cultura”, em seu referencial, e a imagem
pré-concebida que estes fög acionaram em sua interpretação da vivência das crianças
Kaingang no entorno de sua aldeia, seu mundo referencial.
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Cf. SALDANHA, José Rodrigo, PRADELLA, Luiz Gustavo S. A Presença Kaingang no Morro do Osso
entre diferentes perspectivas sócio-discursivas. In. VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM). GT 43.
Porto Alegre, 2007.
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Apontamentos sobre a percepção e apropriação fög da arte e modo de vida Kaingang”: entre
uma essencialização veladora e ambigüidades estéticas.
Através de uma percepção estética que parte dos elementos diacríticos observáveis ao
simples olhar dos fög sobre os Kaingang – modo de ser, estilo de vida, uma dita “cultura
material” – os específicos discursos estetizantes erigidos sobre estes apontados acabam por
revelar uma essencialização veladora que é secularmente desenvolvida e mantida através de
lógicas pré-concebidas sobre os grupos ameríndios e as noções, os referenciais, que
determinados segmentos da “civilização” fög contemporânea urbana passam a compor sobre o
modo de viver desses grupos autóctones.
Os elementos discursivos fög trazidos neste ensaio nos apontam que as concepções
destes sobre os Kaingang na “sua” cidade fluem através do típico exotismo em que alicerçamse posturas frente à substancialidade táctil do “índio” e sua viva presença no cotidiano
contemporâneo. Assim, a exemplo, a arte da cestaria Kaingang e Guarani vem, na maioria das
vezes, “representar” o “passado” como um todo, anterior a “civilização” da industrialização
dos bens materiais gerais. Contrastando com a já citada “plasticidade” do mundo material
contemporâneo, o lugar para “esta arte indígena”, muitas vezes, ainda é aquele descrito por
Baudrillard em relação ao poder simbólico dos objetos antigos:
“Trata-se no fundo do mesmo imperialismo a que se
submete a natureza por meio dos objetos técnicos e se
domesticam as culturas por meio dos objetos antigos. É o
mesmo imperialismo privado que reúne à volta de si um meio
funcionalmente domesticado e os signos domesticados do
passado, objetos-ancestrais, de essência sagrada mas
dessacralizada e dos quais se exige que deixem transparecer
sua sacralidade (ou historicidade) em uma domesticidade sem
história.
Assim o passado inteiro como repertório de formas
de consumo junta-se ao repertório das formas atuais a fim de
constituir como que uma esfera transcendente da moda.”
(BAUDRILLARD, 1993, p. 92).
A partir dos elementos apresentados e da relativa situação de tensão conjuntural da
presença Kaingang na cidade de Porto Alegre podemos perceber uma aparente ambigüidade
estética através da qual se fundam e aqui se aglutinam os citados discursos fög sobre os
Kaingang e sua arte. O principal aspecto a ressaltar quanto a esta ambigüidade relaciona-se ao
processo de velamento das dinâmicas sócio-culturais imanentes á todo grupo social humano.
Esse velamento é erigido hora sobre o exotismo que essencializa “o Kaingang” na categoria
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“índio”, hora sobre a negação da possibilidade do uso de elementos contemporâneos “não
exóticos” por estes. Ao olhar antropológico, estes elementos fazem parte da configuração
fluída da etnicidade Kaingang. A exemplo, ao ofertar adornos corporais no comércio com fög,
englobando nestes matérias-primas destes últimos, os Kaingang exercem um franco diálogo
com os elementos sócio-culturais dos fög.
Essa dinâmica imanente aos grupos sociais, manutenção de seus sistemas culturais e,
em última instância aqui sua produção artesanal e artística em geral é atualmente um dos
principais focos da “antropologia indígena”. Dessa forma, os elementos aqui analisados
filiam-se a:
“[...] reflexão aprofundada sobre problemáticas muito
em evidência no momento atual vivido pela antropologia
enquanto disciplina teórica. Trata-se, em especial, da discussão
sobre as relações entre inovação e tradição na produção da
variação e da dinâmica culturais (Lopes da Silva 1991)”
(VIDAL & LOPES DA SILVA, 1992, p.279).
É através da percepção dessa dinâmica entre inovação e tradição que repousa uma
tentativa de percepção mais simétrica (LATOUR, 1994) a respeito do artesanato e do modo de
viver
Kaingang,
em
um
constante
diálogo
com
suas
ancestralidades
e
suas
contemporaneidades. Essa percepção explicita, por exemplo, a ancestralidade das práticas que
envolvem a fabricação, uso e atual comercialização com os fög dos adornos corporais
Kaingang, bem como sua latente contemporaneidade, referindo-se a incorporação de materiais
fög a esta prática ancestral. Essa constante atualização é uma das propriedades apontadas por
Vidal & Lopes da Silva em relação aos sistemas simbólicos:
“A concepção – consensual na antropologia – de cultura como
sistema simbólico, por meio do qual as sociedades humanas
atribuem significados a sua experiência e formulam suas
concepções, impondo ordem ao mundo, aponta para um de
seus aspectos básicos: o caráter dinâmico da cultura.” (VIDAL
& LOPES DA SILVA, 1992, p.290).
“[...] cada cultura em particular mantém-se nesta
tensão provocada pela articulação entre tradição e inovação
[...]” (VIDAL & LOPES DA SILVA, 1992, p.290).
Salientando essa noção sistêmica, mas antes de tudo, dinâmica dos sistemas
simbólicos, podemos pensar aqui na presença Kaingang em Porto Alegre como um contato
16
entre sistemas sociais e, por sua vez, sistemas estéticos diferentes. Esse contato, como que um
entrecruzar de sistemas estéticos é um dos caminhos para compreendermos a noção aqui
utilizada de ambigüidade estética. Uma vez que os discursos fög mencionados, seja sobre as
formas materiais visuais dos adornos corporais Kaingang, seja sobre o seu modo de vida,
partem de uma essencialização concebida com os próprios elementos da “cultura fög”, tornase inviável para estes uma interpretação “justa”, das particularidades dos Kaingang e sua
presença em Porto Alegre. Para Geertz, o olhar “ocidental convencional” sobre “o que vem a
ser, nos padrões ocidentais, “arte””, não é capaz de captar as significações relacionadas às
expressões artísticas de grupos distintos por que:
“[...] o sentimento que um povo tem pela vida não é
transmitido unicamente através da arte. Ele surge em vários
outros segmentos da cultura desse povo: na religião, na
moralidade, na ciência, no comércio, na tecnologia, na
política, nas formas de lazer, no direito e até na forma em que
organizam sua vida prática e cotidiana.” (GEERTZ, 2003, p.
145).
Ainda Geertz, falando sobre as manifestações estéticas, nos auxilia a explicitar as
relações entre a arte Kaingang e suas conexões com os locais da paisagem de uma Porto
Alegre de matas e “manchas”, comunidades de cipós, e a conexão, no caso Kaingang
explicitado, entre os elementos de uma “arte Kaingang” e o tema antropológico da inovação e
da tradição expressos pela noção de dinâmica:
“[...] essas reações estão ligadas a interesses mais
amplos, menos genéricos e com conteúdos mais profundos, e
é essa conexão com o que é a realidade local que revela seu
poder construtivo”. (GEERTZ, 2003, p. 154).
Essa percepção da “realidade local” Kaingang faria os “críticos de arte” mencionados
perceberem as correlações entre as configurações do espaço de Porto Alegre com suas áreas
de mata, abastecedoras de matérias-primas – braços de cipós - que configuram o atual “estado
da arte” da cestaria Kaingang, bem como a tradicionalidade desta prática, que não repousa na
pura e simples utilização da matéria-prima que exprime o valor material simbólico desta
artesania enquanto “exótica” para muitos fög. Seria assim perceptível suas implicações
enquanto uma ambiência fundamentada na convivência e manejo nos termos da já citada
cosmovisão complementar e dualista Kaingang, que nomeia e incorpora os “outros” seres
viventes da paisagem existente ao redor de seu sistema doméstico. Essa é uma das várias
fundamentações do que se denominou aqui de sistema estético Kaingang.
17
Nesse mesmo sentido, os moradores do “Sétimo Céu” incomodados com a presença
Kaingang no Morro do Osso, estavam impossibilitados de perceber as conexões entre a
dimensão da vida coletiva Kaingang e os cuidados específicos que estes possuem com seus
filhos e que acabam por configurar uma específica corporalidade Kaingang, que será exercida
desde a infância. Essa corporalidade é responsável por muitas crianças serem vistas na aldeia
de pés-no-chão, descalços, ou mesmo com poucas roupas. Para os Kaingang, como muitas
vezes pude ouvir, como nas palavras de Ninplê, “os brancos não entendem que se o índio
viver sempre com calçado, este adoecerá”. Os Kaingang mencionam com isso seu
pertencimento à “natureza”, e a conexão com esta que devem ter.
Para encerrar este ensaio, utilizo a proposta noção de “ambigüidade estética” para
refletir sobre essa essencialização dos “indígenas” e seus elementos na atualidade. É como se
o “índio” tivesse que apresentar seu artesanato “puro e limpo” de elementos “artificiais
sintéticos” não-índios, por que assim este seria um artesanato “autenticamente indígena”. Mas
ao relacionar-se com os fög, este mesmo indígena deveria “mostrar-se civilizado”, ou seja,
suas crianças, por exemplo, deveriam estar limpas, asseadas e bem vestidas como a dos
brancos “civilizados” – lembrando ainda que muitos “brancos” e suas crianças hoje mal
conseguem alimentar-se dado ao sistema desenvolvimentista vigente.
É como ainda se este “índio” tivesse que trazer as marcas de sua “indigenicidade”
apenas em seu artesanato, mais como um “respeito” à cultura de seus ancestrais que como
realização de sua forma manifesta enquanto ser autóctone ameríndio na contemporaneidade,
uma vez que os fög em geral não conseguem conceber a existência desta forma manifesta.
Além destes últimos parecerem acreditar que não existem mais “índios autênticos”,
expressam ainda em muitos de seus discursos que os que se dizem “índios” deveriam admitir
para si mesmos que não são mais “índios”, não vivendo como tais, cabendo a estes apenas o
devir do que um dia foi o “ser índio” e relembrar como “honra”, ou “respeito” aos seus
ancestrais sua “indigenicidade”, deixando de lado sua pertença étnica e “integrando-se por
completo” a uma “sociedade nacional brasileira”.
A reflexão concatenada entre a inserção dos Kaingang na estética da paisagem de
Porto Alegre, descrita através de seu estabelecido comércio de cestarias, adornos corporais e
demais substâncias de troca com o público fög em geral, o evento dramático expondo através
da “denúncia” os Kaingang em relação a sua privacidade doméstica e “cuidados” que estes
“devem ter” com suas crianças e os discursos gerados entre os citados “apreciadores e
críticos” sobre a “arte” e o artesanato Kaingang sugerem essa conjuntura de ambigüidade
estética. Esta conjuntura é gerada pelo choque entre distintas percepções e elementos
derivados de sistemas estéticos que coexistem mutuamente. O que vimos, através desta
18
perspectiva temática da configuração estética da paisagem da cidade é a possibilidade de uma
antropologia do contato e fronteiras entre Kaingang e fög e as derivações estético-simbólicas
intra-étnicas e inter-étnicas que este contato pode constituir enquanto campo simbólico. Este
último é assim passível de uma multiplicidade de perspectivas e estratégias sociais acerca do
que um “ser índio” - em termos de um ideário simbólico pré-concebido pelos fög sobre o
“outro” Kaingang - acaba por influenciar e, muitas vezes em termos prejudiciais, como na
questão da suas fluídas espacialidades, o cotidiano de vida coletiva da etnia Kaingang em suas
diversas aldeias e demais formas de habitação.
Não posso deixar de registrar aqui uma última provocação em relação aos sinais
diacríticos analisados. Estes sinais não são percebidos pelos não-índios em geral, e por muitos
não-índios participantes do campo atual da antropologia indígena e demais antropologias no
Brasil enquanto marcadores de uma etnicidade, mesmo nos termos de uma noção clássica e
imprecisa de “indigenicidade”. Isso porque, conjunturalmente, se os não-índios continuarem a
se utilizarem de suas concepções a respeito do que venha a ser para eles um “ser índio”,
ontem e hoje, não encontraremos na atualidade “índios” que se insiram dentro destas suas
concepções, mantendo inabalado, com isso, o histórico debate em torno de uma
homogeneidade e unicidade da abstrata e essencialista noção de “nação brasileira”. Mais que
tudo, pensando nesses termos, esse ensaio buscou apontar como que uma “fronteira étnica”
pode ser descrita etnográfica e antropologicamente também nos termos de uma “fronteira
estética”.
19
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