A saúde pública de todos nós
De Lenir Santos, doutora em saúde pública pela UNICAMP; especialista em direito sanitário
pela USP; coordenadora do curso de especialização em direito sanitário IDISA-Hospital SírioLibanês; advogada.
---Nunca a saúde pública foi tão debatida quanto nos dias hoje, exceto talvez na ocasião da
introdução da vacina por Oswaldo Cruz que originou a famosa “guerra da vacina” de intensos
debates na sociedade e no congresso nacional.
Com a saúde no palco novamente, devemos debatê-la em todas as suas contradições.
Antes de 1988, serviços de assistência médica e hospitalar destinavam-se tão somente aos
trabalhadores formais e seus dependentes. Para os ricos, a saúde privada, ainda sem um
mercado de planos e seguros. Para os demais, as santas casas de misericórdias que
destinavam aos indigentes (a maioria da população), serviços gratuitos em suas grandes
enfermarias.
A mudança é recente; data de 1988. São apenas 25 anos de direito à saúde. Saúde que
nasceu cindida na Constituição. As forças progressistas e as do “Centrão”, na Assembleia
Nacional Constituinte, tiveram que aliar a saúde pública à liberdade da iniciativa privada. Uma
premissa de difícil conjugação se não houver forte atuação regulatória pública sobre o setor
privado, uma vez que o sucesso de um pode ser o fracasso do outro; a saúde pública de
qualidade, gratuita, pode ser o fracasso da saúde privada, paga. A saúde pública pobre, o
sucesso dos planos e seguros. É preciso, pois delimitar os campos de atuação de ambos.
A implantação do SUS, sua estruturação e funcionamento adequados às necessidades de
saúde da população têm sido tarefa árdua em todos os sentidos: do seu financiamento
insuficiente, que passa ainda pelas formas de gestão incompatíveis com o mundo
contemporâneo, à formação dos profissionais de saúde e as dificuldades próprias do sistema
público em se estruturar, dada as suas complexidades operativas. Longo e áspero caminho,
entrecortado todo o tempo com os vieses do nosso federalismo de centenárias práticas
centralizadoras, incompatíveis com o princípio federativo e que tem o município como ente da
Federação: ente igual em autonomia e profundamente desigual em seu desenvolvimento
econômico-social para o exercício da autonomia federativa e das competências constitucionais.
Para promover o equilíbrio nacional, a União precisa atuar no alcance da equidade
orçamentária federativa, no desenvolvimento geoeconômico e abandonar as práticas
centralistas da cenoura e da vara em relação aos demais entes federativos.
Por isso, para o SUS acertar o passo não são poucas as suas tarefas por se tratar de um
sistema único que se espraia em 5.568 municípios e 27 estados, todos autônomos entre si ao
mesmo
tempo
em
que
são
interdependentes
na
Consideremos apenas algumas que julgamos essenciais:
condução
da
saúde
pública.
1.Financiamento insuficiente. Não há como negar a insuficiência do financiamento público na
saúde. Não se faz saúde integral (prevenção e recuperação) sem o poder público gastar,
minimamente, 7% do PIB. O gasto em saúde no Brasil é 7.9% do PIB, sendo 3.7% público para
191 milhões de pessoas e 4.2% privado para 48 milhões de pessoas (1). Destaque-se, ainda,
que proporcionalmente, são os municípios os mais onerados tendo em vista que o gasto
municipal com saúde está por volta de 20% a 25% das receitas municipais (a obrigação
constitucional mínima é de 15% das receitas), desequilibrando o gasto com as demais
atividades municipais públicas.
2.Gestão pública sem modernização ou serviços públicos ineficientes em suas estruturas
administrativas. Sendo o SUS um sistema que impõem entre os entes federativos a integração
de suas ações e serviços em rede, regionalizada e hierarquizada (em complexidade
tecnológica de serviços), haveria de estar em curso as mais modernas formas de atuação da
ação pública, em especial as de gestão compartilhada. Um setor público ainda aferrado às
estruturas arcaicas de gestão pública, dotadas de minúcias de controles burocráticos e
atividades-meio que não conseguem nem coibir a corrupção nem permitir o seu
desenvolvimento qualitativo, sendo ainda fato corriqueiro na saúde um equipamento ficar
quebrado por seis meses a um ano; uma licitação de compra de bem ou serviços durar um
ano; um contrato levar seis meses para ser assinado e assim por diante. O custo “tempo”
parece não existir para a Administração que se perde diariamente em reuniões nem sempre
produtivas, eventos, viagens, quando as empresas, por teleconferência, realizam diariamente
reuniões com o mundo inteiro. A tentativa de melhorar a gestão apenas trouxe para dentro do
SUS as organizações sociais que nem sempre são bons exemplos de gestão por incorporar
vícios privados no bem público, continuando sem guarida uma série de estudos e propostas
como a fundação estatal, o conglomerado público, a empresa pública da área social, o contrato
de autonomia, o projeto de reforma da Administração Publica (2). Continuamos a passos de
tartaruga num mundo de velocidade virtual. O custo disso para a saúde é muito grande.
3. Formação de recursos humanos na saúde. O SUS é um sistema cujo modelo assistencial se
centra na atenção básica que exige resolutividade em 85% dos casos que lhe chegam e deve
estar presente em todo o território nacional, em quantidade e qualidade suficientes às
necessidades
de
saúde,
de
competência
municipal,
adotando-se
o
princípio
da
subsidiariedade.Entretanto, nesses anos, a formação profissional não se modificou para
garantir profissionais para o sistema público, mantendo-se a hegemonia de formação para o
mercado privado (48 milhões de pessoas). Além do mais somos um país de flagrantes
desigualdades socioeconômicas, culturais, demo-geográficas que adotou o modelo de
assistência centrada na atenção básica, a qual exige equipes de saúde e médicos com essa
formação em todo o território nacional. Fatalmente a falta de médicos em lugares mais
recônditos ou em lugares mais vulneráveis, é fato que seria previsível há 25 anos e que não foi
objeto de planejamento público adequado ao longo do tempo, tanto quanto à formação
descolada dos serviços públicos de saúde centrados no modelo definido pelo SUS. A falta de
médicos e a necessidade de reformulação da sua formação são fatos incontestáveis e que não
podem mais tardar. Por outro lado, falar-se em carreira federal para médicos, como as dos
juízes federais (temas inconfundíveis, diga-se), não pode ser vista com bons olhos. Médicos
federais, em exercício profissional em municípios, mesmo sob a direção do gestor municipal,
será um flagrante retrocesso ao princípio da descentralização e da regionalização da saúde,
sem se falar na postergação de um plano de desenvolvimento dos entes municipais para o
exercício de suas competências constitucionais. Que se instituam novos modelos de gestão
pública que permitam aos entes municipais gerirem seus próprios servidores sem ficarem
submetidos aos profissionais de carreira federal, como aconteceu nos primórdios do SUS, com
os profissionais do INAMPS, o que sempre foi um problema para o município. Há que se
pensar em carreira para os médicos, mas não carreira federal; deve-se estudar novas formas
de gestão interfederativa, como as fundações estatais intermunicipais, os consórcios públicos e
outras formas de gestão compartilhada em regiões de saúde, garantindo ao município a gestão
de seus servidores que pode ser realizada de maneira compartilhada, garantindo-lhes plano de
carreira conseqüente e conforme a forma organizativa do SUS. Lembramos ainda que os
médicos precisam também cumprir a carga horária de trabalho para os quais foram
contratados. Fato incontestável é o seu flagrante descumprimento. A falta de médicos no país,
em especial na região norte e nordeste que muitas vezes fica abaixo de 0,8% (em relação a mil
habitantes) e a formação inadequada para os serviços de saúde públicos são fatos contra os
quais não há argumentos. A atitude do governo, no momento, ao lançar mão de seu poder de
ordenar a formação de recursos humanos em prol da saúde pública é um caminho virtuoso.
4. Planejamento em saúde insuficiente. Se em 1988 iniciou-se uma fase nova para a saúde
pública a partir de seu reconhecimento como direito público subjetivo, haveria que ter sido feito
um planejamento de longo prazo, 20 anos, talvez, de implantação escalonada das estruturas
do SUS. A falta de um plano nacional de desenvolvimento da saúde, que deveria ter sido
realizado logo após a edição da lei 8080, em 1990, obrigando a todos os governos pelo prazo
necessário à substituição de um modelo por outro, fez com que cada governo ou gestor da
saúde, adotasse as medidas que julgassem pertinentes, sem lastro em estudos, pesquisas,
informações. Não houve um passo a passo estrutural de longo tempo. Um plano nacional de
desenvolvimento da saúde teria sido (e ainda é) de grande valia. É preciso pensar a saúde em
longo prazo e não desviar do caminho que deve ser imposto a todos por estarmos em um
sistema único em seus conceitos e princípios.
5.Organização estrutural do modelo de atenção em acordo aosseus marcos constitucionais não
consolidados.O Ministério da Saúde, responsável pela direção nacional do SUS, deveria ter
definido (ou ainda definir) diretrizes nacionais de implantação das estruturas do SUS em médio
e longo prazo. As mudanças no SUS foram se dando aos trancos e barrancos, havendo hoje
mais de mil portarias dispondo sobre essas estruturas, sua forma organizativa, suas políticas e
demais ações e serviços; uma babel, ininteligível que fraciona um sistema que precisa ser uno
em todos os seus sentidos. O SUS se assenta em alguns pilares constitucionais: competência
tripartida (todos os entes da federação cuidam da saúde); modelo assistencial centrado na
atenção primaria, o que exige redesuficiente de serviços para a continuidade da assistência em
níveis de maiores complexidades tecnológica, ao lado de um sistema eficaz de
referenciamento entre os entes na região e inter-região. A região de saúde é recorte territorial
essencial para a organização do SUS quanto à complexidade tecnológica de seus serviços,
assim como as referências entre serviços são essenciais para a eficácia da assistência
consequente ao primeiro atendimento na unidade básica de saúde.
6.Usando o SUS. Quem usa o SUS de fato? A população, que não tem escolha. Quem pode
escolher, compra um plano de saúde; negocia nos seus acordos coletivos de trabalho a
assistência de planos de saúde; agentes públicos com sistema próprio, como parlamentares,
servidores públicos, magistratura, entre outros, pagos, na maioria das vezes, com recursos do
cidadão-contribuinte. Os gestores da saúde pública, na grande maioria, gerem o que não
usam. Os juízes julgam serviços que não usam e assim a saúde vai se transformando em bem
de consumo esfumaçando o direito e transformando o sistema público num SUS pobre para
pessoas pobres.
7.Os planos de saúde sem regulação eficiente. Os planos de saúde não são regulados de
maneira suficiente para manter-se como mercado privado sujeito aos seus bônus e ônus. Os
bônus são dos acionistas e os ônus do poder público que lhe tem sido complementar ao
atender seus contratados nos serviços públicos sem o devido ressarcimento, nos termos da lei.
A ANS, ao deixar de cobrar pelos serviços que o SUS presta aos seus beneficiários, faz
renuncia fiscal e nada acontece. Afora a falta de regulamentação dos espaços de mercado em
saúde. Qual é o espaço, no âmbito da assistência à saúde (que é livre à iniciativa privada, mas
sob regulamentação pública), vai ser reservada ao mercado dos planos de saúde? O que é do
público e o que é do privado? E a relevância pública das ações e serviços de saúde prevista
constitucionalmente?
8. Judicialização da saúde. Esse fenômeno tem duas vertentes que não podemos ignorar: a
insuficiência dos serviços públicos e a eficiência de uma estrutura que se organiza para
incentivar a judicialização (3). Separar o joio do trigo nessa seara, que lida com a vida humana
e suas fragilidades e o poder médico, é fato complexo e assim seguimos num SUS, com
dificuldades ainda para se estruturar e que se desestrutura ante os mandados judiciais diários.
Boa parte das liminares garante serviços de saúde para quem tem plano de saúde,
desonerando suas operadoras nas suas obrigações contratuais ferindo, assim, o principio da
isonomia ao garantir acesso preferencial àquele cidadão que está a espera de um atendimento,
exame, medicamento. Afora desconsiderar todo o planejamento, as políticas de saúde, as
pactuações entre gestores, os serviços sistêmicos que se transformam em bens e produtos
isolados, tal qual um balcão desregulado de serviços ou uma farmácia pública.
9. Gasto com pessoal na saúde sem encontrar sua virtuosidade. Muitos municípios não
contratam profissionais para a saúde pelo fato de estar no seu limite de gasto com pessoal
permitido pela lei de responsabilidade fiscal. A LRF vigora desde 2000; as reclamações
aumentam diuturnamente e nada se resolve. A fundação estatal não dependente do orçamento
público (4) poderia ser uma solução para parte desse problema; o não cômputo das despesas
com pessoal decorrentes dos recursos das transferências federativas também poderia ser
outra medida de alívio; contudo nada foi feito nesse campo. E tudo continua como desde 2.000.
10. A saúde pública deve garantir um padrão de integralidade (rol de ações e serviços de
saúde) ao cidadão num pacto social. Não há tudo para todos em área que tem custos. Direitos
que custam precisam de delimitação em razão do orçamento público. É imperioso que o poder
público discuta com a sociedade quais ações e serviços de saúde serão garantidos a todos, de
maneira universal, igualitária e equânime. Essa escolha tem que ser um ato integrado entre a
sociedade detentora do direito e o Estado detentor da obrigação de fazer; esse pacto que
referendaria
o
previsto
na
RENASES
(5)
poderia
inclusive
ser
uma
medida
de
“desjudicialização” da saúde e uma maneira de se programar o gasto com saúde em médio e
longo prazo. Não se pode incorporar tecnologias na saúde que não possa ser garantida a 191
milhões de pessoas, sob pena de servir para os apadrinhamentos que ainda existe no serviço
público.
Vê-se que esse debate que se instalou sobre a saúde brasileira é eivada de dúvidas e
contradições que precisam ser sanadas urgentemente num pacto social. A crise atual da saúde
implica todos nós. Somos todos responsáveis pela saúde pública brasileira, bem protegida pela
Constituição, mas que depende de todos nós.
(1) Fonte 2011. SIOPS/MS.
(2) Elaborado há três anos por uma comissão de jurista, graciosamente, para o Governo
Federal.
(3) Indústria farmacêutica, lobistas, advogados; uma indústria para incorporar medicamentos e
tecnológicas no cotidiano do SUS sem registro na ANVISA.
(4) PL 92 que se encontra no Congresso Nacional desde 2007, sem votação.
(5) Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES). Decreto 7.508, de 2011.
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