REVISTA BAIANA DE SAÚDE PÚBLICA Órgão Oficial da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia EXPEDIENTE Revista Baiana Jaques Wagner – Governador do Estado da Bahia Jorge José Santos Pereira Solla – Secretário da Saúde Telma Dantas Teixeira de Oliveira – Superintendente SUPERH Verônica Rita Pina Vieira– Diretora da Escola Estadual de Saúde Pública de Saúde Pública ENDEREÇO EDITORA GERAL Rua Conselheiro Pedro Luiz, 171 – Rio Vermelho Caixa Postal 631, CEP 41950-610, Salvador, Bahia, Brasil Telefax: 71 3334-0428 E-mail: [email protected] Disponível no site: www.saude.ba.gov.br/rbsp/ http://www.saude.ba.gov.br/eesp/ Lorene Louise Silva Pinto – SESAB/ UFBA EDITORES ASSOCIADOS Alcindo Antônio Ferla – Grupo Hospitalar Conceição – Porto Alegre Alexandre de Souza Ramos – EESP Isabela Cardoso de Matos Pinto – UFBA/ISC Joana Oliveira Molesini – SESAB/UCSAL José Carlos Barboza Filho – SESAB/UCSAL Marco Antônio Vasconcelos Rego – UFBA Ronaldo Ribeiro Jacobina – UFBA Washington Luis Abreu de Jesus – SESAB CONSELHO EDITORIAL Álvaro Cruz – UFBA Ana Maria Fernandes Pitta – USP Andrea Caprara – UEC Carmen Fontes Teixeira – UFBA Cristina Maria Meira de Melo – UFBA Eliane Elisa de Souza Azevedo – UEFS-BA Eliane Santos Souza – UFBA Emanuel Sávio Cavalcanti Sarinho – UFPE Emerson Elias Merhy – UFRJ Fernando Martins Carvalho – UFBA Heraldo Peixoto da Silva – UFBA Jacy Amaral Freire de Andrade – UFBA Jaime Breilh – CEAS – EQUADOR José Tavares-Neto – UFBA Laura Camargo Macruz Feuerwerker – USP Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza – UFBA Luis Roberto Santos Moraes – UFBA Maria do Carmo Guimarães – UFBA Maria do Carmo Soares Freitas – UFBA Maria Conceição Oliveira Costa – UEFS Maria Isabel Pereira Vianna – UFBA Marina Peduzzi – UNICAMP Mitermayer Galvão dos Reis – FIOCRUZ-BA/ UFBA Paulo Augusto Moreira Camargos – UFMG Paulo Gilvane Lopes Pena – UFBA Paulo de Tarso Puccini – SES-SP Rafael Stelmach – HC-SP Raimundo Paraná – UFBA Reinaldo Pessoa Martinelli – UFBA Ricardo Burg Ceccim – UFRG Ricardo Carlos Cordeiro – UNESP Ruben Araujo Mattos – UERJ Sérgio Koifman – ENSP/FIOCRUZ Túlio Batista Franco – UFF Vera Lúcia Almeida Formigli – UFBA SECRETÁRIA EXECUTIVA Lucitânia Rocha de Aleluia Rev. baiana de Saúde Públ. Salvador v. 35 n. 1 p. 1-226 jan./mar. 2011 1 ISSN: 0100-0233 Governo do Estado da Bahia Secretaria da Saúde do Estado da Bahia INDEXAÇÃO Periódica: Índice de Revistas Latinoamericanas em Ciências (México) Sumário Actual de Revista, Madrid LILACS-SP – Literatura Latinoamericana em Ciências de La Salud – Salud Pública, São Paulo Revisão e normalização de originais: Maria José Bacelar Guimarães Revisão de provas: Maria José Bacelar Guimarães Revisão técnica: Lucitânia Rocha de Aleluia Tradução/revisão inglês: Positive Idiomas Tradução/revisão espanhol: Marcial Saavedra Castro Editoração eletrônica: Flávio Andrade Capa: detalhe do portal da antiga Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Solar do século XVIII) Fotos: Paulo Carvalho e Rodrigo Andrade (detalhes do portal e azulejos) Periodicidade – Trimestral Triagem – 1.200 exemplares Distribuição – gratuita Revista Baiana de Saúde Pública é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos Revista Baiana de Saúde Pública / Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. - v.35, n.1, jan./mar., 2011 Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, 2011 Trimestral. ISSN 0100-0233 1. Saúde Pública - Bahia - Periódico. IT CDU 614 (813.8) (05) 2 Revista Baiana S U M Á R I O de Saúde Pública EDITORIAL ............................................................................................................................................................................................ 7 ARTIGOS ORIGINAIS ATIVIDADES FÍSICAS DE LAZER E DISTÚRBIOS MÚSCULOESQUELÉTICOS: REVISÃO DA LITERATURA ............................................ 9 Adauto Mascarenhas, Rita de Cássia Pereira Fernandes FATORES DA DIETA E TUMORES DE CÉREBRO ............................................................................................................................ 26 Glaura Freaza Luz, Lauro Antonio Porto, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo FATORES OCUPACIONAIS ASSOCIADOS À DOR MUSCULOESQUELÉTICA EM PROFESSORES ....................................................... 42 Isadora de Queiroz Batista Ribeiro, Tânia Maria de Araújo, Fernando Martins Carvalho, Lauro Antonio Porto, Eduardo José Farias Borges dos Reis SENTENÇA TRABALHISTA: BASES RACIONAIS DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS CASOS DE ACIDENTE DE TRABALHO .................... 65 Nara Eloy Machado da Silva, Mônica Angelim Gomes de Lima, Cláudio Fortes Garcia Lorenzo DESEQUILÍBRIO ESFORÇO-RECOMPENSA NO TRABALHO E TRANSTORNOS MENTAIS COMUNS EM ELETRICISTAS DE ALTA TENSÃO ............................................................................................................................ 83 Suerda Fortaleza de Souza, Fernando Martins Carvalho, Tânia Maria de Araújo, Lauro Antonio Porto O AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE: VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO A CÉU ABERTO .......................................... 96 Lázaro José Rodrigues de Souza, Maria do Carmo S. de Freitas FEIRA LIVRE E RISCO DE CONTAMINAÇÃO ALIMENTAR: ESTUDO DE ABORDAGEM ETNOGRÁFICA EM SANTO AMARO, BAHIA ................................................................................................................................ 110 Mirella Dias Almeida, Paulo Gilvane Lopes Pena DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EM MEMBROS INFERIORES EM TRABALHADORAS DE ENFERMAGEM ......................... 128 Natália Fonseca Ribeiro, Rita de Cássia Pereira Fernandes TRABALHADOR-DOENTE E SUA FAMÍLIA: DINÂMICA, CONVIVÊNCIA E PROCESSO DE RETORNO AO TRABALHO ..................... 143 Paulo Roberto Ferreira da Rocha, Mônica Angelim Gomes de Lima NAS MÃOS DAS CHARUTEIRAS, HISTÓRIAS DE VIDA E DE LER/DORT ......................................................................................... 159 Wéltima Teixeira Cunha, Maria do Carmo Soares de Freitas DOENÇAS EM TRABALHADORES DA PESCA ............................................................................................................................... 175 Antoniel de Oliveira Rios, Rita de Cássia Franco Rego, Paulo Gilvane Lopes Pena OBESIDADE E TRABALHO DAS BAIANAS DE ACARAJÉ NA CIDADE DO SALVADOR, BAHIA, BRASIL .............................................. 189 Amanda Ornelas Trindade Mello, Maria do Carmo Soares Freitas, Ronaldo Ribeiro Jacobina 3 S U M M A R Y EDITORIAL ............................................................................................................................................................................................ 7 ORIGINAL ARTICLES LEISURE PHYSICAL ACTIVITY AND MUSCULOSKELETAL DISORDERS: LITERATURE REVIEW ......................................................... 10 Adauto Mascarenhas, Rita de Cássia Pereira Fernandes DIETARY FACTORS AND BRAIN TUMORS ..................................................................................................................................... 27 Glaura Freaza Luz, Lauro Antonio Porto, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo OCCUPATIONAL FACTORS ASSOCIATED TO MUSCULOSKELETAL PAIN AMONG TEACHERS ........................................................ 43 Isadora de Queiroz Batista Ribeiro, Tânia Maria de Araújo, Fernando Martins Carvalho, Lauro Antonio Porto, Eduardo José Farias Borges dos Reis LABOR SENTENCES: THE RATIONAL BASIS OF JUDGMENTS IN CASES OF OCCUPACIONAL ACCIDENT ...................................... 66 Nara Eloy Machado da Silva, Mônica Angelim Gomes de Lima, Cláudio Fortes Garcia Lorenzo EFFORT-REWARD IMBALANCE AT WORK AND COMMON MENTAL DISORDERS AMONG WORKERS IN HIGH VOLTAGE POWER LINES .................................................................................................................................................... 84 Suerda Fortaleza de Souza, Fernando Martins Carvalho, Tânia Maria de Araújo, Lauro Antonio Porto COMMUNITY HEALTH AGENT: VIOLENCE AND SUFFERING AT OPEN FIELD WORK .................................................................. 97 Lázaro José Rodrigues de Souza, Maria do Carmo S. de Freitas THE STREET MARKET AND THE RISK OF FOOD CONTAMINATION: AN ETHNOGRAPHIC APPROACH STUDY IN SANTO AMARO, BAHIA .......................................................................................................................................................... 111 Mirella Dias Almeida, Paulo Gilvane Lopes Pena MUSCULOSKELETAL DISORDERS IN LOWER LIMBS AMONG NURSES AND AIDES ..................................................................... 129 Natália Fonseca Ribeiro, Rita de Cássia Pereira Fernandes THE SICK WORKER AND HIS FAMILY: DYNAMICS, RELATIONSHIP AND RETURN TO WORK PROCESS ....................................... 144 Paulo Roberto Ferreira da Rocha, Mônica Angelim Gomes de Lima IN THE HANDS OF CIGAR MAKERS, STORIES OF LIFE AND RSI ................................................................................................... 159 Wéltima Teixeira Cunha, Maria do Carmo Soares de Freitas DISEASES IN FISHING WORKERS ............................................................................................................................................... 176 Antoniel de Oliveira Rios, Rita de Cássia Franco Rego, Paulo Gilvane Lopes Pena OBESITY AND WORK OF THE BAIANAS DE ACARAJÉ IN THE CITY OF SALVADOR, BAHIA, BRAZIL ............................................... 190 Amanda Ornelas Trindade Mello, Maria do Carmo Soares Freitas, Ronaldo Ribeiro Jacobina 4 Revista Baiana S U M A R I O de Saúde Pública EDITORIAL ............................................................................................................................................................................................ 7 ARTÍCULOS ORIGINALES ACTIVIDADES FÍSICAS DE OCIO Y TRASTORNOS MÚSCULOESQUELÉTICOS: REVISIÓN DE LA LITERATURA ................................ 10 Adauto Mascarenhas, Rita de Cássia Pereira Fernandes FACTORES DIETÉTICOS Y LOS TUMORES CEREBRALES ................................................................................................................ 27 Glaura Freaza Luz, Lauro Antonio Porto, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo FACTORES DE TRABAJO ASOCIADOS AL DOLOR MUSCULOESQUELÉTICO ENTRE PROFESORES ................................................. 43 Isadora de Queiroz Batista Ribeiro, Tânia Maria de Araújo, Fernando Martins Carvalho, Lauro Antonio Porto, Eduardo José Farias Borges dos Reis VEREDICTO DEL TRABAJO: BASES RACIONALES DE LAS DECISIONES JUDICIALES EN CASOS DE ACCIDENTES DE TRABAJO ....... 66 Nara Eloy Machado da Silva, Mônica Angelim Gomes de Lima, Cláudio Fortes Garcia Lorenzo DESEQUILIBRIO ESFUERZO-RECOMPENSA EN EL TRABAJO Y TRASTORNOS MENTALES COMUNES EN ELECTRICISTAS DE ALTA TENSIÓN ......................................................................................................................................... 84 Suerda Fortaleza de Souza, Fernando Martins Carvalho, Tânia Maria de Araújo, Lauro Antonio Porto EL AGENTE COMUNITARIO DE SALUD: LA VIOLENCIA Y SUFRIMIENTO EN EL TRABAJO AL AIRE LIBRE ...................................... 97 Lázaro José Rodrigues de Souza, Maria do Carmo S. de Freitas MERCADILLO AL AIRE LIBRE Y EL RIESGO DE CONTAMINACIÓN ALIMENTARIA: ESTUDIO DE ABORDAJE ETNOGRÁFICO EN SANTO AMARO, ESTADO DE BAHIA ........................................................................................................................................... 111 Mirella Dias Almeida, Paulo Gilvane Lopes Pena DISTURBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EN EXTREMIDADES INFERIORES EN TRABAJADORAS DE ENFERMERÍA ....................... 129 Natália Fonseca Ribeiro, Rita de Cássia Pereira Fernandes TRABAJADOR-ENFERMO Y SU FAMILIA: DINÁMICA, CONVIVENCIA Y PROCESO DE REGRESO AL TRABAJO ............................... 144 Paulo Roberto Ferreira da Rocha, Mônica Angelim Gomes de Lima EN LAS MANOS DE LAS CIGARRERAS, HISTORIAS DE VIDA Y DE LER/DORT ................................................................................ 160 Wéltima Teixeira Cunha, Maria do Carmo Soares de Freitas ENFERMEDADES DE LOS TRABAJADORES DE LA PESCA ............................................................................................................. 176 Antoniel de Oliveira Rios, Rita de Cássia Franco Rego, Paulo Gilvane Lopes Pena OBESIDAD Y EL TRABAJO DE LAS BAIANAS DE ACARAJÉ EN LA CIUDAD DE SALVADOR, BAHIA, BRASIL ...................................... 190 Amanda Ornelas Trindade Mello, Maria do Carmo Soares Freitas, Ronaldo Ribeiro Jacobina 5 6 Revista Baiana E D I T O R I A L de Saúde Pública A questão ambiental tornou-se capital na atualidade devido ao aquecimento global e transformou-se em verdadeiro paradigma, ou seja, em algo que se impõe nas práticas científicas e tecnológicas para encontrar alternativas que evitem ou minimizem possibilidades de catástrofes planetárias diante dessa ação antropogênica. Contida nessa crise, há a persistência de problemas tradicionais de contaminação relacionados às condições de miséria, como falta de saneamento e elevada poluição industrial decorrente do desenvolvimento desordenado. As consequências para a saúde das populações, em que se incluem os trabalhadores, relacionam-se às mais variadas situações endêmicas, epidêmicas e aos flagelos do passado e do presente, a exemplo das recentes tragédias de Chernobyl, na Ucrânia, e Fukushima, no Japão. Essa crise fez emergir as discussões sobre a sustentabilidade socioambiental do atual modelo de desenvolvimento econômico, e seus impactos sobre a saúde das populações marcaram a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Desde então, consideráveis esforços científicos têm se destinado ao estudo do ambiente. Na relação com a saúde, estima-se que entre 25-33% da carga global de doenças no mundo pode ser atribuída aos fatores de risco ambientais. Das 102 principais doenças, lesões e grupos de doenças constantes no Relatório Mundial da Saúde, em 2004, os fatores de risco ambientais contribuíram para a carga global em 85 categorias. No Brasil, em dezembro de 2009, realizou-se a I Conferência Nacional de Meio Ambiente e Saúde, cujo tema foi “A saúde ambiental na cidade, no campo e na floresta: construindo cidadania, qualidade de vida e territórios sustentáveis”. Dentre os subtemas abordados, estavam: a extinção de espécies; o esgotamento de recursos naturais essenciais à vida, como a água; os processos de desmatamento e desertificação; a crise urbana, relacionada ao saneamento básico, habitação, transporte e segurança pública; a emergência de inúmeras epidemias em contextos complexos de circulação de vetores e a degradação socioambiental; a poluição química em ambientes urbanos e rurais, o uso dos agrotóxicos e de outros produtos químicos; alimentos geneticamente modificados; a mudança climática global; e os acidentes e desastres tecnológicos que afetam a saúde dos trabalhadores e de toda a população. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para todo o planeta mostram que, em 2000, ocorreram 270 milhões de acidentes de trabalho com 330 mil mortes; em 2002, 160 milhões de pessoas contraíram doenças do trabalho. No Brasil, dados da Previdência Social, em 2007, obtidos com o novo método do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP), indicaram a ocorrência de 653.090 acidentes do trabalho associados ao expressivo número de 159.786 doenças do trabalho. Em 2007, foram reconhecidos na Bahia 8.914 casos doenças do trabalho que, a despeito de significar um número elevado, representam apenas o universo do mercado formal de trabalho, o qual abrange em torno de um terço dos trabalhadores. 7 Os debates atuais vêm explicitando a necessidade de produção científica e de formulação de políticas públicas, programas e ações relacionadas à interação entre a saúde e o ambiente, com vista a garantir a qualidade de vida do ser humano, trabalho digno e saudável, bem como a sustentabilidade do planeta. É com esse propósito que esta edição da Revista Baiana de Saúde Pública traz contribuições advindas da primeira turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho. Trata-se de investigações de natureza multidisciplinar sobre temas de interesse da saúde do trabalhador e suas relações com o ambiente. São resultados de pesquisas realizadas em fábricas, serviços de saúde, comércio e no setor jurídico das decisões judiciais na esfera dos acidentes de trabalho. As pesquisas reúnem problemáticas centradas no lazer, atividades físicas, riscos, doenças e acidentes relacionados ao trabalho em diversas categorias profissionais, como charuteiras, eletricistas, enfermeiros, baianas de acarajé, agentes comunitários de saúde, professores, feirantes e pescadores artesanais inscritos nos setores público, privado e autônomo. Discutem temáticas de doenças do trabalho prevalentes, como Lesões por Esforços Repetitivos (LER) ou distúrbios musculoesqueléticos e transtornos mentais comuns; analisam sofrimento, violência e dor associados ao trabalho, incluindo questões sobre reabilitação profissional no serviço público federal. Apresentam temáticas concentradas no ambiente, como câncer, e aspectos relativos à dieta e contaminação alimentar em feira popular. Vários desses problemas podem ser demarcados no âmbito local, mas a maioria encontra-se inserido em complexas relações de causalidade e determinação do processo saúde-doença, ultrapassando o nível local e tornando-se regionais e/ou globais. Por outro lado, os modelos tradicionais de produção de conhecimento científico precisam evoluir na capacidade de realizar predições de riscos para doenças e acidentes relacionados ao trabalho e ao ambiente em geral, para que a prevenção seja efetivada no momento presente. A formulação e gestão das políticas públicas precisam de fundamentos científicos consistentes, por meio de estudos bem elaborados que permitam a compreensão da complexidade das intervenções. Por isso, o leitor encontrará neste número um elenco de resultados de pesquisas que desvelam situações inscritas nas relações entre saúde, trabalho e ambiente decorrentes de abordagens qualitativas ou epidemiológicas de interesse multiprofissional, com perspectivas diretas e indiretas de contribuição para o aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS) nas suas práticas de saúde do trabalhador articuladas à proteção ambiental. Rita de Cássia Franco Rêgo Paulo Gilvane Lopes Pena 8 ARTIGO ORIGINAL Revista Baiana de Saúde Pública ATIVIDADES FÍSICAS DE LAZER E DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS: REVISÃO DA LITERATURA Adauto Mascarenhasa Rita de Cássia Pereira Fernandesb Resumo Os benefícios da prática regular de atividades físicas (AF) também têm sido investigados em contextos do trabalho. O objetivo deste artigo é revisar a literatura sobre as associações entre as práticas de atividades físicas de lazer (AFL) e distúrbios musculoesqueléticos (DME) relacionados ao trabalho. Consideraram-se artigos publicados em inglês de 1999 a 2009 na base de dados MEDLINE/PubMed e três artigos em português publicados no Scielo-Brasil. Na verificação da qualidade metodológica, consideraram-se nove critérios: objetivo, amostragem, inclusão/exclusão, participação, instrumentos, coleta dos dados, estatística, pontos fortes/fracos e conclusão. Quinze artigos foram avaliados. Um atendeu a todos os itens de qualidade e dois a apenas quatro. Seis utilizaram amostras aleatórias, os demais usaram censo ou não referiram à estratégia de seleção. Um estudo foi de caso-controle; três coorte prospectiva; e sete corte transversal. Seis artigos apresentaram conclusões que relacionavam exposição ao desfecho. Associação negativa entre AFL e DME verificou-se em três estudos. Os demais foram inconclusivos ou não descreveram associação. Concluiu-se que a diversidade de itens que compõem as práticas de AF pode ter contribuído para a inconsistência das conclusões. Palavras-chave: Atividades de lazer. Exercício. Transtornos traumáticos cumulativos. Trabalhadores. v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 a Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). b Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina da Bahia. Largo do Terreiro de Jesus, Centro Histórico, Salvador, Bahia, Brasil. CEP: 40026-010. [email protected] 9 LEISURE PHYSICAL ACTIVITY AND MUSCULOSKELETAL DISORDERS: LITERATURE REVIEW Abstract The benefic effects of regular physical activity (PA) have also been investigated on work related activities. The objective of this article is to review the literature about the associations between leisure physical activity (LPA) practices and work related musculoskeletal disorders (WRMDs). The study considered articles published in English from 1999 to 2009 in the MEDLINE/ PubMed database and three articles in Portuguese from Scielo-Brazil. The methodological quality was verified through nine criteria: objective, sample selection, inclusion/exclusion, participation rate, tools, data collection, statistics, strong/weak points and conclusion. Fifteen articles were analyzed. One article met all quality items and two only four. Six studies used random samples, the others have used census or did not clarify the selection strategy. One study was case-control, three prospective cohort, and seven cross sectional. Six articles presented conclusions that associated exposure to outcome. A negative association between LPA and the occurrence of MSDs was found in three studies. The others were inconclusive or did not describe association. One concludes that the diversity of items that compose the PA practices may have contributed to the inconsistency of the observed findings. Key words: Leisure Activities. Physical exercise. Cumulative trauma disorders. Workers. ACTIVIDADES FÍSICAS DE OCIO Y TRASTORNOS MUSCULOESQUELÉTICOS: REVISIÓN DE LA LITERATURA Resumen Los beneficios de la actividad física (AF) regular también han sido investigados en contextos del trabajo. El objetivo de este artículo es revisar la literatura sobre las asociaciones entre las prácticas de actividades físicas de ocio (AFL) y los trastornos musculoesqueléticos (TME) relacionados con el trabajo. Fueron examinados artículos publicados en inglés desde 1999 hasta 2009 en la base de datos MEDLINE/PubMed y tres artículos publicados en portugués en la base de datos Scielo-Brasil. Para la verificación de la calidad metodológica fueron usados nueve criterios: objetivo, selección de la muestra, inclusión/exclusión, participación, instrumentos, recolecta de datos, estadísticas, puntos fuertes /débilles y conclusión. Fueron evaluados quince artículos. Uno cumplió todos los criterios de calidad y dos, atendió a solo cuatro de ellos. Seis utilizaron muestras al azar, los otros han usado el censo, o no reportaron la estrategia 10 Revista Baiana de Saúde Pública utilizada. Un estudio fue de caso-control, tres de cohorte prospectivo, y siete de sección transversal. Seis artículos presentaron conclusiones relacionando la exposición con el resultado. Una asociación negativa entre la AFL y la TME fue encontrada en tres estudios. Los otros no fueron concluyentes o no describieron la asociación. Se concluye que la diversidad de elementos que componen las prácticas de la AF pueden haber contribuido para la inconsistencia de los resultados. Palabras-clave: Actividades de ocio. Ejercicio. Transtornos de traumas acumulados. Trabajadores. INTRODUÇÃO A ideia de que pessoas suficientemente ativas obtêm benefícios de saúde contra doenças crônicas não-transmissíveis está bem definida na literatura. Esforços tem sido feitos para se verificar benefícios também em relação a outras doenças, como os distúrbios musculoesqueléticos (DME) relacionados ao trabalho.1,2 Em adição, o American College of Sports Medicine (ACSM) e a American Heart Association (AHA) sugerem que as pessoas devem manter-se suficientemente ativas em todos os momentos da vida, o que significa, para adultos saudáveis com idade entre 18 e 65 anos, a realização de AF aeróbias de intensidade moderada de 3,0 a 6,0 equivalentes metabólicos (METs) por, pelo menos, 30 minutos diários (ou fracionamentos de 10 minutos), em cinco ou mais dias da semana, ou de AF de intensidade vigorosa (acima de 6 METs) por, pelo menos, 20 minutos diários em três ou mais dias por semana, sendo possível também combinações entre as intensidade moderada e vigorosa que alcancem 450 a 750 METs em acúmulo semanal.3 Tem-se como 1 MET a energia necessária para manutenção dos sistemas corporais no estado de repouso, equivalente a 1 Kcal por quilograma de massa corporal por hora – 1Kcal.Kg-1.h-1 ou o equivalente em oxigênio consumido na produção de energia para o metabolismo, de 3,5 em mililitros de O2 por quilograma de peso corporal por minuto – 3,5mlO2. Kg-1.min-1.³ Outras formas de medida da atividade física (AF) consideram a duração (minutos), a frequência (dias/semana) e a intensidade (moderada e vigorosa). Caracteriza-se a atividade de intensidade moderada pelo esforço físico capaz de fazer o indivíduo respirar um pouco mais forte que o normal, o que impõe ao coração um ritmo mais rápido que o apresentado no repouso. Para a maioria das pessoas, essa atividade equivale a uma caminhada em passos rápidos ou qualquer outra atividade que aumente o metabolismo por, pelo menos, três vezes em relação ao nível de repouso. A atividade de intensidade vigorosa requer esforço físico maior, induzindo o indivíduo a v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 11 respirar muito mais forte do que o normal, e o coração a bater muito mais rápido, elevando o metabolismo em, pelo menos, seis vezes em relação aos níveis de repouso.4 Além da preocupação esboçada pelos órgãos de saúde pública de diversos países frente a morbidades associadas a estilos de vida sedentários, estudo sobre a atividade física como fator de qualidade de vida e saúde do trabalhador5 observou que, nas últimas décadas, o caráter epidêmico que assumiram os DME no acometimento de trabalhadores em diversas partes do mundo, independente do ramo de atividade e grau de desenvolvimento, também tem preocupado essas instituições. Alguns autores sugerem que a elevada prevalência dos DME entre os trabalhadores é decorrente de reestruturações nas formas de produção e novas tecnologias adotadas, que tornaram as atividades ocupacionais, por vezes, sedentárias ou exigentes excessivamente em relação às estruturas corporais.5,6 Neste sentido, este artigo apresenta uma breve revisão da literatura para estudos epidemiológicos sobre associações entre as práticas de atividades físicas de lazer (AFL) e DME, com ênfase para DME relacionados ao trabalho. MÉTODOS Foram considerados artigos publicados nos últimos 10 anos (janeiro de 1999 a outubro de 2009) na base de dados MEDLINE/PubMed. Foram incluídos três artigos sobre o tema de autores nacionais, no mesmo período de referência. Entre os tipos de estudo consideraram-se os de corte transversal, caso-controle e coorte prospectiva, que tivessem utilizado populações de trabalhadores na verificação de associações entre esportes, atividades/exercícios físicos em momentos de lazer e DME relacionados ao trabalho. Constituíram o conjunto de palavras-chave os seguintes termos: 1) Relacionados às atividades físicas – Leisure time, physical activity, sedentary lifestyle, physical exercise, physical inactivity, exercise e physical capacity; 2) Relacionados às morbidades musculoesqueléticas – work-related, musculoskeletal disorders, musculoskeletal pain, musculoskeletal symptoms, musculoskeletal complaints, musculoskeletal pain, low back pain, shoulder pain, neck pain, hip pain, work-related factors, work population, work activities, workers, upper limb, sickness absenteeism e prevalence. Foram selecionados para leitura os resumos dos artigos que contivessem em seus títulos termos integrantes dos grupos de palavras-chave “1” e “2”. Os critérios de verificação da qualidade metodológica foram adaptados daqueles utilizados em revisão sistemática sobre a efetividade de programas de AF no local de trabalho, em relação a efeitos sobre a saúde decorrentes do trabalho.7 Foram adaptadas também as definições para registro de atendimento aos critérios de qualidade, considerando-se qualidade “+” (mais) o artigo que contemplasse na íntegra a descrição referente ao item em verificação, ficando as 12 Revista Baiana de Saúde Pública categorizações “+/-” (mais ou menos) e “-” (menos) para o atendimento parcial e o não atendimento, respectivamente. O termo “não se aplica” (NA) foi adotado para estudos que não apresentavam compatibilidade com o item avaliado (ex.: estudo censitário e randomização da amostra; inquérito realizado com o envio de questionário pelo correio e referência a treinamento de entrevistadores etc.). (Quadro 1). Quadro 1. Critérios de verificação da qualidade metodológica dos artigos selecionados para a revisão da literatura RESULTADOS A pesquisa na base de dados identificou inicialmente um total de 54 publicações. A leitura dos resumos indicou 23 artigos adequados a este estudo, que foram lidos na íntegra. Doze artigos foram selecionados, perfazendo um total de 15 estudos para esta revisão. O Quadro 2 apresenta as categorizações segundo cada item dos critérios de qualidade propostos. Um artigo atendeu a todos os itens (n=9) de qualidade avaliados e três artigos tiveram o menor escore de atendimento (n=4). Seis estudos referiram a aleatorização na seleção da amostra, enquanto os demais foram censos ou fizeram parte de estudos de base populacional e não explicitaram a estratégia de seleção da população de estudo. Doze estudos apresentaram boa taxa de participação e 11 apresentaram conclusões claras sobre a associação entre a exposição e o desfecho. Em relação aos desenhos de estudos utilizados, um (7%) foi de caso-controle, cinco (33%) de coorte prospectiva e nove (60%) de corte transversal. Observaram-se resultados ou conclusões que associavam negativamente as práticas de AFL à ocorrência de DME (seis estudos) e AFL a menores taxas de absenteísmo por diversas causas, inclusive os DME (um estudo). Os v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 13 demais estudos ou foram inconclusivos, ou não descreveram associação entre AFL e DME. Observou-se também que as recomendações da ACSM/AHS quanto à prática de AF como forma de promoção ou manutenção da saúde foi pouco referida, concentrando-se as opções para escolha dos participantes entre práticas esportivas e outras formas de AFL sem especificá-las com clareza. Verificaram-se ainda muitas variações em relação aos critérios de frequência e/ou duração das atividades para definição das categorias relativas à prática de AFL. O sumário dos estudos encontra-se apresentado no Quadro 3. Quadro 2. Resultados de análise da qualidade metodológica dos artigos segundo critérios estabelecidos 14 Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos de Saúde Pública v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 (continua) Revista Baiana 15 16 Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos (continuação) Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos de Saúde Pública v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 (continuação) Revista Baiana 17 18 Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos (continuação) Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos (conclusão) Revista Baiana de Saúde Pública v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 19 DISCUSSÃO Esta revisão da literatura teve como objetivo verificar como as práticas de AF, aquelas realizadas durante as horas de lazer, têm sido pesquisadas em populações de trabalhadores para se verificar os potenciais efeitos contra a ocorrência de DME relacionados ao trabalho. Sete estudos entre os quinze verificados concluíram que ser fisicamente ativo (exercícios físicos ou atividades esportivas ou atividades de lazer) poderia ser uma estratégia de proteção contra morbidades musculoesqueléticas nesse segmento da população. No entanto, oito estudos não encontraram associação entre a exposição e o efeito descrito acima. Além disso, AF sob a forma de práticas esportivas esteve presente na quase metade dos artigos, enquanto os demais as generalizaram como atividades físicas e/ou atividades de lazer sem detalhamento. Alguns autores referem que conquistas tecnológicas ocorridas nas últimas décadas têm contribuído para a diminuição de níveis de AF das populações, tanto em frequência quanto em intensidade,8,9 embora se observe que, no trabalho, essa situação seja ambígua, devido à existência de modelos de produção que, ao mesmo tempo, apresentam características sedentárias e exigem de forma demasiada de regiões específicas do corpo (ex.: trabalhos com digitação). Uma característica marcante nos estudos foi que, ao considerarem as práticas de AF, as Orientações sobre Atividade Física e Saúde3 MS foram utilizadas em apenas uma oportunidade, na classificação de ativos, durante a avaliação de profissionais de enfermagem de Hong Kong quanto ao surgimento de novas dores lombares em relação ao estresse e a atividades no trabalho, juntamente com estilo de vida sedentário.10 Como um dos achados, observou-se que a falta ou prática de AFL não se constituiu em preditor ou protetor, respectivamente, para o desfecho avaliado. A maior ênfase à prática de esportes coloca qualquer modelo de avaliação dentro de amplas possibilidades de desfecho, pela diversidade de modalidades possíveis, inúmeros movimentos e intensidades envolvidas. Além disso, algumas práticas esportivas, pelas próprias características, oferecem riscos principalmente pela condição de não-atleta do trabalhador ou pela falta de treinamento específico para a atividade. Os achados desta revisão divergem entre si, pois, enquanto estudo sobre exercício físico e dores musculoesqueléticas entre trabalhadores da indústria florestal2 e outro que trata do início de dor como resultado de acúmulo no local de trabalho e como carga mecânica decorrente das atividades de lazer9 consideraram as práticas desportivas fatores de risco para a ocorrência de DME juntamente com fatores relacionados ao trabalho, a pesquisa sobre prevalência de atividade física entre a população trabalhadora e sua correlação com fatores relacionados ao trabalho11 e o estudo sobre doenças musculoesqueléticas, trabalho e estilo de vida entre trabalhadores de uma 20 Revista Baiana instituição pública de saúde12 foram pouco conclusivos em suas observações, ao considerarem que de Saúde Pública os trabalhadores mais propensos ao desenvolvimento de morbidades foram os menos disponíveis à prática de esportes ou à prática de AF, ou que a prática de AF foi referida similarmente por doentes e não doentes, respectivamente. Em contrapartida, estudo prospectivo sobre a atividade física no tempo livre e absenteísmo por doença13 mesmo reconhecendo os possíveis riscos que a prática de alguns esportes oferece, considerou que os benefícios obtidos com essas práticas refletiam-se no trabalho por meio do registro de redução do absenteísmo por morbidades relacionadas ao trabalho. Curiosamente, estudos que referiram a AF ou AFL ou EF sem detalhamento das modalidades registraram associações positivas entre atividades físicas e uma menor ocorrência de DME relacionados ao trabalho.14,15 Com frequência, as referências feitas às AF são decorrentes de práticas esportivas, o que explica quase a metade dos estudos observados avaliarem este tipo de modalidade. Adicionalmente, dentre as práticas esportivas, existem aquelas com características individualizadas, como corrida, caminhada, natação, ciclismo etc.; atividades desenvolvidas por equipe que não envolvem contato físico, como voleibol, remo, peteca etc.; e atividades por equipe que envolvem contato físico, como futebol, basquetebol, polo aquático, que apresentam maiores riscos de acidentes, o que deve ser considerado quando se tratar de desfechos que incluam essas atividades, principalmente pelo fato de se tratarem de populações de não-atletas. Tanto os estudos que foram especificamente desenvolvidos para avaliar associações entre atividades físicas e DME, decorrentes do trabalho ou não, quanto aqueles realizados como parte de estudos que tinham outra finalidade, não referiram a inclusão, em seus instrumentos de coleta de dados, na íntegra ou em parte, de questionários especificamente desenvolvidos para avaliação de níveis de AF em populações. Exceção seja feita ao estudo sobre lesões por esforços repetitivos relacionados ao trabalho e lazer de atividade física,14 que utilizou, durante as categorizações dos sujeitos em ativos ou inativos, a versão atualizada do Compêndio de Atividades Físicas,16 que utiliza o MET para o cálculo da intensidade da AF. Esse compêndio traz referência a 605 atividades específicas, dentre estas: esportes, cuidados com a casa, cuidados pessoais, trabalho, transporte, lazer, entre outros. Os valores obtidos são associados a níveis de AF, a exemplo do proposto para classificação pelo International Physical Activity Questionnayre (IPAQ), em que a caminhada corresponde a 3,3 METs, atividades de intensidade moderada, a 4,0 METs, e atividades de intensidade vigorosa, a 8,0 METs. Compõe o cálculo final o tempo gasto nas atividades e o número de dias de atividade na semana. Ressalte-se que informações deste tipo possibilitam o cálculo de níveis de AF em todos os domínios de abrangência: trabalho, lazer, cuidados com a casa e locomoção.17 v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 21 Questões metodológicas dessa natureza podem estar dificultando conclusões mais claras em relação aos desfechos observados, a exemplo de pesquisa de revisão sistemática da literatura, no período entre 1983 a 1994,1 ao estudar as relações entre momentos de lazer, atividades físicas, sintomas musculoesqueléticos e incapacidade em populações de trabalhadores, e estudo semelhante, avaliando os efeitos da efetividade de programas de atividade física no local de trabalho, tendo ambos considerado inconclusivos os desfechos observados.7 Além disso, há de se observar que, para medidas de AF, existem mais de trinta técnicas diferentes.18 A praticidade e viabilidade metodológica dos questionários em estudos epidemiológicos é incontestável, porém a não observância de critérios que permitam elevar a validade dos estudos, a exemplo de questões que forneçam informações que produzam resultados comparáveis a padrões estabelecidos, torna as produções restritas em si e dificultam o avanço em novas direções, principalmente pelo fato de estarem envolvidas dimensões que abrangem duração, intensidade, frequência, tipo de atividade, local etc.19 Embora poucos trabalhos nesta direção tenham sido produzidos, principalmente no Brasil, observa-se que as intenções permanecem para associar os efeitos positivos das práticas de AF sobre morbidades relacionadas ao trabalho. Motivação, nesse sentido, parece pertinente, considerando-se que os resultados apresentados pela maioria dos trabalhos sugerem haver alguma ação positiva naqueles que praticam AF regularmente, sejam EF ou esportes, porém não suficiente para tornar a associação com os DME relacionados ao trabalho fato incontestável. Não se pode esquecer, entretanto, que questões relacionadas à individualidade biológica devem ser consideradas sempre que possível, além de questões meramente matemáticas, como, por exemplo: as gestões envolvendo o binômio trabalhador/trabalho devem emergir do local de trabalho ou ser usadas como referência; e o aporte físico necessário ao trabalhador para desempenho de suas funções deve ser visto como forma de manutenção da saúde geral, daí pensar-se nos objetivos específicos, associando as necessidades do trabalhador concomitantemente com melhorias nas condições de trabalho. Conclui-se com a afirmação de que há muito a ser feito quando se trata de estudos sobre possíveis benefícios das práticas de atividades físicas em relação aos DME relacionados ao trabalho. O conhecimento adquirido quanto aos benefícios contra o surgimento de doenças relacionadas ao estilo de vida sedentário, como obesidade, dislipidemia, hipertensão arterial, diabetes de tipo 2, problemas cardiocirculatórios etc., parece não servir como parâmetro para outras linhas de pesquisa, principalmente quando se trata de frequência, intensidade e duração das práticas de atividades físicas, haja vista que apenas um estudo verificado fez menção à proposta da OMS quanto à frequência mínima semanal de cinco dias e, no mínimo, 30 minutos por sessão de 22 Revista Baiana de Saúde Pública atividades físicas de intensidade moderada. Os achados dos estudos mostraram-se, na maioria, inconsistentes em suas conclusões, possivelmente devido à diversidade de itens que compõem a exposição avaliada (atividades físicas, exercícios físicos, esportes). Sugere-se que os novos estudos a serem desenvolvidos considerem, na caracterização da exposição, critérios que tornem metodologicamente viável a comparações com outros estudos. REFERÊNCIAS v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 1. Hildebrandt HV, Bongers PM, Dul J, van Dijk FJH, Kemper HCG. The relationship between leisure time, physical activities and musculoskeletal symptoms and disability in worker populations. Int Arch Occup Environ Health. 2000;(73):507-18. 2. Miranda H, Viikari-Juntura E, Martikainen R, Takala E-P, Riihimäki H. Physical exercise and musculoskeletal pain among forest industry workers. Scand J Work, Environ Health. 2001;11:239-46. 3. Haskell WL, Lee I-M, Pate RR, Powell KE, Blair SN, Franklin BA, et al. 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New low back pain in nurses: work activities, work stress and sedentary lifestyle. J Adv Nurs. 2004;46(4):430-40. Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 08.04.2011 v.35, n.1, p.9-25 jan./mar. 2011 25 ARTIGO ORIGINAL FATORES DA DIETA E TUMORES DE CÉREBROa Glaura Freaza Luzb Lauro Antonio Portoc Marco Antônio Vasconcelos Rêgob Resumo As hipóteses sobre a associação entre fatores da dieta e tumores de cérebro relacionam-se aos compostos N-nitroso como favorecedores do desenvolvimento desses tumores e ao papel de antioxidantes dietéticos atuando como protetores, através da inibição da nitrosação dos precursores dos compostos N-nitroso. O objetivo deste artigo é identificar fatores da dieta associados aos tumores primários de cérebro em indivíduos adultos ( ≥ 20 anos). Trata-se de um estudo caso-controle de base populacional, realizado na Região Metropolitana de Salvador, estado da Bahia, Brasil. Foram realizadas análises de regressão logística para a estimativa das razões de chances ajustadas e respectivos intervalos de confiança a 95%. Os resultados apontam uma associação inversa para o maior consumo de laticínios (OR= 0,32; 95% IC: 0,13 – 0,80) e vitamina C (OR= 0,34; 95% IC: 0,13 – 0,88) para todos os tumores de cérebro agrupados. Para os tumores não-astrocíticos o maior consumo de refrigerantes (OR= 0,20; 95% IC: 0,06 – 0,63) demonstrou efeito protetor. Conclui-se que os fatores da dieta podem atuar de forma diferente entre os tumores de cérebro; o efeito protetor das vitaminas antioxidantes, especialmente a vitamina C, sugere que o maior consumo de legumes e frutas pode diminuir o risco para o desenvolvimento desses tumores. Palavras-chave: Tumores de cérebro. Dieta. Compostos N-nitroso. Antioxidantes. Epidemiologia nutricional. a FAPESB (Bolsa de Mestrado de LUZ, GF – Processo FAPESB nº BOL 0126/2008). CNPq - Edital MCT-CNPq 02/2006 (processo 473759/2006-6). Mestra em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Medicina da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho. c Professor adjunto do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da b Bahia, Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho. Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia. Largo do Terreiro de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia. CEP: 40026-010. [email protected] 26 Revista Baiana DIETARY FACTORS AND BRAIN TUMORS de Saúde Pública Abstract The hypotheses about the association between dietary factors and brain tumors are related to N-nitroso compounds as promoters of development of these tumors and the role of dietary antioxidants acting as guards, through the inhibition of nitrosation of precursors of N-nitroso compounds. The aim of this paper is to identify dietary factors associated with primary brain tumors in adults ( ≥ 20 years). This is a population-based case-control study conducted in the metropolitan area of Salvador, Bahia, Brazil. Logistic regression estimated adjusted odds ratios and confidence intervals at 95%. The results indicate an inverse association for the highest intake of dairy products (OR = 0.32, 95% CI: 0.13 - 0.80) and vitamin C (OR = 0.34, 95% CI: 0.13 to 0.88) for all grouped brain tumors. For nonastrocytic tumors, the highest consumption of soft drinks (OR = 0.20, 95% CI: 0.06 to 0.63) demonstrated a protective effect. It was concluded that dietary factors may act differently among brain tumors; the protective effect of antioxidant vitamins, especially vitamin C, suggests that a higher consumption of vegetables and fruits can reduce the risk of developing these tumors. Key words: Brain cancer. Diet. N-nitroso compounds. Antioxidants. Nutritional epidemiology. FACTORES DIETÉTICOS Y LOS TUMORES CEREBRALES Resumen Las hipótesis sobre la asociación entre factores dietéticos y los tumores cerebrales están relacionadas con los compuestos N-nitroso como promotores del desarrollo de estos tumores y el papel de los antioxidantes dietéticos en calidad de protectores, a través de la inhibición de la nitrosación de los precursores de compuestos N-nitroso. El objetivo de este artículo es identificar los factores de la dieta asociados a los tumores primarios de cerebro en individuos adultos (≥ 20 años). Se trata de un estudio caso-control de base en la población, llevado a cabo en el área metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Se analizaron análisis mediante regresión logística para estimar razones de posibilidades ajustadas y los respectivos intervalos de confianza al 95%. Los resultados indican una asociación inversa para el mayor consumo de productos lácteos (OR = 0,32, IC 95%: 0,13 a 0,80) y vitamina C (OR = 0,34, IC 95%: 0,13 a 0,88) de todos los tumores cerebrales agrupados. Para los tumores no Astrocíticos, el mayor consumo de refrescos (OR = 0,20, IC 95%: 0,06 a 0,63) demostró un efecto protector. Se concluyó que los factores dietéticos pueden actuar de forma diferente entre los tumores cerebrales; el efecto protector de las vitaminas antioxidantes, especialmente vitamina C, sugiere que un v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 27 mayor consumo de legumbres y frutas puede disminuir el riesgo de desarrollar estos tumores. Palabras-clave: Tumores cerebrales. Dieta. Compuestos N-nitroso. Antioxidantes. Epidemiología nutricional. INTRODUÇÃO Os tumores de cérebro são neoplasias raras, mas apresentam importância epidemiológica devido à sua crescente incidência e elevada morbimortalidade.1,2 Parte desse aumento tem sido associada à introdução e acesso a procedimentos de neuroimagem mais precisos, como a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética. Os poucos fatores de risco bem estabelecidos (exposição à radiação ionizante em doses terapêuticas, mutações raras e história familiar) explicam apenas uma pequena proporção desses tumores.3 Outros fatores de risco têm sido investigados, mas os resultados são inconsistentes ou divergentes. A associação entre fatores da dieta e tumores primários de cérebro em indivíduos adultos ainda não é bem compreendida. A hipótese de que o consumo de compostos N-nitroso (NOCs) e seus precursores, nitrito e nitrato, presentes na dieta humana, aumenta o risco desses tumores tem sido investigada,4 estando relacionada com a capacidade que têm de formar adutos pro-mutagênicos no ácido desoxirribonucleico (DNA).5,6 Também tem sido estudado o provável efeito protetor dos antioxidantes da dieta, especialmente as vitaminas C e E, que inibem a formação dos NOCs e dos carotenos, devido à sua ação antioxidante. Contudo, as evidências epidemiológicas não têm sido consistentes. No Brasil, os tumores de cérebro corresponderam a 3,4% do total de óbitos por câncer em 1980, aumentando para 4,4% em 1998.2 Em 2006, as neoplasias do encéfalo e outras partes do sistema nervoso central (SNC) foram a sétima causa de morte, com 6.418 ocorrências.7 Entretanto, há poucos estudos sobre os tumores de cérebro no Brasil, especialmente sobre sua associação com os fatores da dieta.8 Considerando a relevância do tema e a escassez de estudos nacionais, o objetivo deste estudo foi identificar fatores da dieta associados aos tumores primários de cérebro em indivíduos adultos. MATERIAL E MÉTODOS Foi desenvolvido um estudo caso-controle de base populacional na Região Metropolitana de Salvador (RMS), no estado da Bahia, Brasil, que engloba 12 municípios. Utilizou-se a mesma amostra do estudo que avaliou a exposição ocupacional a solventes orgânicos e tumores de cérebro9 cujo cálculo foi baseado na revisão da literatura para a OR esperada e na prevalência da exposição entre os controles, encontrada em estudo sobre os 28 Revista Baiana de Saúde Pública linfomas não-Hodgkin e solventes orgânicos10 para a mesma região do estudo, resultando em uma amostra de 137 casos, calculada de acordo com o proposto na literatura.11 Neste estudo, consideraram-se os casos incidentes de tumores primários de cérebro em indivíduos com vinte anos ou mais de idade, diagnosticados nos anos de 2006 e 2007. Os casos foram definidos de acordo com a Classificação Internacional das Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID – 10ª revisão), considerando-se os seguintes códigos: C70, C71, C72.2, C72.5, C72.9, D32.0, D32.9, D33.0 a D33.3, D33.7, D33.9, D42.0, D43.0 a D43.3, que agrupam os tumores primários benignos e malignos do encéfalo, meninges e nervos cranianos, conforme classificação proposta em estudo sobre neoplasia do sistema nervoso;4 excluíram-se apenas os tumores de medula espinhal, meninges espinhais e de nervo periférico. Todos os casos foram confirmados por exame histopatológico e foram selecionados nos serviços de oncologia, neurocirurgia, radiologia e anatomia patológica da área do estudo. Os controles foram identificados nos mesmos serviços de diagnóstico dos casos, sendo elegíveis os pacientes adultos (≥ 20 anos), residentes na mesma área geográfica dos casos. Esses indivíduos realizaram ressonância nuclear magnética ou tomografia computadorizada de crânio, no mesmo período que os casos, porém tiveram diagnósticos não relacionados aos tumores primários ou secundários do SNC ou foram classificados como normais. Para a coleta de dados referentes à alimentação, utilizou-se uma adaptação do questionário de frequência alimentar (QFA).12 Utlilizaram-se os dados referentes ao diagnóstico histopatológico e sociodemográficos da tese intitulada Exposição Ocupacional a Solventes Orgânicos e Tumores de Cérebro.9 As entrevistas foram realizadas entre novembro de 2008 e novembro de 2009, por seis estudantes do curso de graduação em Nutrição da Universidade Federal da Bahia, previamente treinadas. Além disso, as primeiras coletas foram acompanhadas, para se proceder à avaliação das dificuldades no campo. Os dados sobre o consumo alimentar foram coletados conforme o roteiro recomendado pelos autores do questionário de frequência alimentar utilizado.12 Após a coleta, os questionários foram revisados e realizaram-se contatos telefônicos para a complementação de dados. Para as análises, a frequência de consumo da cada alimento foi convertida em consumo diário em gramas. Em seguida, os alimentos foram reunidos em grupos (leite, iogurte e queijos; apenas queijos; pães e biscoitos; gorduras; cereais, tubérculos e massas; frutas; leguminosas; verduras e legumes; carnes; carnes processadas; carnes curadas; ovos; cerveja; doces; café; e refrigerantes) dicotomizados pela mediana do consumo diário. O consumo diário de calorias totais (Kcal/dia), vitamina A (equivalente de retinol/dia), vitamina E (mg/dia) e vitamina C v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 29 (mg/dia) foi calculado com base na tabela de composição de alimentos.13 Também foi dicotomizado pela mediana do consumo diário. As carnes curadas ou salgadas foram dicotomizadas por “consumia” ou “não consumia”. Utilizou-se a técnica de regressão logística pelo método backward-Wald 14 para todos os tumores de cérebro agrupados e para os subgrupos de tumores astrocíticos e não-astrocíticos. Para a pré-seleção das variáveis, utilizou-se um a= 25% e a análise de regressão logística foi feita usando-se o método backward e α= 17%. As análises foram ajustadas pelas covariáveis sexo, tabagismo, tipo de informante e uso de suplemento vitamínico; no caso dos tumores agrupados, apenas a covariável tipo de informante foi incluída no modelo (p = 0,01); para os tumores astrocíticos, incluíram-se as covariáveis sexo (p= 0,17), tabagismo (p= 0,14), informante substituto (p= 0,001) e suplemento vitamínico (p= 0,18); e para os tumores não-astrocíticos incluiu-se apenas sexo (p= 0,04). Todas as análises foram realizadas no aplicativo SPSS (versão 11.5). O estudo foi desenvolvido após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, Parecer nº 052-07/ CEP-ICS, e cada entrevista foi realizada após a leitura, explicações e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para cada participante. RESULTADOS Foram identificados 164 indivíduos com diagnóstico anátomo-patológico de tumor primário de cérebro. Desses, 97 foram excluídos pelos seguintes motivos: 75 não foram localizados, 5 recusaram a participação, 12 não residiam na região do estudo e 5 por apresentarem recidiva de anos anteriores ao período estudado, restando 67 indivíduos. Destes, 18 não foram entrevistados por não ter sido possível viabilizar uma data para sua realização, após sucessivos contatos. Foram avaliados 107 indivíduos, sendo 49 casos (19 astrocíticos e 30 não-astrocíticos) e 58 controles. A distribuição por sexo, média de idade, escolaridade, média da renda mensal, tipo de renda, cor da pele, proporção e tipo de respondente-substituto é apresentada na Tabela 1. Observou-se diferença estatisticamente significante apenas na proporção de respondente substituto e tipo de respondente substituto. A duração média da entrevista foi de 54,9 minutos para os casos (DP= 25,39) e 35,5 para os controles (DP= 93,26). A Tabela 2 apresenta a distribuição dos casos conforme o diagnóstico histopatológico dos tumores. Entre os homens predominaram os tumores astrocíticos (61,9%) e 30 Revista Baiana de Saúde Pública entre as mulheres houve maior proporção dos tumores não-astrocíticos (78,6%). Destes, o principal tipo histológico correspondeu aos meningiomas, que representaram 60,7%. Tabela 1. Distribuição dos indivíduos caso e controle, de acordo com variáveis sociodemográficas – Salvador, Bahia – 2006-2007 Tabela 2. Distribuição dos indivíduos com tumor de cérebro, de acordo com o diagnóstico histopatológico e com o sexo – Salvador, Bahia – 2006-2007 v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 31 O consumo de carne do sol foi inversamente associado ao desenvolvimento dos tumores astrocíticos [OR= 0,30; 95%IC 0,09-0,94] (Tabela 3), contudo essa associação não se manteve na análise multivariada (Tabela 5). Tabela 3. Odds ratio bruta para tumores de cérebro e consumo de carnes curadas/salgadas e cerveja – Salvador, Bahia – 2006-2007 O consumo mais elevado de laticínios e de refrigerantes, nas análises brutas, apresentou-se como fator de proteção para todos os tumores agrupados (OR= 0,45; 95% IC: 0,21-0,97) e (OR= 0,38; 95% IC: 0,17-0,83), respectivamente (Tabela 4). Após o ajuste por informante substituto, o maior consumo de laticínios e de vitamina C reduziu o risco de todos os tumores agrupados (OR= 0,32; 95% IC: 0,13–0,80) e (OR= 0,34; 95%IC: 0,13–0,88), respectivamente (Tabela 5). O maior consumo da vitamina A (OR= 0,35; 95% IC 0,14-0,89) foi inversamente associado ao desenvolvimento dos tumores não-astrocíticos (Tabela 4). Mas, na regressão logística multivariada, essa associação não se manteve e o consumo mais elevado de refrigerantes (OR= 0,20; 95%IC 0,06–0,63) apresentou efeito protetor (Tabela 5). 32 Tabela 4. Odds ratio bruto para tumores de cérebro, grupos de alimentos, calorias e vitaminas, dicotomizados pela mediana do consumo – Salvador, Bahia – 2006-2007 de Saúde Pública v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 (continua) Revista Baiana 33 34 Tabela 4. Odds ratio bruto para tumores de cérebro, grupos de alimentos, calorias e vitaminas, dicotomizados pela mediana do consumo – Salvador, Bahia – 2006-2007 (continuação) Tabela 4. Odds ratio bruto para tumores de cérebro, grupos de alimentos, calorias e vitaminas, dicotomizados pela mediana do consumo – Salvador, Bahia – 2006-2007 de Saúde Pública v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 (conclusão) Revista Baiana 35 36 Tabela 5. Associação entre tumores de cérebro e fatores da dieta – Salvador, Bahia – 2006-2007 Revista Baiana DISCUSSÃO de Saúde Pública O efeito protetor dos laticínios pode resultar do seu conteúdo de cálcio, aspecto descrito em estudo16 que relata que o cálcio foi inversamente relacionado ao risco de tumores cerebrais (OR= 0,25 para o maior quartil). Cinco estudos avaliaram a relação entre tumores de cérebro e o consumo de vitamina C da dieta,18-21 mas em apenas um estudo22 os resultados foram estatisticamente significantes (OR=0,70; 95%IC: 0,51 – 0,94) para duas séries de estudos combinadas. A vitamina C pode inibir a formação endógena de NOCs6,23 porque reage mais rápido do que a amina com o agente de nitrosação, o que justifica seu efeito protetor contra os tumores de cérebro. Estudos prévios têm examinado o efeito de carnes curadas sobre o risco de tumores cerebrais em adultos, considerando a hipótese de que os NOCs adicionados como conservantes ou formados endogenamente com base em seus precursores, nitratos e nitritos, têm sido um dos mais proeminentes fatores de risco ambientais pela indução de tumores após a conversão metabólica em intermediários que reagem com várias macromoléculas celulares,19 mas os resultados são divergentes.15,21,24 O pequeno tamanho da amostra deste estudo provavelmente não possibilitou a adequada avaliação dessa associação. Além disso, o efeito do consumo de carnes processadas sobre os tumores de cérebro pode ter sido modificado pela ingestão das vitaminas C e E, através da inibição da síntese endógena dos NOCs no estômago.6 Poucos estudos avaliaram a relação entre o consumo da vitamina A e os tumores de cérebro e apresentaram resultados discordantes. Os carotenóides (α-caroteno e β-caroteno) reduziram em 50% o risco para o desenvolvimento de gliomas, um tipo de tumor astrocítico.19 A ingestão de retinol aumentou o risco de gliomas, contudo não foi encontrada associação com o consumo de β-caroteno entre homens; entre as mulheres, houve uma associação com a redução do risco para o tercil de maior consumo.20 Outro estudo encontrou uma associação inversa e não significante entre β-caroteno e o risco de câncer de cérebro.16 As principais fontes alimentares das vitaminas antioxidantes que apresentaram efeito protetor contra os tumores de cérebro são as frutas, legumes e verduras. Isso indica que o aumento do consumo desses grupos de alimentos, como tem sido recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que preconiza um consumo regular de no mínimo 400g/dia,25 deve ser estimulado para prevenir o desenvolvimento desses tumores. Efeito protetor para todos os níveis de consumo de refrigerantes de cola foi encontrado em estudo sobre fatores dietéticos e o risco de glioma em adultos.20 Entretanto, não há v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 37 uma explicação biologicamente plausível que relacione o consumo de refrigerantes com a redução do risco de tumores cerebrais. Assim, esses resultados devem ser vistos com cautela. Esse tipo de estudo, inserido no campo da epidemiologia nutricional, envolve uma série de limitações quanto à correta classificação da exposição, incluindo aspectos como dose, tempo e duração da exposição e o momento em que o consumo de alimentos deve ser mensurado considerando o período de indução do câncer. Recomenda-se avaliar o consumo referente ao ano anterior ao diagnóstico, mas registra-se uma avaliação em que o período de referência relevante varia em função da fisiologia ou da fisiopatologia do problema e do metabolismo do fator dietético estudado, acrescido da consideração de que alguns nutrientes apresentam meia-vida longa e, assim, para estudos caso-controle sobre câncer, o período pode ser de cinco anos.26 O questionário de frequência alimentar utilizado apresenta uma definição clara da frequência de consumo para cada alimento e porções bem definidas em porcentis de consumo; há ainda um registro fotográfico da quase totalidade dos alimentos, o que contribui para minimizar o viés de memória, que é relevante em estudos caso-controle. É importante notar que existe uma grande variedade de substâncias ativas nos alimentos com diferenciados mecanismos de ação e de interação entre si e com outros fatores endógenos e exógenos que podem limitar a validade dos achados. Outros fatores de risco, como suscetibilidade genética, exposição à radiação ionizante, radiação não-ionizante, solventes orgânicos e o uso de tintura de cabelo, que não foram avaliados neste estudo, podem estar atuando como fatores de confundimento. Além disso, os alimentos podem ser contaminados com produtos químicos, dentre eles os agrotóxicos. Os tumores primários de cérebro são caracterizados por notável variação na história natural e diferenças em seu comportamento biológico. Isso implica a existência de diferenças a nível genético e celular, com possíveis etiologias distintas com base no tecido de origem, indicando que a divisão em tumores astrocíticos e não-astrocíticos pode não ser suficiente para avaliar adequadamente a associação com os fatores da dieta. Além das limitações apontadas acima, o pequeno número de pacientes envolvidos no estudo sugere que os resultados devem ser vistos com cautela. Concluiu-se que o efeito protetor das vitaminas antioxidantes, especialmente o ácido ascórbico, sugere que o maior consumo de legumes e frutas pode diminuir o risco para o desenvolvimento dos tumores de cérebro, evidenciando a importância de se implementar estratégias para a promoção da alimentação saudável. Apesar das limitações, os resultados deste estudo indicam que os fatores da dieta podem atuar de forma diferente nos vários tipos de tumores de cérebro; contudo, são necessários 38 Revista Baiana de Saúde Pública estudos com maior poder estatístico para avaliar a complexidade biológica das interações entre nutrientes e não-nutrientes presentes nos alimentos e outros fatores ambientais, que possibilitem melhor compreensão do papel da alimentação na etiologia desses tumores. REFERÊNCIAS 1. Hoffman S, Propp JM, Mccarthy BJ. Temporal trends in incidence of primary brain tumors in the United States, 1985-1999. Neuro Oncol. 2006;8(1):27-37. 2. Monteiro GTR, Koifman S. 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Dieta e fatores ambientais associados aos tumores de cérebro em adultos: um estudo caso-controle no Rio de Janeiro [Tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2000. 10. Conceição PSA. Exposição ocupacional a solventes orgânicos e tumores de cérebro [Tese]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2009. 11. Rêgo MAV, Souse CSC, Kato M, Carvalho AB, Loomis D, Carvalho FM. Non-Hodgkin’s lymphomas and organic solvents. J Occup Environ Med. 2002;44:874-81. v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 39 12. Schlesselman JJ. Case-control studies – design, conduct, analysis. Oxford University Press; 1982. 13. Monteiro JP, Pfrimer K, Chiarello P Coordenadoras; Vannucchi SH, Editor. Consumo alimentar. visualizando porções. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007. 14. Phillippi ST. Tabela de composição de alimentos: suporte para decisão nutricional. Brasília: Anvisa, Finatec/Nut-Unb; 2001. 15. Hosmer D, Lemeshow S. 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J Toxicol Environ Health B Crit Rev. 2009;12(3):175-87. 40 Revista Baiana de Saúde Pública 25. Huncharek M, Kupelnick B, Wheeler L. Dietary cured meat and the risk of adult glioma: a meta-analysis of nine observational studies. J Environ Pathol Toxicol Oncol. 2003;22(2):129-37. 26. World Health Organization (WHO). Diet, nutrition and the prevention of chronic diseases: report of a Joint WHO/FAO Expert Consultation. Geneva; 2003. Who Technical Report Series 916. 27. Willett W. Food-frequency methods. In: Willett W. Nutritional epidemiology. 2nd ed. New York: Oxford University Press; 1998. p. 74-100. Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 12.04.2011 v.35, n.1, p.26-41 jan./mar. 2011 41 ARTIGO ORIGINAL FATORES OCUPACIONAIS ASSOCIADOS À DOR MUSCULOESQUELÉTICA EM PROFESSORES Isadora de Queiroz Batista Ribeiroa Tânia Maria de Araújob Fernando Martins Carvalhoc Lauro Antonio Portoc Eduardo José Farias Borges dos Reisc Resumo Objetivou-se identificar fatores ocupacionais associados à dor musculoesquelética em professores. Realizou-se estudo de corte transversal, censitário, com professores da rede municipal de ensino fundamental de Salvador, Bahia. Foram avaliadas características do trabalho docente, ambiente laboral e dor musculoesquelética em membros inferiores, superiores e costas/ coluna. Foram estudados 4.495 professores. A prevalência de dor musculoesquelética foi de 41,1% em membros inferiores, 41,1% em costas/coluna e 23,7% em membros superiores. Estavam associadas à dor musculoesquelética, após ajuste por idade e sexo, em membros inferiores: ensinar em turma única, trabalhar em mais de uma escola, não possuir outra atividade remunerada além da docente e muito esforço físico no trabalho; em membros superiores: não possuir liberdade para tomar decisões, número médio de alunos ≥ 30 e muito esforço físico no trabalho; em costas/coluna: número de turnos trabalhado ≥ 2, ensinar em turma única, carga horária ≥ 40 horas e muito esforço físico no trabalho. Muito esforço físico no trabalho esteve associado à dor musculoesquelética nas três regiões corporais estudadas. Os achados apontam a necessidade de mudanças nas características e condições do ambiente de trabalho docente, para prevenir ou reduzir a ocorrência de sintomas musculoesqueléticos. Palavras-chave: Dor musculoesquelética. Ensino. Exposição ocupacional. Saúde do trabalhador. Dor. a b c Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] Núcleo de Epidemiologia, Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana (UESF). [email protected] Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] Endereço para correspondência: Rua Doutor Augusto Lopes Ponte, no 455 B, ed. Pacífico, apart. 103, Costa Azul, Salvador, Bahia, Brasil. CEP: 41760-035. [email protected] 42 Revista Baiana de Saúde Pública OCCUPATIONAL FACTORS ASSOCIATED TO MUSCULOSKELETAL PAIN AMONG TEACHERS Abstract This study aims to identify factors associated to occupational musculoskeletal pain in teachers, in the context of a cross sectional epidemiological study comprising all 4.495 teachers in the public basic education network from Salvador City, Brazil. The dependent variable was musculoskeletal pain in three body segments (lower limbs, upper limbs and back). Musculoskeletal pain was studied according to sociodemographic, workplace and teachers’ work organization characteristics. Logistic regression was performed to examine the association between pain and musculoskeletal features of teaching. The prevalence of musculoskeletal pain was 41.1% in the lower limbs, 41.1% in back and 23.7% in the upper limbs. The prevalence of musculoskeletal pain was strongly associated with several variables, after adjusting for age and sex: in the lower limbs: teaching only one class, working at more than one school, having no other productive activity besides teaching and excessive physical effort at work; in the upper limbs: no freedom to make decisions at work, more than ≥ 30 students in the classroom and excessive physical effort at work; and in the back: working ≥ 2 or more shifts, teaching only one class, weekly work burden ≥ 40 hours and excessive physical effort at work. Excessive physical effort at work was the only variable that was associated with musculoskeletal pain, in the three body segments investigated. These findings point out the need for changes in environmental characteristics and in the conditions of teachers’ work in order to prevent the occurrence of musculoskeletal symptoms. Key words: Musculoskeletal pain. Teaching. Occupational exposure. Occupational health. Pain. FACTORES DE TRABAJO ASOCIADOS AL DOLOR MUSCULOESQUELÉTICO ENTRE PROFESORES Resumen Este estudio tuvo como objetivo identificar los factores laborales asociados con el dolor musculoesquelético en profesores. Se realizó un estudio de corte transversal, censal, con los profesores de la red municipal de enseñanza primaria en Salvador, Bahia. Fueron evaluadas las características del trabajo docente, el ambiente de trabajo y el dolor musculoesquelético en extremidades inferiores, superiores y espalda/columna vertebral. Se estudió a 4.495 profesores. La prevalencia de dolor fue del 41,1% en los miembros inferiores, 41,1% en la espalda/columna vertebral y el 23,7% en las extremidades superiores. Estaban asociadas a dolor musculoesquelético, v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 43 después de ajustar por edad y sexo, en los miembros inferiores: la enseñanza a un único grupo, el trabajo en más de una escuela, no tener otra actividad remunerada que no sea la docente y mucho esfuerzo físico en el trabajo; en las extremidades superiores: no tener libertad para tomar decisiones, número promedio de alumnos ≥ 30 y esfuerzo físico excesivo en el trabajo; en la espalda/columna: número de turnos trabajado ≥ 2, sólo enseñar a un grupo, carga horaria ≥ 40 horas y esfuerzo físico excesivo en el trabajo. Mucho esfuerzo físico en el trabajo estuvo asociado al dolor mussculoesquelético en las tres regiones corporales estudiadas. Los resultados destacan la necesidad de cambios en las características y las condiciones del ambiente de trabajo docente para prevenir o reducir la aparición de los síntomas musculoesqueléticos. Palabras-clave: Dolor musculoesquelético. Enseñanza. Exposición ocupacional. Salud del trabajador. Dolor. INTRODUÇÃO Dor musculoesquelética é um importante problema de saúde pública. Atinge um contingente significativo de indivíduos em diversos grupos ocupacionais e produz elevados custos sociais e econômicos. Estes custos, associados aos impactos negativos sobre a qualidade de vida, têm impulsionado o interesse de pesquisadores e gestores no dimensionamento mais preciso do problema e na análise dos fatores, em especial os ocupacionais, relacionados à sua ocorrência.1 A dor musculoesquelética (DME) pode ser definida como um desconforto envolvendo músculos, ossos, articulações, tendões, ligamentos, bursas, fáscias musculares, tecido conjuntivo, cartilagens e aponeuroses.2 As doenças do sistema musculoesquelético são as causas mais frequentes de dor e podem levar à incapacidade ou limitação das atividades diárias.1,3 As estatísticas do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) mostram aumento da concessão de benefícios por Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). Segundo os dados disponíveis, esses distúrbios respondem por mais de 80% dos diagnósticos que resultaram em concessão de auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez pela Previdência Social em 2001.3 Evidências da relevância da DME entre os professores são largamente descritas na literatura.4-7 Um estudo com 212 professores de uma cidade do interior do Estado de São Paulo5 registrou prevalência de 90,4% de queixa de sintomas osteomusculares em alguma região do corpo nos últimos doze meses anteriores ao estudo, com ocorrência maior dos sintomas osteomusculares na região lombar (63,1%), torácica (62,4%), cervical (59,2%), ombros (58,0%) e punhos e mãos (43,9%). Dor nos últimos sete dias anteriores ao estudo foi referida por 64,3% dos professores, com destaque para dor em ombros (29,9%), cervical (28,7%), lombar (27,4%), torácica (27,4%) e punhos e mãos (14,6%).5 44 Revista Baiana de Saúde Pública Professores da rede particular de ensino básico de Vitória da Conquista na Bahia6 referiram elevada prevalência de dor musculoesquelética em braços e ombros (52,1%), costas (51,4%) e pernas (47,5%). Estudo com 383 trabalhadores chineses,7 incluindo professores, utilizando entrevista e exame físico, evidenciou prevalência de 40% de dor lombar, associada a posturas inadequadas adotadas no trabalho. Problemas associados à postura corporal destacaram-se entre os sintomas e queixas mais referidos por docentes de uma universidade pública da Bahia.8 Entre os entrevistados, as queixas de DME mais frequentes foram dor nas costas (30,8%), dor nas pernas (28,3%) e dor nos braços (16,7%). Diversos fatores ocupacionais estão associados aos agravos ao sistema musculoesquelético dos docentes, tais como: longa duração de tempo da aula em pé; carregamento de materiais didáticos; mobiliário escolar inadequado; tempo longo na posição sentada, correção de provas e exercícios; movimentos inadequados realizados durante as aulas, entre eles, flexão de tronco e flexão da coluna cervical para correção de tarefas e acompanhamento individual dos alunos, elevação de membros superiores e extensão da coluna cervical para escrever no quadro negro; elevada carga horária de aulas semanais; grande número de turmas; elevado número de alunos por turma e tempo insuficiente para repouso.5,9-12 Estudos sobre trabalho docente e saúde são relevantes, uma vez que os professores compõem contingente significativo de trabalhadores em todo o mundo. Em 2002, o censo escolar estimou 2,4 milhões de docentes, no Brasil, da pré-escola ao nível médio. Segundo dados da Sinopse Estatística do Professor, produzida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),13 o estado da Bahia tinha, em 2007, 145.084 docentes na educação básica (incluindo educação infantil, ensino fundamental e ensino médio), na rede pública e particular de ensino. A Bahia ocupava o terceiro lugar no ranking nacional com relação ao número de docentes no país, ficando atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais.13 Assim, a análise das condições de saúde e de trabalho desse grupo ocupacional pode ter amplo alcance, contribuindo para a proteção da saúde de um contingente significativo de trabalhadores. O estudo dos fatores ocupacionais associados aos sintomas musculoesqueléticos em professores poderá contribuir para intervenções mais adequadas no ambiente escolar e no trabalho docente, reduzindo e controlando a ocorrência desses agravos. Este estudo objetivou identificar fatores ocupacionais associados à dor musculoesquelética em professores, nas regiões de membros inferiores e superiores e costas/ coluna. v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 45 MATERIAL E MÉTODOS Realizou-se um estudo epidemiológico de corte transversal. Os dados analisados foram obtidos mediante um inquérito de caráter censitário dos professores da rede municipal de ensino de Salvador, com todos os tipos de vínculo de trabalho. A rede municipal de ensino abrange a educação infantil (pré-escola), ensino fundamental I (1ª a 4ª série) e ensino fundamental II (5ª a 9ª série), totalizando 365 escolas e 4.697 professores(as). Para a coleta de dados, foi utilizado um questionário estruturado composto dos seguintes blocos de questões: informações gerais, informações sobre o trabalho na rede municipal de Salvador (incluindo as condições do ambiente de trabalho na escola, características do trabalho docente), saúde física (morbidade referida e diagnósticos médicos prévios), saúde mental, alterações vocais e problemas de saúde. O questionário foi respondido durante o processo de recadastramento dos professores da rede municipal de ensino de Salvador realizado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC). Na coleta de dados, realizada pela SMEC, foi entregue ao professor um envelope contendo a ficha de recadastramento e o questionário da pesquisa, além de uma carta do Secretário de Educação e Cultura, informando que a participação do docente era de caráter voluntário. O questionário preenchido foi entregue à equipe da SMEC pelo professor em envelope lacrado e não identificado. O banco de dados gerado nesse inquérito foi disponibilizado para este estudo. No bloco de avaliação dos problemas de saúde, foram listadas as principais queixas de doenças descritas na literatura, incluindo aquelas de origem musculoesqueléticas. As queixas foram avaliadas segundo a sua frequência, utilizando-se uma escala tipo Likert que variou de 0 a 4: 0 (não sente), 1 (raramente sente), 2 (sente com pouca frequência), 3 (sente frequentemente) a 4 (sente muito frequentemente). Neste estudo, a variável dependente, dor musculoesquelética, foi avaliada em três regiões corporais: membros inferiores (dor nas pernas), membros superiores (dor nos braços) e costas/coluna. Considerou-se como presença de dor musculoesquelética quando o professor referiu dor “frequente” ou “muito frequente”. A ausência de DME foi considerada na situação de não sentir dor, sentir raramente ou pouco frequentemente. As características do trabalho docente avaliadas foram: a) variáveis intensificadoras do trabalho: tempo de trabalho como professor (em anos), nível das turmas (educação infantil, fundamental ou educação infantil e ensino fundamental), número de turmas em que ensinava (1 turma, 2 turmas ou mais), número de turnos em que ensinava (1 turno, 2 ou mais turnos), número médio de alunos por turma (até 30 alunos ou mais de 30 alunos), carga horária total de trabalho na rede municipal e fora da rede (horas/semana), trabalho em outra escola da rede municipal ou fora da rede (sim ou não), 46 Revista Baiana de Saúde Pública possuir outra atividade remunerada além da docente (sim ou não), escola próxima ou no mesmo bairro da residência (sim ou não); b) variáveis intensificadoras da carga física do trabalho: mobiliário (adequado ou inadequado), local específico para descanso (sim ou não), intervalo entre aulas suficiente para descanso (sim ou não), muito esforço físico no trabalho (sim ou não); c) variáveis da organização do trabalho: pressão da direção da escola (sim ou não), tempo suficiente para realização das tarefas (sim ou não), possibilidade de tomar decisões no trabalho (sim ou não) e pouca liberdade para decidir como fazer o próprio trabalho (sim ou não). Para análise dos dados, usou-se o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 11.0. Após as análises estatísticas descritivas e bivariadas, foi conduzida análise de regressão logística múltipla. Desenvolveu-se a análise multivariada separadamente para a dor nos membros inferiores, dor nos membros superiores e dor nas costas/coluna. O procedimento adotado foi a pré-seleção de variáveis independentes, sendo incluídas as variáveis ocupacionais associadas estatisticamente à DME na análise de regressão logística univariada, no nível de p ≤ 0,25. A observação da plausibilidade biológica entre a exposição e o efeito, baseada na literatura, também foi considerada nessa pré-seleção. O método de seleção de variáveis para compor o modelo de análise multivariada foi o de trás para frente (backward). Desta forma, as variáveis independentes pré-selecionadas foram incluídas na análise de regressão logística, ajustadas por sexo e idade, sendo retiradas, uma a uma, até que o modelo estivesse composto apenas por variáveis com valor de p ≤ 0,05. As variáveis ocupacionais pré-selecionadas e testadas na análise de regressão logística propriamente dita para a dor nos membros inferiores foram: número de turmas, carga horária semanal, local para descanso entre aulas, muito esforço físico no trabalho, pressão da direção da escola, tempo suficiente para realizar as tarefas, possibilidade de tomar decisões no trabalho e pouca liberdade para decidir como fazer o próprio trabalho. As variáveis pré-selecionadas para dor nos membros superiores foram: turno de trabalho, número de alunos, carga horária semanal, trabalho em outra escola, escola próxima ou no mesmo bairro da residência, local para descanso entre aulas, intervalo suficiente para descanso entre aulas, muito esforço físico no trabalho, tempo suficiente para realizar as tarefas e possibilidade de tomar decisões no trabalho. As variáveis pré-selecionadas para a dor nas costas/coluna foram: número de turnos, número de alunos, carga horária semanal, trabalho em outra escola, escola próxima ou no mesmo v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 47 bairro da residência, local para descanso entre aulas, intervalo entre aulas suficiente para descanso, muito esforço físico no trabalho, pressão da direção da escola, tempo suficiente para realizar as tarefas e possibilidade de tomar decisões no trabalho. Nos três modelos testados na análise de regressão logística para os desfechos de interesse, optou-se pela manutenção das variáveis sexo e idade em função da relevância apontada na literatura1,5 para dor musculoesquelética. Assim, os resultados finais obtidos foram ajustados por sexo e idade. Em função da elevada prevalência dos efeitos estudados (acima de 20%), foram estimadas as razões de prevalência, com base nos resultados gerados na análise de regressão logística, e calculados os seus respectivos intervalos de 95% de confiança, utilizando-se o método Delta.14 A análise foi feita com o uso do software R. O presente estudo seguiu as recomendações da Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, sendo assegurado o sigilo dos dados fornecidos e o uso das informações exclusivamente para atender aos objetivos da pesquisa. O projeto de pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia com Parecer/Resolução n.º 83/2007. RESULTADOS Foram estudados 4.495 professores dos 4.697 docentes da rede (proporção de participação de 95,14%). As mulheres representaram a maioria da população estudada (92,0%); 47,9% tinham 40 anos ou mais de idade, variando de 18 a 69 anos, a média de idade foi 40,05±9,4 anos; 80,8% dos professores declararam a sua cor/raça como preta ou parda; 80,3% possuíam nível superior completo ou incompleto; 47,3% eram casados; 64% possuíam filhos; destes, 40,4% tinham apenas um filho. As características das variáveis intensificadoras do trabalho docente nesta população são descritas a seguir. O tempo de trabalho como professor variou de 1 a 45 anos, média de 14±8,4 anos. A modalidade de ensino predominante foi a Fundamental I, da 1ª a 4ª séries (83,1%). A média de turmas por professor foi de 2,1±1,7, com turmas, em média, de 31,6 ±5,8 alunos por sala de aula. Um percentual de 53,6% dos professores ensinava em dois ou mais turnos e 57,7% trabalhavam ≥ 40 horas semanais. Trabalhavam em mais de uma escola 46,1% dos professores e 11,2% possuíam outra atividade remunerada, além da docência. Dos entrevistados, 59,8% referiram dificuldade de acesso à escola. A análise das características intensificadoras da carga física do trabalho mostrou que 41,2% dos professores consideravam o mobiliário inadequado; 70,9% responderam não possuir 48 Revista Baiana de Saúde Pública local específico para descanso e 66,6% relataram que o tempo nos intervalos das aulas não era suficiente para o descanso. Percentual significativo dos docentes (44%) considerava que o trabalho exigia muito esforço físico (Tabela 1). Tabela 1. Variáveis intensificadoras da carga física do trabalho dos professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006 Pressão da direção da escola foi referida por 19% dos docentes; 55,5% relataram não ter tempo suficiente para realizar as tarefas; 46% responderam que o trabalho não permitia tomar decisões por sua própria conta; e 18% referiram ter pouca liberdade para decidir como fazer o seu trabalho (Tabela 2). Entre os professores entrevistados, 55% afirmaram sentir, frequente ou muito frequentemente, dor musculoesquelética em alguma das três regiões do corpo estudadas. A prevalência de dor musculoesquelética foi de 41,1% para membros inferiores, 41,1% para costas/ coluna e 23,7% para os membros superiores. A análise bivariada da ocorrência de dor musculoesquelética segundo variáveis intensificadoras do trabalho (características gerais do trabalho) evidenciou que tempo de trabalho maior do que 14 anos, turma única e não ter outra atividade remunerada, além da docente, e trabalhar em mais de uma escola estavam estatisticamente associadas à dor em membros inferiores (Tabela 3). Estavam associados à dor nos membros superiores: tempo de trabalho maior do que 14 anos, número elevado de alunos por turma (> 30) e a docência ser a única atividade v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 49 remunerada. Para dor nas costas/coluna, as seguintes variáveis foram estatisticamente relevantes: ter turma única, trabalhar em dois ou mais turnos, carga horária semanal de 40 horas e não ter outra atividade remunerada, além da docência. Tabela 2. Variáveis da organização do trabalho dos professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006 Entre as variáveis intensificadoras da carga física no trabalho, na análise bivariada, observou-se associação de dor musculoesquelética com muito esforço físico no trabalho nas três regiões corporais estudadas, mobiliário inadequado (membros superiores e costas/coluna), não possuir local específico para descanso (membros inferiores e coluna). (Tabela 4). A prevalência de dor musculoesquelética, para as três regiões estudadas, associou-se estatisticamente a ser mulher e ter idade ≥ 40 anos. Entre as variáveis da organização do trabalho, observou-se associação entre DME e não possuir liberdade para tomar decisões no trabalho para os membros superiores (Tabela 5). As demais variáveis investigadas não estavam estatisticamente associadas às DME estudadas. Na análise de regressão logística múltipla, foram obtidos os seguinte resultados: • Dor nos membros inferiores. O modelo selecionado incluiu as seguintes variáveis: ter turma única, trabalhar em mais de uma escola, não possuir outra atividade remunerada e exigência de muito esforço físico no trabalho (Tabela 6). Os professores que consideraram que o seu trabalho exigia muito esforço físico apresentaram prevalência 1,5 vezes maior de dor nos membros inferiores quando comparados com os professores que não 50 Revista Baiana de Saúde Pública referiam esforço físico. Cabe destacar, para a variável “número de turmas em que ensinava”, que os achados revelaram associação negativa, ou seja, a prevalência de dor musculoesquelética foi menor entre os professores que ensinavam em duas ou mais turmas. Situação similar foi observada para a variável possuir outra atividade remunerada além da docente: a prevalência de dor musculoesquelética foi menor entre os professores que exerciam outra atividade remunerada. Tabela 3. Prevalência, razões de prevalência e respectivos intervalos de confiança de 95% de dor musculoesquelética em membros inferiores, membros superiores e costas/coluna segundo características intensificadoras do trabalho em professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006 v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 51 Tabela 4. Razões de prevalência e respectivos intervalos de confiança obtidos por análise bivariada, para dor musculoesquelética em membros inferiores, membros superiores e costas/coluna, segundo características intensificadoras da carga física no trabalho, sexo e idade em professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006 • Dor nos membros superiores. As variáveis ocupacionais estatisticamente associadas à dor nos membros superiores foram: número de alunos em sala de aula ≥ 30, não possuir liberdade para tomar decisões no trabalho, considerar que o trabalho exigia muito esforço físico (Tabela 6). Os professores que consideraram que o seu trabalho exigia muito esforço físico apresentaram prevalência de 1,4 vez maior de dor nos membros superiores quando comparados com os que não relataram muito esforço físico no trabalho. Ter turma com mais de 30 alunos elevou em 19% a dor em membros superiores quando comparado a quem tinha menos de 30 alunos por turma. 52 Revista Baiana de Saúde Pública Tabela 5. Prevalência, razões de prevalência e respectivos intervalos de confiança obtidos por análise bivariada, para dor musculoesquelética em membros inferiores, membros superiores e costas/coluna, segundo características da organização do trabalho em professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006 • Dor nas costas/coluna. As variáveis ocupacionais selecionadas no modelo multivariado para dor nas costas/coluna foram: trabalhar em dois ou três turnos, possuir turma única, possuir carga horária semanal de 40 horas ou mais e exigência de muito esforço físico (Tabela 6). Os professores que ensinavam em dois ou mais turnos apresentaram prevalência 2,2 vezes maior de dor nas costas/coluna do que os que ensinavam em apenas um turno. Os entrevistados que consideravam que o seu trabalho exigia muito esforço físico apresentaram 30% a mais de prevalência de dor em costas/coluna do que aqueles que referiram não realizar esforço físico no trabalho. O ajuste por idade e sexo não alterou significantemente as associações analisadas nos três segmentos considerados (Tabela 6). v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 53 Tabela 6. Resultados da análise de regressão logística múltipla para dor musculoesquelética em membros inferiores, membros superiores e costas/coluna em professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006 DISCUSSÃO Foi encontrada elevada prevalência de dor musculoesquelética entre os professores: mais da metade dos docentes afirmou sentir frequente ou muito frequentemente dor musculoesquelética em algum local do corpo. Estes achados são similares aos resultados de outros estudos com essa categoria.4-6,8 Fatores ocupacionais relacionados à intensificação da carga de trabalho e da carga física no trabalho mostraram-se associados à presença dessa sintomatologia, com destaque para o excesso de esforço físico. O presente estudo apresenta algumas limitações que devem ser consideradas na análise dos seus resultados. Uma limitação importante é o fato de o estudo ter sido realizado com uma base de dados secundários, na qual não constavam perguntas relevantes ao estudo de dor no 54 Revista Baiana de Saúde Pública sistema musculoesquelético, como a prática regular de atividade física, a presença de desvios posturais, forma do deslocamento para as escolas, número de meses que sentia a dor musculoesquelética; ou seja, variáveis mais detalhadas da carga física no trabalho, entre outras. Assim, não foi feita definição precisa das estruturas do sistema musculoesquelético como coluna cervical, coluna dorsal, coluna lombar, ao invés de costas/coluna; ombro, cotovelo, punho, no lugar de membros superiores; quadril, joelho e tornozelo, no lugar de membros inferiores. Desse modo, as regiões investigadas no estudo não permitem uma clara delimitação dos segmentos corporais, o que representa limitações na análise mais pormenorizada da região atingida, como recomendado em outros estudos.5,7 Existem também outras limitações relacionadas ao tipo de desenho de estudo adotado, de corte transversal. Este tipo de estudo não é capaz de esclarecer adequadamente a relação de causalidade entre as situações estudadas, exposições e efeitos. Assim, a relação cronológica entre os eventos não é facilmente detectável. Além disso, os professores curados ou falecidos não aparecem na casuística, no chamado viés de prevalência, o que pode ser um importante fator associado à subestimação dos eventos estudados. A despeito disto, as elevadas prevalências encontradas revelam tratar-se de eventos de grande magnitude entre os professores estudados. Deve-se considerar ainda que os dados de exposição atual podem não representar a exposição passada, trazendo, assim, limites adicionais para a correta classificação de expostos e não expostos. Contudo, a possibilidade de causalidade reversa, embora não possa ser descartada, parece pequena, uma vez que é pouco provável que professores com dor musculoesquelética sejam deslocados para atividades com maior nível de exigência (maior nível de exposição ocupacional).5,12 Observou-se que predominaram na população estudada as mulheres que se autodeclararam negras ou pardas, com nível superior, casadas e com um filho. O perfil dos professores estudados foi similar ao encontrado em outros estudos realizados com esses profissionais.5-7,11,15 O tempo de trabalho como professor apresentou uma média de 14 anos, revelando tratar-se de um grupo com razoável experiência docente. A maioria dos professores lecionava em mais de dois turnos, no nível fundamental I, em duas turmas ou mais, com mais de trinta alunos por turma, com carga horária de 40 ou mais horas semanais. Essas características laborais configuram desempenho profissional marcado por intensa jornada de trabalho, características também semelhantes às encontradas em outros estudos com a categoria docente.15-17 Além disso, em relação ao ambiente escolar, a maioria dos professores considerava que não havia tempo nem local adequados para o descanso nas escolas, dados citados anteriormente na literatura como v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 55 características do trabalho na rede pública de ensino.18 Estes dados mostraram que os professores desenvolviam as suas atividades em ambiente laboral desfavorável, com extensas jornadas de trabalho. Essa combinação de fatores torna os docentes vulneráveis ao acometimento de agravos à saúde, entre eles os sintomas musculoesqueléticos. As elevadas prevalências de DME observadas fortalecem essa hipótese. A coluna e os membros inferiores foram os locais do corpo com mais altas prevalências de dor musculoesquelética; esses achados são consistentes com os de outros estudos com professores.5,6,8 A dor musculoesquelética foi mais elevada entre as mulheres, dado também semelhante ao encontrado em outras pesquisas.5,17,19 Uma explicação possível para esse resultado pode ser a dupla jornada ou sobrecarga doméstica realizada pelas mulheres, que, após um dia de trabalho, quando chegam a suas casas, continuam realizando tarefas domésticas, aumentando assim a jornada diária de atividades e diminuindo o tempo para repouso, lazer e a necessária reposição de energias. Um importante mecanismo que influencia os efeitos do estresse sobre a saúde diz respeito à duração do estímulo e à capacidade de o indivíduo acalmar-se após contatos estressantes. Em situações caracterizadas por um processo de cansaço contínuo, com poucas possibilidades de recomposição das energias e relaxamento, a sobrecarga no trabalho induz a um processo lento até a acalmia. A segunda jornada exercida pelas mulheres no âmbito doméstico diminui a possibilidade de relaxamento em casa. Ao assumir novas tarefas, as mulheres ampliam o seu tempo total em atividade, elevando a jornada diária de trabalho. Pesquisas neuroendócrinas têm dado plausibilidade biológica a essa hipótese. Estudo que comparou níveis hormonais relacionados ao estresse de homens e mulheres observou que, durante o horário de trabalho, não havia diferenças marcantes nas respostas ao estresse entre os sexos, mas que, ao retornarem para casa, se observavam padrões hormonais distintos segundo o gênero: os homens retornavam aos seus níveis basais e as mulheres mantinham a tendência à elevação da produção de corticosteroides e também da pressão arterial sanguínea.20 Além da hipótese de que o trabalho doméstico constitui uma nova jornada de trabalho e que, aumentando a exposição, aumenta os efeitos sobre a saúde, outra hipótese relevante a ser considerada é que as mulheres, nas atividades de ensino, possuem carga de trabalho docente maior do que os homens. Um estudo com professores da rede municipal de Vitória da Conquista revelou que as mulheres tinham carga horária de trabalho semanal mais elevada do que a dos homens, além de serem as principais responsáveis pelas tarefas domésticas.17 A idade, como descrito na literatura,19,21 também esteve associada aos sintomas musculoesqueléticos, uma vez que, com o envelhecimento, há um desgaste natural dos sistemas 56 Revista Baiana de Saúde Pública do corpo. Cabe mencionar os resultados obtidos na análise de regressão logística. Estes revelaram que as características do trabalho docente mais relevantes, permanecendo nos modelos finais selecionados, mantiveram-se associadas à DME, mesmo após ajuste por idade e sexo. Na análise bivariada, maior prevalência de dor musculoesquelética nas regiões estudadas foram observadas entre docentes que lecionavam em 2 ou 3 turnos, tinham apenas uma turma, com 30 ou mais alunos, carga horária semanal de 40 horas ou mais, não possuíam outra atividade remunerada além da docente, trabalhavam em mais de uma escola, não possuíam liberdade para tomar decisões no trabalho e consideravam que o seu trabalho exigia muito esforço físico. A forma na qual o trabalho se organiza e a intensidade das cargas de trabalho do professor podem ser fatores determinantes no adoecimento do sistema musculoesquelético.22 Sabe-se que os fatores biomecânicos envolvidos nas demandas físicas do trabalho, dentre elas a realização e repetitividade dos movimentos e as posturas inadequadas, têm relação com a ocorrência de lesões musculoesqueléticas.8,9,22 As variáveis ocupacionais – intensificadoras do trabalho, da carga física no trabalho e da organização do trabalho – associadas à dor musculoesquelética revelaram um quadro de atividade docente marcado pelo sobre-esforço. Ensinar em mais de dois turnos, com carga horária semanal de 40 ou mais horas, ter turma única e considerar que o trabalho exigia muito esforço físico foram identificados como fatores associados à dor musculoesquelética nas costas/coluna. A necessidade de trabalhar por até três turnos, com carga horária semanal de 40 ou mais horas, exige do profissional grande dispêndio de força muscular e energia corporal para cumprir essa alta exigência do trabalho. Além disso, muitas vezes, não há na escola local específico para descanso nos intervalos entre as aulas, tornando o professor vulnerável ao acometimento de dor nas costas. Pesquisas sobre saúde docente4,8,11 apontam o mobiliário inadequado como fator agravante para o desenvolvimento de dor na região das costas/coluna, o que se soma à longa jornada de trabalho. O mobiliário inadequado exige do professor a manutenção de posições incorretas. Muitas vezes, as cadeiras e mesas são baixas para a estatura do professor, tornando as flexões de quadril e joelho excessivas para sentar-se na cadeira e também a flexão da coluna no momento de escrever nas mesas. Pôde-se observar, nas escolas da rede municipal de ensino de Salvador, que o mobiliário é inadequado (mesas e cadeiras pequenas) e falta manutenção. Dados de literatura atestam que um posicionamento corporal comumente adotado durante as aulas é a posição ortostática. Esta posição relaciona-se com a dor na coluna, uma vez que, dessa forma, o corpo exerce carga sobre os discos intervertebrais, achatando-os e diminuindo v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 57 a sua hidratação. Uma pesquisa apontou que o docente passa até 95% do tempo de aula em pé.23 Na observação do trabalho dos professores de Salvador, percebeu-se que o professor fica nessa posição na maior parte do tempo em sala de aula. Também é apontado pela literatura que outro movimento realizado com muita frequencia pelos docentes é o de flexão do tronco, principalmente no momento de tirar dúvidas individuais dos alunos. Em um estudo sobre exposição física e lombalgia, observou-se que o movimento de flexão do tronco estava associado à queixa de dor da coluna lombar,24 evidenciando que a manutenção de postura frequente com flexão do tronco representa exposição importante para dor na coluna. O grande número de turnos e a elevada carga horária, estando o professor na maior parte desse tempo na posição de pé, tornam a atividade docente uma tarefa laboral com exigência de muito esforço físico. Isso pode contribuir, como encontrado neste estudo, para o acometimento de agravos ao sistema musculoesquelético, principalmente na região das costas/coluna. Para a prevenção de acometimentos na região de costas/coluna é recomendável a redução da carga horária total de trabalho, o que pode ser viabilizado por um número menor de turnos trabalhados e menor carga horária semanal, diminuindo, assim, a continuidade e a extensão da exposição ao esforço físico. Entretanto, um grande obstáculo para que a redução da carga total de trabalho ocorra está relacionado à remuneração na educação. O baixo salário recebido pelos professores, principalmente na rede pública de ensino, leva-os a acumular vínculos empregatícios, na tentativa de obter maior renda familiar. Portanto, para que seja possível atuar preventivamente com relação a este aspecto, são necessárias medidas que elevem os salários pagos aos professores. As variáveis que melhor explicaram a presença de dor musculoesquelética nos membros inferiores foram: ensinar em apenas uma turma, trabalhar em mais de uma escola, não possuir outra atividade remunerada além da docente e a exigência de muito esforço físico no trabalho. A necessidade de o professor ensinar em mais de uma escola mostra a tendência de o docente permanecer por longos períodos durante a jornada de trabalho na posição ortostática para a realização das suas atividades, somando-se à necessidade de deslocar-se de uma escola para outra, na maioria das vezes por meio de caminhadas ou do uso de transporte público. Nesta situação, o professor, após o período de atividade em pé em sala de aula, substitui o tempo de repouso pelo deslocamento para uma nova escola, mantendo as exigências físicas sobre o próprio corpo. Esta combinação de fatores pode contribuir para sobrecarga dos membros inferiores. Além dos fatores ocupacionais citados neste estudo, a literatura mostra que as dores musculoesqueléticas nos membros inferiores também se relacionam ao posicionamento em pé no 58 Revista Baiana de Saúde Pública maior tempo da aula. Para manter o corpo na posição ereta, os membros inferiores precisam manter a contração de alguns grupos musculares e esta situação leva à fadiga muscular. Nota-se que, com o passar do tempo da aula, após algum tempo em pé, o professor tende a descarregar o peso do corpo apenas em uma perna, para descansar o membro inferior contralateral. Esta posição sobrecarrega as articulações do quadril e do joelho que ficam desalinhadas e comprimidas. A longo prazo, tal atitude, associada a outros fatores, como a falta de atividade física, pode levar o trabalhador a desenvolver desgaste das articulações, contribuindo para a ocorrência de dor musculoesquelético nos membros inferiores.23 A alternância de posicionamento em pé e sentado durante as aulas é, então, uma importante medida de prevenção. Registra-se, porém, que um empecilho para a alternância de posição em pé-sentado é a indisciplina na sala de aula, como apontam dados da literatura. Em um estudo sobre sofrimento no trabalho docente realizado na rede municipal de ensino de Montes Claros, Minas Gerais,25 observou-se que o professor emprega a maior parte do tempo de aula adotando medidas para garantir a disciplina dos alunos. Assim, permanecer em pé acaba sendo uma estratégia usada também para manter a disciplina, uma vez que permite maior e melhor visualização dos alunos. A dor musculoesquelética nos membros superiores é referida em muitos estudos com professores.4,6,8,11 O número médio de alunos em sala de aula maior ou igual a 30, não ter liberdade para tomar decisões no trabalho e o excesso de esforço físico no desempenho da tarefa foram as variáveis associadas a tal queixa. Uma revisão da literatura sobre dor em ombros e fatores ocupacionais revelou que o transporte de peso, a presença de esforço físico no trabalho, a elevação dos membros superiores acima do nível dos ombros estavam associados a esse sintoma.26 Pode-se observar que todos esses fatores estão presentes na rotina do professor da rede municipal de ensino de Salvador: o transporte de materiais didáticos para a sala de aula, a presença de muito esforço físico no trabalho e a necessidade de elevar os membros superiores acima do nível dos ombros para escrever no quadro negro. Com relação ao número de alunos em sala de aula, a recomendação internacional é que não se ultrapasse 25 por turma, pois, acima desse número, ficam comprometidas a qualidade do aprendizado e a saúde do professor.27 Quanto maior o número de alunos, maior será a quantidade de materiais carregados pelo professor para a sala de aula e também maior será o tempo necessário para corrigir e preparar atividades. A falta de liberdade para tomar decisões no trabalho associou-se à dor nos membros superiores dos professores de Salvador. A literatura aponta que fatores psicossociais ligados à forma de organização do trabalho podem contribuir para intensificar exposições ocupacionais relacionadas v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 59 às exigências do processo de trabalho desses profissionais.22 Esses fatores são apontados como indicadores de estresse, o que reforça a ideia da docência como uma profissão física e mentalmente estressante.12,15 Além dos fatores ocupacionais acima descritos, a literatura aponta que o movimento de escrever no quadro negro é fator de sobrecarga para os membros superiores do docente. Na elevação do braço, para escrever no quadro negro, as estruturas da articulação do ombro ficam comprimidas e a irrigação sanguínea dos músculos da região fica diminuída. Tais alterações levam a lesões musculares e ao desgaste articular, gerando dor musculoesquelética e futuras patologias no sistema musculoesquelético.2,5 Curiosamente, ensinar em mais de uma turma associou-se negativamente à dor musculoesquelética nas regiões de membros inferiores e costas. Uma possível explicação para este achado inusitado pode ser o fato de que o professor com maior número de turmas desloca-se mais dentro da própria escola durante a jornada de trabalho, mantendo-se por menos tempo em posição estática do que um professor que leciona por todo o turno na mesma sala de aula. Esta é uma característica da atividade dos professores de disciplinas como educação física, línguas estrangeiras e artes. Deve-se registrar que não se observou diferença na carga horária entre os professores com turma única ou com duas ou mais turmas, portanto, mantidas as cargas horárias similares, a possibilidade de se movimentar mais frequentemente pode, de fato, ser uma explicação alternativa para esse achado. O professor que possui turma única realiza o trabalho de forma mais estática quando comparado ao professor que ensina em mais de uma turma. Contudo, este é um aspecto que merece ser melhor investigado em estudos futuros. Possuir outra atividade remunerada além da docência foi fator associado à menor ocorrência de dor musculoesquelética na região dos membros inferiores. Isto pode dever-se ao fato de o professor posicionar-se de maneira diferente na outra atividade remunerada, com a possibilidade de alternância de posicionamentos e até mesmo de possuir um local para descanso nesse outro ambiente laboral, tornando a jornada de trabalho diária menos estática e com mais condições de repouso do que a de um professor que apenas ministre aulas durante todo o dia. O esforço físico no trabalho destacou-se como condição associada à presença de dor musculoesquelética nas três regiões analisadas: nos membros inferiores e superiores e nas costas/ coluna. A carga física no trabalho está associada à dor musculoesquelética em professores. Na população estudada, aproximadamente metade dos docentes considerou que 24 o seu trabalho exigia muito esforço físico. O excesso de esforço físico no trabalho docente pode ser resultado de uma série de características comumente citadas pelos professores nas pesquisas 60 Revista Baiana de Saúde Pública como sobre-esforço na atividade, a exemplo de: elevada carga horária com grande número de turmas e de alunos por turma; ambiente de trabalho inadequado, com altas temperaturas, ruído excessivo, falta de local para descanso, mobiliário inadequado das salas.4,5,10,27,28 Nesta pesquisa, observou-se que muitas dessas características faziam parte da rotina de trabalho dos docentes da rede municipal de ensino de Salvador. Nesta pesquisa, foram observadas altas prevalências de dor musculoesquelética nos membros superiores, inferiores e nas costas/coluna entre os docentes de Salvador. As características do trabalho docente, marcadas por elevadas cargas de trabalho e condições do ambiente escolar desfavoráveis, associaram-se com dor musculoesquelética entre os professores, com destaque para a presença de muito esforço físico no trabalho, que se mostrou como o fator presente para dor no sistema musculoesquelético nos três segmentos corporais investigados. Diversas medidas preventivas devem ser adotadas pelas escolas, no intuito de diminuir as altas prevalências de dor musculoesquelética entre docentes. Entre as mudanças no ambiente escolar, pode-se destacar: tablados próximos ao quadro negro, para que o professor não precise realizar movimentos de grandes amplitudes dos membros superiores; armários nas salas de aula, para que o professor possa deixar parte do material didático, evitando deslocamento com carregamento de peso; maior adequação do mobiliário das salas de aula, com mesas altas e espaçosas, cadeiras com encosto para costas e membros superiores.29 A disponibilidade de local adequado para descanso entre as aulas, em salas reservadas, com cadeiras confortáveis, é outra medida que pode proteger o sistema musculoesquelético. Além disso, a valorização do docente, mediante pagamento de melhores salários, criação de plano de carreira, oferta de cursos de capacitação e educação continuada, aumento do número de docentes por escola e diminuição do número de alunos por turma, maior tempo para o repouso entre as aulas, são medidas relevantes para a prevenção de dor musculoesquelética. O estímulo à participação da comunidade, com maior responsabilização das famílias no resultado da educação, também são medidas que podem auxiliar na conquista de espaços laborais saudáveis na escola. Mostra-se também importante a estruturação de processos de trabalho que estimulem o professor a realizar alternância das posições em pé e sentado durante a aula, a evitar realizar, com frequência, movimentos lesivos, como a flexão de tronco, e a manter, por longos períodos, os membros superiores elevados para escrever no quadro. A adoção dessas medidas pode representar prevenção no surgimento de casos novos de dor musculoesquelética entre os docentes e melhora dos sintomas já instalados. v.35, n.1, p.42-64 jan./mar. 2011 61 Esta pesquisa possibilitou dimensionar o problema referente à dor musculoesquelética entre os professores. Além disso, caracterizou-se como de amplo escopo, uma vez que entrevistou aproximadamente 4.500 professores, quase a totalidade dos docentes da rede municipal de ensino de Salvador. Ao identificar fatores ocupacionais associados à ocorrência de dor musculoesquelética, fortalece a necessidade da adoção de medidas de prevenção aos agravos do sistema musculoesquelético, com o intuito de diminuir os afastamentos do trabalho e aposentadorias precoces, bem como melhorar a qualidade de vida e de trabalho do docente. REFERÊNCIAS 1. Punnet L, Wegman DH. Work-related musculoskeletal disorders: the epidemiologic evidence and the debate. J Electrom Kinesiol. 2004;14:13-23. 2. Moore KL, Dalley AF. Anatomia orientada para a clínica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001. p. 170-93. 3. Brasil. Ministério da Saúde. Doenças relacionadas ao trabalho. Manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília; 2001. p. 425-67. 4. 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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 13.04.2011 64 ARTIGO ORIGINAL Revista Baiana de Saúde Pública SENTENÇA TRABALHISTA: BASES RACIONAIS DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS CASOS DE ACIDENTE DE TRABALHOa Nara Eloy Machado da Silvab Mônica Angelim Gomes de Limac Cláudio Fortes Garcia Lorenzod Resumo O trabalho, a depender das condições em que é exercido e do tipo de atividade, repercutirá de forma negativa sobre a saúde dos trabalhadores e desencadeará agravos e danos que exigirão a reparação ou compensação. O objetivo deste estudo é analisar as bases racionais das decisões dos juízes trabalhistas nos casos de acidente de trabalho, investigando os elementos e pressupostos utilizados pelo magistrado na construção do ato de julgar, no deferimento do pedido. O trabalho foi desenvolvido por meio de análise documental exploratória, utilizando-se metodologia qualitativa, para identificar os sentidos da palavra escrita dos magistrados trabalhistas mediante a Análise do Discurso. A fonte documental é composta por sentenças da Justiça do Trabalho de Salvador, Bahia. As análises permitiram a formulação de categorias das bases racionais que indicaram a dificuldade dos magistrados em estabelecer um conceito de dano; a necessidade de tornar a doença “invisível” em visível, como meio de prova; a complexidade em se estabelecer parâmetros para a determinação dos valores indenizatórios e a ratificação da defesa da prevenção. Palavras-chave: Acidentes de trabalho. Saúde do trabalhador. Decisões judiciais. Direito Sanitário. a b Órgão Financiador: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Professora Assistente do Curso de Tecnólogo em Gestão de Cooperativas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). d Professor Adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília. Doutorado em Ética aplicada à Ciências c Clínicas pela Universidade de Sherbrook, Canadá. Endereço para correspondência: Rua Valdir Pereira de Oliveira, n.º 235, Ana Lúcia, Cruz das Almas, Bahia. CEP: 44380-000. [email protected] v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 65 LABOR SENTENCES: THE RATIONAL BASIS OF JUDGMENTS IN CASES OF OCCUPACIONAL ACCIDENT Abstract Work, depending on the conditions under which it is exercised and the type of activity, reflects negatively on the health of workers, causing injuries and damage that require repair or compensation. The aim of this study is to analyze the rationale of the decisions of judges in cases of labor accidents at work, investigating the factors and assumptions used by the magistrate in the construction of the act of judging in the sense of acceptance. The work was developed through exploratory analysis of documents, through qualitative methodology to identify the meanings of the written word through the labor of judges Discourse Analysis. The source document consists of sentences of the Labour Court in Salvador, Bahia. The analysis allows the formulation of categories of rationales that indicated the difficulty magistrates had to establish a concept of damage, the need to make an “invisible” disease visible, as evidence; the difficulty to establish parameters for determination of reparation and the need for defense of prevention. Key words: Occupacional accident. Occupational health. Court decision. Law. VEREDICTO DEL TRABAJO: BASES RACIONALES DE LAS DECISIONES JUDICIALES EN CASOS DE ACCIDENTES DE TRABAJO Resumen El trabajo, en función de las condiciones en que se ejerce y el tipo de actividad, repercutirá de forma negativa en la salud de los trabajadores, y desencadenará lesiones y daños que exigirán reparación o indemnización. El objetivo de este estudio es analizar las bases racionales de las decisiones de los jueces del trabajo en los casos de accidentes laborales, investigando los elementos y suposiciones previas utilizadas por el juez en la construcción del acto de juzgar en el sentido de lo solicitado. El trabajo fue desarrollado por medio de análisis exploratorio de los documentos, utilizando metodología cualitativa para identificar los significados de la palabra escrita de los magistrados del trabajo mediante el Análisis del Discurso. El documento original se compone de sentencias del Tribunal del Trabajo de Salvador, Bahia. Los análisis permitieron la formulación de categorías de las bases racionales que indicaron la dificultad de los magistrados para establecer un concepto de daño, la necesidad de hacer que la enfermedad “invisible” se torne visible, como medio de prueba; la dificultad de establecer parámetros para la determinación de los valores de indemnización y la necesidad de defensa de la prevención. Palabras-clave: Accidentes laborales. Salud del trabajador. Decisiones judiciales. Derecho Sanitario. 66 Revista Baiana de Saúde Pública INTRODUÇÃO Os avanços tecnológicos e científicos que envolvem o modo de produção capitalista reverteram-se em benefícios para a humanidade, mas também geraram problemas econômicos, sociais, jurídicos e sanitários. No âmbito do trabalho, o que se tem visto é a degradação do meio ambiente laboral, a negação dos fatores de segurança e saúde do trabalhador e a sujeição do indivíduo a qualquer tipo de trabalho. A precarização do trabalho, a intensificação de ritmos, a perda de postos de trabalho e a exigência da polivalência ampliaram e agravaram o quadro de doenças e riscos de acidentes nos espaços sócio-ocupacionais.1 O ambiente de trabalho é circundado por diversos fatores que afetam a saúde, sejam eles químicos, físicos ou biológicos, além do medo do desemprego, das pressões psicossociais, da lógica de organização e produção do capital que põem em segundo plano as questões relacionadas à saúde e segurança do trabalho.2 O ambiente do trabalho consubstancia-se em uma esfera de concretização das relações de trabalho e há uma correlação entre o local e a atividade executada, as condições e o desempenho do trabalho, devendo considerar-se ainda os riscos que envolvem o trabalhador e podem causar danos físicos, psíquicos e sociais.3 Os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais são os principais danos que podem advir da execução da atividade laboral, seja pelas más condições do ambiente de trabalho, seja por exposição a produtos maléficos à saúde, seja pelas pressões psicológicas existentes na relação de trabalho. A ocorrência desses danos gera reflexos traumáticos que vão desde a invalidez temporária até a morte, com repercussões danosas para o trabalhador, a sua família, o empregador e a própria sociedade.4 Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1985, um trabalhador morria a cada três minutos no mundo, vítima de acidente de trabalho ou doença profissional, e a cada segundo quatro trabalhadores sofriam algum tipo de lesão ocupacional. Em 2003, novas estatísticas foram divulgadas pela OIT, que indicaram a ocorrência de 270 milhões de acidentes de trabalho por ano, o que representou uma média de 740 mil acidentes por dia ou nove por segundo.5 No Brasil, a realidade dos acidentes de trabalho também é alarmante. Dados oficiais de 2005 revelam que ainda ocorrem mais de sete mortes a cada dia por acidente de trabalho. Some-se a isto o fato de que as estatísticas divulgadas não refletem a real situação do problema, pois são captadas nas informações prestadas pelo empregador; os registros atingem apenas 50% dos acidentes ocorridos, ou seja, os outros 50% dos acidentes são subnotificados. Outro ponto que contribui para a subnotificação diz respeito às doenças ocupacionais que são diagnosticadas e tratadas como doenças comuns.5 v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 67 Assim sendo, as condições de trabalho, inseridas num contexto político neoliberal do lucro pelo lucro, podem produzir efeitos prejudiciais à saúde do trabalhador, os quais geram danos que muitas vezes prejudicam a sua capacidade laboral e a qualidade de vida, havendo também uma ofensa à esfera de direitos, em especial do direito à saúde e do direito ao trabalho. Nesta ordem, havendo o desrespeito ao direito à saúde, à integridade física ou psíquica do empregado, nasce, para este, o direito de ver reparado ou compensado o dano sofrido injustamente; para o empregador lesionante, surge o dever de indenizar tais prejuízos, que, antes disso, deveriam ser prevenidos. Numa ocorrência deste tipo, o empregado que sofreu o acidente de trabalho, vítima da lesão, recorre ao Poder Judiciário trabalhista. O Estado, representado pelo Juiz do Trabalho, tem o dever de pacificar a demanda por meio de uma sentença judicial, em que se busca a compensação ou reparação do dano sofrido pelo trabalhador. No caso específico de acidentes de trabalho (dano à saúde do trabalhador), será o magistrado do trabalho quem decidirá acerca do pleiteado em juízo. O juiz, como ente estatal e de maneira imparcial, é encarregado da solução dos conflitos surgidos do convívio social, mediante a aplicação das leis e princípios, a fim de solucionar o pedido formulado, exercido pela ação, até o provimento final (sentença), ato de encerramento da atuação judicial, garantindo ao cidadão uma atuação pacificadora, legal e justa.6 A rede interligada que se forma entre fato, demanda, magistrado (Estado) e decisão envolve todo o processo de racionalização do ato de julgar. Nesta seara, defende-se que apenas a atuação do juiz “[...] livre de preconceitos, livre de juízos apriorísticos, livre de ideias estereotipadas, livre das injunções facciosas, poderá encontrar a verdade”.7:2 Ao analisarem o mundo do juiz, autores questionam acerca da compreensão interna do ato de julgar: “Que circunstâncias podem mobilizar o magistrado quando julga? Quais as ingerências internas desse processo? Como se situar na condição de quem vai declarar o direito de alguém do qual é semelhante, uma vez que envolve uma dinâmica de humano para humano?”8:1 No caso específico dos magistrados trabalhistas, há ainda uma questão envolvida. A competência da Justiça do Trabalho foi ampliada com a Emenda Constitucional N°. 45/04, que incluiu o julgamento dos acidentes de trabalho. Aos juízes do trabalho, até então, não competia julgar as demandas decorrentes de acidente de trabalho e doenças ocupacionais. Nesse contexto, duas situações colocaram-se em paralelo: primeiro, a explosão de uma demanda reprimida, vez que diversos sindicatos ajuizaram ações de natureza acidentária perante a Justiça Laboral; segundo, os juízes trabalhistas não tinham afinidade com a temática e precisaram adaptar-se às exigências da nova matéria no âmbito da sua atuação, o que exigia conhecimento e sensibilidade específicos para que fosse bem encaminhada. 68 Revista Baiana de Saúde Pública Nessa esteira, ao exercer a sua função jurisdicional e buscar a solução de um conflito trabalhista, o magistrado se pronuncia por meio da sentença. Apresentadas as razões finais e rejeitada a última tentativa de conciliação, o juiz proferirá decisão que deverá atender ao cumprimento da lei, bem como ao interesse social. A elaboração da sentença baseia-se no método dialético, ou seja, há uma síntese entre opostos, a fim de se conformar o raciocínio do julgador.9 Assim, a tese refere-se ao pedido do trabalhador e a antítese reflete a defesa do empregador, buscando provar que o empregado não tem o direito. Com base nelas e observando tanto as provas produzidas quanto o contexto social e o dano causado, o juiz elabora a síntese que se expressa na sentença proferida. É preciso ressaltar que, embora o magistrado fundamente-se naquilo que está presente no processo para julgar o caso concreto, é essencial entender o contexto em que o juiz trabalhista está inserido. Há um círculo de pressões em torno da figura do julgador, seja pela expectativa do empregado em ver o seu problema solucionado, seja pelas críticas de morosidade, seja pelas pressões econômicas, seja, por fim, a sua própria personalidade, que é formada com base nos valores que envolvem o seu cotidiano. Assim, na análise das sentenças trabalhistas em casos de acidentes de trabalho é essencial estar atento a todos esses elementos que podem, de alguma forma, refletir sobre o direcionamento a ser dado à interpretação dos dados coletados. O presente trabalho tem como objetivo compreender as bases racionais das decisões de juízes trabalhistas nos casos de acidente de trabalho, a fim de identificar quais são os elementos utilizados pelo magistrado na construção do ato de decidir, investigando os pressupostos, tais como dogmatismo legal e provas utilizados pelo magistrado na construção do ato de julgar e no deferimento do pedido indenizatório. METODOLOGIA O estudo foi desenvolvido por meio de análise documental exploratória, com a utilização de metodologia qualitativa, em que se objetivou identificar os sentidos da palavra escrita dos magistrados trabalhistas por meio da Análise do Discurso (AD). A opção por realizar um trabalho de cunho exploratório foi ensejada pela carência de estudos que utilizassem a sentença trabalhista como fonte documental somada à análise do discurso expressado nesse produto final do raciocínio do juiz. Assim, embora a sentença seja um dos documentos mais relevantes do processo e também o mais ansiado pelas partes envolvidas no conflito, ainda não há, no Brasil, uma tradição de estudos que envolvam essa fonte documental. Por isso, optou-se por explorar tais documentos no intuito de identificar e delinear os elementos que conformam as bases racionais dos v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 69 julgamentos nos casos de acidente de trabalho. O estudo de cunho exploratório sobre a temática aqui trabalhada mostra-se importante, na medida em que busca traçar um panorama dos fundamentos utilizados nas sentenças trabalhistas, o qual servirá como pano de fundo para futuras pesquisas que confrontem a opinião dos juízes e aquilo que realmente consta nos discursos contidos nas sentenças. Com efeito, os fenômenos relacionados à saúde e às relações jurídicas que se estabelecem em torno dela são complexos e exigem a exteriorização do ponto de vista do enunciador do texto analisado. A Análise do Discurso trabalha com o sentido do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido; pode-se afirmar que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ideologia+história+linguagem do ator social.10 A palavra expõe as contradições e os conflitos existentes em uma dada realidade, pois é construída com base no emaranhado de fios ideológicos que expressa o repertório de uma época e de um grupo social; portanto, a compreensão do discurso exige a compreensão das relações sociais que ele expressa.11 A interpretação dos discursos escritos foi apoiada na leitura exaustiva do material, que permitiu o estabelecimento de categorias de análise e a identificação das impressões observadas, buscando-se a coerência interna dos textos e o contexto em que está inserida a documentação analisada. • Fonte Documental A pesquisa foi realizada junto à Justiça do Trabalho com jurisdição sobre a cidade de Salvador e Lauro de Freitas, no estado da Bahia, vinculada ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 5ª Região. A fonte documental catalogada foi constituída por sentenças proferidas pelos juízes das 39 Varas do Trabalho do TRT. As sentenças analisadas encontram-se registradas na Base de Decisões do TRT 5ª Região, um banco de dados público, acessado no site www.trt5.jus.br. A consulta à base de decisões foi efetivada mediante a identificação do nome de cada juiz no campo específico, já que as sentenças encontram-se registradas por juiz que a prolatou. Feito isso, foram utilizados, na pesquisa, os termos “acidente de/do trabalho”, “dano moral”, “doença ocupacional/ profissional”, primeiramente isolados e depois combinados. Ao serem inseridos os termos pesquisados, a base de dados devolvia as sentenças encontradas. O arquivo era então aberto e observava-se o pedido, identificando-o como de indenização envolvendo acidente de trabalho ou doença ocupacional. Em seguida, partia-se para a parte dispositiva da sentença, em que se buscava saber se era procedente. 70 Revista Baiana de Saúde Pública • Descrição da Amostragem O primeiro passo para a constituição da amostra foi a definição do número de sentenças a serem coletadas em cada uma das 39 Varas. Via de regra, cada Vara possui dois juízes atuando, sendo um deles o juiz titular e o outro o juiz substituto. A fim de que fosse coletada ao menos uma sentença por juiz, foi determinado o número de duas sentenças por Vara, cada uma referindo-se ao titular e ao substituto, respectivamente. O critério de escolha de cada sentença foi que tivesse como pedido, principal ou cumulado, indenização por danos causados em decorrência de acidente de trabalho, devendo o pedido ser considerado procedente. O critério de exclusão foi que a sentença não poderia ser nem improcedente nem extintiva do processo. Com base nesses procedimentos, obteve-se um total de 77 sentenças, pois em uma das varas foi encontrada apenas uma sentença que atendeu aos requisitos definidos. O período de datas das sentenças foi de 31/10/06 a 19/12/09. O período de coleta ocorreu entre agosto de 2008 e dezembro de 2009. Foi criada uma codificação para cada sentença, a fim de que fossem omitidos o nome do juiz que a prolatou, o nome do trabalhador envolvido, a vara trabalhista e o nome da empresa, sendo apenas identificado o setor econômico a que pertencia. Feita esta codificação, as sentenças passaram a ser identificadas pela letra “S” acompanhadas de um número de ordem. Por exemplo, “S1”, “S5”, “S16”. A amostra qualitativa final de 20 sentenças foi definida mediante a saturação dos temas e categorias de análise extraídos dos documentos. A quantidade final foi baseada no modelo da saturação,11 em que os documentos são lidos até que se perceba que os elementos do texto relacionados às categorias e subcategorias definidas estão se repetindo sem variações e que, portanto, não se fazem necessárias novas análises.11 • Definição de categorias e subcategorias de análise As categorias foram definidas com base na finalidade da análise que é explorar as bases racionais das decisões dos juízes. Elas guiaram, portanto, a busca dos elementos do texto por meio dos quais seria possível inferir uma relação com as categorias previamente definidas. A elaboração de subcategorias visou atender às peculiaridades e diversidade com as quais as categorias eram tratadas no texto. v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 71 Categoria 1: Conceito de Dano Subcategorias: • Doutrinária • Jurisprudência • Forma da Lei • Entendimento Pessoal • Definição do campo da saúde Categoria 2: Prova nos autos Subcategorias • Testemunhal • Pericial • Documental Categoria 3: Gravidade da lesão Subcategorias: • Incapacidade parcial – leve e grave • Incapacidade total – gravíssima • Morte Categoria 4: Valor da indenização Categoria 5: Justificativa do valor Subcategorias: • Porte da empresa • Função punitiva e/ou educativa para o empregador • Compensação da lesão • Prevenção e alteração do padrão socioeconômico • Aspectos Éticos da Metodologia A pesquisa foi desenvolvida com base em um banco de dados público que tem como objetivo conferir transparência aos atos do judiciário, permitindo à sociedade acompanhar o resultado das decisões tomadas. Por isso mesmo, é de acesso livre a todo e qualquer cidadão tanto o resultado das sentenças quanto os nomes das pessoas, empresas e órgãos envolvidos em cada sentença. Assim sendo, o presente estudo é uma pesquisa com dados secundários que, além do seu possível interesse acadêmico, se constitui também como um exercício cívico do direito democrático de avaliar as ações dos poderes constituídos. 72 Revista Baiana de Saúde Pública Ainda que os nomes dos envolvidos estejam publicizados, manteve-se, entretanto, a confidencialidade em todas as publicações em relação ao nome das empresas, dos juízes e dos trabalhadores que constituem a relação processual. RESULTADOS E DISCUSSÃO A análise e interpretação do material documental permitiram identificar evidências expressivas no discurso do magistrado ao julgar o caso concreto. Em geral, os casos de LER/DORT foram os mais vistos, mas também existiram julgamentos de acidentes típicos. A atividade econômica dos bancos foi responsável por diversos casos de acidentes de trabalho nas sentenças analisadas. Também estiveram presentes empresas pertencentes ao setor de transportes e até mesmo empresas públicas ligadas ao Estado da Bahia. Uma das principais características do material estudado refere-se à dita neutralidade e imparcialidade com que os julgamentos são formulados. A atuação do juiz, na visão mais tradicionalista, deve se pautar apenas na legislação que rege o fato ocorrido e no ser imparcial. No entanto, já se sabe que esse positivismo legal e a dita neutralidade são atenuados pela influência da formação social, histórica, ideológica e até mesmo pessoal do indivíduo que representa o magistrado. Não se quer dizer com isso que o juiz atue apenas conforme as suas convicções pessoais e deixe de lado as orientações do ordenamento jurídico em que está inserido, mas sim que, em qualquer tipo de trabalho que se realize, o sujeito carrega em si uma carga ideológica própria que se reflete na produção da linguagem escrita e influencia os sentidos do trabalho realizado. Por isto mesmo é que aqui se adverte que, na interpretação desenvolvida no presente estudo, a analista é “[...] um intérprete, que faz uma leitura também discursiva influenciada pelo seu afeto, sua posição, suas crenças, suas experiências e vivências; portanto, a interpretação nunca será absoluta e única, pois também produzirá seu sentido”.10:682 • Conceito de Dano Na análise do conceito de dano, quanto à forma como é adotado na elaboração das sentenças judiciais, evidencia-se, é claro, além da conceituação estritamente jurídica, a carga de valores e noções que o próprio magistrado acumulou no seu meio social. Ele deve julgar de acordo com o que diz a lei, mas, para tanto, precisa avaliar o caso concreto conforme o seu arbítrio, fundamentado em bases racionais que, em parte, já carrega em si, para que possa adequar o preceito legal ao fato ocorrido. No tocante à utilização da doutrina para conceituar o dano, o direito brasileiro esteve, por um vasto período, voltado à indenização do dano material em si. A noção de dano v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 73 estava tradicionalmente vinculada à ideia de patrimônio material, sendo este passível de indenização e facilmente conceituado. Já em relação ao dano moral, é recente a possibilidade de ressarcimento.12 O advento da Constituição Federal, em 1988, impulsionou tais discussões. As citações doutrinárias fizeram-se presentes nas sentenças analisadas, seja porque essa dificuldade em estabelecer um conceito concreto para o dano moral ainda exista entre os magistrados, seja porque os bens a que esta espécie de dano se refere não são visíveis, palpáveis ou mensuráveis; estes têm sido defendidos como algo maior que consubstancia a dignidade humana. Neste sentido, o uso da subcategoria doutrina talvez se dê pela oportunidade que o magistrado encontra de confirmar e ter um respaldo daquele entendimento que ele possui sobre o que seja o dano moral. Na maioria das vezes, o entendimento pessoal dele (outra subcategoria) acerca do conceito de dano confunde-se com o que preceitua a doutrina, contudo há uma tendência maior em se manter o conceito de dano como ofensa que causa sentimentos negativos de dor, tristeza e humilhação. O fragmento a seguir, extraído de uma das sentenças analisadas, corrobora este entendimento: “O dano moral resulta de mácula à imagem do empregado perante os familiares e círculo social, impingindo-lhe forte dor e humilhação.” (S9). Outras duas fontes do direito, aqui alçadas ao posto de subcategorias – força da lei, e jurisprudência –, foram a própria legislação. Citar a legislação como definidora do dano moral também respalda o entendimento dos magistrados no momento de avaliar o dano. De acordo com o Projeto de Lei N.º 7.124/02, do Senador Antonio Carlos Valadares – oriundo do antigo PL 150/99 do Senador Pedro Simon –, o dano moral é assim conceituado: ‘Art. 1.º Constitui dano moral a ação ou omissão que ofenda o patrimônio moral da pessoa física ou jurídica, e dos entes políticos, ainda que não atinja o seu conceito na coletividade’. (S12, grifo do autor). A jurisprudência, que diz respeito aos julgados existentes no ordenamento jurídico em relação àquela matéria que se está discutindo, foi citada para ressaltar uma característica do dano moral e auxilia na concessão da reparação pela ofensa. Para alguns doutrinadores e julgadores, o dano moral não precisa ser provado. Em relação ao dano moral, deve-se lembrar uma brilhante decisão proferida pelo colega Dr. Edílson Meireles “A ofensa moral, por sua vez, dispensa prova quanto ao dano em si. O dano é presumível em decorrência da simples ofensa.” (S17, grifo do autor). Por fim, no que toca à categoria conceito de dano, em algumas sentenças foi registrada a contribuição da área da saúde para conceituá-lo, conformando-se à subcategoria campo da saúde. O dano foi reconhecido diretamente com base nos conceitos médicos de doenças ocupacionais. Neste aspecto, a relação entre o campo da saúde do trabalhador e o direito 74 Revista Baiana de Saúde Pública evidencia-se, demonstrando a essencialidade da aproximação dessas duas áreas de estudo, bem como a sua complementaridade. A síndrome do túnel do carpo e a tenossinovite dos extensores são patologias ocupacionais que têm se tornado verdadeiras “pragas” no ambiente laboral brasileiro, notadamente bancário, já se percebendo, inclusive, a preocupação, na atualidade, das instituições financeiras, com a observância de normas de ergonomia para tentar mudar este quadro. (S14, grifo nosso). • Prova nos autos No ato de sentenciar, o magistrado necessita ser convencido daquilo que o trabalhador afirma. Para tanto, são produzidas as provas necessárias. Em geral, o direito admite as provas periciais, documentais e testemunhais. A análise dos juízes, com base na prova pericial, diz respeito essencialmente à constatação do nexo causal. Nos casos em que se exige a comprovação do nexo de causalidade, a prova pericial mostrou-se imprescindível. Em todas as sentenças analisadas, o juiz posicionou-se conforme a perícia realizada; a prova documental apenas serviu para corroborar a conclusão baseada no laudo pericial. O laudo pericial produzido concluiu pelo nexo causal entre a doença adquirida e o serviço executado. “A natureza ocupacional da patologia diagnosticada (Síndrome do Túnel do Carpo) restou evidenciada a partir das descrições das tarefas cumpridas.” (S15, grifo nosso). No entanto, existem casos em que a natureza do dano está envolta em uma rede de subjetividade que dificulta a comprovação e o dimensionamento do dano sofrido. Há danos decorrentes do acidente laboral que são caracterizados pela invisibilidade, a qual nem sempre é constatada materialmente pelo médico-perito, que dirá pelo juiz da causa. São as dores sentidas pelo acidentado que somente ele conhece e dimensiona, mas não consegue elementos materiais que provem e atestem essa dor; são distúrbios psíquicos, estresse e fadiga que, ao invés de serem sinônimos de “preguiça”, são males invisíveis que precisam se tornar visíveis.13 A questão do visível e invisível do adoecimento crônico, que já é uma temática complexa para a medicina, torna-se ainda mais complexa quando transferida para o mundo jurídico, no qual se exige que tudo aquilo que é alegado deve ser provado. Existem casos de doenças que, em face do seu grau de imaterialidade, não podem ser avaliados por meio de medidas, escalas, indicadores bioquímicos e danos à saúde invisíveis ao “olhar médico”,14 e também se tornam invisíveis ao olhar jurídico, tendo em vista a necessidade de relação direta entre o nexo de causalidade e a perícia médica. v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 75 No tocante à prova testemunhal, a análise inclinou-se para a avaliação das condições de trabalho do empregado. Os depoimentos das testemunhas auxiliaram na descrição do ambiente de trabalho e indicaram a existência ou inexistência de preocupação do empregador com a prevenção dos acidentes de trabalho. A presença do agente ergonômico e o excesso de utilização da voz, evidenciado na prova testemunhal, é suficiente para atestar a culpa do empregador, na medida em que, mesmo que aliado à causa genética, possibilitou a deflagração ou mesmo o agravamento da enfermidade, neste caso em se tratando de concausa antecedente. (S17, grifo nosso). • Gravidade da lesão A categoria analítica gravidade da lesão foi dividida em três subcategorias: incapacidade parcial (lesão leve e grave) reuniu os casos de acidente de trabalho ou doença ocupacional que geraram incapacidade para o trabalhador, mas permite o exercício de outro tipo de atividade; incapacidade total (lesão gravíssima) categorizou situações de incapacidade para qualquer tipo de atividade; e morte do trabalhador. As incapacidades parciais foram apontadas pelos magistrados nas situações em que o trabalhador estava apto a exercer outras atividades. Em geral, esta conclusão foi estruturada com base no laudo pericial. Aqui há um ponto de encontro entre duas categorias – a prova nos autos e a gravidade da lesão – e o juiz utiliza-se das informações contidas no laudo pericial para classificar a gravidade da lesão. Por fim, ressaltou, a expert, tratar-se de incapacidade laborativa temporária e parcial ao exercício de atividades com permanência em posturas estáticas por período prolongado, elevação e transporte manual de peso e realização de movimentos repetitivos com os membros superiores sem pausas. (S15, grifo nosso). Nesta análise foi possível notar que alguns magistrados já apontavam uma sensibilidade maior a respeito do verdadeiro alcance dos prejuízos decorrentes do acidente de trabalho. Ainda que considerassem a incapacidade parcial, eles demonstraram a consciência de que seria quase impossível o retorno do trabalhador ao mercado de trabalho. A incapacidade apresentada pela autora, ao que tudo indica, apesar de ser definitiva, é parcial, ou seja, mesmo com as lesões apresentadas poderá, mesmo que pouco provável, retornar ao mercado de trabalho, com desenvolvimento de atividades compatíveis com seu estado clínico. (S8, grifo nosso). 76 Revista Baiana de Saúde Pública Foram referenciadas pelos juízes situações de incapacidade total, uma delas relacionada com a ideia de inutilidade. Em vista da gravidade da lesão, a trabalhadora encontrava-se inutilizada, ou seja, não estava apenas inapta ao trabalho; a perda da capacidade total para o trabalho representa aqui uma noção de perda de utilidade. [...] acabou por contrair a patologia conhecida como LER (Lesões por Esforços Repetitivos). [...] Em razão da falta de cuidado da reclamada, a reclamante ficou inutilizada para o trabalho, sendo finalmente aposentada por invalidez, em decorrência de acidente de trabalho pelo INSS. Sendo assim, além do terrível absurdo de ficar a reclamante inutilizada para o trabalho [...] (S20, grifo nosso). Foram também noticiados os casos de morte do trabalhador, em que é indicada a evidência do evento morte, cabendo ao magistrado apenas a tarefa de estabelecer o nexo de causalidade e descrever a forma como se deu o acidente que acarretou a morte. “O falecimento do empregado enquanto este exercia as suas atividades laborais é fato incontroverso nos autos.” (S5, grifo nosso). • Valor da indenização e justificativa do valor A questão da indenização que se deve pagar pelo dano causado ao trabalhador ainda se trata de matéria complexa, pois se refere a danos que afetam a esfera físico-psíquica do homem, que não permite uma valoração específica; somente quem sofre o prejuízo pode afirmar o verdadeiro valor do bem violado. Os próprios magistrados reconhecem esta dificuldade: Como traduzir em expressão monetária o dano à imagem e/ou à dor psíquica da reclamante e à perda decorrente do fato de que a aposentadoria por invalidez a impediu de laborar e mesmo de almejar crescimento profissional? Como fazê-lo se julgamos que o valor pedido foi excessivo? Eis tormentosa questão. (S4). O acidente do trabalho e as doenças ocupacionais geram danos de ordem patrimonial e extrapatrimonial. A respeito da primeira espécie de dano não há muita discussão, porquanto o valor da indenização deverá corresponder ao valor econômico perdido ou que foi deixado de ganhar. Já em relação ao segundo, o dano atingirá duas esferas do indivíduo: a integridade física e a integridade psíquica, moral. O dano sofrido na integridade física, via reflexa, pode atingir a ordem psíquica do trabalhador, e aí se encontra o ponto crucial: como valorar a dor, o sofrimento, a perda da dignidade de alguém que não consegue mais sustentar a família por não poder trabalhar, que não consegue pentear o próprio cabelo. v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 77 Embora o presente estudo não tenha como objetivo apresentar dados quantitativos, o conjunto de informações acerca dos valores das indenizações será elencado, a fim de demonstrar que, na amostra selecionada, não foi possível deduzir uma base racional clara em que o juiz se embasou para determinar o valor. Dentre os casos vistos, doze tiveram como dano a ocorrência da LER/DORT, três foram de morte, três de acidentes típicos e dois de constatação de outros tipos de doenças ocupacionais diferentes da LER/DORT. O valor mais utilizado para pagamento das indenizações foi R$ 50.000,00, tanto para doenças ocupacionais, acidente típico como também para o evento morte. Entre os casos de LER/ DORT foram determinados valores que variaram entre R$ 20.000,00 até três milhões de reais. Esses valores evidenciam certa disparidade entre as indenizações estabelecidas para uma mesma espécie de dano. A observação das sentenças permitiu inferir-se que, embora haja uma margem de valores que formam um padrão, ocorreram casos em que a disparidade entre os valores e o mesmo tipo de dano, assim como alguns valores atribuídos a certos danos ensejou o questionamento sobre aquela punição, se foi realmente efetiva. O que se nota é que, como no ordenamento jurídico brasileiro ainda não há uma sistematização de critérios fixos a serem seguidos, em algumas decisões estão presentes alguns critérios motivadores, mas em outras não há qualquer referência a esses.15 Ressalta-se que, na fixação do valor indenizatório, o juiz deve levar em consideração o porte da empresa a ser responsabilizada, isto porque uma indenização de R$ 50.000,00 pode não significar nada para empresas de grande porte, mas pode significar a falência do pequeno empreendimento. Assim, a observação das sentenças permitiu elencar o porte da empresa como uma das subcategorias da categoria justificativa do valor. “Isso até representaria uma afronta aos sentimentos do ofendido. Tudo sem se olvidar da condição socioeconômica da vítima, de seu status profissional, do porte da empresa, do dolo, da extensão do dano, da reincidência e da repercussão da ofensa.“ (S12, grifo nosso). Nas decisões exploradas, em geral, o critério porte da empresa serviu como fator de aumento dos valores indenizatórios, ou seja, aqueles que têm uma capacidade econômica elevada têm maiores possibilidades de garantir a não ocorrência de acidentes laborais, mormente as doenças ocupacionais que podem e devem ser prevenidas. Outro aspecto mostrou-se relevante: a delimitação do valor a ser pago. Os juízes têm a preocupação de não alterar o padrão socioeconômico do ofendido e isto se reflete em um dos “freios” dos julgadores em relação à valoração da ofensa, qual seja, a cautela em não determinar indenizações milionárias. “Por fim, a simplicidade desta forma de quantificação, que fixa uma importância razoável em função do tempo de serviço do empregado, traz a segurança 78 Revista Baiana de Saúde Pública necessária para o julgador cauteloso, evitando-se abusos generalizáveis de fixação de indenizações milionárias.” (S14, grifo nosso). A tarefa de fixar o quanto devido em resposta ao dano sofrido é complexa, pois precisa, além de compensar danos morais, satisfazendo as partes envolvidas, configurar a realização da justiça perante a sociedade. No caso concreto dos acidentes de trabalho, deve-se tentar uma aproximação do real valor da perda da capacidade laborativa. Não se defende que as indenizações sejam de um montante que o indenizado não precise mais trabalhar pelo resto da vida – quando ainda há capacidade laboral plena –, mas o que se dizer quando ele não trabalha mais porque teve a sua capacidade de trabalho interrompida por força de um acidente ou doença ocupacional, que poderia ser evitado? Assim sendo, o que se observou dos dados obtidos é que há uma possível incongruência entre os valores arbitrados como indenizatórios, tanto para lesões de mesma espécie e mesma extensão danosa como para lesões diversas, no entanto, quando confrontados, um se mostra mais essencial que o outro. No tocante à disparidade na determinação do quanto indenizatório entre danos da mesma espécie, os juízes trazem essa discussão à tona. Os julgados que se obtém a respeito são totalmente diversos. Ora supervalorando a condenação, em valores até mesmo que causam o desequilíbrio da própria atividade empresarial, trazendo risco à manutenção do emprego de tantos outros, ora fixa valores irrisórios para situações em que o dano merecia uma melhor valoração. (S11). A subcategoria compensação da lesão atua como justificativa do valor fixado. Na indicação da necessidade de se compensar a lesão, os excertos mostram ainda a sensibilização dos juízes para as consequências advindas da lesão, seja de ordem social, profissional ou pessoal. O dano não apenas afeta a esfera física, mas também a psíquica, e os magistrados apontam esta situação: Destarte, é indubitável e inquestionável que as limitações físicas de que é portadora a autora causam-lhe mal-estar, dores e limitação ao exercício das tarefas mais simples e rotineiras do dia a dia. Assim, defiro o pedido de pagamento de danos morais no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). (S13, grifo nosso). No tocante às subcategorias função punitiva e/ou educativa para o empregador e função preventiva, registra-se a necessidade da reunião de três elementos que atuam como a finalidade da indenização: Não bastassem tais argumentos, é crucial que o dano moral é composto de três finalidades: compensatória ou ressarcitória, punitiva e preventiva. Ou seja, visa a compensar o efetivo dano sofrido pela vítima; punir o infrator pela sua v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 79 conduta, comissiva ou omissiva; e, por fim, prevenir ou inibir a reincidência do fato odioso. (S1, grifo nosso). A aplicação da indenização por dano moral com as finalidades punitiva, educativa e preventiva constitui uma das suas características marcantes. O caráter de punição reside no fato de que o trabalhador lesado não só busca a compensação de uma ofensa à sua dignidade, mas também a punição do ofensor. O cunho pedagógico-preventivo advém da sanção ao empregador-ofensor pelo seu ato lesivo, para que não volte a praticar tal ato e ainda que os demais que tiverem conhecimento do fato não incorram no mesmo erro. Embora a vertente da punição seja aquela que reflete com mais intensidade a sensação de justiça, a função educativa e a preventiva são aquelas que mais se revestem de relevância prática e podem intervir na realidade da ocorrência dos acidentes de trabalho. É preciso educar os empregadores para que cuidem do ambiente de trabalho e promovam melhores condições de trabalho como meio de prevenção de novos acidentes. A análise dos discursos presentes nas sentenças permitiu notar-se, em alguns casos, que a ausência de prevenção é também considerada no momento de valorar a indenização. Por outro lado, este valor também há que ser considerado como de caráter punitivo, relativamente à conduta da reclamada, para incentivá-la a não descuidar da preservação da saúde dos seus empregados, portanto, se for fixado em quantia inferior, não guardará uma proporcionalidade com o seu suporte econômico e, portanto, não atingirá o seu objetivo. (S11, grifo nosso). A promoção da prevenção é o principal caminho a ser seguido, no intuito de reduzir as demandas trabalhistas que envolvem acidentes de trabalho. Na relação estabelecida entre empregado e ambiente e trabalho, a Justiça do Trabalho deve ser a última instância a ser buscada. Antes disso, o empregador e o próprio empregado devem estruturar as condições de trabalho e a lógica de produção para a proteção da saúde do trabalhador. Com efeito, se medidas preventivas e de respeito à saúde forem efetivamente adotadas, os problemas que envolvem o elevado número de ações judiciais trabalhistas por acidente serão amenizados. O estudo de cunho exploratório desenvolvido permitiu perceber-se que, embora a forma de atuação dos juízes trabalhistas seja predeterminada, a relação entre a demanda decorrente do acidente de trabalho e a resposta jurisdicional, representada pela sentença, ainda é complexa. A análise dos discursos presentes na sentença indica que inexiste um conceito único de dano. Para respaldar e fundamentar os conceitos adotados, o juiz faz uso da doutrina, da jurisprudência, da lei. É imperioso salientar que o magistrado não deve estar adstrito a parâmetros fixos estabelecidos pela doutrina, jurisprudência etc. A capacidade criativa do magistrado não deve 80 Revista Baiana de Saúde Pública ser limitada, pois o que se busca é a ampliação da compreensão do que seja um dano decorrente do acidente de trabalho, a fim de que a defesa dos direitos relacionados à saúde do trabalhador não reste prejudicada. O estudo das provas permitiu notar uma necessidade tanto para o campo da saúde do trabalhador quanto para a área do direito. A noção de dano a ser compreendida pelo magistrado deve ser livre para enxergar a visibilidade de doenças tidas como invisíveis. A principal dificuldade que envolve o julgamento dos acidentes de trabalho reside na valoração do dano sofrido. As sentenças analisadas não indicaram uma base racional clara em que o magistrado fundamente o valor determinado na sua decisão. Há uma desproporcionalidade entre os valores estabelecidos, ora para tipos semelhantes de dano, ora para danos em que a vítima perde a vida frente a danos que causam lesões parciais. A necessidade da defesa da prevenção noticiada pelos juízes, representada pela função educativa da sentença, foi um ponto positivo identificado. As sentenças que levantam essa bandeira revestem-se de uma eficácia prática mais ampla, pois o que se quer é a não ocorrência de acidentes e doenças do trabalho e não a posterior compensação por um dano que poderia ser prevenido. Por fim, é de se ressaltar que este estudo não esgota a temática aqui envolvida. Ao invés disso, pretendeu delinear características sobre a relação entre a demanda judicial trabalhista e os elementos utilizados para o seu julgamento. Outras pesquisas são fundamentais para o alargamento das discussões e para o preenchimento de lacunas que aqui não puderam ser sanadas. REFERÊNCIAS v.35, n.1, p.65-82 jan./mar. 2011 1. Abramides MBC, Cabral MSR. Regime de acumulação flexível e saúde do trabalhador. São Paulo em Perspec. 2003;17(1):3-10. 2. Mendes R, organizador. Patologia do trabalho. Rio de Janeiro: Atheneu; 2003. 3. Rocha JCS. Direito ambiental do trabalho: mudança de paradigma na tutela jurídica à saúde do trabalhador. São Paulo: LTr; 2002. 4. Dallegrave Neto JA. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. 2ª. ed. São Paulo: LTr; 2007. 5. Oliveira SG. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 3ª ed. São Paulo: LTr; 2007. 81 6. Barreto ROP. A prestação jurisdicional racional. Extraído de [http:// www.tjpe.jus.br/ cej/PaginaPrincipal/artigos/ver_artigos.asp], acesso em [13 de junho de 2008]. 7. Andrighi FN. A minha pré-compreensão do ato de julgar. Produção intelectual dos Ministros do STJ, 1997. Extraído de [http://bdjur.stj.gov.br/ dspace/handle/ 2011/578], acesso em [10 de junho de 2008]. 8. Parmeggiani R, Hartmann VE. O mundo interno e o juiz. Rev AJUFERGS. Extraído de [http://www.ajufergs.org.br/revista_ajufergs_01.asp], acesso em [10 de junho de 2008]. 9. Abreu MGS. Sentença, qualidade ou quantidade, eis a questão. Rev Trib Reg Trab 1ª Região. 1997;(17). 10. Caregnato RCA, Mutti R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto Enferm. 2006;15:679-84. 11. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ª ed. São Paulo: Hucitec; 2007. 12. Melo RS. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, perda de uma chance. 2ª ed. São Paulo: LTr; 2006. 13. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1977. 14. Lima MAG. Clínica da dor: sentidos e práticas no cotidiano dos espaços terapêuticos [Tese]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2005. 15. Monteiro Filho CER. Elementos de Responsabilidade por dano Moral. Rio de Janeiro: Renovar; 2006. Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 14.04.2011 82 ARTIGO ORIGINAL Revista Baiana de Saúde Pública DESEQUILÍBRIO ESFORÇO-RECOMPENSA NO TRABALHO E TRANSTORNOS MENTAIS COMUNS EM ELETRICISTAS DE ALTA TENSÃO Suerda Fortaleza de Souzaa Fernando Martins Carvalhob Tânia Maria de Araújoc Lauro Antonio Portod Resumo Objetivou-se investigar a associação entre aspectos psicossociais do trabalho e a prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) em eletricistas de equipamentos e linhas de transmissão de energia elétrica de alta tensão. Realizou-se um estudo de corte transversal em 158 trabalhadores de manutenção elétrica de uma empresa de energia elétrica no Nordeste do Brasil. A variável independente principal foi aspectos psicossociais do trabalho, medidos segundo o Modelo Desequilíbrio Esforço-Recompensa (ERI). A variável dependente foi a prevalência de TMC medida pela escala SRQ-20. Usaram-se técnicas de regressão logística múltipla. A prevalência de TMC foi de 20,3%, sendo significantemente mais elevada entre trabalhadores com baixa recompensa (RP = 4,8; IC 95% 1,87-12,4) e com alto esforço (3,95; 1,31-11,9). Trabalhadores com comprometimento excessivo com o trabalho apresentaram prevalência de TMC 2,38 (0,866,59) vezes mais elevada. Trabalhadores com razão esforço-recompensa >1 apresentaram prevalência de TMC 2,10 (0,90-5,17) vezes maior que aqueles com razão ≤1. Entretanto, essa associação não foi estatisticamente significante, após ajuste por prática de atividade física, lazer e comprometimento excessivo com o trabalho. Isto pode dever-se ao pequeno tamanho do estudo. Concluiu-se que os aspectos psicossociais no trabalho desempenham papel importante na saúde mental dos trabalhadores eletricitários de linhas de alta tensão. Palavras-chave: Saúde mental. Saúde do trabalhador. Aspectos psicossociais. Abastecimento de energia. a Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] Núcleo de Epidemiologia, Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). [email protected] d Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] b c Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Praça XV de Novembro, s/n, Largo do Terreiro de Jesus, Salvador, Bahia, Brasil. CEP: 40025-010. [email protected] v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 83 EFFORT-REWARD IMBALANCE AT WORK AND COMMON MENTAL DISORDERS AMONG WORKERS IN HIGH VOLTAGE POWER LINES Abstract The objective of this study was to investigate the association between psychosocial factors at work and the prevalence of Common Mental Disorders (CMD) disease among workers in equipment maintenance and transmission of electric power. We conducted a cross-sectional study among all the 158 maintenance workers of an electric power company in Northeast Brazil. The main independent variable was the psychosocial aspects of work, measured according to the Effort-Reward Imbalance Model (ERI), and the dependent variable was the prevalence was Common Mental Disorders-CMD. Data were analyzed by multiple logistic regression techniques. The prevalence of CMD was 20.3%, being significantly higher among workers with low reward (PR = 4.8, 95% CI 1.87-12.4) and high effort (3.95, 1 0.31-11. 9). Workers with over commitment to work had CMD prevalence rate 2.38 (0.86-6.59) times higher. Workers with effort/reward ratio >1 showed TMC prevalence 2.10 (0.90 to 5.17) times greater than those with this ratio ≤1. However, this association was not statistically significant after adjusting for physical activity, leisure and over commitment to work, probably due to the study small size. Psychosocial aspects of work play an important role in the mental health of workers in equipment maintenance and transmission of electric power. Key words: Mental health. Psychosocial factors. Occupational health. Energy supply. DESEQUILIBRIO ESFUERZO-RECOMPENSA EN EL TRABAJO Y TRASTORNOS MENTALES COMUNES EN ELECTRICISTAS DE ALTA TENSIÓN Resumen El objetivo de este estudio fue investigar la asociación entre aspectos psicosociales del trabajo y la prevalencia de Trastornos Mentales Comunes (TMC) en electricistas de los equipos y líneas de transmisión eléctrica de alta tensión. Fue realizado un estudio transversal entre los 158 trabajadores de mantenimiento de una empresa de energía eléctrica en el Nordeste de Brasil. La variable independiente principal fue la de los aspectos psicosociales del trabajo, medidos de acuerdo con el Modelo Desequilibrio Esfuerzo-Recompensa (ERI). La variable dependiente fue la prevalencia de TMC medida por la escala SRQ-20. Fueron usadas técnicas de regresión logística múltiple. La prevalencia del TMC fue del 20,3%, siendo significativamente superior entre los trabajadores con baja remuneración (PR = 4,8, IC 95% 1,87-12,4) y alto esfuerzo (3,95, 1 0,31-11, 9). Trabajadores 84 Revista Baiana de Saúde Pública con exceso de compromiso con el trabajo presentaron prevalencia de TMC 2.38 (0,86-6,59) veces superior. Trabajadores con relación esfuerzo/recompensa >1 presentaron prevalencia de TMC 2,10 (0,90 a 5,17) veces superior a aquellos con razón ≤1. Sin embargo, esta asociación no fue estadísticamente significativa después del ajuste para la actividad física, ocio y excesivo compromiso con el trabajo, probablemente debido al tamaño pequeño del estudio. Se concluyó que los aspectos psicosociales en el trabajo desempeñan papel importante en la salud mental de los trabajadores en el mantenimiento de equipos y transmisión de líneas de alta tensión. Palabras-clave: Salud mental. Salud del trabajador. Aspectos psicosociales. Abastecimiento de energía. INTRODUÇÃO O trabalho tem um importante papel na saúde e na vida social dos indivíduos. Entretanto, as relações entre homem e trabalho tornaram-se cada vez mais complexas, modificando os determinantes do processo saúde-doença. Diversos estudos1-3 apontam que situações de trabalho oferecem baixas recompensas frente a demandas excessivas. Nesse contexto, os fatores psicossociais do trabalho vêm ganhando expressiva relevância, em função dos efeitos que podem acarretar sobre a saúde dos trabalhadores.4 Levando em consideração esses aspectos psicossociais do trabalho, o modelo teórico Effort-Reward Imbalance Model (ERI)5 tem sido utilizado para estudar as situações de desequilíbrio entre esforço e recompensa no trabalho e a influência desta relação no estado de saúde dos trabalhadores. Este modelo sustenta que distintas tarefas de trabalho associam-se a diferentes níveis de compensação, tais como salários, estima e segurança no trabalho. O modelo prediz que a falta de reciprocidade entre o esforço despendido e a recompensa recebida desencadeia reações de estresse com consequências, em longo prazo, para a saúde física e mental.5,6 O modelo também destaca a importância do papel social do trabalho, ressaltando a possibilidade de o trabalhador sentir-se reconhecido e estimado, e reforçando o seu sentimento de pertencer a um grupo.7 O modelo esforço-recompensa combina a informação subjetiva sobre as demandas do trabalho executado e que exige recompensa (componente extrínseco), na forma de compensação monetária, autoestima e aquelas relacionadas às possibilidades de promoção na carreira e segurança no trabalho, bem como a informação da característica pessoal (componente intrínseco) que implica nos recursos pessoais para lidar com as demandas e desafios do trabalho. Uma das escalas do ERI mede o comprometimento excessivo (overcommitment), constituído por um conjunto de atitudes e comportamentos que resultam em excessivo empenho, combinado à grande necessidade de reconhecimento e estima. Deste modo, trabalhadores com v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 85 comprometimento excessivo com o trabalho responderiam com maior tensão ao desequilíbrio esforço-recompensa, em comparação aos empregados sem comprometimento excessivo com o trabalho.6 Portanto, o esforço realizado é a resposta do indivíduo às demandas do trabalho (esforço extrínseco), combinado à motivação individual frente às demandas (esforço intrínseco). A dimensão recompensa compreende o que o indivíduo espera receber em função do seu esforço, e pode ser medida de três formas distintas: dinheiro, aprovação/reconhecimento (autoestima) e promoção e segurança no trabalho. Estas três dimensões estão inter-relacionadas, se a recompensa monetária puder aumentar a autoestima e a segurança no trabalho. É possível que indivíduos com alta necessidade de controle mobilizem grande energia e envolvimento com o trabalho (alto esforço), mesmo sob condições de baixo ganho monetário. Isto depende das características de percepção do indivíduo, da sua experiência de autogratificação e de estar no controle de situações desafiadoras.8 A vivência continuada de situações de desequilíbrio entre esforço e recompensas pode gerar estresse crônico, que, por sua vez, se associa a uma série de efeitos nocivos à saúde. Diversos estudos têm evidenciado associação entre situações de desequilíbrio e doenças cardiovasculares, distúrbios psiquiátricos e condições gerais de saúde.3,9 O modelo, portanto, tem-se destacado como um bom instrumento de avaliação dos aspectos psicossociais do trabalho, possibilitando análise de situações que produzem estresse e sua associação com efeitos sobre a saúde dos trabalhadores.8 Trabalhadores em manutenção de equipamentos e linhas de transmissão de alta tensão convivem diariamente com alto risco ocupacional, no esforço para atender às prescrições formais e alcançar a produtividade exigida. Essas situações desfavoráveis podem afetar a sua saúde mental, evidenciando, entre outras condições patológicas, elevada prevalência de transtornos mentais comuns.10 Este estudo teve como objetivo investigar a associação entre Transtornos Mentais Comuns e aspectos psicossociais do trabalho, avaliados pelo modelo Desequilíbrio Esforço-Recompensa, em eletricistas de alta tensão. MATERIAL E MÉTODOS Trata-se de um estudo epidemiológico de corte transversal em uma população de 161 trabalhadores do sexo masculino, pertencentes aos setores de manutenção de equipamentos e linhas de transmissão de alta tensão de uma empresa do setor elétrico, nos estados da Bahia e Sergipe. Foram incluídos todos os trabalhadores que pertenciam aos setores de manutenção. A empresa tem 86 Revista Baiana de Saúde Pública capacidade instalada de 10.618 MW (10,9% da produção do Brasil), gera 49.596 GW/h, atendendo a distribuidores, comercializadores e consumidores industriais nas regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste do Brasil. Os trabalhadores têm como atribuição realizar a manutenção preventiva e reparadora em equipamentos elétricos das subestações, usinas e linhas de transmissão. Dos 161 trabalhadores elegíveis para o estudo, 158 (98,2%) responderam a todas as perguntas, tendo ocorrido duas recusas de participação e uma ausência durante a realização das entrevistas. O questionário de investigação foi aplicado em entrevistas individuais, durante a jornada de trabalho e realizado por uma única entrevistadora, no período de abril a julho de 2008. A participação foi voluntária. No recinto, permanecia somente o entrevistado e a entrevistadora que lia o termo de consentimento e, havendo concordância, dava início à entrevista. Os objetivos da pesquisa foram esclarecidos em reunião prévia com os trabalhadores de cada setor. Foi utilizado um questionário padronizado, contendo blocos de questões abordando características sociodemográficas e estilo de vida; situações de trabalho; aspectos psicossociais do trabalho, medidos pelo Effort-Reward Imbalance Questionnaire (ERI-Q); e saúde mental, utilizando-se o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), para avaliar Transtornos Mentais Comuns (TMC).11 O questionário para medir os aspectos psicossociais do trabalho (ERI-Q) é composto por 23 questões, sendo 17 com respostas dicotômicas (discordo ou concordo): 6 itens relacionados a esforço extrínseco (com escore total de 5 a 30) e 11 itens relacionados a recompensa (com escore total de 11 a 55). Ainda, para cada resposta “concordo” ou “discordo”, somam-se quatro opções em escala Likert que variam de “não estressado” a “muito estressado”. Os seis itens restantes contêm a dimensão de compromisso excessivo com o trabalho (overcommitment), com respostas em escala Likert, indo do “discordo totalmente” a “concordo totalmente”.6 As dimensões esforço, recompensa e comprometimento excessivo foram dicotomizadas em alto e baixo esforço, alta e baixa recompensa e alto e baixo comprometimento, com o ponto de corte no valor médio. A razão Desequilíbrio Esforço-Recompensa foi calculada da seguinte forma: effort/(reward x fator de correção).12 Valores próximos a zero indicam uma condição favorável (relativo a baixo esforço e alta recompensa) e valores superiores a um indicam maior esforço gasto e menor recompensa recebida. O escore da razão foi feito para valores menores ou iguais a 1 e valores maiores do que 1, obtendo-se um indicador de ausência (valores d” 1) ou presença (valores > 1) de desequilíbrio esforço-recompensa. Estudos de validação do ERI com trabalhadores no contexto brasileiro evidenciaram bom desempenho do instrumento.6,13 Os transtornos mentais comuns (TMC) foram avaliados pelo SRQ-20. Este questionário é composto por 20 questões com respostas binárias (sim ou não), classificadas em v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 87 grupos de sintomas físicos e grupos de distúrbios psicoemocionais (diminuição de energia, humor depressivo e pensamento depressivo). Muito utilizado no Brasil, mostrou alta sensibilidade e especificidade no estudo de validação.14 Neste estudo, estabeleceu-se como ponto de corte 5/6 (definindo-se transtornos mentais comuns como seis ou mais respostas positivas).15 A variável independente principal foi representada pelos aspectos psicossociais do trabalho, constituída pelas dimensões do Modelo Esforço-Recompensa (comprometimento, esforço, recompensa e a situação desequilíbrio esforço-recompensa). A variável dependente foi representada pelos Transtornos Mentais Comuns (TMC). Outras variáveis independentes, analisadas como potenciais variáveis de confundimento, foram: idade (categorizada por quartis); escolaridade (categorizada em ensino fundamental / médio / superior); consumo de bebida alcoólica (não bebe ou bebedor eventual / bebedor de uma ou mais vezes na semana); prática de atividade física fora do trabalho (sim / não); lazer autorreferido (sim / não); renda (até R$ 2.500,00 / acima de R$ 2.500,00); tempo de trabalho na empresa (categorizado por quartis); tempo de trabalho na função (categorizado por quartis); tempo de trabalho no setor (categorizado por quartis); situação conjugal (casado ou união estável / ou demais situações); relato de parentes de primeiro grau (pai ou irmãos) trabalhando ou que trabalharam na mesma empresa; e residência (capital / interior). Os dados foram processados pelo programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS: applications guide. Version 9.0. Chicago: SPSS, 1991). Foram avaliadas as características sociodemográficas e do trabalho da população. Para analisar a associação entre as variáveis independentes principais (dimensões do Modelo Esforço-Recompensa) e a variável dependente (TMC), foram utilizadas análises de regressão logística múltipla, considerando-se o ajuste por covariáveis relevantes. Foram conduzidas análises em separado para as dimensões do modelo: esforço, recompensa e situação de desequilíbrio (razão). As variáveis independentes foram pré-selecionadas individualmente, adotando-se como critérios a relevância epidemiológica e um valor p inferior a 0,25 no teste da razão de verossimilhança para a significância do coeficiente. Em seguida, aplicou-se regressão logística ao conjunto das variáveis pré-selecionadas, chegando-se ao modelo final com base no teste da estatística de Wald (valor p igual ou inferior a 0,20 para a inclusão de cada variável no modelo). Na análise de modificação de efeito, os termos-produtos da variável de exposição principal com as variáveis potencialmente modificadoras foram excluídos um a um, desde que apresentassem valor p superior a 0,10 no teste da estatística de Wald. As Odds Ratios (OR) obtidas com base nas análises de regressão logística foram convertidas em Razões de Prevalências (RP) e estimados os seus respectivos intervalos de confiança, com a utilização do método Delta.1,6 O estudo atendeu 88 Revista Baiana de Saúde Pública aos princípios éticos, em acordo com a Resolução CNS 196/96, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia (Parecer número 026/2008, em 27/2/2008). RESULTADOS Características da população estudada. Os trabalhadores tinham média de idade de 45 anos (dp= 8,6 anos), e 46,8% estavam na faixa de 41 a 50 anos. A escolaridade até o nível médio foi encontrada em 49% dos indivíduos. Em relação à situação conjugal, 80,4% viviam em união estável; 92,4% tinham filhos. O salário variou de R$ 1.001,00 a R$ 2.500,00 para 54,4% do grupo. Consumo de bebida alcoólica (eventual ou regular) foi referido por 86,1% e desses, 49,5% bebiam três ou mais vezes na semana. A prática de atividade física (irregular ou regular) foi referida por 55,1% dos entrevistados. Atividade de lazer foi referida por 88,0%. O hábito de fumar foi referido por 13,3%. A média do tempo de trabalho na empresa foi de 19,6 anos (dp= 10,6 anos); 66,2% dos trabalhadores tinham 21 ou mais anos de empresa (dp= 9,3 anos). A média de tempo na função foi de 14,4 anos (dp= 9,8 anos) e a média de tempo no setor foi de 12,6 anos (dp= 9,27 anos). Do total, 76,6% trabalhavam em funções operacionais; destes, 42,4% eram auxiliares de manutenção. Ao serem questionados sobre familiares (pais ou irmãos) que trabalham ou trabalharam na empresa, 25,3% responderam positivamente e 14,6% já prestavam serviço à empresa antes da contratação. O turno de trabalho na empresa era administrativo (jornada de segunda a sexta, 8 horas/dia), mas 86,7% dos empregados poderiam ser requisitados a trabalhar em turnos noturnos ou nos fins de semana, de acordo com a necessidade da empresa. Quanto ao tipo de função, 39,9% atuavam na manutenção de linhas de transmissão, 41,1% na manutenção de subestação, 15,8% tinham atribuições na manutenção da usina e 3,2% realizavam atividades técnico-administrativas. Alto esforço despendido foi observado para 77 indivíduos (48,7%), com escore médio de 13,7 (DP= 5). Baixa recompensa recebida foi encontrada para 63 indivíduos (39,9%), com escore médio de 46,5 (DP= 7,5). Considerando a razão Esforço-Recompensa maior que 1 (situação de desequilíbrio), 8,9% da população estudada encontravam-se nesta situação. O comprometimento excessivo com o trabalho foi evidenciado em 53,2% dos trabalhadores. A prevalência global de TMC foi de 20,3%. A prevalência de TMC foi mais elevada na situação de baixa recompensa (39,9%) e de alto esforço (33,8%). Nas situações de desequilíbrio entre esforço e recompensa, a prevalência de TMC foi de 50%. v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 89 A prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) estava fortemente associada à baixa recompensa e ao alto esforço no trabalho, mesmo quando ajustada pelos efeitos das covariáveis prática de atividade física, lazer e tempo na função. A prevalência de TMC foi cerca de 5 vezes maior entre os trabalhadores com baixa recompensa do que entre aqueles com altas recompensas e 4 vezes maior entre aqueles com alto esforço. Na análise bivariada, a prevalência de TMC estava associada ao comprometimento excessivo com o trabalho, mas não manteve o nível de significância estatística, após o ajuste pelas covariáveis selecionadas no modelo final de regressão logística realizada: atividade física, lazer e tempo na função (Tabela 1). Tabela 1. Razões de prevalências (RP) bruta e ajustada e respectivos intervalos de confiança (IC 95%) para Transtornos Mentais Comuns (TMC), segundo dimensões do modelo Esforço-Recompensa (ERI) em trabalhadores de manutenção de equipamentos e linhas de transmissão de energia elétrica – Salvador, Bahia, Brasil – 2008 De modo similar, na análise bivariada, o desequilíbrio entre esforço e recompensa mostrou-se estatisticamente associado aos TMC, porém não manteve significância estatística (p< 0,05) no modelo multivariado, ajustado por prática de atividade física, lazer e comprometimento com o trabalho (Tabela 1). Apesar da associação observada não ter sido estatisticamente significante, após ajuste pelos confundidores, cabe registrar que a prevalência ajustada de TMC foi 2,38 maior no grupo com comprometimento excessivo comparado ao grupo sem excesso de compromisso, e 2,10 maior na situação de desequilíbrio entre esforço e recompensa. 90 Revista Baiana DISCUSSÃO de Saúde Pública As três dimensões do Modelo Esforço-Recompensa (alto esforço, baixa recompensa e comprometimento com o trabalho) apresentaram elevada prevalência, sendo comprometimento (overcommitment) a que mais se destacou (53%). Esta dimensão é vista no modelo como uma característica da personalidade, um esforço intrínseco baseado em elementos cognitivos, emocionais e motivacionais, influenciando a percepção de alto esforço e baixa recompensa.1 Assim, o comprometimento excessivo com o trabalho diante de situações com alto esforço e baixa recompensa, poderá representar maior risco à saúde. Por outro lado, a ausência desse excessivo comprometimento com o trabalho possivelmente funcione como uma estratégia para manter o bem-estar. Para valores maiores que 1, a razão esforço-recompensa foi considerada como desequilíbrio, tal como preconizado pela formulação clássica do modelo. A prevalência de desequilíbrio esforço-recompensa foi baixa (8,9%), coincidindo com outros estudos.1,7,17,18 A população estudada tinha renda média e nível educacional melhores que a população geral da Região Metropolitana de Salvador.19 O longo tempo de trabalho na empresa, o fato de alguns trabalhadores já prestarem serviço antes da contratação e a presença de parentes próximos que trabalharam ou trabalham na mesma organização representam a situação estável dessa população, bem como se supõe a existência de um forte vínculo entre trabalhador e empresa. Por outro lado, a permanência no mesmo cargo e setor reflete a impossibilidade de ascensão profissional na empresa. O maior percentual de trabalhadores em tarefas operacionais foi observado na função de auxiliar de manutenção. Esta função é a de menor autonomia na escala hierárquica das funções de manutenção na empresa. A prevalência de TMC foi elevada (20,3%), sendo mais alta do que aquela encontrada em estudo realizado com eletricitários da Região Metropolitana de Vitória, Espírito Santo (18,7%).20 Outros estudos envolvendo eletricitários, embora utilizando instrumentos e métodos diferentes, evidenciaram prevalência relativamente elevada de transtornos mentais.21,22 Quando comparada a outras populações de trabalhadores, a prevalência de TMC foi semelhante à encontrada em policiais civis (20,2%).23 A comparação com outros estudos23,24 fica prejudicada pelas diferenças de características e situações de trabalho das populações estudadas. A prevalência elevada de TMC estava fortemente associada a alto esforço e baixa recompensa com o trabalho. Apesar de os estudos nacionais que utilizam o modelo Desequilíbrio Esforço-Recompensa (ERI) ainda serem escassos,10,13,17,23 na literatura internacional são encontrados diversos estudos3,25,26 que confirmam a adequação desse modelo para avaliar a associação dos v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 91 fatores psicossociais do trabalho com efeitos à saúde mental do trabalhador, podendo ser aplicado a uma variedade de cenários ocupacionais.8 A prevalência de TMC não manteve associação estatística significante com a situação de desequilíbrio entre esforço e recompensa. Resultado semelhante ocorreu com outro estudo.26 O autor atribuiu ao tamanho da amostra uma das possíveis justificativas para tal fato. Possivelmente, a permanência da associação entre TMC e desequilibro esforço-recompensa não tenha sido favorecida, por se tratar de um estudo transversal. Apesar de os estudos transversais também suportarem a suposição de associação entre desequilíbrio esforço-recompensa e efeitos negativos sobre a saúde, somente os estudos longitudinais têm evidenciado, mais claramente e de modo mais consistente, o valor preditivo do modelo.27 Além disto, o uso da razão ERI como uma variável dicotômica (ter ou não desequilíbrio) também pode ter contribuído para a perda de associação observada. O uso da razão ERI como uma medida contínua tem sido recomendado por alguns autores,26,27 uma vez que os estudos que adotaram tal procedimento produziram evidências mais robustas de associação, com efeitos estatísticos mais fortes, do que outras formulações testadas.8 Dentre as limitações deste estudo, podem ser citados o desenho de estudo e o reduzido número de indivíduos. Nos estudos de corte transversal, as medidas de interesse de exposição e efeito são avaliadas em um mesmo período de tempo, dificultando o estabelecimento de relação causa-efeito. Apesar da alta taxa de resposta obtida, o reduzido número de indivíduos dificultou a análise dos dados em função do pequeno número nos grupos estratificados, resultando em intervalos de confiança demasiadamente amplos e diminuindo a precisão das estimativas. A despeito do pequeno número estudado, cabe destacar que foi avaliada uma situação concreta de trabalho quase na sua totalidade, oferecendo um quadro bastante fidedigno da população trabalhadora estudada e das relações entre aspectos psicossociais do trabalho e a saúde mental entre esses trabalhadores. O efeito do trabalhador sadio, caso tenha ocorrido neste estudo, foi provavelmente de baixa magnitude, já que os TMC são agravos de natureza crônica e raramente fatais; a população estudada tem boa estabilidade no emprego e houve perda mínima de casos. Todavia, deve-se considerar a possibilidade de adoecimento mental de trabalhadores não incluídos neste estudo, como os aposentados, falecidos por outras morbidades ou os que já haviam se desligado da empresa à época do estudo. Embora o SRQ-20 seja considerado um instrumento com desempenho aceitável em avaliar TMC, demonstrando habilidade para rastreamento da saúde mental em âmbito populacional,28,29 ele não é um meio de diagnóstico. Portanto, é possível que o SRQ-20 tenha 92 Revista Baiana de Saúde Pública subestimado ou superestimado o efeito estudado. Como todos os trabalhadores foram avaliados pelo mesmo instrumento, adotando-se os mesmos procedimentos para sua aplicação e classificação de TMC, este viés, se ocorreu, foi não diferencial (pode ter ocorrido em ambos os grupos expostos e não expostos), não comprometendo o resultado obtido a favor de hipótese de associação. A despeito das limitações metodológicas, os resultados encontrados reforçam a ideia de que o ambiente psicossocial do trabalho é um importante determinante do estado de saúde mental em trabalhadores de diversas categorias profissionais.1-4,28,29 A escassez de pesquisas que utilizam o modelo Desequilíbrio Esforço-Recompensa entre eletricitários dificultou comparações com os resultados encontrados neste estudo. Tal fato reforça a necessidade de se realizar investigações semelhantes para avaliar o papel dos aspectos psicossociais na saúde mental dos trabalhadores eletricitários de linhas de alta tensão. REFERÊNCIAS v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 1. Vegchel N, Jonge J, Bosma H, Schaufeli W. Reviewing the effort–reward imbalance model: drawing up the balance of 45 empirical studies. Social Sci Med. 2005;60(5):1117-31. 2. Niedhammer I, Tek M, Starke D, Siegrist J. Effort-reward imbalance model and self-reported health: cross-sectional and prospective findings from the GAZEL cohort. 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Rev Saúde Públ. 2008;42(5):921-9. 29. Braga LC, Carvalho LR, Pereira Binder MCP. Condições de trabalho e transtornos mentais comuns em trabalhadores da rede básica de saúde de Botucatu (SP). Ci Saúde Col. 2010;15(1):1585-96. Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 14.04.2011 v.35, n.1, p.83-95 jan./mar. 2011 95 ARTIGO ORIGINAL O AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE: VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO A CÉU ABERTO Lázaro José Rodrigues de Souzaa Maria do Carmo S. de Freitasb Resumo Este estudo parte do pressuposto de que as violências percebidas pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) em seu ambiente laboral têm comprometido a organização de seu trabalho e dificultado as ações de prevenção e promoção da saúde da população assistida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, objetiva analisar significados atribuídos pelos ACS aos tipos, formas de referência e nomeação da violência vivenciada no cotidiano de trabalho no bairro do Candeal, Distrito Sanitário de Brotas na cidade do Salvador. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas e observação participante com trabalhadores da Unidade de Saúde da Família do referido bairro. Os resultados revelam a complexidade das relações laborais vivenciadas pelos ACS no Candeal de Brotas em Salvador, Bahia, desvelando as situações de violência no cotidiano de trabalho. A pesquisa aponta para a necessidade de preparação dos ACS para as suas ações de uma forma geral e da violência em particular, estabelecendo o desafio que a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador tem, em ampliar o conceito e as práticas de saúde, inserindo, concretamente, a violência como um problema que afeta trabalhadores e usuários dos serviços prestados pela Unidade de Saúde Familiar (USF). Palavras-chave: Trabalho. Violência. Saúde do trabalhador. Agente comunitário de saúde. a Mestre em Saúde Pública pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho. Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Terapeuta Ocupacional da Diretoria de Vigilância e Atenção a Saúde do Trabalhador (DIVAST), Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB). b Doutora em Saúde Pública, com ênfase em Ciências Sociais na Saúde. Instituto de Saúde Coletiva (ISC), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço para correspondência: Rua Pedro Lessa, no. 123, Canela, Salvador, Bahia. CEP: 40110-050. [email protected] 96 Revista Baiana COMMUNITY HEALTH AGENT: VIOLENCE AND SUFFERING AT OPEN FIELD WORK de Saúde Pública Abstract This study assumes that the violence perceived by the ACS in their work environment has compromised the organization of their work and hampered the prevention and health promotion actions among people assisted by SUS. Attempts were made to understand the meanings assigned by ACS to the types, forms of reference and denomination of the violence experienced in daily work in Candeal. This is a qualitative study, conducted through semi-structured interviews and participant observation with employees of the Family Health Unit in Salvador, Sanitary District of Brotas in Salvador, Bahia. We interviewed eight ACS from a care unit that volunteered to participate. The results reveal the complexity of industrial relations experienced by the ACS in Candeal, revealing the violent situations in daily work. The research points to the need for preparation of the ACS for their actions in general and violence in particular, establish the challenge that the Salvador City Department of Health has, to expand the concept and practice, placing health and specifically violence as an issue that affects workers and users of services provided by USF. Key words: Work. Violence. Occupational health. Community health agent. EL AGENTE COMUNITARIO DE SALUD: LA VIOLENCIA Y SUFRIMIENTO EN EL TRABAJO AL AIRE LIBRE Resumen Este estudio parte del supuesto que las violencias percibidas por los Agentes Comunitarios de Salud (ACS) en su entorno laboral han comprometido la organización de su trabajo y obstaculizado las acciones de prevención y promoción de la salud de la población asistida por el Sistema Único de Salud (SUS). Para tanto, tiene por objetivo analizar significados atribuidos por los ACS a los tipos, formas de referencia y nombramiento de la violencia experimentada en el trabajo diario en el Barrio Candeal. Distrito Sanitario de Brotas en la ciudad de Salvador. Se trata de un estudio de naturaleza cualitativa, realizado a través de entrevistas semiestructuradas y observación participante con trabajadores de la Unidad de Salud de la Familia en el referido barrio. Entrevistamos a ocho trabajadores de la unidad de atención del ACS que se ofrecieron a participar. Los resultados revelan la complejidad de las relaciones laborales vividas por los ACS en Candeal de Brotas, Salvador, desvelando las situaciones de violencia en el trabajo cotidiano. La investigación apunta a la necesidad de preparación de los ACS, para sus acciones en general y de la violencia, en particular, estableciendo el reto que el Departamento de Salud de la ciudad de Salvador tiene, v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 97 de ampliar el concepto y las prácticas, de salud, insiriendo concretamente la violencia, como un problema que afecta a los trabajadores y a los usuarios de los servicios prestados por la Unidad de Salud Familiar (USF). Palabras-clave: Trabajo. Violencia. Salud del trabajador. Agente comunitario de salud. INTRODUÇÃO O termo trabalho quer dizer essencialmente uma atividade humana realizada em diferentes situações e condições, e pode contribuir tanto para o bem-estar/estruturação psíquica quanto para o mal-estar/desestruturação psíquica.1 Além disto, trabalhar na rua não é para qualquer pessoa. Com o passar o tempo é fácil perder-se em meio à poeira que resseca a visão e sobe pelos pés, igual à assombração em busca de almas. O escritor carioca João do Rio falava, em 1908, que a rua nasce como o homem, do soluço, do espasmo, e que há suor humano contido na argamassa do seu calçamento, o que a transforma na mais igualitária, mais socialista e mais niveladora obra humana.2 O trabalho a céu aberto gera um conflito interno pelo desamparo, riscos em meio a uma sociedade violenta, como a cidade do Salvador, Bahia. Nesse sentido, a precariedade do trabalho remete a uma realidade de desabrigo, cuja produção nesse conjunto aberto é um campo a ser reconquistado a cada ocorrência de saúde nas ruas e habitações do bairro, enquanto trabalhador, Agente Comunitário de Saúde.3 Este trabalho apresenta a enunciação de um grupo desses trabalhadores que desenvolvem as ações necessárias para a materialidade de seu trabalho, tendo a rua como a cena principal. Um campo profissional novo, e que tem como pré-requisito que o profissional resida em sua área de trabalho. É um sujeito ativo que, no convívio familiar, social e profissional reage provocando mudanças e/ou transformações do cuidado de si, do outro e do meio social em que vive. Para que esse trabalhador não se encontre totalmente à deriva, há a Norma Regulamentadora No 21, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),4 que, ao fazer referência ao trabalho a céu aberto, coloca a obrigatoriedade da existência de abrigos para proteger os trabalhadores contra intempéries, insolação excessiva, calor, frio, umidade e eventos inconvenientes. A temática central deste artigo traz a violência no trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Uma questão relacionada à sociedade com extremas desigualdades geradas pelo desemprego, corrupção e impunidade. 98 Revista Baiana de Saúde Pública O estudo destaca esse trabalhador como protagonista central das diversas interfaces do trabalho, resgata a constituição do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) – origem desta categoria profissional – e compreende os fenômenos que surgem da relação entre o ACS e o ato laboral. Apresenta uma análise sobre o risco de violências percebido por eles em seu ambiente laboral a ponto de comprometer a organização de seu trabalho e dificultar as ações de prevenção e promoção à saúde da população assistida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A categoria profissional ACS é estruturada no início da década de 1990, em decorrência de algumas iniciativas exitosas de assistência social no estado do Ceará. Este tipo de atividade é considerado por alguns teóricos como sui generis, porque o(a) ACS é um(a) trabalhador(a) proveniente do próprio local de moradia, na qual desenvolve atividades nas áreas da saúde e educação. O PACS, incorporado ao Programa de Saúde da Família (PSF) em 1993, é um programa que faz parte das políticas de saúde pública e está vinculado ao SUS. O Ministério da Saúde (MS)5 entende que a criação do PACS foi uma das primeiras estratégias para se começar a mudar o modelo de assistência à saúde, sendo a meta desse programa contribuir para a reorganização dos serviços municipais de saúde e integrar as ações entre os diversos profissionais, com vistas à ligação efetiva entre a comunidade e as unidades de saúde. Uma estrutura de atenção à saúde é montada com uma equipe que projeta uma base assentada em agentes de saúde (trabalho casa a casa), um nível intermediário com auxiliares (trabalho de vacinação, procedimentos de enfermagem, triagem) e um topo com os profissionais universitários (em menor número e nos consultórios). A inserção do ACS como força de trabalho no SUS contribui com os cuidados primários de saúde à população, como também para o processo de municipalização da saúde. O trabalho do ACS é o elo entre a comunidade e os serviços de saúde. O Decreto Federal Nº 3.189, de 4 de outubro de 1999,6 fixa diretrizes para o exercício da atividade do ACS. Em seu artigo 2º são apresentadas as atuações previstas em sua microárea. Ou seja: Cadastramento/diagnóstico; Mapeamento; Identificação de microáreas de risco; Realização de visitas domiciliares; Ações coletivas e intersetoriais (educação, cidadania/direitos humanos). O trabalho do ACS diferencia-se dos demais trabalhadores da área da saúde em razão de sua atuação em várias situações ao mesmo tempo, as quais envolvem questões de saúde/doença, educação/informação, prevenção/assistência, bem como contato direto e constante com a população/comunidade. MATERIAL, TEORIA E MÉTODO O trabalho se dá num espaço que se atualiza no tempo: o bairro e seu cotidiano.7 Nesse aspecto, o estudo foi desenvolvido segundo a perspectiva da abordagem qualitativa, em que a análise responde a questões particulares, preocupando-se com um nível de realidade que v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 99 não pode ser quantificado. Buscou-se então a compreensão dos valores culturais e das representações desse grupo, as relações entre os atores sociais, tanto no âmbito das instituições como no mundo da vida cotidiana dos moradores, a aplicação técnica da promoção da saúde pelos usuários, os significados, crenças, valores, atitudes, correspondendo a fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de simples variáveis causais dos problemas de saúde.8 Uma abordagem bastante adequada e atualmente utilizada em pesquisa empírica de caráter qualitativo é a triangulação dos dados, cujo objetivo é abranger a máxima amplitude na descrição e compreensão do objeto/sujeito do estudo, por meio do cruzamento de múltiplos pontos de vista com base em uma série de informações e de diferentes instrumentos de coletas.9 A triangulação de dados numa abordagem qualitativa é necessária para o reconhecimento da subjetividade do pesquisador e dos sujeitos participantes da pesquisa, em todos os momentos.8,9 Assim, dada a subjetividade presente, quanto mais movimentos de aproximação com a realidade forem feitos, maior a chance de apreensão do objeto de estudo. Também a hermenêutica é uma ferramenta para a compreensão do texto, a unidade de sentido, as condições da vida dos sujeitos no cotidiano, o contexto.10,11 Os conteúdos das entrevistas e da observação participante foram analisados com recursos da hermenêutica e outros apresentados com ênfase numa grade de significantes. 11 Nesse aspecto, com base na fundamentação teórica e na pesquisa, foram elaboradas categorias de análise, como: organização de trabalho e formas de violência no cenário do bairro. Posteriormente a essas categorias, agregaram-se outras que surgiram em campo. Entre estas se destacam: o trabalho gerando satisfação, sofrimento no contexto da violência e seus reflexos para as atividades dos ACS. Sobre o trabalho, a subjetividade e a identidade do trabalhador, de maneira geral, a linguagem é a condição humana que capacita o reconhecimento de si e de outros12 e o significado organiza os sentidos de palavras dentro do contexto. A linguagem e seu significado expressam a dimensão subjetiva em cada cultura, espaço, tempo, história; a linguagem é uma prática social, um comportamento que serve aos mais variados objetivos e permite várias aplicações na vida cotidiana das pessoas, contribuindo na organização dos sentidos e/ou significados das experiências. A interação e a experiência coletiva são elementos importantes na constituição da identidade subjetiva e na construção de mecanismos defensivos contra as situações de risco nos diversos ambientes da vida humana. O coletivo instaura uma ética13 na qual são estabelecidos alicerces de confiança recíproca e fortalecimento da identidade pelo reconhecimento de todos os sujeitos do trabalho, respeitados em suas capacidades e sentimentos. Sem este processo não há construção de sentidos do trabalho para o trabalhador. E sem esse sentido, será impossível a mobilização conjunta de sentimentos e cognição para a sublimação e para a criatividade. 100 Revista Baiana de Saúde Pública Desse modo, o trabalho não é apenas uma atividade laboral, mas um dos elementos que intensifica as relações sociais, no processo mesmo de subjetivação e de constituição da identidade subjetiva e profissional. E será a linguagem o elemento central do ser individual e social para expressar os sentidos do trabalho. Entretanto, o trabalho tem conotação contraditória,14 pois se apresenta como instrumento de sofrimento e como elemento estruturante da sociedade. Como elemento estruturante, define a atividade subjetivante15 como vemos a seguir. SAÚDE E TRABALHO O trabalho exerce um papel fundamental em relação à saúde, pois tanto as condições do ambiente físico quanto a própria organização do trabalho podem provocar doenças físicas, acidentes e sofrimento psíquico nos trabalhadores. No tocante à relação saúde-trabalho, somente a partir das últimas décadas o trabalho passou a ser compreendido como um fator constitutivo de adoecimento, sendo as condições de trabalho impactantes para o corpo. Deste modo, a organização do trabalho tem como alvo o psíquico e o desejo. As precárias condições em que é executado amordaçam a liberdade de organização e adaptação. Em certas condições, emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que a ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o ser humano, no trabalho, já não pode fazer qualquer modificação na sua tarefa para torná-la mais conforme a suas necessidades fisiológicas e aos seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada.16 Vários autores1,14-16 tomam como ponto central de suas análises os conflitos do ser humano junto a sua situação laboral. Contra a angústia do trabalho, assim como contra a insatisfação, os operários elaboram estratégias defensivas, de maneira que o sofrimento só pode ser revelado por uma capa própria a cada profissão, que constitui de certa forma sua sintomatologia. O sofrimento começa quando a relação entre o trabalhador e a organização do trabalho é dificultada pelas condições externas ao trabalhador. Tendo em vista o trabalho dos ACS, é necessário olhar para este trabalhador como um ser ativo no processo de saúde-doença que deve ser escutado, com vistas à identificação dos aspectos do contexto laboral que o estão prejudicando. O ACS E SEU AMBIENTE DE TRABALHO: DESVENDANDO O TRABALHO E DESCOBRINDO VIOLÊNCIAS/SOFRIMENTO O ACS refere que o trabalho corresponde às suas necessidades de sobrevivência, tanto no que diz respeito ao valor capital/trabalho quanto no tocante à valorização pessoal. v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 101 Neste estudo, observaram-se atributos pessoais que proporcionam aos ACS satisfação no trabalho, conforme seus relatos sobre a valorização que sentem junto à comunidade. Ser morador e trabalhador da saúde traz inúmeras vivências ao ACS, julgadas por eles como positivas e negativas, gerando diferentes experiências. Cadastrar e posteriormente visitar as famílias é o instrumento utilizado para a vigilância à saúde da comunidade, seja no âmbito do PACS ou PSF. Em geral, as atividades desenvolvem-se a céu aberto, nas portas dos moradores, sendo executadas completamente fora do espaço institucional e exigindo do profissional uma dinâmica que muitas vezes foge do controle do profissional. “Acho que as pessoas têm confiança no meu trabalho. Elas vêm que meu trabalho é sério; eles têm confiança na gente.” (Francisca). “Algumas pessoas gostam do meu trabalho [...] a maioria abre as coisas que se passa na vida, que se passa na família [...] As pessoas deveriam me ver como profissional e não como vizinha; acho que eles atrapalham um pouco [...] a busca constante a nós ACS, nos finais de semana, feriado, chateia, mas também indica confiança no nosso trabalho.” (Elisa). Sendo um integrante da comunidade, o ACS vive situações semelhantes às dos usuários do serviço e uma relação de identificação com as condições de vida e saúde da população. Essa aproximação identitária de classe social possibilita compreender as condições e os valores socioculturais da comunidade, bem como as suas necessidades. “É bom porque está perto do trabalho, você não pega transporte, não passa por aquele tumulto de ter de acordar de madrugada, pegar ônibus, enfrentar a mesma situação na hora de voltar para casa; e também você conhece as pessoas com quem vai lidar na comunidade.” (Paloma). “A minha relação com a comunidade agora é outra, diferente da que tinha apenas como moradora [relação de vizinha]. Agora sou um referencial, um profissional de saúde, alguém que, por ter uma boa relação de vizinhança, e ser um representante da saúde, se tem uma maior confiança para se falar determinadas situações de vida, de saúde.” (Verônica). 102 Revista Baiana de Saúde Pública A despeito do reconhecimento e da valorização de alguns moradores, os agentes sentem a ambiguidade de sentimentos e emoções, ao considerar o sofrimento de moradores que passam pelo medo da violência de traficantes de droga no bairro. Os agentes têm vivenciado situações de risco, que os adoecem e os desmotivam ao trabalho. As dificuldades no seu trabalho são, portanto, relacionadas às pressões que sofrem na cotidianidade, proveniente do seu envolvimento com a população. “As pessoas não dão muita importância às situações que vivemos durante a realização de nosso trabalho no bairro.” (Verônica). “A desvalorização do profissional é grande; o próprio governo precariza as condições de trabalho do seu corpo técnico, quando não contrata a sua mão de obra de forma direta e terceiriza sua prestação de serviço.” (Núbia). “Uma das coisas que acho negativa em nosso trabalho é a interferência, em nossa vida particular pela comunidade, pois não tem dia nem horário; eles podem ver que você esta arrumada, não esta de farda e querem nosso trabalho.” (Lina). “O trabalho no PSF vai além de um trabalho técnico. Para mim, trabalhar no PSF somente como técnica é uma violência, tanto para a comunidade como também para com os trabalhadores que abraçam essa nova forma de fazer o SUS acontecer. Eu sei que eu trabalho, ultrapasso os meus limites, mas ultrapasso com consciência, talvez seja isso; a consciência, que me fortalece [mesmo com desânimo], fazendo com que o dia seguinte seja um novo dia de luta para ultrapassar as adversidades.” (Núbia). Sob o ponto de vista institucional, observa-se a desvalorização do trabalho do ACS, bem como certa pressão da comunidade que, reconhecendo nele um aliado, o procura incessantemente como porta voz de suas necessidades. Uma espécie de sofrimento psíquico se instala nesse profissional de saúde que idealiza para si uma expectativa em relação a sua competência no sistema de saúde, ao tempo em que esse sistema não responde às necessidades da população de modo imediato. Como um personagem mediador entre a institucionalidade e a comunidade, sente-se angustiado por não conseguir atender às demandas da população. Atribuir-se ao ACS o difícil papel de profissional que impulsiona a consolidação do SUS é um risco, uma vez que isto depende de uma série de fatores técnicos, políticos, sociais e v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 103 econômicos. Também se destaca nesse processo o envolvimento de diferentes atores, inclusive o próprio ACS, que, sem dúvida, tem um papel fundamental.12 Algumas dificuldades são relatadas pelos agentes como sinônimos de angústia. Uma delas refere-se ao fato de que, por serem moradores do bairro e trabalhadores da Unidade de Saúde Familiar (USF), tornam-se fontes de informação permanente do processo de organização dos serviços de saúde. O reconhecimento do papel social do ACS, muitas vezes visto como solidário (porque, para os moradores, ele não soluciona diversos problemas administrativos do sistema de saúde), recebe equivocadas interpretações, vez que sofre abordagens em qualquer local, independentemente do horário de trabalho, final de semana ou feriado. O indivíduo deixa inevitavelmente de ser um morador, um simples vizinho, para viver a condição de agente de saúde permanentemente. Nessa posição, deixa de participar da comunidade como um membro da coletividade e encarna um arquétipo que o distancia, o separa num dado momento, do mundo da vida cotidiana que antes possuía. “Acho ruim a invasão de nossa privacidade. Essa invasão da privacidade, que é natural, é uma espécie de violência, pois não temos o direito de descansar como todo trabalhador no seu horário após o dia de trabalho, sábado, domingo ou feriado.” (Lina). Apesar de a maioria dos trabalhadores entrevistados não trazerem de forma explícita questões de sua própria saúde frente às condições de trabalho, estudo15 desenvolvido pelos Núcleos de Saúde da Família do Centro de Saúde Escola, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP) relata que 70% dos ACS apresentaram sintomas de estresse. Para nossos entrevistados: “Se dependesse de meu marido, eu não estaria trabalhando como ACS. Ele acha esse trabalho muito cansativo; acha que eu me desgasto muito, que chego em casa sobrecarregada, sem muita paciência para corrigir o dever da menina.” (Verônica). “Ainda bem que, convivendo com essa realidade, nunca tive nenhum problema de saúde maior; apenas uma dor de cabeça de vez em quando, um estresse.” (Elisa). “Você sai do seu trabalho, mas aquela pressão vivida no ambiente de trabalho não sai de sua cabeça. Como fica então a sua relação com a família? Fico nervosa com algumas situações vividas no trabalho que interferem nas resoluções que tenho de tomar em minha casa.” (Lina). 104 Revista Baiana As pressões relatadas pelos entrevistados dizem respeito à relação de Saúde Pública profissional-organização. Consideram como forma de violência institucional o não oferecimento de infraestrutura para o trabalho que, frequentemente, leva a conflitos com os usuários; também referem a falta de entrosamento na equipe, o não reconhecimento do trabalho dentro da equipe, e o conflito de sentir-se morador e trabalhador do próprio bairro. “Minha equipe é capenga [...] É tão reduzida e sobrecarregada de trabalho e sem reconhecimento dos próprios colegas.” (Gertrudes). Outros dizem que a terceirização da saúde é uma “[...] falta de respeito do governo com os técnicos da saúde [...] A desvalorização do profissional é grande. O próprio governo desvaloriza a gente, quando não contrata a mão de obra de forma direta e terceiriza sua prestação de serviço.” (Núbia). Para o desenvolvimento do PSF, é essencial construir um modelo de organização de serviços baseado em condições sociopolíticas, materiais e humanas que viabilize um trabalho de qualidade tanto para os trabalhadores quanto para os usuários.17 Não atender a essa estrutura é correr o risco de deixar surgir a desmotivação do profissional, bem como desacreditar na proposta diante dos profissionais de saúde e da sociedade, que lutam para fazer valer o SUS. O profissional entende que, em sua realidade, melhores condições de trabalho significariam melhor assistência de saúde à população. A assistência preconizada pelo PSF é uma assistência familiar que pressupõe um acompanhamento de equipe com os ACS, e este é um nó que vem dificultando a sedimentação do programa. Para os agentes, outros profissionais, de maior qualificação técnica, não valorizam seu trabalho. Essa falta de diálogo com os agentes é percebida por eles como uma indiferença institucional. “O que eu observo é que os trabalhadores [médicos e os outros profissionais de saúde] do PSF não estão preparados para abraçar essa nova forma de fazer saúde, trabalhar em equipe. Eles ainda têm aquela visão de tratamento apenas baseado no medicamento, na vinda do doente para o posto de saúde; a comunidade não é ouvida, para que se efetive de fato um trabalho de prevenção.” (Verônica). “Apesar de todos no posto de saúde saberem dessas ocorrências, não foi tomada nenhuma providência. O que eu penso disto é que as pessoas [outros profissionais de saúde] não dão importância ao outro [povo]. Eu pedi à gerente na época para fazer um relatório de porque que eu não faço mais visita a essa família e isso não foi feito. Então eu não tenho mais ninguém a quem apelar; é uma falta de cuidado da equipe em relação aos acontecimentos da comunidade que dificultam o nosso trabalho.” (Tâmara). v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 105 “Os ACS são os mais solidários no trabalho. O restante da equipe também é importante, mas existe uma divisão, uma falta de entrosamento na equipe de saúde e isso atrapalha o trabalho.” (Gertrudes). “Para que o meu trabalho aconteça, eu preciso que o trabalho de toda a equipe também aconteça.” (Núbia). Não há, pois, uma continuidade do trabalho, como observam os agentes comunitários. O trabalho é considerado um atributo humano, pois só o homem idealiza seu resultado final. Para a realização do trabalho, além do esforço, é preciso a vontade durante todo o curso do seu desenvolvimento. Nesse sentido, quaisquer fatores que atuem sobre algum dos elementos que compõem esse processo tendem a modificá-lo de forma positiva ou negativa. Sobre isto, cita-se trabalho sobre gestão contemporânea,18 que faz referência à constante preocupação do trabalhador em relação à motivação para o trabalho, que se justifica na relação satisfatória entre o indivíduo e sua tarefa. São frequentes as explicações para o baixo rendimento, para o absenteísmo e atraso, pela falta de motivação que leva ao desânimo, à solidão do trabalho. No entanto, se houver motivação, nasce o entusiasmo, a dedicação, a cooperação e a produtividade. “Hoje eu sinto a minha saúde um pouco abalada. Acredito que é por causa do trabalho, tanto pelo desgaste físico como emocional. Subo e desço muita ladeira e escada e não sinto que faço bem o trabalho. Para a comunidade, o ACS é o salvador, mesmo sabendo que o funcionamento da unidade de saúde é de 2ª a 6ª feira. Se eles sentem alguma coisa, procuram logo a gente para marcar uma consulta; isso não tem horário; pode ser à noite, domingo, feriado.” (Verônica). “Trabalhar nessas condições é desgastante, acaba interferindo em minha vida, em minha saúde, vou entristecendo com o meu trabalho, vou adoecendo.” (Núbia). O entristecimento e o estresse ocorrem principalmente pela quebra da continuidade do trabalho da equipe do PSF. O que fazer diante de diversos problemas de saúde? 106 Revista Baiana de Saúde Pública Essas situações vivenciadas pelos ACS agem negativamente em suas próprias condições de saúde, pelo desapontamento e perda de satisfação com o trabalho. Ademais, eles se sentem vítimas de agressão e evitam exposições às situações semelhantes geradoras da violência experienciada. A defesa adotada por esses ACS para poder continuar exercendo suas atividades no ambiente de trabalho é fingir que nada acontece ou aconteceu, colocando em cena a necessidade de naturalizar as várias formas de violência nesse contexto. A violência da falta de serviços de saúde em suficiência, interrompendo a equipe enquanto parte do sistema de saúde, a violência dos tidos como marginalizados, entre traficantes e outros que dominam o bairro, submetem a população ao silêncio e ao medo. Vivenciar essas e outras situações de violência produz reflexos em suas vidas pessoais e profissionais que precisam ser analisados enquanto efeitos dos riscos do trabalho dos ACS. Em locais de maior pobreza e maior vulnerabilidade social, torna-se ainda mais difícil para esses trabalhadores desempenhar qualquer papel na equipe de saúde. Do exposto sobre o ambiente de trabalho dos ACS, suas atividades “a céu aberto”, evidencia-se a necessidade de uma profunda reflexão ética. Até que ponto o governo pode garantir-lhes segurança no trabalho? Até que ponto estão realizando um trabalho que proporcione saúde para todos? Este estudo permitiu concluir-se que a violência aqui em relevo é também entendida como um mal-estar gerado pela insatisfação relatada pelos sujeitos da pesquisa, categorizada neste trabalho como violência institucional e situada ao lado da violência estrutural. Esses profissionais de saúde deixam transparecer em suas falas que o processo de trabalho tem acontecido sob precárias condições materiais e emocionais, com prejuízo de sua motivação e ameaça constante da qualidade da assistência prestada à população adstrita. Essas condições de trabalho exigem do profissional uma capacidade extraordinária de recriação do modus operandi na cotidianidade de seu trabalho, de forma solitária ou somente contando com os seus pares, quando é possível. Os ACS tentam redimensionar conceitos e conflitos, até mesmo acreditar ser ético ao ignorar ou omitir determinadas situações de violência que presenciam, como forma de se proteger e de garantir seu trabalho. Tomando como referência o que foi revelado pelos ACS do Candeal, esta pesquisa, em seus múltiplos aspectos, confirma a violência como um grave problema de saúde pública, que vem impactando a garantia aos usuários de uma melhor qualidade de vida e saúde e, aos trabalhadores do sistema, a dificuldade em executar ações de prevenção e promoção da saúde da população assistida pelo SUS. v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 107 As subjetividades dos profissionais ACS expressam as características de um trabalho dominado pelo medo da violência, ao tempo em que se tem como axioma do trabalho o estabelecimento de vínculos e comprometimentos com a comunidade. Assim, mediações no sentido da prevenção e controle das situações de violência no ambiente de trabalho, embora difíceis por exigirem abordagens que vão além daquelas estabelecidas pela segurança pública, são urgentes antes que alcancem patamares mais alarmantes, tendo em vista que as medidas isoladas adotadas pela segurança pública são reconhecidamente ineficazes. Diante dos enunciados dos agentes sobre sua realidade concreta de viver no limite de suas condições físicas e emocionais, considera-se fundamental a revisão dessas ações de saúde como parte do complexo da política de saúde e no contexto da guerra urbana instalada nos grandes centros da sociedade brasileira. Também se reconhece a importância de novos investimentos em investigações dessa natureza, para revelar as condições reais de trabalho e contribuir com a discussão sobre ambiente e condições dignas de trabalho. REFERÊNCIAS 108 1. Seligmann-Silva E. Desgaste mental no trabalho dominado. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Cortez; 1994. 2. Minayo MCS, Souza ER. É possível prevenir a violência? Reflexões a partir do campo da saúde pública. Ciênc Saúde Col. 1999;4(1):7-23. 3. Santos M. Pensando o espaço do homem. 5ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2004. 4. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Norma Regulamentadora No. 21 – Trabalhos a céu aberto. Publicação: Portaria GM n. 3.214, de 8 de junho de 1978. Alterações/Atualizações Portaria GM n. 2.037 de 156 de dezembro de 1999. Extraído de [http://www.mte.gov.br/legislacao/ normas_regulamentadoras /nr_21.pdf], acesso em [24 de setembro de 2007]. 5. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Modalidade de contratação de agentes comunitários de saúde: um pacto tripartite. Programas e Relatórios, n. 69. Brasília; 2002. 6. Brasil. Decreto Nº 3.189, de 4 de outubro de 1999. Fixa diretrizes para o exercício da atividade do ACS. Brasília; 1999. Extraído de [portal.saude.gov.br/ portal/arquivos/ pdf/Decreton3.189.pdf], acesso em [24 de setembro de 2007]. Revista Baiana 7. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em Saúde. São Paulo: Hucitec; 1996. 8. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: a interface entre trabalho e interação [Tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1998. 9. Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2002. de Saúde Pública 10. Gadamer H. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; 1999. 11. Laville C, Dionne J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1999. 12. Tomaz JBC. O agente comunitário de saúde não deve ser um “superherói”. Interface – Comun Saúde Educ. 2002;6(10):75-94. 13. Tittoni J. Subjetividade e trabalho. Porto Alegre: Ortiz; 1994. 14. Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise de relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994. 15. Camelo SHH. Sintomas de estresse nos trabalhadores atuantes em cinco núcleos de saúde da família [Dissertação]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2002. 16. Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5ª ed. São Paulo: Cortez; 1992. 17. Ribeiro EMPD, Pires D, Blank VLG. A teorização sobre processo de trabalho em saúde como instrumental para análise do trabalho no Programa Saúde da Família. Cad Saúde Públ. 2004;20(2):438-46. 18. Motta PR. Gestão contemporânea: a ciência e a arte de ser dirigente. Rio de Janeiro: Record; 1993. Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 15.04.2011 v.35, n.1, p.96-109 jan./mar. 2011 109 ARTIGO ORIGINAL FEIRA LIVRE E RISCO DE CONTAMINAÇÃO ALIMENTAR: ESTUDO DE ABORDAGEM ETNOGRÁFICA EM SANTO AMARO, BAHIAa Mirella Dias Almeidab Paulo Gilvane Lopes Penac Resumo O objetivo deste estudo foi compreender os significados do risco da contaminação alimentar para os feirantes de Santo Amaro, Bahia. Tratou-se de um estudo de abordagem etnográfica, utilizando técnicas de entrevista semiestruturada, diário de campo e observação participante. O processo de compreensão foi desenvolvido pela análise hermenêutica, identificando-se os significantes das falas. Constatou-se que os significados da contaminação alimentar são construídos muito mais por influências culturais do que pela interferência de conhecimentos técnico-científicos. A noção de contaminação restringiu-se às percepções dos sentidos. Contaminantes físicos visíveis e odores desagradáveis são os possíveis transmissores de doenças e impurezas. A contaminação microbiana é desconhecida pelo feirante que, em geral, concebe o perigo por meio dos miasmas como na era pré-microbiana (os microorganismos são invisíveis no plano real). O agrotóxico é representado como algo imponderável, invasor do mundo conhecido, provocando estranhamento na relação dos feirantes com os alimentos. A possível contaminação pelo chumbo foi naturalizada pelos entrevistados e percebida como algo distante, relacionada à fábrica. A percepção do risco está presente no pensamento e na reflexão, quando há questionamento acerca do tema, mas não na prática cotidiana. Palavras-chave: Feira livre. Contaminação alimentar. Chumbo. Projeto financiado pelo CNPq. Mestre em Saúde Ambiente e Trabalho. c Professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor pela École des Hautes Études en a b Sciences Sociales (EHESS), Paris. Endereço para correspondência: Rua Bahia, nº 721, apart. 101, bloco A, Pituba, Salvador, Bahia. CEP: 41830-161. [email protected] 110 Revista Baiana de Saúde Pública THE STREET MARKET AND THE RISK OF FOOD CONTAMINATION: AN ETHNOGRAPHIC APPROACH STUDY IN SANTO AMARO, BAHIA Abstract The research aim was to understand the meanings of food contamination to the street market vendors of Santo Amaro, Bahia. This study has an ethnographic approach, using semi-structured interview techniques, field diary and participant observation. The process of understanding was developed through hermeneutic analysis, identifying the significance of narratives. It was found that meanings of food contamination are built much more by cultural influences, based on beliefs and customs than by interference of technical-scientific knowledge. Notion of contamination was restricted to the sense perceptions. When food shows uncharacteristic signs, this indicates a nuisance or association to danger. Visible physical contaminants and unpleasant odors are potential transmitters of disease and impurities. Microbial contamination is unknown for street market vendors, who usually see the danger through miasmas as in the pre-microbial age (microorganisms are invisible in the real plane). Pesticides are represented as something imponderable, invasive of the known world, causing estrangement in the relationship of street market vendors with food. The possible contamination by lead was naturalized by the respondents and perceived as distant, related to factories. The perception of risk is present in thought and reflection, when questioned about the issue, but not in daily practice. Key words: Street market. Food contamination. Lead. MERCADILLO AL AIRE LIBRE Y EL RIESGO DE CONTAMINACIÓN ALIMENTARIA: ESTUDIO DE ABORDAJE ETNOGRÁFICO EN SANTO AMARO, ESTADO DE BAHIA Resumen Este estudio tuvo como objetivo comprender los significados del riesgo de la contaminación alimentaria para los vendedores del mercadillo de Santo Amaro en el estado de Bahia. Se trató de un estudio de abordaje etnográfico, utilizando técnicas de entrevista semiestructurada, diario de campo y observación participativa como técnicas. El procedimiento de comprensión fue desarrollado mediante análisis hermenéutica, siendo identificados los significados de lo dicho por los entrevistados. Se constató que los significados de contaminación alimentaria son construidos más por influencias culturales, que por la interferencia de conocimientos técnico-científicos. La noción de contaminación se restringió a las percepciones de los sentidos. Contaminantes físicos visibles y olores desagradables, son los posibles transmisores de enfermedades e impurezas. La contaminación microbiana es desconocida por el vendedor, que en general concibe v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 111 el peligro por medio de los miasmas como en la era pre-microbiana (los microorganismos son invisibles en el plano real). Los agro-tóxicos son representados como algo imponderable, invasores del mundo conocido, provocando extrañeza en la relación de los vendedores de mercadillo con los alimentos. La posible contaminación por plomo fue aceptada por los entrevistados, que mostraron una percepción de algo distante, relacionada con la fabricación. La percepción del riesgo está presente en el pensamiento y en la reflexión, cuando es cuestionado el tema, pero no en la práctica cotidiana. Palabras-clave: Mercadillo al aire libre. Contaminación alimentaria. Plomo. INTRODUÇÃO A feira é um espaço polissêmico em que vidas se cruzam, convivem e experimentam um cotidiano de diversidades. Feirantes, consumidores, transeuntes, turistas, crianças, idosos, mendigos e animais dividem o mesmo lugar. Conversas que se misturam num som confuso, imersas em cheiros e maus cheiros de restos de alimentos espalhados pelo chão, em meio à aparente desorganização das barracas, oferecem às centenas de olhares uma exposição de mercadorias das mais coloridas, distintas e vindas de diferentes lugares. A feira constituiu-se em um importante fator de distribuição e dinamizador econômico, desenvolvendo o processo de comercialização e de trocas inter-regionais, sobretudo no Norte e Nordeste do Brasil, onde estão envolvidas nos sistemas de mercado regional, reagindo às mudanças que ocorrem no campo político e econômico do país, representando um dos principais meios de sobrevivência para as populações das pequenas cidades dessas regiões.1,2 Sua significância econômica expressa-se tanto para os feirantes, que muitas vezes têm na feira sua principal fonte de renda, como também para os consumidores, que podem encontrar nelas alimentos a preços mais acessíveis. Representa também o lugar de sociabilidades, aproximando pessoas e fortalecendo os laços de afeto entre aqueles que nela trabalham para sobreviver ou que apenas se ocupam para ter um que fazer. A feira é livre e livre sentem-se seus feirantes. Entretanto, diversos estudos centrados na esfera dos riscos biológicos demonstram as inadequadas condições de higiene nesses locais, aliadas às adversidades da estrutura física e ao precário conhecimento dos feirantes sobre as boas práticas de manipulação e comercialização de alimentos.3-5 Esses fatores podem representar riscos à saúde pública pela veiculação de doenças transmitidas por alimentos e ambientes contaminados pela presença de lixo e saneamento precário, a exemplo das toxinfecções alimentares, necessitando de uma intervenção para melhoria da atividade e proteção à saúde dos consumidores. 112 Revista Baiana de Saúde Pública O enfoque nas referências às ciências biológicas com que este assunto é tratado não enfatiza os valores culturais dos sujeitos feirantes em seu processo de aprendizagem e experiências sobre as noções de higiene e contaminação alimentar.5 As autoras revelam a falta de efetividade das leis sanitárias e a pouca influência destas na construção das práticas higiênicas. Os fiscais municipais adotam medidas coercitivas e punitivas, em detrimento de uma via dialógica entre os personagens da feira. A carência de higiene, organização, qualidade de vida, saneamento básico e a precária infraestrutura (falta ou inadequação de estacionamentos e de sanitários públicos), aliada ao desinteresse do poder público municipal foram detectados em estudo realizado na feira de Barreiras, município do estado da Bahia.6 Entretanto, nesse estudo, foi constatado que a população não deseja mudar esta “desordem”, apenas almeja por mais conforto. Somam-se a estas questões, a exposição dos feirantes a variações climáticas, longa jornada de trabalho, ausência de dispositivos e mecanismos básicos de proteção, entre outros múltiplos fatores de risco para a saúde.7,8 Outro dado preocupante diz respeito à contaminação alimentar por agrotóxicos, em razão das escassas informações disponíveis sobre a exposição a estas substâncias e da liderança mundial do Brasil nesse consumo.9 Além disso, há dificuldade em controlar os efeitos provocados pelo uso desses produtos, devido ao fato de ser uma contaminação “invisível”. Diante disso, o consumidor é impossibilitado de reconhecer os alimentos que receberam a pulverização de produtos não permitidos ou além do limite autorizado. “De forma geral, a aplicação está presente na maior parte das culturas, mas as que mais trazem preocupação são aquelas consumidas em grande quantidade pela população na forma in natura”,10:361-362 a exemplo dos alimentos frescos, vendidos em feiras. Em 2004, o mercado de agrotóxicos movimentou no Brasil cerca de 4,2 bilhões de dólares. Revertido este valor para a saúde humana, os danos causados estendem-se a longo prazo, envolvendo riscos que podem ser cumulativos e até desconhecidos. Para o trabalhador rural, no entanto, os riscos são imediatos, devido, principalmente, à falta de orientações adequadas.10 No caso dos feirantes, a contaminação pode ser ocasionada pela manipulação e ingestão de alimentos contendo resíduos de agrotóxicos. Com base nestas considerações, alia-se a estas questões a inserção do estudo na região de Santo Amaro, onde ocorreu uma das maiores contaminações químicas por metais pesados do mundo, principalmente por chumbo, atingindo a população local pela contaminação do ar, da água, do solo ou dos alimentos.11-13 Essa particularidade do município traz novos significados para a percepção da contaminação alimentar na feira popular, motivo de escolha do local da pesquisa. v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 113 Neste sentido, esta pesquisa busca maior aproximação com a realidade dos feirantes em Santo Amaro, Bahia, no intuito de compreender os significados da contaminação alimentar, microbiológica ou química, inseridos no cenário de contaminação ambiental. A compreensão dos signos socialmente (re)construídos entre esses sujeitos irá contribuir para desvendar os significados da contaminação alimentar no cotidiano da feira em um município atingido por grave problemática ambiental. Para tanto, trata-se de um objeto inscrito no universo simbólico, o qual abordará aspectos culturais. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS A pesquisa ocorreu no município de Santo Amaro, Bahia, e o trabalho de campo foi desenvolvido no período de janeiro de 2009 a janeiro de 2010, por meio de 18 visitas. Trata-se de um estudo de abordagem etnográfica, que privilegia a experiência do sujeito, permitindo ao pesquisador maior aproximação com a realidade desse, mediante uma imersão em profundidade no fenômeno da contaminação alimentar. Além disso, possibilita adentrar no mundo particular do “outro” sujeito, por meio de uma “descrição densa” dos significados construídos e reconstruídos pelos agentes sociais como uma teia que interliga de forma holística os aspectos objetivos e subjetivos de sua cultura.14 Para obtenção dos dados, foram utilizadas algumas técnicas das ciências humanas, como a entrevista semiestruturada, o diário de campo e a observação participante ou direta. Essas técnicas foram válidas para alcançar a compreensão dos significantes e outros signos das narrativas. O processo de compreensão desenvolveu-se pela análise hermenêutica apoiada em repetidas leituras da narrativa textual. Nesse processo de compreensão, foram identificados os significantes ou unidades analíticas das falas, que são entendidos como expressões mais significativas do problema.14 Estes são tecidos pela própria fala dos sujeitos, interligadas ao seu contexto social, revelando similitudes e diversidades do fenômeno estudado. As entrevistas foram realizadas com sete feirantes, após apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo consideradas satisfatórias quando as narrativas sobre o objeto tornaram-se similares.15 As entrevistas foram transcritas para análise textual. A observação participante permite ao pesquisador captar situações não obtidas pela entrevista, mas que são percebidas na própria realidade.16 Também foram registrados outros detalhes que subsidiaram as observações, além das falas. Os nomes dos sujeitos são fictícios para preservar-lhes as identidades. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB). 114 Revista Baiana CARACTERÍSTICAS DA FEIRA de Saúde Pública A feira está localizada no centro da cidade, estendendo-se por cerca de 500 m, e apresenta grande concentração no Largo do Mercado. Esta é permanente e típica do nordeste brasileiro. Apresenta produtos diversos, como roupas, calçados, acessórios, bijuterias, utensílios domésticos, brinquedos, materiais eletrônicos, material escolar, produtos de limpeza, flores, alimentos em geral, entre outros. Os produtos são expostos em barracas, bancas, carros de mão, balaios de madeira, caixotes plásticos ou de madeira, em lonas, sacos plásticos ou diretamente sobre o chão. Quanto à situação da feira e ao seu ordenamento, os pontos de venda expõem materiais diversos, sem padronização, e ocupam o logradouro público, incluindo passeios e ponte; o lixo é produzido a céu aberto, sendo foco de doenças, além de obstruir a rede pluvial, existindo poucas lixeiras no local; os feirantes possuem precárias condições de trabalho; as condições de higiene na comercialização de alimentos e conservação de mariscos, carnes e vísceras são inadequadas. Os feirantes dividem o local com animais, principalmente cachorros, que se aglomeram nas bancas de mariscos e carnes, urinam nas barracas (onde são guardados os alimentos) e defecam no chão. O abastecimento de água é praticamente inexistente, sendo observadas apenas as torneiras dos sanitários disponíveis dentro do Mercado, utilizadas para lavagem de mãos. CONTAMINAÇÃO ALIMENTAR NA VISÃO DOS FEIRANTES As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados, mas estes significados não podem ser determinados com base em propriedades biológicas ou físicas.17 Neste sentido, as ideias de impureza são expressões de sistemas simbólicos e a diferença entre os comportamentos face à poluição em qualquer parte do mundo é apenas uma questão de pormenor.18 O impuro e o poluente devem ser abordados pelo prisma da ordem, devendo ser excluídos quando se quer manter a ordem. A impureza é o subproduto de uma organização e de uma classificação da matéria, na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados.18 A impureza é concebida como uma espécie de compêndio de elementos repelidos pelos sistemas ordenados ou esquema habitual de classificação, como se verifica nos seguintes exemplos: os sapatos não são impuros em si, mas é impuro colocá-los sobre a mesa de jantar; os alimentos não são impuros em si, mas é impuro deixar os utensílios de cozinha num quarto de dormir. Neste sentido, qualquer objeto ou ideia que traga confusão ou contradiga nossas v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 115 classificações face à poluição é condenado pelo comportamento e hábitos mais profundamente enraizados.18 O relato de um dos entrevistados apresenta um exemplo desse tipo de classificação: “Todo dia eu varro minha barraca. Vou trabalhar em lugar sujo [desorganizado]?” (Joana, 48 anos). Abstraindo-se a patogenia e a higiene das ideias sobre a impureza, fica-se com “[...] a velha definição nas mãos: qualquer coisa que não está no seu lugar”,18:30 como se pode notar na fala do feirante: “Aquilo ali no chão mesmo está errado [frutas vendidas no chão sobre um plástico]. A única coisa que eu acho errado aqui é isso. Eu jamais colocaria uma mercadoria minha no chão; eu não boto.” (Pedro, 43 anos, grifo nosso). A cultura, ao mediar a experiência dos indivíduos, no que se refere aos valores públicos e padronizados de uma comunidade, fornece-lhes algumas categorias básicas, uma esquematização positiva na qual ideias e valores se encontram dispostos de forma ordenada e, sobretudo, exerce certa autoridade, fazendo com que os indivíduos se conformem porque os outros também o fazem.18 Esta relação de autoridade e conformismo pode ser observada entre alguns feirantes, que mantêm algumas práticas anti-higiênicas, como expor determinados alimentos no chão da feira. A diferenciação social provoca uma tomada de consciência da sociedade e dos mecanismos da vida em comum, como também se faz acompanhar de certas formas de coerção social, de incentivos materiais ao conformismo, de sanções punitivas particulares, de um corpo policial, de inspetores e de homens especializados que vigiam os atos com todo um aparato de controle social.18 Historicamente, até o século XVII, as regras de higiene eram impostas à população, muito mais como um ato civilizador e de adestramento do que um ato de cuidado com a saúde e prevenção de doenças. As práticas de higiene eram normas de civilidade e algumas formas de comportamentos eram proibidas por questões de estética, por serem feias à vista e gerarem associações desagradáveis.19 Neste estudo, percebe-se que as noções acerca da contaminação na feira têm pouca interferência de conhecimentos técnico-científicos, ressaltante da baixa escolaridade dos sujeitos e da falta de ações educativas, principalmente, quanto à noção de contaminação microbiológica. Nas conversas informais com os feirantes, o tema da contaminação não aparecia; apenas quando questionados, o assunto era tratado por eles e, ainda assim, nem todos se sentiam à vontade para falar, talvez porque fosse difícil descrever algo que não existe na sua realidade imediata, nas reflexões cotidianas, e permanece na invisibilidade. Apenas uma feirante relatou em sua fala o cuidado com a higiene para evitar contágio por bactérias, citando a casa como o lugar da limpeza. As noções de contaminação microbiológica, 116 Revista Baiana de Saúde Pública porém, não foram explícitas. A dificuldade de explanação dos feirantes sobre o tema, os quais utilizam expressões vagas, de caráter tautológico, foi detectada em estudo sobre a categoria higiene.20 Para evitar a contaminação, os entrevistados acreditam que a lavagem e o cozimento são os processos mais importantes para limpeza dos alimentos. Por isso, as práticas de higiene inadequadas observadas na feira parecem não importar tanto aos feirantes, como se a feira fosse um lugar de sujeira. Assim, a limpeza dos alimentos deve ocorrer em casa, ambiente familiar, limpo, “conhecido”, ordenado. Os feirantes expressaram a preocupação em não vender alimentos no chão, pois, além da ideia de desordem, o chão representa as sujidades acumuladas na feira, como lixo, poeira, excrementos humanos e de animais que representam os contaminantes físicos visíveis, possíveis transmissores de doenças e impurezas. Esta visibilidade também foi destacada em estudo que refere a dificuldade dos feirantes em associar a contaminação a algo não percebido pelo olhar.20 “O chão é sujo, porque as pessoas escarram, fazem xixi, passa rato, tem lama.” (Dalva, 68 anos, grifo nosso). Os animais, como ratos, cachorros e insetos (moscas e baratas), são vistos como fonte de contaminação por transmitirem doenças. Citam como doenças a raiva e a leptospirose, ressaltando que foi relatado um caso de morte de um feirante por leptospirose. Entretanto, são tratados com naturalidade, como evidencia a fala de Berenice (52 anos): “Na feira tem tudo, mosca, rato. Qual a feira que não tem?” O risco de contaminação existe para os feirantes quando os alimentos ficam expostos às sujeiras sem uma proteção, como a melancia aberta. A casca representa um papel protetor, como uma carapaça, uma embalagem, tornando desnecessária a lavagem dos alimentos, quando é consumida apenas a polpa. Por isso, não existe o risco, quando estes possuem casca e quando esta não é comestível, protegendo os alimentos dos contaminantes externos. A proteção é intrínseca à natureza. “O coco tem a casca, então protege. A uva, caju têm casca, mas se come a casca.” (Dalva, 68 anos, grifo nosso). Historicamente, antes de Pasteur, acreditava-se que a contaminação era transmitida por miasmas, considerados danosos a saúde, conforme antiga teoria miasmática da medicina, mantida presente no imaginário popular, que consistia na absorção de ar corrupto que degenerava os humores corporais.21,22 Nesse período, até meados do século XIX, o olfato era detector de perigos, sendo importante para identificar o ar fétido, que representava o perigo.22 Portanto, a noção de contaminação associa-se ao que os órgãos dos sentidos são capazes de perceber. Além do aspecto visual e aparente, o paladar e o olfato são utilizados no processo de identificação de alimentos estragados ou contaminados, quando os mesmos apresentam cheiros, sabores e aromas não característicos, indicando uma perturbação da ordem. v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 117 O mesmo se pode relacionar ao lixo, o qual incomoda devido ao mau cheiro que torna o ambiente desagradável, como também ao incômodo visual. O cheiro, porém, não identifica apenas o lixo, é associado ao perigo.22 Como cita Berenice, “[...] as doenças estão vindo pelo ar que a gente nem sabe”, ao associar as doenças com os miasmas, mas não com os alimentos, como na época pré-científica. No passado, a limpeza era relacionada ao cuidado estético mais que ao higiênico.23 Com a evolução da história, o foco voltou-se para a saúde. No entanto, entre os feirantes, pode-se observar uma associação entre sujo e limpo relacionada à aparência, pois a retirada do lixo simboliza não necessariamente o afastamento do perigo (contaminante), mas sim do incômodo. Neste sentido, a contaminação microbiológica permanece velada na feira, significada apenas nos discursos técnico-científicos, os quais não fazem parte do cotidiano desses sujeitos. Os aspectos mais relevantes para a construção simbólica do fenômeno da contaminação correspondem ao que o olhar é capaz de enxergar e ao que se pode sentir e cheirar, considerando a ordem do lugar e das coisas. O saber sobre o perigo vai-se constituindo na relação com o mundo e com o outro, com base nas vivências cotidianas. Os feirantes também foram questionados quanto à contaminação alimentar por metais pesados, em especial o chumbo, devido à constatação dos danos à saúde da população santamarense causada pela Companhia Brasileira de Chumbo (COBRAC).11,12,24 De acordo com os dados apresentados no relatório da Coordenação Geral de Vigilância em Saúde Ambiental (CGVAM),11 as emissões de metais ocorreram na forma de material particulado expelido pela chaminé da usina, por efluentes líquidos despejados diretamente no rio Subaé ou por transbordamento da bacia de rejeito, por águas de drenagem da área de estocagem de escória e deposição da escória na pavimentação das casas e logradouros públicos. Essa exposição humana aos contaminantes químicos atingiu a população, principalmente os ex-trabalhadores da fábrica e as crianças, susceptíveis à exposição, o que ocasionou doenças, como alterações fetais, anemia e sinais e sintomas de saturnismo, como adinamia, fraqueza muscular, dor em membros inferiores e superiores, cãimbras, irritabilidade, tonturas, nervosismo, inapetência e cólicas abdominais,11,12 além de expor a população ao risco de câncer, doença renal crônica (nefrose, nefrite), hipertensão arterial e doença cerebrovascular.11 Assim como foi descrito que o cheiro fétido do lixo representava risco de contágio de doenças, durante o período de funcionamento da COBRAC, o chumbo mantinha-se invisível para a população, que apenas identificava o cheiro forte trazido pela fumaça expelida da chaminé, como se a fumaça também fosse um miasma, pois causava mal-estar nas pessoas expostas. 118 Revista Baiana de Saúde Pública A fumaça, enquanto uma “entidade viva”, que entrava nos corpos e comia tudo por dentro, disseminava-se pelo ar e, com ela, levava a poeira ou o pó que contaminava a cidade, as pessoas, os animais, o solo, o ar, o rio e os alimentos. “Quando o vento baixava, que arriava a fumaça acabava com a cidade.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). Passados 17 anos de fechamento da fábrica, nota-se nas narrativas uma naturalização do risco, assim como observado em estudo que mostra a relação cotidiana da comunidade com o amianto, o que torna natural “[...] brincar com as pedras de amianto, extrair os veios fibrosos de amianto das pedras, ornamentarem casas, apreciar a pedra que brilha sob o sol forte e reluz, pavimentar casas, frequentar a mina como local de lazer, etc.”. 25:53 A autora revela que o minério faz parte da vida das pessoas, não representando um risco de contaminação, mas sim uma fonte de renda e um fruto da terra, “terra esta que serve para lavrar, colher, viver”. Em Santo Amaro, a fábrica de fundição de chumbo também representava uma fonte de renda que contribuía para movimentar a economia local, principalmente para os feirantes. A necessidade de sobrevivência e a vivência com o chumbo, mesmo que indireta, tornaram-no, assim como o amianto, parte do cotidiano das pessoas. A escória produzida pela fundição contaminada por metais pesados era utilizada pela prefeitura, para pavimento de rua, e por moradores residentes em torno da indústria, para pavimento de quintais. Os filtros da chaminé da fábrica eram usados por alguns moradores como tapetes nas casas. Para alguns feirantes, a fábrica já se constituía em algo familiar, como o caso de Carmem, que refere ter nascido junto com a COBRAC. “Toda minha vida, toda minha juventude, fui criada ali mesmo. A fazenda está lá até hoje. E tudo que tinha dali eu catava para comer, vender e para sobreviver.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). Alguns entrevistados não sentiam receio em consumir os alimentos plantados na região próxima à fábrica, devido à falta de informação, pois o risco não era divulgado, como também a sobrevivência de muitos dependia do que era plantado e catado no mato. Quando questionados sobre a possibilidade de contaminação dos alimentos pelo chumbo, os entrevistados acreditam que o minério é contaminante, pois “O chumbo acaba com tudo” (Francisca, 69 anos). Os feirantes que residiam próximos à COBRAC relatam que, ao serem alertados sobre os malefícios ocasionados pelo chumbo, passaram a não consumir os alimentos da região próxima à fábrica. A maioria dos entrevistados não cita a possibilidade de contaminação em áreas mais afastadas, como a zona rural, atingidas, por exemplo, pelo material particulado suspenso das emissões expelidas pela fundição. Apenas Carmem, quando se mudou de cidade, e Antônia citaram esta possibilidade. v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 119 “Depois que eu me casei, fui morar na Usina São Carlos [região de São Sebastião do Passé]. A fumaça ia lá na Usina. Tiveram que fazer mais alto ainda o bueiro [chaminé] [...] O cheiro ia longe, ia longe mesmo. O cheiro da COBRAC não era fácil.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). A despeito de os feirantes referirem que o chumbo contamina o alimento, revelam que a comunidade, mesmo já possuindo algum conhecimento sobre o risco de contaminação, não só consumia os alimentos produzidos no terreno da fábrica, como os retiravam para vender. O risco permaneceu invisível para muitas pessoas, possivelmente por não reconhecer o alimento como contaminado, visto que o aroma e a imagem permaneciam inalterados. “A manga, a goiaba a gente não podia chupar. Fruto nenhum que desse ali por aquela região, a gente não podia usar. Mas mentira que continuava chupando manga, comendo goiaba, chupando cana e tudo mais, porque comia e não tinha nada.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). O fato de comer e não ter nada, como cita Carmem, pode ser considerado como um dos motivos pelos quais a população ignora o risco de contaminação. Para outros, esta ideia parece uma proteção individual ou até religiosa, uma maneira de continuar vivendo em um ambiente contaminado, como se o corpo fosse um teste para a qualidade do alimento. “Eu fui criada tomando aquela fumaça toda ali. Deus teve misericórdia de mim que eu não tive nada.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). A feirante relata ainda a experiência que teve com a avó que, não obstante a exposição diária, por morar ao lado da fábrica, faleceu com idade avançada e admite a causa à velhice. “Minha avó morreu com 110 anos e a gente morava ali [numa fazenda ao lado da COBRAC]. (Carmem, 66 anos, grifo nosso). A despeito de os entrevistados associarem a contaminação do chumbo com o surgimento de doenças, alguns feirantes acreditam que o processo de adoecimento não se reduz à exposição ao minério, nem se limita às condições de vida e trabalho, considerando que, no contexto de pobreza, de carências, fica difícil identificar este risco. “Pra ficar doente... Se for olhar mesmo, ninguém tem saúde, até criança já está nascendo doente.” (Berenice, 52 anos). Atualmente, no local, são comercializados produtos como mariscos e crustáceos, os quais são originados dos manguezais próximos à cidade, como o distrito de Acupe. Entretanto, estes locais são banhados pelo rio Subaé, que apresentou concentrações elevadas de metais, em especial na região do estuário, contaminando ostras, siris e moluscos que serviam como base 120 Revista Baiana de Saúde Pública alimentar da população.11,13 Ressalta-se que a pesca e a mariscagem representam as principais fontes de renda para a maior parte da população local. Portanto, esses estudos indicam a elevada possibilidade de existir a comercialização de alimentos contaminados por metais pesados na feira. Entretanto, esse conhecimento do risco potencial não se encontra presente no conteúdo das falas dos feirantes entrevistados. Segundo Berenice, este assunto não é mais comentado pelas pessoas da cidade, no dia a dia. “Depois esquece, não é? Sabe como são as coisas. Para.” A vida continua como se ali nunca tivesse existido o problema, revelando que este passou a fazer parte do mundo familiar, entrando na ordem do lugar. Pode-se dizer que a população criou estratégias de defesa contra o sofrimento e o temor das consequências, como “não discutir”, “não agir”, “negar o problema”, por estar presa a esta realidade e não ter alternativas ou instrumentos concretos capazes de mudar esta situação. Este fato assemelha-se aos achados de estudo6 sobre categorias de trabalhadores que naturalizam os riscos, quando estes são entendidos como parte da vida, inerente ao trabalho, sem alternativa de controle ou eliminação. Isso se configura, segundo o autor, como estratégia de defesa individual e coletiva contra o sofrimento no trabalho. Quanto à contaminação química por agrotóxicos, esta é mais explícita por ser perceptível aos feirantes pela mudança do sabor e tempo de maturação dos alimentos, o que indica a adição do produto. O agrotóxico passa a ser um marco de mudança, de inovação. Este traz o mundo de fora que penetra no mundo conhecido da relação entre indivíduo e alimento, representando o moderno, o mundo atual cheio de perigos, de quebras de significados. “Quem nunca viu tomate apodrecer na geladeira? Antigamente faltava tomate aqui na Pedra, era pouco. Hoje em dia não falta mais nada. A manga faltava, porque tinha época de ter. Agora dizem que botou uma coisa pra melhorar, pra não faltar alimentação. Mas antes faltar e ser uma alimentação sadia.” (Joana, 48 anos, grifo nosso). “O abacaxi mesmo que a gente vende, o rapaz não bota nenhum produto químico. Ele é natural mesmo, que chega você sente o gosto. Muitos que vem da CEASA, quer dizer que ali já [tem agrotóxico] [...] A laranja fica brilhando, bonita, mas não aguenta nada.” (Berenice, 52 anos, grifo nosso). v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 121 Os agrotóxicos surgem como um invasor deste mundo conhecido, levando à perda de controle sobre seu mundo, sua cultura. Como se fosse algo novo, imponderável, que vem desvalorizar a forma ancestral destes sujeitos tratarem os alimentos. Paradoxalmente, o agrotóxico passa a ser considerado valorizado, em detrimento do antigo saber do agricultor, da tradicional forma de relacionar-se com a terra, pois apropriar-se do agrotóxico pode significar uma aproximação ou entrada no mundo moderno. Ao serem questionados sobre este assunto, os feirantes remetem a diversos tipos de substâncias químicas, pois todos são considerados produtos. Em estudo sobre esse tema,27 a autora identifica os termos veneno e remédio para denominação dos agrotóxicos pelos agricultores. Na feira de Santo Amaro, estes produtos são também considerados ora veneno ora remédio, segundo as narrativas a seguir; em ambas as formas, o agrotóxico provoca a mudança da relação com os alimentos, pois é a própria contaminação. “Dizem ‘tem que comer bastante verdura, tem comer bastante fruta’. Agora pra quê? Eu acho que se puder evitar, comer um pouco menos [por considerar ter agrotóxico].” (Joana, 48 anos). “Agora por que eles fazem isso? Por causa das pragas, está infeccionando a gente do mesmo jeito, que é o pior [...] Quer dizer, se eles não fizerem isso, eles não têm para vender, para gente comprar.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). Conforme exposto, alguns feirantes reproduzem a ideia da dependência agrícola aos insumos químicos. Essa dependência é resultante da pressão econômica de grandes grupos multinacionais, pois o Brasil representava um dos maiores mercados consumidores e tornou-se um círculo vicioso devido à resistência das pragas e ao esgotamento dos solos.28 As pessoas que vendem alimentos contaminados por agrotóxicos, no caso agricultores, não os consideram prejudiciais à saúde, enquanto outros afirmam que, a despeito dos riscos, acham inviável a produção de alimentos sem sua utilização.29 Os feirantes que compram produtos do Centro de Abastecimento da Bahia (CEASA) para revender, não gostam de falar sobre o assunto. Alguns entrevistados referem que os alimentos vendidos nesse local contêm agrotóxicos, o que indica que os feirantes têm algum conhecimento dos efeitos destes sobre a saúde humana. Alguns entrevistados revelam uma insegurança ao consumir determinados alimentos, por associarem alimentos contaminados por agrotóxicos ao risco do surgimento de doenças. 122 Revista Baiana “‘Vambora’ ver essas frutas e verduras [...] Mamão é sadio? Não é sadio, porque está de Saúde Pública cheio de produto [...] Então eu acho que isso tudo está trazendo mais doença, acabando com a saúde do povo. Qualquer coisinha hoje é câncer de garganta, câncer de útero, câncer de mama”. (Joana, 48 anos, grifo nosso). Segundo as narrativas, pode-se dizer que existe um valor atribuído aos alimentos, como uma escala de valoração, de acordo a forma como são produzidos. Os feirantes valorizam o conhecido, o familiar, o que torna o agrotóxico desvalorizado, por representar o novo que causa estranhamento com o alimento. “Naquele tempo a alimentação era outra. A gente comia bem mal, mas comia bem bom. Hoje que a gente está se alimentando mal. Antigamente não tinha agrotóxicos. Plantava e como plantava crescia.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso). Para Carmem, comer bem é ingerir alimentos isentos de agrotóxicos, como era sua alimentação quando criança, mesmo à época em que esta era escassa, devido à dificuldade financeira da família. O agrotóxico passa a interferir na ordem cotidiana, pois o alimento, antes fonte de vida e saúde, passa a ser transmissor de doença, de um mal. Alguns feirantes acreditam que os alimentos plantados na zona rural do município não possuem agrotóxicos, pois o alimento contaminado vem de fora. Mais uma vez, o agrotóxico é representado como o estranho, o invasor. “A única coisa que não pode pegar produto até agora é quiabo, porque é daqui do interior. Você acha que essas laranjas, essas melancias que vem de fora são sadias? Não são sadias. Outra coisa boa também, que não tem produto, é jaca, quando chega a época. Quem tem roça não vai botar produto. Feijão de corda que é daqui também. Mas chamou outros produtos que vem embalado, não tem quem não diga que não tem produto.” (Joana, 48 anos, grifo nosso). Ressalta-se que outro tipo de contaminação química por agrotóxicos (como raticidas e demais produtos), não menos importante, foi identificado nas falas. Este se deve ao controle de ratos e baratas, realizado de forma descontrolada e sem orientações pelos próprios feirantes. “Sempre a gente está botando remédio, mas gasta tanto com Baygon [inseticida]. Uns botam, outros não botam, então nunca vai acabar [baratas].” (Berenice, 52 anos). Os feirantes também foram questionados sobre a possibilidade de os alimentos serem transmissores de doenças. Ainda que as entrevistas abordem as contaminações químicas e microbiológicas, os sujeitos associavam às doenças, principalmente, aos alimentos mal cozidos e v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 123 ricos em gordura. “Para os feirantes e consumidores, a ideia de contaminação está associada muito mais a uma alteração estética do produto do que à presença de um contaminante, seja ele físico, químico ou biológico, como apregoa o discurso da ciência”.5:1612 Em suas vidas cotidianas, o alimento é uma fonte de renda e festividades, sendo poucas vezes associado a um possível transmissor de doenças. O conhecimento científico é composto por conjuntos de instrumentos teórico-metodológicos que permitem “enxergar” além dos sentidos. Para os feirantes, no entanto, esse universo não foi alcançado, por serem limitados aos órgãos dos sentidos. Com base nessa percepção sensorial agregam saberes e crenças, para então construírem as explicações e os entendimento sobre os fenômenos observados de contaminação alimentar no cotidiano da feira. Com relação aos significados da contaminação alimentar, este estudo permitiu percebeu-se que são construídos muito mais por influências culturais baseadas nos costumes e nas crenças do que pela interferência de conhecimentos técnico-científicos. A noção de contaminação está relacionada às limitações das percepções dos sentidos, associadas às formulações presentes nos saberes e crenças, tendo em vista a falta de acesso ao saber técnico-científico e à baixa escolaridade apresentada, diante da necessidade de trabalhar desde a infância. A explicação do fenômeno da contaminação alimentar fundamenta-se nas formulações orientadas pela antiga noção de miasma, de ordenamento, conceito empírico de sujo e limpo, pelos sentidos da visão e do tato, em que o referencial sensorial é determinante na experiência dos feirantes diante ao risco da contaminação alimentar. Quando o alimento apresenta sinais não característicos, indica uma perturbação da ordem ou associação ao perigo. Os feirantes expressaram dificuldade para explanar sobre o tema da contaminação microbiológica, pois esta não existe na realidade aparente, nas reflexões cotidianas, permanecendo na invisibilidade. Os contaminantes físicos visíveis e os odores desagradáveis são os possíveis transmissores de doenças e impurezas. No que tange à contaminação por agrotóxicos, esta é mais explícita por ser perceptível aos feirantes ao causar mudança no sabor e no tempo de maturação dos alimentos. O agrotóxico é representado como algo novo, invasor do mundo conhecido, alterando a relação dos feirantes com os alimentos, provocando um estranhamento. Quanto ao risco de contaminação alimentar por metais pesados, em especial o chumbo, constata-se que, numa cidade com preocupantes índices de contaminação ambiental, este foi naturalizado pelos feirantes e percebido como algo distante, relacionado à fábrica. A percepção do risco está presente no pensamento e na reflexão, quando há questionamento acerca do tema, mas não na prática cotidiana. 124 Revista Baiana de Saúde Pública REFERÊNCIAS 1. Costa AFC, Cleps GDG. A inserção da feira-livre no espaço urbano de Uberaba – MG. In: Anais do II Simpósio Regional de Geografia “Perspectivas para o cerrado no século XXI”. Uberlândia, Minas Gerais; 2003. 2. Silva AIF, Holanda VCC. Um estudo dos circuitos da economia urbana na cidade de Cariré-CE. Rev Homem, Espaço e Tempo. 2009 mar:52-71. 3. Almeida MD, Cardoso RCV, Barreto MDA, Otero JB. 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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 16.04.2011 v.35, n.1, p.110-127 jan./mar. 2011 127 ARTIGO ORIGINAL DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EM MEMBROS INFERIORES EM TRABALHADORAS DE ENFERMAGEMa Natália Fonseca Ribeirob Rita de Cássia Pereira Fernandesb Resumo Estudo de corte transversal, que estimou prevalência e verificou fatores associados aos distúrbios musculoesqueléticos em membros inferiores em auxiliares e técnicas de enfermagem em Salvador, Bahia. Trezentas e oito trabalhadoras, selecionadas aleatoriamente, responderam ao questionário aplicado durante expediente de trabalho por entrevistador treinado. Demandas físicas no trabalho foram medidas pelo autorregistro de trabalhadores, em escala numérica de seis pontos, com âncoras nas extremidades. Demanda psicológica, controle e suporte social foram medidos para avaliar demandas psicossociais. Características individuais e atividades extralaborais também foram examinadas. A maioria das entrevistadas trabalhava no turno diurno e não costumava fazer hora extra. Ter outra atividade regular remunerada foi relatado por 34% e o tempo médio no mercado de trabalho formal ou informal foi de 19 anos. A prevalência de DME em membros inferiores foi de 65,6%. Por meio de análise multivariada verificam-se associações de DME em membros inferiores com demanda física e demanda psicossocial no trabalho, condicionamento físico precário e obesidade. Conclui-se que, a despeito da pequena força das associações encontradas, possivelmente devido à baixa variabilidade na exposição entre as trabalhadoras estudadas, a demanda física e psicossocial no trabalho e características individuais foram fatores associados aos DME em membros inferiores. Palavras-chave: Transtornos traumáticos cumulativos. Lesões por esforços repetitivos. DORT. Enfermagem. Auxiliares de enfermagem. a Órgão Financiador: CNPQ (Processo nº 472.176/2008-0). b Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina da Bahia, Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho. Largo do Terreiro de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia. CEP: 40 026-010. [email protected] 128 Revista Baiana MUSCULOSKELETAL DISORDERS IN LOWER LIMBS AMONG NURSES AND AIDES de Saúde Pública Abstract On multivariate analysis there are associations of DME in the lower limbs with physical demands and psychosocial work demands, precarious physical fitness and obesity. Crosssectional study estimated the prevalence and identified factors associated to musculoskeletal disorders in lower limbs among nurses and aides in Salvador, Bahia. Three hundred and eight workers, randomly selected, answered a questionnaire applied by trained interviewers during working hours. Physical work demands were measured by self-registration of workers in a sixpoint numerical scale, with anchors at the ends. Psychological demands, control and social support were measured to assess psychosocial demands. Individual characteristics and activities outside work were also examined. The majority of respondents worked the day shift and did not usually work overtime. About 34% reported having another regular job. Average time in the formal or informal labor market was 19 years. The prevalence of MSDs in the lower limbs was 65.6%. Key words: Cumulative trauma disorders. Repetition strain injury. Nursing. Nurses’ aides. DISTURBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EN EXTREMIDADES INFERIORES EN TRABAJADORAS DE ENFERMERÍA Resumen Estudio de corte transversal, que estimó prevalencia y verificó factores asociados a los disturbios musculoesqueléticos en extremidades inferiores en auxiliares y técnicas de enfermería en Salvador, Bahia. Por medio de análisis multivariado existen asociaciones de Disturbios Musculoesqueléticos DME en las extremidades inferiores con las exigencias físicas y exigencias psicosociales del trabajo, condición física precaria y obesidad. Trescientas dieciocho trabajadoras, seleccionadas aleatoriamente, respondieron a un cuestionario aplicado durante el horario de trabajo por un entrevistador entrenado. La exigencia física en el trabajo fue medida por el auto-registro de trabajadores, en escala numérica de seis puntos con destaque en las extremidades. Demanda psicológica, control y apoyo social se midieron para evaluar las demandas psicosociales. Las características individuales y las actividades fuera del trabajo también fueron examinadas. La mayoría de las encuestadas trabajaba en el turno de día y no solía trabajar horas extraordinarias. Un 34% reportó tener otra ocupación regular remunerada y el tiempo promedio en el mercado de trabajo formal o informal fue de 19 años. La prevalencia de DME en las extremidades inferiores fue 65,6%. Por medio de análisis multivariado verificándose asociaciones de DME en extremidades v.35, n.1, p.128-142 jan./mar. 2011 129 inferiores con demanda física y demanda psicosocial en el trabajo, condición física precaria y obesidad. Se concluye que, a despecho de la pequeña fuerza de las asociaciones encontradas, posiblemente debido a la baja variabilidad en la exposición entre las trabajadoras estudiadas, la demanda física y psicosocial, obesidad y condición física precaria fueron factores asociados a los DME en extremidades inferiores (MMII). Palabras-clave: Trastornos traumáticos acumulativos. Lesiones por esfuerzos repetitivos. DORT (Disturbios Osteomusculares Relacionados al Trabajo). Enfermería. Auxiliares de enfermería . INTRODUÇÃO Os distúrbios musculoesqueléticos (DME) são hoje um problema de saúde pública. Embora a coluna lombar e os membros superiores estejam estabelecidos na literatura como as partes do corpo mais sujeitas aos riscos associados ao trabalho,1 quando se incluem os membros inferiores (MMII), as pesquisas têm constatado uma alta prevalência de DME nessa região e muito pouco tem sido discutido sobre esses achados. Considerados como um amplo conjunto de desordens inflamatórias ou degenerativas que acometem tendões, nervos, músculos, articulações, circulação e bursas, os DME podem se manifestar também nos MMII, o que precisa ser mais bem estudado para compreensão dos seus fatores de risco e, consequentemente, sua prevenção. O objetivo deste estudo foi estimar prevalência e verificar fatores associados aos distúrbios musculoesqueléticos em membros inferiores em auxiliares e técnicas de enfermagem em Salvador, Bahia. MATERIAIS E MÉTODOS Foi realizado um estudo exploratório de corte transversal com 320 auxiliares e técnicas de enfermagem (TAE) de um hospital público da cidade de Salvador, Bahia, em 2008. Com base na população de 666 TAE do hospital estudado foi retirada uma amostra aleatória, cujo tamanho mínimo, 293 indivíduos, foi calculado considerando-se um grau de precisão absoluta de 5,0%, nível de confiança de 95,0%, prevalência esperada de 50,0% e efeito de desenho de 1,2. O tamanho amostral de 320 trabalhadoras foi adotado considerando-se as perdas que poderiam ocorrer. Foram elegíveis para o estudo todas as TAE em efetivo exercício profissional no momento da coleta de dados na unidade hospitalar selecionada, de acordo com listagem fornecida pela instituição. Aquelas selecionadas que se encontravam afastadas do trabalho foram substituídas pelo próximo nome da lista. 130 Revista Baiana de Saúde Pública Para a coleta de dados foi aplicado um questionário às trabalhadoras selecionadas, durante o expediente de trabalho, em local reservado. O instrumento é uma adaptação do questionário elaborado e utilizado em estudo sobre DME em trabalhadores da indústria de plástico.2 Nele utilizaram-se questões elaboradas pela autora e questões retiradas de outros instrumentos, modificadas ou não. No questionário são coletadas informações sociodemográficas, sobre a história ocupacional no emprego atual e vida laboral pregressa, exposição a demandas físicas e psicossociais no trabalho, dados sobre trabalho doméstico, uso de fumo, bebidas alcoólicas e contraceptivo hormonal, percepção das trabalhadoras sobre o seu condicionamento físico e por fim informações sobre sintomas de DME. Dados sobre demanda física no trabalho foram obtidos por meio de questões respondidas pelas trabalhadoras em escala de frequência, intensidade ou duração de 0 a 5, com âncoras nas extremidades, sobre posturas de trabalho, força muscular exercida e levantamento de carga. A avaliação das demandas físicas no trabalho, por meio do autorrelato da exposição do trabalhador em escalas com âncoras nas extremidades, apresenta boa validade3 e motivou a escolha do instrumento utilizado para coleta dos dados. Avaliar demanda física por meio das exigências das tarefas (rotação de tronco, levantamento de carga etc.) e não por meio da descrição da tarefa realizada (transferir paciente, por exemplo), como tem sido observado em outros estudos com profissionais de enfermagem, permite a comparação dos achados da categoria profissional estudada com outras categorias, sem excluir a avaliação necessária da exposição dos profissionais de enfermagem. Para sumarização das variáveis relacionadas à exposição às demandas físicas no trabalho foi criado um índice baseado nas análises univariadas e na evidência de associação na literatura entre as variáveis e o desfecho. Assim, o índice criado utilizou as variáveis que avaliavam a frequência com que as trabalhadoras adotavam a postura em pé, andando e agachada durante o trabalho e a frequência do manuseio de carga. Os aspectos psicossociais do trabalho foram medidos pelo Job Content Questionnaire (JCQ),4 por meio dos escores obtidos para demanda psicológica, controle e suporte social. A demanda psicológica caracteriza-se pelas exigências que o trabalhador enfrenta no seu trabalho, quanto à concentração, ritmo, tempo para realização das tarefas, entre outras. O controle considera a possibilidade de o trabalhador tomar decisões acerca do seu trabalho, como também o nível de habilidade ou criatividade requerida para a tarefa, bem como a flexibilidade que permite ao trabalhador decidir quais habilidades empregar.5 O suporte social refere-se ao apoio da chefia e dos colegas de trabalho, o que implica na existência de bons canais de comunicação, relações satisfatórias com colegas e chefes e colaboração para a realização das tarefas.6 v.35, n.1, p.128-142 jan./mar. 2011 131 A despeito do grande uso do modelo demanda-controle de Karasek entre os estudos sobre demandas psicossociais no trabalho, considerando a relevância dada ao suporte social nas pesquisas sobre DME, evidenciou-se a necessidade de considerá-lo simultaneamente às variáveis demanda e controle. Para tanto, foi utilizado o critério que considera alta exposição à demanda psicossocial a satisfação de pelo menos duas das seguintes condições: alta demanda, baixo controle e baixo suporte.7 Dados sobre sintomas de DME foram coletados por meio da versão ampliada do Nordic Musculosqueletal Questionnaire (NMQ),8 instrumento amplamente utilizado em investigações epidemiológicas sobre DME em todo o mundo. Avalia-se a presença de dor ou desconforto nos últimos 12 meses nas áreas anatômicas estudadas e sua severidade, duração e frequência. A equipe de entrevistadores, formada pela autora principal e por estudantes do curso de graduação em Medicina da Universidade Federal da Bahia, foi treinada previamente para o uso do instrumento, esclarecida acerca de cada item do questionário e das alternativas de resposta. Definiu-se como “caso de DME” a trabalhadora que referiu dor ou desconforto em coxa ou joelho, pernas e pé ou tornozelo nos últimos doze meses, com duração mínima de uma semana ou frequência mínima mensal, não decorrente de trauma agudo, acompanhados de pelo menos um dos seguintes sinais de gravidade: • grau de severidade maior ou igual a 3, em uma escala numérica de 0 a 5 com âncoras nas extremidades (nenhum desconforto a desconforto insuportável); • busca de atenção médica pelo problema; • ausência ao trabalho (oficial ou não); • mudança de trabalho por restrição de saúde.8 Para análise dos dados, as variáveis independentes foram as seguintes: sociodemográficas – idade, estado civil; ocupacionais – horas extras, anos de trabalho (incluindo vínculos formais e informais), existência de outro vínculo de trabalho, insatisfação no trabalho, demanda psicossocial, demanda física; estilo de vida e extralaborais – uso de bebidas alcoólicas, condicionamento físico, obesidade, uso de contraceptivo hormonal e trabalho doméstico. Todas as variáveis foram dicotomizadas. Obesidade foi considerada como índice de massa corporal (IMC) >30 Kg/m2; estado civil foi estratificado em casadas ou que viviam com 132 Revista Baiana de Saúde Pública companheiro e outros; e para o uso de bebida alcoólica, o consumo com frequência de uma vez na semana foi adotado como ponto de corte. Para as demais variáveis foi utilizada a mediana como ponto de corte. A presença de tabagismo e filhos menores de 2 anos não foram incluídas na análise multivariada devido à sua baixa prevalência na população estudada. A abordagem estatística dos dados iniciou com uma etapa descritiva, seguida de análise tabular, com realização do teste do qui-quadrado, cálculo de razões de prevalência e seus respectivos intervalos de confiança. Para identificar os fatores associados aos DME foi conduzida a análise de regressão logística não-condicional. A pré-seleção das variáveis independentes foi baseada na plausibilidade biológica das associações. O método de seleção das variáveis foi o “de trás para frente” (backward). Visto que o resultado final da regressão logística fornece os resultados utilizando a odds ratio como medida de associação e considerando a sua inadequação para um estudo de corte transversal de uma doença com prevalência elevada, foi realizado o cálculo das estimativas de razões de prevalência e de seus respectivos intervalos de confiança pelo método Delta.9 Este projeto de pesquisa foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisas pelo Parecer Nº 84/2007, de 23 de maio de 2007. Antes da aplicação dos questionários, as trabalhadoras foram informadas dos objetivos da pesquisa, da instituição responsável e de que o hospital apenas liberou o acesso dos pesquisadores à instituição, não tendo qualquer participação na realização da pesquisa. As convidadas que aceitaram participar do estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual foram assegurados o sigilo das informações, a participação voluntária e o anonimato. RESULTADOS A população estudada constituiu-se de 308 trabalhadoras, devido a 12 perdas ou recusas. As características sociodemográficas da população de estudo foram publicadas em outro artigo produto desta pesquisa sobre DME em trabalhadoras de enfermagem.10 Foi verificada uma elevada prevalência de DME em membros inferiores: 65,6%. A prevalência de DME em MMII na população estudada foi mais alta que na região lombar (53,9%) e membros superiores e pescoço (57,5%). As queixas de DME em MMII distribuíram-se da seguinte forma: coxa ou joelho, 29,5%, perna, 51,9%, e tornozelo ou pé, 31,5%. Considerando-se apenas a dor em MMII com duração maior que uma semana ou frequência mínima mensal, sem a adoção dos critérios de gravidade, verifica-se uma prevalência de 74,7% (Tabela 1). v.35, n.1, p.128-142 jan./mar. 2011 133 Tabela 1. Prevalência de dor e distúrbio musculoesquelético* por segmento corporal em trabalhadoras de enfermagem (n=308) – Salvador – 2008 A Tabela 2 revela que a maior parte dos casos de DME em MMII estava acompanhada de dor nos sete dias anteriores à realização da entrevista. Tabela 2. Dor nos últimos sete dias entre os casos de Distúrbio Musculoesquelético (DME)* em trabalhadoras de enfermagem por segmento corporal – Salvador – 2008 A Tabela 3 revela, por meio de análises univariadas, a existência de associações positivas entre DME em MMII e todas as variáveis de demanda física analisadas, porém apenas para postura de trabalho andando pôde ser verificada significância estatística. Por meio da análise multivariada, verificam-se associações de DME em MMII com demanda física, demanda psicossocial, condicionamento físico precário e obesidade, todos com significância estatística limítrofe (Tabela 4). 134 Revista Baiana de Saúde Pública Tabela 3. Associação entre Distúrbio Musculoesquelético (DME) em membros inferiores com variáveis de demanda física em trabalhadoras de enfermagem (n=308) – Salvador – 2008 Tabela 4. Resultado da análise de regressão logística para Distúrbio Musculoesquelético (DME) em membros inferiores em trabalhadoras de enfermagem (n=308) – Salvador – 2008 DISCUSSÃO Surpreende a magnitude de DME relatada em membros inferiores, 65,6%. Verifica-se que a principal região que contribui para esse resultado são as pernas que, isoladamente, correspondem a 51,9%. As demais regiões dos membros inferiores apresentam prevalência menor, mas com magnitude relevante. Assim como neste estudo, pesquisa sobre fatores de risco para DME na Lituânia11 também apontou os MMII como a região corporal mais atingida em trabalhadores da indústria. Mais da metade dos trabalhadores (61%) referiu DME em MMII, 39,4% tinham dor em joelho ou perna e 30,9% tinham queixas em tornozelo ou pé. Nesse estudo, DME em pescoço ou braços corresponderam a 27% e em região lombar a 28,4%.11 v.35, n.1, p.128-142 jan./mar. 2011 135 Estudo com trabalhadores da indústria,12 assim como investigação com 12 grupos ocupacionais diferentes, incluindo enfermeiras,13 encontraram que o acometimento por DME em MMII ficou atrás apenas da região lombar. Pesquisa sobre fatores prognósticos para afastamento e retorno ao trabalho por doença osteomuscular12 verificou que, durante um período de seguimento de dois anos, a proporção de trabalhadores que experimentou pelo menos um período de afastamento como resultado de dor lombar foi a mesma de dor em membros inferiores, ou seja, 23%. Para os trabalhadores da indústria do petróleo na China, DME em MMII também se revelou um problema importante. A prevalência de DME em joelhos entre esses trabalhadores (20,1%) ficou apenas atrás de DME em lombar (32,4%) e pescoço (25%).14 Deve-se fazer uma ressalva quanto à comparação desses resultados, pois, apesar desses outros estudos também terem utilizado o NMQ como instrumento para coleta de dados, eles não citam a adoção dos critérios de gravidade que foram utilizados neste estudo, para a definição de “caso de DME”. Neste estudo considerou-se DME apenas aqueles sintomas que, além de terem duração mínima de uma semana ou frequência mínima mensal, motivassem a busca de atenção médica pelo problema ou ausência ao trabalho (oficial ou não), ou mudança de trabalho por restrição de saúde, ou que tivessem um grau de severidade maior ou igual a 3 (em uma escala numérica de 0 a 5). A adoção desses critérios de gravidade visa o aumento da especificidade da queixa e permite apontar com maior propriedade a grande morbidade que os DME representam nessa população.8 Os estudos com profissionais de enfermagem também revelam elevadas prevalências de DME em MMII, embora não tenha sido o principal sítio de DME como no presente estudo. Nas pesquisas com trabalhadoras de enfermagem identificadas, que abordaram DME em diversas regiões anatômicas, a lombar foi a principal região acometida. Quanto à região mais comprometida dos MMII, os resultados diferem entre os estudos com trabalhadores de enfermagem. Estudo envolvendo TAE em São Paulo15 encontrou maior prevalência de DME em joelhos (33,3%, comparado com 16,2% em quadril/coxa e 14,3% em tornozelo/pé). Do mesmo modo, estudo com profissionais de enfermagem, na Holanda,16 encontrou os seguintes resultados: joelho/perna 10,2%, quadril/coxa 6,9% e tornozelo/pé 3,7%. Já no estudo sobre prevalência de dor musculoesquelética em auxiliares de enfermagem noruegueses,17 o quadril foi a principal região dos MMII (quadril 26,6%, joelho 20,5% e tornozelo/pé 15,5%). Nesse estudo, a prevalência de dor em quadril foi maior que em cotovelo e punho/mão. Tornozelo/pé foi a região mais acometida dos MMII em enfermeiros em Portugal, com prevalência de 20%18 e em trabalhadores de enfermagem chineses, que reportaram 34% de DME nessa região.19 136 Revista Baiana de Saúde Pública Pesquisa envolvendo enfermeiras e técnicas de enfermagem de um centro cirúrgico nos Estados Unidos20 revela dados importantes em relação à DME em membros inferiores, cuja prevalência nos últimos 12 meses foi maior na região lombar (84%) seguida por tornozelo/pé (74%). Queixas de dor em tornozelo/pé foram a segunda causa de absenteísmo ao trabalho (24%), apenas atrás da região lombar (31%) e seguida por dor em joelhos (21%). Esse estudo concluiu que ficar em pé por longas horas (mais de 10 horas em alguns procedimentos cirúrgicos) é um contribuinte importante para dor em lombar e tornozelo/pé. No presente estudo, os resultados da análise multivariada revelam associações fracas, que possivelmente refletem a baixa variabilidade de exposição na população estudada, ou seja, a exposição às demandas no trabalho, físicas e psicossociais, bem como aos demais fatores, embora de alta magnitude, está muito uniformemente distribuída entre as TAE, não havendo gradiente suficiente para revelar intensidade de associações. A despeito disso, optou-se por mostrar os resultados que revelam essas associações. A associação entre a postura de trabalho em pé e andando e DME em MMII foi demonstrada em estudo com trabalhadoras de enfermagem16 e com trabalhadores da indústria.11 Nos trabalhadores da indústria que adotavam a postura sentada frequentemente, a prevalência de DME em MMII foi um terço da reportada por aqueles que sentavam raramente ou nunca durante a jornada de trabalho.11 Um estudo de base populacional no Canadá21 também evidenciou que a postura em pé, sem a liberdade de sentar de acordo com a vontade do trabalhador, está fortemente associada a dor em pernas e tornozelo ou pé. O desconforto associado à adoção da postura em pé por tempo prolongado é mediado por mecanismos envolvendo o sistema cardiovascular e o sistema muscular. Os efeitos da postura em pé sobre a musculatura não estão bem documentados, mas sabe-se que a fadiga muscular pode ser induzida pela contração isométrica da musculatura durante a postura em pé estática, mas também pelo caminhar prolongado.21 Para o sistema cardiovascular, a postura em pé é um fator de risco conhecido21 dada a dificuldade do retorno de sangue venoso nessa posição. Durante o caminhar, tal situação é amenizada pela ativação da bomba da panturrilha, desde que as válvulas venosas estejam intactas. Se houver comprometimento dessas válvulas, o andar também acaba aumentando a pressão venosa nas extremidades inferiores.22 O caminhar pode aumentar a probabilidade de dor no tecido muscular por mecanismos como o excesso de esforço e impacto, mas pode diminuir a probabilidade de dor em MMII por outros mecanismos que afetam o sistema vascular. O caminhar pode, portanto, ter diferentes efeitos sobre o sistema musculoesquelético e sistema cardiovascular dos trabalhadores submetidos a postura em pé.21 Desta forma, estudo23 reconhece que a quantidade ideal de v.35, n.1, p.128-142 jan./mar. 2011 137 mobilidade durante a postura em pé ainda não é conhecida, no entanto seus resultados mostram que as posturas em pé mais estáticas estão associadas aos sintomas musculoesqueléticos. A proporção ideal entre as posturas em pé e sentada no trabalho também ainda é desconhecida. Ficar em pé por tempo prolongado no trabalho tem mostrado associação com problemas de saúde, incluindo fadiga em membros inferiores, dor e edema em estudos epidemiológicos, laboratoriais e ergonômicos. O trabalho sentado, por sua vez, também tem sido associado a edema nas extremidades inferiores e desconforto nos pés.24 Nesse estudo, os autores sugerem que a liberdade de poder sentar de acordo com a vontade do trabalhador é importante na prevenção dos DME em MMII. Apenas um estudo encontrado mostrou associação entre a posição agachada (adotar essa postura por mais de 15 minutos) e DME em MMII.13 No presente estudo, na análise univariada, essa postura de trabalho mostrou associação com DME em MMII, porém sem significância estatística. O manuseio de carga, embora isoladamente não tenha, neste estudo, mostrado significância estatística para sua associação com DME em MMII, em alguns estudos realizados com outras categorias profissionais teve associação a DME em joelhos13 e tornozelo ou pé.21,25 A influência do manuseio de carga (seja carregar, puxar ou empurrar) nos DME em MMII também foi apontada em estudo envolvendo trabalhadores de diversas ocupações na Dinamarca,26 embora estudo com trabalhadores da indústria11 não tenha encontrado associação entre DME em MMII e manuseio de carga. O manuseio de carga está estabelecido na literatura como importante fator associado aos DME na região lombar;27 já para MMII, embora exista plausibilidade biológica para tal associação, os resultados dos estudos epidemiológicos ainda não permitem dizer que existe evidência científica para essa associação. As posturas inadequadas adotadas durante a jornada dos trabalhadores de enfermagem foram apontadas16,28 como associadas a DME em MMII, uma vez que implicam sobrecarga para as articulações dos MMII, embora neste estudo isso não tenha sido ratificado. Foi verificada neste estudo a associação entre DME em MMII e demanda psicossocial no trabalho, assim como em estudo com trabalhadores de uma empresa de petróleo.14 Algumas hipóteses tentam explicar a influência da demanda psicosssocial nos DME. É possível que o estresse aumente a tensão muscular e se essa tensão persistir por um período prolongado pode resultar em dor musculoesquelética. Ou, ainda, a demanda psicossocial pode aumentar a sensibilidade à dor ou aumentar a percepção dos sintomas musculoesqueléticos.14 Neste estudo não foi verificada associação entre DME em MMII e insatisfação no trabalho, embora tenha sido demonstrada essa associação em trabalhadores de diversas ocupações 138 Revista Baiana de Saúde Pública na Dinamarca, incluindo enfermeiros e auxiliares de enfermagem, e ainda que o baixo suporte social dos colegas também se associa a DME em MMII.26 Quanto às características individuais, este estudo mostrou associação entre DME em MMII e condicionamento físico precário e obesidade. Nos estudos pesquisados, dois encontraram associação entre DME em MMII e alto índice de massa corporal.21,26 Em um deles, evidenciou-se entre os homens a associação entre obesidade e dor em tornozelo ou pé e entre sobrepeso e dor nas pernas, no entanto essa associação não foi verificada entre as mulheres.21 Embora alguns estudos apontem associação entre obesidade e DME, mesmo para regiões corporais mais estudas, como a lombar, este achado ainda é controverso.29 Condicionamento físico precário também se mostrou um fator associado a DME em MMII neste estudo. Apesar de atividade física e condicionamento físico serem geralmente aceitos como uma forma de reduzir DME, isso também não está claro na literatura.27,29 Estudo envolvendo trabalhadores da indústria30 encontrou interação estatística entre aptidão física (AF) e demanda física no trabalho (DFT) para a ocorrência de DME em pescoço, ombros ou parte alta das costas (DME-POC). Entre os indivíduos expostos a baixa DFT, a precária AF resultou em 3,19 vezes mais chance (RC=3,19, IC95% 1,69; 6,04) de adoecimento do que uma boa AF. No entanto, quando os trabalhadores estavam expostos a altas DFT, ter uma boa AF não foi fator de proteção para DME-POC (RC=1,20, IC95% 0,60; 2,40). O trabalho físico pesado está associado à alta prevalência de DME-POC, mesmo quando os trabalhadores referem uma boa aptidão física. A aptidão foi um possível fator de proteção apenas entre aqueles que realizavam trabalho leve. Este estudo não analisou os DME em MMII, no entanto seu achado já aponta para a relativa importância dos fatores individuais frente à determinação das condições de trabalho sobre o adoecer dos trabalhadores. É possível que o risco representado pela excessiva demanda física no trabalho da enfermagem supere a proteção que poderia ser obtida com um bom condicionamento físico, mas isto requer análises confirmatórias. O exposto permite concluir-se que, não obstante poucos estudos abordem DME em MMII, quando esses são considerados nas análises, têm demonstrado prevalências bastante elevadas que não têm sido discutidas. Neste estudo, a despeito da pequena força das associações encontradas, possivelmente devido à baixa variabilidade na exposição entre as trabalhadoras estudadas, aponta-se para a demanda física e psicossocial, obesidade e condicionamento físico precário como fatores associados aos DME em MMII. Os achados deste estudo reforçam a necessidade de investigações que se dediquem ao estudo de DME em MMII. v.35, n.1, p.128-142 jan./mar. 2011 139 REFERÊNCIAS 1. Marras WS, Cutlip RG, Burt SE, Waters TR. National occupational research agenda (NORA) future directions in occupational musculoskeletal disorder health research. Appl Ergon. 2009;40:15-22. 2. Fernandes RCP. Distúrbios Músculo-esqueléticos e trabalho industrial [Tese]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2004. 3. 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O objetivo deste estudo foi compreender as interações e práticas dos membros da família construídas na convivência com o servidor-doente da UFBA que contribuem ou dificultam a sua recuperação e seu retorno ao trabalho. Recorreu-se a uma abordagem etnográfica com elementos da etnometodologia, envolvendo seis famílias de servidores afastados do trabalho por mais de três meses. Utilizaram-se entrevistas em profundidade e diário de campo. O material empírico foi analisado buscando reconhecer as ações práticas construídas no processo de adoecimento, afastamento do trabalho e convivência na família, dando-se particular atenção às falas sobre os cenários de interação no cotidiano. Os achados mostram que, durante o período de absenteísmo, as famílias sofreram reestruturação e mudanças nos seus papéis sociais e que a forma de agir e gerenciar, bem como o modo como os membros compartilham o cotidiano tiveram que ser revistos. Os métodos que utilizam para dar suporte e se manterem coesos, a habilidade de resolver problemas, como a economia das perdas e ganhos, foram recursos mobilizados para atenuar as consequências do adoecimento. Palavras-chave: Doença crônica. Trabalho. Apoio a reabilitação. Família. Reabilitação. Mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho. Médico Perito e Cardiologista do Serviço Médico Universitário Rubens Brasil (SMURB), Universidade Federal da Bahia (UFBA). b Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal a da Bahia (UFBA). Doutora em Saúde Pública. Endereço para correspondência: Av. Reitor Miguel Calmon 1.210, sala 307, Vale do Canela, Salvador, Bahia, Brasil. CEP: 40110.100. [email protected] v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 143 THE SICK WORKER AND HIS FAMILY: DYNAMICS, RELATIONSHIP AND RETURN TO WORK PROCESS Abstract Several biopsychosocial factors contribute to prolonged absenteeism, among them the dynamics that occur in the interaction of family life. It is known that the family has a prominent role in the rehabilitation process of the sick worker. Aiming to understand the interactions and practices of family members living with the UFBA sick worker, which contribute or hinder their recovery, conducted a study with an ethnographic approach and elements of ethnomethodology, involving six families of servers out of work for more than three months. We used semi-structured interviews and field journal. The empirical data were analyzed with a targeted look at the broad understanding of the practical actions built into the process of illness, absence from work and life in the family, giving particular attention to the speeches on the interaction scenarios in everyday life. The findings show that during the period of absenteeism families experienced restructuring and that changes in their social roles and how to act, manage, and how members share the daily life had to be revised. The methods they use to support and remain cohesive, the ability to solve problems such as economic gains and losses were responsible for mitigating the consequences of illness. Key words: Chronic disease. Work. Support for rehabilitation. Family. Rehabilitation. TRABAJADOR-ENFERMO Y SU FAMILIA: DINÁMICA, CONVIVENCIA Y PROCESO DE REGRESO AL TRABAJO Resumen Varios factores bio-psicosociales contribuyen al absentismo prolongado, entre éstos, las dinámicas que se producen en la interacción de la vida familiar. Se sabe que la familia tiene un papel destacado en el proceso de rehabilitación del trabajador enfermo. El objetivo de este estudio fue comprender las interacciones y las prácticas de los miembros de las familias para hacer frente a un trabajador enfermo de la UFBA, que contribuyen o dificultan su recuperación y su regreso al trabajo. Se recurrió a un abordaje etnográfico con elementos de Etnometodología, involucrando a seis familias de trabajadores alejados del trabajo durante más de tres meses. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas y diario de campo. Los datos empíricos fueron analizados procurando reconocer las acciones prácticas construidas en el proceso de enfermar, alejamiento del trabajo y la convivencia en la familia, prestando especial atención a los discursos sobre los escenarios de interacción en la 144 Revista Baiana de Saúde Pública vida cotidiana. Los resultados muestran que durante el período de ausentismo, las familias sufrieron reestructuración y mudanzas en sus roles sociales y que la forma de actuar y administrar, así como el modo en que los miembros comparten la vida diaria tuvieron que ser revisados. Los métodos que utilizan para apoyar y seguir estando unidos, la capacidad de resolver problemas como la economía de las ganancias y las pérdidas fueron los recursos responsables de atenuar las consecuencias de la enfermedad. Palabras-clave: Enfermedad crónica. Trabajo. Apoyo a la rehabilitación. Familia. Rehabilitación. INTRODUÇÃO O adoecimento crônico de trabalhadores, relacionado ou não ao trabalho, está frequentemente associado a sérias limitações nas atividades da vida diária em geral e à incapacidadec para o trabalho, além de estar susceptível a aposentadoria precoce. Esta condição clínica, frequente nas sociedades contemporâneas, gera sofrimento, reduz a autonomia do trabalhador e limita o seu papel social. O significado da doença, subjetiva e intersubjetivamente construído, modela a forma de o trabalhador-doente lidar com esse fenômeno, assim como define sua relação com os serviços de saúde, a aderência ao tratamento, o curso da enfermidade e até mesmo o tempo de afastamento do trabalho.1, 2 De uma maneira geral, entende-se que estar doente, para a maioria das pessoas, é uma condição indesejável, embora seja muito atual no campo da psicologia comportamental a discussão sobre perdas e ganhos para o indivíduo e o seu entorno. Possivelmente, o balanço entre esses influenciará no processo de adoecimento e na permanência no estado provocado pela doença. Este debate tem se orientado para identificar, nos indivíduos, comportamentos a favor de manterem-se doentes sem problematizar as perdas advindas desse processo e sem questionar sobre o contexto como esse fenômeno desenvolve-se.3 Para entender a contribuição do ambiente social na cronicidade da doença, entre as oscilações dos sintomas e incapacidade, deve-se ser capaz de ver o doente envolto numa rede de interações que constitui o mundo da vida cotidiana.d Entre essas, são relevantes as que acontecem com os serviços de saúde e os sistemas sociais, como, por exemplo, as que advêm da convivência no ambiente da família que interferem na transição do estado de incapacidade para o estado social normal.5 c d v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 A incapacidade é definida pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) como produto da interação entre a disfunção apresentada pelo indivíduo (funções e estruturas do corpo), limitação das atividades e restrição na participação social, bem como fatores ambientais.4 O mundo da vida, às vezes chamado de mundo da vida cotidiana, refere-se ao mundo experiencial de cada pessoa em atitude natural.6 145 O trabalhador-doente, incapacitado e afastado do trabalho procura abrigo no ambiente da família, onde tem que representar o seu novo papel, o de doente, que nem sempre será compreendido. Durante a convivência cotidiana, observa-se mudança na função e estrutura da família, exigindo dos seus membros um esforço para lidar com as novas demandas que surgem após o adoecimento.6 As transformações contemporâneas observadas na família, derivadas das relações de gênero e inserção intensiva da mulher no mercado de trabalho, entre outras, também influenciam no modelo explicativo de saúde-doença que compreende um conjunto de valores, crenças, conhecimentos e práticas que guiam as ações, gerenciamento e promoção da saúde.7 Por sua parte, a família tem uma estrutura organizacional própria para administrar essas demandas mediante a construção de certos padrões representados pela divisão de responsabilidades, hierarquias e delimitação de fronteiras. Nas inter-relações que se estabelecem em seu interior, mesmo mantendo a individualidade, os seus membros compartilham sentimentos e valores, formando vínculos de interesse, solidariedade e reciprocidade. Nesse sentido, buscam e mediam esforços para atenuar ou resolver o impacto do adoecimento, tolerando situações de alto estresse em razão da troca dos papéis para dar suporte ao doente.6,8 O estudo da família, numa abordagem etnográfica com elementos da etnometodologia, deve ser feito pela análise cuidadosa da linguagem em interação ou do discurso construído no contexto sócio-histórico no ambiente familiar. Dessa forma, busca-se compreender como os membros de uma família constroem o raciocínio prático e os procedimentos interpretativos que proporcionam um senso de concretude e ordem social da vida cotidiana doméstica, em um contexto histórico multigeracional, para lidar com doença, perdas e crises. 6,10 Algumas pesquisas têm destacado a importância da família na recuperação do trabalhador-doente.8,11-14 Em estudo exploratório realizado no Serviço Médico Universitário Rubens Brasil (SMURB),e com servidores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), observamos que, de 865 doentes, 127 (14,7%) apresentaram afastamento do trabalho superior a três meses, com predomínio do sexo feminino (71,6%). Nas avaliações de prontuários, encontramos que as interações no cotidiano familiar foram citadas como um dos responsáveis pelo tempo de absenteísmo. No atual estudo, buscamos compreender como as dinâmicas construídas no cotidiano familiar interferem no processo de adoecimento, afastamento e retorno ao trabalho dos trabalhadores-doentes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) afastados por mais de três meses. e Estudo realizado no SMURB por Rocha PRF (dados não publicados). 146 Revista Baiana de Saúde Pública METODOLOGIA Esta pesquisa utiliza abordagem etnográfica com elementos da etnometodologia, que explora os modos pelos os quais os atores sociais coletivamente criam e mantêm um senso de ordem e inteligibilidade da vida social cotidiana no ambiente da família.15 Um dos seus pressupostos centrais é a concepção de que os fatos e as organizações sociais são construções e realizações contínuas e seu estudo abarca os inúmeros tipos de atividades, circunstâncias e raciocínios, bem como a ordem social construída.10,16 Por se tratar de um estudo exploratório, numa perspectiva construcionista, a definição dos sujeitos de pesquisa envolvidos respeitou a saturação dos temas e categorias pela repetição. Esta abordagem permite a obtenção de informações em profundidade dos sujeitos dentro do contexto da pesquisa. O grupo estudado (11 servidores) originou-se de uma amostra de conveniência dos servidores da UFBA, atendidos no SMURB de 2007 a 2009, afastados do trabalho (>3 meses) por doença e que não estavam aguardando aposentadoria por invalidez. Destes, 5 servidores foram excluídos, por causa da perda da gravação e dificuldade de realizar as entrevistas com os familiares. As seis famílias participantes (6 servidores e um ou mais membros da família) foram consideradas de acordo com o conceito dado pelos servidores, dentro do seu mundo de significado no contexto do cotidiano doméstico. Os casos estão representados por 14 sujeitos, sendo 11 do sexo feminino. Esta pesquisa tem registro número CEP. 043/09 no Comitê de Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira. Os entrevistados foram convocados por telefone, pelo serviço social ou mediante contato pessoal, quando estavam na “sala de espera” do serviço médico. Apesar de os servidores serem atendidos na instituição, em nenhum dos casos, o pesquisador-entrevistador foi o responsável pelo seu acompanhamento. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas no SMURB e nas residências, de forma aberta e ativa, permitindo-se estender além das questões pré-definidas.17 As entrevistas foram gravadas e o seu conteúdo lido com um olhar objetivado no amplo entendimento das ações práticas construídas no processo de adoecimento, afastamento do trabalho e convivência com a família dando-se particular atenção às falas sobre os cenários de interação no cotidiano. Algumas categorias foram criadas indutivamente, assim como o modo lógico de agrupamento ou organização dessas micropráticas. Analisamos as diferentes formas como esses tópicos emergiram dos dados, que ideias e representações agrupam e quais associações e significados produzem.17,18 v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 147 RESULTADOS As causas de afastamento foram: doença ortopédica, cujos sintomas e incapacidade apareceram de forma insidiosa durante a jornada de trabalho (Beatriz, 49 anos; Conceição, 56 anos e Julia, 48 anos); acidente de trabalho (Ivete, 54 anos); neoplasia (Artur, 63 anos) e depressão (Vitória, 50 anos). Os achados mostram que, durante o processo de adoecimento do servidor e o afastamento do trabalho, as famílias sofreram mudanças na sua função e estrutura. Nesse contexto, os processos de interação, como a forma de agir, gerenciar e o modo de compartilhar o cotidiano tiveram que ser revistos por seus membros. Os métodos de suporte interpessoal e a habilidade de resolver problemas, assim como o balanço entre as perdas e os ganhos foram responsáveis por atenuar ou agravar as consequências do adoecimento e serviram de referência para se entender o papel desses atores sociais envolvidos no processo de adoecimento e recuperação para o trabalho. O ADOECIMENTO: “Foi muito triste... Eu me senti inútil [...]” As descrições sobre a experiência da doença mostram as condições que deram início aos sintomas e às mudanças da trajetória vivida durante o período de afastamento do trabalho. O adoecimento foi capaz de construir nesses servidores uma nova identidade, chamada aqui de “pessoa doente” em referência à noção de sick rolef e, com base nesse novo significado, representar o seu papel no cenário atual do cotidiano familiar. A servidora Ivete, que sofreu um acidente de trabalho durante um plantão, descreve como permaneceu por vários meses com perda da autonomia: “Peguei-a [a paciente] no chão; eu senti a dor, dei aquele gemido tá [...] Fiquei muito triste [chorando] porque você vai trabalhar numa boa e [...] não voltei mais pra trabalhar [...] Eu me senti inútil [...]” Reclama também que seu tratamento restringiu-se à correção do problema ortopédico e não teve apoio da instituição para lidar com o seu lado emocional. A vida transformou-se; ficou depressiva, dependente dos familiares e manteve-se incapacitada para fazer suas atividades básicas. Apesar de estar se recuperando, não tem intenção de voltar ao trabalho, porque ficou muito traumatizada, ressentida com a instituição e com o evento ocorrido. f Parsons foi um dos primeiros a chamar atenção sobre a legitimação do papel do indivíduo no processo de adoecer. A sociedade concede ao indivíduo doente direitos e privilégios, como dispensa do trabalho e outras obrigações sociais, mas o condiciona ao dever de cooperar durante o tratamento até a recuperação, assim que possível.19 148 Revista Baiana de Saúde Pública Duas servidoras citaram que os fatores da organização do trabalho, como a forma de divisão das tarefas, a dificuldade para lidar com a alta demanda de serviço e o conflito com supervisores para executar as tarefas no trabalho foram responsáveis pelo adoecimento. Julia descreve a dificuldade de executar as tarefas diante da precariedade das condições de trabalho: “A noite era um profissional de saúde [...] Sabe lá o que é escrever 90 a 100 prontuários numa noite...” Julia tentou dialogar com o(a) supervisor(a), mostrando sua dificuldade para fazer as tarefas, mas não encontrou apoio. Nesse caso, há um conflito de interesse entre as partes envolvidas; se, por um lado, o servidor busca adequar a sua condição física à tarefa prescrita, por outro lado, o representante da instituição não aceita, porque tem de fazer cumprir as necessidades do serviço. Uma forma de supervisão rígida não permite ao trabalhador desenvolver estratégia para minimizar as cargas diárias de trabalho e se proteger dos danos à sua saúde.20 Beatriz relata que o agravamento da doença foi em parte causado pelo comportamento gerencial: “A chefia era assim por demais [...] Era uma pessoa muito grossa... Que não respeitava o trabalho das pessoas, talvez por serem [pausa] né, está abaixo dela [...]” Este caso pode ser entendido como assédio moral, um tipo de conflito gerado na instituição, definido pela exposição do trabalhador a situações humilhantes, constrangedoras e repetidas durante a jornada de trabalho, que pode levar a dano físico e psíquico e é uma das causas de absenteísmo.21 O MODO DE AGIR E GERENCIAR: “Quando é possível todo mundo ajuda...” Na medida em que os membros da família incorporam a doença do servidor(a) como uma realidade, por meio de modos habituais de convivência e formas peculiares de agir, ressignificam o papel a ser executado por cada um. Isto expressa a relação que um indivíduo tem em comum com o outro, assim como as formas de agir são construídas de acordo com a conveniência e os interesses particulares.22 Um ponto comum existente entre os entrevistados foi a dificuldade para reinserir-se no grupo familiar a que sempre pertenceram. O estranhamento fez parte do processo de interpretação do quê está acontecendo na residência, de modo a proporcionar um senso de concretude e ordem para a vida cotidiana. Após retornar ao convívio e desfrutar a presença dos outros membros da família, sentiram-se excluídos e confrontados com as regras do próprio grupo. Dessa forma, enfrentaram o desafio de estar entre eles e, para manterem-se coesos, desenvolveram uma pluralidade de ações e negociações, que, no final, resultaram na construção desta nova identidade: “Eu acho que minha mãe em casa, não pelo v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 149 fato de ela estar doente né, e sim pelo fato de ela estar em casa. A gente está de novo junto, né? Eu acho que eu perdi um pouco da minha privacidade, mas é uma coisa que [pausa] a gente vai levando.” (Filho de Beatriz). O modo de agir do servidor incapacitado mudou e interferiu na forma como os outros membros da família se ajustaram e construíram as práticas da vida cotidiana. Inicialmente, observamos um grau de desorganização. Como consequência, são obrigados a usar os seus métodos para assumir parte das tarefas que compete ao doente e que agora está sem condições de executá-las e, para benefício do grupo, surge o espaço de negociação. É nesta contingência que se (re)constrói o papel de cada um nesse processo. Vitória traz um exemplo dessa dinâmica: “Aí eu fico meio zonza do remédio. Aí deixo melhorar e faço alguma coisa, né? Pra não sobrecarregar muito minha filha.” Essas mudanças de plano e responsabilidades na execução das tarefas domésticas são observadas em todas as situações. No caso de Ivete, os membros da família articularam-se em diferentes locais e contextos para cumprir a rotinização do trabalho. As ações práticas foram divididas para balancear as perdas com a doença. Nesse sentido, o grupo adotou a tática de alternar as tarefas que lhes cabiam e pôde lançar mão de ajuda recíproca para reduzir o trabalho diário, com o objetivo de não interferir nos seus projetos de vida: “Rapaz, todo mundo cuida um pouquinho [...], mas todo mundo ajuda [...] Quando é possível, todo mundo ajuda [...]” (Filho de Ivete). A ressignificação da nova realidade doméstica serviu para motivar e redefinir o papel de cada membro por questões de ordem prática. A regra que determina quem, onde e quando faz, de acordo com as demandas individuais, foram negociadas respeitando as diferenças, a privacidade e o limite de suas fronteiras. Os vínculos frágeis do passado, motivados por uma convivência tumultuada, são, nesse momento, um fator adicional de estresse para o servidor doente e, por causa da perda da identidade, tem dificuldade para resolver esses conflitos: “Quando ela pede [a Jorge] as coisas [ele] demora pra fazer ou não faz. Aí ela fica mais estressada [...]” (Filho de Ivete). Entra em jogo a habilidade da família em lidar com a ambiguidade das fronteiras e papéis individuais e a forma como se mantêm coesos: “Aí tem um irmão com problema na perna [...] Tem outro que dá um trabalho danado. Chega de madrugada e é uma preocupação. Aí ela se mudou pra uma casa perto de mim [...] Ela teve que sair da dela [...]” (Isabel, filha de Vitória). Isabel relata o grau de desestruturação sofrido, sinalizado pela mudança de endereço em curto espaço de tempo, troca de papéis e aumento do trabalho ao dividir as obrigações da sua casa com as que tinha de realizar na casa da genitora. 150 Revista Baiana de Saúde Pública A ECONOMIA DAS PERDAS E GANHOS: “Estou passando mal, a parte financeira...” Os participantes do estudo foram unânimes em afirmar que só tiveram perdas com a doença: deixaram de ter autonomia e autoestima, restringiram a vida social, perderam a estabilidade financeira e limitaram seus papéis familiares. As queixas de isolamento social e falta de motivação para sair de casa estiveram presentes em todas as entrevistas: “O shopping novo, ainda eu não conheço, apesar de fazer a infiltração ali perto [risos]” (Julia). O que mais chamou a atenção foi o relato de perda financeira, presente em todos os casos, e que foi capaz de interferir na dinâmica da convivência na família. Os(as) servidores(as) Julia, Vitoria, Artur, Beatriz e Conceição relataram que estariam em melhores condições financeiras se estivessem de volta ao trabalho: “Estou passando mal, a parte financeira... Atualmente, fico dependente [financeiramente] [...]” (Artur). O caso Artur foi o mais emblemático em relação às perdas financeiras. Até o adoecimento, tinha um estilo de vida típico de classe média alta, com renda vinda do trabalho na universidade e de uma empresa com um colega. Com o fim dessa sociedade, justamente no momento em que estava sem condições de buscar outras fontes de renda, ficou sem poder arcar com todas as despesas da família. Esta situação é citada como um importante fator de conflito com o genro, residente em sua casa, que lhe cobrava austeridade: “E não dependia dele. E hoje o problema que ele [genro] fala mais é para segurar os gastos, está entendendo?” O PROCESSO DE RETORNO AO TRABALHO: “O que eu faço, eu gosto, não é? Inclusive, estou querendo retornar [...]” Neste estudo, identificamos os principais fatores que interferiram no processo de recuperação para o trabalho, como os relacionados aos papéis do servidor e dos membros da família, as condições no ambiente de trabalho e a forma como foi atendido pela instituição. Os servidores citaram como ações positivas favoráveis à motivação em seguir o tratamento o reconhecimento de que o seu trabalho é importante para uma melhor condição de vida. Conceição (afastada do trabalho por 376 dias) teve perdas financeiras, conflitos em casa e limitação da capacidade de fazer as coisas que gosta. Lembra que participou ativamente do tratamento, para ter condições de retornar ao trabalho o mais breve possível: “[...] fisioterapia intensiva. Tinha que fazer todos os dias. Inclusive em casa; eu fazia em casa, sábado, domingo.” Observamos, no relato de alguns membros das famílias, a forma como agem e constroem ação positiva para facilitar o retorno ao trabalho. No caso de Beatriz, o filho decidiu ajudá-la, mudando o seu comportamento, que antes era de contestação e agora é apaziguador, v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 151 para reduzir o estresse: “Olhe, doutor, eu estou procurando [pausa] é, eu estou procurando [pausa] me comportar, né? De uma forma que a gente não entre em discussão […]” O mesmo não aconteceu com Vitória, que citou as interações no cotidiano da sua família, resultante da convivência conflituosa com o filho, usuário de droga, como responsáveis por dificultar o seu retorno ao trabalho. DISCUSSÃO Neste estudo, procuramos identificar as implicações da doença do trabalhador no ambiente da família, as consequências sociais e econômicas para descrever os papéis dos seus membros em relação ao processo de adoecimento e de recuperação da capacidade laborativa, que são influenciados por uma série de fatores individuais e coletivos ou em combinação. Nesta perspectiva, encontramos evidências de que o processo de adoecimento e a forma como alguns servidores foram atendidos pela instituição contribuíram para prolongar a incapacidade laboral. Por outro lado, o suporte da família, a perda financeira, o isolamento social tiveram peso favorável na decisão do servidor para retornar ao trabalho. Entretanto, a presença de alguns trabalhadores na residência serviu (Beatriz) e serve (Vitória) de forma paradoxal de estímulo para o retorno mais rápido ao trabalho, devido às interações conflituosas existentes no cotidiano familiar. Em relação às famílias estudadas, observamos que sofreram mudanças na sua estrutura, função e papel social geradas pelo processo de incapacidade por meio do estresse, pressão financeira e/ou isolamento social. Esses fatores e a falta de compreensão do que estava acontecendo, por parte dos atores envolvidos, contribuíram para interferir negativamente no relacionamento entre eles. Entretanto, após o estranhamento inicial e questionamento do sentimento de pertença do grupo familiar, surgiu espaço para a negociação e a construção de uma forma de agir compartilhada, que atendesse às necessidades de adaptação para esse novo contexto. Como se pode notar ao longo da descrição dos casos, a forma de agir dos membros de cada família sofreu mudanças, no sentido de reestruturar e efetuar novas aprendizagens em relação ao modo como percebem e interagem no cotidiano. De fato, o que era padronizado na rotina diária apresenta-se diferente na situação atual, no aqui e agora, quando o convívio é partilhado num intercâmbio contínuo entre os membros da família. A realidade social da vida cotidiana é apreendida e atualizada num contínuo de tipificações que afetam na interação face a face.22 A tensão provocada pelas exigências contemporâneas em torno da identidade, bem como o seu impacto na percepção do outro parecem agir como um fator relevante para definir e 152 Revista Baiana de Saúde Pública guiar a ação.g A compreensão da ação é baseada na forma como o indivíduo interpreta a sua própria experiência cotidiana em convivência com o outro. O estabelecimento de uma vida comum pressupõe compartilhar os significados que sustentam as relações sociais ou uma identidade coletiva que é reafirmada nas relações interativas, tornando-se possível a existência de um grupo familiar.23 O redimensionamento dos papéis dos membros da família foi descrito por todos os servidores. Isso surgiu diante da necessidade de dar suporte ao servidor doente ou de assumir as tarefas cotidianas atribuídas rotineiramente a eles. Nesse sentido, o impacto na vida cotidiana corroborou outros estudos sobre trabalhadores com distúrbio músculo-esquelético.24 Em alguns casos, o resultado dessa ação prática foi entendido como um estímulo positivo na recuperação do trabalhador. Assim como a participação ativa dos filhos(as) e esposos(as) no acompanhamento do tratamento e visitas aos serviços de perícia. Esse ajuste variou entre as famílias e foi relatado como um fator importante para atenuar o peso das perdas descritas nesta fase, a despeito de alguns membros manterem-se distantes desse processo, seja porque antes da doença tinham um relacionamento conflituoso com o servidor, seja por indisponibilidade de tempo devido a outros compromissos pessoais. A família, diante de uma situação de doença e incapacidade que acomete um dos seus membros, desenvolve ações positivas que facilitam a capacidade de resistir e de recuperar as consequências do adoecimento. Adota alguns mecanismos de ajustes, que são os meios pelos quais as normas são delimitadas para manter a estrutura da família, por meio da melhora na comunicação, da revisão do distanciamento provocado por crises no passado, permitindo, assim, maior envolvimento emocional, flexibilização e realocação de papéis, além de suporte social.6 Sugerimos que, no gerenciamento do processo de retorno ao trabalho, se busque conhecer como a família lida com esta experiência disruptiva, com vista a identificar e promover os principais processos que as tornam mais resistentes nas situações de crises e tensões, dentro ou fora do ambiente familiar. Entretanto, a depender do arranjo familiar, por exemplo, se é monoparental (formada por qualquer um dos pais e seus descendentes) ou se o casal tem fonte de renda dupla, ou ainda possui diferentes recursos organizacionais e financeiros, a doença pode interferir na capacidade de reagir às novas demandas psicossociais que surgem no seu transcorrer.25 Um achado intrigante desta pesquisa foi a possibilidade de os conflitos gerados pela presença diuturna do servidor(a) doente em casa e as perdas financeiras terem servido de estímulo g v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 Essas informações foram extraídas de Santos23 que se apoiou em: Schutz A. Fenomenologia e relações sociais (selected texts by Alfred Schutz). Rio de Janeiro: Zahar; 1979. 153 favorável para o retorno ao trabalho. Este estudo oferece evidências que contradizem a ideia de ganhos secundários (presença do servidor em casa) e terciários (benefícios para um ou mais membros da família) predominantes tanto na literatura como no senso comum.26 Estar com os familiares é um desejo de muitos indivíduos. Assim, uma condição de doença pode ser interpretada como uma situação de ganho secundário e terciário, e pode ser uma barreira para o retorno ao trabalho. Entretanto, paradoxalmente, os casos Beatriz e Vitória apresentam-se de forma diferente do que era esperado para essa situação. Os conflitos originados com o retorno à residência contribuíram para pressioná-las a procurar o serviço de perícia médica, a fim de negociar o retorno ao trabalho, apesar de ainda possuírem algum grau de incapacidade. Este achado pode ser explicado em parte pelas condições psicossociais decorrentes do empobrecimento dos servidores públicos federais.h Estudo com trabalhadores da indústria afastados do trabalho por dores musculares27 observou uma associação positiva entre o tempo de absenteísmo (> 90 dias) e a perda do poder aquisitivo combinada com o status marital e número de filhos. Ao longo do tempo, esses fatores contribuíram para manutenção da incapacidade laboral e, diferente de nossos achados, não foram citados como motivo para facilitar o retorno ao trabalho. As perdas econômicas originadas do adoecimento e desse contexto histórico socioeconômico repercutiram na vida dos servidores(as) e de suas famílias, favorecendo a redução significativa da qualidade de vida, com reflexo na convivência cotidiana. Em alguns casos, como o servidor era o único provedor da família, isso pode ter contribuído para um processo de desorganização no ambiente familiar. Daí a opção de enfrentar as dificuldades no trabalho a ficar em casa convivendo com os familiares. A prioridade passa a ser sobreviver com um melhor padrão de vida decorrente das vantagens salariais. Este é um aspecto importante que para ampliar o presenteísmo, fenômeno crescente mundialmente, decorrente da permanência no trabalho de pessoas com doenças crônicas, com repercussões sobre a evolução do quadro e prognóstico.29 Para tentar explicar esse achado paradoxal, utilizamos o conceito de “mudança de resposta”i proposto em estudo que apresenta um modelo teórico para integrar a mudança de resposta à qualidade de saúde.30 Seus autores descrevem o fenômeno como uma mudança nos valores interiores ou conceituação básica que ocorre no indivíduo quando está diante de uma situação como uma doença. Há uma mudança de expectativa sobre o que é mais importante para h i O servidor público federal no Brasil, nas últimas décadas, sofreu perdas salariais secundárias ao enxugamento do Estado, criando uma condição de empobrecimento.28 Mudança de resposta: tradução livre para Response Shift.30 154 Revista Baiana de Saúde Pública a sua qualidade de vida dada à nova circunstância. Esse modelo teórico é usado para se entender e prever as mudanças que ocorrem na qualidade de vida do indivíduo resultantes da interação entre os fatores catalisadores positivos ou negativos em resposta ao adoecimento, que envolvem antecedentes pessoais referentes, por exemplo: às características de personalidade; à utilização de mecanismos comportamentais e cognitivos para adaptação à condição de incapacidade; e às mudanças de significados produzidas pela doença na vida cotidiana.31 Esta pesquisa expõe alguns aspectos sobre o entendimento do processo de adoecimento do(a) servidor(a) e seu afastamento do trabalho com implicações no ambiente familiar, aqui identificados pelos conflitos, questionamentos sobre o sentimento de pertença ao grupo doméstico, às perdas financeiras e ao isolamento social, além da compreensão dos papéis encenados por alguns membros no processo de reabilitação profissional. O enquadramento teórico, que inclui os aspectos sobre o adoecimento e a incapacidade laboral, repercussão no ambiente da família e o processo de retorno ao trabalho, articulado com os achados empíricos, reforçam a pertinência dos resultados encontrados neste estudo, reiterando achados da literatura sobre a experiência da família na relação com o trabalhador-doente. Isto nos permitiu a oportunidade de ampliar a discussão sobre o tema e, dessa forma, criar oportunidade para formulação de novas hipóteses sobre o papel da família no processo de adoecimento e reabilitação profissional do servidor da universidade pública no Brasil. Este estudo acentua a importância do papel da família na reabilitação do trabalhador-doente pelo relato das experiências sobre as dificuldades enfrentadas na convivência cotidiana no contexto familiar. O presente trabalho aponta para a necessidade de se rever as práticas adotadas nos serviços de reabilitação, atualmente restritas ao indivíduo e, quando muito, às atividades do trabalho. Nessa perspectiva, sugerimos incorporar a família como um ator-social integrante do processo de retorno ao trabalho, assim como o empregador, os colegas de trabalho, o seguro-saúde e os serviços de assistência à saúde, tendo como centro das açõesnegociações o trabalhador-doente. O produto final deste estudo refletiu os significados originados do processo de negociação e interação entre o entrevistador e os atores sociais no contexto das entrevistas. As histórias e relatos dos membros das famílias permitiram uma rica aproximação com as dinâmicas dessas famílias na relação com o trabalhador-doente, oferecendo elementos que podem orientar a construção de novas hipóteses para futuros estudos. v.35, n.1, p.143-158 jan./mar. 2011 155 REFERÊNCIAS 1. Kleinman A. The illness narratives. 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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 29.04.2011 158 ARTIGO ORIGINAL Revista Baiana de Saúde Pública NAS MÃOS DAS CHARUTEIRAS, HISTÓRIAS DE VIDA E DE LER/DORTa Wéltima Teixeira Cunhab Maria do Carmo Soares de Freitasc Resumo As doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho têm sido uma temática debatida e discutida nos diversos espaços do mundo contemporâneo, a exemplo da área de saúde, sindicatos e ambientes de trabalho propriamente ditos, em busca da prevenção dos riscos e da promoção e proteção à saúde da classe trabalhadora. Este artigo tem como objetivo compreender a acepção de risco de adoecimento em LER/DORT, nas falas das trabalhadoras que fazem charutos artesanais e em uma fábrica no município de São Gonçalo dos Campos, Bahia, Brasil. Esta pesquisa adotou como base científica a abordagem qualitativa, sendo o instrumento principal a análise narrativa das entrevistas em profundidade. Recorreu-se à observação participante e a um amplo roteiro de entrevistas para aproximação da realidade do cotidiano dessas trabalhadoras e suas LER/DORT. A reunião das informações oriundas das charuteiras revela que o trabalho é prazeroso e que todas elas têm consciência de que a atividade é determinante para o surgimento de doenças osteomusculares nos membros superiores. Palavras-chave: Doença ocupacional. Risco. Indústria do Tabaco. Trabalho artesanal. IN THE HANDS OF CIGAR MAKERS, STORIES OF LIFE AND RSI Abstract Work-related musculoskeletal disorders have been an issue debated and discussed in the various spaces of the contemporary world: in health, trade unions and work environments themselves, in search of risk prevention and health promotion and protection of working people. This article aims to understand the sense of risk of musculoskeletal disorders, through the words Este artigo resultou da dissertação intitulada Acepção de Risco de Adoecimento em LER/DORT por Charuteiras. Foi aprovada pelo Comitê de Ética da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Parecer no. 15/09. b Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador, Salvador, Bahia. a c v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 Escola de Nutrição, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho. Endereço para correspondência: Rua Bela Vista do Cabral, no. 400/206, Nazaré, Salvador, Bahia. CEP. 40055-000. [email protected] 159 of workers who make handmade cigars in a factory in the municipality of São Gonçalo dos Campos, State of Bahia, Brazil. This research adopted as a scientific basis the qualitative approach, narrative analysis of interviews being the main tool. We used participant observation and an extensive set of interviews to approach the reality of daily life of these workers and their RSI. The gathering of information from the cigar makers shows that the work is pleasant, and that all of them are aware that the activity is determinant to the development of musculoskeletal disorders in upper limbs. Key words: Occupational diseases. Risk. Tobacco industry. Craft work. EN LAS MANOS DE LAS CIGARRERAS, HISTORIAS DE VIDA Y DE LER/DORT Resumen Las enfermedades Osteomusculares relacionadas con el trabajo han sido un tema debatido y discutido en los diversos espacios del mundo contemporáneo: a ejemplo del área de salud, sindicatos y ambientes de trabajo propiamente dichos, en busca de la prevención de riesgos y de la promoción y de la protección y a la salud de la clase trabajadora. Este artículo tiene como objetivo comprender la acepción del riesgo enfermar de LER/DORT, en palabras de las mujeres que hacen cigarros artesanales y en una fábrica en el municipio de São Gonçalo dos Campos, Bahia, Brasil. Esta investigación adoptó como base científica el abordaje cualitativo, siendo el instrumento principal el análisis narrativo de las entrevistas en profundidad. Se recurrió a la observación participativa y un amplio conjunto de entrevistas para acercarse a la realidad de la vida diaria de estas trabajadoras y sus afecciones LER/DORT. La reunión de información aportadas por las cigarreras revela que el trabajo es muy agradable, que todas ellas son conscientes de que la actividad es crucial para el desarrollo de lesiones Osteomusculares en las extremidades superiores. Palabras-clave: Enfermedad ocupacional. Riesgo. Industria del Tabaco. Trabajo artesanal. INTRODUÇÃO As doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho têm sido temática debatida e discutida nos diversos espaços do mundo contemporâneo – na área de saúde, nos sindicatos e nos ambientes de trabalho propriamente ditos –, em busca da prevenção dos riscos e da promoção e proteção à saúde da classe trabalhadora. Essas afecções foram identificadas por Bernardino Ramazzini, médico italiano, considerado o Pai da Medicina Ocupacional, que publicou, em 1700, sua célebre obra De Morbis Artificum Diatriba. Nela, são citadas várias enfermidades ocupacionais 160 Revista Baiana de Saúde Pública relacionadas com cinquenta diferentes profissões, algumas medidas de prevenção dos riscos inerentes às profissões e métodos e conceitos de segurança do trabalho.1 Bernardino Ramazzini também afirmou que o trabalho realizado de forma leve, em determinados ofícios e em profissões que exigem posturas sedentárias, causavam lesões na musculatura esquelética. Citou como exemplo dessa patologia o estudo sobre a saúde dos mineiros, quando observou a brutalidade com que os donos dos meios de produção tratavam a “máquina humana”. Relatou o sofrimento dos artesãos escriturários, apontando a leveza e a repetitividade do esforço, a sobrecarga estática das estruturas dos membros superiores e a aparente tensão exigida pela atenção ao desenvolver aquele ofício.2 Verificou ainda que instrumentos de trabalho construídos de forma rudimentar e a movimentação anormal das mãos ou movimentos violentos e irregulares, assim como posturas inadequadas ao executar o trabalho, determinavam uma incidência de sintomas. Esta observação levou-o a descrever os efeitos do uso constante das mãos em escribas e notários. Já os escrivães, em razão do ritmo repetitivo nas suas escritas, apresentavam fortes dores nos braços, formigamentos, dificuldades de movimentos e, consequentemente, perdiam a força nas mãos. Tal afecção iniciava com uma lassidão em toda a extensão do braço direito, progredindo para uma completa paralisia deste membro, e graves danos ao organismo. Mais tarde foi denominada de “cãibra do escrivão” ou “paralisia do escrivão”, e também “doença das tecelãs” (1920) ou “doença das lavadeiras” (1965).2 Pode-se notar a grande semelhança desse quadro com a atividade atual dos escriturários. Em 1818, Velpeau observou nos carpinteiros, embaladores de fumo e de chá, e nos agricultores, uma inflamação na bainha tendínea, causada por movimentos repetitivos e a denominou de tenossinovite traumática.2 No ano de 1891, Fritz De Quervain constatou que as costureiras apresentavam a mesma patologia; fato também verificado nas Olimpíadas da Grécia, com a observação dos movimentos bruscos e repetitivos, tensão e posturas inadequadas dos atletas, que ocasionavam muitas dores musculares.2 Fritz De Quervain descreveu uma doença denominada entorse em mulheres que lavavam roupas e apresentavam lesão dos tendões adutores longos e extensores curtos do polegar. Hoje, essa doença é denominada de De Quervan, de acordo com os estudos.3 As epidemias surgiram em 1775, após o advento da Revolução Industrial na Inglaterra, com a introdução de máquinas em substituição ao trabalho manufaturado e artesanal; a abundância de mão de obra composta por homens, crianças e mulheres despreparados para a v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 161 nova atividade; e as instalações das fábricas em galpões, estábulos e velhos armazéns.4 Nesse período, a sobrecarga de trabalho estática e/ou dinâmica exigida no decorrer das atividades e em longas jornadas gerou nos trabalhadores quadros clínicos diagnosticados como danos dos membros superiores, trazendo como exemplo, entre outros, os anotadores do serviço britânico, que faziam uso de uma pena de aço mais pesada. 5 A necessidade da inovação tecnológica nas indústrias, verificada na segunda metade do século XVIII, e o surgimento de novas tecnologias em meados do século XX, que obrigaram o trabalhador a operar mais de uma máquina, intensificando o processo de trabalho com vistas à produtividade, concorreram para o agravamento das doenças osteomusculares, que, desde então, ganharam visibilidade nos dados estatísticos e relevância do ponto de vista social, político e econômico.4 No final da década de 1950, no Japão, esses tipos de distúrbios foram observados em perfuradores de cartões, operadores de caixas registradoras, datilógrafos e outros. Afinal, foi naquele país que a automação conduziu à racionalização do trabalho, agravando a situação de saúde dos trabalhadores, por uma série de razões, dentre as quais se destacam, em decorrência da intensa sobrecarga de trabalho: a velocidade em que era desenvolvida a atividade por máquinas operadas manualmente; jornadas longas de trabalho contínuo; aumento de tarefas por trabalhador, que exigiam movimentos exagerados das estruturas dos membros superiores; esvaziamento do conteúdo do trabalho pela sua fragmentação; rigidez da chefia no controle da produtividade; e redução do tempo de repouso e do tempo de lazer.5 Desde os anos 1960, o quadro clínico das Lesões por Esforço Repetitivo (LER)/ Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) vem sofrendo mudanças, em razão das transformações do processo produtivo. Com a implantação da organização científica do trabalho e, posteriormente, com a automação dos processos de produção, houve um aumento do ritmo de trabalho e a adaptação do homem ao ritmo da máquina, fazendo com que o trabalhador permanecesse em posto fixo de trabalho, executando, de forma simultânea, uma série de movimentos, sem, contudo, avaliar as consequências sobre o seu corpo e suas estruturas osteomusculares. Adicionalmente, a automação levou à redução das tarefas que requeriam dos trabalhadores grandes esforços físicos e à diminuição da exposição a agentes físicos e químicos nocivos à saúde.6 Hoje, entende-se que as LER/DORT resultam de processos de trabalho caracterizados pela parcialização, rotinização e fixação do trabalhador em seu posto de trabalho, durante toda a jornada, e com ritmo acelerado. Constata-se, ao longo do capitalismo, a evolução histórica do processo de trabalho, evidenciando o interesse dos empregadores em obter a máxima produtividade à custa da 162 Revista Baiana de Saúde Pública exploração do trabalho humano, com a criação do processo de terceirização, redução de mão de obra e mudanças na organização do trabalho, o que implica perdas das conquistas sociais resultantes de reformas instituídas pelas leis e pela Justiça.6 No Brasil, as LER/DORT passaram a ser reconhecidas oficialmente pela Previdência Social, com a terminologia tenossinovite dos digitadores, em decorrência da pressão realizada pelo sindicato dos profissionais de processamento de dados.7 As doenças do trabalho estão no foco dos profissionais de saúde e representam também um desafio muitas vezes não assumido pelas empresas. Dentre essas doenças, destacam-se as LER/DORT. A incidência deste distúrbio vem aumentando nos últimos vinte anos, constituindo a principal afecção à saúde entre as doenças ocupacionais que acometem trabalhadores cada vez mais jovens.7 As LER/DORT originam-se do exercício da profissão, por uma ação contínua, às vezes lenta, causada por multifatores que produzem nexo etiológico. Essas doenças formam um conjunto de aproximadamente trinta doenças, das quais a tendinite, a tenossinovite e a bursite são as mais conhecidas.8 As lesões osteomusculares relacionadas ao trabalho são causadas pelo uso inadequado, excessivo e contínuo de determinada articulação – músculo e tendão, por rápidos movimentos repetitivos e de força – e ordinariamente atingem os membros superiores e pescoço, embora possam afetar todo o corpo do ser humano.9 O nexo causal deve ter como base de sustentação uma equipe multiprofissional e um diagnóstico clínico, psicológico e organizacional do trabalho – porque essa compreensão está associada às condições do ambiente de trabalho, ao posto de trabalho, à organização e relação de trabalho e a fatores psicossociais envolvidos.6 A intervenção ergonômica visa analisar e entender a organização do trabalho na perspectiva de encontrar proposições para a melhoria de suas condições e, consequentemente, para o conforto e bem-estar do trabalhador.10 Nesse sentido, a Norma Regulamentadora (NR) 17 estabelece parâmetros que permitem adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, para proporcionar um máximo de conforto e segurança.11 Considera-se que a LER/DORT faz parte de um conjunto de patologias de caráter inflamatório que afetam os músculos, tendões e nervos, localizados principalmente nos dedos, punho, braços, ombros e região cervical, causadas por movimentos repetitivos, posturas estáticas, posturas inadequadas, jornada de trabalho prolongada e ritmo acelerado de trabalho. Essas patologias provocam dores (que passam a ser contínuas e vão aumentando conforme o seu grau), sensação de peso e fadiga, enrijecimento muscular, choque, câimbra, falta de firmeza nas mãos, sensação de fraqueza muscular, sensação de frio ou calor, limitação dos movimentos, edema e parestesia. Esses sintomas podem levar os trabalhadores à incapacidade física (mutilação) dos v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 163 membros superiores (ombros, braços, antebraços, punhos, mãos e dedos), assim como dos membros inferiores (joelho e tornozelo), alterando, assim, a rotina diária do trabalhador e interferindo em sua qualidade de vida.8,12 O crescimento das doenças osteomusculares no Brasil deve-se às modificações no processo produtivo, decorrentes da modernização. Dentre elas, podem ser citadas as de natureza biomecânicas, como mobiliário inadequado, posturas incorretas ou viciosas, força muscular, repetitividade; e fatores ligados à organização do trabalho, tais como ritmo acelerado, falta de autonomia, tempo a cumprir, fragmentação das tarefas, cobrança de produtividade, relação com a chefia, falta de conteúdo das tarefas, rotatividade de mão de obra, relações autoritárias, intensificação do ritmo de trabalho, terceirização das tarefas de risco, trabalhador desqualificado para o desempenho da atividade e falta de informações sobre as doenças.13 No Brasil, a despeito da subnotificação das doenças relacionadas ao trabalho, as LER/ DORT vêm crescendo anualmente nas estatísticas oficiais e nos centros de referência em saúde do trabalhador, o que constitui a maior causa de afastamento dos trabalhadores dos diversos ramos de atividade e de aumento do número de desempregados. A fragmentação do processo produtivo resulta na consequente fragmentação do trabalhador, com o uso parcial do intelecto ou de seu corpo, quando utiliza apenas as mãos. Essa fragmentação ocorre quando o trabalhador perde a condição de categoria coletiva e passa a ser individualizado, em um processo que separa os que planejam o trabalho, os que detêm as informações, os que executam o trabalho e aqueles que controlam os que o executam.14 Deste modo, toda atividade laborativa é constituída de fatores de natureza intrínseca ao trabalho, tais como esforço físico, monotonia ou variação de trabalho destituído de significado, possibilidade de criação e autorrealização, status na empresa ou na sociedade e nível de remuneração.15 Os impactos do ambiente e do processo de trabalho, a exemplo de sua organização e divisão, devem ser estudados sob o ponto de vista da saúde do trabalhador, com a finalidade de entender melhor como esses elementos são capazes de consumir a força de trabalho ou desgastar a capacidade vital do trabalhador. Tais elementos, articulados, formam um conjunto de cargas de trabalho às quais o trabalhador está exposto diariamente. Daí, para cada ramo produtivo e para cada processo de trabalho é possível identificar cargas de trabalho e, consequentemente, o desgaste causado no operário.16 Considera-se carga de trabalho as exigências ou demandas psicobiológicas do processo produtivo que, ao longo do tempo, se manifestam na saúde do trabalhador. Carga é um atributo de um determinado processo que, estando presente no ambiente de trabalho, expõe um grupo de trabalhadores à probabilidade de experimentar uma deterioração física e psicológica.17 164 Revista Baiana de Saúde Pública Com base nesses estudos, é possível relacionar certas atividades profissionais que exigem do trabalhador posturas e esforços físicos que possam levá-los ao adoecimento – dentre elas, está a de fazer charutos. A atuação profissional em ambulatório do Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador, da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (CESAT), possibilitou a uma das autoras deste artigo o acesso a histórias de vida laboral de mulheres charuteiras que apresentavam sintomatologia das LER/DORT. No levantamento realizado nos bancos de dados da BIREME, SciELO e LILACS, não se encontrou qualquer estudo sobre saúde ocupacional que contemplasse essa categoria de trabalhadoras. Além do grau de risco que uma determinada atividade laboral apresenta em relação ao desenvolvimento de LER/DORT, é importante também compreender o significado de risco no entendimento dos trabalhadores, o que pode determinar maior vulnerabilidade e/ou colaborar para ações preventivas. Portanto, faz-se necessário buscar, com base em estudos teóricos, os significados atribuídos à acepção de risco, do ponto de vista das ciências naturais e das ciências sociais. Nesse sentido, cabe dizer que o conceito ganha diferentes conotações em cada campo de estudo. Segundo a epidemiologia, risco refere-se à probabilidade da ocorrência de uma doença em uma população, em dado período de tempo. A definição de risco também envolve a identificação de fatores que são associados ao desenvolvimento das doenças ou agravos.18 O risco, de maneira geral, é entendido como toda e qualquer possibilidade de algum elemento ou circunstância existente no ambiente de trabalho e/ou no processo produtivo causar dano à saúde do trabalhador, por meio de acidentes, doenças, sofrimento ou poluição ambiental.19 O risco também significa o entendimento dos não especialistas ou dos considerados leigos sobre o risco de adoecer e inclui um conjunto de crenças e valores que dão significado a cada situação de sofrimento. Se o risco não for entendido como tal, as decisões e os comportamentos dos trabalhadores não serão compatíveis com a segurança que uma dada situação exige.21 Sejam os riscos de caráter ambiental ou ocupacional, ou mesmo de qualquer outra natureza, os processos subjetivos devem ser considerados quando se busca compreender a forma como as situações de risco são enfrentadas por determinadas pessoas. Deste modo, o significado de risco depende de uma multiplicidade de fatores, a exemplo do contexto e da inserção da pessoa em um determinado evento, da função ocupada em determinado espaço social, dos aspectos culturais, da personalidade, da história de vida, das características pessoais e da pressão e/ou demandas do ambiente.22 Acredita-se que os indivíduos constroem seu espaço perceptivo por meio do contato direto e íntimo com o ambiente vivido no seu cotidiano. Logo, os riscos no trabalho, v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 165 também denominados de riscos ocupacionais, têm encontrado espaço nas discussões a respeito da saúde e segurança dos trabalhadores, cujas abordagens trazem uma diversidade de enfoques teóricos, alguns especialmente tecnicistas e outros que recorrem a uma perspectiva que prioriza os aspectos sociais. Especificamente em relação ao estudo em questão, é necessário esclarecer que a Bahia é o terceiro produtor de fumo do Brasil, atendendo quase que exclusivamente ao mercado externo, o que inclui Argentina, Estados Unidos, Austrália, Europa e Oriente Médio. Já no mercado interno, os principais consumidores são Rio de Janeiro e São Paulo.23 A mão de obra utilizada na produção de charutos é constituída exclusivamente de mulheres, que trabalham 8 h/dia nas diversas etapas da fabricação do produto.23 A fábrica em estudo fica na cidade de São Gonçalo dos Campos, na região do Recôncavo baiano, e produz 12 mil charutos diários, tendo fechado o ano de 2007 com uma produção de 4 milhões de charutos, resultado do trabalho de 100 charuteiras. Esta fábrica é a maior em produção no Brasil.24 O processo utilizado na fabricação de charutos é considerado estritamente artesanal, por exigência do próprio mercado.25 Na fábrica de charutos, as trabalhadoras executam movimentos suaves e repetitivos que atingem os membros superiores e a sua coluna vertebral. Todavia, à organização do trabalho, com situações envolvendo a biomecânica e fatores ligados à psicodinâmica, somam-se elementos que levam ao surgimento das LER/DORT.8,9,26 Constata-se que os estudos realizados nas últimas duas décadas sobre as LER/DORT, nas diversas categorias profissionais, remetem-nos ao uso total ou parcial de tecnologias e muito raro ao trabalho artesanal e àquelas atividades que utilizam ferramentas rudimentares. Entretanto, parece claro que o esforço repetitivo a que essa categoria de trabalhadoras está submetida a fim de atingir as metas de produção pode desencadear e/ou contribuir para a geração dessas lesões. Em estudos relacionados a outros tipos de produção, que incluem etapas de trabalho artesanal/manual realizado por mulheres, tais como corte com tesoura em tecido e couro em indústrias de tecelagem e pequenas confecções, foram detectadas lesões associadas a traumas crônicos secundários e sobrecarga das atividades diárias de mão e punho.27 Outra constatação foi observada no estudo realizado com 89 rendeiras de Maceió, em que aproximadamente 90% declararam lombalgia e disfunção nos membros superiores, demonstrando um resultado preocupante do ponto de vista da epidemiologia.28 Igualmente artesanal é o trabalho das marisqueiras, pois estas possuem os instrumentos de trabalho considerados rudimentares, executam a atividade em áreas limitadas e sobrevivem da venda desse produto. Essas trabalhadoras reservam apenas os domingos à tarde e alguns feriados 166 Revista Baiana de Saúde Pública religiosos para o descanso, pois a perda na produção significa diminuição na renda mensal e, consequentemente, queda na renda familiar. Na contagem dos mariscos, essas mulheres desenvolvem aproximadamente 10.200 movimentos repetitivos por hora, desencadeando dores nos membros superiores, sintomas típicos da LER.29 A relevância desta pesquisa está em analisar as informações sobre a realidade desses problemas nosológicos que aparecem no processo de trabalho, especificamente na atividade de fabricação dos charutos, que causam ou podem concorrer para o surgimento das lesões por esforços repetitivos relacionados ao trabalho (LER/DORT). Esta pesquisa teve como objetivo principal analisar/compreender os significados atribuídos pelas charuteiras às LER/DORT que atingem os membros superiores. Seus objetivos específicos foram: observar as etapas do processo de fabricação de charutos e descrever a relação entre as etapas do processo de fabricação de charutos e as afecções dos membros superiores. DESENHO METODOLÓGICO Adota-se como base científica a abordagem qualitativa, que, no momento atual, é o tipo de investigação que ocupa uma reconhecida posição para estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos em diversos contextos.30 Especificamente, aborda a experiência do sujeito sobre uma problemática de saúde. A abordagem qualitativa não está preocupada com a demonstração quantitativa do ponto de vista da estatística inferencial das variáveis pesquisadas, mas sim com a qualidade da informação baseada no discurso de cada sujeito pesquisado. Cada relato é importante para o pesquisador, e seu envolvimento é fundamental em todas as etapas do estudo. Esse tipo de pesquisa leva em consideração o indivíduo inserido em um determinado contexto, não impõe e nem controla a forma e a estrutura do resultado final. Compreende, pois, a experiência humana.30 Deste modo, a fala, conteúdo do discurso social, é o instrumento fundamental para aprofundar um objeto estudado. Dentre as diversas correntes de pensamento, este estudo traz autores da fenomenologia30 e da análise de discurso,31 para dar conta do aprofundamento desta pesquisa. Ambas as linhas teórico-filosóficas apresentam a acepção, os significados, as aspirações, as crenças, as atitudes e os valores, aspectos não quantificáveis do sujeito sobre um fenômeno, traduzindo, assim, a intersubjetividade e a acepção do sujeito sobre o modo de viver e de adoecer.30 Nesse sentido, esta pesquisa é desenvolvida com os recursos das ciências sociais para subsidiar a abordagem qualitativa, observacional, para entender melhor as etapas do processo produtivo e compreender os significados atribuídos pelas trabalhadoras à sua atividade e às doenças localizadas especificamente nos seus membros superiores. v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 167 • Local e período da investigação A pesquisa de campo foi realizada no mês de setembro e outubro de 2009, com entrevistas narrativas envolvendo trabalhadoras de uma fábrica de charutos situada no município de São Gonçalo dos Campos, Bahia. Colaboraram com as entrevistas 2 trabalhadoras afastadas pela Previdência Social, 9 trabalhadoras em atividade, 3 ex-funcionárias e 6 charuteiras artesanais, num total de 20 indivíduos, com base no critério de vínculo com a empresa há mais de 5 anos. O número de entrevistas varia conforme o nível de saturação das informações e, nesse sentido, o total de 20 entrevistas foi suficiente para obter as informações pertinentes à pesquisa.30 O critério para o tempo mínimo na atividade de trabalho deve-se ao tempo de exposição ao risco (sobrecarga das estruturas anatômicas) e ao surgimento da doença, devido a sobrecargas osteomusculares e ao fato de essas afecções terem múltiplos determinantes.26,8 Visando atender às recomendações da pesquisa qualitativa, adotou-se como técnica de coleta de dados/informações a observação das etapas do trabalho, com possível contagem dos movimentos repetitivos, e a entrevista narrativa.31 Nesta atividade, utilizou-se um roteiro de questões com a finalidade de orientar o pesquisador e não influenciar de forma negativa ou positiva as respostas do sujeito.30 Também foi elaborado um roteiro de entrevista, para aplicação junto ao representante do empregador, contendo informações sobre a fábrica, a organização do trabalho e as trabalhadoras. O pesquisador/entrevistador interagiu e teve certo envolvimento com as charuteiras, condição importante para o aprofundamento de uma relação intersubjetiva, fazendo com que elas se sentissem estimuladas a participar. • Aspectos éticos da pesquisa O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia, para ser avaliado. Após esta avaliação, a pesquisa foi iniciada com os sujeitos que atenderam aos critérios estabelecidos na metodologia, para composição da amostra. Em seguida foi lido, para cada participante, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A elaboração desse documento teve como base a Resolução No 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Após o aceite das charuteiras em participar da pesquisa, cada uma delas assinou o termo em duas vias; uma ficou com a trabalhadora e a outra com a pesquisadora. Nesse termo constou o telefone de contato do pesquisador e informações sobre a pesquisa, de forma clara e de fácil compreensão. Para algumas participantes, o termo foi lido pela pesquisadora, porém assinado por elas. 168 Revista Baiana • Procedimentos para a coleta das informações de Saúde Pública O estudo foi realizado em quatro momentos distintos, em uma fábrica situada no Município de São Gonçalo dos Campos, no estado da Bahia, com trabalhadoras que produzem charutos. No contato inicial com um dos responsáveis pela empresa, foi realizada uma entrevista seguindo-se o roteiro previamente preparado. Obteve-se, então, dados sobre a empresa e as atividades dos(as) trabalhadores(as), envolvendo a organização e as relações de trabalho, tamanho da área física da fábrica, número de trabalhadores, vínculo empregatício, jornada de trabalho, produtividade, prêmio assiduidade e de produção, quantidade produzida/dia/mês, descrição do processo produtivo, equipamento de proteção individual (EPI), assistência médica, dentre outros. Em seguida, ele indicou as trabalhadoras que tinham mais de 5 anos de vínculo empregatício nessa atividade, ou seja, que estavam dentro dos critérios determinados para a seleção. Nesse contexto, as trabalhadoras, voluntariamente, deram início à colaboração com este estudo, colocando-se à disposição para a realização das entrevistas propriamente ditas. Naquele momento, foi-lhes esclarecido o objetivo da pesquisa; cada trabalhadora leu o termo de consentimento e, só depois, assinou-o para dar início à entrevista. Em primeiro lugar, foram coletadas informações sociodemográficas – idade, escolaridade, estado civil, número de filhos, salário liquido. Em seguida, elas falaram sobre a organização e o processo de trabalho: jornada, ritmo, uso de equipamentos, pausa, postura, atividade física e lazer, questões de saúde e qualidade de vida, se gosta do que faz, tarefas domésticas, dificuldades para realizar as tarefas e se o trabalho pode prejudicar a saúde, dentre outras. Os sujeitos, voluntários deste estudo, que trabalham na fábrica, foram entrevistados, sem, contudo, abandonar completamente seu posto de trabalho. Com a permissão prévia do responsável pela empresa, estabeleceu-se o número de sujeitos que seriam entrevistados por turno, de modo a se respeitar o intervalo (pausa) e o horário de saída. Os outros sujeitos foram entrevistados nas próprias residências e na feira livre da cidade. As entrevistas foram realizadas com a utilização do gravador, diário de campo, para anotar as observações, termos e sentenças mais significantes, bem como foram fotografadas posturas das trabalhadoras durante a atividade de fabricação dos charutos. Um terceiro momento foi dedicado à observação das etapas do processo de produção dos charutos, com as respectivas anotações no diário de campo, sobre a maneira de as trabalhadoras utilizarem os membros superiores, destacando a parte do braço, a postura, o tempo e a repetitividade das atividades. Às participantes da pesquisa foram atribuídos nomes fictícios, escolhidos por elas mesmas, para preservar-lhes a identidade. v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 169 Em seguida realizou-se a transcrição, análise e interpretação dos conteúdos das falas, segundo orientação da teoria que apoiou esta ação. O objetivo da análise de conteúdo é trabalhar as falas e suas significações/conteúdos, manifestadas por cada indivíduo, buscando outras realidades no interior das mensagens. Nesse sentido, a análise de conteúdo acontece em três fases: a pré-análise, também denominada de leitura flutuante, ou seja, primeiro contato com o material a ser analisado, caracterizada pela tomada de conhecimento do texto e a impressão que este causa ao pesquisador; a fase seguinte à exploração do material é a codificação dos dados brutos, transformando-os, por enumeração ou agregação, de modo que permitam uma descrição exata dos conteúdos ou falas; na última fase, o resultado bruto é submetido a tratamento para que se torne significativo e válido, e permita buscar-se a inferência e a interpretação.31 RESULTADOS • As trabalhadoras da fábrica de charutos: perfil e processo de trabalho A idade das trabalhadoras entrevistadas (em atividade, trabalhadora afastada pela Previdência Social e ex-trabalhadoras) varia entre 32 e 46 anos de idade; grande parte é casada e tem filhos. No que se refere à escolaridade, predomina curso fundamental incompleto. Quase todas aprenderam esse ofício na própria fábrica. Todas trabalham na fábrica há mais de 8 anos e menos de 21. Produzem cerca de 400 charutos por dia, com carga horária diária de 9 horas. Recebem por mês um salário mínimo, o equivalente ao preço de 32 charutos. Quando questionadas se há relação entre trabalho e saúde, todas afirmaram que a atividade de charuteira pode causar doenças osteomusculares, como dor nas mãos, braços e região lombar, além de sentirem-se cansadas. Todas afirmaram que o risco de adquirir doenças músculoesqueléticas decorria da quantidade de charutos produzidos e do uso da máquina de enchimento e do macaco para prensar os charutos. Todas se queixaram das cadeiras inadequadas, e grande parte referiu-se ao desconforto térmico do ambiente, devido à temperatura elevada. Usam pequenas toalhas para enxugar o rosto sujo de suor, que pinga sobre as folhas de fumo. As entrevistadas afirmaram que sentem dores nos membros superiores, porém somente algumas têm diagnóstico médico de doenças osteomusculares. Como a empresa não oferece plano de saúde, são amparadas exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Elas apresentam os sintomas e/ou diagnóstico de LER/DORT em plena idade produtiva. 170 Revista Baiana de Saúde Pública • As charuteiras artesanais: perfil e processo de trabalho Foram entrevistadas mulheres com idade entre 55 e 83 anos, casadas e viúvas. Quanto ao nível de escolaridade, todas são alfabetizadas, porém não concluíram o curso fundamental nas séries iniciais. Começaram como artesãs aos 8 anos de idade. Passaram toda a vida produzindo charutos em casa, abrindo cada folha, delicadamente, sobre as coxas ou sobre a mesa, como quem abre um tecido de algodão, ofício que herdaram dos conhecimentos familiares. Em relação à saúde e à prática de fazer charutos, queixaram-se de dor na região da coluna lombar e de cansaço. Poucas falaram em dor ou outro sintoma nos braços ou mão, a despeito de fazerem mais charutos por dia que as trabalhadoras da fábrica. Informaram produzir mais de 500 charutos, numa jornada de aproximadamente 10 horas por dia. Uma delas relatou que há 10 anos começou a sentir dores na mão, em consequência da utilização da faca para cortar a ponta do charuto. Trabalham na própria residência, sentadas em um banco de madeira quase rente ao chão e, às vezes, no próprio chão, utilizando uma placa de madeira apoiada em latas ou pedras, para servir de mesa. As folhas de fumo ficam em sacos de papel e de ráfia ou cestos. Durante a produção dos charutos, elas se vestem com roupas mais velhas, porque as folhas do fumo soltam uma coloração escura, produzindo mancha de difícil lavagem. Elas ganham menos que as trabalhadoras da fábrica; em compensação, adoecem pouco. Essas mulheres são donas e administradoras do seu próprio tempo de trabalho e repouso. DISCUSSÃO Nas vozes das trabalhadoras ativas da fábrica, das ex-trabalhadoras da fábrica, demitidas ou afastadas por problemas de saúde, e das trabalhadoras artesãs, a atividade é prazerosa e traz felicidade, a despeito de exigir uma forte carga de trabalho da musculatura esquelética dos membros superiores. A produção diária destina-se ao cumprimento de meta, quando se refere às trabalhadoras da fábrica; porém, a alta produção das artesãs realiza-se para compensar o baixo valor unitário dos charutos no mercado. Consequentemente, a quantidade de charutos produzida por dia e por qualquer charuteira, seja ela artesã ou não, desencadeia sintomas na musculatura esquelética, que, em algumas trabalhadoras, foram diagnosticados como LER/ DORT pelo Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (CESAT). No entanto, a maioria delas, talvez por medo de ser demitida, não procura o médico e se automedica. Nas falas, as charuteiras revelam perfeita compreensão de que a atividade de fazer charutos causa doenças ou sintomas como dor nos membros superiores, pescoço e na coluna vertebral, devido às ferramentas de trabalho e à carga horária. Tomando por base os afastamentos das charuteiras, pela previdência social, por doença ocupacional – com relatório e Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) emitidos pelo v.35, n.1, p.159-174 jan./mar. 2011 171 CESAT –, fica evidente a falta de responsabilidade e compromisso das empresas para reconhecer a doença como uma patologia ocupacional, não obstante o tratamento civilizado que mantêm com as trabalhadoras no ambiente de trabalho. O sindicato, por sua vez, pouco ou nada tem feito pelos trabalhadores e, principalmente, pelas trabalhadoras, o que, segundo um de seus diretores, se deve à baixa filiação, reflexo da desmobilização da categoria. A aproximação com o material da pesquisa possibilitou a análise, a visualização e a compreensão do oficio das charuteiras, destacando situações referentes à divisão e condições de trabalho, fragmentação do grupo de trabalhadoras de acordo com os postos de atividade e atitudes de defesa. É necessário compreender-se que essas defesas, conscientes ou inconscientes, utilizadas pelas trabalhadoras no desenvolvimento da atividade, traduzem a acepção que elas têm sobre o seu ambiente e posto de trabalho, que são geradores de doenças, sendo algumas defesas capazes de negar o risco de adoecimento ou agravamento da doença e favorecer a sua adaptação e manutenção no ambiente de trabalho nocivo. Vale salientar que os charutos são fabricados manualmente, porém não podem ser considerados artesanais, porque as trabalhadoras não são possuidoras dos meios de produção, tampouco da matéria-prima. Elas são exclusivamente consideradas como força de trabalho. Diante desse quadro, emergiu, possivelmente pela primeira vez por parte das trabalhadoras, a vontade de se expressar sobre o ambiente de trabalho e a própria atividade. Com as informações coletadas, os registros da observação participante e dos dados obtidos nos prontuários médicos, pretende-se propor ações de educação, vigilância e intervenção nesses setores considerados artesanais de trabalho, mostrando a morbidade dessa atividade para as trabalhadoras e para a sociedade. REFERÊNCIAS 172 1. Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. 2a. ed. São Paulo: Fundacentro; 2000. 2. Cunha WT. Os docentes do ensino superior e as doenças ocupacionais [Dissertação]. Bragança Paulista, SP: Universidade São Francisco; 2000. 3. Rocha LE, Ferreira Junior M. Distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho. In: Ferreira Junior M. Saúde no trabalho: temas básicos para o profissional que cuida da saúde dos trabalhadores. São Paulo: Roca; 2000. p. 286-319. Revista Baiana de Saúde Pública 4. Miranda CR. Introdução a saúde no trabalho. São Paulo: Atheneu; 1998. 5. Michel O. Acidentes do trabalho e doenças ocupacionais. São Paulo: LTr; 2000. 6. Assunção AA. Sistema músculo-esquelético: lesões por esforços repetitivos (LER). In: Mendes R. Patologia do trabalho. São Paulo: Atheneu; 1995. p. 173-212. 7. Melo CD. Doenças ocupacionais com ênfase a ler/dort [Monografia]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2003. 8. Ranney D. Doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho. São Paulo: Roca; 2000. 9. Ferreira Junior M. Saúde no trabalho: temas básicos para o profissional que cuida da saúde do trabalhador. São Paulo: Roca; 2000. 10. Maciel RH. Ergonomia e lesão por esforço repetitivo. In: Codo W, coordenador. Educação: carinho e trabalho. Petrópolis: Vozes; 1999. p. 163-201. 11. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Normas regulamentadoras de medicina e segurança do trabalho. 48ª. ed. São Paulo: Atlas; 2000. 12. Couto HA. 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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 03.05.2011 174 ARTIGO ORIGINAL Revista Baiana de Saúde Pública DOENÇAS EM TRABALHADORES DA PESCAa Antoniel de Oliveira Riosb Rita de Cássia Franco Regoc Paulo Gilvane Lopes Penad Resumo A pesca, atividade humana muito antiga, como a caça e a agricultura, é praticada pelo homem desde a pré-história com o objetivo de obter os meios necessários à subsistência no meio aquático. Atrelada a essa ocupação, existem os riscos e agravos à saúde de seus trabalhadores. O presente trabalho tem como objetivo fazer uma revisão bibliográfica acerca dos fatores de risco para doenças ocupacionais e agravos à saúde dos trabalhadores da pesca, excetuando-se os relativos a acidentes de trabalho. Os resultados apontam que os principais fatores de risco para doenças relativas ao setor da pesca podem ser divididos em: relativos ao ambiente de trabalho, como o frio, o calor, a umidade, os ventos, a radiação solar, as vibrações e ruídos; comportamentais, como o fumo, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o uso de drogas e medicamentos; e fatores sociais, como a prolongada jornada de trabalho, as condições socioeconômicas desfavoráveis, o baixo nível de instrução e o fato de pertencerem a classes sociais mais baixas. Os principais agravos à saúde foram problemas músculo-esqueléticos, lesões de pele, alergias respiratórias, problemas oftalmológicos, respiratórios e urogenitais, doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. Palavras-chave: Pescadores. Doenças profissionais. Saúde do trabalhador. a b Revisão desenvolvida como trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Graduando do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Bahia. Doutora em Saúde Pública. Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET). Vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Ambiental e Trabalho da Universidade Federal da Bahia. d Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Bahia. Doutor em Saúde Pública. Coordenador do Programa de Pós-graduação c em Saúde Ambiental e Trabalho da Universidade Federal da Bahia. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Saúde Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da Bahia. Largo do Terreiro de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia. CEP: 40.026-010. [email protected] v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 175 DISEASES IN FISHING WORKERS Abstract Fishing is a very ancient human activity that, such as hunting and agriculture, has been practiced by man since prehistoric times in order to obtain the resources necessary for their subsistence from water. Coupled with this occupation are the risks and harms to the health of their workers. This paper aims to review part of the present literature about the risk factors for diseases and health hazards to workers from fishing, except to those related to workplace accidents. The main risk factors for illnesses related to the fishing sector can be divided into the ones which are related to the workplace as the cold, heat, humidity, wind, solar radiation, vibration and noise; behaviors such as smoking, excessive consumption of alcoholic beverages, and use of drugs and medications) social factors as long working hours, unfavorable social economic conditions, low educational level and the fact that they belong to lower social classes. The most important health problems were musculoskeletal and skin diseases, respiratory allergies, eye problems, respiratory and urogenital diseases, sexually transmited diseases, and others. Key words: Fishermen. Occupational diseases. Occupational health. ENFERMEDADES DE LOS TRABAJADORES DE LA PESCA Resumen La pesca es una actividad humana muy antigua, como la caza y la agricultura, es practicada por el hombre desde tiempos prehistóricos, con el fin de obtener los medios necesarios para su subsistencia provenientes del medio acuático. Unidos a esta ocupación existen los riesgos y daños para la salud de sus trabajadores. Este trabajo tiene como objetivo hacer una revisión bibliográfica sobre los factores de riesgo de las enfermedades profesionales y riesgos para la salud a los trabajadores de la pesca, exceptuando los relativos a accidentes de trabajo. Los resultados apuntan que los principales factores de riesgo para las enfermedades relacionadas con el sector de la pesca se puede dividir en: relativos al ambiente de trabajo, como el frío, el calor, la humedad, los vientos, la radiación solar, las vibraciones y ruidos; de comportamiento como el tabaquismo, el consumo excesivo de bebidas alcohólicas, drogas y medicamentos; y factores sociales como las prolongada jornada de trabajo, las condiciones socioeconómicas desfavorables, el bajo nivel de instrucción y el hecho de pertenecer a las clases sociales más bajas. Los principales problemas de 176 Revista Baiana de Saúde Pública salud fueron músculo-esqueléticos, lesiones de piel, alergias respiratorias, problemas oftalmológicos, respiratorios y urogenitales, enfermedades de transmisión sexual, entre otros. Palabras-clave: Pescadores. Enfermedades profesionales. Salud del trabajador. INTRODUÇÃO A pesca e a mariscagem são atividades muito antigas. Tal como a caça e a agricultura, são praticadas pelo homem desde a pré-história com o objetivo de obter os meios necessários à subsistência, utilizando-se do meio aquático. Para além do aspecto fundamental da subsistência humana, a pesca é uma atividade econômica importante, geradora de várias outras em terra (transporte, armazenamento, transformação e venda dos produtos da pesca, construção e reparação das embarcações, construção de artes e utensílios de pesca), empregando uma grande quantidade de pessoas.1 Esses trabalhadores estão sujeitos a fatores de risco como radiação solar, frio, calor e excesso de umidade e agravos a sua saúde, sendo acometidos por lesões de pele, problemas músculo-esqueléticos, alergias e outras. A legislação brasileira considera pesca toda operação, ação ou ato tendente a extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros.2 Sendo assim, para efeitos legais, as pessoas que realizam a atividade mariscagem são também consideradas pescadores. A pesca, em geral, é realizada principalmente pelos homens e a mariscagem pelas mulheres e crianças para a extração de moluscos e crustáceos.3 É vista como atividade comercial e não-comercial. No primeiro caso, pode se dar de maneira artesanal. Isto é, quando praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte. Comercialmente, também verificada no setor industrial, é praticada por pessoa física ou jurídica e envolve pescadores profissionais, empregados ou em regime de parceria por cotas-partes, utilizando embarcações de pequeno, médio ou grande porte, com finalidade comercial. A atividade pesqueira não-comercial pode ser praticada por pessoa física ou jurídica, com a finalidade de pesquisa científica; por brasileiro ou estrangeiro, com equipamentos ou petrechos previstos em legislação específica, tendo por finalidade o lazer ou o desporto; com fins de consumo doméstico ou escambo sem fins de lucro e utilizando petrechos previstos em legislação específica.2 Pesquisa que utilizou dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) refere um contingente e 25 a 34 milhões de pescadores artesanais no mundo; dados oficiais de 2006 indicavam existir 390.761 pescadores artesanais no Brasil. A Bahia possuía 36.861 pescadores registrados, podendo ter chegado a 150 mil no momento de divulgação dos dados.4 v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 177 Durante o ano de 1993, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), foram capturados mundialmente cerca de 100 milhões de toneladas de peixe, sendo 77 milhões relativas à pesca no mar, 16 milhões oriundas da aquicultura e maricultura e 7 milhões gerados pela pesca em águas interiores. No Brasil, a produção de pescado estimada em 2007 foi de 1.072.226 toneladas, cujo valor em reais corresponde a R$3.603.726.475,00.5 Pesquisa apoiada em dados da FAO revela a ocorrência, nos últimos anos, de grandes mudanças no setor pesqueiro mundial, devido à substituição de métodos tradicionais por tecnologias modernas de captura. A introdução dessas tecnologias na atividade pesqueira tem gerado um alto custo à sociedade, sendo essa a principal razão da redução quantitativa e qualitativa dos trabalhadores desse setor, bem como da desestabilização da pesca artesanal.6 No tocante às doenças provocadas pelo trabalho ou pela atividade desenvolvida pelos indivíduos junto às águas, estudos realizados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro atestam lesões de ouvido interno, durante a atividade de mergulho, em crânios encontrados em sambaquise em Ilha Grande, Rio de Janeiro, datados de 10.000 anos, sendo considerada como a primeira doença ocupacional de que se tem notícia no continente americano.7 Para as comunidades ribeirinhas que vivem próximas aos manguezais, os moluscos representam um dos grupos de maior relevância econômica. Nessas áreas, a coleta desses animais pode constituir-se na principal fonte de renda das famílias envolvidas ou como complemento de outras atividades extrativistas.8 Tanto a pesca quanto a cata de crustáceos e moluscos ao longo da costa brasileira, realizadas por pessoas conhecidas como marisqueiros, podem ocasionar agravos à saúde desses trabalhadores. Essas pessoas estão envolvidas, além da cata, com o processamento manual ou automatizado de caranguejos, camarões, mexilhões, sendo normalmente expostas a vários constituintes dos frutos do mar. A manipulação direta e a aerolização de frutos do mar e do líquido de cozimento durante o processamento são potenciais situações ocupacionais que podem resultar em doenças para esses trabalhadores.9 Como em toda atividade laboral, os trabalhadores da pesca estão submetidos a riscos e agravos à saúde. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), os riscos relacionados ao trabalho podem ser classificados em cinco grandes grupos: físicos – agressões ou condições adversas de natureza ambiental que podem comprometer a saúde do trabalhador; e Enormes montanhas erguidas em baías, praias ou na foz de grandes rios por povos que habitaram o litoral do Brasil na Pré-História. São formados principalmente por cascas de moluscos. A própria origem tupi da palavra sambaqui significa “amontoado de conchas”. 178 Revista Baiana de Saúde Pública químicos – agentes e substâncias químicas, sob a forma líquida, gasosa ou de partículas e poeiras minerais e vegetais, comuns nos processos de trabalho; biológicos – microorganismos geralmente associados ao trabalho em hospitais, laboratórios e na agricultura e pecuária; ergonômicos e psicossociais – que decorrem da organização e gestão do trabalho; acidentes – ligados à proteção das máquinas, arranjo físico, ordem e limpeza do ambiente de trabalho, sinalização, rotulagem de produtos e outros que podem levar a acidentes do trabalho.10 No Brasil, a despeito de a pesca ser realizada por grandes empresas, uma parte é praticada de forma artesanal, com utilização de embarcações pequenas (botes ou canoas) a remo ou à vela ou mesmo motorizadas, sem instrumentos de apoio à navegação, contando tão somente com a experiência e o saber tradicional.10 Já a coleta de caranguejos constitui um universo particular no cenário da atividade pesqueira, na medida em que se realiza nos manguezais e não no espelho d´água e implica processos de comercialização diretos e pulverizados que contam quase sempre com a participação dos próprios catadores. Há que se frisar a precariedade da legislação trabalhista específica para o setor pesqueiro,11 a despeito de o Brasil ser signatário de convenções da Organização Mundial para o Trabalho (OMT) que recomenda essa regulamentação, inclusive sobre a participação de trabalho infantil.12 Aqui, a profissão de pescador foi regulamentada pelo Decreto-Lei N° 221/1967, que dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca; em 2009, foi aprovada a Lei N° 11.959, que, além do aspecto regulador da profissão, instituiu uma nova opção de contratação de pescadores, mediante acordos especiais, além da possibilidade de que o processo se desse segundo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Essa nova legislação teve alguns artigos vetados por decisão presidencial, inclusive aqueles que tratavam da regulamentação da profissão de pescador. Isso significa que, não obstante ser uma profissão bastante antiga e tradicional em nosso meio, os profissionais da pesca carecem de uma regulamentação mínima de sua profissão. O presente trabalho tem como objetivo fazer uma revisão bibliográfica acerca dos fatores de risco para doenças e dos agravos à saúde (excetuando-se os acidentes de trabalho) dos trabalhadores da pesca, aí incluídos os pescadores propriamente ditos e aqueles trabalhadores do extrativismo marinho de coleta de crustáceos conhecidos como marisqueiros. METODOLOGIA Foi realizada pesquisa em bancos de dados nacionais e internacionais (BIREME, LILACS, MEDLINE e SciELO), utilizando-se como estratégia de busca palavras-chave em português e a correspondente em inglês, com o uso do operador booleano “AND” da seguinte forma: pescadores (fishermen) AND doenças profissionais (occupational diseases) e pescadores (fishermen) v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 179 AND saúde do trabalhador (occupational health). Como critérios de inclusão foram aceitas publicações realizadas nos últimos 10 anos, que tivessem como objeto de estudo fatores de risco e doenças relativas ao trabalho de pescadores e marisqueiros; publicações escritas em português, inglês e espanhol, que possuíssem, no mínimo, o resumo disponível eletronicamente nos sites de busca. Foram excluídas do estudo as publicações sobre pessoal envolvido com a pesca, mas que não se tratavam de pescadores e/ou marisqueiros propriamente ditos (por exemplo: vendedores de peixe, trabalhadores da indústria pesqueira e de artefatos para pesca); estudos do tipo relato de caso; estudos focados nos acidentes do trabalho (por exemplo: lesões de ouvido por barotrauma e doenças de descompressão brusca em pescadores de mergulho); e estudos que não tivessem relação direta com o trabalho da pesca. A seguir, fez-se a leitura dos títulos e resumos das publicações pré-selecionadas pelos critérios de exclusão e inclusão citados e refinada a busca com foco nos fatores de risco e doenças ocupacionais em pescadores e marisqueiros. A busca dos textos completos foi feita nos próprios sites de busca, quando disponíveis gratuitamente, ou no Portal CAPES. A fim de ampliar a base bibliográfica, foram selecionadas fontes de artigos científicos com base nas referências citadas nos textos pré-selecionados que também preenchessem os critérios de inclusão/exclusão previamente escolhidos. As publicações selecionadas foram estratificadas e distribuídas em tabelas com relação aos seguintes itens: título do trabalho; autor(es); ano de publicação; país; tipo de estudo; amostra estudada; principais resultados obtidos sobre fatores de risco e doenças ocupacionais. A seguir, são descritos e discutidos os principais achados com relação aos fatores de risco e doenças ocupacionais em pescadores. RESULTADOS Após aplicar as estratégias de busca nos bancos de dados, foram obtidos e selecionados 12 artigos de um total de 108, sendo, portanto, excluídos 96 artigos (Quadro 1). Os principais motivos de exclusão estão listados no Quadro 2. A fim de ampliar a base bibliográfica, selecionaram-se estudos científicos citados como referência nos artigos selecionados, num total de cinco que traziam resultados importantes sobre os fatores de riscos e principais agravos que acometem os pescadores/marisqueiros, perfazendo um total de 17 artigos. O Quadro 3 resume as principais informações dos artigos selecionados. 180 Revista Baiana de Saúde Pública Quadro 1. Total de artigos pré-selecionados e selecionados após aplicação dos critérios de inclusão/exclusão por base de dados Quadro 2. Principais motivos de exclusão dos artigos pré-selecionados Quadro 3. Principais achados dos trabalhos científicos selecionados por ano, país, autor, tipo de estudo e número da amostra v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 181 FATORES DE RISCO E AGRAVOS À SAÚDE Estudo realizado em 2010, em uma população de pescadores e marinheiros franceses, mediante aplicação de questionários sobre o consumo e dependência com relação ao tabaco e ao álcool, bem como verificação sobre o uso de maconha através de exames de urina, verificou que o consumo de fumo foi maior entre os pescadores do que entre os marinheiros (47,6% versus 41,4%), assim como a prevalência de dependência à nicotina foi maior entre os pescadores. O consumo diário de álcool foi significantemente maior entre os pescadores do que com relação aos marinheiros (52.4 g/dia, 95% CI = 49.3–55.4 vs. 44.8 g/dia, 95% CI = 43.0– 46.6; p = 0.0003). A prevalência do uso de maconha e outras drogas foi maior entre os marinheiros do que entre os pescadores. Os autores apontam as condições de trabalho para explicar essas diferenças.13 Artigo publicado em 2006 relaciona a exposição prolongada de pescadores e outros trabalhadores ao sol em seus ambientes de trabalho com doenças de pele causadas pela radiação ultravioleta. Os autores posicionam-se quanto à necessidade de prevenção primária dos trabalhadores contra os efeitos dos raios ultravioletas, especialmente naqueles trabalhadores de pele menos pigmentada.14 Estudo de coorte realizado em 2008, com 9.419 pescadores da região da Andaluzia, Espanha, verificou que 54% deles relataram lesões de pele relacionadas à exposição solar. A automedicação foi referida por 72% dos trabalhadores, que faziam uso de analgésicos, anti-inflamatórios, antiácidos, mucolíticos e ansiolíticos. Um total de 60% dos pescadores fumava; um terço deles fazia uso de uma média de 30 cigarros por dia; 9% admitia fazer uso regular de maconha, especialmente entre os jovens; na última viagem, 3% admitiram ter usado drogas ilícitas a bordo. As maiores queixas com relação à saúde envolveram o sistema musculoesquelético, doenças respiratórias, doenças do sistema digestivo e olhos, além de problemas auditivos.15 Em 2000, estudo observacional descritivo, envolvendo 174 pescadores, encontrou uma prevalência maior de patologias auditivas atribuíveis ao excesso de ruído das embarcações.16 A saúde e os riscos dos pescadores e catadores de caranguejo da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, foram verificados em pesquisa realizada no ano de 2007.11 Os autores realizaram uma pesquisa de campo de caráter quanti-qualitativo com uma amostra aleatória de 80 pescadores e 20 catadores de caranguejo sobre suas condições de saúde. Os principais agravos à saúde relatados vinculavam-se aos problemas articulatórios e neuromusculares, refletidos por dores nas costas, coluna, braços e pernas. Os problemas respiratórios, traduzidos por pneumonias e tuberculoses, estavam relacionados à grande exposição às variações climáticas, agentes patológicos e deficiência alimentar. Ao uso abusivo do álcool foi atribuída a chance maior de adoecer. 182 Revista Baiana de Saúde Pública Estudo de natureza qualitativa realizado em 2008 com aproximadamente 800 habitantes na Ilha de Maré, município de Salvador, Bahia, entrevistou 27 mulheres e 3 homens, todos trabalhadores extrativistas de mariscos em manguezais e arenosos das praias, e realizou observações sobre as condições de trabalho, as doenças e os acidentes mais frequentes.4 Verificou-se que a exposição aos riscos do trabalho na pesca e extração de mariscos ocorre desde a infância, quando estão expostos à radiação solar e às intempéries, além de sobrecarga muscular e excesso de atividades repetitivas centradas no punho. A este último fator foi atribuído um nexo causal com Lesões por Esforços Repetitivos (LER). Os autores chamam a atenção para a inclusão desses profissionais entre os grupos sociais de risco para essa doença. Foi publicado, em 2008, um estudo de coorte baseado em uma população de 4.570 pescadores dinamarqueses que procuravam assistência hospitalar em dois períodos: o primeiro, entre os anos de 1994-1998 e o segundo, entre 1999-2003.17 Evidenciou-se entre os pescadores do sexo masculino que trabalhavam no primeiro período uma Razão de Incidência Padrão (SIR– Standard Incidence Reazon) elevada para lesões musculoesqueléticas (SIR=122); uma subanálise revelou elevada SIR para artrose do joelho (SIR=127), doenças dos discos tóraco-lombar (SIR=224) e, especialmente, síndrome do manguito rotador (SIR=225), além de lesões gerais (SIR=112). Valores de SIR elevadas para a síndrome do túnel do carpo foram observadas (SIR=315) em ambos os período de amostragem. Os mesmos autores da pesquisa mencionada realizaram estudo de revisão de prontuários médicos de contatos hospitalares de pescadores dinamarqueses sobre doenças crônicas em dois períodos compreendidos entre 1989-1998 e 1994-1999. O estudo desenvolvido foi de coorte baseado na população, publicado em 2007, tendo registrado uma alta razão de contato hospitalar devido a problemas com bronquite e câncer de pulmão, excedendo a taxa nacional em ambos os períodos analisados. Em compensação, foi observada, nos mesmos períodos, uma baixa razão de contato hospitalar com relação à diabetes e obesidade. Em 2002, na Suíça, investigação utilizando uma proposta alternativa de calcular a exposição ocupacional em relação a câncer de pulmão evidenciou que pescadores e outros profissionais que trabalhavam expostos ao ambiente possuíam um risco menor (42,1 por 100.000 pessoas-ano) e uma frequência de fumantes de 44,7%.18 A função pulmonar foi verificada em estudo com 183 homens e 192 mulheres ligadas à pesca na Nigéria. A função pulmonar foi verificada através dos índices de pulmonares. Os resultados mostraram uma mistura de padrões tanto restritivos quanto obstrutivos de má função pulmonar quando comparados a um grupo controle. Os principais sintomas respiratórios incluíam tosse com e sem secreção, dor torácica e dispneia.19 v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 183 Em um estudo de coorte com pescadores suíços, realizado em 2009, encontrou-se menor taxa de incidência para doenças respiratórias e cardiovasculares, bem como de câncer de cólon. Paralelo a isso, verificou-se maior incidência de câncer de lábio e de câncer de células escamosas da pele.20 Corrobora esses achados a pesquisa realizada em 2010, no Brasil, estudando uma amostra de 125 pescadores, em que se demonstrou que a prevalência de displasia epitelial e lesões malignas foi maior do que na população em geral.21 Os autores atribuem esses achados à maior exposição desses profissionais aos raios ultravioletas. Outros achados importantes relacionaram-se ao consumo de álcool por parte de 38,4% dos estudados e de 32% com relação ao consumo de tabaco. Em 2001, uma revisão geral da literatura enfocando a exposição ocupacional a antígenos do mar em trabalhadores que realizam o processamento de crustáceos e moluscos afirma que alergias têm sido reportadas por trabalhadores expostos aos crustáceos e moluscos e outros produtos do mar. A prevalência de asma ocupacional variou de 7% a 36% e para dermatites de contato de 3 a 11%.9 Revisão de literatura realizada em 2006, sobre a asma ocupacional no ambiente marítimo, relacionou diversos constituintes do meio marinho e de trabalho dos pescadores que apresentam grande potencial alergênico, como peixes, crustáceos, moluscos, entre outros, além de produtos da combustão do óleo diesel das embarcações, a exemplo do SO2, CO e CO2, como causas da exacerbação dos sintomas.22 Em 2001, publicou-se uma revisão bibliográfica sobre a saúde de pescadores e pessoas que trabalham no setor de catação na indústria de pesca.23 É referido um robusto estudo de coorte sobre doenças crônicas e o trabalho na pesca em trabalhadores da Itália. Foi observada maior prevalência de ceratose solar [odds ratio (OR) = 22,5], bronquite obstrutiva (OR=11,6) e ferimentos diversos (OR=3,56). Análises de regressão múltiplas evidenciaram associação entre trabalho e disfunções musculoesqueléticas [razão relativa (RR) = 13,8] e bronquite crônica (RR=4,40). Os autores referem ainda um estudo de coorte com pescadores na Espanha, em que foram detectados problemas digestivos em 29,7% dos pescadores enquanto no grupo controle verificava-se 8,6%; problemas respiratórios foram identificados em 21,6% e no grupo controle 15,1%; problemas oftalmológicos em 41,8% e no grupo controle 4,1%. Em 2001, estudo de coorte com uma amostra de 818 pescadores do Golfo da Tailândia e do Mar de Andaman no oceano Índico investigou as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). Constatou-se que 30% (n=243) dos pescadores tinham histórico de DST. Os principais sintomas relatados foram descarga uretral (84%), úlceras genitais (41%) e verrugas genitais (10%). Dentre os pescadores que haviam reportado história de DST, cerca de um terço afirmou ter feito automedicação. 184 Revista Baiana de Saúde Pública Em 2001, estudo calculou o risco relativo para câncer de estômago na população da Suécia. Com relação aos pescadores, foi evidenciado um risco relativo de 1,41, considerado excessivo pelos autores da pesquisa. Os autores sugerem que esse maior risco está relacionado a hábitos alimentares dessa população de trabalhadores, principalmente com relação à alta ingestão de peixes, conservantes, fumo e alimentos curados, além de baixo consumo de frutas e vegetais.25 DISCUSSÃO Os principais fatores de risco para doenças ocupacionais relativas ao setor da pesca podem ser divididos em: relativos ao ambiente físico do local de trabalho, como o frio, o calor, a umidade, os ventos, a radiação solar, as vibrações e os ruídos; comportamentais, como o fumo, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o uso de drogas e medicamentos; sociais, como a prolongada jornada de trabalho, as condições socioeconômicas desfavoráveis, o baixo nível de instrução e por pertencerem a classes sociais mais baixas. Os fatores de riscos ambientais estão ligados basicamente ao ambiente externo de trabalho, sujeitando os trabalhadores a condições insalubres. Alguns desses fatores podem ser de alguma forma minorados pela adequada relação de trabalho e uso de equipamentos de proteção individual, a exemplo do uso de filtros solares, agasalhos e abafadores de ruído. Os fatores de risco comportamentais são de mais difícil prevenção, pois dependem, em parte, de mudanças de hábitos e de uma postura individual mais proativa do próprio trabalhador. Com relação ao fumo, por exemplo, pesquisa sugere que a alta taxa de pescadores que fumam pode ser devida ao intenso período de trabalho, para promover um relaxamento e como resultado da frustração pelo pouco pescado. São recomendadas campanhas antifumo, para tentar controlar esse fator de risco. A ingestão em excesso de bebidas alcoólicas também é bastante referida pelos autores como fator de risco para agravos à saúde, assim como aumenta também o risco de acidentes.26 Os fatores sociais estão em parte relacionados ao nível de desenvolvimento socioeconômico da população estudada e às melhores relações de trabalho. A precariedade da legislação trabalhista e a realização de pesca ainda de modo artesanal são citadas como alguns dos problemas que podem interferir na condição de vida e de saúde dos trabalhadores, especificamente com relação aos pescadores do Brasil, mais precisamente os pescadores e marisqueiros da Baia da Guanabara, Rio de Janeiro.11 Os principais agravos à saúde foram atribuídos a problemas musculoesqueléticos devido aos grandes esforços e movimentos repetidos desempenhados pelos trabalhadores, além de uma má postura ocupacional;4,15,17 lesões de pele atribuídas principalmente à ação da radiação v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 185 solar;14,15,20,21 alergias respiratórias e dermatites ao contato com produtos marinhos, como crustáceos e moluscos, que possuem um reconhecido potencial antigênico,9,22 e problemas oftalmológicos23 e respiratórios,11,18 doenças sexualmente transmissíveis,24 entre outros. Uma breve análise dos fatores de risco e dos agravos à saúde dos pescadores relacionados pelas publicações científicas leva ao entendimento de quais fatores podem ser, de alguma forma, evitados ou minorados, reduzindo-se assim os agravos à saúde desses trabalhadores. Ações simples de prevenção de agravos à saúde, como o combate ao fumo e ao excesso de bebidas alcoólicas; uso de equipamentos ou meios de proteção individual e coletiva do trabalhador; políticas públicas de regulamentação da profissão e fiscalização de empresas pesqueiras; educação sobre noções gerais de saúde, como dieta, combate à hipertensão arterial, são exemplos de ações que podem evitar que essa categoria de trabalhadores tenha a sua saúde prejudicada pelo trabalho. A pesquisa realizada permitiu inferir que as condições de saúde dos trabalhadores da pesca, seja em mar ou águas continentais, têm sido pouco estudadas. Alguns fatores de risco e alguns agravos à saúde dessa classe de trabalhadores já foram identificados, porém novas pesquisas se fazem necessárias, especialmente dentro de um rigor científico mais atual. Especial atenção deve ser dada a uma classe específica desses trabalhadores, aqueles que realizam a cata de mariscos e crustáceos, os conhecidos marisqueiros, sobre os quais ainda são escassos os estudos das suas condições de saúde e os riscos específicos a sua atividade laboral. REFERÊNCIAS 186 1. Universidade do Algarve (FCMA). Breves notas sobre a história da pesca pescas e aquicultura. Extraído de [http://w3.ualg.pt/madias/docencia/ paq.pdf], acesso em [26 de fevereiro de 2011]. 2. Brasil. Lei Ordinária Nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a política nacional de desenvolvimento sustentável da aquicultura e da pesca; regula as atividades pesqueiras. Extraído de [http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/], acesso em [26 de fevereiro de 2011]. 3. 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Trata-se de um estudo de caráter qualitativo, cujo objetivo é analisar as acepções sobre o fenômeno do corpo obeso das baianas de acarajé e a relação com sua saúde, ambiente e práticas alimentares no trabalho. Os resultados indicam que o fogo, a fumaça e os movimentos repetitivos são vistos pelas baianas como possíveis riscos para os acidentes e aquisição de enfermidades; elas elegem um duplo corpo em relação ao modo de viver no mundo: obeso para o seu trabalho de baiana e magro para sua vida cotidiana; a falta de tempo para a vida social leva-as a não cuidar do próprio corpo e de sua alimentação. Conclui-se que o trabalho árduo e desgastante executado pelas baianas de acarajé promove uma fadiga recorrente, que se agrava na repetição dos movimentos gerados no processo de produção dos bolinhos e causa problemas de saúde agravados com o sobrepeso e a obesidade. Palavras-chave: Obesidade. Saúde do trabalhador. Alimentação e cultura. Trabalhador artesanal. a Mestre pela Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA). b Professora da Escola de Nutrição, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA). c Endereço para correspondência: Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Medicina da Bahia. Departamento de Medicina Preventiva e Social. Largo do Terreiro de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia, Brasil. CEP: 40026-010 [email protected]. v.35, n.1, p.175-188 jan./mar. 2011 189 OBESITY AND WORK OF THE BAIANAS DE ACARAJÉ IN THE CITY OF SALVADOR, BAHIA, BRAZIL Abstract This is a qualitative study aiming to examine the meanings of the phenomenon of the obese body of the baianas de acarajé and the relationship with their health, environment and eating habits at work. The work of the baiana de acarajé is exhausting and requires much dedication. While that is the livelihood of these workers, this kind of activity can bring harm to the health of these women. The fire, smoke and repetitive movements are mentioned as possible risks for the acquisition of accidents and illnesses. It was identifeid that the baianas de acarajé elect a double body regarding the way of living in the world: obese for their work and lean to your daily life. In this sense it is perceived that the lack of time for social life allows them to not take care of their body and their food. Key words: Obesity. Health worker. Food and culture Handicraft worker. OBESIDAD Y EL TRABAJO DE LAS BAIANAS DE ACARAJÉ EN LA CIUDAD DE SALVADOR, BAHIA, BRASIL Resumen Este estudio tiene como tema el trabajo del artesano del baianas de acarajé y de la relación con la salud de este trabajador y su ambiente del trabajo. El trabajo de la baiana de acarajé es agotador y requiere mucha dedicación. Mientras es el sustento de esos trabajadores, este tipo de actividad puede traer el daño a la salud de estas mujeres. El fuego, movimientos repetitivos y humos se mencionan como posibles riesgos para la adquisición de accidentes y enfermedades; ellos eligen un cuerpo doble en lo referente a la manera de vivir en el mundo: obesos para su trabajo y magra para su vida cotidiana. En este sentido se percibe que la falta de tiempo para la vida social permite que no cuidar de su cuerpo y su comida. Uno concluyó que el trabajo arduo y del desgastante ejecutado por el baianas de acarajé promueve una fatiga recurrente, eso si agrava en la repetición de los movimientos generados en curso de producción de galletas y problemas de la causa de la salud agravados con el exceso de peso y el obesidade. Palabras-clave: Obesidade. Salud del trabajador. Alimentación y cultura. Trabajador del artesano. 190 Revista Baiana de Saúde Pública INTRODUÇÃO A cidade de Salvador, Bahia, Brasil, tem três milhões de habitantes e cerca de cinco mil comerciantes do acarajé.1 São personagens femininas e nomeadas baianas de acarajé. Espalhadas por toda a cidade (também na zona urbana do interior do estado), formam um cenário estético-visual próprio.2 Essas baianas têm o ofício de preparar e vender os produtos do tabuleiro, principalmente o acarajé, em pontos de vendas apropriados, bem como vestir-se de forma adequada, com as indumentárias brancas (batas, torços, anáguas) e colares de contas coloridos, chamados de “guia” no candomblé.3 A comercialização do acarajé teve início no final do período da escravidão (século XIX), com as escravas de ganho (ou ganhadeiras). Estas trabalhadoras eram negras e ocupavam um lugar destacado no mercado de trabalho urbano. Tanto poderiam ser mulheres escravas, colocadas no ganho pelos seus proprietários, como mulheres libertas que lutavam para garantir o seu sustento e o dos seus filhos.4 As ganhadeiras trabalhavam nas ruas com quitutes em tabuleiros ou produtos da terra e do mar que compravam para revender. Isto lhes possibilitou a compra da alforria dos maridos, a criação de irmandades religiosas e a manutenção do candomblé.5 Nessa tradição de “ganhar a vida”, o acarajé – um dos símbolos da comida de santo na Bahia – deixou de ser apenas uma oferenda e passou a ser vendido como uma mercadoria dos terreiros de candomblé, à qual também foram acrescidos outros produtos, como abará, vatapá, caruru, salada de tomate verde, passarinha (baço de boi), bolinho de estudante (massa de tapioca frita), cocadas, peixe frito, entre outros. Recentemente, em 15 de agosto de 2005, ocorreram algumas conquistas, em especial o seu tombamento histórico como patrimônio imaterial nacional, pelo Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), instituído pelo Decreto N° 3.551, de 4 de agosto de 2000. O registro do “Ofício da Baiana de Acarajé” (inscrito no Livro de Registros e Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares) reconhece não apenas o acarajé como uma representação da culinária histórica, mas também outros saberes e fazeres tradicionais aplicados na produção e na comercialização das chamadas comidas da Bahia, feitas com dendê.6 Outras conquistas foram a inauguração, em 9 de junho de 2009, do “Memorial da Baiana do Acarajé”, situado na Praça da Cruz Caída, Salvador, Bahia,7 e o estabelecimento, por lei federal (DOU, 20/01/2010), do dia 25 de novembro, como o “Dia Nacional da Baiana do Acarajé”.8 Vale ressaltar, porém, que suas condições de trabalho continuam precárias, a despeito deste reconhecimento para a profissão. Não há condições sanitárias para atender às demandas pessoais da baiana e nem higienização do ambiente ou do ponto do trabalho. Desta forma, o trabalho dessas mulheres torna-se invisível às políticas públicas e às relações sociais em seus cotidianos, uma vez que possuem uma árdua jornada de trabalho, que 191 abarca todo o processo de preparação do acarajé somado à responsabilidade com a casa e a família. Esta condição produz uma fadiga crônica, que pode ser consequente do sobrepeso e da obesidade. As enfermidades associadas à obesidade, como a hipertensão e a diabetes, aparecem como parte de seus destinos e sua sobrevivência previsível é permanentemente ameaçada pelo meio ambiente do posto de trabalho insalubre. As primeiras incursões em campo, para o exercício etnográfico, justificam a escolha de gênero neste estudo, vez que, inicialmente, elegem a mulher e trabalhadora como a protagonista do risco de obesidade. O livro Baía de Todos os Santos: Guias de Ruas e Mistérios (de 1945, reeditado com modificações em 1969, e novos acréscimos em 1976), de Jorge Amado, traz alguns trechos que caracterizam as baianas: Aqui é o restaurante de Maria José, nem sala existe, é a liberdade da praça [...] Apenas um tabuleiro de vatapá e caruru, de frigideira e xinxim, de efó e moqueca, as latas de querosene cheias de mingau e mungunzá [...] Maria José é gorda e risonha. Mulata clara de olhos dengosos [...] O chofer tem ciúmes, mas são zelos passageiros porque sabe que dele é o coração da baiana.9:108, grifo nosso As baianas, carregadas de colares, balangandãs nas orelhas e no pulso [...] os seios saltando das combinações, estão ante os tabuleiros, vendem comidas, as frutas e os doces. O acarajé, o abará, o vistoso vatapá, o caruru tão popular, a delícia do efó.9:12 As baianas levam seus tabuleiros com comidas e frutas num equilíbrio impossível.10:32 Como uma figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado nas rendas da bata, sentada em frente do tabuleiro de acarajé e abará, de moqueca de aratu, de cocada e beijus.10:58 Essas mulheres são nomeadas como baianas pelo seu trabalho, sua identidade profissional, que se confunde com a naturalidade (origem). Para o trabalho, usam vestimentas do candomblé, como se transferissem para as ruas um rito sagrado que está em si mesmas. Para elas, conforme observação inicial, o Santo protege sua filha para vender o produto, envolve seu tabuleiro, seu posto de trabalho, seu corpo; e o movimento de mãos e braços que faz é uma analogia com a dança no terreiro de candomblé. Nessa cena de comércio e crença, essas trabalhadoras, com suas indumentárias de rendas brancas e contas de muitas cores, chamam a atenção do público, em sua maioria, pelo seu corpo volumoso e tantas vezes em sobrepeso e obeso. Diante do corpo em opulência, enquanto uma 192 Revista Baiana de Saúde Pública visível representação desse profissional no mercado da Bahia, este estudo tem como objetivo analisar as acepções sobre o fenômeno do corpo obeso das baianas de acarajé, considerando o livre curso de suas narrativas a respeito de seu corpo, suas condições de saúde e práticas alimentares no trabalho. ASPECTOS METODOLÓGICOS Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado no período de setembro a dezembro de 2009, em Salvador, Bahia, com dez baianas de acarajé que trabalham em vários pontos da cidade. A inserção nessa comunidade deu-se após a escolha das trabalhadoras que mais se destacam nas vendas do acarajé, conforme informação da Associação de Baianas do Acarajé, Mingaus e Similares (ABAM). Esta instituição indicou as baianas que poderiam ser entrevistadas, levando em consideração os bairros em que trabalham, locais turísticos ou que apresentam uma característica histórica na construção da profissão, como os bairros de Liberdade, Rio Vermelho e Comércio, onde surgiram as primeiras baianas de acarajé. Por se tratar de uma cidade histórica, turística e com a forte presença cultural, em toda a cidade há o contato com uma baiana de acarajé. Este fato propiciou a utilização de instrumentos metodológicos como a observação participante e os registros em diário de campo, ainda que o foco mais importante tenha se dado em dez pontos da cidade, nos seguintes bairros: Barris, Canela, Itapuã, Barra, Praça da Sé, Pelourinho, Campo Grande, Federação, Rio Vermelho e Liberdade. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas com essas baianas, cujos encontros foram marcados diretamente. As entrevistas foram feitas no próprio local de trabalho, com o uso do gravador, seguindo um roteiro semiestruturado de questões que abrangeram três blocos relacionais: o cotidiano do trabalho, a obesidade e as práticas alimentares. As entrevistadas participaram de modo voluntário, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido. Os critérios para eleição dos sujeitos deste estudo foram: ser mulher, ser baiana de acarajé e trabalhar ao menos cinco dias na semana. As entrevistas foram transcritas e analisadas, após identificação dos termos analíticos, como palavras e sentenças significantes, as quais foram agrupadas em categorias que revelaram similitudes e diversidades do tema estudado. Para a categorização foi construído um quadro analítico com fragmentos das falas e comentários conjugados.11 A partir desse momento, teve início a escrita do texto. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 18 de setembro de 2009 (Parecer No. 20/09) e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital N° 57/2008. 193 • Caracterização das baianas de acarajé do estudo As baianas entrevistadas são mulheres organizadas, associadas à ABAM, situada no bairro do Pelourinho. Para elas, as verdadeiras baianas são aquelas que apresentam uma geração de mulheres que seguiram o oficio de baiana de acarajé. Denominam-se baianas “Patrimônio”, ou seja, devem aprender o oficio desde a infância, no tabuleiro da mãe ou avó, e seguir na profissão também repassar a tradição para as filhas e netas. Por esta razão, neste estudo, apenas as “baianas patrimônio” foram entrevistadas. O TRABALHO DA BAIANA DE ACARAJÉ NA CIDADE DE SALVADOR, BAHIA As baianas de acarajé são mulheres, em sua maioria, negras, que fazem parte do cenário estético-visual da cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Elas trabalham vestidas com trajes próprios, sentadas com seus tabuleiros, e estão espalhadas por todo o país, vendendo os quitutes trazidos da época da escravidão, como o acarajé e o abará. I – “É um trabalho muito duro”: O trabalho e a saúde da baiana de acarajé Todo o processo de trabalho da baiana acontece em três espaços distintos, que fazem parte de um ritual que transcende a originalidade de um trabalho artesanal, uma vez que esse rito abrange uma relação com o divino, sacralizando todas as etapas do “fazer-acarajé”. O primeiro espaço do trabalho é a feira; a presença da baiana, nesse momento, é imprescindível para a aquisição dos melhores produtos; o segundo espaço é a cozinha, onde será realizado o pré-preparo e preparo dos quitutes que estarão à venda nos tabuleiros; e o terceiro espaço é o ponto de venda desses quitutes. Este deve ser um ambiente apropriado pela baiana e localizado principalmente nas esquinas das ruas da cidade. Tanto o ponto de venda como o ofício dessas trabalhadoras são passados hereditariamente para as filhas, sobrinhas ou agregadas. A despeito de, algumas vezes, haver a presença do homem, este trabalho fica centrado na figura feminina. Estas aprendem desde criança algumas atividades menos específicas, tornando um espaço de aprendizagem e destinação. Todo esse processo é tradicionalmente artesanal, derivado de uma forma individual, em que a trabalhadora, em geral, é a proprietária do seu material (instrumentos de trabalho). Deste modo, a baiana domina todas as etapas do trabalho e vende o produto final para garantir a sua subsistência.12 A despeito de haver características que demonstram uma transição para o mercado formal, já que existe o assalariamento dos ajudantes que realizam algumas atividades, esta organização ainda se situa no mercado informal, pois não há contratação 194 Revista Baiana de Saúde Pública por meio de carteira de trabalho assinada, conforme ditames da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). No entanto, em uma das baianas entrevistadas foi identificada a iminência de registro (pessoa jurídica) do seu estabelecimento, com o intuito de obter maiores benefícios, como aquisição de créditos e planos de saúde para os funcionários, além do serviço de entrega em domicílio, com o disk-acarajé. Por ser artesã, a baiana de acarajé está presente em todas as etapas de preparação e venda dos quitutes. Este trabalho torna-se, para ela, árduo e desgastante, pois está exposta a todos os riscos provenientes das atividades realizadas. Todas as exigências demandadas pelo processo de fabricação do acarajé pode proporcionar às baianas problemas de saúde, provocados pelas ações desenvolvidas na atividade laboral (dores, cansaço, fadiga) e pelas condições insalubres que este tipo de trabalho proporciona. O artesanato, no Brasil, de forma geral, não apresenta regulamentação específica para a proteção à saúde e à segurança no trabalho. O artesão, em geral, não tem direito ao seguro de acidentes no trabalho. Com isso, o adoecimento ou afastamento resulta em não trabalho, consequentemente na perda de vendas e, por extensão, na perda da principal fonte de renda das famílias. II – “Sinto muitas dores nos braços e na coluna”: o sofrimento gerado pelo processo de trabalho da baiana As condições de trabalho das baianas proporcionam-lhes uma espécie de fadiga crônica. Casos graves e prolongados de fadiga são atualmente caracterizados como um quadro sindrômico – a “síndrome de burnout” (burn out = queimar por completo) –, caracterizado pelo esgotamento físico e mental intenso ligado à vida profissional, com perda de interesse pela atividade. Surge principalmente nas profissões que trabalham em contato direto com pessoas em prestação de serviço, como consequência desse contato diário no seu trabalho.13 Este é um bom tema para pesquisa, pois, embora o trabalho da baiana seja artesanal, ela vive pressionada a se manter permanentemente nesse processo fatigante. Em dois dos espaços de trabalho da baiana, a cozinha e o ponto de venda dos quitutes, diversos fatores podem contribuir para um processo de adoecimento. No trabalho da cozinha, elas passam em média sete horas em pé, preparando os quitutes. Dentre as atividades desenvolvidas nesse espaço, estão o pré-preparo dos alimentos e a preparação dos acompanhamentos, como vatapá e caruru, e de outros quitutes do tabuleiro, como as cocadas e os doces. 195 “Sinto muito as pernas, porque a gente fica em pé o dia todo. É difícil a gente sentar, só na hora de almoçar mesmo; aí senta um pouquinho, almoça. Na hora de cortar a salada, a gente senta também meia hora, mais ou menos, mas o que dói mais são os braços e as pernas.” (Baiana Ana). Por outro lado, no ponto de venda, essas mulheres ficam nove horas sentadas, fritando, vendendo e despachando os produtos, totalizando 16 horas de trabalho. “Ficar sentada por muito tempo. Sinto dores na coluna.” (Baiana Joana). Por ser um trabalho centrado na baiana, essas mulheres sentem o peso das atividades realizadas em seu corpo, em forma de cansaço, dores e doenças. Das atividades mais desgastantes em todo o processo de trabalho, o ato de lavar o feijão e bater a massa do acarajé foi apresentado de forma mais relevante: “[...] tem um rapaz que lava o feijão porque nós em casa temos uma quantidade grande de feijão, a coluna não aguenta [risos].” (Baiana Isadora). Isto lhes proporciona um desgaste que se agrava dia a dia. Aliado a isto, a profissão não é regulamentada no Brasil e, consequentemente, não é alcançada pelos direitos previdenciários. Assim, a saúde e segurança no trabalho, bem como as doenças, os acidentes gerados pela atividade laboral e os acidentes ocupacionais passam sem o amparo da Previdência Social. Anotação do Diário de Campo é um exemplo de acidente de trabalho: “Ontem fui comer acarajé, mas a baiana não estava no ponto. Disseram que ela está internada há 15 dias, porque o tacho cheio de dendê quente virou em cima dela.” O fazer-acarajé associado às adaptações nocivas do corpo ao trabalho e ao uso de equipamentos, muitas vezes improvisados, pode ter graves consequências para esses trabalhadores. Atividades exaustivas, prejudiciais à saúde, constituem riscos para Lesões por Esforço Repetitivo / Distúrbios Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (LER/ DORT). As narrativas demonstram que muitas dessas mulheres já apresentam enfermidades relacionadas ao trabalho, uma vez que a exposição às atividades que geram movimentos repetitivos acontece desde a infância, quando iniciam a aprendizagem desse fazer. “Toda baiana tem [lesões]. No começo eu não tinha, mas agora vai chegando aos quarenta, vai começando a aparecer tendinite, bursite, LER, por causa da movimentação repetitiva.” (Baiana Isadora). Em outros estudos realizados com trabalhadores artesanais também foi identificada a presença de movimentos que possibilitam o aparecimento de doenças relacionadas ao trabalho, principalmente as LER/DORT. Estudo com marisqueiras – tipo de trabalho artesanal com extração de mariscos – da Ilha de Maré, Salvador, Bahia, em 2008, identificou nove casos de LER/DORT.14 Pesquisa envolvendo rendeiras, em uma comunidade em Fortaleza, Ceará, identificou a presença de esforços repetitivos entre essas trabalhadoras, porém nenhum caso da doença foi diagnosticado a época.15 196 Revista Baiana de Saúde Pública Essas e outras questões relacionadas à saúde da baiana agrava-se quando elas priorizam o trabalho e os afazeres em detrimento de prevenção da saúde, como a ida a um serviço de saúde. O relato da baiana Solange é exemplar: “Você fica escrava de si própria.” Além disso, justificam que não têm plano de saúde e esperar pelo Sistema Único de Saúde (SUS), além de demandar muito tempo, não garante o atendimento adequado. Estudo com mulheres obesas,16 constatou que os profissionais de saúde apresentam limitações para o atendimento a essas mulheres, uma vez que têm dificuldade de enxergá-la fora do seu papel de mãe. Devido ao fato de a maioria das mulheres brasileiras, neste caso as baianas, acumularem várias funções (mãe, trabalhadora, dona de casa) para garantir a sobrevivência, o atendimento a elas dispensado deveria perceber esses múltiplos espaços ocupados pela mulher hoje. Em 2003, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS, conhecido como HumanizaSUS, que apresenta uma proposta de humanização, cuja construção deverá contar com a participação de todos e esteja comprometido com a qualidade dos seus serviços e com a saúde integral para todos. Apesar desse avanço, o serviço público não atinge a baiana, pois não prioriza a sua saúde, nem considera que o seu trabalho é a sua principal fonte de renda, e este tempo para a realização das atividades é sagrado. Além da exigência do seu trabalho e da escravização no tempo, as baianas utilizam manobras para evitar a dor proveniente do processo de trabalho: “Às vezes eu uso doutorzinho [para as dores no corpo], as vezes eu faço massagem. No outro dia alivia, e pronto.” (Baiana Ana). Neste sentido, é de extrema importância o olhar atento das políticas públicas para esta categoria profissional, no que tange aos possíveis danos causados pelo processo de trabalho, que também inclui, entre outras, as enfermidades causadas pelo cheiro do dendê. III – “Aparentemente não fumaça”: o cheiro do acarajé Uma das atividades realizadas pelas baianas de acarajé é fritar os bolinhos de feijão, em tachos com azeite de dendê aquecido que pode chegar a mais de 200 °C. Estudo17 identificou que a cocção de alimentos, principalmente a fritura, pode originar compostos orgânicos prejudiciais à saúde como os Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA). Esses compostos pertencem a uma família que apresenta dois ou mais anéis aromáticos fundidos e podem ser encontrados em todos os compartimentos ambientais, em misturas complexas. Sua importância decorre do fato de apresentar um potencial carcinogênico. 197 A exposição dos alimentos a altas temperaturas (acima de 200 °C) gera a formação de HPA, principalmente pela pirólise das gorduras. Esses hidrocarbonetos também podem ser produzidos pela queima de outras fontes orgânicas, como as proteínas e os carboidratos.18 Segundo a Portaria N o 3.214/78 NR1, anexo n° 13 – Agentes químicos: Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos e seus compostos carbono são considerados substâncias cancerígenas,19,20 o contato dessa substância com os olhos pode provocar irritação acompanhada de vermelhidão das conjuntivas. Este entendimento é ratificado pela Portaria No 14, de 20/12/95. O risco, entretanto, está mais associado à ingestão e aspiração dos hidrocarbonetos; neste caso, não só a baiana, mas também os consumidores podem estar expostos. Pesquisa realizada na cidade do Salvador identificou uma elevada quantidade de HPA em hambúrgueres, o que pode contribuir para a aquisição de doenças.21 Este fato é agravado pela ausência de informações, uma vez que ainda não está estipulada a quantidade mínima desse componente a ser ingerida pelo ser humano sem lhe trazer prejuízos a saúde. Nas entrevistas com as baianas, muitas referiram que a fumaça do dendê era prejudicial a saúde, a despeito de não apresentarem nenhum respaldo científico. O trabalho diário proporciona o aparecimento de alguns sintomas: “E outra coisa que me prejudica no acarajé é o azeite. Tem dias que eu sinto muita rouquidão. Agora mesmo estou sendo encaminhada para um oftalmologista para fazer um exame (das vistas) devido à fumaça.” (Baiana Maria). “Porque aparentemente não fumaça, mas isso aqui, esse cheiro todo dia, bate em cima de você e aí pode vir um prejuízo, sim, como para muitas Baianas já vieram.” (Baiana Helena). “A fumaça incomoda um pouco, a fumaça do azeite que eu trabalho. A gente não pode ficar tomando essa fumaça toda hora, mas a gente tem que tomar; essa fumaça prejudica muito a saúde da gente. Ficar todo dia tomando essa fumaça não é bom. A maioria das baianas começa a ter problemas cardíacos devido a essa fumaça.” (Baiana Ana). Além dos aspectos patológicos que esta fumaça pode proporcionar às baianas, existe uma particularidade simbólica, encontrada na intersubjetividade desses sujeitos que atribuem a sua obesidade, o seu corpo gordo, ao confronto diário com o “cheiro do dendê” resultante da fritura do acarajé. 198 Revista Baiana “Misericórdia, eu digo, só esse cheiro de acarajé aqui me engorda [...] é possível, de Saúde Pública porque antes de eu trabalhar com o acarajé eu não tinha esse corpo.” (Baiana Helena). “Eu tenho pra mim que o que engorda a baiana é o dendê, a satura do dendê, a fritura. Aquilo ali constante [aponta para a fumaça do dendê fritando acarajé], você engorda. Não tem baiana que não engorde.” (Baiana Sara). O seu corpo pode até estar emagrecido pela falta de uma alimentação adequada, mas, ao se inserir no universo do acarajé como baiana, encontra-se destinado a ser um corpo obeso. Segundo a Teoria dos Miasmas,22,23 que vigorou no século XVIII e grande parte do XIX, muitas enfermidades que acometiam os indivíduos naquela época eram causadas pelo mau cheiro ou odores. Estes continham os miasmas e eram transmitidos pelo ar. Enquanto a teoria do contágio estava relacionada ao tato, a teoria miasmática enfatizava o olfato. Dizia-se que as pessoas que estivessem em locais com mau cheiro e o aspirassem poderiam ser contaminadas e desenvolver qualquer tipo de doença. Os miasmas seriam todas as emanações nocivas, as quais corrompiam o ar e atacavam o corpo humano. A atmosfera podia ser infectada por eflúvios resultantes da alteração e da decomposição de substâncias orgânicas, vegetais, animais ou humanas.23 Para a teoria miasmática, tanto o meio físico quanto o social seriam produtores de miasmas. Essas emanações eram combatidas pela renovação e circulação do ar. Assim, tudo o que estivesse parado, estagnado, poderia ser elemento perigoso à saúde pública, produtor de miasmas. Inicialmente, supunha-se que a doença estava no ar e que, portanto, era necessário fazê-lo circular.24 Analogamente, pode-se entender que os miasmas de proveniência espiritual também são nocivos à saúde incorpórea. Estes seriam todas as sujidades associadas ao profano que ficariam “presas” ao corpo imaterial (ou Espírito) podendo também ocasionar enfermidades. Estudo25 afirma que sinais e sintomas de uma doença, quando presentes no corpo, indicam que a causa desta manifestação já se encontra no Espírito. Em ambos os casos, deve haver uma “higienização” do corpo ou do Espírito para evitar certos tipos de enfermidades. Em Salvador, nas festas de largo, as “limpezas” realizadas por meio dos banhos de folhas, banho de pipoca, banho de sal grosso, que são preceitos oriundos do Candomblé, ensejam a retirada do mau olhado proveniente das relações interpessoais e espirituais. Estudo sobre as representações do corpo no universo afro-brasileiro26 afirma que o equilíbrio existente entre o fiel e o orixá é designado pela expressão “fechamento do corpo”. 199 Assim, fechar o corpo significa protegê-lo, ter força – e esta força pode aumentar ou diminuir – ter poder, sucesso; é estar sadio. Este estudo afirma também que o corpo se abre em situações específicas, ou seja, quando o axé diminui, o corpo fraqueja e este enfraquecimento expressa-se na doença. As falas das baianas evidenciam uma combinação entre a teoria química da mudança de estado (do líquido – azeite de dendê – para o gasoso – representado pela fumaça na fritura do bolinho no azeite) e a ideia da teoria miasmática de que, pelo olfato, aspirando a fumaça de modo contínuo, a quituteira fica obesa (“só esse cheiro... me engorda”, “aquilo ali constante, você engorda”). As falas também expressam uma visão tradicional do adoecer – a visão ontológica, na qual “[...] doença entra e sai do homem como por uma porta”.27:19 A herança, os aspectos dinâmicos da pessoa não têm importância, ou, pelo menos, não têm tanta importância como os agentes externos, em particular a fumaça, relacionada a valores simbólicos subjacentes aos saberes religiosos. IV – Gordura sadia x gordura doentia: o corpo das baianas e o trabalho Diante das narrativas, foi identificada uma diferença entre o corpo para o trabalho de baiana e o corpo para a vida social. O corpo, para essas mulheres, é mais do que um instrumento de execução do trabalho. Ele faz parte de um campo estético em que esse corpo volumoso, adicionado às suas roupas, suas vestimentas, seus adereços, se apresenta como uma condição para as suas vendas. É como se o encontro do freguês com um corpo gordo e caracterizado se apresentasse de forma positiva, trazendo a ideia defendida no passado de que gordura seria significado de poder e ostentação. “Porque o corpo da gente representa mais a baiana; a gente meio magrinha fica meio estranha. A gente fortizinha já sai mais, a baiana sai mais, representa mais um pouco a baiana.” (Baiana Ana, grifo nosso). Estudo sobre o corpo como lócus de poder afirma que28 existe um elo entre a beleza e o poder retratados pelos corpos esculpidos da sociedade contemporânea, sugerindo a ideia de que pessoa obesa, que um dia inspirou obras de arte, é hoje condenada pelo contexto sociocultural e pela medicina e responsável por sua obesidade, devido à falta de vontade de se exercitar/disciplinar e de autocontrole. No entanto, neste estudo, que toma a mulher enquanto trabalhadora, esse elo apresenta-se situado em seu corpo volumoso, centrado na baiana de acarajé como um cartão postal da cidade do Salvador. Este fato pode ser observado na baiana Cecília. Seu ponto é localizado no coração do Pelourinho, onde há muita passagem de turistas. Ela não permite que lhe tirem uma foto sem 200 Revista Baiana de Saúde Pública que lhe paguem a quantia de R$10,00 ou comprem o seu acarajé. Deste modo, corpo e beleza passam a ser atributos do mercado como um objeto de consumo. Estudo com mulheres obesas de uma favela carioca29 identificou um corpo obeso apto para o trabalho. Entre um corpo gordo e ágil e um magro e doente, este último parecia ser ameaçador para o trabalho. Particularmente neste grupo, o uso do corpo pode compreender uma visão mais utilitária, fruto da importância da força física nas ocupações desempenhadas (trabalhos informais). No século XIX, um pouco de adiposidade era sinal de status e riqueza e, consequentemente, de prestígio social. Em contraponto a essa ideia, hoje o mínimo sinal de gordura é rechaçado. Além disso, os referenciais de obesidade e magreza podem mudar com o tempo. No passado, era “[...] preciso ser bem mais gordo para ser julgado obeso e bem menos magro para ser considerado magro”.30:79 Este referencial, porém, pode também mudar com o lugar, o ambiente em que ele está alocado. “Ser gordo em Salvador não necessariamente implica o mesmo em outras localidades.”3:98 O termo obeso é para o doente portador de uma patologia; o termo gordo, no entanto, não necessariamente se refere a uma doença. Distinção não é separação e, não por acaso, ela foi adotada para nomear a Associação dos Gordos e Obesos de Salvador (ASGOBS), organização da sociedade civil. O corpo magro está relacionado às classes mais populares enquanto corpo fraco, inapto para enfrentar as tarefas diárias de trabalho. Nas classes mais altas, porém, o corpo magro representa um padrão utilizado como forma de ascensão ou promoção social, como requisito de inserção no mercado de trabalho e como símbolo de status social.31 No Brasil, estudo sobre as organizações populares e o significado da pobreza32 revelou que, para as mulheres das classes populares, a obesidade era por vezes valorizada como elemento de força. Estudo com mulheres obesas de baixa renda16 constatou que a obesidade era um atributo sexual importante no grupo. Pesquisa desenvolvida em um bairro popular de Salvador encontrou que a obesidade, nessa comunidade, não é considerada uma doença, mas, antes, uma escolha de ser, em que a estética corporal representa saúde e atrativo sexual.33 Em outros momentos históricos, ser obeso significava beleza, grandiosidade e feminilidade.31 O corpo erótico e sensual era representado pelas formas arredondadas. Neste sentido, há um paradoxo nos discursos das mulheres entrevistadas, que elegem um corpo obeso para o trabalho de baiana e um corpo mais magro para a vida cotidiana. “Que as baianas magras me perdoem, mas a gordura em si, eu tô falando aquela gordura sadia, que você fica bem na roupa. Aquela gordura doentia não, não serve, nem pra mim nem pra ninguém. Pelo menos a minha, ela é sadia.” (Baiana Helena). 201 “Baiana magra é feinha; baiana magra é feia [risos]. Eu reclamo, assim: eu sou gorda para meu marido, quando eu tiro a roupa aquele negócio, mas eu sou gorda para o meu trabalho? Eu me acho o máximo. Há 13 anos eu era um palitinho, vestia as roupas, ficava tudo balançando em mim, e agora não, eu to chique, eu me acho o máximo.” (Baiana Joana). Este corpo obeso para a vida social não é satisfatório, pois, quando não estão em seus pontos de trabalho, o referencial de corpo referido por estas trabalhadoras é o padrão de beleza divulgado pela mídia: corpos magros, esculpidos e belos. “Eu queria perder uns quilinhos” (Baiana Helena). Adicionado a isso, este corpo obeso é sempre relacionado com a estética que apresenta a baiana de acarajé, mas não como um corpo doente que pode ser adquirir outras enfermidades. “Porque tem pessoas que é gorda demais por doença, né? E tem aquelas pessoas gordinhas, cheinhas, que é uma gorda cheinha, mas a saúde tá inteira.” (Baiana Helena). “Eu sou uma pessoa que eu gosto de tudo de mim. Eu não sinto complexo de nada, eu não me acho feia de nada, tudo para mim está confortável, eu tô achando agora que eu estou com uma barriguinha, estou caminhando todos os dias pela manhã e fechando a boca; só tenho colesterol alto.” (Baiana Maria). Estas mulheres podem achar a sua corpulência “normal”, por exemplo, pelo fato de que algumas doenças atualmente associadas à obesidade pela Medicina, como hipertensão arterial, diabetes, colesterol elevado e muitas outras, não apresentarem sintomas nas fases iniciais, o que pode tornar mais difícil a busca pelo tratamento, pois não sente a doença (dor, por exemplo).34 Este fato pode ser agravado quando se sabe que existe um ritual de oferenda por detrás de todo o processo de trabalho. Neste sentido, agradar o orixá pode trazer uma sensação de prazer e satisfação, mascarando todo o processo de dor e sofrimento que pode gerar este tipo de trabalho. No candomblé, os corpos mais aceitos são os volumosos, corpulentos, por existir uma relação destes com os rituais desta religião. Esses corpos significam saúde e beleza. Neste sentido, um frequentador desta religião não deve realizar nenhum tipo de dieta ou regime, pois quem determina as formas anatômicas do seu corpo é o “Santo que faz sua cabeça”, ou seja, o Orixá, e isso é determinado desde o seu nascimento. 202 Revista Baiana de Saúde Pública Nas narrativas, percebe-se uma relação com as formas do corpo e o Candomblé. “Vou logo dizer, numa roda de samba, quando tá todo mundo vestido, as gordinhas ressaem mais até. Porque a roupa combina mais, cai melhor a roupa.” (Baiana Helena). Assim, o conhecimento do corpo, das percepções sensoriais, para o Candomblé, é um aspecto importante para a iniciação, e a possibilidade de dançar no rito público desta religião.35 A gestualidade e a dança podem ser entendidas como uma linguagem ou como outra possibilidade da palavra, pois é o corpo que fala ao grupo social.36 O corpo volumoso da baiana e os movimentos de suas mãos e braços apresentam-se de forma inerente ao trabalho, não mais como um instrumento apenas para a execução das tarefas. A movimentação do seu corpo na batida da massa e na fritura dos acarajés remete a um ritual presente nas festas do Terreiro que é a dança dos Orixás. Com o corpo movimentando de forma cadenciada, ombros levemente arqueados, seus braços seguram forte a colher de pau, como se segurasse o chicote de Iansã. Seus braços levantam e abaixam a colher na massa, em um movimento circular de fora para dentro, como quem puxa o alimento para si. Ao formar o bolinho com a colher e colocá-lo em pequenas quantidades nos tachos para fritar, as baianas realizam mais um movimento, agora lateralizado. Com os braços arqueados, na altura dos ombros, estas mulheres afastam e aproximam seus membros do corpo em um movimento típico da dança africana. Um momento de naturalização das relações com o sagrado verifica-se ao colocar a panela no meio de suas pernas. A fazer isto, estas mulheres estabelecem um elo com a fertilidade representada por cada bolinho retirado do seu ventre. Assim com sua mãe Iansã. Esse ritual encerra-se na venda do acarajé para o cliente, sempre aberto ou furado, nunca fechado, com o intuito de impedir que o utilizem de forma prejudicial à baiana, uma vez que a sacralização com o divino deve ocorrer da mãe para a filha. É o sagrado e o profano que se encontram no universo do acarajé. V – “Todo mundo acha que baiana é gorda porque come acarajé o tempo todo”: as práticas alimentares no tabuleiro O trabalho da baiana envolve muitas atividades e isto requer dedicação. Devido a isto, a baiana prioriza o seu trabalho em detrimento de outras atividades como, por exemplo, o lazer, a alimentação e o cuidado com o corpo. Em muitas narrativas foi referido que a quantidade de trabalho que realizam é muito grande, impossibilitando a ida a serviços de lazer, como teatro, cinema, praia, e também a prática de atividade física, como caminhadas, pois o tempo que se apresenta é para o trabalho e para o descanso. 203 Adicionado à escravização no tempo, estas trabalhadoras não apresentam uma rotina alimentar, principalmente em seu ambiente de trabalho. Em sua maioria, elas não se alimentam enquanto estão trabalhando, pois referem não ter tempo para isto. “Aqui eu não como, porque eu não sinto fome por causa das coisas que eu faço [...] Uma vez na vida e só como metade [o acarajé] porque não desce, enjoa.” (Baiana Sara). Além disso, o acesso aos alimentos pode conduzir os grupos menos favorecidos a diferentes arranjos de sobrevivência. Nessa perspectiva, as estratégias de consumo alimentar são caracterizadas pela seleção de gêneros básicos e de alta densidade calórica, como as gorduras e os açúcares, por meio dos quais os indivíduos conseguem as calorias necessárias para reproduzir a força de trabalho de que necessitam. Os alimentos que se fazem presentes em seu ambiente de trabalho são os que são vendidos por elas e os que são vendidos nas ruas pelos vendedores ambulantes, como beiju de tapioca, milho verde cozido, amendoim. Apesar de algumas narrativas referirem a aquisição esporádica desses alimentos, na observação participante não foi percebido esse consumo no ambiente de trabalho. A despeito da crença existente no senso comum de que as baianas engordam devido ao alto consumo dos bolinhos de feijão, nas observações realizadas nas ruas da cidade não foi identificado nenhum consumo de acarajé pelas baianas. Segundo algumas narrativas, o ato de comer acarajé ocorre mais na “prova” da massa, para avaliar a quantidade de tempero e a qualidade do produto; o contato direto e diário com o acarajé acaba por produzir uma sensação de enjoo: “Muitas pessoas acham que as baianas engordam porque comem o acarajé todos os dias, mas a gente não come o acarajé todo dia não, porque a gente enjoa.” (Baiana Isadora). Em tempos do discurso sobre alimentação saudável, essas mulheres não identificam que este “movimento” pode ser prejudicial às suas vendas. Elas acreditam que o acarajé, quer dizer, as comidas de azeite ou comidas baianas, apesar de serem vistas como alimentos calóricos, pesados, não deixam de ser consumidas pela população. Independentes da classe social, crença, estado de saúde, as comidas de tabuleiro sempre serão vendidas, pois fazem parte da história da cidade do Salvador. Já existem baianas que, reconhecendo a natureza calórica de seus produtos, utilizam manobras para tornar mais light as suas preparações: “Eu quero o melhor para o meu cliente. Se eu não faço pra mim também não vou querer para ele. O meu camarão eu não frito mais no azeite por muito tempo. O vatapá e o caruru, eu coloco o azeite quando eles já estão quase prontos. No abará só utilizo a flor do azeite, pois é mais saudável. E o meu azeite que frito o acarajé, eu troco todo dia. Utilizo 75 litros na semana.” (Baiana Margô). 204 Revista Baiana de Saúde Pública As constatações deste estudo permitiram concluir-se que a baiana de acarajé, um ícone da cidade do Salvador, tem um trabalho desgastante, que lhe traz problemas de saúde, agravados com o sobrepeso ou a obesidade da maioria das trabalhadoras artesanais. As atividades demandadas pelo trabalho árduo produzem uma fadiga recorrente que se agrava na repetição dos movimentos gerados no processo de produção dos bolinhos. Apesar do reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial, a profissão não obteve melhoras em relação às condições de trabalho, uma vez que a atividade exige esforços repetitivos que resultam em dores de coluna, nas pernas e nos braços. O significado de ser baiana em Salvador, porém, envolve um conjunto de possibilidades permeadas pela tradição, ancestralidade, ritual e também modo de subsistência. O corpo da baiana é seu instrumento de representação no mundo sagrado e profano, uma vez que é através dele que a sua santidade se manifesta, como num transe. Neste sentido, a baiana traz para as ruas de Salvador esse ritual de comidas e objetos sagrados, além das roupas e da movimentação do corpo como numa dança. Não obstante toda a ancestralidade e tradição presente nessa trabalhadora artesanal (ou categoria profissional), é preciso que haja uma atenção especial para elas, uma vez já existe um precedente de sintomas que se manifestam nas baianas e podem estar sendo silenciados ou despercebidos pelos serviços de saúde e pela Previdência Social. Diante do exposto, fica evidente a necessidade de estudos mais detalhados sobre as condições de trabalho e riscos presentes nesse espaço do acarajé, tão disputado e polêmico. REFERÊNCIAS 1. Brasil. Ministério da Cultura (MinC). Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Dossiê IPHAN 6 – Ofício das baianas de acarajé. Brasília; 2004. 2. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Estados apóiam produtores e investem em segurança alimentar. Rev Saúde Públ. 2004:38(5):745-47. 3. Santos LAS. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo cotidiano. Salvador: Edufba; 2008. 4. Martini GT. Baianas do acarajé: a uniformização do típico em uma tradição culinária afro-brasileira [Tese]. Brasília (DF): Universidade de Brasília; 2007. 5. Soares CM. “As ganhadeiras”: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Afro-Ásia. 1996;17:57-71. 205 6. Cantarino C. Baianas do acarajé: uma história de resistência. Rev Patrim. 2005;13:117-21. 7. Brasil. Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Departamento do Patrimônio Imaterial. Memorial da Baiana do Acarajé. Notícia do MinC, 8/6/2009. Extraído de [http:// www.cultura.gov.br/site/ 2009/06/08/memorial-da-baiana-de-acaraje], acesso em [30 de janeiro de 2010]. 8. Brasil. Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Departamento do Patrimônio Imaterial. Baiana do Acarajé. Presidente da República sanciona lei instituindo data comemorativa no calendário nacional. Notícia do MinC, 20/01/2010. Extraído de: [http:// www. cultura.gov.br/site/ 2010/01/20/datas-para-celebrar], acesso em [2 de fevereiro de 2010]. 9. Amado J. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 15ª. ed. São Paulo: Martins; 1969. 10. Amado J. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 27ª. ed. São Paulo: Record; 1977. 11. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9a. ed. Revista e aprimorada. São Paulo: Hucitec; 2006. 12. Pena PGL, Reis EJFB, Barbosa AMG. Relação trabalho e saúde: tópicos iniciais. Texto didático para o Módulo de Medicina Social. Departamento de Medicina Preventiva e Social. Faculdade de Medicina da Bahia. Salvador; 2010. 13. Freudenberger HJ. Staff burn-out. 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Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1995. 206 Revista Baiana de Saúde Pública 17. Pereira-Netto AD, Moreira JC, Dias AEXO, Arbilla AG, Ferreira LV, Oliveira AS, et al. Avaliação da contaminação humana por hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) e seus derivados nitrados (NHPAs): uma revisão metodológica. Química Nova. 2000;23(6):765-73. 18. Camargo MCR, Toledo MCF. Avaliação da contaminação de diferentes grupos de alimentos por hidrocarbonetos policíclicos aromáticos. Brazilian J food technol. 2002;5:19-26. Extraído de [http://www.ital.sp.gov.br/bj/ artigos/bjft/2002/ p0276.pdf], acesso em [8 de novembro de 2008]. 19. Brasil. Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho. Portaria No. 3.214, de 8 de junho de 1978. Aprova as Normas Regulamentadoras - NR - do Capítulo V, Título II, da Consolidação das Leis do Trabalho, relativas à Segurança e Medicina do Trabalho. Anexo 13 – Agentes químicos cancerígenos. Brasília; 1978. 20. Brasil. Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho. Portaria No. 14, de 20 de dezembro de 1995. Alterar o item “Substâncias Cancerígenas” do Anexo 13 da Norma Regulamentadora N.º 15 - Atividades e Operações Insalubres, da Portaria MTb N.º 3.214, de 8 de junho de 1978. Brasília; 1995. 21. Mascarenhas A, Mello A, Costa A, Mota F, Santana G, Luz G et al. Hidrocarbonetos policíclicos aromáticos em hambúrgueres comercializados na cidade de Salvador, Bahia. Rev Ci Saúde Col. Número Suplementar. Anais do IX Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva; 2009. 22. Laín Entralgo P. Historia de la Medicina. Barcelona: Salvat; 1978. 23. Czeresnia D. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de apreensão da epidemia. História Ci Saúde – Manguinhos. 1997;4(1):75-94. 24. Martins RA. Tradição e inovação na microbiologia: Lemaire e os miasmas. In: Alves IM, Garcia EM. Anais do VI Seminário de História de Ciência e Tecnologia. Sociedade Brasileira de História da Ciência; 1997. p. 53-59. 25. Carrel A. O homem, este desconhecido. Porto: Editora Educação Nacional; 2005. 26. Sousa Junior VC. As representações do corpo no universo afro-brasileiro. Projeto História. 2003:25:125-44. 27. Canguilhem G. O normal e o patológico. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. 28. Meurer B, Gesser M. O corpo como lócus de poder: articulações sobre gênero e obesidade na contemporaneidade. Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. 2008. Extraído de [http://www.fazendogenero8.ufsc.br/ sts/ST39/ Meurer-Gesser_39.pdf], acesso em [30 de novembro de 2009]. 207 29. Ferreira VA. O corpo cúmplice da vida: considerações a partir dos depoimentos de mulheres obesas de uma favela carioca. Ci Saúde Col. 2006;11(2):483-90. 30. Fischler C. Obeso benigno, obeso maligno. In: Sant’ Anna DB, organizador. Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade; 1995. p. 69-80. 31. Tonial S. 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Recebido em 12.3.2011 e aprovado em 16.05.2011 208 Revista Baiana NORMAS PARA PUBLICAÇÃO de Saúde Pública A Revista Baiana de Saúde Pública (RBSP), publicação oficial da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB), de periodicidade trimestral, publica contribuições sobre aspectos relacionados aos problemas de saúde da população e à organização dos serviços e sistemas de saúde e áreas correlatas. São aceitas para publicação as contribuições escritas preferencialmente em português, de acordo com as normas da RBSP, obedecendo a ordem de aprovação pelos editores. Os trabalhos são avaliados por pares, especialistas nas áreas relacionadas aos temas referidos. Os manuscritos devem destinar-se exclusivamente à RBSP, não sendo permitida sua apresentação simultânea a outro periódico, tanto no que se refere ao texto como às ilustrações e tabelas, quer na íntegra ou parcialmente. Devem ainda referenciar artigos sobre a temática abordados nesta Revista. Os autores devem assinar e encaminhar uma declaração de responsabilidade. CATEGORIAS ACEITAS: 1 Artigos originais: 1.1 Pesquisa: artigos apresentando resultados finais de pesquisas científicas (10 a 20 laudas); 1.2 Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema específico (5 a 8 laudas); 1.3 Revisão: artigos com revisão crítica de literatura sobre tema específico, solicitados pelos editores (8 a 15 laudas). 2 Comunicações: informes de pesquisas em andamento, programas e relatórios técnicos (5 a 8 laudas). 3 Teses e dissertações: resumos de dissertações de mestrado e teses de doutorado/livre docência defendidas e aprovadas em universidades brasileiras (máximo 2 laudas). Os resumos devem ser encaminhados com o título oficial da tese, dia e local da defesa, nome do orientador e local disponível para consulta. 4 Resenha de livros: livros publicados sobre temas de interesse, solicitados pelos editores (1 a 4 laudas). 5 Relato de experiências: apresentando experiências inovadoras (8 a 10 laudas). 6 Carta ao editor: comentários sobre material publicado (2 laudas). 7 Editorial: de responsabilidade do editor. Pode também ser redigido por convidado, mediante solicitação do editor. 8 Documentos: de órgãos oficiais sobre temas relevantes (8 a 10 laudas). 209 ORIENTAÇÕES AOS AUTORES INSTRUÇÕES GERAIS PARA ENVIO Os trabalhos a serem apreciados pelos editores e revisores seguirão a ordem de recebimento e deverão obedecer aos seguintes critérios de apresentação: • encaminhar à secretaria executiva da revista uma cópia impressa. As páginas devem ser formatadas em espaço 1,5, com margens de 2 cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, página padrão A4, numeradas no canto superior direito; • enviar opcionalmente para o e-mail da revista, desde que não contenham desenhos ou fotografias digitalizadas; • entregar uma cópia em CD-ROOM ou via e-mail com a versão final aceita para publicação. ARTIGOS Folha de rosto: informar o título (com versão em inglês e espanhol), nome(s) do(s) autor(es), principal vinculação institucional de cada autor, órgão(s) financiador(es) e endereço postal e eletrônico de um dos autores para correspondência. Segunda folha: iniciar com o título do trabalho, sem referência à autoria, e acrescentar um resumo de no máximo 200 palavras, com versão em inglês (Abstract) e espanhol (Resumen). Trabalhos em espanhol ou inglês devem também apresentar resumo em português. Palavras-chave (3 a 5) extraídas do vocabulário DECS (Descritores em Ciências da Saúde/www.decs.bvs.br) para os resumos em português e do MESH (Medical Subject Headings/ www.nlm.nih.gov/mesh) para os resumos em inglês. Terceira folha: título do trabalho sem referência à autoria e início do texto com parágrafos alinhados nas margens direita e esquerda (justificados), observando a sequência: introdução – conter justificativa e citar os objetivos no último parágrafo; material e métodos; resultados, discussão e referências. Digitar em página independente os agradecimentos, quando necessários. RESUMOS Os resumos devem ser apresentados nas versões português, inglês e espanhol. Devem expor sinteticamente o tema, os objetivos, a metodologia, os principais resultados e as conclusões. Não incluir referências ou informação pessoal. 210 Revista Baiana de Saúde Pública TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS Obrigatoriamente, os arquivos das ilustrações (quadros, gráficos, fluxogramas, fotografias, organogramas etc.) e tabelas devem ser independentes e impressos em folhas separadas; suas páginas não devem ser numeradas. Estes arquivos devem ser compatíveis com processador de texto “Word for Windows” (formatos: PICT, TIFF, GIF, BMP). O número de ilustrações e tabelas deve ser o menor possível. As ilustrações coloridas somente serão publicadas se a fonte de financiamento for especificada pelo autor. Na seção resultados, as ilustrações e tabelas devem ser numeradas com algarismos arábicos, por ordem de aparecimento no texto, e seu tipo e número destacados em negrito (e.g. “[...] na Tabela 2 as medidas [...]). No corpo das tabelas, não utilizar linhas verticais nem horizontais; os quadros devem ser fechados. Os títulos das ilustrações e tabelas devem ser objetivos, situar o leitor sobre o conteúdo e informar a abrangência geográfica e temporal dos dados (e.g.: Gráfico 2. Número de casos de AIDS por região geográfica – Brasil – 1986-1997). Ilustrações e tabelas reproduzidas de outras fontes já publicadas devem indicar esta condição após o título. ÉTICA EM PESQUISA Trabalho que resulte de pesquisa envolvendo seres humanos ou outros animais deve vir acompanhado de cópia de documento que ateste sua aprovação prévia por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), além da referência na seção Material e Métodos. REFERÊNCIAS Preferencialmente, qualquer tipo de trabalho encaminhado (exceto artigo de revisão) deverá listar até 30 fontes. As referências no corpo do texto deverão ser numeradas em sobrescrito, consecutivamente, na ordem em que forem mencionadas a primeira vez no texto. As notas explicativas são permitidas, desde que em pequeno número, e devem ser ordenadas por letras minúsculas em sobrescrito. 211 As referências devem aparecer no final do trabalho, listadas pela ordem de citação, alinhadas apenas à esquerda da página, seguindo as regras propostas pelo Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (Requisitos uniformes para manuscritos apresentados a periódicos biomédicos/ Vancouver), disponíveis em http://www.icmje.org ou http://www.abec-editores.com.br. Quando os autores forem mais de seis, indicar apenas os seis primeiros, acrescentando a expressão et al. Exemplos: a) LIVRO Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales. 2ª ed. Washington: Organizacion Panamericana de la Salud; 1989. b) CAPÍTULO DE LIVRO Almeida JP, Rodriguez TM, Arellano JLP. Exantemas infecciosos infantiles. In: Arellano JLP, Blasco AC, Sánchez MC, García JEL, Rodríguez FM, Álvarez AM, editores. Guía de autoformación en enfermedades infecciosas. Madrid: Panamericana; 1996. p. 1155-68. c) ARTIGO Azevêdo ES, Fortuna CMM, Silva KMC, Sousa MGF, Machado MA, Lima AMVMD, et al. Spread and diversity of human populations in Bahia, Brazil. Human Biology. 1982;54:329-41. d) TESE E DISSERTAÇÃO Britto APCR. Infecção pelo HTLV-I/II no estado da Bahia [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 1997. e) RESUMO PUBLICADO EM ANAIS DE CONGRESSO Santos-Neto L, Muniz-Junqueira I, Tosta CE. Infecção por Plasmodium vivax não apresenta disfunção endotelial e aumento de fator de necrose tumoral-? (FNT-?) e interleucina-1? (IL-1?). In: Anais do 30º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Salvador, Bahia; 1994. p. 272. f) DOCUMENTOS EXTRAÍDO DE ENDEREÇO DA INTERNET Autores ou sigla e/ou nome da instituição principal. Título do documento ou artigo. Extraído de [endereço eletrônico], acesso em [data]. Exemplo: COREME, Comissão de Residência Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Regimento Interno da COREME. Extraído de [http://www.hupes.ufba.br/coreme], acesso em [20 de setembro de 2001]. 212 Revista Baiana Não incluir nas Referências material não-publicado ou informação pessoal. Nestes casos, assinalar de Saúde Pública no texto: (i) Antunes Filho FF, Costa SD: dados não-publicados; ou (ii) Silva JA: comunicação pessoal, 1997. Todavia, se o trabalho citado foi aceito para publicação, incluí-lo entre as referências, citando os registros de identificação necessários (autores, título do trabalho ou livro e periódico ou editora), seguido da expressão latina In press e o ano. Quando o trabalho encaminhado para publicação tiver a forma de relato de investigação epidemiológica, relato de fato histórico, comunicação, resumo de trabalho final de curso de pósgraduação, relatórios técnicos, resenha bibliográfica e carta ao editor, o(s) autor(es) deve(m) utilizar linguagem objetiva e concisa, com informações introdutórias curtas e precisas, delimitando o problema ou a questão objeto da investigação. Seguir as orientações para referências, ilustrações e tabelas. As contribuições encaminhadas só serão aceitas para apreciação pelos editores e revisores se atenderem às normas da revista. Endereço para remessa de trabalho: Revista Baiana de Saúde Pública Escola da Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto de Magalhães Netto Rua Conselheiro Pedro Luiz, nº 171 Rio Vermelho – Salvador – Bahia CEP 41950-610 TEL/FAX 0XX 71 3334 0428 [email protected] 213 PUBLICATION STANDARDS AND GUIDELINES The Public Health Journal of Bahia (RBSP), a quarterly official publication of the Health Secretariat of the State of Bahia (SESAB), publishes contributions on aspects related to population’s health problems, health systems’ services and related areas. It accepts for publication written contributions, preferably in Portuguese, according to the RBSP standards, following the order of approval by the editors. The papers are evaluated by a pair of experts in the areas related to the topics in question. The manuscripts must be exclusively destined to RBSP, not being allowed its simultaneous submission to another periodical, neither of texts nor illustrations and charts, in part or as a whole. They must also mention articles about the topics addressed in this Journal. The authors must sign and send a declaration of responsibility. ACCEPTED CATEGORIES: 1 Original articles: 1.1 Research: articles presenting final results of scientific researches (10 to 20 pages); 1.2 Essays: articles with a critical analysis on a specific topic (5 to 8 pages); 1.3 Review: articles with a critical review on literature about a specific topic, requested by the editors (8 to 15 pages). 2 Communications: reports on ongoing research, programs and technical reports (5 to 8 pages). 3 Theses and dissertations: abstracts of master degree’ dissertations and doctorate thesis/ licensure papers defended and approved by Brazilian universities (2 pages maximum). The abstracts must be sent with the official title, day and location of the thesis’ defense, name of the counselor and an available place for reference. 4 Book reviews: Books published about topics of current interest, as requested by the editors (1 to 4 pages). 5 Experiments’ report: presenting innovative experiments (8 to 10 pages). 6 Letter to the editor: comments about published material (2 pages). 7 Editorial: a responsibility of the editor. It can also be written by an invited author upon request of the editor. 8 214 Documents: of official organization about relevant topics (8 to 10 pages). Revista Baiana de Saúde Pública GUIDELINES TO THE AUTHORS GENERAL INSTRUCTIONS FOR SENDING MATERIAL The papers must be evaluated by the editors and the revisers will follow the order of receipt and shall abide by the following criteria of submission: • send it to the journal’s executive office by email or printed copy. The pages must be formatted in 1.5 spacing, with 2cm margins, Times New Roman typeface, font size 12, A4 standard page, numbered at top right; • optionally send it to the journal’s e-mail, provided that it doesn’t contain drawings or digitalized photographs; • send a copy in CD-ROM or by e-mail with the final version accepted for publication. ARTICLES Cover sheet: inform the title (with an English and Spanish version), name(s) of the author(s), main institutional connection of each author, funding organization(s) and postal and electronic address of one of authors for correspondence. Second page: Start with the paper’s title, without reference to authorship and add an abstract of up to 200 words, followed with English (Abstracts) and Spanish (Resumen) versions. Spanish and English papers must also present an abstract in Portuguese. Keywords (3 to 5) extracted from DECS (Health Science Descriptors at www.decs.bvs.br) for the abstracts in Portuguese and from MESH (Medical Subject Headings at www.nlm.nih.gov/mesh) for the abstracts in English. Third page: paper's title without reference to authorship and beginning of the text with paragraphs aligned to both right and left margins (justified), observing the following sequence: introduction – containing justification and mentioning the objectives in the last paragraph; material and methods; results, discussion and references. Type in the acknowledgement on an independent page whenever necessary. ABSTRACTS The abstracts must be presented in the portuguese, english and spanish versions. They must synthetically expose the topic, objectives, methodology, main results and conclusions. It must not include personal references or information. 215 CHARTS, GRAPHS AND FIGURES The files of the illustrations (charts, graphs, flowcharts, photographs, organization charts etc.) and tables must forcibly be independent and printed in separate pages; their pages must not be numbered. These files must be compatible with "Word for Windows” word processor (formats: PICT, TIFF, GIF, BMP). Colored illustration will only be published if the funding source is specified by the author. On the results section illustrations and tables must be numbered with Arabic numerals, ordered by appearance in the text, and its type and number must be highlighted in bold (e.g. “[...] on Table 2 the measures […]). On the body of tables use neither vertical nor horizontal lines; the charts must be framed. The titles of the illustrations and tables must be objective, contextualize the reader about the content and inform the geographical and time scope of the data (e.g.: Graph 2. Number of Aids cases by geographical region – Brazil - 1986-1997). Illustrations and tables reproduced from already published sources must have this condition informed after the title. RESEARCH ETHICS Paper that result from research involving human being or other animals must be followed with a document which attests its previous approval by a Research Ethic Committee (REC), in addition to the reference at the Material and Methods Section. REFERENCES Preferably, any kind of paper sent (except review article) must list up to 30 sources. The references in the body of the text must be consecutively numbered in superscript, in the order that they are mentioned for the first time. Explanatory notes are allowed, provided that in small number and they must be ordered by low case letters in superscript. 216 Revista Baiana de Saúde Pública References must appear at the end of the work, listed by order of appearance, aligned only to the left of the page, following the rules proposed by the International Committee of Medical Journal Editors (Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to Biomedical Journals/Vancouver), available at http://www.icmje.org or http://www.abec-editores.com.br. When there are more than six authors, indicate only the first six, adding the expression et al. Examples: a) BOOK Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales. 2ª ed. Washington: Organizacion Panamericana de la Salud; 1989. b) BOOK CHAPTER Almeida JP, Rodriguez TM, Arellano JLP. Exantemas infecciosos infantiles. In: Arellano JLP, Blasco AC, Sánchez MC, García JEL, Rodríguez FM, Álvarez AM, editores. Guía de autoformación en enfermedades infecciosas. Madrid: Panamericana; 1996. p. 1155-68. c) ARTICLE Azevêdo ES, Fortuna CMM, Silva KMC, Sousa MGF, Machado MA, Lima AMVMD, et al. Spread and diversity of human populations in Bahia, Brazil. Human Biology 1982;54:329-41. d) THESIS AND DISSERTATION Britto APCR. Infecção pelo HTLV-I/II no estado da Bahia [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 1997. e) ABSTRACT PUBLISHED IN CONFERENCE ANNALS Santos-Neto L, Muniz-Junqueira I, Tosta CE. Infecção por Plasmodium vivax não apresenta disfunção endotelial e aumento de fator de necrose tumoral-α (FNT-α) e interleucina-1β (IL-1β). In: Anais do 30º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Salvador, Bahia; 1994. p. 272. f) DOCUMENTS OBTAINED FROM INTERNET ADDRESS Author and/or name of the main institution. Title of document or article. Obtained from [electronic address], accessed on [date]. Example: 217 COREME, Comissão de Residência Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Regimento Interno da COREME. Obtained from [http://www.hupes.ufba.br/coreme], accessed on [20 september, 2001]. Do not include unpublished material or personal information in the References. In such cases, indicate it in the text: (i) Antunes Filho FF, Costa SD: unpublished data; or Silva JA: personal communication, 1997. However, if the mentioned material was accepted for publication, include it in the references, mentioning the required identification entries (authors, title of the paper or book and periodical or editor), followed by the Latin expression In press, and the year. When the paper directed to publication have the format of an epidemiological research report, historical fact report, communication, abstract of post-graduate studies’ final paper, technical report, bibliographic report and letter to the editor, the author(s) must use a direct and concise language, with short and precise introductory information, limiting the problem or issue object of the research. Follow the guidelines for the references, illustrations and tables. The contribution sent will only be accepted for evaluation by the editors and reviewers if they comply with the standards of the journal. Endereço para remessa de trabalho: Revista Baiana de Saúde Pública Escola da Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto de Magalhães Netto Rua Conselheiro Pedro Luiz, nº 171 Rio Vermelho – Salvador – Bahia CEP 41950-610 TEL/FAX 0XX 71 3334 0428 [email protected] 218 Revista Baiana NORMAS PARA PUBLICACIÓN de Saúde Pública La Revista Baiana de Salud Pública (RBSP), publicación oficial de la Secretaria de la Salud del Estado de la Bahia (SESAB), de periodicidad trimestral, publica contribuiciones sobre aspectos relacionados a los problemas de salud de la población y a la organización de los servicios y sistemas de salud y áreas correlatas. Son aceptas para publicación las contribuiciones escritas preferencialmente en portugués, de acuerdo con las normas de la RBSP, obedeciendo la orden de aprovación por los editores. Los trabajos son evaluados por pares, especialistas en las áreas relacionadas a los temas referidos. Los manuscritos deben destinarse exclusivamente a la RBSP, no siendo permitida su presentación simultánea a otro periódico, tanto en lo que se refiere al texto como a las ilustraciones y tablas, sea en la íntegra o parcialmente. Deben, aún, referenciar artículos sobre la temática abordados en esta Revista. Los autores deben firmar y encaminar una declaración de responsabilidad. CATEGORÍAS ACEPTAS: 1 Artículos originales: 1.1 Investigación: artículos presentando resultados finales de investigaciones científicas (10 a 20 hojas); 1.2 Ensayos: artículos con análisis crítica sobre un tema específico (5 a 8 hojas); 1.3 Revisión: artículos con revisión crítica de literatura sobre tema específico, solicitados por los editores (8 a 15 hojas). 2 Comunicaciones: informes de investigaciones en andamiento, programas y relatorios técnicos (5 a 8 hojas). 3 Tesis y disertaciones: resúmenes de disertaciones de master y tesis de doctorado/libre docencia defendidas y aprobadas en universidades brasileñas (máximo 2 hojas). Los resúmenes deben ser encaminados con el título oficial de la tesis, día y local de la defensa, nombre del orientador y local disponible para consulta. 4 Reseña de libros: libros publicados sobre temas de interés, solicitados por los editores (1 a 4 hojas). 5 Relato de experiencias: presentando experiencias innovadoras (8 a 10 hojas). 6 Carta al editor: comentarios sobre material publicado (2 hojas). 219 7 Editorial: de responsabilidad del editor. Puede, también, ser redigido por convidado, mediante solicitación del editor. 8 Documentos: de órganos oficiais sobre temas relevantes (8 a 10 hojas). ORIENTACIONES A LOS AUTORES INSTRUCCIONES GENERALES PARA ENVIO Los trabajos apreciados por los editores y revisores seguirán la orden de recibimiento y deberán obedecer a los siguientes criterios de presentación: • encaminar a la secretaria ejecutiva de la revista una copia impresa. Las páginas deben ser formateadas en espacio 1,5, con márgenes de 2 cm, fuente Times New Roman, tamaño 12, página patrón A4, numeradas en el lado superior derecho; • enviar opcionalmente para el correo electrónico de la revista, desde que no contengan imágenes o fotografias digitalizadas; • entregar una copia en CD-ROOM o via correo electrónico con la versión final acepta para publicación. ARTÍCULOS Pagina de capa: informar el título (con versión en inglés y español), nombre(s) del(los) autor(es), principal vinculación institucional de cada autor, órgano(s) financiador(es) y dirección postal y eletrónica de uno de los autores para correspondencia. Segunda página: iniciada con el título del trabajo, sin referencia a la autoría, y agregar un resumen de 200 palabras como máximo, con versión en inglés (Abstract) y español (Resumen). Trabajos en español o inglés deben también presentar resumen en portugués. Palabras-clave (3 a 5) extraidas del vocabulario DECS (Descritores en Ciências da Saúde/ www.decs.bvs.br) para los resúmenes en portugués y del MESH (Medical Subject Headings/ www.nlm.nih.gov/mesh) para los resúmenes en inglés. Tercera página: título del trabajo sin referencia a la autoría e inicio del texto con parágrafos alineados en las márgenes derecha e izquierda (justificados), observando la secuencia: introducción – contener justificativa y citar los objetivos en el último parágrafo; material y métodos; resultados, discusión y referencias. Digitar en página independiente los agradecimientos, cuando sean necesarios. RESÚMENES Los resúmenes deben ser presentados en las versiones portugués, inglés y español. Deben exponer sintéticamente el tema, los objetivos, la metodología, los principales resultados y las conclusiones. No incluir referencias o información personal. 220 Revista Baiana de Saúde Pública TABLAS, GRÁFICOS Y FIGURAS Obligatoriamente, ls archivos de las ilustraciones (cuadros, gráficos, fluxogramas, fotografías, órganogramas etc.) y tablas deben ser independientes e impresas en hojas separadas; sus páginas no deben ser numeradas. Estos archivos deben ser compatibles con el procesador de texto “Word for Windows” (formatos: PICT, TIFF, GIF, BMP). El número de ilustraciones y tablas debe ser el menor posible. Las ilustraciones coloridas solamente serán publicadas si la fuente de financiamiento sea especificada por el autor. En la sección de resultados, las ilustraciones y tablas deben ser enumeradas con algarismos árabes, por orden de aparecimiento en el texto, y su tipo y número destacados en negrita (e.g. “[...] en la Tabela 2 las medidas [...]). En el cuerpo de las tablas, no utilizar lineas verticales ni horizontales; los cuadros deben estar cerrados. Los títulos de las ilustraciones y tablas deben ser objetivos, situar al lector sobre el contenido e informar el alcance geográfico y temporal de los datos (e.g.: Gráfico 2. Número de casos de SIDA por región geográfica – Brasil – 1986-1997). Ilustraciones y tablas reproducidas de otras fuentes ya publicadas deben indicar esta condición después del título. ÉTICA EN INVESTIGACIÓN Trabajo resultado de investigación envolviendo seres humanos u otros animales debe venir acompañado con copia de documento que certifique su aprovación prévia por un Comité de Ética en Investigaciónes (CEP), además de la referencia en la sección Material y Métodos. REFERENCIAS Preferencialmente, cualquier tipo de trabajo encaminado (excepto artículo de revisión) deberá listar un máximo de 30 fuentes. Las referencias en el cuerpo del texto deberán ser enumeradas en sobrescrito, consecutivamente, en el orden en que sean mencionadas la primeira vez en el texto. 221 Las notas explicativas son permitidas, desde que en pequeño número, y deben ser ordenadas por letras minúsculas en sobrescrito. Las referencias deben aparecer al final del trabajo, listadas en orden de citación, alineadas apenas a la izquierda de la página, siguiendo las reglas propuestas por el Comité Internacional de Editores de Revistas Médicas (Requisitos uniformes para manuscritos presentados a periódicos biomédicos/ Vancouver), disponibles en http://www.icmje.org o www.abec-editores.com.br. Cuando los autores sean más de seis, indicar apenas los seis primeros, añadiendo la expresión et al. Ejemplos: a) LIBRO Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales. 2ª ed. Washington: Organizacion Panamericana de la Salud; 1989. b) CAPÍTULO DE LIBRO Almeida JP, Rodriguez TM, Arellano JLP. Exantemas infecciosos infantiles. In: Arellano JLP, Blasco AC, Sánchez MC, García JEL, Rodríguez FM, Álvarez AM, editores. Guía de autoformación en enfermedades infecciosas. Madrid: Panamericana; 1996. p. 1155-68. c) ARTÍCULO Azevêdo ES, Fortuna CMM, Silva KMC, Sousa MGF, Machado MA, Lima AMVMD, et al. Spread and diversity of human populations in Bahia, Brazil. Human Biology 1982;54:329-41. d) TESIS Y DISERTACIÓN Britto APCR. Infecção pelo HTLV-I/II no Estado da Bahia [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 1997. e) RESUMEN PUBLICADO EN ANALES DE CONGRESO Santos-Neto L, Muniz-Junqueira I, Tosta CE. Infecção por Plasmodium vivax não apresenta disfunção endotelial e aumento de fator de necrose tumoral-α (FNT-α) e interleucina-1β (IL-1β). In: Anais do 30º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Salvador, Bahia; 1994. p. 272. f) DOCUMENTOS EXTRAIDOS DE SITIOS DE LA INTERNET Autores o sigla y/o nombre de la institución principal. Título del documento o artículo. Extraido de [sitio eletrónico], consultado en [fecha]. Ejemplo: 222 Revista Baiana de Saúde Pública COREME, Comissão de Residência Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Regimento Interno da COREME. Extraído de [http://www.hupes.ufba.br/coreme], acesso em [20 de setembro de 2001]. No incluir en las Referencias material no publicado o información personal. En estos casos, indicar en el texto: (i) Antunes Filho FF, Costa SD: datos no publicados; o (ii) Silva JA: comunicación personal, 1997. Sin embargo, si el trabajo citado es acepto para publicación, incluirlo entre las referencias, citando los registros de identificación necesarios (autores, título del trabajo o libro y periódico o editora), seguido de la expresión latina In press y el año. Cuando el trabajo encaminado para publicación tenga la forma de relato de investigación epidemiológica, relato de hecho histórico, comunicación, resumen de trabajo final de curso de postgraduación, relatórios técnicos, reseña bibliográfica y carta al editor, el(los) autor(es) debe(n) utilizar lenguaje objetiva y concisa, con informaciones introductorias cortas y precisas, delimitando el problema o la cuestión objeto de la investigación. Seguir las orientaciones para referencias, ilustraciones y tablas. Las contribuiciones encaminadas a los editores y revisores, solo serán aceptadas para apreciación si atienden las normas de la revista. Endereço para remessa de trabalho: Revista Baiana de Saúde Pública Escola da Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto de Magalhães Netto Rua Conselheiro Pedro Luiz, nº 171 Rio Vermelho – Salvador – Bahia CEP 41950-610 TEL/FAX 0XX 71 3334 0428 [email protected] 223 224 Revista Baiana de Saúde Pública SECRETARIA DA SAÚDE DO ESTADO DA BAHIA - SESAB SUPERINTENDÊNCIA DE RECURSOS HUMANOS E EDUCAÇÃO EM SAÚDE - SUPERH ESCOLA ESTADUAL DE SAÚDE PÚBLICA PROF. FRANCISCO PEIXOTO DE MAGALHÃES NETTO - EESP REVISTA BAIANA DE SAÚDE PÚBLICA - RBSP Rua Conselheiro Pedro Luiz, 171 - Rio Vermelho CEP 41950-610 Caixa Postal 631 Tel /Fax: 0 xx 71 3334-0428 Recebemos e agradecemos Nous avons reçu We have received _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ Desejamos receber Il nous manque We are in want of _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ Enviamos em troca Nou envoyons en echange We send you in exchange _________________________________________________________________________________ Favor devolver este formulário para assegurar a remessa das próximas publicações. Please fill blank and retourn it to us in order to assure the receiving of the next issues. On prie da dévolution de ce formulaire pour étre assuré l’envoi des prochaines publications. _________________________________________________________________________________ 225