REVISTA BAIANA DE SAÚDE PÚBLICA
Órgão Oficial da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia
EXPEDIENTE
Revista Baiana
Jaques Wagner – Governador do Estado da Bahia
Jorge José Santos Pereira Solla – Secretário da Saúde
Telma Dantas Teixeira de Oliveira – Superintendente SUPERH
Verônica Rita Pina Vieira– Diretora da Escola Estadual de Saúde Pública
de Saúde Pública
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EDITORA GERAL
Rua Conselheiro Pedro Luiz, 171 – Rio Vermelho
Caixa Postal 631, CEP 41950-610, Salvador, Bahia, Brasil
Telefax: 71 3334-0428
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CONSELHO EDITORIAL
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SECRETÁRIA EXECUTIVA
Lucitânia Rocha de Aleluia
Rev. baiana de Saúde Públ. Salvador v. 35 n. 1 p. 1-226 jan./mar. 2011
1
ISSN: 0100-0233
Governo do Estado da Bahia
Secretaria da Saúde do Estado da Bahia
INDEXAÇÃO
Periódica: Índice de Revistas Latinoamericanas em Ciências (México)
Sumário Actual de Revista, Madrid
LILACS-SP – Literatura Latinoamericana em Ciências de La Salud – Salud Pública, São Paulo
Revisão e normalização de originais: Maria José Bacelar Guimarães
Revisão de provas: Maria José Bacelar Guimarães
Revisão técnica: Lucitânia Rocha de Aleluia
Tradução/revisão inglês: Positive Idiomas
Tradução/revisão espanhol: Marcial Saavedra Castro
Editoração eletrônica: Flávio Andrade
Capa: detalhe do portal da antiga Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Solar do século XVIII)
Fotos: Paulo Carvalho e Rodrigo Andrade (detalhes do portal e azulejos)
Periodicidade – Trimestral
Triagem – 1.200 exemplares
Distribuição – gratuita
Revista Baiana de Saúde Pública é associada à
Associação Brasileira de Editores Científicos
Revista Baiana de Saúde Pública / Secretaria da Saúde
do Estado da Bahia. - v.35, n.1, jan./mar., 2011 Salvador: Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, 2011
Trimestral.
ISSN 0100-0233
1. Saúde Pública - Bahia - Periódico. IT
CDU 614 (813.8) (05)
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de Saúde Pública
EDITORIAL ............................................................................................................................................................................................ 7
ARTIGOS ORIGINAIS
ATIVIDADES FÍSICAS DE LAZER E DISTÚRBIOS MÚSCULOESQUELÉTICOS: REVISÃO DA LITERATURA ............................................ 9
Adauto Mascarenhas, Rita de Cássia Pereira Fernandes
FATORES DA DIETA E TUMORES DE CÉREBRO ............................................................................................................................ 26
Glaura Freaza Luz, Lauro Antonio Porto, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo
FATORES OCUPACIONAIS ASSOCIADOS À DOR MUSCULOESQUELÉTICA EM PROFESSORES ....................................................... 42
Isadora de Queiroz Batista Ribeiro, Tânia Maria de Araújo, Fernando Martins Carvalho,
Lauro Antonio Porto, Eduardo José Farias Borges dos Reis
SENTENÇA TRABALHISTA: BASES RACIONAIS DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS CASOS DE ACIDENTE DE TRABALHO .................... 65
Nara Eloy Machado da Silva, Mônica Angelim Gomes de Lima, Cláudio Fortes Garcia Lorenzo
DESEQUILÍBRIO ESFORÇO-RECOMPENSA NO TRABALHO E TRANSTORNOS MENTAIS
COMUNS EM ELETRICISTAS DE ALTA TENSÃO ............................................................................................................................ 83
Suerda Fortaleza de Souza, Fernando Martins Carvalho, Tânia Maria de Araújo, Lauro Antonio Porto
O AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE: VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO A CÉU ABERTO .......................................... 96
Lázaro José Rodrigues de Souza, Maria do Carmo S. de Freitas
FEIRA LIVRE E RISCO DE CONTAMINAÇÃO ALIMENTAR: ESTUDO DE ABORDAGEM
ETNOGRÁFICA EM SANTO AMARO, BAHIA ................................................................................................................................ 110
Mirella Dias Almeida, Paulo Gilvane Lopes Pena
DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EM MEMBROS INFERIORES EM TRABALHADORAS DE ENFERMAGEM ......................... 128
Natália Fonseca Ribeiro, Rita de Cássia Pereira Fernandes
TRABALHADOR-DOENTE E SUA FAMÍLIA: DINÂMICA, CONVIVÊNCIA E PROCESSO DE RETORNO AO TRABALHO ..................... 143
Paulo Roberto Ferreira da Rocha, Mônica Angelim Gomes de Lima
NAS MÃOS DAS CHARUTEIRAS, HISTÓRIAS DE VIDA E DE LER/DORT ......................................................................................... 159
Wéltima Teixeira Cunha, Maria do Carmo Soares de Freitas
DOENÇAS EM TRABALHADORES DA PESCA ............................................................................................................................... 175
Antoniel de Oliveira Rios, Rita de Cássia Franco Rego, Paulo Gilvane Lopes Pena
OBESIDADE E TRABALHO DAS BAIANAS DE ACARAJÉ NA CIDADE DO SALVADOR, BAHIA, BRASIL .............................................. 189
Amanda Ornelas Trindade Mello, Maria do Carmo Soares Freitas, Ronaldo Ribeiro Jacobina
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EDITORIAL ............................................................................................................................................................................................ 7
ORIGINAL ARTICLES
LEISURE PHYSICAL ACTIVITY AND MUSCULOSKELETAL DISORDERS: LITERATURE REVIEW ......................................................... 10
Adauto Mascarenhas, Rita de Cássia Pereira Fernandes
DIETARY FACTORS AND BRAIN TUMORS ..................................................................................................................................... 27
Glaura Freaza Luz, Lauro Antonio Porto, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo
OCCUPATIONAL FACTORS ASSOCIATED TO MUSCULOSKELETAL PAIN AMONG TEACHERS ........................................................ 43
Isadora de Queiroz Batista Ribeiro, Tânia Maria de Araújo, Fernando Martins Carvalho,
Lauro Antonio Porto, Eduardo José Farias Borges dos Reis
LABOR SENTENCES: THE RATIONAL BASIS OF JUDGMENTS IN CASES OF OCCUPACIONAL ACCIDENT ...................................... 66
Nara Eloy Machado da Silva, Mônica Angelim Gomes de Lima, Cláudio Fortes Garcia Lorenzo
EFFORT-REWARD IMBALANCE AT WORK AND COMMON MENTAL DISORDERS AMONG WORKERS IN
HIGH VOLTAGE POWER LINES .................................................................................................................................................... 84
Suerda Fortaleza de Souza, Fernando Martins Carvalho, Tânia Maria de Araújo, Lauro Antonio Porto
COMMUNITY HEALTH AGENT: VIOLENCE AND SUFFERING AT OPEN FIELD WORK .................................................................. 97
Lázaro José Rodrigues de Souza, Maria do Carmo S. de Freitas
THE STREET MARKET AND THE RISK OF FOOD CONTAMINATION: AN ETHNOGRAPHIC APPROACH STUDY
IN SANTO AMARO, BAHIA .......................................................................................................................................................... 111
Mirella Dias Almeida, Paulo Gilvane Lopes Pena
MUSCULOSKELETAL DISORDERS IN LOWER LIMBS AMONG NURSES AND AIDES ..................................................................... 129
Natália Fonseca Ribeiro, Rita de Cássia Pereira Fernandes
THE SICK WORKER AND HIS FAMILY: DYNAMICS, RELATIONSHIP AND RETURN TO WORK PROCESS ....................................... 144
Paulo Roberto Ferreira da Rocha, Mônica Angelim Gomes de Lima
IN THE HANDS OF CIGAR MAKERS, STORIES OF LIFE AND RSI ................................................................................................... 159
Wéltima Teixeira Cunha, Maria do Carmo Soares de Freitas
DISEASES IN FISHING WORKERS ............................................................................................................................................... 176
Antoniel de Oliveira Rios, Rita de Cássia Franco Rego, Paulo Gilvane Lopes Pena
OBESITY AND WORK OF THE BAIANAS DE ACARAJÉ IN THE CITY OF SALVADOR, BAHIA, BRAZIL ............................................... 190
Amanda Ornelas Trindade Mello, Maria do Carmo Soares Freitas, Ronaldo Ribeiro Jacobina
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EDITORIAL ............................................................................................................................................................................................ 7
ARTÍCULOS ORIGINALES
ACTIVIDADES FÍSICAS DE OCIO Y TRASTORNOS MÚSCULOESQUELÉTICOS: REVISIÓN DE LA LITERATURA ................................ 10
Adauto Mascarenhas, Rita de Cássia Pereira Fernandes
FACTORES DIETÉTICOS Y LOS TUMORES CEREBRALES ................................................................................................................ 27
Glaura Freaza Luz, Lauro Antonio Porto, Marco Antônio Vasconcelos Rêgo
FACTORES DE TRABAJO ASOCIADOS AL DOLOR MUSCULOESQUELÉTICO ENTRE PROFESORES ................................................. 43
Isadora de Queiroz Batista Ribeiro, Tânia Maria de Araújo, Fernando Martins Carvalho,
Lauro Antonio Porto, Eduardo José Farias Borges dos Reis
VEREDICTO DEL TRABAJO: BASES RACIONALES DE LAS DECISIONES JUDICIALES EN CASOS DE ACCIDENTES DE TRABAJO ....... 66
Nara Eloy Machado da Silva, Mônica Angelim Gomes de Lima, Cláudio Fortes Garcia Lorenzo
DESEQUILIBRIO ESFUERZO-RECOMPENSA EN EL TRABAJO Y TRASTORNOS MENTALES COMUNES
EN ELECTRICISTAS DE ALTA TENSIÓN ......................................................................................................................................... 84
Suerda Fortaleza de Souza, Fernando Martins Carvalho, Tânia Maria de Araújo, Lauro Antonio Porto
EL AGENTE COMUNITARIO DE SALUD: LA VIOLENCIA Y SUFRIMIENTO EN EL TRABAJO AL AIRE LIBRE ...................................... 97
Lázaro José Rodrigues de Souza, Maria do Carmo S. de Freitas
MERCADILLO AL AIRE LIBRE Y EL RIESGO DE CONTAMINACIÓN ALIMENTARIA: ESTUDIO DE ABORDAJE ETNOGRÁFICO EN
SANTO AMARO, ESTADO DE BAHIA ........................................................................................................................................... 111
Mirella Dias Almeida, Paulo Gilvane Lopes Pena
DISTURBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EN EXTREMIDADES INFERIORES EN TRABAJADORAS DE ENFERMERÍA ....................... 129
Natália Fonseca Ribeiro, Rita de Cássia Pereira Fernandes
TRABAJADOR-ENFERMO Y SU FAMILIA: DINÁMICA, CONVIVENCIA Y PROCESO DE REGRESO AL TRABAJO ............................... 144
Paulo Roberto Ferreira da Rocha, Mônica Angelim Gomes de Lima
EN LAS MANOS DE LAS CIGARRERAS, HISTORIAS DE VIDA Y DE LER/DORT ................................................................................ 160
Wéltima Teixeira Cunha, Maria do Carmo Soares de Freitas
ENFERMEDADES DE LOS TRABAJADORES DE LA PESCA ............................................................................................................. 176
Antoniel de Oliveira Rios, Rita de Cássia Franco Rego, Paulo Gilvane Lopes Pena
OBESIDAD Y EL TRABAJO DE LAS BAIANAS DE ACARAJÉ EN LA CIUDAD DE SALVADOR, BAHIA, BRASIL ...................................... 190
Amanda Ornelas Trindade Mello, Maria do Carmo Soares Freitas, Ronaldo Ribeiro Jacobina
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A questão ambiental tornou-se capital na atualidade devido ao aquecimento global e
transformou-se em verdadeiro paradigma, ou seja, em algo que se impõe nas práticas científicas e
tecnológicas para encontrar alternativas que evitem ou minimizem possibilidades de catástrofes
planetárias diante dessa ação antropogênica. Contida nessa crise, há a persistência de problemas
tradicionais de contaminação relacionados às condições de miséria, como falta de saneamento e
elevada poluição industrial decorrente do desenvolvimento desordenado. As consequências para a
saúde das populações, em que se incluem os trabalhadores, relacionam-se às mais variadas
situações endêmicas, epidêmicas e aos flagelos do passado e do presente, a exemplo das recentes
tragédias de Chernobyl, na Ucrânia, e Fukushima, no Japão.
Essa crise fez emergir as discussões sobre a sustentabilidade socioambiental do atual
modelo de desenvolvimento econômico, e seus impactos sobre a saúde das populações marcaram
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD),
realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Desde então, consideráveis esforços científicos
têm se destinado ao estudo do ambiente. Na relação com a saúde, estima-se que entre 25-33%
da carga global de doenças no mundo pode ser atribuída aos fatores de risco ambientais. Das 102
principais doenças, lesões e grupos de doenças constantes no Relatório Mundial da Saúde, em
2004, os fatores de risco ambientais contribuíram para a carga global em 85 categorias.
No Brasil, em dezembro de 2009, realizou-se a I Conferência Nacional de Meio
Ambiente e Saúde, cujo tema foi “A saúde ambiental na cidade, no campo e na floresta:
construindo cidadania, qualidade de vida e territórios sustentáveis”. Dentre os subtemas
abordados, estavam: a extinção de espécies; o esgotamento de recursos naturais essenciais à vida,
como a água; os processos de desmatamento e desertificação; a crise urbana, relacionada ao
saneamento básico, habitação, transporte e segurança pública; a emergência de inúmeras
epidemias em contextos complexos de circulação de vetores e a degradação socioambiental; a
poluição química em ambientes urbanos e rurais, o uso dos agrotóxicos e de outros produtos
químicos; alimentos geneticamente modificados; a mudança climática global; e os acidentes e
desastres tecnológicos que afetam a saúde dos trabalhadores e de toda a população.
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para todo o planeta mostram
que, em 2000, ocorreram 270 milhões de acidentes de trabalho com 330 mil mortes; em 2002,
160 milhões de pessoas contraíram doenças do trabalho. No Brasil, dados da Previdência Social,
em 2007, obtidos com o novo método do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP),
indicaram a ocorrência de 653.090 acidentes do trabalho associados ao expressivo número de
159.786 doenças do trabalho. Em 2007, foram reconhecidos na Bahia 8.914 casos doenças do
trabalho que, a despeito de significar um número elevado, representam apenas o universo do
mercado formal de trabalho, o qual abrange em torno de um terço dos trabalhadores.
7
Os debates atuais vêm explicitando a necessidade de produção científica e de
formulação de políticas públicas, programas e ações relacionadas à interação entre a saúde e o
ambiente, com vista a garantir a qualidade de vida do ser humano, trabalho digno e saudável, bem
como a sustentabilidade do planeta.
É com esse propósito que esta edição da Revista Baiana de Saúde Pública traz
contribuições advindas da primeira turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde,
Ambiente e Trabalho. Trata-se de investigações de natureza multidisciplinar sobre temas de
interesse da saúde do trabalhador e suas relações com o ambiente. São resultados de pesquisas
realizadas em fábricas, serviços de saúde, comércio e no setor jurídico das decisões judiciais na
esfera dos acidentes de trabalho. As pesquisas reúnem problemáticas centradas no lazer, atividades
físicas, riscos, doenças e acidentes relacionados ao trabalho em diversas categorias profissionais,
como charuteiras, eletricistas, enfermeiros, baianas de acarajé, agentes comunitários de saúde,
professores, feirantes e pescadores artesanais inscritos nos setores público, privado e autônomo.
Discutem temáticas de doenças do trabalho prevalentes, como Lesões por Esforços Repetitivos
(LER) ou distúrbios musculoesqueléticos e transtornos mentais comuns; analisam sofrimento,
violência e dor associados ao trabalho, incluindo questões sobre reabilitação profissional no serviço
público federal. Apresentam temáticas concentradas no ambiente, como câncer, e aspectos
relativos à dieta e contaminação alimentar em feira popular.
Vários desses problemas podem ser demarcados no âmbito local, mas a maioria
encontra-se inserido em complexas relações de causalidade e determinação do processo
saúde-doença, ultrapassando o nível local e tornando-se regionais e/ou globais. Por outro lado,
os modelos tradicionais de produção de conhecimento científico precisam evoluir na
capacidade de realizar predições de riscos para doenças e acidentes relacionados ao trabalho e
ao ambiente em geral, para que a prevenção seja efetivada no momento presente. A
formulação e gestão das políticas públicas precisam de fundamentos científicos consistentes, por
meio de estudos bem elaborados que permitam a compreensão da complexidade das
intervenções. Por isso, o leitor encontrará neste número um elenco de resultados de pesquisas que
desvelam situações inscritas nas relações entre saúde, trabalho e ambiente decorrentes de
abordagens qualitativas ou epidemiológicas de interesse multiprofissional, com perspectivas diretas
e indiretas de contribuição para o aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS) nas suas
práticas de saúde do trabalhador articuladas à proteção ambiental.
Rita de Cássia Franco Rêgo
Paulo Gilvane Lopes Pena
8
ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
ATIVIDADES FÍSICAS DE LAZER E DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS: REVISÃO DA
LITERATURA
Adauto Mascarenhasa
Rita de Cássia Pereira Fernandesb
Resumo
Os benefícios da prática regular de atividades físicas (AF) também têm sido
investigados em contextos do trabalho. O objetivo deste artigo é revisar a literatura sobre as
associações entre as práticas de atividades físicas de lazer (AFL) e distúrbios musculoesqueléticos
(DME) relacionados ao trabalho. Consideraram-se artigos publicados em inglês de 1999 a 2009 na
base de dados MEDLINE/PubMed e três artigos em português publicados no Scielo-Brasil. Na
verificação da qualidade metodológica, consideraram-se nove critérios: objetivo, amostragem,
inclusão/exclusão, participação, instrumentos, coleta dos dados, estatística, pontos fortes/fracos e
conclusão. Quinze artigos foram avaliados. Um atendeu a todos os itens de qualidade e dois a
apenas quatro. Seis utilizaram amostras aleatórias, os demais usaram censo ou não referiram à
estratégia de seleção. Um estudo foi de caso-controle; três coorte prospectiva; e sete corte
transversal. Seis artigos apresentaram conclusões que relacionavam exposição ao desfecho.
Associação negativa entre AFL e DME verificou-se em três estudos. Os demais foram inconclusivos
ou não descreveram associação. Concluiu-se que a diversidade de itens que compõem as práticas
de AF pode ter contribuído para a inconsistência das conclusões.
Palavras-chave: Atividades de lazer. Exercício. Transtornos traumáticos cumulativos. Trabalhadores.
v.35, n.1, p.9-25
jan./mar. 2011
a
Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia
(UFBA).
b
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina da Bahia. Largo do Terreiro de Jesus, Centro Histórico, Salvador,
Bahia, Brasil. CEP: 40026-010. [email protected]
9
LEISURE PHYSICAL ACTIVITY AND MUSCULOSKELETAL DISORDERS:
LITERATURE REVIEW
Abstract
The benefic effects of regular physical activity (PA) have also been investigated on
work related activities. The objective of this article is to review the literature about the associations
between leisure physical activity (LPA) practices and work related musculoskeletal disorders
(WRMDs). The study considered articles published in English from 1999 to 2009 in the MEDLINE/
PubMed database and three articles in Portuguese from Scielo-Brazil. The methodological quality
was verified through nine criteria: objective, sample selection, inclusion/exclusion, participation
rate, tools, data collection, statistics, strong/weak points and conclusion. Fifteen articles were
analyzed. One article met all quality items and two only four. Six studies used random samples,
the others have used census or did not clarify the selection strategy. One study was case-control,
three prospective cohort, and seven cross sectional. Six articles presented conclusions that associated
exposure to outcome. A negative association between LPA and the occurrence of MSDs was
found in three studies. The others were inconclusive or did not describe association. One concludes
that the diversity of items that compose the PA practices may have contributed to the inconsistency
of the observed findings.
Key words: Leisure Activities. Physical exercise. Cumulative trauma disorders. Workers.
ACTIVIDADES FÍSICAS DE OCIO Y TRASTORNOS MUSCULOESQUELÉTICOS: REVISIÓN
DE LA LITERATURA
Resumen
Los beneficios de la actividad física (AF) regular también han sido investigados en
contextos del trabajo. El objetivo de este artículo es revisar la literatura sobre las asociaciones
entre las prácticas de actividades físicas de ocio (AFL) y los trastornos musculoesqueléticos
(TME) relacionados con el trabajo. Fueron examinados artículos publicados en inglés desde
1999 hasta 2009 en la base de datos MEDLINE/PubMed y tres artículos publicados en portugués
en la base de datos Scielo-Brasil. Para la verificación de la calidad metodológica fueron usados
nueve criterios: objetivo, selección de la muestra, inclusión/exclusión, participación, instrumentos, recolecta de datos, estadísticas, puntos fuertes /débilles y conclusión. Fueron evaluados
quince artículos. Uno cumplió todos los criterios de calidad y dos, atendió a solo cuatro de
ellos. Seis utilizaron muestras al azar, los otros han usado el censo, o no reportaron la estrategia
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utilizada. Un estudio fue de caso-control, tres de cohorte prospectivo, y siete de sección
transversal. Seis artículos presentaron conclusiones relacionando la exposición con el resultado.
Una asociación negativa entre la AFL y la TME fue encontrada en tres estudios. Los otros no
fueron concluyentes o no describieron la asociación. Se concluye que la diversidad de elementos que componen las prácticas de la AF pueden haber contribuido para la inconsistencia de los
resultados.
Palabras-clave: Actividades de ocio. Ejercicio. Transtornos de traumas acumulados. Trabajadores.
INTRODUÇÃO
A ideia de que pessoas suficientemente ativas obtêm benefícios de saúde contra
doenças crônicas não-transmissíveis está bem definida na literatura. Esforços tem sido feitos para se
verificar benefícios também em relação a outras doenças, como os distúrbios musculoesqueléticos
(DME) relacionados ao trabalho.1,2
Em adição, o American College of Sports Medicine (ACSM) e a American Heart
Association (AHA) sugerem que as pessoas devem manter-se suficientemente ativas em
todos os momentos da vida, o que significa, para adultos saudáveis com idade entre 18 e 65
anos, a realização de AF aeróbias de intensidade moderada de 3,0 a 6,0 equivalentes
metabólicos (METs) por, pelo menos, 30 minutos diários (ou fracionamentos de 10 minutos),
em cinco ou mais dias da semana, ou de AF de intensidade vigorosa (acima de 6 METs) por,
pelo menos, 20 minutos diários em três ou mais dias por semana, sendo possível também
combinações entre as intensidade moderada e vigorosa que alcancem 450 a 750 METs em
acúmulo semanal.3 Tem-se como 1 MET a energia necessária para manutenção dos sistemas
corporais no estado de repouso, equivalente a 1 Kcal por quilograma de massa corporal por
hora – 1Kcal.Kg-1.h-1 ou o equivalente em oxigênio consumido na produção de energia para
o metabolismo, de 3,5 em mililitros de O2 por quilograma de peso corporal por minuto –
3,5mlO2. Kg-1.min-1.³
Outras formas de medida da atividade física (AF) consideram a duração (minutos), a
frequência (dias/semana) e a intensidade (moderada e vigorosa). Caracteriza-se a atividade de
intensidade moderada pelo esforço físico capaz de fazer o indivíduo respirar um pouco mais forte
que o normal, o que impõe ao coração um ritmo mais rápido que o apresentado no repouso. Para
a maioria das pessoas, essa atividade equivale a uma caminhada em passos rápidos ou qualquer
outra atividade que aumente o metabolismo por, pelo menos, três vezes em relação ao nível de
repouso. A atividade de intensidade vigorosa requer esforço físico maior, induzindo o indivíduo a
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respirar muito mais forte do que o normal, e o coração a bater muito mais rápido, elevando o
metabolismo em, pelo menos, seis vezes em relação aos níveis de repouso.4
Além da preocupação esboçada pelos órgãos de saúde pública de diversos países
frente a morbidades associadas a estilos de vida sedentários, estudo sobre a atividade física como
fator de qualidade de vida e saúde do trabalhador5 observou que, nas últimas décadas, o caráter
epidêmico que assumiram os DME no acometimento de trabalhadores em diversas partes do
mundo, independente do ramo de atividade e grau de desenvolvimento, também tem
preocupado essas instituições. Alguns autores sugerem que a elevada prevalência dos DME entre
os trabalhadores é decorrente de reestruturações nas formas de produção e novas tecnologias
adotadas, que tornaram as atividades ocupacionais, por vezes, sedentárias ou exigentes
excessivamente em relação às estruturas corporais.5,6
Neste sentido, este artigo apresenta uma breve revisão da literatura para estudos
epidemiológicos sobre associações entre as práticas de atividades físicas de lazer (AFL) e DME,
com ênfase para DME relacionados ao trabalho.
MÉTODOS
Foram considerados artigos publicados nos últimos 10 anos (janeiro de 1999 a
outubro de 2009) na base de dados MEDLINE/PubMed. Foram incluídos três artigos sobre o tema
de autores nacionais, no mesmo período de referência. Entre os tipos de estudo consideraram-se
os de corte transversal, caso-controle e coorte prospectiva, que tivessem utilizado populações de
trabalhadores na verificação de associações entre esportes, atividades/exercícios físicos em
momentos de lazer e DME relacionados ao trabalho. Constituíram o conjunto de palavras-chave os
seguintes termos: 1) Relacionados às atividades físicas – Leisure time, physical activity, sedentary
lifestyle, physical exercise, physical inactivity, exercise e physical capacity; 2) Relacionados às
morbidades musculoesqueléticas – work-related, musculoskeletal disorders, musculoskeletal pain,
musculoskeletal symptoms, musculoskeletal complaints, musculoskeletal pain, low back pain,
shoulder pain, neck pain, hip pain, work-related factors, work population, work activities, workers,
upper limb, sickness absenteeism e prevalence. Foram selecionados para leitura os resumos dos
artigos que contivessem em seus títulos termos integrantes dos grupos de palavras-chave “1” e
“2”. Os critérios de verificação da qualidade metodológica foram adaptados daqueles utilizados em
revisão sistemática sobre a efetividade de programas de AF no local de trabalho, em relação a
efeitos sobre a saúde decorrentes do trabalho.7 Foram adaptadas também as definições para
registro de atendimento aos critérios de qualidade, considerando-se qualidade “+” (mais) o artigo
que contemplasse na íntegra a descrição referente ao item em verificação, ficando as
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Revista Baiana
de Saúde Pública
categorizações “+/-” (mais ou menos) e “-” (menos) para o atendimento parcial e o não
atendimento, respectivamente. O termo “não se aplica” (NA) foi adotado para estudos que não
apresentavam compatibilidade com o item avaliado (ex.: estudo censitário e randomização da
amostra; inquérito realizado com o envio de questionário pelo correio e referência a treinamento
de entrevistadores etc.). (Quadro 1).
Quadro 1. Critérios de verificação da qualidade metodológica dos artigos selecionados
para a revisão da literatura
RESULTADOS
A pesquisa na base de dados identificou inicialmente um total de 54 publicações.
A leitura dos resumos indicou 23 artigos adequados a este estudo, que foram lidos na íntegra.
Doze artigos foram selecionados, perfazendo um total de 15 estudos para esta revisão. O
Quadro 2 apresenta as categorizações segundo cada item dos critérios de qualidade propostos.
Um artigo atendeu a todos os itens (n=9) de qualidade avaliados e três artigos tiveram o menor
escore de atendimento (n=4). Seis estudos referiram a aleatorização na seleção da amostra,
enquanto os demais foram censos ou fizeram parte de estudos de base populacional e não
explicitaram a estratégia de seleção da população de estudo. Doze estudos apresentaram boa
taxa de participação e 11 apresentaram conclusões claras sobre a associação entre a exposição e
o desfecho. Em relação aos desenhos de estudos utilizados, um (7%) foi de caso-controle, cinco
(33%) de coorte prospectiva e nove (60%) de corte transversal. Observaram-se resultados ou
conclusões que associavam negativamente as práticas de AFL à ocorrência de DME (seis estudos)
e AFL a menores taxas de absenteísmo por diversas causas, inclusive os DME (um estudo). Os
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demais estudos ou foram inconclusivos, ou não descreveram associação entre AFL e DME.
Observou-se também que as recomendações da ACSM/AHS quanto à prática de AF como forma
de promoção ou manutenção da saúde foi pouco referida, concentrando-se as opções para
escolha dos participantes entre práticas esportivas e outras formas de AFL sem especificá-las com
clareza. Verificaram-se ainda muitas variações em relação aos critérios de frequência e/ou
duração das atividades para definição das categorias relativas à prática de AFL. O sumário dos
estudos encontra-se apresentado no Quadro 3.
Quadro 2. Resultados de análise da qualidade metodológica dos artigos segundo critérios
estabelecidos
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Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos
de Saúde Pública
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(continua)
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Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos
(continuação)
Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos
de Saúde Pública
v.35, n.1, p.9-25
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(continuação)
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Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos
(continuação)
Quadro 3. Resumo dos estudos selecionados sobre atividades físicas de lazer e distúrbios músculo-esqueléticos
(conclusão)
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de Saúde Pública
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DISCUSSÃO
Esta revisão da literatura teve como objetivo verificar como as práticas de AF, aquelas
realizadas durante as horas de lazer, têm sido pesquisadas em populações de trabalhadores para se
verificar os potenciais efeitos contra a ocorrência de DME relacionados ao trabalho. Sete estudos
entre os quinze verificados concluíram que ser fisicamente ativo (exercícios físicos ou atividades
esportivas ou atividades de lazer) poderia ser uma estratégia de proteção contra morbidades
musculoesqueléticas nesse segmento da população. No entanto, oito estudos não encontraram
associação entre a exposição e o efeito descrito acima. Além disso, AF sob a forma de práticas
esportivas esteve presente na quase metade dos artigos, enquanto os demais as generalizaram
como atividades físicas e/ou atividades de lazer sem detalhamento.
Alguns autores referem que conquistas tecnológicas ocorridas nas últimas décadas
têm contribuído para a diminuição de níveis de AF das populações, tanto em frequência quanto
em intensidade,8,9 embora se observe que, no trabalho, essa situação seja ambígua, devido à
existência de modelos de produção que, ao mesmo tempo, apresentam características sedentárias
e exigem de forma demasiada de regiões específicas do corpo (ex.: trabalhos com digitação).
Uma característica marcante nos estudos foi que, ao considerarem as práticas de
AF, as Orientações sobre Atividade Física e Saúde3 MS foram utilizadas em apenas uma
oportunidade, na classificação de ativos, durante a avaliação de profissionais de enfermagem de
Hong Kong quanto ao surgimento de novas dores lombares em relação ao estresse e a
atividades no trabalho, juntamente com estilo de vida sedentário.10 Como um dos achados,
observou-se que a falta ou prática de AFL não se constituiu em preditor ou protetor,
respectivamente, para o desfecho avaliado.
A maior ênfase à prática de esportes coloca qualquer modelo de avaliação dentro de
amplas possibilidades de desfecho, pela diversidade de modalidades possíveis, inúmeros
movimentos e intensidades envolvidas. Além disso, algumas práticas esportivas, pelas próprias
características, oferecem riscos principalmente pela condição de não-atleta do trabalhador ou pela
falta de treinamento específico para a atividade.
Os achados desta revisão divergem entre si, pois, enquanto estudo sobre exercício
físico e dores musculoesqueléticas entre trabalhadores da indústria florestal2 e outro que trata do
início de dor como resultado de acúmulo no local de trabalho e como carga mecânica decorrente
das atividades de lazer9 consideraram as práticas desportivas fatores de risco para a ocorrência de
DME juntamente com fatores relacionados ao trabalho, a pesquisa sobre prevalência de atividade
física entre a população trabalhadora e sua correlação com fatores relacionados ao trabalho11 e o
estudo sobre doenças musculoesqueléticas, trabalho e estilo de vida entre trabalhadores de uma
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Revista Baiana
instituição pública de saúde12 foram pouco conclusivos em suas observações, ao considerarem que
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os trabalhadores mais propensos ao desenvolvimento de morbidades foram os menos disponíveis à
prática de esportes ou à prática de AF, ou que a prática de AF foi referida similarmente por doentes
e não doentes, respectivamente. Em contrapartida, estudo prospectivo sobre a atividade física no
tempo livre e absenteísmo por doença13 mesmo reconhecendo os possíveis riscos que a prática de
alguns esportes oferece, considerou que os benefícios obtidos com essas práticas refletiam-se no
trabalho por meio do registro de redução do absenteísmo por morbidades relacionadas ao trabalho.
Curiosamente, estudos que referiram a AF ou AFL ou EF sem detalhamento das modalidades
registraram associações positivas entre atividades físicas e uma menor ocorrência de DME
relacionados ao trabalho.14,15
Com frequência, as referências feitas às AF são decorrentes de práticas esportivas, o
que explica quase a metade dos estudos observados avaliarem este tipo de modalidade.
Adicionalmente, dentre as práticas esportivas, existem aquelas com características individualizadas,
como corrida, caminhada, natação, ciclismo etc.; atividades desenvolvidas por equipe que não
envolvem contato físico, como voleibol, remo, peteca etc.; e atividades por equipe que envolvem
contato físico, como futebol, basquetebol, polo aquático, que apresentam maiores riscos de
acidentes, o que deve ser considerado quando se tratar de desfechos que incluam essas
atividades, principalmente pelo fato de se tratarem de populações de não-atletas.
Tanto os estudos que foram especificamente desenvolvidos para avaliar associações
entre atividades físicas e DME, decorrentes do trabalho ou não, quanto aqueles realizados como
parte de estudos que tinham outra finalidade, não referiram a inclusão, em seus instrumentos de
coleta de dados, na íntegra ou em parte, de questionários especificamente desenvolvidos para
avaliação de níveis de AF em populações. Exceção seja feita ao estudo sobre lesões por esforços
repetitivos relacionados ao trabalho e lazer de atividade física,14 que utilizou, durante as
categorizações dos sujeitos em ativos ou inativos, a versão atualizada do Compêndio de Atividades
Físicas,16 que utiliza o MET para o cálculo da intensidade da AF. Esse compêndio traz referência a
605 atividades específicas, dentre estas: esportes, cuidados com a casa, cuidados pessoais,
trabalho, transporte, lazer, entre outros. Os valores obtidos são associados a níveis de AF, a
exemplo do proposto para classificação pelo International Physical Activity Questionnayre (IPAQ),
em que a caminhada corresponde a 3,3 METs, atividades de intensidade moderada, a 4,0 METs, e
atividades de intensidade vigorosa, a 8,0 METs. Compõe o cálculo final o tempo gasto nas
atividades e o número de dias de atividade na semana. Ressalte-se que informações deste tipo
possibilitam o cálculo de níveis de AF em todos os domínios de abrangência: trabalho, lazer,
cuidados com a casa e locomoção.17
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Questões metodológicas dessa natureza podem estar dificultando conclusões mais
claras em relação aos desfechos observados, a exemplo de pesquisa de revisão sistemática da
literatura, no período entre 1983 a 1994,1 ao estudar as relações entre momentos de lazer,
atividades físicas, sintomas musculoesqueléticos e incapacidade em populações de trabalhadores, e
estudo semelhante, avaliando os efeitos da efetividade de programas de atividade física no local de
trabalho, tendo ambos considerado inconclusivos os desfechos observados.7
Além disso, há de se observar que, para medidas de AF, existem mais de trinta
técnicas diferentes.18 A praticidade e viabilidade metodológica dos questionários em estudos
epidemiológicos é incontestável, porém a não observância de critérios que permitam elevar a
validade dos estudos, a exemplo de questões que forneçam informações que produzam resultados
comparáveis a padrões estabelecidos, torna as produções restritas em si e dificultam o avanço em
novas direções, principalmente pelo fato de estarem envolvidas dimensões que abrangem
duração, intensidade, frequência, tipo de atividade, local etc.19
Embora poucos trabalhos nesta direção tenham sido produzidos, principalmente no
Brasil, observa-se que as intenções permanecem para associar os efeitos positivos das práticas de
AF sobre morbidades relacionadas ao trabalho. Motivação, nesse sentido, parece pertinente,
considerando-se que os resultados apresentados pela maioria dos trabalhos sugerem haver alguma
ação positiva naqueles que praticam AF regularmente, sejam EF ou esportes, porém não suficiente
para tornar a associação com os DME relacionados ao trabalho fato incontestável. Não se pode
esquecer, entretanto, que questões relacionadas à individualidade biológica devem ser
consideradas sempre que possível, além de questões meramente matemáticas, como, por
exemplo: as gestões envolvendo o binômio trabalhador/trabalho devem emergir do local de
trabalho ou ser usadas como referência; e o aporte físico necessário ao trabalhador para
desempenho de suas funções deve ser visto como forma de manutenção da saúde geral, daí
pensar-se nos objetivos específicos, associando as necessidades do trabalhador concomitantemente
com melhorias nas condições de trabalho.
Conclui-se com a afirmação de que há muito a ser feito quando se trata de estudos
sobre possíveis benefícios das práticas de atividades físicas em relação aos DME relacionados ao
trabalho. O conhecimento adquirido quanto aos benefícios contra o surgimento de doenças
relacionadas ao estilo de vida sedentário, como obesidade, dislipidemia, hipertensão arterial,
diabetes de tipo 2, problemas cardiocirculatórios etc., parece não servir como parâmetro para
outras linhas de pesquisa, principalmente quando se trata de frequência, intensidade e duração das
práticas de atividades físicas, haja vista que apenas um estudo verificado fez menção à proposta da
OMS quanto à frequência mínima semanal de cinco dias e, no mínimo, 30 minutos por sessão de
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de Saúde Pública
atividades físicas de intensidade moderada. Os achados dos estudos mostraram-se, na maioria,
inconsistentes em suas conclusões, possivelmente devido à diversidade de itens que compõem a
exposição avaliada (atividades físicas, exercícios físicos, esportes). Sugere-se que os novos estudos
a serem desenvolvidos considerem, na caracterização da exposição, critérios que tornem
metodologicamente viável a comparações com outros estudos.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 08.04.2011
v.35, n.1, p.9-25
jan./mar. 2011
25
ARTIGO ORIGINAL
FATORES DA DIETA E TUMORES DE CÉREBROa
Glaura Freaza Luzb
Lauro Antonio Portoc
Marco Antônio Vasconcelos Rêgob
Resumo
As hipóteses sobre a associação entre fatores da dieta e tumores de cérebro
relacionam-se aos compostos N-nitroso como favorecedores do desenvolvimento desses tumores
e ao papel de antioxidantes dietéticos atuando como protetores, através da inibição da nitrosação
dos precursores dos compostos N-nitroso. O objetivo deste artigo é identificar fatores da dieta
associados aos tumores primários de cérebro em indivíduos adultos ( ≥ 20 anos). Trata-se de um
estudo caso-controle de base populacional, realizado na Região Metropolitana de Salvador, estado
da Bahia, Brasil. Foram realizadas análises de regressão logística para a estimativa das razões de
chances ajustadas e respectivos intervalos de confiança a 95%. Os resultados apontam uma
associação inversa para o maior consumo de laticínios (OR= 0,32; 95% IC: 0,13 – 0,80) e
vitamina C (OR= 0,34; 95% IC: 0,13 – 0,88) para todos os tumores de cérebro agrupados. Para os
tumores não-astrocíticos o maior consumo de refrigerantes (OR= 0,20; 95% IC: 0,06 – 0,63)
demonstrou efeito protetor. Conclui-se que os fatores da dieta podem atuar de forma diferente
entre os tumores de cérebro; o efeito protetor das vitaminas antioxidantes, especialmente a
vitamina C, sugere que o maior consumo de legumes e frutas pode diminuir o risco para o
desenvolvimento desses tumores.
Palavras-chave: Tumores de cérebro. Dieta. Compostos N-nitroso. Antioxidantes.
Epidemiologia nutricional.
a
FAPESB (Bolsa de Mestrado de LUZ, GF – Processo FAPESB nº BOL 0126/2008). CNPq - Edital MCT-CNPq 02/2006 (processo
473759/2006-6).
Mestra em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Medicina da Bahia, Programa de
Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho.
c
Professor adjunto do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da
b
Bahia, Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho.
Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia. Largo do Terreiro de Jesus,
s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia. CEP: 40026-010. [email protected]
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Revista Baiana
DIETARY FACTORS AND BRAIN TUMORS
de Saúde Pública
Abstract
The hypotheses about the association between dietary factors and brain tumors are
related to N-nitroso compounds as promoters of development of these tumors and the role of dietary
antioxidants acting as guards, through the inhibition of nitrosation of precursors of N-nitroso compounds.
The aim of this paper is to identify dietary factors associated with primary brain tumors in adults ( ≥ 20
years). This is a population-based case-control study conducted in the metropolitan area of Salvador,
Bahia, Brazil. Logistic regression estimated adjusted odds ratios and confidence intervals at 95%. The
results indicate an inverse association for the highest intake of dairy products (OR = 0.32, 95% CI:
0.13 - 0.80) and vitamin C (OR = 0.34, 95% CI: 0.13 to 0.88) for all grouped brain tumors. For nonastrocytic tumors, the highest consumption of soft drinks (OR = 0.20, 95% CI: 0.06 to 0.63)
demonstrated a protective effect. It was concluded that dietary factors may act differently among brain
tumors; the protective effect of antioxidant vitamins, especially vitamin C, suggests that a higher
consumption of vegetables and fruits can reduce the risk of developing these tumors.
Key words: Brain cancer. Diet. N-nitroso compounds. Antioxidants. Nutritional epidemiology.
FACTORES DIETÉTICOS Y LOS TUMORES CEREBRALES
Resumen
Las hipótesis sobre la asociación entre factores dietéticos y los tumores cerebrales
están relacionadas con los compuestos N-nitroso como promotores del desarrollo de estos tumores
y el papel de los antioxidantes dietéticos en calidad de protectores, a través de la inhibición de la
nitrosación de los precursores de compuestos N-nitroso. El objetivo de este artículo es identificar
los factores de la dieta asociados a los tumores primarios de cerebro en individuos adultos (≥ 20
años). Se trata de un estudio caso-control de base en la población, llevado a cabo en el área
metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Se analizaron análisis mediante regresión logística para
estimar razones de posibilidades ajustadas y los respectivos intervalos de confianza al 95%.
Los resultados indican una asociación inversa para el mayor consumo de productos lácteos
(OR = 0,32, IC 95%: 0,13 a 0,80) y vitamina C (OR = 0,34, IC 95%: 0,13 a 0,88) de todos
los tumores cerebrales agrupados. Para los tumores no Astrocíticos, el mayor consumo de
refrescos (OR = 0,20, IC 95%: 0,06 a 0,63) demostró un efecto protector. Se concluyó que
los factores dietéticos pueden actuar de forma diferente entre los tumores cerebrales; el
efecto protector de las vitaminas antioxidantes, especialmente vitamina C, sugiere que un
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mayor consumo de legumbres y frutas puede disminuir el riesgo de desarrollar estos tumores.
Palabras-clave: Tumores cerebrales. Dieta. Compuestos N-nitroso. Antioxidantes. Epidemiología
nutricional.
INTRODUÇÃO
Os tumores de cérebro são neoplasias raras, mas apresentam importância
epidemiológica devido à sua crescente incidência e elevada morbimortalidade.1,2 Parte desse
aumento tem sido associada à introdução e acesso a procedimentos de neuroimagem mais
precisos, como a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética. Os poucos
fatores de risco bem estabelecidos (exposição à radiação ionizante em doses terapêuticas,
mutações raras e história familiar) explicam apenas uma pequena proporção desses tumores.3
Outros fatores de risco têm sido investigados, mas os resultados são inconsistentes ou divergentes.
A associação entre fatores da dieta e tumores primários de cérebro em indivíduos
adultos ainda não é bem compreendida. A hipótese de que o consumo de compostos N-nitroso
(NOCs) e seus precursores, nitrito e nitrato, presentes na dieta humana, aumenta o risco desses
tumores tem sido investigada,4 estando relacionada com a capacidade que têm de formar adutos
pro-mutagênicos no ácido desoxirribonucleico (DNA).5,6 Também tem sido estudado o provável
efeito protetor dos antioxidantes da dieta, especialmente as vitaminas C e E, que inibem a
formação dos NOCs e dos carotenos, devido à sua ação antioxidante. Contudo, as evidências
epidemiológicas não têm sido consistentes.
No Brasil, os tumores de cérebro corresponderam a 3,4% do total de óbitos por
câncer em 1980, aumentando para 4,4% em 1998.2 Em 2006, as neoplasias do encéfalo e outras
partes do sistema nervoso central (SNC) foram a sétima causa de morte, com 6.418 ocorrências.7
Entretanto, há poucos estudos sobre os tumores de cérebro no Brasil, especialmente sobre sua
associação com os fatores da dieta.8 Considerando a relevância do tema e a escassez de estudos
nacionais, o objetivo deste estudo foi identificar fatores da dieta associados aos tumores primários
de cérebro em indivíduos adultos.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi desenvolvido um estudo caso-controle de base populacional na Região
Metropolitana de Salvador (RMS), no estado da Bahia, Brasil, que engloba 12 municípios.
Utilizou-se a mesma amostra do estudo que avaliou a exposição ocupacional a
solventes orgânicos e tumores de cérebro9 cujo cálculo foi baseado na revisão da literatura para a
OR esperada e na prevalência da exposição entre os controles, encontrada em estudo sobre os
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Revista Baiana
de Saúde Pública
linfomas não-Hodgkin e solventes orgânicos10 para a mesma região do estudo, resultando em uma
amostra de 137 casos, calculada de acordo com o proposto na literatura.11
Neste estudo, consideraram-se os casos incidentes de tumores primários de cérebro
em indivíduos com vinte anos ou mais de idade, diagnosticados nos anos de 2006 e 2007. Os
casos foram definidos de acordo com a Classificação Internacional das Doenças da Organização
Mundial da Saúde (CID – 10ª revisão), considerando-se os seguintes códigos: C70, C71, C72.2,
C72.5, C72.9, D32.0, D32.9, D33.0 a D33.3, D33.7, D33.9, D42.0, D43.0 a D43.3, que
agrupam os tumores primários benignos e malignos do encéfalo, meninges e nervos cranianos,
conforme classificação proposta em estudo sobre neoplasia do sistema nervoso;4 excluíram-se
apenas os tumores de medula espinhal, meninges espinhais e de nervo periférico. Todos os casos
foram confirmados por exame histopatológico e foram selecionados nos serviços de oncologia,
neurocirurgia, radiologia e anatomia patológica da área do estudo.
Os controles foram identificados nos mesmos serviços de diagnóstico dos casos,
sendo elegíveis os pacientes adultos (≥ 20 anos), residentes na mesma área geográfica dos casos.
Esses indivíduos realizaram ressonância nuclear magnética ou tomografia computadorizada de
crânio, no mesmo período que os casos, porém tiveram diagnósticos não relacionados aos tumores
primários ou secundários do SNC ou foram classificados como normais.
Para a coleta de dados referentes à alimentação, utilizou-se uma adaptação do
questionário de frequência alimentar (QFA).12 Utlilizaram-se os dados referentes ao diagnóstico
histopatológico e sociodemográficos da tese intitulada Exposição Ocupacional a Solventes Orgânicos
e Tumores de Cérebro.9
As entrevistas foram realizadas entre novembro de 2008 e novembro de 2009, por
seis estudantes do curso de graduação em Nutrição da Universidade Federal da Bahia,
previamente treinadas. Além disso, as primeiras coletas foram acompanhadas, para se proceder à
avaliação das dificuldades no campo. Os dados sobre o consumo alimentar foram coletados
conforme o roteiro recomendado pelos autores do questionário de frequência alimentar utilizado.12
Após a coleta, os questionários foram revisados e realizaram-se contatos telefônicos para a
complementação de dados.
Para as análises, a frequência de consumo da cada alimento foi convertida em
consumo diário em gramas. Em seguida, os alimentos foram reunidos em grupos (leite, iogurte e
queijos; apenas queijos; pães e biscoitos; gorduras; cereais, tubérculos e massas; frutas;
leguminosas; verduras e legumes; carnes; carnes processadas; carnes curadas; ovos; cerveja;
doces; café; e refrigerantes) dicotomizados pela mediana do consumo diário. O consumo diário de
calorias totais (Kcal/dia), vitamina A (equivalente de retinol/dia), vitamina E (mg/dia) e vitamina C
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(mg/dia) foi calculado com base na tabela de composição de alimentos.13 Também foi
dicotomizado pela mediana do consumo diário. As carnes curadas ou salgadas foram dicotomizadas
por “consumia” ou “não consumia”.
Utilizou-se a técnica de regressão logística pelo método backward-Wald 14 para todos
os tumores de cérebro agrupados e para os subgrupos de tumores astrocíticos e não-astrocíticos.
Para a pré-seleção das variáveis, utilizou-se um a= 25% e a análise de regressão logística foi feita
usando-se o método backward e α= 17%.
As análises foram ajustadas pelas covariáveis sexo, tabagismo, tipo de informante e
uso de suplemento vitamínico; no caso dos tumores agrupados, apenas a covariável tipo de
informante foi incluída no modelo (p = 0,01); para os tumores astrocíticos, incluíram-se as
covariáveis sexo (p= 0,17), tabagismo (p= 0,14), informante substituto (p= 0,001) e suplemento
vitamínico (p= 0,18); e para os tumores não-astrocíticos incluiu-se apenas sexo (p= 0,04). Todas
as análises foram realizadas no aplicativo SPSS (versão 11.5).
O estudo foi desenvolvido após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do
Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, Parecer nº 052-07/ CEP-ICS, e cada
entrevista foi realizada após a leitura, explicações e assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido para cada participante.
RESULTADOS
Foram identificados 164 indivíduos com diagnóstico anátomo-patológico de tumor
primário de cérebro. Desses, 97 foram excluídos pelos seguintes motivos: 75 não foram
localizados, 5 recusaram a participação, 12 não residiam na região do estudo e 5 por
apresentarem recidiva de anos anteriores ao período estudado, restando 67 indivíduos. Destes,
18 não foram entrevistados por não ter sido possível viabilizar uma data para sua realização, após
sucessivos contatos.
Foram avaliados 107 indivíduos, sendo 49 casos (19 astrocíticos e 30 não-astrocíticos)
e 58 controles. A distribuição por sexo, média de idade, escolaridade, média da renda mensal, tipo
de renda, cor da pele, proporção e tipo de respondente-substituto é apresentada na Tabela 1.
Observou-se diferença estatisticamente significante apenas na proporção de respondente
substituto e tipo de respondente substituto. A duração média da entrevista foi de 54,9 minutos
para os casos (DP= 25,39) e 35,5 para os controles (DP= 93,26).
A Tabela 2 apresenta a distribuição dos casos conforme o diagnóstico
histopatológico dos tumores. Entre os homens predominaram os tumores astrocíticos (61,9%) e
30
Revista Baiana
de Saúde Pública
entre as mulheres houve maior proporção dos tumores não-astrocíticos (78,6%). Destes, o
principal tipo histológico correspondeu aos meningiomas, que representaram 60,7%.
Tabela 1. Distribuição dos indivíduos caso e controle, de acordo com variáveis
sociodemográficas – Salvador, Bahia – 2006-2007
Tabela 2. Distribuição dos indivíduos com tumor de cérebro, de acordo com o diagnóstico
histopatológico e com o sexo – Salvador, Bahia – 2006-2007
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31
O consumo de carne do sol foi inversamente associado ao desenvolvimento dos
tumores astrocíticos [OR= 0,30; 95%IC 0,09-0,94] (Tabela 3), contudo essa associação não se
manteve na análise multivariada (Tabela 5).
Tabela 3. Odds ratio bruta para tumores de cérebro e consumo de carnes curadas/salgadas
e cerveja – Salvador, Bahia – 2006-2007
O consumo mais elevado de laticínios e de refrigerantes, nas análises brutas,
apresentou-se como fator de proteção para todos os tumores agrupados (OR= 0,45; 95% IC:
0,21-0,97) e (OR= 0,38; 95% IC: 0,17-0,83), respectivamente (Tabela 4). Após o ajuste por
informante substituto, o maior consumo de laticínios e de vitamina C reduziu o risco de todos os
tumores agrupados (OR= 0,32; 95% IC: 0,13–0,80) e (OR= 0,34; 95%IC: 0,13–0,88),
respectivamente (Tabela 5).
O maior consumo da vitamina A (OR= 0,35; 95% IC 0,14-0,89) foi inversamente
associado ao desenvolvimento dos tumores não-astrocíticos (Tabela 4). Mas, na regressão logística
multivariada, essa associação não se manteve e o consumo mais elevado de refrigerantes (OR=
0,20; 95%IC 0,06–0,63) apresentou efeito protetor (Tabela 5).
32
Tabela 4. Odds ratio bruto para tumores de cérebro, grupos de alimentos, calorias e vitaminas, dicotomizados pela mediana do
consumo – Salvador, Bahia – 2006-2007
de Saúde Pública
v.35, n.1, p.26-41
jan./mar. 2011
(continua)
Revista Baiana
33
34
Tabela 4. Odds ratio bruto para tumores de cérebro, grupos de alimentos, calorias e vitaminas, dicotomizados pela mediana do
consumo – Salvador, Bahia – 2006-2007
(continuação)
Tabela 4. Odds ratio bruto para tumores de cérebro, grupos de alimentos, calorias e vitaminas, dicotomizados pela mediana do
consumo – Salvador, Bahia – 2006-2007
de Saúde Pública
v.35, n.1, p.26-41
jan./mar. 2011
(conclusão)
Revista Baiana
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Tabela 5. Associação entre tumores de cérebro e fatores da dieta – Salvador, Bahia – 2006-2007
Revista Baiana
DISCUSSÃO
de Saúde Pública
O efeito protetor dos laticínios pode resultar do seu conteúdo de cálcio, aspecto
descrito em estudo16 que relata que o cálcio foi inversamente relacionado ao risco de tumores
cerebrais (OR= 0,25 para o maior quartil).
Cinco estudos avaliaram a relação entre tumores de cérebro e o consumo de
vitamina C da dieta,18-21 mas em apenas um estudo22 os resultados foram estatisticamente
significantes (OR=0,70; 95%IC: 0,51 – 0,94) para duas séries de estudos combinadas. A
vitamina C pode inibir a formação endógena de NOCs6,23 porque reage mais rápido do que a
amina com o agente de nitrosação, o que justifica seu efeito protetor contra os tumores de
cérebro.
Estudos prévios têm examinado o efeito de carnes curadas sobre o risco de tumores
cerebrais em adultos, considerando a hipótese de que os NOCs adicionados como conservantes
ou formados endogenamente com base em seus precursores, nitratos e nitritos, têm sido um dos
mais proeminentes fatores de risco ambientais pela indução de tumores após a conversão
metabólica em intermediários que reagem com várias macromoléculas celulares,19 mas os
resultados são divergentes.15,21,24
O pequeno tamanho da amostra deste estudo provavelmente não possibilitou a
adequada avaliação dessa associação. Além disso, o efeito do consumo de carnes processadas
sobre os tumores de cérebro pode ter sido modificado pela ingestão das vitaminas C e E, através
da inibição da síntese endógena dos NOCs no estômago.6
Poucos estudos avaliaram a relação entre o consumo da vitamina A e os tumores de
cérebro e apresentaram resultados discordantes. Os carotenóides (α-caroteno e β-caroteno)
reduziram em 50% o risco para o desenvolvimento de gliomas, um tipo de tumor astrocítico.19 A
ingestão de retinol aumentou o risco de gliomas, contudo não foi encontrada associação com o
consumo de β-caroteno entre homens; entre as mulheres, houve uma associação com a redução
do risco para o tercil de maior consumo.20 Outro estudo encontrou uma associação inversa e não
significante entre β-caroteno e o risco de câncer de cérebro.16
As principais fontes alimentares das vitaminas antioxidantes que apresentaram efeito
protetor contra os tumores de cérebro são as frutas, legumes e verduras. Isso indica que o
aumento do consumo desses grupos de alimentos, como tem sido recomendado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS), que preconiza um consumo regular de no mínimo 400g/dia,25 deve ser
estimulado para prevenir o desenvolvimento desses tumores.
Efeito protetor para todos os níveis de consumo de refrigerantes de cola foi
encontrado em estudo sobre fatores dietéticos e o risco de glioma em adultos.20 Entretanto, não há
v.35, n.1, p.26-41
jan./mar. 2011
37
uma explicação biologicamente plausível que relacione o consumo de refrigerantes com a redução
do risco de tumores cerebrais. Assim, esses resultados devem ser vistos com cautela.
Esse tipo de estudo, inserido no campo da epidemiologia nutricional, envolve uma
série de limitações quanto à correta classificação da exposição, incluindo aspectos como dose, tempo
e duração da exposição e o momento em que o consumo de alimentos deve ser mensurado
considerando o período de indução do câncer. Recomenda-se avaliar o consumo referente ao ano
anterior ao diagnóstico, mas registra-se uma avaliação em que o período de referência relevante varia
em função da fisiologia ou da fisiopatologia do problema e do metabolismo do fator dietético
estudado, acrescido da consideração de que alguns nutrientes apresentam meia-vida longa e, assim,
para estudos caso-controle sobre câncer, o período pode ser de cinco anos.26
O questionário de frequência alimentar utilizado apresenta uma definição clara da
frequência de consumo para cada alimento e porções bem definidas em porcentis de consumo; há
ainda um registro fotográfico da quase totalidade dos alimentos, o que contribui para minimizar o
viés de memória, que é relevante em estudos caso-controle.
É importante notar que existe uma grande variedade de substâncias ativas nos
alimentos com diferenciados mecanismos de ação e de interação entre si e com outros fatores
endógenos e exógenos que podem limitar a validade dos achados. Outros fatores de risco, como
suscetibilidade genética, exposição à radiação ionizante, radiação não-ionizante, solventes
orgânicos e o uso de tintura de cabelo, que não foram avaliados neste estudo, podem estar
atuando como fatores de confundimento. Além disso, os alimentos podem ser contaminados com
produtos químicos, dentre eles os agrotóxicos.
Os tumores primários de cérebro são caracterizados por notável variação na história
natural e diferenças em seu comportamento biológico. Isso implica a existência de diferenças a
nível genético e celular, com possíveis etiologias distintas com base no tecido de origem, indicando
que a divisão em tumores astrocíticos e não-astrocíticos pode não ser suficiente para avaliar
adequadamente a associação com os fatores da dieta. Além das limitações apontadas acima, o
pequeno número de pacientes envolvidos no estudo sugere que os resultados devem ser vistos
com cautela.
Concluiu-se que o efeito protetor das vitaminas antioxidantes, especialmente o
ácido ascórbico, sugere que o maior consumo de legumes e frutas pode diminuir o risco para o
desenvolvimento dos tumores de cérebro, evidenciando a importância de se implementar
estratégias para a promoção da alimentação saudável.
Apesar das limitações, os resultados deste estudo indicam que os fatores da dieta
podem atuar de forma diferente nos vários tipos de tumores de cérebro; contudo, são necessários
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Revista Baiana
de Saúde Pública
estudos com maior poder estatístico para avaliar a complexidade biológica das interações entre
nutrientes e não-nutrientes presentes nos alimentos e outros fatores ambientais, que possibilitem
melhor compreensão do papel da alimentação na etiologia desses tumores.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 12.04.2011
v.35, n.1, p.26-41
jan./mar. 2011
41
ARTIGO ORIGINAL
FATORES OCUPACIONAIS ASSOCIADOS À DOR MUSCULOESQUELÉTICA EM
PROFESSORES
Isadora de Queiroz Batista Ribeiroa
Tânia Maria de Araújob
Fernando Martins Carvalhoc
Lauro Antonio Portoc
Eduardo José Farias Borges dos Reisc
Resumo
Objetivou-se identificar fatores ocupacionais associados à dor musculoesquelética
em professores. Realizou-se estudo de corte transversal, censitário, com professores da rede
municipal de ensino fundamental de Salvador, Bahia. Foram avaliadas características do trabalho
docente, ambiente laboral e dor musculoesquelética em membros inferiores, superiores e costas/
coluna. Foram estudados 4.495 professores. A prevalência de dor musculoesquelética foi de
41,1% em membros inferiores, 41,1% em costas/coluna e 23,7% em membros superiores.
Estavam associadas à dor musculoesquelética, após ajuste por idade e sexo, em membros
inferiores: ensinar em turma única, trabalhar em mais de uma escola, não possuir outra atividade
remunerada além da docente e muito esforço físico no trabalho; em membros superiores: não
possuir liberdade para tomar decisões, número médio de alunos ≥ 30 e muito esforço físico no
trabalho; em costas/coluna: número de turnos trabalhado ≥ 2, ensinar em turma única, carga
horária ≥ 40 horas e muito esforço físico no trabalho. Muito esforço físico no trabalho esteve
associado à dor musculoesquelética nas três regiões corporais estudadas. Os achados apontam a
necessidade de mudanças nas características e condições do ambiente de trabalho docente, para
prevenir ou reduzir a ocorrência de sintomas musculoesqueléticos.
Palavras-chave: Dor musculoesquelética. Ensino. Exposição ocupacional. Saúde do trabalhador. Dor.
a
b
c
Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected]
Núcleo de Epidemiologia, Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana (UESF). [email protected]
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected]
Endereço para correspondência: Rua Doutor Augusto Lopes Ponte, no 455 B, ed. Pacífico, apart. 103, Costa Azul, Salvador,
Bahia, Brasil. CEP: 41760-035. [email protected]
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Revista Baiana
de Saúde Pública
OCCUPATIONAL FACTORS ASSOCIATED TO MUSCULOSKELETAL PAIN AMONG
TEACHERS
Abstract
This study aims to identify factors associated to occupational musculoskeletal pain in
teachers, in the context of a cross sectional epidemiological study comprising all 4.495 teachers in
the public basic education network from Salvador City, Brazil. The dependent variable was
musculoskeletal pain in three body segments (lower limbs, upper limbs and back). Musculoskeletal
pain was studied according to sociodemographic, workplace and teachers’ work organization
characteristics. Logistic regression was performed to examine the association between pain and
musculoskeletal features of teaching. The prevalence of musculoskeletal pain was 41.1% in the
lower limbs, 41.1% in back and 23.7% in the upper limbs. The prevalence of musculoskeletal pain
was strongly associated with several variables, after adjusting for age and sex: in the lower limbs:
teaching only one class, working at more than one school, having no other productive activity
besides teaching and excessive physical effort at work; in the upper limbs: no freedom to make
decisions at work, more than ≥ 30 students in the classroom and excessive physical effort at work;
and in the back: working ≥ 2 or more shifts, teaching only one class, weekly work burden ≥ 40
hours and excessive physical effort at work. Excessive physical effort at work was the only variable
that was associated with musculoskeletal pain, in the three body segments investigated. These
findings point out the need for changes in environmental characteristics and in the conditions of
teachers’ work in order to prevent the occurrence of musculoskeletal symptoms.
Key words: Musculoskeletal pain. Teaching. Occupational exposure. Occupational health. Pain.
FACTORES DE TRABAJO ASOCIADOS AL DOLOR MUSCULOESQUELÉTICO ENTRE
PROFESORES
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo identificar los factores laborales asociados con el
dolor musculoesquelético en profesores. Se realizó un estudio de corte transversal, censal, con
los profesores de la red municipal de enseñanza primaria en Salvador, Bahia. Fueron evaluadas las
características del trabajo docente, el ambiente de trabajo y el dolor musculoesquelético en
extremidades inferiores, superiores y espalda/columna vertebral. Se estudió a 4.495 profesores.
La prevalencia de dolor fue del 41,1% en los miembros inferiores, 41,1% en la espalda/columna
vertebral y el 23,7% en las extremidades superiores. Estaban asociadas a dolor musculoesquelético,
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después de ajustar por edad y sexo, en los miembros inferiores: la enseñanza a un único grupo, el
trabajo en más de una escuela, no tener otra actividad remunerada que no sea la docente y
mucho esfuerzo físico en el trabajo; en las extremidades superiores: no tener libertad para tomar
decisiones, número promedio de alumnos ≥ 30 y esfuerzo físico excesivo en el trabajo; en la
espalda/columna: número de turnos trabajado ≥ 2, sólo enseñar a un grupo, carga horaria ≥ 40
horas y esfuerzo físico excesivo en el trabajo. Mucho esfuerzo físico en el trabajo estuvo asociado
al dolor mussculoesquelético en las tres regiones corporales estudiadas. Los resultados destacan la
necesidad de cambios en las características y las condiciones del ambiente de trabajo docente
para prevenir o reducir la aparición de los síntomas musculoesqueléticos.
Palabras-clave: Dolor musculoesquelético. Enseñanza. Exposición ocupacional. Salud del trabajador.
Dolor.
INTRODUÇÃO
Dor musculoesquelética é um importante problema de saúde pública. Atinge um
contingente significativo de indivíduos em diversos grupos ocupacionais e produz elevados custos
sociais e econômicos. Estes custos, associados aos impactos negativos sobre a qualidade de vida,
têm impulsionado o interesse de pesquisadores e gestores no dimensionamento mais preciso do
problema e na análise dos fatores, em especial os ocupacionais, relacionados à sua ocorrência.1
A dor musculoesquelética (DME) pode ser definida como um desconforto
envolvendo músculos, ossos, articulações, tendões, ligamentos, bursas, fáscias musculares, tecido
conjuntivo, cartilagens e aponeuroses.2 As doenças do sistema musculoesquelético são as causas
mais frequentes de dor e podem levar à incapacidade ou limitação das atividades diárias.1,3 As
estatísticas do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) mostram aumento da concessão de
benefícios por Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). Segundo os dados
disponíveis, esses distúrbios respondem por mais de 80% dos diagnósticos que resultaram em
concessão de auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez pela Previdência Social em 2001.3
Evidências da relevância da DME entre os professores são largamente descritas na
literatura.4-7 Um estudo com 212 professores de uma cidade do interior do Estado de São Paulo5
registrou prevalência de 90,4% de queixa de sintomas osteomusculares em alguma região do
corpo nos últimos doze meses anteriores ao estudo, com ocorrência maior dos sintomas
osteomusculares na região lombar (63,1%), torácica (62,4%), cervical (59,2%), ombros (58,0%) e
punhos e mãos (43,9%). Dor nos últimos sete dias anteriores ao estudo foi referida por 64,3% dos
professores, com destaque para dor em ombros (29,9%), cervical (28,7%), lombar (27,4%),
torácica (27,4%) e punhos e mãos (14,6%).5
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Revista Baiana
de Saúde Pública
Professores da rede particular de ensino básico de Vitória da Conquista na Bahia6
referiram elevada prevalência de dor musculoesquelética em braços e ombros (52,1%), costas
(51,4%) e pernas (47,5%).
Estudo com 383 trabalhadores chineses,7 incluindo professores, utilizando entrevista
e exame físico, evidenciou prevalência de 40% de dor lombar, associada a posturas inadequadas
adotadas no trabalho.
Problemas associados à postura corporal destacaram-se entre os sintomas e queixas
mais referidos por docentes de uma universidade pública da Bahia.8 Entre os entrevistados, as
queixas de DME mais frequentes foram dor nas costas (30,8%), dor nas pernas (28,3%) e dor nos
braços (16,7%).
Diversos fatores ocupacionais estão associados aos agravos ao sistema
musculoesquelético dos docentes, tais como: longa duração de tempo da aula em pé;
carregamento de materiais didáticos; mobiliário escolar inadequado; tempo longo na posição
sentada, correção de provas e exercícios; movimentos inadequados realizados durante as aulas,
entre eles, flexão de tronco e flexão da coluna cervical para correção de tarefas e
acompanhamento individual dos alunos, elevação de membros superiores e extensão da coluna
cervical para escrever no quadro negro; elevada carga horária de aulas semanais; grande número
de turmas; elevado número de alunos por turma e tempo insuficiente para repouso.5,9-12
Estudos sobre trabalho docente e saúde são relevantes, uma vez que os professores
compõem contingente significativo de trabalhadores em todo o mundo. Em 2002, o censo escolar
estimou 2,4 milhões de docentes, no Brasil, da pré-escola ao nível médio. Segundo dados da
Sinopse Estatística do Professor, produzida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP),13 o estado da Bahia tinha, em 2007, 145.084 docentes na
educação básica (incluindo educação infantil, ensino fundamental e ensino médio), na rede pública
e particular de ensino. A Bahia ocupava o terceiro lugar no ranking nacional com relação ao
número de docentes no país, ficando atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais.13 Assim, a análise
das condições de saúde e de trabalho desse grupo ocupacional pode ter amplo alcance,
contribuindo para a proteção da saúde de um contingente significativo de trabalhadores. O estudo
dos fatores ocupacionais associados aos sintomas musculoesqueléticos em professores poderá
contribuir para intervenções mais adequadas no ambiente escolar e no trabalho docente,
reduzindo e controlando a ocorrência desses agravos.
Este estudo objetivou identificar fatores ocupacionais associados à dor
musculoesquelética em professores, nas regiões de membros inferiores e superiores e costas/
coluna.
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MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se um estudo epidemiológico de corte transversal. Os dados analisados
foram obtidos mediante um inquérito de caráter censitário dos professores da rede municipal de
ensino de Salvador, com todos os tipos de vínculo de trabalho. A rede municipal de ensino abrange
a educação infantil (pré-escola), ensino fundamental I (1ª a 4ª série) e ensino fundamental II (5ª a
9ª série), totalizando 365 escolas e 4.697 professores(as).
Para a coleta de dados, foi utilizado um questionário estruturado composto dos seguintes
blocos de questões: informações gerais, informações sobre o trabalho na rede municipal de Salvador
(incluindo as condições do ambiente de trabalho na escola, características do trabalho docente), saúde
física (morbidade referida e diagnósticos médicos prévios), saúde mental, alterações vocais e problemas
de saúde. O questionário foi respondido durante o processo de recadastramento dos professores da
rede municipal de ensino de Salvador realizado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura
(SMEC). Na coleta de dados, realizada pela SMEC, foi entregue ao professor um envelope contendo a
ficha de recadastramento e o questionário da pesquisa, além de uma carta do Secretário de Educação e
Cultura, informando que a participação do docente era de caráter voluntário. O questionário
preenchido foi entregue à equipe da SMEC pelo professor em envelope lacrado e não identificado. O
banco de dados gerado nesse inquérito foi disponibilizado para este estudo.
No bloco de avaliação dos problemas de saúde, foram listadas as principais queixas
de doenças descritas na literatura, incluindo aquelas de origem musculoesqueléticas. As queixas
foram avaliadas segundo a sua frequência, utilizando-se uma escala tipo Likert que variou de 0 a 4:
0 (não sente), 1 (raramente sente), 2 (sente com pouca frequência), 3 (sente frequentemente) a 4
(sente muito frequentemente).
Neste estudo, a variável dependente, dor musculoesquelética, foi avaliada em três
regiões corporais: membros inferiores (dor nas pernas), membros superiores (dor nos braços) e
costas/coluna. Considerou-se como presença de dor musculoesquelética quando o professor
referiu dor “frequente” ou “muito frequente”. A ausência de DME foi considerada na situação de
não sentir dor, sentir raramente ou pouco frequentemente.
As características do trabalho docente avaliadas foram:
a) variáveis intensificadoras do trabalho: tempo de trabalho como professor (em
anos), nível das turmas (educação infantil, fundamental ou educação infantil e ensino
fundamental), número de turmas em que ensinava (1 turma, 2 turmas ou mais), número de
turnos em que ensinava (1 turno, 2 ou mais turnos), número médio de alunos por turma (até 30
alunos ou mais de 30 alunos), carga horária total de trabalho na rede municipal e fora da rede
(horas/semana), trabalho em outra escola da rede municipal ou fora da rede (sim ou não),
46
Revista Baiana
de Saúde Pública
possuir outra atividade remunerada além da docente (sim ou não), escola próxima ou no mesmo
bairro da residência (sim ou não);
b) variáveis intensificadoras da carga física do trabalho: mobiliário (adequado ou
inadequado), local específico para descanso (sim ou não), intervalo entre aulas suficiente para
descanso (sim ou não), muito esforço físico no trabalho (sim ou não);
c) variáveis da organização do trabalho: pressão da direção da escola (sim ou não),
tempo suficiente para realização das tarefas (sim ou não), possibilidade de tomar decisões no
trabalho (sim ou não) e pouca liberdade para decidir como fazer o próprio trabalho (sim ou não).
Para análise dos dados, usou-se o programa Statistical Package for the Social Sciences
(SPSS), versão 11.0.
Após as análises estatísticas descritivas e bivariadas, foi conduzida análise de regressão
logística múltipla. Desenvolveu-se a análise multivariada separadamente para a dor nos membros
inferiores, dor nos membros superiores e dor nas costas/coluna. O procedimento adotado foi a
pré-seleção de variáveis independentes, sendo incluídas as variáveis ocupacionais associadas
estatisticamente à DME na análise de regressão logística univariada, no nível de p ≤ 0,25. A
observação da plausibilidade biológica entre a exposição e o efeito, baseada na literatura, também foi
considerada nessa pré-seleção.
O método de seleção de variáveis para compor o modelo de análise multivariada foi
o de trás para frente (backward). Desta forma, as variáveis independentes pré-selecionadas foram
incluídas na análise de regressão logística, ajustadas por sexo e idade, sendo retiradas, uma a uma,
até que o modelo estivesse composto apenas por variáveis com valor de p ≤ 0,05.
As variáveis ocupacionais pré-selecionadas e testadas na análise de regressão
logística propriamente dita para a dor nos membros inferiores foram: número de turmas, carga
horária semanal, local para descanso entre aulas, muito esforço físico no trabalho, pressão da
direção da escola, tempo suficiente para realizar as tarefas, possibilidade de tomar decisões no
trabalho e pouca liberdade para decidir como fazer o próprio trabalho.
As variáveis pré-selecionadas para dor nos membros superiores foram: turno de
trabalho, número de alunos, carga horária semanal, trabalho em outra escola, escola próxima ou no
mesmo bairro da residência, local para descanso entre aulas, intervalo suficiente para descanso
entre aulas, muito esforço físico no trabalho, tempo suficiente para realizar as tarefas e
possibilidade de tomar decisões no trabalho.
As variáveis pré-selecionadas para a dor nas costas/coluna foram: número de turnos,
número de alunos, carga horária semanal, trabalho em outra escola, escola próxima ou no mesmo
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bairro da residência, local para descanso entre aulas, intervalo entre aulas suficiente para descanso,
muito esforço físico no trabalho, pressão da direção da escola, tempo suficiente para realizar as
tarefas e possibilidade de tomar decisões no trabalho.
Nos três modelos testados na análise de regressão logística para os desfechos de
interesse, optou-se pela manutenção das variáveis sexo e idade em função da relevância apontada
na literatura1,5 para dor musculoesquelética. Assim, os resultados finais obtidos foram ajustados por
sexo e idade.
Em função da elevada prevalência dos efeitos estudados (acima de 20%), foram
estimadas as razões de prevalência, com base nos resultados gerados na análise de regressão
logística, e calculados os seus respectivos intervalos de 95% de confiança, utilizando-se o método
Delta.14 A análise foi feita com o uso do software R.
O presente estudo seguiu as recomendações da Resolução no 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde, sendo assegurado o sigilo dos dados fornecidos e o uso das informações
exclusivamente para atender aos objetivos da pesquisa. O projeto de pesquisa obteve parecer
favorável do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Maternidade Climério de
Oliveira da Universidade Federal da Bahia com Parecer/Resolução n.º 83/2007.
RESULTADOS
Foram estudados 4.495 professores dos 4.697 docentes da rede (proporção de
participação de 95,14%). As mulheres representaram a maioria da população estudada (92,0%);
47,9% tinham 40 anos ou mais de idade, variando de 18 a 69 anos, a média de idade foi
40,05±9,4 anos; 80,8% dos professores declararam a sua cor/raça como preta ou parda; 80,3%
possuíam nível superior completo ou incompleto; 47,3% eram casados; 64% possuíam filhos;
destes, 40,4% tinham apenas um filho.
As características das variáveis intensificadoras do trabalho docente nesta população
são descritas a seguir. O tempo de trabalho como professor variou de 1 a 45 anos, média de
14±8,4 anos. A modalidade de ensino predominante foi a Fundamental I, da 1ª a 4ª séries
(83,1%). A média de turmas por professor foi de 2,1±1,7, com turmas, em média, de 31,6 ±5,8
alunos por sala de aula. Um percentual de 53,6% dos professores ensinava em dois ou mais turnos
e 57,7% trabalhavam ≥ 40 horas semanais. Trabalhavam em mais de uma escola 46,1% dos
professores e 11,2% possuíam outra atividade remunerada, além da docência. Dos entrevistados,
59,8% referiram dificuldade de acesso à escola.
A análise das características intensificadoras da carga física do trabalho mostrou que
41,2% dos professores consideravam o mobiliário inadequado; 70,9% responderam não possuir
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Revista Baiana
de Saúde Pública
local específico para descanso e 66,6% relataram que o tempo nos intervalos das aulas não era
suficiente para o descanso. Percentual significativo dos docentes (44%) considerava que o trabalho
exigia muito esforço físico (Tabela 1).
Tabela 1. Variáveis intensificadoras da carga física do trabalho dos professores da rede
municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006
Pressão da direção da escola foi referida por 19% dos docentes; 55,5% relataram
não ter tempo suficiente para realizar as tarefas; 46% responderam que o trabalho não permitia
tomar decisões por sua própria conta; e 18% referiram ter pouca liberdade para decidir como fazer
o seu trabalho (Tabela 2).
Entre os professores entrevistados, 55% afirmaram sentir, frequente ou muito
frequentemente, dor musculoesquelética em alguma das três regiões do corpo estudadas. A
prevalência de dor musculoesquelética foi de 41,1% para membros inferiores, 41,1% para costas/
coluna e 23,7% para os membros superiores.
A análise bivariada da ocorrência de dor musculoesquelética segundo variáveis
intensificadoras do trabalho (características gerais do trabalho) evidenciou que tempo de trabalho
maior do que 14 anos, turma única e não ter outra atividade remunerada, além da docente, e
trabalhar em mais de uma escola estavam estatisticamente associadas à dor em membros
inferiores (Tabela 3). Estavam associados à dor nos membros superiores: tempo de trabalho maior
do que 14 anos, número elevado de alunos por turma (> 30) e a docência ser a única atividade
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remunerada. Para dor nas costas/coluna, as seguintes variáveis foram estatisticamente relevantes:
ter turma única, trabalhar em dois ou mais turnos, carga horária semanal de 40 horas e não ter
outra atividade remunerada, além da docência.
Tabela 2. Variáveis da organização do trabalho dos professores da rede municipal de ensino
– Salvador, Bahia, Brasil – 2006
Entre as variáveis intensificadoras da carga física no trabalho, na análise bivariada,
observou-se associação de dor musculoesquelética com muito esforço físico no trabalho nas três
regiões corporais estudadas, mobiliário inadequado (membros superiores e costas/coluna), não
possuir local específico para descanso (membros inferiores e coluna). (Tabela 4). A prevalência de
dor musculoesquelética, para as três regiões estudadas, associou-se estatisticamente a ser mulher e
ter idade ≥ 40 anos.
Entre as variáveis da organização do trabalho, observou-se associação entre DME e
não possuir liberdade para tomar decisões no trabalho para os membros superiores (Tabela 5). As
demais variáveis investigadas não estavam estatisticamente associadas às DME estudadas.
Na análise de regressão logística múltipla, foram obtidos os seguinte resultados:
• Dor nos membros inferiores. O modelo selecionado incluiu as seguintes
variáveis: ter turma única, trabalhar em mais de uma escola, não possuir outra atividade
remunerada e exigência de muito esforço físico no trabalho (Tabela 6). Os professores que
consideraram que o seu trabalho exigia muito esforço físico apresentaram prevalência 1,5
vezes maior de dor nos membros inferiores quando comparados com os professores que não
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Revista Baiana
de Saúde Pública
referiam esforço físico. Cabe destacar, para a variável “número de turmas em que ensinava”,
que os achados revelaram associação negativa, ou seja, a prevalência de dor
musculoesquelética foi menor entre os professores que ensinavam em duas ou mais turmas.
Situação similar foi observada para a variável possuir outra atividade remunerada além da
docente: a prevalência de dor musculoesquelética foi menor entre os professores que
exerciam outra atividade remunerada.
Tabela 3. Prevalência, razões de prevalência e respectivos intervalos de confiança de 95%
de dor musculoesquelética em membros inferiores, membros superiores e costas/coluna
segundo características intensificadoras do trabalho em professores da rede municipal de
ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006
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Tabela 4. Razões de prevalência e respectivos intervalos de confiança obtidos por análise
bivariada, para dor musculoesquelética em membros inferiores, membros superiores e
costas/coluna, segundo características intensificadoras da carga física no trabalho, sexo e
idade em professores da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006
• Dor nos membros superiores. As variáveis ocupacionais estatisticamente
associadas à dor nos membros superiores foram: número de alunos em sala de aula ≥ 30, não
possuir liberdade para tomar decisões no trabalho, considerar que o trabalho exigia muito esforço
físico (Tabela 6). Os professores que consideraram que o seu trabalho exigia muito esforço físico
apresentaram prevalência de 1,4 vez maior de dor nos membros superiores quando comparados
com os que não relataram muito esforço físico no trabalho. Ter turma com mais de 30 alunos
elevou em 19% a dor em membros superiores quando comparado a quem tinha menos de 30
alunos por turma.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
Tabela 5. Prevalência, razões de prevalência e respectivos intervalos de confiança obtidos
por análise bivariada, para dor musculoesquelética em membros inferiores, membros
superiores e costas/coluna, segundo características da organização do trabalho em professores
da rede municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006
• Dor nas costas/coluna. As variáveis ocupacionais selecionadas no modelo
multivariado para dor nas costas/coluna foram: trabalhar em dois ou três turnos, possuir turma
única, possuir carga horária semanal de 40 horas ou mais e exigência de muito esforço físico
(Tabela 6).
Os professores que ensinavam em dois ou mais turnos apresentaram prevalência 2,2
vezes maior de dor nas costas/coluna do que os que ensinavam em apenas um turno. Os
entrevistados que consideravam que o seu trabalho exigia muito esforço físico apresentaram 30% a
mais de prevalência de dor em costas/coluna do que aqueles que referiram não realizar esforço
físico no trabalho.
O ajuste por idade e sexo não alterou significantemente as associações analisadas
nos três segmentos considerados (Tabela 6).
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Tabela 6. Resultados da análise de regressão logística múltipla para dor musculoesquelética
em membros inferiores, membros superiores e costas/coluna em professores da rede
municipal de ensino – Salvador, Bahia, Brasil – 2006
DISCUSSÃO
Foi encontrada elevada prevalência de dor musculoesquelética entre os professores:
mais da metade dos docentes afirmou sentir frequente ou muito frequentemente dor
musculoesquelética em algum local do corpo. Estes achados são similares aos resultados de outros
estudos com essa categoria.4-6,8 Fatores ocupacionais relacionados à intensificação da carga de
trabalho e da carga física no trabalho mostraram-se associados à presença dessa sintomatologia,
com destaque para o excesso de esforço físico.
O presente estudo apresenta algumas limitações que devem ser consideradas na
análise dos seus resultados. Uma limitação importante é o fato de o estudo ter sido realizado com
uma base de dados secundários, na qual não constavam perguntas relevantes ao estudo de dor no
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Revista Baiana
de Saúde Pública
sistema musculoesquelético, como a prática regular de atividade física, a presença de desvios
posturais, forma do deslocamento para as escolas, número de meses que sentia a dor
musculoesquelética; ou seja, variáveis mais detalhadas da carga física no trabalho, entre outras.
Assim, não foi feita definição precisa das estruturas do sistema musculoesquelético como coluna
cervical, coluna dorsal, coluna lombar, ao invés de costas/coluna; ombro, cotovelo, punho, no lugar
de membros superiores; quadril, joelho e tornozelo, no lugar de membros inferiores. Desse modo,
as regiões investigadas no estudo não permitem uma clara delimitação dos segmentos corporais, o
que representa limitações na análise mais pormenorizada da região atingida, como recomendado
em outros estudos.5,7
Existem também outras limitações relacionadas ao tipo de desenho de estudo
adotado, de corte transversal. Este tipo de estudo não é capaz de esclarecer adequadamente a
relação de causalidade entre as situações estudadas, exposições e efeitos. Assim, a relação
cronológica entre os eventos não é facilmente detectável. Além disso, os professores curados
ou falecidos não aparecem na casuística, no chamado viés de prevalência, o que pode ser um
importante fator associado à subestimação dos eventos estudados. A despeito disto, as
elevadas prevalências encontradas revelam tratar-se de eventos de grande magnitude entre os
professores estudados.
Deve-se considerar ainda que os dados de exposição atual podem não representar a
exposição passada, trazendo, assim, limites adicionais para a correta classificação de expostos e não
expostos. Contudo, a possibilidade de causalidade reversa, embora não possa ser descartada,
parece pequena, uma vez que é pouco provável que professores com dor musculoesquelética
sejam deslocados para atividades com maior nível de exigência (maior nível de exposição
ocupacional).5,12
Observou-se que predominaram na população estudada as mulheres que se
autodeclararam negras ou pardas, com nível superior, casadas e com um filho. O perfil dos
professores estudados foi similar ao encontrado em outros estudos realizados com esses
profissionais.5-7,11,15 O tempo de trabalho como professor apresentou uma média de 14 anos,
revelando tratar-se de um grupo com razoável experiência docente. A maioria dos professores
lecionava em mais de dois turnos, no nível fundamental I, em duas turmas ou mais, com mais de
trinta alunos por turma, com carga horária de 40 ou mais horas semanais. Essas características laborais
configuram desempenho profissional marcado por intensa jornada de trabalho, características também
semelhantes às encontradas em outros estudos com a categoria docente.15-17 Além disso, em relação
ao ambiente escolar, a maioria dos professores considerava que não havia tempo nem local
adequados para o descanso nas escolas, dados citados anteriormente na literatura como
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características do trabalho na rede pública de ensino.18 Estes dados mostraram que os professores
desenvolviam as suas atividades em ambiente laboral desfavorável, com extensas jornadas de
trabalho. Essa combinação de fatores torna os docentes vulneráveis ao acometimento de agravos à
saúde, entre eles os sintomas musculoesqueléticos. As elevadas prevalências de DME observadas
fortalecem essa hipótese.
A coluna e os membros inferiores foram os locais do corpo com mais altas
prevalências de dor musculoesquelética; esses achados são consistentes com os de outros estudos
com professores.5,6,8
A dor musculoesquelética foi mais elevada entre as mulheres, dado também
semelhante ao encontrado em outras pesquisas.5,17,19 Uma explicação possível para esse resultado
pode ser a dupla jornada ou sobrecarga doméstica realizada pelas mulheres, que, após um dia de
trabalho, quando chegam a suas casas, continuam realizando tarefas domésticas, aumentando
assim a jornada diária de atividades e diminuindo o tempo para repouso, lazer e a necessária
reposição de energias. Um importante mecanismo que influencia os efeitos do estresse sobre a
saúde diz respeito à duração do estímulo e à capacidade de o indivíduo acalmar-se após contatos
estressantes. Em situações caracterizadas por um processo de cansaço contínuo, com poucas
possibilidades de recomposição das energias e relaxamento, a sobrecarga no trabalho induz a um
processo lento até a acalmia. A segunda jornada exercida pelas mulheres no âmbito doméstico
diminui a possibilidade de relaxamento em casa. Ao assumir novas tarefas, as mulheres ampliam o
seu tempo total em atividade, elevando a jornada diária de trabalho. Pesquisas neuroendócrinas
têm dado plausibilidade biológica a essa hipótese. Estudo que comparou níveis hormonais
relacionados ao estresse de homens e mulheres observou que, durante o horário de trabalho, não
havia diferenças marcantes nas respostas ao estresse entre os sexos, mas que, ao retornarem para
casa, se observavam padrões hormonais distintos segundo o gênero: os homens retornavam aos
seus níveis basais e as mulheres mantinham a tendência à elevação da produção de
corticosteroides e também da pressão arterial sanguínea.20
Além da hipótese de que o trabalho doméstico constitui uma nova jornada de trabalho
e que, aumentando a exposição, aumenta os efeitos sobre a saúde, outra hipótese relevante a ser
considerada é que as mulheres, nas atividades de ensino, possuem carga de trabalho docente maior
do que os homens. Um estudo com professores da rede municipal de Vitória da Conquista revelou
que as mulheres tinham carga horária de trabalho semanal mais elevada do que a dos homens, além
de serem as principais responsáveis pelas tarefas domésticas.17
A idade, como descrito na literatura,19,21 também esteve associada aos sintomas
musculoesqueléticos, uma vez que, com o envelhecimento, há um desgaste natural dos sistemas
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Revista Baiana
de Saúde Pública
do corpo. Cabe mencionar os resultados obtidos na análise de regressão logística. Estes revelaram
que as características do trabalho docente mais relevantes, permanecendo nos modelos finais
selecionados, mantiveram-se associadas à DME, mesmo após ajuste por idade e sexo.
Na análise bivariada, maior prevalência de dor musculoesquelética nas regiões
estudadas foram observadas entre docentes que lecionavam em 2 ou 3 turnos, tinham apenas
uma turma, com 30 ou mais alunos, carga horária semanal de 40 horas ou mais, não possuíam
outra atividade remunerada além da docente, trabalhavam em mais de uma escola, não possuíam
liberdade para tomar decisões no trabalho e consideravam que o seu trabalho exigia muito esforço
físico.
A forma na qual o trabalho se organiza e a intensidade das cargas de trabalho do
professor podem ser fatores determinantes no adoecimento do sistema musculoesquelético.22
Sabe-se que os fatores biomecânicos envolvidos nas demandas físicas do trabalho, dentre elas a
realização e repetitividade dos movimentos e as posturas inadequadas, têm relação com a
ocorrência de lesões musculoesqueléticas.8,9,22
As variáveis ocupacionais – intensificadoras do trabalho, da carga física no trabalho e
da organização do trabalho – associadas à dor musculoesquelética revelaram um quadro de
atividade docente marcado pelo sobre-esforço.
Ensinar em mais de dois turnos, com carga horária semanal de 40 ou mais horas, ter
turma única e considerar que o trabalho exigia muito esforço físico foram identificados como
fatores associados à dor musculoesquelética nas costas/coluna. A necessidade de trabalhar por até
três turnos, com carga horária semanal de 40 ou mais horas, exige do profissional grande dispêndio
de força muscular e energia corporal para cumprir essa alta exigência do trabalho. Além disso,
muitas vezes, não há na escola local específico para descanso nos intervalos entre as aulas,
tornando o professor vulnerável ao acometimento de dor nas costas.
Pesquisas sobre saúde docente4,8,11 apontam o mobiliário inadequado como fator
agravante para o desenvolvimento de dor na região das costas/coluna, o que se soma à longa
jornada de trabalho. O mobiliário inadequado exige do professor a manutenção de posições
incorretas. Muitas vezes, as cadeiras e mesas são baixas para a estatura do professor, tornando as
flexões de quadril e joelho excessivas para sentar-se na cadeira e também a flexão da coluna no
momento de escrever nas mesas. Pôde-se observar, nas escolas da rede municipal de ensino de
Salvador, que o mobiliário é inadequado (mesas e cadeiras pequenas) e falta manutenção.
Dados de literatura atestam que um posicionamento corporal comumente adotado
durante as aulas é a posição ortostática. Esta posição relaciona-se com a dor na coluna, uma vez
que, dessa forma, o corpo exerce carga sobre os discos intervertebrais, achatando-os e diminuindo
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57
a sua hidratação. Uma pesquisa apontou que o docente passa até 95% do tempo de aula em pé.23
Na observação do trabalho dos professores de Salvador, percebeu-se que o professor fica nessa
posição na maior parte do tempo em sala de aula.
Também é apontado pela literatura que outro movimento realizado com muita
frequencia pelos docentes é o de flexão do tronco, principalmente no momento de tirar dúvidas
individuais dos alunos. Em um estudo sobre exposição física e lombalgia, observou-se que o
movimento de flexão do tronco estava associado à queixa de dor da coluna lombar,24 evidenciando
que a manutenção de postura frequente com flexão do tronco representa exposição importante
para dor na coluna.
O grande número de turnos e a elevada carga horária, estando o professor na maior
parte desse tempo na posição de pé, tornam a atividade docente uma tarefa laboral com exigência
de muito esforço físico. Isso pode contribuir, como encontrado neste estudo, para o acometimento
de agravos ao sistema musculoesquelético, principalmente na região das costas/coluna.
Para a prevenção de acometimentos na região de costas/coluna é recomendável a
redução da carga horária total de trabalho, o que pode ser viabilizado por um número menor de
turnos trabalhados e menor carga horária semanal, diminuindo, assim, a continuidade e a extensão
da exposição ao esforço físico. Entretanto, um grande obstáculo para que a redução da carga total
de trabalho ocorra está relacionado à remuneração na educação. O baixo salário recebido pelos
professores, principalmente na rede pública de ensino, leva-os a acumular vínculos empregatícios,
na tentativa de obter maior renda familiar. Portanto, para que seja possível atuar preventivamente
com relação a este aspecto, são necessárias medidas que elevem os salários pagos aos professores.
As variáveis que melhor explicaram a presença de dor musculoesquelética nos
membros inferiores foram: ensinar em apenas uma turma, trabalhar em mais de uma escola, não
possuir outra atividade remunerada além da docente e a exigência de muito esforço físico no
trabalho.
A necessidade de o professor ensinar em mais de uma escola mostra a tendência de
o docente permanecer por longos períodos durante a jornada de trabalho na posição ortostática
para a realização das suas atividades, somando-se à necessidade de deslocar-se de uma escola para
outra, na maioria das vezes por meio de caminhadas ou do uso de transporte público. Nesta
situação, o professor, após o período de atividade em pé em sala de aula, substitui o tempo de
repouso pelo deslocamento para uma nova escola, mantendo as exigências físicas sobre o próprio
corpo. Esta combinação de fatores pode contribuir para sobrecarga dos membros inferiores.
Além dos fatores ocupacionais citados neste estudo, a literatura mostra que as dores
musculoesqueléticas nos membros inferiores também se relacionam ao posicionamento em pé no
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Revista Baiana
de Saúde Pública
maior tempo da aula. Para manter o corpo na posição ereta, os membros inferiores precisam
manter a contração de alguns grupos musculares e esta situação leva à fadiga muscular. Nota-se
que, com o passar do tempo da aula, após algum tempo em pé, o professor tende a descarregar o
peso do corpo apenas em uma perna, para descansar o membro inferior contralateral. Esta posição
sobrecarrega as articulações do quadril e do joelho que ficam desalinhadas e comprimidas. A longo
prazo, tal atitude, associada a outros fatores, como a falta de atividade física, pode levar o
trabalhador a desenvolver desgaste das articulações, contribuindo para a ocorrência de dor
musculoesquelético nos membros inferiores.23
A alternância de posicionamento em pé e sentado durante as aulas é, então, uma
importante medida de prevenção. Registra-se, porém, que um empecilho para a alternância de
posição em pé-sentado é a indisciplina na sala de aula, como apontam dados da literatura. Em um
estudo sobre sofrimento no trabalho docente realizado na rede municipal de ensino de Montes
Claros, Minas Gerais,25 observou-se que o professor emprega a maior parte do tempo de aula
adotando medidas para garantir a disciplina dos alunos. Assim, permanecer em pé acaba sendo
uma estratégia usada também para manter a disciplina, uma vez que permite maior e melhor
visualização dos alunos.
A dor musculoesquelética nos membros superiores é referida em muitos estudos
com professores.4,6,8,11 O número médio de alunos em sala de aula maior ou igual a 30, não ter
liberdade para tomar decisões no trabalho e o excesso de esforço físico no desempenho da tarefa
foram as variáveis associadas a tal queixa. Uma revisão da literatura sobre dor em ombros e fatores
ocupacionais revelou que o transporte de peso, a presença de esforço físico no trabalho, a
elevação dos membros superiores acima do nível dos ombros estavam associados a esse sintoma.26
Pode-se observar que todos esses fatores estão presentes na rotina do professor da rede municipal
de ensino de Salvador: o transporte de materiais didáticos para a sala de aula, a presença de muito
esforço físico no trabalho e a necessidade de elevar os membros superiores acima do nível dos
ombros para escrever no quadro negro.
Com relação ao número de alunos em sala de aula, a recomendação internacional é
que não se ultrapasse 25 por turma, pois, acima desse número, ficam comprometidas a qualidade
do aprendizado e a saúde do professor.27 Quanto maior o número de alunos, maior será a
quantidade de materiais carregados pelo professor para a sala de aula e também maior será o
tempo necessário para corrigir e preparar atividades.
A falta de liberdade para tomar decisões no trabalho associou-se à dor nos membros
superiores dos professores de Salvador. A literatura aponta que fatores psicossociais ligados à forma
de organização do trabalho podem contribuir para intensificar exposições ocupacionais relacionadas
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jan./mar. 2011
59
às exigências do processo de trabalho desses profissionais.22 Esses fatores são apontados como
indicadores de estresse, o que reforça a ideia da docência como uma profissão física e
mentalmente estressante.12,15
Além dos fatores ocupacionais acima descritos, a literatura aponta que o movimento
de escrever no quadro negro é fator de sobrecarga para os membros superiores do docente. Na
elevação do braço, para escrever no quadro negro, as estruturas da articulação do ombro ficam
comprimidas e a irrigação sanguínea dos músculos da região fica diminuída. Tais alterações levam a
lesões musculares e ao desgaste articular, gerando dor musculoesquelética e futuras patologias no
sistema musculoesquelético.2,5
Curiosamente, ensinar em mais de uma turma associou-se negativamente à dor
musculoesquelética nas regiões de membros inferiores e costas. Uma possível explicação para este
achado inusitado pode ser o fato de que o professor com maior número de turmas desloca-se mais
dentro da própria escola durante a jornada de trabalho, mantendo-se por menos tempo em
posição estática do que um professor que leciona por todo o turno na mesma sala de aula. Esta é
uma característica da atividade dos professores de disciplinas como educação física, línguas
estrangeiras e artes. Deve-se registrar que não se observou diferença na carga horária entre os
professores com turma única ou com duas ou mais turmas, portanto, mantidas as cargas horárias
similares, a possibilidade de se movimentar mais frequentemente pode, de fato, ser uma
explicação alternativa para esse achado. O professor que possui turma única realiza o trabalho de
forma mais estática quando comparado ao professor que ensina em mais de uma turma. Contudo,
este é um aspecto que merece ser melhor investigado em estudos futuros.
Possuir outra atividade remunerada além da docência foi fator associado à menor
ocorrência de dor musculoesquelética na região dos membros inferiores. Isto pode dever-se ao
fato de o professor posicionar-se de maneira diferente na outra atividade remunerada, com a
possibilidade de alternância de posicionamentos e até mesmo de possuir um local para descanso
nesse outro ambiente laboral, tornando a jornada de trabalho diária menos estática e com mais
condições de repouso do que a de um professor que apenas ministre aulas durante todo o dia.
O esforço físico no trabalho destacou-se como condição associada à presença de dor
musculoesquelética nas três regiões analisadas: nos membros inferiores e superiores e nas costas/
coluna.
A carga física no trabalho está associada à dor musculoesquelética em
professores. Na população estudada, aproximadamente metade dos docentes considerou que
24
o seu trabalho exigia muito esforço físico. O excesso de esforço físico no trabalho docente pode
ser resultado de uma série de características comumente citadas pelos professores nas pesquisas
60
Revista Baiana
de Saúde Pública
como sobre-esforço na atividade, a exemplo de: elevada carga horária com grande número de
turmas e de alunos por turma; ambiente de trabalho inadequado, com altas temperaturas, ruído
excessivo, falta de local para descanso, mobiliário inadequado das salas.4,5,10,27,28 Nesta pesquisa,
observou-se que muitas dessas características faziam parte da rotina de trabalho dos docentes da
rede municipal de ensino de Salvador.
Nesta pesquisa, foram observadas altas prevalências de dor musculoesquelética nos
membros superiores, inferiores e nas costas/coluna entre os docentes de Salvador. As
características do trabalho docente, marcadas por elevadas cargas de trabalho e condições do
ambiente escolar desfavoráveis, associaram-se com dor musculoesquelética entre os professores,
com destaque para a presença de muito esforço físico no trabalho, que se mostrou como o fator
presente para dor no sistema musculoesquelético nos três segmentos corporais investigados.
Diversas medidas preventivas devem ser adotadas pelas escolas, no intuito de
diminuir as altas prevalências de dor musculoesquelética entre docentes. Entre as mudanças no
ambiente escolar, pode-se destacar: tablados próximos ao quadro negro, para que o professor não
precise realizar movimentos de grandes amplitudes dos membros superiores; armários nas salas de
aula, para que o professor possa deixar parte do material didático, evitando deslocamento com
carregamento de peso; maior adequação do mobiliário das salas de aula, com mesas altas e
espaçosas, cadeiras com encosto para costas e membros superiores.29 A disponibilidade de local
adequado para descanso entre as aulas, em salas reservadas, com cadeiras confortáveis, é outra
medida que pode proteger o sistema musculoesquelético.
Além disso, a valorização do docente, mediante pagamento de melhores salários,
criação de plano de carreira, oferta de cursos de capacitação e educação continuada, aumento do
número de docentes por escola e diminuição do número de alunos por turma, maior tempo para o
repouso entre as aulas, são medidas relevantes para a prevenção de dor musculoesquelética. O
estímulo à participação da comunidade, com maior responsabilização das famílias no resultado da
educação, também são medidas que podem auxiliar na conquista de espaços laborais saudáveis na
escola.
Mostra-se também importante a estruturação de processos de trabalho que
estimulem o professor a realizar alternância das posições em pé e sentado durante a aula, a evitar
realizar, com frequência, movimentos lesivos, como a flexão de tronco, e a manter, por longos
períodos, os membros superiores elevados para escrever no quadro. A adoção dessas medidas
pode representar prevenção no surgimento de casos novos de dor musculoesquelética entre os
docentes e melhora dos sintomas já instalados.
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jan./mar. 2011
61
Esta pesquisa possibilitou dimensionar o problema referente à dor
musculoesquelética entre os professores. Além disso, caracterizou-se como de amplo escopo, uma
vez que entrevistou aproximadamente 4.500 professores, quase a totalidade dos docentes da rede
municipal de ensino de Salvador. Ao identificar fatores ocupacionais associados à ocorrência de dor
musculoesquelética, fortalece a necessidade da adoção de medidas de prevenção aos agravos do
sistema musculoesquelético, com o intuito de diminuir os afastamentos do trabalho e
aposentadorias precoces, bem como melhorar a qualidade de vida e de trabalho do docente.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 13.04.2011
64
ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
SENTENÇA TRABALHISTA: BASES RACIONAIS DAS DECISÕES JUDICIAIS NOS CASOS DE
ACIDENTE DE TRABALHOa
Nara Eloy Machado da Silvab
Mônica Angelim Gomes de Limac
Cláudio Fortes Garcia Lorenzod
Resumo
O trabalho, a depender das condições em que é exercido e do tipo de atividade,
repercutirá de forma negativa sobre a saúde dos trabalhadores e desencadeará agravos e danos que
exigirão a reparação ou compensação. O objetivo deste estudo é analisar as bases racionais das
decisões dos juízes trabalhistas nos casos de acidente de trabalho, investigando os elementos e
pressupostos utilizados pelo magistrado na construção do ato de julgar, no deferimento do pedido.
O trabalho foi desenvolvido por meio de análise documental exploratória, utilizando-se
metodologia qualitativa, para identificar os sentidos da palavra escrita dos magistrados trabalhistas
mediante a Análise do Discurso. A fonte documental é composta por sentenças da Justiça do
Trabalho de Salvador, Bahia. As análises permitiram a formulação de categorias das bases racionais
que indicaram a dificuldade dos magistrados em estabelecer um conceito de dano; a necessidade
de tornar a doença “invisível” em visível, como meio de prova; a complexidade em se estabelecer
parâmetros para a determinação dos valores indenizatórios e a ratificação da defesa da prevenção.
Palavras-chave: Acidentes de trabalho. Saúde do trabalhador. Decisões judiciais. Direito Sanitário.
a
b
Órgão Financiador: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).
Professora Assistente do Curso de Tecnólogo em Gestão de Cooperativas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestre
em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Saúde Pública pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
d
Professor Adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília. Doutorado em Ética aplicada à Ciências
c
Clínicas pela Universidade de Sherbrook, Canadá.
Endereço para correspondência: Rua Valdir Pereira de Oliveira, n.º 235, Ana Lúcia, Cruz das Almas, Bahia. CEP: 44380-000.
[email protected]
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LABOR SENTENCES: THE RATIONAL BASIS OF JUDGMENTS IN CASES OF
OCCUPACIONAL ACCIDENT
Abstract
Work, depending on the conditions under which it is exercised and the type of
activity, reflects negatively on the health of workers, causing injuries and damage that require
repair or compensation. The aim of this study is to analyze the rationale of the decisions of judges
in cases of labor accidents at work, investigating the factors and assumptions used by the magistrate
in the construction of the act of judging in the sense of acceptance. The work was developed
through exploratory analysis of documents, through qualitative methodology to identify the meanings
of the written word through the labor of judges Discourse Analysis. The source document consists
of sentences of the Labour Court in Salvador, Bahia. The analysis allows the formulation of categories
of rationales that indicated the difficulty magistrates had to establish a concept of damage, the
need to make an “invisible” disease visible, as evidence; the difficulty to establish parameters for
determination of reparation and the need for defense of prevention.
Key words: Occupacional accident. Occupational health. Court decision. Law.
VEREDICTO DEL TRABAJO: BASES RACIONALES DE LAS DECISIONES JUDICIALES EN
CASOS DE ACCIDENTES DE TRABAJO
Resumen
El trabajo, en función de las condiciones en que se ejerce y el tipo de actividad,
repercutirá de forma negativa en la salud de los trabajadores, y desencadenará lesiones y daños
que exigirán reparación o indemnización. El objetivo de este estudio es analizar las bases racionales
de las decisiones de los jueces del trabajo en los casos de accidentes laborales, investigando los
elementos y suposiciones previas utilizadas por el juez en la construcción del acto de juzgar en el
sentido de lo solicitado. El trabajo fue desarrollado por medio de análisis exploratorio de los
documentos, utilizando metodología cualitativa para identificar los significados de la palabra escrita
de los magistrados del trabajo mediante el Análisis del Discurso. El documento original se compone
de sentencias del Tribunal del Trabajo de Salvador, Bahia. Los análisis permitieron la formulación
de categorías de las bases racionales que indicaron la dificultad de los magistrados para establecer
un concepto de daño, la necesidad de hacer que la enfermedad “invisible” se torne visible, como
medio de prueba; la dificultad de establecer parámetros para la determinación de los valores de
indemnización y la necesidad de defensa de la prevención.
Palabras-clave: Accidentes laborales. Salud del trabajador. Decisiones judiciales. Derecho Sanitario.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
INTRODUÇÃO
Os avanços tecnológicos e científicos que envolvem o modo de produção capitalista
reverteram-se em benefícios para a humanidade, mas também geraram problemas econômicos,
sociais, jurídicos e sanitários. No âmbito do trabalho, o que se tem visto é a degradação do meio
ambiente laboral, a negação dos fatores de segurança e saúde do trabalhador e a sujeição do
indivíduo a qualquer tipo de trabalho. A precarização do trabalho, a intensificação de ritmos, a
perda de postos de trabalho e a exigência da polivalência ampliaram e agravaram o quadro de
doenças e riscos de acidentes nos espaços sócio-ocupacionais.1
O ambiente de trabalho é circundado por diversos fatores que afetam a saúde,
sejam eles químicos, físicos ou biológicos, além do medo do desemprego, das pressões
psicossociais, da lógica de organização e produção do capital que põem em segundo plano as
questões relacionadas à saúde e segurança do trabalho.2 O ambiente do trabalho consubstancia-se
em uma esfera de concretização das relações de trabalho e há uma correlação entre o local e a
atividade executada, as condições e o desempenho do trabalho, devendo considerar-se ainda os
riscos que envolvem o trabalhador e podem causar danos físicos, psíquicos e sociais.3
Os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais são os principais danos que
podem advir da execução da atividade laboral, seja pelas más condições do ambiente de trabalho,
seja por exposição a produtos maléficos à saúde, seja pelas pressões psicológicas existentes na
relação de trabalho. A ocorrência desses danos gera reflexos traumáticos que vão desde a invalidez
temporária até a morte, com repercussões danosas para o trabalhador, a sua família, o empregador
e a própria sociedade.4
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1985, um
trabalhador morria a cada três minutos no mundo, vítima de acidente de trabalho ou doença
profissional, e a cada segundo quatro trabalhadores sofriam algum tipo de lesão ocupacional. Em
2003, novas estatísticas foram divulgadas pela OIT, que indicaram a ocorrência de 270 milhões de
acidentes de trabalho por ano, o que representou uma média de 740 mil acidentes por dia ou
nove por segundo.5
No Brasil, a realidade dos acidentes de trabalho também é alarmante. Dados oficiais
de 2005 revelam que ainda ocorrem mais de sete mortes a cada dia por acidente de trabalho.
Some-se a isto o fato de que as estatísticas divulgadas não refletem a real situação do problema,
pois são captadas nas informações prestadas pelo empregador; os registros atingem apenas 50%
dos acidentes ocorridos, ou seja, os outros 50% dos acidentes são subnotificados. Outro ponto que
contribui para a subnotificação diz respeito às doenças ocupacionais que são diagnosticadas e
tratadas como doenças comuns.5
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67
Assim sendo, as condições de trabalho, inseridas num contexto político neoliberal do
lucro pelo lucro, podem produzir efeitos prejudiciais à saúde do trabalhador, os quais geram danos
que muitas vezes prejudicam a sua capacidade laboral e a qualidade de vida, havendo também
uma ofensa à esfera de direitos, em especial do direito à saúde e do direito ao trabalho. Nesta
ordem, havendo o desrespeito ao direito à saúde, à integridade física ou psíquica do empregado,
nasce, para este, o direito de ver reparado ou compensado o dano sofrido injustamente; para o
empregador lesionante, surge o dever de indenizar tais prejuízos, que, antes disso, deveriam ser
prevenidos. Numa ocorrência deste tipo, o empregado que sofreu o acidente de trabalho, vítima
da lesão, recorre ao Poder Judiciário trabalhista.
O Estado, representado pelo Juiz do Trabalho, tem o dever de pacificar a demanda
por meio de uma sentença judicial, em que se busca a compensação ou reparação do dano sofrido
pelo trabalhador. No caso específico de acidentes de trabalho (dano à saúde do trabalhador), será
o magistrado do trabalho quem decidirá acerca do pleiteado em juízo.
O juiz, como ente estatal e de maneira imparcial, é encarregado da solução dos
conflitos surgidos do convívio social, mediante a aplicação das leis e princípios, a fim de solucionar
o pedido formulado, exercido pela ação, até o provimento final (sentença), ato de encerramento
da atuação judicial, garantindo ao cidadão uma atuação pacificadora, legal e justa.6
A rede interligada que se forma entre fato, demanda, magistrado (Estado) e decisão
envolve todo o processo de racionalização do ato de julgar. Nesta seara, defende-se que apenas a
atuação do juiz “[...] livre de preconceitos, livre de juízos apriorísticos, livre de ideias
estereotipadas, livre das injunções facciosas, poderá encontrar a verdade”.7:2 Ao analisarem o
mundo do juiz, autores questionam acerca da compreensão interna do ato de julgar: “Que
circunstâncias podem mobilizar o magistrado quando julga? Quais as ingerências internas desse
processo? Como se situar na condição de quem vai declarar o direito de alguém do qual é
semelhante, uma vez que envolve uma dinâmica de humano para humano?”8:1
No caso específico dos magistrados trabalhistas, há ainda uma questão envolvida. A
competência da Justiça do Trabalho foi ampliada com a Emenda Constitucional N°. 45/04, que
incluiu o julgamento dos acidentes de trabalho. Aos juízes do trabalho, até então, não competia
julgar as demandas decorrentes de acidente de trabalho e doenças ocupacionais. Nesse contexto,
duas situações colocaram-se em paralelo: primeiro, a explosão de uma demanda reprimida, vez
que diversos sindicatos ajuizaram ações de natureza acidentária perante a Justiça Laboral; segundo,
os juízes trabalhistas não tinham afinidade com a temática e precisaram adaptar-se às exigências da
nova matéria no âmbito da sua atuação, o que exigia conhecimento e sensibilidade específicos
para que fosse bem encaminhada.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
Nessa esteira, ao exercer a sua função jurisdicional e buscar a solução de um conflito
trabalhista, o magistrado se pronuncia por meio da sentença. Apresentadas as razões finais e
rejeitada a última tentativa de conciliação, o juiz proferirá decisão que deverá atender ao
cumprimento da lei, bem como ao interesse social.
A elaboração da sentença baseia-se no método dialético, ou seja, há uma síntese
entre opostos, a fim de se conformar o raciocínio do julgador.9 Assim, a tese refere-se ao pedido
do trabalhador e a antítese reflete a defesa do empregador, buscando provar que o empregado
não tem o direito. Com base nelas e observando tanto as provas produzidas quanto o contexto
social e o dano causado, o juiz elabora a síntese que se expressa na sentença proferida.
É preciso ressaltar que, embora o magistrado fundamente-se naquilo que está
presente no processo para julgar o caso concreto, é essencial entender o contexto em que o juiz
trabalhista está inserido. Há um círculo de pressões em torno da figura do julgador, seja pela
expectativa do empregado em ver o seu problema solucionado, seja pelas críticas de morosidade,
seja pelas pressões econômicas, seja, por fim, a sua própria personalidade, que é formada com
base nos valores que envolvem o seu cotidiano. Assim, na análise das sentenças trabalhistas em
casos de acidentes de trabalho é essencial estar atento a todos esses elementos que podem, de
alguma forma, refletir sobre o direcionamento a ser dado à interpretação dos dados coletados.
O presente trabalho tem como objetivo compreender as bases racionais das
decisões de juízes trabalhistas nos casos de acidente de trabalho, a fim de identificar quais são os
elementos utilizados pelo magistrado na construção do ato de decidir, investigando os
pressupostos, tais como dogmatismo legal e provas utilizados pelo magistrado na construção do ato
de julgar e no deferimento do pedido indenizatório.
METODOLOGIA
O estudo foi desenvolvido por meio de análise documental exploratória, com a
utilização de metodologia qualitativa, em que se objetivou identificar os sentidos da palavra escrita
dos magistrados trabalhistas por meio da Análise do Discurso (AD). A opção por realizar um
trabalho de cunho exploratório foi ensejada pela carência de estudos que utilizassem a sentença
trabalhista como fonte documental somada à análise do discurso expressado nesse produto final do
raciocínio do juiz.
Assim, embora a sentença seja um dos documentos mais relevantes do processo e
também o mais ansiado pelas partes envolvidas no conflito, ainda não há, no Brasil, uma tradição
de estudos que envolvam essa fonte documental. Por isso, optou-se por explorar tais documentos
no intuito de identificar e delinear os elementos que conformam as bases racionais dos
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julgamentos nos casos de acidente de trabalho. O estudo de cunho exploratório sobre a temática
aqui trabalhada mostra-se importante, na medida em que busca traçar um panorama dos
fundamentos utilizados nas sentenças trabalhistas, o qual servirá como pano de fundo para futuras
pesquisas que confrontem a opinião dos juízes e aquilo que realmente consta nos discursos
contidos nas sentenças.
Com efeito, os fenômenos relacionados à saúde e às relações jurídicas que se
estabelecem em torno dela são complexos e exigem a exteriorização do ponto de vista do
enunciador do texto analisado. A Análise do Discurso trabalha com o sentido do texto, um sentido
que não é traduzido, mas produzido; pode-se afirmar que o corpus da AD é constituído pela
seguinte formulação: ideologia+história+linguagem do ator social.10 A palavra expõe as
contradições e os conflitos existentes em uma dada realidade, pois é construída com base no
emaranhado de fios ideológicos que expressa o repertório de uma época e de um grupo social;
portanto, a compreensão do discurso exige a compreensão das relações sociais que ele expressa.11
A interpretação dos discursos escritos foi apoiada na leitura exaustiva do material,
que permitiu o estabelecimento de categorias de análise e a identificação das impressões
observadas, buscando-se a coerência interna dos textos e o contexto em que está inserida a
documentação analisada.
• Fonte Documental
A pesquisa foi realizada junto à Justiça do Trabalho com jurisdição sobre a cidade de
Salvador e Lauro de Freitas, no estado da Bahia, vinculada ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT)
da 5ª Região.
A fonte documental catalogada foi constituída por sentenças proferidas pelos juízes
das 39 Varas do Trabalho do TRT. As sentenças analisadas encontram-se registradas na Base de
Decisões do TRT 5ª Região, um banco de dados público, acessado no site www.trt5.jus.br. A
consulta à base de decisões foi efetivada mediante a identificação do nome de cada juiz no campo
específico, já que as sentenças encontram-se registradas por juiz que a prolatou. Feito isso, foram
utilizados, na pesquisa, os termos “acidente de/do trabalho”, “dano moral”, “doença ocupacional/
profissional”, primeiramente isolados e depois combinados. Ao serem inseridos os termos
pesquisados, a base de dados devolvia as sentenças encontradas. O arquivo era então aberto e
observava-se o pedido, identificando-o como de indenização envolvendo acidente de trabalho ou
doença ocupacional. Em seguida, partia-se para a parte dispositiva da sentença, em que se buscava
saber se era procedente.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
• Descrição da Amostragem
O primeiro passo para a constituição da amostra foi a definição do número de
sentenças a serem coletadas em cada uma das 39 Varas. Via de regra, cada Vara possui dois juízes
atuando, sendo um deles o juiz titular e o outro o juiz substituto. A fim de que fosse coletada ao
menos uma sentença por juiz, foi determinado o número de duas sentenças por Vara, cada uma
referindo-se ao titular e ao substituto, respectivamente.
O critério de escolha de cada sentença foi que tivesse como pedido, principal ou
cumulado, indenização por danos causados em decorrência de acidente de trabalho, devendo o
pedido ser considerado procedente. O critério de exclusão foi que a sentença não poderia ser
nem improcedente nem extintiva do processo.
Com base nesses procedimentos, obteve-se um total de 77 sentenças, pois em uma
das varas foi encontrada apenas uma sentença que atendeu aos requisitos definidos. O período de
datas das sentenças foi de 31/10/06 a 19/12/09. O período de coleta ocorreu entre agosto de
2008 e dezembro de 2009.
Foi criada uma codificação para cada sentença, a fim de que fossem omitidos o
nome do juiz que a prolatou, o nome do trabalhador envolvido, a vara trabalhista e o nome da
empresa, sendo apenas identificado o setor econômico a que pertencia. Feita esta codificação, as
sentenças passaram a ser identificadas pela letra “S” acompanhadas de um número de ordem. Por
exemplo, “S1”, “S5”, “S16”.
A amostra qualitativa final de 20 sentenças foi definida mediante a saturação dos
temas e categorias de análise extraídos dos documentos. A quantidade final foi baseada no modelo
da saturação,11 em que os documentos são lidos até que se perceba que os elementos do texto
relacionados às categorias e subcategorias definidas estão se repetindo sem variações e que,
portanto, não se fazem necessárias novas análises.11
• Definição de categorias e subcategorias de análise
As categorias foram definidas com base na finalidade da análise que é explorar as
bases racionais das decisões dos juízes. Elas guiaram, portanto, a busca dos elementos do texto por
meio dos quais seria possível inferir uma relação com as categorias previamente definidas. A
elaboração de subcategorias visou atender às peculiaridades e diversidade com as quais as
categorias eram tratadas no texto.
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Categoria 1: Conceito de Dano
Subcategorias:
• Doutrinária
• Jurisprudência
• Forma da Lei
• Entendimento Pessoal
• Definição do campo da saúde
Categoria 2: Prova nos autos
Subcategorias
• Testemunhal
• Pericial
• Documental
Categoria 3: Gravidade da lesão
Subcategorias:
• Incapacidade parcial – leve e grave
• Incapacidade total – gravíssima
• Morte
Categoria 4: Valor da indenização
Categoria 5: Justificativa do valor
Subcategorias:
• Porte da empresa
• Função punitiva e/ou educativa para o empregador
• Compensação da lesão
• Prevenção e alteração do padrão socioeconômico
• Aspectos Éticos da Metodologia
A pesquisa foi desenvolvida com base em um banco de dados público que tem
como objetivo conferir transparência aos atos do judiciário, permitindo à sociedade acompanhar o
resultado das decisões tomadas. Por isso mesmo, é de acesso livre a todo e qualquer cidadão tanto
o resultado das sentenças quanto os nomes das pessoas, empresas e órgãos envolvidos em cada
sentença. Assim sendo, o presente estudo é uma pesquisa com dados secundários que, além do
seu possível interesse acadêmico, se constitui também como um exercício cívico do direito
democrático de avaliar as ações dos poderes constituídos.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
Ainda que os nomes dos envolvidos estejam publicizados, manteve-se, entretanto, a
confidencialidade em todas as publicações em relação ao nome das empresas, dos juízes e dos
trabalhadores que constituem a relação processual.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise e interpretação do material documental permitiram identificar evidências
expressivas no discurso do magistrado ao julgar o caso concreto.
Em geral, os casos de LER/DORT foram os mais vistos, mas também existiram
julgamentos de acidentes típicos. A atividade econômica dos bancos foi responsável por diversos
casos de acidentes de trabalho nas sentenças analisadas. Também estiveram presentes empresas
pertencentes ao setor de transportes e até mesmo empresas públicas ligadas ao Estado da Bahia.
Uma das principais características do material estudado refere-se à dita neutralidade e
imparcialidade com que os julgamentos são formulados. A atuação do juiz, na visão mais
tradicionalista, deve se pautar apenas na legislação que rege o fato ocorrido e no ser imparcial. No
entanto, já se sabe que esse positivismo legal e a dita neutralidade são atenuados pela influência da
formação social, histórica, ideológica e até mesmo pessoal do indivíduo que representa o magistrado.
Não se quer dizer com isso que o juiz atue apenas conforme as suas convicções
pessoais e deixe de lado as orientações do ordenamento jurídico em que está inserido, mas sim
que, em qualquer tipo de trabalho que se realize, o sujeito carrega em si uma carga ideológica
própria que se reflete na produção da linguagem escrita e influencia os sentidos do trabalho
realizado. Por isto mesmo é que aqui se adverte que, na interpretação desenvolvida no presente
estudo, a analista é “[...] um intérprete, que faz uma leitura também discursiva influenciada pelo
seu afeto, sua posição, suas crenças, suas experiências e vivências; portanto, a interpretação nunca
será absoluta e única, pois também produzirá seu sentido”.10:682
• Conceito de Dano
Na análise do conceito de dano, quanto à forma como é adotado na elaboração das
sentenças judiciais, evidencia-se, é claro, além da conceituação estritamente jurídica, a carga de
valores e noções que o próprio magistrado acumulou no seu meio social. Ele deve julgar de acordo
com o que diz a lei, mas, para tanto, precisa avaliar o caso concreto conforme o seu arbítrio,
fundamentado em bases racionais que, em parte, já carrega em si, para que possa adequar o
preceito legal ao fato ocorrido.
No tocante à utilização da doutrina para conceituar o dano, o direito brasileiro
esteve, por um vasto período, voltado à indenização do dano material em si. A noção de dano
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estava tradicionalmente vinculada à ideia de patrimônio material, sendo este passível de
indenização e facilmente conceituado. Já em relação ao dano moral, é recente a possibilidade de
ressarcimento.12 O advento da Constituição Federal, em 1988, impulsionou tais discussões.
As citações doutrinárias fizeram-se presentes nas sentenças analisadas, seja porque
essa dificuldade em estabelecer um conceito concreto para o dano moral ainda exista entre os
magistrados, seja porque os bens a que esta espécie de dano se refere não são visíveis, palpáveis ou
mensuráveis; estes têm sido defendidos como algo maior que consubstancia a dignidade humana.
Neste sentido, o uso da subcategoria doutrina talvez se dê pela oportunidade que o
magistrado encontra de confirmar e ter um respaldo daquele entendimento que ele possui sobre o
que seja o dano moral. Na maioria das vezes, o entendimento pessoal dele (outra subcategoria)
acerca do conceito de dano confunde-se com o que preceitua a doutrina, contudo há uma
tendência maior em se manter o conceito de dano como ofensa que causa sentimentos negativos
de dor, tristeza e humilhação. O fragmento a seguir, extraído de uma das sentenças analisadas,
corrobora este entendimento: “O dano moral resulta de mácula à imagem do empregado perante
os familiares e círculo social, impingindo-lhe forte dor e humilhação.” (S9).
Outras duas fontes do direito, aqui alçadas ao posto de subcategorias – força da lei, e
jurisprudência –, foram a própria legislação. Citar a legislação como definidora do dano moral
também respalda o entendimento dos magistrados no momento de avaliar o dano.
De acordo com o Projeto de Lei N.º 7.124/02, do Senador Antonio Carlos
Valadares – oriundo do antigo PL 150/99 do Senador Pedro Simon –, o
dano moral é assim conceituado: ‘Art. 1.º Constitui dano moral a ação ou
omissão que ofenda o patrimônio moral da pessoa física ou jurídica, e dos
entes políticos, ainda que não atinja o seu conceito na coletividade’. (S12,
grifo do autor).
A jurisprudência, que diz respeito aos julgados existentes no ordenamento jurídico
em relação àquela matéria que se está discutindo, foi citada para ressaltar uma característica do
dano moral e auxilia na concessão da reparação pela ofensa. Para alguns doutrinadores e
julgadores, o dano moral não precisa ser provado. Em relação ao dano moral, deve-se lembrar
uma brilhante decisão proferida pelo colega Dr. Edílson Meireles “A ofensa moral, por sua vez,
dispensa prova quanto ao dano em si. O dano é presumível em decorrência da simples ofensa.”
(S17, grifo do autor).
Por fim, no que toca à categoria conceito de dano, em algumas sentenças foi
registrada a contribuição da área da saúde para conceituá-lo, conformando-se à subcategoria campo
da saúde. O dano foi reconhecido diretamente com base nos conceitos médicos de doenças
ocupacionais. Neste aspecto, a relação entre o campo da saúde do trabalhador e o direito
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de Saúde Pública
evidencia-se, demonstrando a essencialidade da aproximação dessas duas áreas de estudo, bem
como a sua complementaridade.
A síndrome do túnel do carpo e a tenossinovite dos extensores são patologias
ocupacionais que têm se tornado verdadeiras “pragas” no ambiente laboral
brasileiro, notadamente bancário, já se percebendo, inclusive, a
preocupação, na atualidade, das instituições financeiras, com a
observância de normas de ergonomia para tentar mudar este quadro.
(S14, grifo nosso).
• Prova nos autos
No ato de sentenciar, o magistrado necessita ser convencido daquilo que o
trabalhador afirma. Para tanto, são produzidas as provas necessárias. Em geral, o direito admite as
provas periciais, documentais e testemunhais. A análise dos juízes, com base na prova pericial, diz
respeito essencialmente à constatação do nexo causal. Nos casos em que se exige a comprovação
do nexo de causalidade, a prova pericial mostrou-se imprescindível. Em todas as sentenças
analisadas, o juiz posicionou-se conforme a perícia realizada; a prova documental apenas serviu
para corroborar a conclusão baseada no laudo pericial. O laudo pericial produzido concluiu pelo
nexo causal entre a doença adquirida e o serviço executado. “A natureza ocupacional da patologia
diagnosticada (Síndrome do Túnel do Carpo) restou evidenciada a partir das descrições das tarefas
cumpridas.” (S15, grifo nosso).
No entanto, existem casos em que a natureza do dano está envolta em uma rede
de subjetividade que dificulta a comprovação e o dimensionamento do dano sofrido. Há danos
decorrentes do acidente laboral que são caracterizados pela invisibilidade, a qual nem sempre é
constatada materialmente pelo médico-perito, que dirá pelo juiz da causa. São as dores sentidas
pelo acidentado que somente ele conhece e dimensiona, mas não consegue elementos materiais
que provem e atestem essa dor; são distúrbios psíquicos, estresse e fadiga que, ao invés de serem
sinônimos de “preguiça”, são males invisíveis que precisam se tornar visíveis.13
A questão do visível e invisível do adoecimento crônico, que já é uma temática
complexa para a medicina, torna-se ainda mais complexa quando transferida para o mundo
jurídico, no qual se exige que tudo aquilo que é alegado deve ser provado. Existem casos de
doenças que, em face do seu grau de imaterialidade, não podem ser avaliados por meio de
medidas, escalas, indicadores bioquímicos e danos à saúde invisíveis ao “olhar médico”,14 e
também se tornam invisíveis ao olhar jurídico, tendo em vista a necessidade de relação direta
entre o nexo de causalidade e a perícia médica.
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No tocante à prova testemunhal, a análise inclinou-se para a avaliação das condições
de trabalho do empregado. Os depoimentos das testemunhas auxiliaram na descrição do ambiente
de trabalho e indicaram a existência ou inexistência de preocupação do empregador com a
prevenção dos acidentes de trabalho.
A presença do agente ergonômico e o excesso de utilização da voz,
evidenciado na prova testemunhal, é suficiente para atestar a culpa do
empregador, na medida em que, mesmo que aliado à causa genética,
possibilitou a deflagração ou mesmo o agravamento da enfermidade, neste
caso em se tratando de concausa antecedente. (S17, grifo nosso).
• Gravidade da lesão
A categoria analítica gravidade da lesão foi dividida em três subcategorias:
incapacidade parcial (lesão leve e grave) reuniu os casos de acidente de trabalho ou doença
ocupacional que geraram incapacidade para o trabalhador, mas permite o exercício de outro tipo
de atividade; incapacidade total (lesão gravíssima) categorizou situações de incapacidade para
qualquer tipo de atividade; e morte do trabalhador.
As incapacidades parciais foram apontadas pelos magistrados nas situações em que o
trabalhador estava apto a exercer outras atividades. Em geral, esta conclusão foi estruturada com
base no laudo pericial. Aqui há um ponto de encontro entre duas categorias – a prova nos autos e
a gravidade da lesão – e o juiz utiliza-se das informações contidas no laudo pericial para classificar a
gravidade da lesão.
Por fim, ressaltou, a expert, tratar-se de incapacidade laborativa temporária e
parcial ao exercício de atividades com permanência em posturas estáticas
por período prolongado, elevação e transporte manual de peso e realização
de movimentos repetitivos com os membros superiores sem pausas. (S15,
grifo nosso).
Nesta análise foi possível notar que alguns magistrados já apontavam uma
sensibilidade maior a respeito do verdadeiro alcance dos prejuízos decorrentes do acidente de
trabalho. Ainda que considerassem a incapacidade parcial, eles demonstraram a consciência de
que seria quase impossível o retorno do trabalhador ao mercado de trabalho.
A incapacidade apresentada pela autora, ao que tudo indica, apesar de
ser definitiva, é parcial, ou seja, mesmo com as lesões apresentadas
poderá, mesmo que pouco provável, retornar ao mercado de trabalho, com
desenvolvimento de atividades compatíveis com seu estado clínico. (S8,
grifo nosso).
76
Revista Baiana
de Saúde Pública
Foram referenciadas pelos juízes situações de incapacidade total, uma delas
relacionada com a ideia de inutilidade. Em vista da gravidade da lesão, a trabalhadora encontrava-se
inutilizada, ou seja, não estava apenas inapta ao trabalho; a perda da capacidade total para o trabalho
representa aqui uma noção de perda de utilidade.
[...] acabou por contrair a patologia conhecida como LER (Lesões por
Esforços Repetitivos). [...] Em razão da falta de cuidado da reclamada, a
reclamante ficou inutilizada para o trabalho, sendo finalmente aposentada
por invalidez, em decorrência de acidente de trabalho pelo INSS. Sendo
assim, além do terrível absurdo de ficar a reclamante inutilizada para o
trabalho [...] (S20, grifo nosso).
Foram também noticiados os casos de morte do trabalhador, em que é indicada a
evidência do evento morte, cabendo ao magistrado apenas a tarefa de estabelecer o nexo de
causalidade e descrever a forma como se deu o acidente que acarretou a morte. “O falecimento
do empregado enquanto este exercia as suas atividades laborais é fato incontroverso nos autos.”
(S5, grifo nosso).
• Valor da indenização e justificativa do valor
A questão da indenização que se deve pagar pelo dano causado ao trabalhador ainda
se trata de matéria complexa, pois se refere a danos que afetam a esfera físico-psíquica do
homem, que não permite uma valoração específica; somente quem sofre o prejuízo pode afirmar
o verdadeiro valor do bem violado.
Os próprios magistrados reconhecem esta dificuldade:
Como traduzir em expressão monetária o dano à imagem e/ou à dor
psíquica da reclamante e à perda decorrente do fato de que a
aposentadoria por invalidez a impediu de laborar e mesmo de almejar
crescimento profissional? Como fazê-lo se julgamos que o valor pedido foi
excessivo? Eis tormentosa questão. (S4).
O acidente do trabalho e as doenças ocupacionais geram danos de ordem
patrimonial e extrapatrimonial. A respeito da primeira espécie de dano não há muita discussão,
porquanto o valor da indenização deverá corresponder ao valor econômico perdido ou que foi
deixado de ganhar. Já em relação ao segundo, o dano atingirá duas esferas do indivíduo: a
integridade física e a integridade psíquica, moral. O dano sofrido na integridade física, via reflexa,
pode atingir a ordem psíquica do trabalhador, e aí se encontra o ponto crucial: como valorar a dor,
o sofrimento, a perda da dignidade de alguém que não consegue mais sustentar a família por não
poder trabalhar, que não consegue pentear o próprio cabelo.
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Embora o presente estudo não tenha como objetivo apresentar dados quantitativos,
o conjunto de informações acerca dos valores das indenizações será elencado, a fim de
demonstrar que, na amostra selecionada, não foi possível deduzir uma base racional clara em que
o juiz se embasou para determinar o valor. Dentre os casos vistos, doze tiveram como dano a
ocorrência da LER/DORT, três foram de morte, três de acidentes típicos e dois de constatação de
outros tipos de doenças ocupacionais diferentes da LER/DORT.
O valor mais utilizado para pagamento das indenizações foi R$ 50.000,00, tanto para
doenças ocupacionais, acidente típico como também para o evento morte. Entre os casos de LER/
DORT foram determinados valores que variaram entre R$ 20.000,00 até três milhões de reais.
Esses valores evidenciam certa disparidade entre as indenizações estabelecidas para
uma mesma espécie de dano. A observação das sentenças permitiu inferir-se que, embora haja
uma margem de valores que formam um padrão, ocorreram casos em que a disparidade entre os
valores e o mesmo tipo de dano, assim como alguns valores atribuídos a certos danos ensejou o
questionamento sobre aquela punição, se foi realmente efetiva. O que se nota é que, como no
ordenamento jurídico brasileiro ainda não há uma sistematização de critérios fixos a serem
seguidos, em algumas decisões estão presentes alguns critérios motivadores, mas em outras não há
qualquer referência a esses.15
Ressalta-se que, na fixação do valor indenizatório, o juiz deve levar em consideração
o porte da empresa a ser responsabilizada, isto porque uma indenização de R$ 50.000,00 pode
não significar nada para empresas de grande porte, mas pode significar a falência do pequeno
empreendimento. Assim, a observação das sentenças permitiu elencar o porte da empresa como
uma das subcategorias da categoria justificativa do valor. “Isso até representaria uma afronta aos
sentimentos do ofendido. Tudo sem se olvidar da condição socioeconômica da vítima, de seu
status profissional, do porte da empresa, do dolo, da extensão do dano, da reincidência e da
repercussão da ofensa.“ (S12, grifo nosso).
Nas decisões exploradas, em geral, o critério porte da empresa serviu como fator de
aumento dos valores indenizatórios, ou seja, aqueles que têm uma capacidade econômica elevada
têm maiores possibilidades de garantir a não ocorrência de acidentes laborais, mormente as
doenças ocupacionais que podem e devem ser prevenidas.
Outro aspecto mostrou-se relevante: a delimitação do valor a ser pago. Os juízes
têm a preocupação de não alterar o padrão socioeconômico do ofendido e isto se reflete em um
dos “freios” dos julgadores em relação à valoração da ofensa, qual seja, a cautela em não
determinar indenizações milionárias. “Por fim, a simplicidade desta forma de quantificação, que
fixa uma importância razoável em função do tempo de serviço do empregado, traz a segurança
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Revista Baiana
de Saúde Pública
necessária para o julgador cauteloso, evitando-se abusos generalizáveis de fixação de indenizações
milionárias.” (S14, grifo nosso).
A tarefa de fixar o quanto devido em resposta ao dano sofrido é complexa, pois
precisa, além de compensar danos morais, satisfazendo as partes envolvidas, configurar a
realização da justiça perante a sociedade. No caso concreto dos acidentes de trabalho, deve-se
tentar uma aproximação do real valor da perda da capacidade laborativa. Não se defende que as
indenizações sejam de um montante que o indenizado não precise mais trabalhar pelo resto da
vida – quando ainda há capacidade laboral plena –, mas o que se dizer quando ele não trabalha
mais porque teve a sua capacidade de trabalho interrompida por força de um acidente ou doença
ocupacional, que poderia ser evitado?
Assim sendo, o que se observou dos dados obtidos é que há uma possível
incongruência entre os valores arbitrados como indenizatórios, tanto para lesões de mesma espécie
e mesma extensão danosa como para lesões diversas, no entanto, quando confrontados, um se
mostra mais essencial que o outro. No tocante à disparidade na determinação do quanto
indenizatório entre danos da mesma espécie, os juízes trazem essa discussão à tona.
Os julgados que se obtém a respeito são totalmente diversos. Ora
supervalorando a condenação, em valores até mesmo que causam o
desequilíbrio da própria atividade empresarial, trazendo risco à
manutenção do emprego de tantos outros, ora fixa valores irrisórios para
situações em que o dano merecia uma melhor valoração. (S11).
A subcategoria compensação da lesão atua como justificativa do valor fixado. Na
indicação da necessidade de se compensar a lesão, os excertos mostram ainda a sensibilização dos
juízes para as consequências advindas da lesão, seja de ordem social, profissional ou pessoal. O dano
não apenas afeta a esfera física, mas também a psíquica, e os magistrados apontam esta situação:
Destarte, é indubitável e inquestionável que as limitações físicas de que é
portadora a autora causam-lhe mal-estar, dores e limitação ao exercício das
tarefas mais simples e rotineiras do dia a dia. Assim, defiro o pedido de
pagamento de danos morais no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil
reais). (S13, grifo nosso).
No tocante às subcategorias função punitiva e/ou educativa para o empregador e
função preventiva, registra-se a necessidade da reunião de três elementos que atuam como a
finalidade da indenização:
Não bastassem tais argumentos, é crucial que o dano moral é composto de
três finalidades: compensatória ou ressarcitória, punitiva e preventiva. Ou seja,
visa a compensar o efetivo dano sofrido pela vítima; punir o infrator pela sua
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conduta, comissiva ou omissiva; e, por fim, prevenir ou inibir a reincidência
do fato odioso. (S1, grifo nosso).
A aplicação da indenização por dano moral com as finalidades punitiva, educativa e
preventiva constitui uma das suas características marcantes. O caráter de punição reside no fato de
que o trabalhador lesado não só busca a compensação de uma ofensa à sua dignidade, mas
também a punição do ofensor. O cunho pedagógico-preventivo advém da sanção ao
empregador-ofensor pelo seu ato lesivo, para que não volte a praticar tal ato e ainda que os
demais que tiverem conhecimento do fato não incorram no mesmo erro.
Embora a vertente da punição seja aquela que reflete com mais intensidade a
sensação de justiça, a função educativa e a preventiva são aquelas que mais se revestem de
relevância prática e podem intervir na realidade da ocorrência dos acidentes de trabalho. É preciso
educar os empregadores para que cuidem do ambiente de trabalho e promovam melhores
condições de trabalho como meio de prevenção de novos acidentes.
A análise dos discursos presentes nas sentenças permitiu notar-se, em alguns casos,
que a ausência de prevenção é também considerada no momento de valorar a indenização.
Por outro lado, este valor também há que ser considerado como de caráter
punitivo, relativamente à conduta da reclamada, para incentivá-la a não
descuidar da preservação da saúde dos seus empregados, portanto, se for fixado
em quantia inferior, não guardará uma proporcionalidade com o seu suporte
econômico e, portanto, não atingirá o seu objetivo. (S11, grifo nosso).
A promoção da prevenção é o principal caminho a ser seguido, no intuito de reduzir
as demandas trabalhistas que envolvem acidentes de trabalho. Na relação estabelecida entre
empregado e ambiente e trabalho, a Justiça do Trabalho deve ser a última instância a ser buscada.
Antes disso, o empregador e o próprio empregado devem estruturar as condições de trabalho e a
lógica de produção para a proteção da saúde do trabalhador. Com efeito, se medidas preventivas e
de respeito à saúde forem efetivamente adotadas, os problemas que envolvem o elevado número
de ações judiciais trabalhistas por acidente serão amenizados.
O estudo de cunho exploratório desenvolvido permitiu perceber-se que, embora a
forma de atuação dos juízes trabalhistas seja predeterminada, a relação entre a demanda
decorrente do acidente de trabalho e a resposta jurisdicional, representada pela sentença, ainda é
complexa.
A análise dos discursos presentes na sentença indica que inexiste um conceito único
de dano. Para respaldar e fundamentar os conceitos adotados, o juiz faz uso da doutrina, da
jurisprudência, da lei. É imperioso salientar que o magistrado não deve estar adstrito a parâmetros
fixos estabelecidos pela doutrina, jurisprudência etc. A capacidade criativa do magistrado não deve
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Revista Baiana
de Saúde Pública
ser limitada, pois o que se busca é a ampliação da compreensão do que seja um dano decorrente
do acidente de trabalho, a fim de que a defesa dos direitos relacionados à saúde do trabalhador
não reste prejudicada.
O estudo das provas permitiu notar uma necessidade tanto para o campo da saúde
do trabalhador quanto para a área do direito. A noção de dano a ser compreendida pelo magistrado
deve ser livre para enxergar a visibilidade de doenças tidas como invisíveis.
A principal dificuldade que envolve o julgamento dos acidentes de trabalho reside na
valoração do dano sofrido. As sentenças analisadas não indicaram uma base racional clara em que
o magistrado fundamente o valor determinado na sua decisão. Há uma desproporcionalidade entre
os valores estabelecidos, ora para tipos semelhantes de dano, ora para danos em que a vítima
perde a vida frente a danos que causam lesões parciais.
A necessidade da defesa da prevenção noticiada pelos juízes, representada pela
função educativa da sentença, foi um ponto positivo identificado. As sentenças que levantam essa
bandeira revestem-se de uma eficácia prática mais ampla, pois o que se quer é a não ocorrência
de acidentes e doenças do trabalho e não a posterior compensação por um dano que poderia ser
prevenido.
Por fim, é de se ressaltar que este estudo não esgota a temática aqui envolvida. Ao
invés disso, pretendeu delinear características sobre a relação entre a demanda judicial trabalhista e
os elementos utilizados para o seu julgamento. Outras pesquisas são fundamentais para o
alargamento das discussões e para o preenchimento de lacunas que aqui não puderam ser
sanadas.
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Janeiro: Renovar; 2006.
Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 14.04.2011
82
ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
DESEQUILÍBRIO ESFORÇO-RECOMPENSA NO TRABALHO E TRANSTORNOS MENTAIS
COMUNS EM ELETRICISTAS DE ALTA TENSÃO
Suerda Fortaleza de Souzaa
Fernando Martins Carvalhob
Tânia Maria de Araújoc
Lauro Antonio Portod
Resumo
Objetivou-se investigar a associação entre aspectos psicossociais do trabalho e a
prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) em eletricistas de equipamentos e linhas de
transmissão de energia elétrica de alta tensão. Realizou-se um estudo de corte transversal em 158
trabalhadores de manutenção elétrica de uma empresa de energia elétrica no Nordeste do Brasil.
A variável independente principal foi aspectos psicossociais do trabalho, medidos segundo o
Modelo Desequilíbrio Esforço-Recompensa (ERI). A variável dependente foi a prevalência de TMC
medida pela escala SRQ-20. Usaram-se técnicas de regressão logística múltipla. A prevalência de
TMC foi de 20,3%, sendo significantemente mais elevada entre trabalhadores com baixa
recompensa (RP = 4,8; IC 95% 1,87-12,4) e com alto esforço (3,95; 1,31-11,9). Trabalhadores
com comprometimento excessivo com o trabalho apresentaram prevalência de TMC 2,38 (0,866,59) vezes mais elevada. Trabalhadores com razão esforço-recompensa >1 apresentaram
prevalência de TMC 2,10 (0,90-5,17) vezes maior que aqueles com razão ≤1. Entretanto, essa
associação não foi estatisticamente significante, após ajuste por prática de atividade física, lazer e
comprometimento excessivo com o trabalho. Isto pode dever-se ao pequeno tamanho do estudo.
Concluiu-se que os aspectos psicossociais no trabalho desempenham papel importante na saúde
mental dos trabalhadores eletricitários de linhas de alta tensão.
Palavras-chave: Saúde mental. Saúde do trabalhador. Aspectos psicossociais. Abastecimento de
energia.
a
Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected]
Núcleo de Epidemiologia, Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). [email protected]
d
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected]
b
c
Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da
Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Praça XV de Novembro, s/n, Largo do Terreiro de Jesus, Salvador, Bahia, Brasil. CEP:
40025-010. [email protected]
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EFFORT-REWARD IMBALANCE AT WORK AND COMMON MENTAL DISORDERS
AMONG WORKERS IN HIGH VOLTAGE POWER LINES
Abstract
The objective of this study was to investigate the association between psychosocial
factors at work and the prevalence of Common Mental Disorders (CMD) disease among workers
in equipment maintenance and transmission of electric power. We conducted a cross-sectional
study among all the 158 maintenance workers of an electric power company in Northeast Brazil.
The main independent variable was the psychosocial aspects of work, measured according to the
Effort-Reward Imbalance Model (ERI), and the dependent variable was the prevalence was Common
Mental Disorders-CMD. Data were analyzed by multiple logistic regression techniques. The
prevalence of CMD was 20.3%, being significantly higher among workers with low reward (PR =
4.8, 95% CI 1.87-12.4) and high effort (3.95, 1 0.31-11. 9). Workers with over commitment to
work had CMD prevalence rate 2.38 (0.86-6.59) times higher. Workers with effort/reward ratio
>1 showed TMC prevalence 2.10 (0.90 to 5.17) times greater than those with this ratio ≤1.
However, this association was not statistically significant after adjusting for physical activity, leisure
and over commitment to work, probably due to the study small size. Psychosocial aspects of work
play an important role in the mental health of workers in equipment maintenance and transmission
of electric power.
Key words: Mental health. Psychosocial factors. Occupational health. Energy supply.
DESEQUILIBRIO ESFUERZO-RECOMPENSA EN EL TRABAJO Y TRASTORNOS MENTALES
COMUNES EN ELECTRICISTAS DE ALTA TENSIÓN
Resumen
El objetivo de este estudio fue investigar la asociación entre aspectos psicosociales del
trabajo y la prevalencia de Trastornos Mentales Comunes (TMC) en electricistas de los equipos y
líneas de transmisión eléctrica de alta tensión. Fue realizado un estudio transversal entre los 158
trabajadores de mantenimiento de una empresa de energía eléctrica en el Nordeste de Brasil. La
variable independiente principal fue la de los aspectos psicosociales del trabajo, medidos de acuerdo
con el Modelo Desequilibrio Esfuerzo-Recompensa (ERI). La variable dependiente fue la prevalencia
de TMC medida por la escala SRQ-20. Fueron usadas técnicas de regresión logística múltiple. La
prevalencia del TMC fue del 20,3%, siendo significativamente superior entre los trabajadores con
baja remuneración (PR = 4,8, IC 95% 1,87-12,4) y alto esfuerzo (3,95, 1 0,31-11, 9). Trabajadores
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Revista Baiana
de Saúde Pública
con exceso de compromiso con el trabajo presentaron prevalencia de TMC 2.38 (0,86-6,59) veces
superior. Trabajadores con relación esfuerzo/recompensa >1 presentaron prevalencia de TMC 2,10
(0,90 a 5,17) veces superior a aquellos con razón ≤1. Sin embargo, esta asociación no fue
estadísticamente significativa después del ajuste para la actividad física, ocio y excesivo compromiso
con el trabajo, probablemente debido al tamaño pequeño del estudio. Se concluyó que los aspectos
psicosociales en el trabajo desempeñan papel importante en la salud mental de los trabajadores en
el mantenimiento de equipos y transmisión de líneas de alta tensión.
Palabras-clave: Salud mental. Salud del trabajador. Aspectos psicosociales. Abastecimiento de
energía.
INTRODUÇÃO
O trabalho tem um importante papel na saúde e na vida social dos indivíduos.
Entretanto, as relações entre homem e trabalho tornaram-se cada vez mais complexas,
modificando os determinantes do processo saúde-doença. Diversos estudos1-3 apontam que
situações de trabalho oferecem baixas recompensas frente a demandas excessivas. Nesse
contexto, os fatores psicossociais do trabalho vêm ganhando expressiva relevância, em função dos
efeitos que podem acarretar sobre a saúde dos trabalhadores.4
Levando em consideração esses aspectos psicossociais do trabalho, o modelo teórico
Effort-Reward Imbalance Model (ERI)5 tem sido utilizado para estudar as situações de desequilíbrio
entre esforço e recompensa no trabalho e a influência desta relação no estado de saúde dos
trabalhadores. Este modelo sustenta que distintas tarefas de trabalho associam-se a diferentes níveis
de compensação, tais como salários, estima e segurança no trabalho. O modelo prediz que a falta de
reciprocidade entre o esforço despendido e a recompensa recebida desencadeia reações de estresse
com consequências, em longo prazo, para a saúde física e mental.5,6 O modelo também destaca a
importância do papel social do trabalho, ressaltando a possibilidade de o trabalhador sentir-se
reconhecido e estimado, e reforçando o seu sentimento de pertencer a um grupo.7
O modelo esforço-recompensa combina a informação subjetiva sobre as demandas
do trabalho executado e que exige recompensa (componente extrínseco), na forma de
compensação monetária, autoestima e aquelas relacionadas às possibilidades de promoção na
carreira e segurança no trabalho, bem como a informação da característica pessoal (componente
intrínseco) que implica nos recursos pessoais para lidar com as demandas e desafios do trabalho.
Uma das escalas do ERI mede o comprometimento excessivo (overcommitment), constituído por
um conjunto de atitudes e comportamentos que resultam em excessivo empenho, combinado à
grande necessidade de reconhecimento e estima. Deste modo, trabalhadores com
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comprometimento excessivo com o trabalho responderiam com maior tensão ao desequilíbrio
esforço-recompensa, em comparação aos empregados sem comprometimento excessivo com o
trabalho.6
Portanto, o esforço realizado é a resposta do indivíduo às demandas do trabalho
(esforço extrínseco), combinado à motivação individual frente às demandas (esforço intrínseco).
A dimensão recompensa compreende o que o indivíduo espera receber em função do seu
esforço, e pode ser medida de três formas distintas: dinheiro, aprovação/reconhecimento
(autoestima) e promoção e segurança no trabalho. Estas três dimensões estão inter-relacionadas,
se a recompensa monetária puder aumentar a autoestima e a segurança no trabalho. É possível
que indivíduos com alta necessidade de controle mobilizem grande energia e envolvimento com
o trabalho (alto esforço), mesmo sob condições de baixo ganho monetário. Isto depende das
características de percepção do indivíduo, da sua experiência de autogratificação e de estar no
controle de situações desafiadoras.8
A vivência continuada de situações de desequilíbrio entre esforço e recompensas
pode gerar estresse crônico, que, por sua vez, se associa a uma série de efeitos nocivos à saúde.
Diversos estudos têm evidenciado associação entre situações de desequilíbrio e doenças
cardiovasculares, distúrbios psiquiátricos e condições gerais de saúde.3,9 O modelo, portanto,
tem-se destacado como um bom instrumento de avaliação dos aspectos psicossociais do
trabalho, possibilitando análise de situações que produzem estresse e sua associação com efeitos
sobre a saúde dos trabalhadores.8
Trabalhadores em manutenção de equipamentos e linhas de transmissão de alta
tensão convivem diariamente com alto risco ocupacional, no esforço para atender às prescrições
formais e alcançar a produtividade exigida. Essas situações desfavoráveis podem afetar a sua saúde
mental, evidenciando, entre outras condições patológicas, elevada prevalência de transtornos
mentais comuns.10
Este estudo teve como objetivo investigar a associação entre Transtornos Mentais
Comuns e aspectos psicossociais do trabalho, avaliados pelo modelo Desequilíbrio
Esforço-Recompensa, em eletricistas de alta tensão.
MATERIAL E MÉTODOS
Trata-se de um estudo epidemiológico de corte transversal em uma população de 161
trabalhadores do sexo masculino, pertencentes aos setores de manutenção de equipamentos e linhas
de transmissão de alta tensão de uma empresa do setor elétrico, nos estados da Bahia e Sergipe.
Foram incluídos todos os trabalhadores que pertenciam aos setores de manutenção. A empresa tem
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Revista Baiana
de Saúde Pública
capacidade instalada de 10.618 MW (10,9% da produção do Brasil), gera 49.596 GW/h, atendendo a
distribuidores, comercializadores e consumidores industriais nas regiões Sul, Sudeste, Norte e
Nordeste do Brasil. Os trabalhadores têm como atribuição realizar a manutenção preventiva e
reparadora em equipamentos elétricos das subestações, usinas e linhas de transmissão.
Dos 161 trabalhadores elegíveis para o estudo, 158 (98,2%) responderam a todas as
perguntas, tendo ocorrido duas recusas de participação e uma ausência durante a realização das
entrevistas. O questionário de investigação foi aplicado em entrevistas individuais, durante a
jornada de trabalho e realizado por uma única entrevistadora, no período de abril a julho de 2008.
A participação foi voluntária. No recinto, permanecia somente o entrevistado e a entrevistadora
que lia o termo de consentimento e, havendo concordância, dava início à entrevista. Os objetivos
da pesquisa foram esclarecidos em reunião prévia com os trabalhadores de cada setor.
Foi utilizado um questionário padronizado, contendo blocos de questões abordando
características sociodemográficas e estilo de vida; situações de trabalho; aspectos psicossociais do
trabalho, medidos pelo Effort-Reward Imbalance Questionnaire (ERI-Q); e saúde mental, utilizando-se
o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), para avaliar Transtornos Mentais Comuns (TMC).11
O questionário para medir os aspectos psicossociais do trabalho (ERI-Q) é composto
por 23 questões, sendo 17 com respostas dicotômicas (discordo ou concordo): 6 itens relacionados
a esforço extrínseco (com escore total de 5 a 30) e 11 itens relacionados a recompensa (com
escore total de 11 a 55). Ainda, para cada resposta “concordo” ou “discordo”, somam-se quatro
opções em escala Likert que variam de “não estressado” a “muito estressado”. Os seis itens
restantes contêm a dimensão de compromisso excessivo com o trabalho (overcommitment), com
respostas em escala Likert, indo do “discordo totalmente” a “concordo totalmente”.6
As dimensões esforço, recompensa e comprometimento excessivo foram
dicotomizadas em alto e baixo esforço, alta e baixa recompensa e alto e baixo comprometimento,
com o ponto de corte no valor médio. A razão Desequilíbrio Esforço-Recompensa foi calculada da
seguinte forma: effort/(reward x fator de correção).12 Valores próximos a zero indicam uma
condição favorável (relativo a baixo esforço e alta recompensa) e valores superiores a um indicam
maior esforço gasto e menor recompensa recebida. O escore da razão foi feito para valores
menores ou iguais a 1 e valores maiores do que 1, obtendo-se um indicador de ausência (valores
d” 1) ou presença (valores > 1) de desequilíbrio esforço-recompensa.
Estudos de validação do ERI com trabalhadores no contexto brasileiro evidenciaram
bom desempenho do instrumento.6,13
Os transtornos mentais comuns (TMC) foram avaliados pelo SRQ-20. Este
questionário é composto por 20 questões com respostas binárias (sim ou não), classificadas em
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87
grupos de sintomas físicos e grupos de distúrbios psicoemocionais (diminuição de energia, humor
depressivo e pensamento depressivo). Muito utilizado no Brasil, mostrou alta sensibilidade e
especificidade no estudo de validação.14 Neste estudo, estabeleceu-se como ponto de corte 5/6
(definindo-se transtornos mentais comuns como seis ou mais respostas positivas).15
A variável independente principal foi representada pelos aspectos psicossociais do
trabalho, constituída pelas dimensões do Modelo Esforço-Recompensa (comprometimento,
esforço, recompensa e a situação desequilíbrio esforço-recompensa). A variável dependente foi
representada pelos Transtornos Mentais Comuns (TMC).
Outras variáveis independentes, analisadas como potenciais variáveis de
confundimento, foram: idade (categorizada por quartis); escolaridade (categorizada em ensino
fundamental / médio / superior); consumo de bebida alcoólica (não bebe ou bebedor eventual /
bebedor de uma ou mais vezes na semana); prática de atividade física fora do trabalho (sim / não);
lazer autorreferido (sim / não); renda (até R$ 2.500,00 / acima de R$ 2.500,00); tempo de
trabalho na empresa (categorizado por quartis); tempo de trabalho na função (categorizado por
quartis); tempo de trabalho no setor (categorizado por quartis); situação conjugal (casado ou união
estável / ou demais situações); relato de parentes de primeiro grau (pai ou irmãos) trabalhando ou
que trabalharam na mesma empresa; e residência (capital / interior).
Os dados foram processados pelo programa estatístico Statistical Package for the
Social Sciences (SPSS: applications guide. Version 9.0. Chicago: SPSS, 1991).
Foram avaliadas as características sociodemográficas e do trabalho da população. Para
analisar a associação entre as variáveis independentes principais (dimensões do Modelo
Esforço-Recompensa) e a variável dependente (TMC), foram utilizadas análises de regressão logística
múltipla, considerando-se o ajuste por covariáveis relevantes. Foram conduzidas análises em separado
para as dimensões do modelo: esforço, recompensa e situação de desequilíbrio (razão).
As variáveis independentes foram pré-selecionadas individualmente, adotando-se
como critérios a relevância epidemiológica e um valor p inferior a 0,25 no teste da razão de
verossimilhança para a significância do coeficiente. Em seguida, aplicou-se regressão logística ao
conjunto das variáveis pré-selecionadas, chegando-se ao modelo final com base no teste da
estatística de Wald (valor p igual ou inferior a 0,20 para a inclusão de cada variável no modelo). Na
análise de modificação de efeito, os termos-produtos da variável de exposição principal com as
variáveis potencialmente modificadoras foram excluídos um a um, desde que apresentassem valor
p superior a 0,10 no teste da estatística de Wald. As Odds Ratios (OR) obtidas com base nas
análises de regressão logística foram convertidas em Razões de Prevalências (RP) e estimados os
seus respectivos intervalos de confiança, com a utilização do método Delta.1,6 O estudo atendeu
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Revista Baiana
de Saúde Pública
aos princípios éticos, em acordo com a Resolução CNS 196/96, sendo aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia (Parecer
número 026/2008, em 27/2/2008).
RESULTADOS
Características da população estudada. Os trabalhadores tinham média de idade de
45 anos (dp= 8,6 anos), e 46,8% estavam na faixa de 41 a 50 anos. A escolaridade até o nível
médio foi encontrada em 49% dos indivíduos. Em relação à situação conjugal, 80,4% viviam em
união estável; 92,4% tinham filhos. O salário variou de R$ 1.001,00 a R$ 2.500,00 para 54,4% do
grupo. Consumo de bebida alcoólica (eventual ou regular) foi referido por 86,1% e desses, 49,5%
bebiam três ou mais vezes na semana. A prática de atividade física (irregular ou regular) foi referida
por 55,1% dos entrevistados. Atividade de lazer foi referida por 88,0%. O hábito de fumar foi
referido por 13,3%.
A média do tempo de trabalho na empresa foi de 19,6 anos (dp= 10,6 anos);
66,2% dos trabalhadores tinham 21 ou mais anos de empresa (dp= 9,3 anos). A média de
tempo na função foi de 14,4 anos (dp= 9,8 anos) e a média de tempo no setor foi de 12,6
anos (dp= 9,27 anos). Do total, 76,6% trabalhavam em funções operacionais; destes, 42,4%
eram auxiliares de manutenção. Ao serem questionados sobre familiares (pais ou irmãos) que
trabalham ou trabalharam na empresa, 25,3% responderam positivamente e 14,6% já prestavam
serviço à empresa antes da contratação. O turno de trabalho na empresa era administrativo
(jornada de segunda a sexta, 8 horas/dia), mas 86,7% dos empregados poderiam ser requisitados
a trabalhar em turnos noturnos ou nos fins de semana, de acordo com a necessidade da
empresa. Quanto ao tipo de função, 39,9% atuavam na manutenção de linhas de transmissão,
41,1% na manutenção de subestação, 15,8% tinham atribuições na manutenção da usina e 3,2%
realizavam atividades técnico-administrativas.
Alto esforço despendido foi observado para 77 indivíduos (48,7%), com escore
médio de 13,7 (DP= 5). Baixa recompensa recebida foi encontrada para 63 indivíduos (39,9%),
com escore médio de 46,5 (DP= 7,5). Considerando a razão Esforço-Recompensa maior que 1
(situação de desequilíbrio), 8,9% da população estudada encontravam-se nesta situação. O
comprometimento excessivo com o trabalho foi evidenciado em 53,2% dos trabalhadores.
A prevalência global de TMC foi de 20,3%.
A prevalência de TMC foi mais elevada na situação de baixa recompensa (39,9%) e
de alto esforço (33,8%). Nas situações de desequilíbrio entre esforço e recompensa, a prevalência
de TMC foi de 50%.
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A prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) estava fortemente associada à
baixa recompensa e ao alto esforço no trabalho, mesmo quando ajustada pelos efeitos das
covariáveis prática de atividade física, lazer e tempo na função. A prevalência de TMC foi cerca de
5 vezes maior entre os trabalhadores com baixa recompensa do que entre aqueles com altas
recompensas e 4 vezes maior entre aqueles com alto esforço.
Na análise bivariada, a prevalência de TMC estava associada ao comprometimento
excessivo com o trabalho, mas não manteve o nível de significância estatística, após o ajuste pelas
covariáveis selecionadas no modelo final de regressão logística realizada: atividade física, lazer e
tempo na função (Tabela 1).
Tabela 1. Razões de prevalências (RP) bruta e ajustada e respectivos intervalos de confiança
(IC 95%) para Transtornos Mentais Comuns (TMC), segundo dimensões do modelo
Esforço-Recompensa (ERI) em trabalhadores de manutenção de equipamentos e linhas de
transmissão de energia elétrica – Salvador, Bahia, Brasil – 2008
De modo similar, na análise bivariada, o desequilíbrio entre esforço e recompensa
mostrou-se estatisticamente associado aos TMC, porém não manteve significância estatística (p< 0,05)
no modelo multivariado, ajustado por prática de atividade física, lazer e comprometimento com o
trabalho (Tabela 1). Apesar da associação observada não ter sido estatisticamente significante, após
ajuste pelos confundidores, cabe registrar que a prevalência ajustada de TMC foi 2,38 maior no grupo
com comprometimento excessivo comparado ao grupo sem excesso de compromisso, e 2,10 maior na
situação de desequilíbrio entre esforço e recompensa.
90
Revista Baiana
DISCUSSÃO
de Saúde Pública
As três dimensões do Modelo Esforço-Recompensa (alto esforço, baixa recompensa
e comprometimento com o trabalho) apresentaram elevada prevalência, sendo comprometimento
(overcommitment) a que mais se destacou (53%). Esta dimensão é vista no modelo como uma
característica da personalidade, um esforço intrínseco baseado em elementos cognitivos,
emocionais e motivacionais, influenciando a percepção de alto esforço e baixa recompensa.1
Assim, o comprometimento excessivo com o trabalho diante de situações com alto esforço e baixa
recompensa, poderá representar maior risco à saúde. Por outro lado, a ausência desse excessivo
comprometimento com o trabalho possivelmente funcione como uma estratégia para manter o
bem-estar.
Para valores maiores que 1, a razão esforço-recompensa foi considerada como
desequilíbrio, tal como preconizado pela formulação clássica do modelo. A prevalência de
desequilíbrio esforço-recompensa foi baixa (8,9%), coincidindo com outros estudos.1,7,17,18
A população estudada tinha renda média e nível educacional melhores que a
população geral da Região Metropolitana de Salvador.19
O longo tempo de trabalho na empresa, o fato de alguns trabalhadores já prestarem
serviço antes da contratação e a presença de parentes próximos que trabalharam ou trabalham na
mesma organização representam a situação estável dessa população, bem como se supõe a
existência de um forte vínculo entre trabalhador e empresa. Por outro lado, a permanência no
mesmo cargo e setor reflete a impossibilidade de ascensão profissional na empresa. O maior
percentual de trabalhadores em tarefas operacionais foi observado na função de auxiliar de
manutenção. Esta função é a de menor autonomia na escala hierárquica das funções de
manutenção na empresa.
A prevalência de TMC foi elevada (20,3%), sendo mais alta do que aquela
encontrada em estudo realizado com eletricitários da Região Metropolitana de Vitória, Espírito
Santo (18,7%).20 Outros estudos envolvendo eletricitários, embora utilizando instrumentos e
métodos diferentes, evidenciaram prevalência relativamente elevada de transtornos mentais.21,22
Quando comparada a outras populações de trabalhadores, a prevalência de TMC foi semelhante à
encontrada em policiais civis (20,2%).23 A comparação com outros estudos23,24 fica prejudicada
pelas diferenças de características e situações de trabalho das populações estudadas.
A prevalência elevada de TMC estava fortemente associada a alto esforço e baixa
recompensa com o trabalho. Apesar de os estudos nacionais que utilizam o modelo Desequilíbrio
Esforço-Recompensa (ERI) ainda serem escassos,10,13,17,23 na literatura internacional são encontrados
diversos estudos3,25,26 que confirmam a adequação desse modelo para avaliar a associação dos
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91
fatores psicossociais do trabalho com efeitos à saúde mental do trabalhador, podendo ser aplicado
a uma variedade de cenários ocupacionais.8
A prevalência de TMC não manteve associação estatística significante com a situação
de desequilíbrio entre esforço e recompensa. Resultado semelhante ocorreu com outro estudo.26 O
autor atribuiu ao tamanho da amostra uma das possíveis justificativas para tal fato. Possivelmente, a
permanência da associação entre TMC e desequilibro esforço-recompensa não tenha sido favorecida,
por se tratar de um estudo transversal. Apesar de os estudos transversais também suportarem a
suposição de associação entre desequilíbrio esforço-recompensa e efeitos negativos sobre a saúde,
somente os estudos longitudinais têm evidenciado, mais claramente e de modo mais consistente, o
valor preditivo do modelo.27 Além disto, o uso da razão ERI como uma variável dicotômica (ter ou
não desequilíbrio) também pode ter contribuído para a perda de associação observada. O uso da
razão ERI como uma medida contínua tem sido recomendado por alguns autores,26,27 uma vez que
os estudos que adotaram tal procedimento produziram evidências mais robustas de associação, com
efeitos estatísticos mais fortes, do que outras formulações testadas.8
Dentre as limitações deste estudo, podem ser citados o desenho de estudo e o
reduzido número de indivíduos.
Nos estudos de corte transversal, as medidas de interesse de exposição e efeito
são avaliadas em um mesmo período de tempo, dificultando o estabelecimento de relação
causa-efeito. Apesar da alta taxa de resposta obtida, o reduzido número de indivíduos dificultou
a análise dos dados em função do pequeno número nos grupos estratificados, resultando em
intervalos de confiança demasiadamente amplos e diminuindo a precisão das estimativas. A
despeito do pequeno número estudado, cabe destacar que foi avaliada uma situação concreta
de trabalho quase na sua totalidade, oferecendo um quadro bastante fidedigno da população
trabalhadora estudada e das relações entre aspectos psicossociais do trabalho e a saúde mental
entre esses trabalhadores.
O efeito do trabalhador sadio, caso tenha ocorrido neste estudo, foi provavelmente
de baixa magnitude, já que os TMC são agravos de natureza crônica e raramente fatais; a
população estudada tem boa estabilidade no emprego e houve perda mínima de casos. Todavia,
deve-se considerar a possibilidade de adoecimento mental de trabalhadores não incluídos neste
estudo, como os aposentados, falecidos por outras morbidades ou os que já haviam se desligado
da empresa à época do estudo.
Embora o SRQ-20 seja considerado um instrumento com desempenho aceitável em
avaliar TMC, demonstrando habilidade para rastreamento da saúde mental em âmbito
populacional,28,29 ele não é um meio de diagnóstico. Portanto, é possível que o SRQ-20 tenha
92
Revista Baiana
de Saúde Pública
subestimado ou superestimado o efeito estudado. Como todos os trabalhadores foram avaliados
pelo mesmo instrumento, adotando-se os mesmos procedimentos para sua aplicação e
classificação de TMC, este viés, se ocorreu, foi não diferencial (pode ter ocorrido em ambos os
grupos expostos e não expostos), não comprometendo o resultado obtido a favor de hipótese de
associação.
A despeito das limitações metodológicas, os resultados encontrados reforçam a ideia
de que o ambiente psicossocial do trabalho é um importante determinante do estado de saúde
mental em trabalhadores de diversas categorias profissionais.1-4,28,29 A escassez de pesquisas que
utilizam o modelo Desequilíbrio Esforço-Recompensa entre eletricitários dificultou comparações
com os resultados encontrados neste estudo. Tal fato reforça a necessidade de se realizar
investigações semelhantes para avaliar o papel dos aspectos psicossociais na saúde mental dos
trabalhadores eletricitários de linhas de alta tensão.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 14.04.2011
v.35, n.1, p.83-95
jan./mar. 2011
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ARTIGO ORIGINAL
O AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE: VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO NO TRABALHO A
CÉU ABERTO
Lázaro José Rodrigues de Souzaa
Maria do Carmo S. de Freitasb
Resumo
Este estudo parte do pressuposto de que as violências percebidas pelos Agentes
Comunitários de Saúde (ACS) em seu ambiente laboral têm comprometido a organização de seu
trabalho e dificultado as ações de prevenção e promoção da saúde da população assistida pelo
Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, objetiva analisar significados atribuídos pelos ACS aos
tipos, formas de referência e nomeação da violência vivenciada no cotidiano de trabalho no bairro
do Candeal, Distrito Sanitário de Brotas na cidade do Salvador. Trata-se de um estudo de natureza
qualitativa, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas e observação participante com
trabalhadores da Unidade de Saúde da Família do referido bairro. Os resultados revelam a
complexidade das relações laborais vivenciadas pelos ACS no Candeal de Brotas em Salvador,
Bahia, desvelando as situações de violência no cotidiano de trabalho. A pesquisa aponta para a
necessidade de preparação dos ACS para as suas ações de uma forma geral e da violência em
particular, estabelecendo o desafio que a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador tem, em
ampliar o conceito e as práticas de saúde, inserindo, concretamente, a violência como um
problema que afeta trabalhadores e usuários dos serviços prestados pela Unidade de Saúde
Familiar (USF).
Palavras-chave: Trabalho. Violência. Saúde do trabalhador. Agente comunitário de saúde.
a
Mestre em Saúde Pública pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho. Faculdade de Medicina da
Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Terapeuta Ocupacional da Diretoria de Vigilância e Atenção a Saúde do
Trabalhador (DIVAST), Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB).
b
Doutora em Saúde Pública, com ênfase em Ciências Sociais na Saúde. Instituto de Saúde Coletiva (ISC), Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da
Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Endereço para correspondência: Rua Pedro Lessa, no. 123, Canela, Salvador, Bahia. CEP: 40110-050. [email protected]
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Revista Baiana
COMMUNITY HEALTH AGENT: VIOLENCE AND SUFFERING AT OPEN FIELD WORK
de Saúde Pública
Abstract
This study assumes that the violence perceived by the ACS in their work environment
has compromised the organization of their work and hampered the prevention and health promotion
actions among people assisted by SUS. Attempts were made to understand the meanings assigned
by ACS to the types, forms of reference and denomination of the violence experienced in daily
work in Candeal. This is a qualitative study, conducted through semi-structured interviews and
participant observation with employees of the Family Health Unit in Salvador, Sanitary District of
Brotas in Salvador, Bahia. We interviewed eight ACS from a care unit that volunteered to participate.
The results reveal the complexity of industrial relations experienced by the ACS in Candeal,
revealing the violent situations in daily work. The research points to the need for preparation of
the ACS for their actions in general and violence in particular, establish the challenge that the
Salvador City Department of Health has, to expand the concept and practice, placing health and
specifically violence as an issue that affects workers and users of services provided by USF.
Key words: Work. Violence. Occupational health. Community health agent.
EL AGENTE COMUNITARIO DE SALUD: LA VIOLENCIA Y SUFRIMIENTO EN EL TRABAJO
AL AIRE LIBRE
Resumen
Este estudio parte del supuesto que las violencias percibidas por los Agentes
Comunitarios de Salud (ACS) en su entorno laboral han comprometido la organización de su
trabajo y obstaculizado las acciones de prevención y promoción de la salud de la población asistida
por el Sistema Único de Salud (SUS). Para tanto, tiene por objetivo analizar significados atribuidos
por los ACS a los tipos, formas de referencia y nombramiento de la violencia experimentada en el
trabajo diario en el Barrio Candeal. Distrito Sanitario de Brotas en la ciudad de Salvador. Se trata de
un estudio de naturaleza cualitativa, realizado a través de entrevistas semiestructuradas y observación
participante con trabajadores de la Unidad de Salud de la Familia en el referido barrio. Entrevistamos a ocho trabajadores de la unidad de atención del ACS que se ofrecieron a participar. Los
resultados revelan la complejidad de las relaciones laborales vividas por los ACS en Candeal de
Brotas, Salvador, desvelando las situaciones de violencia en el trabajo cotidiano. La investigación
apunta a la necesidad de preparación de los ACS, para sus acciones en general y de la violencia,
en particular, estableciendo el reto que el Departamento de Salud de la ciudad de Salvador tiene,
v.35, n.1, p.96-109
jan./mar. 2011
97
de ampliar el concepto y las prácticas, de salud, insiriendo concretamente la violencia, como un
problema que afecta a los trabajadores y a los usuarios de los servicios prestados por la Unidad de
Salud Familiar (USF).
Palabras-clave: Trabajo. Violencia. Salud del trabajador. Agente comunitario de salud.
INTRODUÇÃO
O termo trabalho quer dizer essencialmente uma atividade humana realizada em
diferentes situações e condições, e pode contribuir tanto para o bem-estar/estruturação psíquica
quanto para o mal-estar/desestruturação psíquica.1 Além disto, trabalhar na rua não é para qualquer
pessoa. Com o passar o tempo é fácil perder-se em meio à poeira que resseca a visão e sobe
pelos pés, igual à assombração em busca de almas. O escritor carioca João do Rio falava, em
1908, que a rua nasce como o homem, do soluço, do espasmo, e que há suor humano contido na
argamassa do seu calçamento, o que a transforma na mais igualitária, mais socialista e mais
niveladora obra humana.2
O trabalho a céu aberto gera um conflito interno pelo desamparo, riscos em meio a
uma sociedade violenta, como a cidade do Salvador, Bahia. Nesse sentido, a precariedade do
trabalho remete a uma realidade de desabrigo, cuja produção nesse conjunto aberto é um campo
a ser reconquistado a cada ocorrência de saúde nas ruas e habitações do bairro, enquanto
trabalhador, Agente Comunitário de Saúde.3
Este trabalho apresenta a enunciação de um grupo desses trabalhadores que
desenvolvem as ações necessárias para a materialidade de seu trabalho, tendo a rua como a
cena principal. Um campo profissional novo, e que tem como pré-requisito que o profissional
resida em sua área de trabalho. É um sujeito ativo que, no convívio familiar, social e profissional
reage provocando mudanças e/ou transformações do cuidado de si, do outro e do meio social
em que vive.
Para que esse trabalhador não se encontre totalmente à deriva, há a Norma
Regulamentadora No 21, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),4 que, ao fazer referência ao
trabalho a céu aberto, coloca a obrigatoriedade da existência de abrigos para proteger os
trabalhadores contra intempéries, insolação excessiva, calor, frio, umidade e eventos
inconvenientes.
A temática central deste artigo traz a violência no trabalho dos Agentes Comunitários
de Saúde (ACS). Uma questão relacionada à sociedade com extremas desigualdades geradas pelo
desemprego, corrupção e impunidade.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
O estudo destaca esse trabalhador como protagonista central das diversas interfaces
do trabalho, resgata a constituição do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) –
origem desta categoria profissional – e compreende os fenômenos que surgem da relação entre o
ACS e o ato laboral. Apresenta uma análise sobre o risco de violências percebido por eles em seu
ambiente laboral a ponto de comprometer a organização de seu trabalho e dificultar as ações de
prevenção e promoção à saúde da população assistida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A categoria profissional ACS é estruturada no início da década de 1990, em
decorrência de algumas iniciativas exitosas de assistência social no estado do Ceará. Este tipo de
atividade é considerado por alguns teóricos como sui generis, porque o(a) ACS é um(a)
trabalhador(a) proveniente do próprio local de moradia, na qual desenvolve atividades nas áreas da
saúde e educação. O PACS, incorporado ao Programa de Saúde da Família (PSF) em 1993, é um
programa que faz parte das políticas de saúde pública e está vinculado ao SUS.
O Ministério da Saúde (MS)5 entende que a criação do PACS foi uma das primeiras
estratégias para se começar a mudar o modelo de assistência à saúde, sendo a meta desse programa
contribuir para a reorganização dos serviços municipais de saúde e integrar as ações entre os diversos
profissionais, com vistas à ligação efetiva entre a comunidade e as unidades de saúde. Uma estrutura
de atenção à saúde é montada com uma equipe que projeta uma base assentada em agentes de
saúde (trabalho casa a casa), um nível intermediário com auxiliares (trabalho de vacinação,
procedimentos de enfermagem, triagem) e um topo com os profissionais universitários (em menor
número e nos consultórios). A inserção do ACS como força de trabalho no SUS contribui com os
cuidados primários de saúde à população, como também para o processo de municipalização da
saúde. O trabalho do ACS é o elo entre a comunidade e os serviços de saúde.
O Decreto Federal Nº 3.189, de 4 de outubro de 1999,6 fixa diretrizes para o exercício
da atividade do ACS. Em seu artigo 2º são apresentadas as atuações previstas em sua microárea. Ou
seja: Cadastramento/diagnóstico; Mapeamento; Identificação de microáreas de risco; Realização de
visitas domiciliares; Ações coletivas e intersetoriais (educação, cidadania/direitos humanos). O trabalho
do ACS diferencia-se dos demais trabalhadores da área da saúde em razão de sua atuação em várias
situações ao mesmo tempo, as quais envolvem questões de saúde/doença, educação/informação,
prevenção/assistência, bem como contato direto e constante com a população/comunidade.
MATERIAL, TEORIA E MÉTODO
O trabalho se dá num espaço que se atualiza no tempo: o bairro e seu cotidiano.7
Nesse aspecto, o estudo foi desenvolvido segundo a perspectiva da abordagem qualitativa, em
que a análise responde a questões particulares, preocupando-se com um nível de realidade que
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não pode ser quantificado. Buscou-se então a compreensão dos valores culturais e das
representações desse grupo, as relações entre os atores sociais, tanto no âmbito das instituições
como no mundo da vida cotidiana dos moradores, a aplicação técnica da promoção da saúde pelos
usuários, os significados, crenças, valores, atitudes, correspondendo a fenômenos que não podem
ser reduzidos à operacionalização de simples variáveis causais dos problemas de saúde.8
Uma abordagem bastante adequada e atualmente utilizada em pesquisa empírica de
caráter qualitativo é a triangulação dos dados, cujo objetivo é abranger a máxima amplitude na
descrição e compreensão do objeto/sujeito do estudo, por meio do cruzamento de múltiplos
pontos de vista com base em uma série de informações e de diferentes instrumentos de coletas.9
A triangulação de dados numa abordagem qualitativa é necessária para o reconhecimento da
subjetividade do pesquisador e dos sujeitos participantes da pesquisa, em todos os momentos.8,9
Assim, dada a subjetividade presente, quanto mais movimentos de aproximação com a realidade
forem feitos, maior a chance de apreensão do objeto de estudo.
Também a hermenêutica é uma ferramenta para a compreensão do texto, a unidade
de sentido, as condições da vida dos sujeitos no cotidiano, o contexto.10,11 Os conteúdos das
entrevistas e da observação participante foram analisados com recursos da hermenêutica e outros
apresentados com ênfase numa grade de significantes. 11 Nesse aspecto, com base na
fundamentação teórica e na pesquisa, foram elaboradas categorias de análise, como: organização
de trabalho e formas de violência no cenário do bairro. Posteriormente a essas categorias,
agregaram-se outras que surgiram em campo. Entre estas se destacam: o trabalho gerando
satisfação, sofrimento no contexto da violência e seus reflexos para as atividades dos ACS.
Sobre o trabalho, a subjetividade e a identidade do trabalhador, de maneira geral, a
linguagem é a condição humana que capacita o reconhecimento de si e de outros12 e o significado
organiza os sentidos de palavras dentro do contexto. A linguagem e seu significado expressam a
dimensão subjetiva em cada cultura, espaço, tempo, história; a linguagem é uma prática social, um
comportamento que serve aos mais variados objetivos e permite várias aplicações na vida cotidiana
das pessoas, contribuindo na organização dos sentidos e/ou significados das experiências.
A interação e a experiência coletiva são elementos importantes na constituição da
identidade subjetiva e na construção de mecanismos defensivos contra as situações de risco nos
diversos ambientes da vida humana. O coletivo instaura uma ética13 na qual são estabelecidos
alicerces de confiança recíproca e fortalecimento da identidade pelo reconhecimento de todos os
sujeitos do trabalho, respeitados em suas capacidades e sentimentos. Sem este processo não há
construção de sentidos do trabalho para o trabalhador. E sem esse sentido, será impossível a
mobilização conjunta de sentimentos e cognição para a sublimação e para a criatividade.
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de Saúde Pública
Desse modo, o trabalho não é apenas uma atividade laboral, mas um dos elementos
que intensifica as relações sociais, no processo mesmo de subjetivação e de constituição da
identidade subjetiva e profissional. E será a linguagem o elemento central do ser individual e social
para expressar os sentidos do trabalho. Entretanto, o trabalho tem conotação contraditória,14 pois se
apresenta como instrumento de sofrimento e como elemento estruturante da sociedade. Como
elemento estruturante, define a atividade subjetivante15 como vemos a seguir.
SAÚDE E TRABALHO
O trabalho exerce um papel fundamental em relação à saúde, pois tanto as
condições do ambiente físico quanto a própria organização do trabalho podem provocar doenças
físicas, acidentes e sofrimento psíquico nos trabalhadores. No tocante à relação saúde-trabalho,
somente a partir das últimas décadas o trabalho passou a ser compreendido como um fator
constitutivo de adoecimento, sendo as condições de trabalho impactantes para o corpo. Deste
modo, a organização do trabalho tem como alvo o psíquico e o desejo. As precárias condições em
que é executado amordaçam a liberdade de organização e adaptação. Em certas condições,
emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora
de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que a ignora. Esse
sofrimento, de natureza mental, começa quando o ser humano, no trabalho, já não pode fazer
qualquer modificação na sua tarefa para torná-la mais conforme a suas necessidades fisiológicas e
aos seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada.16
Vários autores1,14-16 tomam como ponto central de suas análises os conflitos do ser
humano junto a sua situação laboral. Contra a angústia do trabalho, assim como contra a
insatisfação, os operários elaboram estratégias defensivas, de maneira que o sofrimento só pode
ser revelado por uma capa própria a cada profissão, que constitui de certa forma sua
sintomatologia. O sofrimento começa quando a relação entre o trabalhador e a organização do
trabalho é dificultada pelas condições externas ao trabalhador.
Tendo em vista o trabalho dos ACS, é necessário olhar para este trabalhador como
um ser ativo no processo de saúde-doença que deve ser escutado, com vistas à identificação dos
aspectos do contexto laboral que o estão prejudicando.
O ACS E SEU AMBIENTE DE TRABALHO: DESVENDANDO O TRABALHO E
DESCOBRINDO VIOLÊNCIAS/SOFRIMENTO
O ACS refere que o trabalho corresponde às suas necessidades de sobrevivência,
tanto no que diz respeito ao valor capital/trabalho quanto no tocante à valorização pessoal.
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Neste estudo, observaram-se atributos pessoais que proporcionam aos ACS
satisfação no trabalho, conforme seus relatos sobre a valorização que sentem junto à comunidade.
Ser morador e trabalhador da saúde traz inúmeras vivências ao ACS, julgadas por eles como
positivas e negativas, gerando diferentes experiências.
Cadastrar e posteriormente visitar as famílias é o instrumento utilizado para a
vigilância à saúde da comunidade, seja no âmbito do PACS ou PSF. Em geral, as atividades
desenvolvem-se a céu aberto, nas portas dos moradores, sendo executadas completamente fora
do espaço institucional e exigindo do profissional uma dinâmica que muitas vezes foge do controle
do profissional.
“Acho que as pessoas têm confiança no meu trabalho. Elas vêm que meu trabalho é
sério; eles têm confiança na gente.” (Francisca).
“Algumas pessoas gostam do meu trabalho [...] a maioria abre as coisas que se passa
na vida, que se passa na família [...] As pessoas deveriam me ver como profissional
e não como vizinha; acho que eles atrapalham um pouco [...] a busca constante a
nós ACS, nos finais de semana, feriado, chateia, mas também indica confiança no
nosso trabalho.” (Elisa).
Sendo um integrante da comunidade, o ACS vive situações semelhantes às dos
usuários do serviço e uma relação de identificação com as condições de vida e saúde da
população. Essa aproximação identitária de classe social possibilita compreender as condições e os
valores socioculturais da comunidade, bem como as suas necessidades.
“É bom porque está perto do trabalho, você não pega transporte, não passa por
aquele tumulto de ter de acordar de madrugada, pegar ônibus, enfrentar a mesma
situação na hora de voltar para casa; e também você conhece as pessoas com quem
vai lidar na comunidade.” (Paloma).
“A minha relação com a comunidade agora é outra, diferente da que tinha apenas
como moradora [relação de vizinha]. Agora sou um referencial, um profissional de
saúde, alguém que, por ter uma boa relação de vizinhança, e ser um representante
da saúde, se tem uma maior confiança para se falar determinadas situações de vida,
de saúde.” (Verônica).
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de Saúde Pública
A despeito do reconhecimento e da valorização de alguns moradores, os agentes
sentem a ambiguidade de sentimentos e emoções, ao considerar o sofrimento de moradores que
passam pelo medo da violência de traficantes de droga no bairro. Os agentes têm vivenciado
situações de risco, que os adoecem e os desmotivam ao trabalho. As dificuldades no seu trabalho
são, portanto, relacionadas às pressões que sofrem na cotidianidade, proveniente do seu
envolvimento com a população.
“As pessoas não dão muita importância às situações que vivemos durante a
realização de nosso trabalho no bairro.” (Verônica).
“A desvalorização do profissional é grande; o próprio governo precariza as condições
de trabalho do seu corpo técnico, quando não contrata a sua mão de obra de forma
direta e terceiriza sua prestação de serviço.” (Núbia).
“Uma das coisas que acho negativa em nosso trabalho é a interferência, em nossa
vida particular pela comunidade, pois não tem dia nem horário; eles podem ver que
você esta arrumada, não esta de farda e querem nosso trabalho.” (Lina).
“O trabalho no PSF vai além de um trabalho técnico. Para mim, trabalhar no PSF
somente como técnica é uma violência, tanto para a comunidade como também para
com os trabalhadores que abraçam essa nova forma de fazer o SUS acontecer. Eu sei
que eu trabalho, ultrapasso os meus limites, mas ultrapasso com consciência, talvez
seja isso; a consciência, que me fortalece [mesmo com desânimo], fazendo com que
o dia seguinte seja um novo dia de luta para ultrapassar as adversidades.” (Núbia).
Sob o ponto de vista institucional, observa-se a desvalorização do trabalho do ACS,
bem como certa pressão da comunidade que, reconhecendo nele um aliado, o procura
incessantemente como porta voz de suas necessidades. Uma espécie de sofrimento psíquico se
instala nesse profissional de saúde que idealiza para si uma expectativa em relação a sua
competência no sistema de saúde, ao tempo em que esse sistema não responde às necessidades
da população de modo imediato. Como um personagem mediador entre a institucionalidade e a
comunidade, sente-se angustiado por não conseguir atender às demandas da população.
Atribuir-se ao ACS o difícil papel de profissional que impulsiona a consolidação do
SUS é um risco, uma vez que isto depende de uma série de fatores técnicos, políticos, sociais e
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econômicos. Também se destaca nesse processo o envolvimento de diferentes atores, inclusive o
próprio ACS, que, sem dúvida, tem um papel fundamental.12
Algumas dificuldades são relatadas pelos agentes como sinônimos de angústia. Uma
delas refere-se ao fato de que, por serem moradores do bairro e trabalhadores da Unidade de Saúde
Familiar (USF), tornam-se fontes de informação permanente do processo de organização dos serviços
de saúde. O reconhecimento do papel social do ACS, muitas vezes visto como solidário (porque, para
os moradores, ele não soluciona diversos problemas administrativos do sistema de saúde), recebe
equivocadas interpretações, vez que sofre abordagens em qualquer local, independentemente do
horário de trabalho, final de semana ou feriado. O indivíduo deixa inevitavelmente de ser um morador,
um simples vizinho, para viver a condição de agente de saúde permanentemente. Nessa posição, deixa
de participar da comunidade como um membro da coletividade e encarna um arquétipo que o
distancia, o separa num dado momento, do mundo da vida cotidiana que antes possuía.
“Acho ruim a invasão de nossa privacidade. Essa invasão da privacidade, que é natural,
é uma espécie de violência, pois não temos o direito de descansar como todo
trabalhador no seu horário após o dia de trabalho, sábado, domingo ou feriado.” (Lina).
Apesar de a maioria dos trabalhadores entrevistados não trazerem de forma explícita
questões de sua própria saúde frente às condições de trabalho, estudo15 desenvolvido pelos
Núcleos de Saúde da Família do Centro de Saúde Escola, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
(FMRP) da Universidade de São Paulo (USP) relata que 70% dos ACS apresentaram sintomas de
estresse. Para nossos entrevistados:
“Se dependesse de meu marido, eu não estaria trabalhando como ACS. Ele acha
esse trabalho muito cansativo; acha que eu me desgasto muito, que chego em casa
sobrecarregada, sem muita paciência para corrigir o dever da menina.” (Verônica).
“Ainda bem que, convivendo com essa realidade, nunca tive nenhum problema de
saúde maior; apenas uma dor de cabeça de vez em quando, um estresse.” (Elisa).
“Você sai do seu trabalho, mas aquela pressão vivida no ambiente de trabalho não
sai de sua cabeça. Como fica então a sua relação com a família? Fico nervosa com
algumas situações vividas no trabalho que interferem nas resoluções que tenho de
tomar em minha casa.” (Lina).
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Revista Baiana
As pressões relatadas pelos entrevistados dizem respeito à relação
de Saúde Pública
profissional-organização. Consideram como forma de violência institucional o não oferecimento de
infraestrutura para o trabalho que, frequentemente, leva a conflitos com os usuários; também
referem a falta de entrosamento na equipe, o não reconhecimento do trabalho dentro da equipe, e
o conflito de sentir-se morador e trabalhador do próprio bairro. “Minha equipe é capenga [...] É tão
reduzida e sobrecarregada de trabalho e sem reconhecimento dos próprios colegas.” (Gertrudes).
Outros dizem que a terceirização da saúde é uma “[...] falta de respeito do governo
com os técnicos da saúde [...] A desvalorização do profissional é grande. O próprio governo
desvaloriza a gente, quando não contrata a mão de obra de forma direta e terceiriza sua prestação
de serviço.” (Núbia).
Para o desenvolvimento do PSF, é essencial construir um modelo de organização de
serviços baseado em condições sociopolíticas, materiais e humanas que viabilize um trabalho de
qualidade tanto para os trabalhadores quanto para os usuários.17 Não atender a essa estrutura é
correr o risco de deixar surgir a desmotivação do profissional, bem como desacreditar na proposta
diante dos profissionais de saúde e da sociedade, que lutam para fazer valer o SUS.
O profissional entende que, em sua realidade, melhores condições de trabalho
significariam melhor assistência de saúde à população. A assistência preconizada pelo PSF é uma
assistência familiar que pressupõe um acompanhamento de equipe com os ACS, e este é um nó
que vem dificultando a sedimentação do programa. Para os agentes, outros profissionais, de maior
qualificação técnica, não valorizam seu trabalho. Essa falta de diálogo com os agentes é percebida
por eles como uma indiferença institucional.
“O que eu observo é que os trabalhadores [médicos e os outros profissionais de
saúde] do PSF não estão preparados para abraçar essa nova forma de fazer saúde,
trabalhar em equipe. Eles ainda têm aquela visão de tratamento apenas baseado no
medicamento, na vinda do doente para o posto de saúde; a comunidade não é
ouvida, para que se efetive de fato um trabalho de prevenção.” (Verônica).
“Apesar de todos no posto de saúde saberem dessas ocorrências, não foi tomada
nenhuma providência. O que eu penso disto é que as pessoas [outros profissionais
de saúde] não dão importância ao outro [povo]. Eu pedi à gerente na época para
fazer um relatório de porque que eu não faço mais visita a essa família e isso não foi
feito. Então eu não tenho mais ninguém a quem apelar; é uma falta de cuidado da
equipe em relação aos acontecimentos da comunidade que dificultam o nosso
trabalho.” (Tâmara).
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“Os ACS são os mais solidários no trabalho. O restante da equipe também é
importante, mas existe uma divisão, uma falta de entrosamento na equipe de saúde
e isso atrapalha o trabalho.” (Gertrudes).
“Para que o meu trabalho aconteça, eu preciso que o trabalho de toda a equipe
também aconteça.” (Núbia).
Não há, pois, uma continuidade do trabalho, como observam os agentes
comunitários.
O trabalho é considerado um atributo humano, pois só o homem idealiza seu
resultado final. Para a realização do trabalho, além do esforço, é preciso a vontade durante todo o
curso do seu desenvolvimento. Nesse sentido, quaisquer fatores que atuem sobre algum dos
elementos que compõem esse processo tendem a modificá-lo de forma positiva ou negativa.
Sobre isto, cita-se trabalho sobre gestão contemporânea,18 que faz referência à
constante preocupação do trabalhador em relação à motivação para o trabalho, que se justifica na
relação satisfatória entre o indivíduo e sua tarefa. São frequentes as explicações para o baixo
rendimento, para o absenteísmo e atraso, pela falta de motivação que leva ao desânimo, à solidão
do trabalho. No entanto, se houver motivação, nasce o entusiasmo, a dedicação, a cooperação e a
produtividade.
“Hoje eu sinto a minha saúde um pouco abalada. Acredito que é por causa do
trabalho, tanto pelo desgaste físico como emocional. Subo e desço muita
ladeira e escada e não sinto que faço bem o trabalho. Para a comunidade, o
ACS é o salvador, mesmo sabendo que o funcionamento da unidade de saúde
é de 2ª a 6ª feira. Se eles sentem alguma coisa, procuram logo a gente para
marcar uma consulta; isso não tem horário; pode ser à noite, domingo,
feriado.” (Verônica).
“Trabalhar nessas condições é desgastante, acaba interferindo em minha vida, em
minha saúde, vou entristecendo com o meu trabalho, vou adoecendo.” (Núbia).
O entristecimento e o estresse ocorrem principalmente pela quebra da
continuidade do trabalho da equipe do PSF. O que fazer diante de diversos problemas de saúde?
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de Saúde Pública
Essas situações vivenciadas pelos ACS agem negativamente em suas próprias condições de
saúde, pelo desapontamento e perda de satisfação com o trabalho. Ademais, eles se sentem
vítimas de agressão e evitam exposições às situações semelhantes geradoras da violência
experienciada.
A defesa adotada por esses ACS para poder continuar exercendo suas atividades no
ambiente de trabalho é fingir que nada acontece ou aconteceu, colocando em cena a necessidade
de naturalizar as várias formas de violência nesse contexto. A violência da falta de serviços de
saúde em suficiência, interrompendo a equipe enquanto parte do sistema de saúde, a violência
dos tidos como marginalizados, entre traficantes e outros que dominam o bairro, submetem a
população ao silêncio e ao medo.
Vivenciar essas e outras situações de violência produz reflexos em suas vidas
pessoais e profissionais que precisam ser analisados enquanto efeitos dos riscos do trabalho dos
ACS. Em locais de maior pobreza e maior vulnerabilidade social, torna-se ainda mais difícil para
esses trabalhadores desempenhar qualquer papel na equipe de saúde.
Do exposto sobre o ambiente de trabalho dos ACS, suas atividades “a céu aberto”,
evidencia-se a necessidade de uma profunda reflexão ética. Até que ponto o governo pode
garantir-lhes segurança no trabalho? Até que ponto estão realizando um trabalho que proporcione
saúde para todos?
Este estudo permitiu concluir-se que a violência aqui em relevo é também
entendida como um mal-estar gerado pela insatisfação relatada pelos sujeitos da pesquisa,
categorizada neste trabalho como violência institucional e situada ao lado da violência estrutural.
Esses profissionais de saúde deixam transparecer em suas falas que o processo de trabalho tem
acontecido sob precárias condições materiais e emocionais, com prejuízo de sua motivação e
ameaça constante da qualidade da assistência prestada à população adstrita.
Essas condições de trabalho exigem do profissional uma capacidade extraordinária de
recriação do modus operandi na cotidianidade de seu trabalho, de forma solitária ou somente
contando com os seus pares, quando é possível. Os ACS tentam redimensionar conceitos e
conflitos, até mesmo acreditar ser ético ao ignorar ou omitir determinadas situações de violência
que presenciam, como forma de se proteger e de garantir seu trabalho.
Tomando como referência o que foi revelado pelos ACS do Candeal, esta pesquisa,
em seus múltiplos aspectos, confirma a violência como um grave problema de saúde pública, que
vem impactando a garantia aos usuários de uma melhor qualidade de vida e saúde e, aos
trabalhadores do sistema, a dificuldade em executar ações de prevenção e promoção da saúde da
população assistida pelo SUS.
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As subjetividades dos profissionais ACS expressam as características de um trabalho
dominado pelo medo da violência, ao tempo em que se tem como axioma do trabalho o
estabelecimento de vínculos e comprometimentos com a comunidade.
Assim, mediações no sentido da prevenção e controle das situações de violência no
ambiente de trabalho, embora difíceis por exigirem abordagens que vão além daquelas
estabelecidas pela segurança pública, são urgentes antes que alcancem patamares mais alarmantes,
tendo em vista que as medidas isoladas adotadas pela segurança pública são reconhecidamente
ineficazes.
Diante dos enunciados dos agentes sobre sua realidade concreta de viver no limite
de suas condições físicas e emocionais, considera-se fundamental a revisão dessas ações de saúde
como parte do complexo da política de saúde e no contexto da guerra urbana instalada nos
grandes centros da sociedade brasileira. Também se reconhece a importância de novos
investimentos em investigações dessa natureza, para revelar as condições reais de trabalho e
contribuir com a discussão sobre ambiente e condições dignas de trabalho.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 15.04.2011
v.35, n.1, p.96-109
jan./mar. 2011
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ARTIGO ORIGINAL
FEIRA LIVRE E RISCO DE CONTAMINAÇÃO ALIMENTAR: ESTUDO DE ABORDAGEM
ETNOGRÁFICA EM SANTO AMARO, BAHIAa
Mirella Dias Almeidab
Paulo Gilvane Lopes Penac
Resumo
O objetivo deste estudo foi compreender os significados do risco da contaminação
alimentar para os feirantes de Santo Amaro, Bahia. Tratou-se de um estudo de abordagem
etnográfica, utilizando técnicas de entrevista semiestruturada, diário de campo e observação
participante. O processo de compreensão foi desenvolvido pela análise hermenêutica,
identificando-se os significantes das falas. Constatou-se que os significados da contaminação
alimentar são construídos muito mais por influências culturais do que pela interferência de
conhecimentos técnico-científicos. A noção de contaminação restringiu-se às percepções dos
sentidos. Contaminantes físicos visíveis e odores desagradáveis são os possíveis transmissores de
doenças e impurezas. A contaminação microbiana é desconhecida pelo feirante que, em geral,
concebe o perigo por meio dos miasmas como na era pré-microbiana (os microorganismos são
invisíveis no plano real). O agrotóxico é representado como algo imponderável, invasor do mundo
conhecido, provocando estranhamento na relação dos feirantes com os alimentos. A possível
contaminação pelo chumbo foi naturalizada pelos entrevistados e percebida como algo distante,
relacionada à fábrica. A percepção do risco está presente no pensamento e na reflexão, quando há
questionamento acerca do tema, mas não na prática cotidiana.
Palavras-chave: Feira livre. Contaminação alimentar. Chumbo.
Projeto financiado pelo CNPq.
Mestre em Saúde Ambiente e Trabalho.
c
Professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor pela École des Hautes Études en
a
b
Sciences Sociales (EHESS), Paris.
Endereço para correspondência: Rua Bahia, nº 721, apart. 101, bloco A, Pituba, Salvador, Bahia. CEP: 41830-161.
[email protected]
110
Revista Baiana
de Saúde Pública
THE STREET MARKET AND THE RISK OF FOOD CONTAMINATION: AN
ETHNOGRAPHIC APPROACH STUDY IN SANTO AMARO, BAHIA
Abstract
The research aim was to understand the meanings of food contamination to the
street market vendors of Santo Amaro, Bahia. This study has an ethnographic approach, using
semi-structured interview techniques, field diary and participant observation. The process of
understanding was developed through hermeneutic analysis, identifying the significance of
narratives. It was found that meanings of food contamination are built much more by cultural
influences, based on beliefs and customs than by interference of technical-scientific knowledge.
Notion of contamination was restricted to the sense perceptions. When food shows uncharacteristic
signs, this indicates a nuisance or association to danger. Visible physical contaminants and unpleasant
odors are potential transmitters of disease and impurities. Microbial contamination is unknown for
street market vendors, who usually see the danger through miasmas as in the pre-microbial age
(microorganisms are invisible in the real plane). Pesticides are represented as something
imponderable, invasive of the known world, causing estrangement in the relationship of street
market vendors with food. The possible contamination by lead was naturalized by the respondents
and perceived as distant, related to factories. The perception of risk is present in thought and
reflection, when questioned about the issue, but not in daily practice.
Key words: Street market. Food contamination. Lead.
MERCADILLO AL AIRE LIBRE Y EL RIESGO DE CONTAMINACIÓN ALIMENTARIA:
ESTUDIO DE ABORDAJE ETNOGRÁFICO EN SANTO AMARO, ESTADO DE BAHIA
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo comprender los significados del riesgo de la
contaminación alimentaria para los vendedores del mercadillo de Santo Amaro en el estado de
Bahia. Se trató de un estudio de abordaje etnográfico, utilizando técnicas de entrevista
semiestructurada, diario de campo y observación participativa como técnicas. El procedimiento de
comprensión fue desarrollado mediante análisis hermenéutica, siendo identificados los significados
de lo dicho por los entrevistados. Se constató que los significados de contaminación alimentaria
son construidos más por influencias culturales, que por la interferencia de conocimientos
técnico-científicos. La noción de contaminación se restringió a las percepciones de los sentidos.
Contaminantes físicos visibles y olores desagradables, son los posibles transmisores de enfermedades
e impurezas. La contaminación microbiana es desconocida por el vendedor, que en general concibe
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el peligro por medio de los miasmas como en la era pre-microbiana (los microorganismos son
invisibles en el plano real). Los agro-tóxicos son representados como algo imponderable, invasores
del mundo conocido, provocando extrañeza en la relación de los vendedores de mercadillo con
los alimentos. La posible contaminación por plomo fue aceptada por los entrevistados, que mostraron
una percepción de algo distante, relacionada con la fabricación. La percepción del riesgo está
presente en el pensamiento y en la reflexión, cuando es cuestionado el tema, pero no en la
práctica cotidiana.
Palabras-clave: Mercadillo al aire libre. Contaminación alimentaria. Plomo.
INTRODUÇÃO
A feira é um espaço polissêmico em que vidas se cruzam, convivem e
experimentam um cotidiano de diversidades. Feirantes, consumidores, transeuntes, turistas,
crianças, idosos, mendigos e animais dividem o mesmo lugar. Conversas que se misturam num
som confuso, imersas em cheiros e maus cheiros de restos de alimentos espalhados pelo chão,
em meio à aparente desorganização das barracas, oferecem às centenas de olhares uma exposição
de mercadorias das mais coloridas, distintas e vindas de diferentes lugares.
A feira constituiu-se em um importante fator de distribuição e dinamizador
econômico, desenvolvendo o processo de comercialização e de trocas inter-regionais,
sobretudo no Norte e Nordeste do Brasil, onde estão envolvidas nos sistemas de mercado
regional, reagindo às mudanças que ocorrem no campo político e econômico do país,
representando um dos principais meios de sobrevivência para as populações das pequenas
cidades dessas regiões.1,2 Sua significância econômica expressa-se tanto para os feirantes, que
muitas vezes têm na feira sua principal fonte de renda, como também para os consumidores,
que podem encontrar nelas alimentos a preços mais acessíveis. Representa também o lugar
de sociabilidades, aproximando pessoas e fortalecendo os laços de afeto entre aqueles que
nela trabalham para sobreviver ou que apenas se ocupam para ter um que fazer. A feira é livre
e livre sentem-se seus feirantes.
Entretanto, diversos estudos centrados na esfera dos riscos biológicos demonstram as
inadequadas condições de higiene nesses locais, aliadas às adversidades da estrutura física e ao
precário conhecimento dos feirantes sobre as boas práticas de manipulação e comercialização de
alimentos.3-5 Esses fatores podem representar riscos à saúde pública pela veiculação de doenças
transmitidas por alimentos e ambientes contaminados pela presença de lixo e saneamento
precário, a exemplo das toxinfecções alimentares, necessitando de uma intervenção para melhoria
da atividade e proteção à saúde dos consumidores.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
O enfoque nas referências às ciências biológicas com que este assunto é tratado não
enfatiza os valores culturais dos sujeitos feirantes em seu processo de aprendizagem e experiências
sobre as noções de higiene e contaminação alimentar.5 As autoras revelam a falta de efetividade
das leis sanitárias e a pouca influência destas na construção das práticas higiênicas. Os fiscais
municipais adotam medidas coercitivas e punitivas, em detrimento de uma via dialógica entre os
personagens da feira.
A carência de higiene, organização, qualidade de vida, saneamento básico e a
precária infraestrutura (falta ou inadequação de estacionamentos e de sanitários públicos), aliada ao
desinteresse do poder público municipal foram detectados em estudo realizado na feira de
Barreiras, município do estado da Bahia.6 Entretanto, nesse estudo, foi constatado que a população
não deseja mudar esta “desordem”, apenas almeja por mais conforto.
Somam-se a estas questões, a exposição dos feirantes a variações climáticas, longa
jornada de trabalho, ausência de dispositivos e mecanismos básicos de proteção, entre outros
múltiplos fatores de risco para a saúde.7,8
Outro dado preocupante diz respeito à contaminação alimentar por agrotóxicos, em
razão das escassas informações disponíveis sobre a exposição a estas substâncias e da liderança
mundial do Brasil nesse consumo.9 Além disso, há dificuldade em controlar os efeitos provocados
pelo uso desses produtos, devido ao fato de ser uma contaminação “invisível”.
Diante disso, o consumidor é impossibilitado de reconhecer os alimentos que
receberam a pulverização de produtos não permitidos ou além do limite autorizado. “De forma
geral, a aplicação está presente na maior parte das culturas, mas as que mais trazem preocupação
são aquelas consumidas em grande quantidade pela população na forma in natura”,10:361-362 a
exemplo dos alimentos frescos, vendidos em feiras.
Em 2004, o mercado de agrotóxicos movimentou no Brasil cerca de 4,2 bilhões de
dólares. Revertido este valor para a saúde humana, os danos causados estendem-se a longo prazo,
envolvendo riscos que podem ser cumulativos e até desconhecidos. Para o trabalhador rural, no
entanto, os riscos são imediatos, devido, principalmente, à falta de orientações adequadas.10 No
caso dos feirantes, a contaminação pode ser ocasionada pela manipulação e ingestão de alimentos
contendo resíduos de agrotóxicos.
Com base nestas considerações, alia-se a estas questões a inserção do estudo na
região de Santo Amaro, onde ocorreu uma das maiores contaminações químicas por metais pesados
do mundo, principalmente por chumbo, atingindo a população local pela contaminação do ar, da
água, do solo ou dos alimentos.11-13 Essa particularidade do município traz novos significados para a
percepção da contaminação alimentar na feira popular, motivo de escolha do local da pesquisa.
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Neste sentido, esta pesquisa busca maior aproximação com a realidade dos feirantes
em Santo Amaro, Bahia, no intuito de compreender os significados da contaminação alimentar,
microbiológica ou química, inseridos no cenário de contaminação ambiental. A compreensão dos
signos socialmente (re)construídos entre esses sujeitos irá contribuir para desvendar os significados
da contaminação alimentar no cotidiano da feira em um município atingido por grave problemática
ambiental. Para tanto, trata-se de um objeto inscrito no universo simbólico, o qual abordará
aspectos culturais.
PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
A pesquisa ocorreu no município de Santo Amaro, Bahia, e o trabalho de campo foi
desenvolvido no período de janeiro de 2009 a janeiro de 2010, por meio de 18 visitas.
Trata-se de um estudo de abordagem etnográfica, que privilegia a experiência do
sujeito, permitindo ao pesquisador maior aproximação com a realidade desse, mediante uma
imersão em profundidade no fenômeno da contaminação alimentar. Além disso, possibilita
adentrar no mundo particular do “outro” sujeito, por meio de uma “descrição densa” dos
significados construídos e reconstruídos pelos agentes sociais como uma teia que interliga de forma
holística os aspectos objetivos e subjetivos de sua cultura.14
Para obtenção dos dados, foram utilizadas algumas técnicas das ciências humanas,
como a entrevista semiestruturada, o diário de campo e a observação participante ou direta. Essas
técnicas foram válidas para alcançar a compreensão dos significantes e outros signos das narrativas.
O processo de compreensão desenvolveu-se pela análise hermenêutica apoiada em repetidas
leituras da narrativa textual.
Nesse processo de compreensão, foram identificados os significantes ou unidades
analíticas das falas, que são entendidos como expressões mais significativas do problema.14 Estes
são tecidos pela própria fala dos sujeitos, interligadas ao seu contexto social, revelando similitudes
e diversidades do fenômeno estudado.
As entrevistas foram realizadas com sete feirantes, após apresentação do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, sendo consideradas satisfatórias quando as narrativas sobre o
objeto tornaram-se similares.15 As entrevistas foram transcritas para análise textual. A observação
participante permite ao pesquisador captar situações não obtidas pela entrevista, mas que são
percebidas na própria realidade.16 Também foram registrados outros detalhes que subsidiaram as
observações, além das falas. Os nomes dos sujeitos são fictícios para preservar-lhes as identidades.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria de
Saúde do Estado da Bahia (SESAB).
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Revista Baiana
CARACTERÍSTICAS DA FEIRA
de Saúde Pública
A feira está localizada no centro da cidade, estendendo-se por cerca de 500 m, e
apresenta grande concentração no Largo do Mercado. Esta é permanente e típica do nordeste
brasileiro. Apresenta produtos diversos, como roupas, calçados, acessórios, bijuterias, utensílios
domésticos, brinquedos, materiais eletrônicos, material escolar, produtos de limpeza, flores,
alimentos em geral, entre outros. Os produtos são expostos em barracas, bancas, carros de mão,
balaios de madeira, caixotes plásticos ou de madeira, em lonas, sacos plásticos ou diretamente
sobre o chão.
Quanto à situação da feira e ao seu ordenamento, os pontos de venda expõem
materiais diversos, sem padronização, e ocupam o logradouro público, incluindo passeios e ponte;
o lixo é produzido a céu aberto, sendo foco de doenças, além de obstruir a rede pluvial, existindo
poucas lixeiras no local; os feirantes possuem precárias condições de trabalho; as condições de
higiene na comercialização de alimentos e conservação de mariscos, carnes e vísceras são
inadequadas. Os feirantes dividem o local com animais, principalmente cachorros, que se
aglomeram nas bancas de mariscos e carnes, urinam nas barracas (onde são guardados os
alimentos) e defecam no chão. O abastecimento de água é praticamente inexistente, sendo
observadas apenas as torneiras dos sanitários disponíveis dentro do Mercado, utilizadas para
lavagem de mãos.
CONTAMINAÇÃO ALIMENTAR NA VISÃO DOS FEIRANTES
As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se
essencialmente como valores e significados, mas estes significados não podem ser determinados
com base em propriedades biológicas ou físicas.17 Neste sentido, as ideias de impureza são
expressões de sistemas simbólicos e a diferença entre os comportamentos face à poluição em
qualquer parte do mundo é apenas uma questão de pormenor.18
O impuro e o poluente devem ser abordados pelo prisma da ordem, devendo ser
excluídos quando se quer manter a ordem. A impureza é o subproduto de uma organização e de
uma classificação da matéria, na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não
apropriados.18
A impureza é concebida como uma espécie de compêndio de elementos repelidos
pelos sistemas ordenados ou esquema habitual de classificação, como se verifica nos seguintes
exemplos: os sapatos não são impuros em si, mas é impuro colocá-los sobre a mesa de jantar; os
alimentos não são impuros em si, mas é impuro deixar os utensílios de cozinha num quarto de
dormir. Neste sentido, qualquer objeto ou ideia que traga confusão ou contradiga nossas
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classificações face à poluição é condenado pelo comportamento e hábitos mais profundamente
enraizados.18
O relato de um dos entrevistados apresenta um exemplo desse tipo de classificação:
“Todo dia eu varro minha barraca. Vou trabalhar em lugar sujo [desorganizado]?” (Joana, 48 anos).
Abstraindo-se a patogenia e a higiene das ideias sobre a impureza, fica-se com “[...]
a velha definição nas mãos: qualquer coisa que não está no seu lugar”,18:30 como se pode notar na
fala do feirante: “Aquilo ali no chão mesmo está errado [frutas vendidas no chão sobre um
plástico]. A única coisa que eu acho errado aqui é isso. Eu jamais colocaria uma mercadoria minha
no chão; eu não boto.” (Pedro, 43 anos, grifo nosso).
A cultura, ao mediar a experiência dos indivíduos, no que se refere aos valores públicos
e padronizados de uma comunidade, fornece-lhes algumas categorias básicas, uma esquematização
positiva na qual ideias e valores se encontram dispostos de forma ordenada e, sobretudo, exerce certa
autoridade, fazendo com que os indivíduos se conformem porque os outros também o fazem.18 Esta
relação de autoridade e conformismo pode ser observada entre alguns feirantes, que mantêm algumas
práticas anti-higiênicas, como expor determinados alimentos no chão da feira.
A diferenciação social provoca uma tomada de consciência da sociedade e dos
mecanismos da vida em comum, como também se faz acompanhar de certas formas de coerção
social, de incentivos materiais ao conformismo, de sanções punitivas particulares, de um corpo
policial, de inspetores e de homens especializados que vigiam os atos com todo um aparato de
controle social.18
Historicamente, até o século XVII, as regras de higiene eram impostas à população,
muito mais como um ato civilizador e de adestramento do que um ato de cuidado com a saúde e
prevenção de doenças. As práticas de higiene eram normas de civilidade e algumas formas de
comportamentos eram proibidas por questões de estética, por serem feias à vista e gerarem
associações desagradáveis.19
Neste estudo, percebe-se que as noções acerca da contaminação na feira têm
pouca interferência de conhecimentos técnico-científicos, ressaltante da baixa escolaridade dos
sujeitos e da falta de ações educativas, principalmente, quanto à noção de contaminação
microbiológica. Nas conversas informais com os feirantes, o tema da contaminação não aparecia;
apenas quando questionados, o assunto era tratado por eles e, ainda assim, nem todos se sentiam
à vontade para falar, talvez porque fosse difícil descrever algo que não existe na sua realidade
imediata, nas reflexões cotidianas, e permanece na invisibilidade.
Apenas uma feirante relatou em sua fala o cuidado com a higiene para evitar contágio
por bactérias, citando a casa como o lugar da limpeza. As noções de contaminação microbiológica,
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Revista Baiana
de Saúde Pública
porém, não foram explícitas. A dificuldade de explanação dos feirantes sobre o tema, os quais
utilizam expressões vagas, de caráter tautológico, foi detectada em estudo sobre a categoria higiene.20
Para evitar a contaminação, os entrevistados acreditam que a lavagem e o cozimento
são os processos mais importantes para limpeza dos alimentos. Por isso, as práticas de higiene
inadequadas observadas na feira parecem não importar tanto aos feirantes, como se a feira fosse
um lugar de sujeira. Assim, a limpeza dos alimentos deve ocorrer em casa, ambiente familiar,
limpo, “conhecido”, ordenado.
Os feirantes expressaram a preocupação em não vender alimentos no chão, pois,
além da ideia de desordem, o chão representa as sujidades acumuladas na feira, como lixo, poeira,
excrementos humanos e de animais que representam os contaminantes físicos visíveis, possíveis
transmissores de doenças e impurezas. Esta visibilidade também foi destacada em estudo que refere
a dificuldade dos feirantes em associar a contaminação a algo não percebido pelo olhar.20 “O chão é
sujo, porque as pessoas escarram, fazem xixi, passa rato, tem lama.” (Dalva, 68 anos, grifo nosso).
Os animais, como ratos, cachorros e insetos (moscas e baratas), são vistos como
fonte de contaminação por transmitirem doenças. Citam como doenças a raiva e a leptospirose,
ressaltando que foi relatado um caso de morte de um feirante por leptospirose. Entretanto, são
tratados com naturalidade, como evidencia a fala de Berenice (52 anos): “Na feira tem tudo,
mosca, rato. Qual a feira que não tem?”
O risco de contaminação existe para os feirantes quando os alimentos ficam
expostos às sujeiras sem uma proteção, como a melancia aberta. A casca representa um papel
protetor, como uma carapaça, uma embalagem, tornando desnecessária a lavagem dos alimentos,
quando é consumida apenas a polpa. Por isso, não existe o risco, quando estes possuem casca e
quando esta não é comestível, protegendo os alimentos dos contaminantes externos. A proteção é
intrínseca à natureza. “O coco tem a casca, então protege. A uva, caju têm casca, mas se come a
casca.” (Dalva, 68 anos, grifo nosso).
Historicamente, antes de Pasteur, acreditava-se que a contaminação era transmitida
por miasmas, considerados danosos a saúde, conforme antiga teoria miasmática da medicina,
mantida presente no imaginário popular, que consistia na absorção de ar corrupto que degenerava
os humores corporais.21,22 Nesse período, até meados do século XIX, o olfato era detector de
perigos, sendo importante para identificar o ar fétido, que representava o perigo.22 Portanto, a
noção de contaminação associa-se ao que os órgãos dos sentidos são capazes de perceber. Além
do aspecto visual e aparente, o paladar e o olfato são utilizados no processo de identificação de
alimentos estragados ou contaminados, quando os mesmos apresentam cheiros, sabores e aromas
não característicos, indicando uma perturbação da ordem.
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O mesmo se pode relacionar ao lixo, o qual incomoda devido ao mau cheiro que
torna o ambiente desagradável, como também ao incômodo visual. O cheiro, porém, não
identifica apenas o lixo, é associado ao perigo.22 Como cita Berenice, “[...] as doenças estão vindo
pelo ar que a gente nem sabe”, ao associar as doenças com os miasmas, mas não com os
alimentos, como na época pré-científica.
No passado, a limpeza era relacionada ao cuidado estético mais que ao higiênico.23
Com a evolução da história, o foco voltou-se para a saúde. No entanto, entre os feirantes, pode-se
observar uma associação entre sujo e limpo relacionada à aparência, pois a retirada do lixo
simboliza não necessariamente o afastamento do perigo (contaminante), mas sim do incômodo.
Neste sentido, a contaminação microbiológica permanece velada na feira, significada
apenas nos discursos técnico-científicos, os quais não fazem parte do cotidiano desses sujeitos. Os
aspectos mais relevantes para a construção simbólica do fenômeno da contaminação
correspondem ao que o olhar é capaz de enxergar e ao que se pode sentir e cheirar, considerando
a ordem do lugar e das coisas. O saber sobre o perigo vai-se constituindo na relação com o mundo
e com o outro, com base nas vivências cotidianas.
Os feirantes também foram questionados quanto à contaminação alimentar por
metais pesados, em especial o chumbo, devido à constatação dos danos à saúde da população
santamarense causada pela Companhia Brasileira de Chumbo (COBRAC).11,12,24
De acordo com os dados apresentados no relatório da Coordenação Geral de
Vigilância em Saúde Ambiental (CGVAM),11 as emissões de metais ocorreram na forma de material
particulado expelido pela chaminé da usina, por efluentes líquidos despejados diretamente no rio
Subaé ou por transbordamento da bacia de rejeito, por águas de drenagem da área de estocagem
de escória e deposição da escória na pavimentação das casas e logradouros públicos.
Essa exposição humana aos contaminantes químicos atingiu a população,
principalmente os ex-trabalhadores da fábrica e as crianças, susceptíveis à exposição, o que
ocasionou doenças, como alterações fetais, anemia e sinais e sintomas de saturnismo, como
adinamia, fraqueza muscular, dor em membros inferiores e superiores, cãimbras, irritabilidade,
tonturas, nervosismo, inapetência e cólicas abdominais,11,12 além de expor a população ao
risco de câncer, doença renal crônica (nefrose, nefrite), hipertensão arterial e doença
cerebrovascular.11
Assim como foi descrito que o cheiro fétido do lixo representava risco de contágio
de doenças, durante o período de funcionamento da COBRAC, o chumbo mantinha-se invisível
para a população, que apenas identificava o cheiro forte trazido pela fumaça expelida da chaminé,
como se a fumaça também fosse um miasma, pois causava mal-estar nas pessoas expostas.
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de Saúde Pública
A fumaça, enquanto uma “entidade viva”, que entrava nos corpos e comia tudo por
dentro, disseminava-se pelo ar e, com ela, levava a poeira ou o pó que contaminava a cidade, as
pessoas, os animais, o solo, o ar, o rio e os alimentos. “Quando o vento baixava, que arriava a
fumaça acabava com a cidade.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
Passados 17 anos de fechamento da fábrica, nota-se nas narrativas uma naturalização
do risco, assim como observado em estudo que mostra a relação cotidiana da comunidade com o
amianto, o que torna natural “[...] brincar com as pedras de amianto, extrair os veios fibrosos de
amianto das pedras, ornamentarem casas, apreciar a pedra que brilha sob o sol forte e reluz,
pavimentar casas, frequentar a mina como local de lazer, etc.”. 25:53 A autora revela que o minério
faz parte da vida das pessoas, não representando um risco de contaminação, mas sim uma fonte
de renda e um fruto da terra, “terra esta que serve para lavrar, colher, viver”.
Em Santo Amaro, a fábrica de fundição de chumbo também representava uma fonte
de renda que contribuía para movimentar a economia local, principalmente para os feirantes. A
necessidade de sobrevivência e a vivência com o chumbo, mesmo que indireta, tornaram-no,
assim como o amianto, parte do cotidiano das pessoas. A escória produzida pela fundição
contaminada por metais pesados era utilizada pela prefeitura, para pavimento de rua, e por
moradores residentes em torno da indústria, para pavimento de quintais. Os filtros da chaminé da
fábrica eram usados por alguns moradores como tapetes nas casas.
Para alguns feirantes, a fábrica já se constituía em algo familiar, como o caso de
Carmem, que refere ter nascido junto com a COBRAC. “Toda minha vida, toda minha juventude,
fui criada ali mesmo. A fazenda está lá até hoje. E tudo que tinha dali eu catava para comer,
vender e para sobreviver.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
Alguns entrevistados não sentiam receio em consumir os alimentos plantados na
região próxima à fábrica, devido à falta de informação, pois o risco não era divulgado, como
também a sobrevivência de muitos dependia do que era plantado e catado no mato. Quando
questionados sobre a possibilidade de contaminação dos alimentos pelo chumbo, os entrevistados
acreditam que o minério é contaminante, pois “O chumbo acaba com tudo” (Francisca, 69 anos).
Os feirantes que residiam próximos à COBRAC relatam que, ao serem alertados
sobre os malefícios ocasionados pelo chumbo, passaram a não consumir os alimentos da região
próxima à fábrica.
A maioria dos entrevistados não cita a possibilidade de contaminação em áreas mais
afastadas, como a zona rural, atingidas, por exemplo, pelo material particulado suspenso das
emissões expelidas pela fundição. Apenas Carmem, quando se mudou de cidade, e Antônia
citaram esta possibilidade.
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“Depois que eu me casei, fui morar na Usina São Carlos [região de São Sebastião do
Passé]. A fumaça ia lá na Usina. Tiveram que fazer mais alto ainda o bueiro
[chaminé] [...] O cheiro ia longe, ia longe mesmo. O cheiro da COBRAC não era
fácil.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
A despeito de os feirantes referirem que o chumbo contamina o alimento, revelam
que a comunidade, mesmo já possuindo algum conhecimento sobre o risco de contaminação, não
só consumia os alimentos produzidos no terreno da fábrica, como os retiravam para vender. O
risco permaneceu invisível para muitas pessoas, possivelmente por não reconhecer o alimento
como contaminado, visto que o aroma e a imagem permaneciam inalterados.
“A manga, a goiaba a gente não podia chupar. Fruto nenhum que desse ali por
aquela região, a gente não podia usar. Mas mentira que continuava chupando
manga, comendo goiaba, chupando cana e tudo mais, porque comia e não tinha
nada.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
O fato de comer e não ter nada, como cita Carmem, pode ser considerado como
um dos motivos pelos quais a população ignora o risco de contaminação. Para outros, esta ideia
parece uma proteção individual ou até religiosa, uma maneira de continuar vivendo em um
ambiente contaminado, como se o corpo fosse um teste para a qualidade do alimento. “Eu fui
criada tomando aquela fumaça toda ali. Deus teve misericórdia de mim que eu não tive nada.”
(Carmem, 66 anos, grifo nosso). A feirante relata ainda a experiência que teve com a avó que, não
obstante a exposição diária, por morar ao lado da fábrica, faleceu com idade avançada e admite a
causa à velhice. “Minha avó morreu com 110 anos e a gente morava ali [numa fazenda ao lado da
COBRAC]. (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
A despeito de os entrevistados associarem a contaminação do chumbo com o
surgimento de doenças, alguns feirantes acreditam que o processo de adoecimento não se reduz à
exposição ao minério, nem se limita às condições de vida e trabalho, considerando que, no
contexto de pobreza, de carências, fica difícil identificar este risco. “Pra ficar doente... Se for olhar
mesmo, ninguém tem saúde, até criança já está nascendo doente.” (Berenice, 52 anos).
Atualmente, no local, são comercializados produtos como mariscos e crustáceos, os
quais são originados dos manguezais próximos à cidade, como o distrito de Acupe. Entretanto,
estes locais são banhados pelo rio Subaé, que apresentou concentrações elevadas de metais, em
especial na região do estuário, contaminando ostras, siris e moluscos que serviam como base
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Revista Baiana
de Saúde Pública
alimentar da população.11,13 Ressalta-se que a pesca e a mariscagem representam as principais
fontes de renda para a maior parte da população local. Portanto, esses estudos indicam a elevada
possibilidade de existir a comercialização de alimentos contaminados por metais pesados na feira.
Entretanto, esse conhecimento do risco potencial não se encontra presente no conteúdo das falas
dos feirantes entrevistados.
Segundo Berenice, este assunto não é mais comentado pelas pessoas da cidade, no
dia a dia. “Depois esquece, não é? Sabe como são as coisas. Para.” A vida continua como se ali
nunca tivesse existido o problema, revelando que este passou a fazer parte do mundo familiar,
entrando na ordem do lugar.
Pode-se dizer que a população criou estratégias de defesa contra o sofrimento e o
temor das consequências, como “não discutir”, “não agir”, “negar o problema”, por estar presa a
esta realidade e não ter alternativas ou instrumentos concretos capazes de mudar esta situação.
Este fato assemelha-se aos achados de estudo6 sobre categorias de trabalhadores que naturalizam
os riscos, quando estes são entendidos como parte da vida, inerente ao trabalho, sem alternativa
de controle ou eliminação. Isso se configura, segundo o autor, como estratégia de defesa individual
e coletiva contra o sofrimento no trabalho.
Quanto à contaminação química por agrotóxicos, esta é mais explícita por ser
perceptível aos feirantes pela mudança do sabor e tempo de maturação dos alimentos, o que
indica a adição do produto. O agrotóxico passa a ser um marco de mudança, de inovação. Este
traz o mundo de fora que penetra no mundo conhecido da relação entre indivíduo e
alimento, representando o moderno, o mundo atual cheio de perigos, de quebras de
significados.
“Quem nunca viu tomate apodrecer na geladeira? Antigamente faltava tomate aqui
na Pedra, era pouco. Hoje em dia não falta mais nada. A manga faltava, porque
tinha época de ter. Agora dizem que botou uma coisa pra melhorar, pra não faltar
alimentação. Mas antes faltar e ser uma alimentação sadia.” (Joana, 48 anos, grifo
nosso).
“O abacaxi mesmo que a gente vende, o rapaz não bota nenhum produto químico.
Ele é natural mesmo, que chega você sente o gosto. Muitos que vem da CEASA,
quer dizer que ali já [tem agrotóxico] [...] A laranja fica brilhando, bonita, mas não
aguenta nada.” (Berenice, 52 anos, grifo nosso).
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Os agrotóxicos surgem como um invasor deste mundo conhecido, levando à perda
de controle sobre seu mundo, sua cultura. Como se fosse algo novo, imponderável, que vem
desvalorizar a forma ancestral destes sujeitos tratarem os alimentos. Paradoxalmente, o agrotóxico
passa a ser considerado valorizado, em detrimento do antigo saber do agricultor, da tradicional
forma de relacionar-se com a terra, pois apropriar-se do agrotóxico pode significar uma
aproximação ou entrada no mundo moderno.
Ao serem questionados sobre este assunto, os feirantes remetem a diversos tipos de
substâncias químicas, pois todos são considerados produtos.
Em estudo sobre esse tema,27 a autora identifica os termos veneno e remédio para
denominação dos agrotóxicos pelos agricultores. Na feira de Santo Amaro, estes produtos são
também considerados ora veneno ora remédio, segundo as narrativas a seguir; em ambas as formas,
o agrotóxico provoca a mudança da relação com os alimentos, pois é a própria contaminação.
“Dizem ‘tem que comer bastante verdura, tem comer bastante fruta’. Agora pra
quê? Eu acho que se puder evitar, comer um pouco menos [por considerar ter
agrotóxico].” (Joana, 48 anos).
“Agora por que eles fazem isso? Por causa das pragas, está infeccionando a gente do
mesmo jeito, que é o pior [...] Quer dizer, se eles não fizerem isso, eles não têm
para vender, para gente comprar.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
Conforme exposto, alguns feirantes reproduzem a ideia da dependência agrícola aos
insumos químicos. Essa dependência é resultante da pressão econômica de grandes grupos
multinacionais, pois o Brasil representava um dos maiores mercados consumidores e tornou-se um
círculo vicioso devido à resistência das pragas e ao esgotamento dos solos.28
As pessoas que vendem alimentos contaminados por agrotóxicos, no caso
agricultores, não os consideram prejudiciais à saúde, enquanto outros afirmam que, a despeito dos
riscos, acham inviável a produção de alimentos sem sua utilização.29
Os feirantes que compram produtos do Centro de Abastecimento da Bahia (CEASA)
para revender, não gostam de falar sobre o assunto. Alguns entrevistados referem que os alimentos
vendidos nesse local contêm agrotóxicos, o que indica que os feirantes têm algum conhecimento
dos efeitos destes sobre a saúde humana.
Alguns entrevistados revelam uma insegurança ao consumir determinados alimentos,
por associarem alimentos contaminados por agrotóxicos ao risco do surgimento de doenças.
122
Revista Baiana
“‘Vambora’ ver essas frutas e verduras [...] Mamão é sadio? Não é sadio, porque está
de Saúde Pública
cheio de produto [...] Então eu acho que isso tudo está trazendo mais doença,
acabando com a saúde do povo. Qualquer coisinha hoje é câncer de garganta,
câncer de útero, câncer de mama”. (Joana, 48 anos, grifo nosso).
Segundo as narrativas, pode-se dizer que existe um valor atribuído aos alimentos,
como uma escala de valoração, de acordo a forma como são produzidos. Os feirantes valorizam o
conhecido, o familiar, o que torna o agrotóxico desvalorizado, por representar o novo que causa
estranhamento com o alimento. “Naquele tempo a alimentação era outra. A gente comia bem
mal, mas comia bem bom. Hoje que a gente está se alimentando mal. Antigamente não tinha
agrotóxicos. Plantava e como plantava crescia.” (Carmem, 66 anos, grifo nosso).
Para Carmem, comer bem é ingerir alimentos isentos de agrotóxicos, como era sua
alimentação quando criança, mesmo à época em que esta era escassa, devido à dificuldade
financeira da família. O agrotóxico passa a interferir na ordem cotidiana, pois o alimento, antes
fonte de vida e saúde, passa a ser transmissor de doença, de um mal.
Alguns feirantes acreditam que os alimentos plantados na zona rural do município
não possuem agrotóxicos, pois o alimento contaminado vem de fora. Mais uma vez, o agrotóxico é
representado como o estranho, o invasor.
“A única coisa que não pode pegar produto até agora é quiabo, porque é daqui do
interior. Você acha que essas laranjas, essas melancias que vem de fora são sadias?
Não são sadias. Outra coisa boa também, que não tem produto, é jaca, quando
chega a época. Quem tem roça não vai botar produto. Feijão de corda que é daqui
também. Mas chamou outros produtos que vem embalado, não tem quem não diga
que não tem produto.” (Joana, 48 anos, grifo nosso).
Ressalta-se que outro tipo de contaminação química por agrotóxicos (como raticidas
e demais produtos), não menos importante, foi identificado nas falas. Este se deve ao controle de
ratos e baratas, realizado de forma descontrolada e sem orientações pelos próprios feirantes.
“Sempre a gente está botando remédio, mas gasta tanto com Baygon [inseticida]. Uns botam,
outros não botam, então nunca vai acabar [baratas].” (Berenice, 52 anos).
Os feirantes também foram questionados sobre a possibilidade de os alimentos
serem transmissores de doenças. Ainda que as entrevistas abordem as contaminações químicas e
microbiológicas, os sujeitos associavam às doenças, principalmente, aos alimentos mal cozidos e
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ricos em gordura. “Para os feirantes e consumidores, a ideia de contaminação está associada muito
mais a uma alteração estética do produto do que à presença de um contaminante, seja ele físico,
químico ou biológico, como apregoa o discurso da ciência”.5:1612 Em suas vidas cotidianas, o
alimento é uma fonte de renda e festividades, sendo poucas vezes associado a um possível
transmissor de doenças.
O conhecimento científico é composto por conjuntos de instrumentos
teórico-metodológicos que permitem “enxergar” além dos sentidos. Para os feirantes, no entanto,
esse universo não foi alcançado, por serem limitados aos órgãos dos sentidos. Com base nessa
percepção sensorial agregam saberes e crenças, para então construírem as explicações e os
entendimento sobre os fenômenos observados de contaminação alimentar no cotidiano da feira.
Com relação aos significados da contaminação alimentar, este estudo permitiu
percebeu-se que são construídos muito mais por influências culturais baseadas nos costumes e nas
crenças do que pela interferência de conhecimentos técnico-científicos. A noção de contaminação
está relacionada às limitações das percepções dos sentidos, associadas às formulações presentes
nos saberes e crenças, tendo em vista a falta de acesso ao saber técnico-científico e à baixa
escolaridade apresentada, diante da necessidade de trabalhar desde a infância.
A explicação do fenômeno da contaminação alimentar fundamenta-se nas
formulações orientadas pela antiga noção de miasma, de ordenamento, conceito empírico de sujo
e limpo, pelos sentidos da visão e do tato, em que o referencial sensorial é determinante na
experiência dos feirantes diante ao risco da contaminação alimentar. Quando o alimento apresenta
sinais não característicos, indica uma perturbação da ordem ou associação ao perigo.
Os feirantes expressaram dificuldade para explanar sobre o tema da contaminação
microbiológica, pois esta não existe na realidade aparente, nas reflexões cotidianas, permanecendo
na invisibilidade. Os contaminantes físicos visíveis e os odores desagradáveis são os possíveis
transmissores de doenças e impurezas.
No que tange à contaminação por agrotóxicos, esta é mais explícita por ser
perceptível aos feirantes ao causar mudança no sabor e no tempo de maturação dos alimentos. O
agrotóxico é representado como algo novo, invasor do mundo conhecido, alterando a relação dos
feirantes com os alimentos, provocando um estranhamento.
Quanto ao risco de contaminação alimentar por metais pesados, em especial o
chumbo, constata-se que, numa cidade com preocupantes índices de contaminação ambiental,
este foi naturalizado pelos feirantes e percebido como algo distante, relacionado à fábrica. A
percepção do risco está presente no pensamento e na reflexão, quando há questionamento acerca
do tema, mas não na prática cotidiana.
124
Revista Baiana
de Saúde Pública
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 16.04.2011
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ARTIGO ORIGINAL
DISTÚRBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EM MEMBROS INFERIORES EM
TRABALHADORAS DE ENFERMAGEMa
Natália Fonseca Ribeirob
Rita de Cássia Pereira Fernandesb
Resumo
Estudo de corte transversal, que estimou prevalência e verificou fatores associados
aos distúrbios musculoesqueléticos em membros inferiores em auxiliares e técnicas de
enfermagem em Salvador, Bahia. Trezentas e oito trabalhadoras, selecionadas aleatoriamente,
responderam ao questionário aplicado durante expediente de trabalho por entrevistador treinado.
Demandas físicas no trabalho foram medidas pelo autorregistro de trabalhadores, em escala
numérica de seis pontos, com âncoras nas extremidades. Demanda psicológica, controle e suporte
social foram medidos para avaliar demandas psicossociais. Características individuais e atividades
extralaborais também foram examinadas. A maioria das entrevistadas trabalhava no turno diurno e
não costumava fazer hora extra. Ter outra atividade regular remunerada foi relatado por 34% e o
tempo médio no mercado de trabalho formal ou informal foi de 19 anos. A prevalência de DME
em membros inferiores foi de 65,6%. Por meio de análise multivariada verificam-se associações de
DME em membros inferiores com demanda física e demanda psicossocial no trabalho,
condicionamento físico precário e obesidade. Conclui-se que, a despeito da pequena força das
associações encontradas, possivelmente devido à baixa variabilidade na exposição entre as
trabalhadoras estudadas, a demanda física e psicossocial no trabalho e características individuais
foram fatores associados aos DME em membros inferiores.
Palavras-chave: Transtornos traumáticos cumulativos. Lesões por esforços repetitivos. DORT.
Enfermagem. Auxiliares de enfermagem.
a
Órgão Financiador: CNPQ (Processo nº 472.176/2008-0).
b
Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina da Bahia, Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho. Largo do Terreiro
de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia. CEP: 40 026-010. [email protected]
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Revista Baiana
MUSCULOSKELETAL DISORDERS IN LOWER LIMBS AMONG NURSES AND AIDES
de Saúde Pública
Abstract
On multivariate analysis there are associations of DME in the lower limbs with
physical demands and psychosocial work demands, precarious physical fitness and obesity. Crosssectional study estimated the prevalence and identified factors associated to musculoskeletal
disorders in lower limbs among nurses and aides in Salvador, Bahia. Three hundred and eight
workers, randomly selected, answered a questionnaire applied by trained interviewers during
working hours. Physical work demands were measured by self-registration of workers in a sixpoint numerical scale, with anchors at the ends. Psychological demands, control and social support
were measured to assess psychosocial demands. Individual characteristics and activities outside
work were also examined. The majority of respondents worked the day shift and did not usually
work overtime. About 34% reported having another regular job. Average time in the formal or
informal labor market was 19 years. The prevalence of MSDs in the lower limbs was 65.6%.
Key words: Cumulative trauma disorders. Repetition strain injury. Nursing. Nurses’ aides.
DISTURBIOS MUSCULOESQUELÉTICOS EN EXTREMIDADES INFERIORES EN
TRABAJADORAS DE ENFERMERÍA
Resumen
Estudio de corte transversal, que estimó prevalencia y verificó factores asociados a
los disturbios musculoesqueléticos en extremidades inferiores en auxiliares y técnicas de enfermería
en Salvador, Bahia. Por medio de análisis multivariado existen asociaciones de Disturbios
Musculoesqueléticos DME en las extremidades inferiores con las exigencias físicas y exigencias
psicosociales del trabajo, condición física precaria y obesidad. Trescientas dieciocho trabajadoras,
seleccionadas aleatoriamente, respondieron a un cuestionario aplicado durante el horario de trabajo
por un entrevistador entrenado. La exigencia física en el trabajo fue medida por el auto-registro de
trabajadores, en escala numérica de seis puntos con destaque en las extremidades. Demanda
psicológica, control y apoyo social se midieron para evaluar las demandas psicosociales. Las características individuales y las actividades fuera del trabajo también fueron examinadas. La mayoría
de las encuestadas trabajaba en el turno de día y no solía trabajar horas extraordinarias. Un 34%
reportó tener otra ocupación regular remunerada y el tiempo promedio en el mercado de trabajo
formal o informal fue de 19 años. La prevalencia de DME en las extremidades inferiores fue
65,6%. Por medio de análisis multivariado verificándose asociaciones de DME en extremidades
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inferiores con demanda física y demanda psicosocial en el trabajo, condición física precaria y
obesidad. Se concluye que, a despecho de la pequeña fuerza de las asociaciones encontradas,
posiblemente debido a la baja variabilidad en la exposición entre las trabajadoras estudiadas, la
demanda física y psicosocial, obesidad y condición física precaria fueron factores asociados a los
DME en extremidades inferiores (MMII).
Palabras-clave: Trastornos traumáticos acumulativos. Lesiones por esfuerzos repetitivos. DORT
(Disturbios Osteomusculares Relacionados al Trabajo). Enfermería. Auxiliares de enfermería .
INTRODUÇÃO
Os distúrbios musculoesqueléticos (DME) são hoje um problema de saúde pública.
Embora a coluna lombar e os membros superiores estejam estabelecidos na literatura como as
partes do corpo mais sujeitas aos riscos associados ao trabalho,1 quando se incluem os membros
inferiores (MMII), as pesquisas têm constatado uma alta prevalência de DME nessa região e muito
pouco tem sido discutido sobre esses achados.
Considerados como um amplo conjunto de desordens inflamatórias ou
degenerativas que acometem tendões, nervos, músculos, articulações, circulação e bursas, os
DME podem se manifestar também nos MMII, o que precisa ser mais bem estudado para
compreensão dos seus fatores de risco e, consequentemente, sua prevenção.
O objetivo deste estudo foi estimar prevalência e verificar fatores associados aos
distúrbios musculoesqueléticos em membros inferiores em auxiliares e técnicas de enfermagem
em Salvador, Bahia.
MATERIAIS E MÉTODOS
Foi realizado um estudo exploratório de corte transversal com 320 auxiliares e
técnicas de enfermagem (TAE) de um hospital público da cidade de Salvador, Bahia, em 2008.
Com base na população de 666 TAE do hospital estudado foi retirada uma amostra
aleatória, cujo tamanho mínimo, 293 indivíduos, foi calculado considerando-se um grau de
precisão absoluta de 5,0%, nível de confiança de 95,0%, prevalência esperada de 50,0% e efeito
de desenho de 1,2. O tamanho amostral de 320 trabalhadoras foi adotado considerando-se as
perdas que poderiam ocorrer.
Foram elegíveis para o estudo todas as TAE em efetivo exercício profissional no
momento da coleta de dados na unidade hospitalar selecionada, de acordo com listagem fornecida
pela instituição. Aquelas selecionadas que se encontravam afastadas do trabalho foram substituídas
pelo próximo nome da lista.
130
Revista Baiana
de Saúde Pública
Para a coleta de dados foi aplicado um questionário às trabalhadoras selecionadas,
durante o expediente de trabalho, em local reservado. O instrumento é uma adaptação do
questionário elaborado e utilizado em estudo sobre DME em trabalhadores da indústria de
plástico.2 Nele utilizaram-se questões elaboradas pela autora e questões retiradas de outros
instrumentos, modificadas ou não.
No questionário são coletadas informações sociodemográficas, sobre a história
ocupacional no emprego atual e vida laboral pregressa, exposição a demandas físicas e
psicossociais no trabalho, dados sobre trabalho doméstico, uso de fumo, bebidas alcoólicas e
contraceptivo hormonal, percepção das trabalhadoras sobre o seu condicionamento físico e por fim
informações sobre sintomas de DME.
Dados sobre demanda física no trabalho foram obtidos por meio de questões
respondidas pelas trabalhadoras em escala de frequência, intensidade ou duração de 0 a 5, com âncoras
nas extremidades, sobre posturas de trabalho, força muscular exercida e levantamento de carga. A
avaliação das demandas físicas no trabalho, por meio do autorrelato da exposição do trabalhador em
escalas com âncoras nas extremidades, apresenta boa validade3 e motivou a escolha do instrumento
utilizado para coleta dos dados. Avaliar demanda física por meio das exigências das tarefas (rotação de
tronco, levantamento de carga etc.) e não por meio da descrição da tarefa realizada (transferir paciente,
por exemplo), como tem sido observado em outros estudos com profissionais de enfermagem, permite
a comparação dos achados da categoria profissional estudada com outras categorias, sem excluir a
avaliação necessária da exposição dos profissionais de enfermagem.
Para sumarização das variáveis relacionadas à exposição às demandas físicas no
trabalho foi criado um índice baseado nas análises univariadas e na evidência de associação na
literatura entre as variáveis e o desfecho. Assim, o índice criado utilizou as variáveis que avaliavam
a frequência com que as trabalhadoras adotavam a postura em pé, andando e agachada durante o
trabalho e a frequência do manuseio de carga.
Os aspectos psicossociais do trabalho foram medidos pelo Job Content Questionnaire
(JCQ),4 por meio dos escores obtidos para demanda psicológica, controle e suporte social. A
demanda psicológica caracteriza-se pelas exigências que o trabalhador enfrenta no seu trabalho,
quanto à concentração, ritmo, tempo para realização das tarefas, entre outras. O controle
considera a possibilidade de o trabalhador tomar decisões acerca do seu trabalho, como também o
nível de habilidade ou criatividade requerida para a tarefa, bem como a flexibilidade que permite
ao trabalhador decidir quais habilidades empregar.5 O suporte social refere-se ao apoio da chefia e
dos colegas de trabalho, o que implica na existência de bons canais de comunicação, relações
satisfatórias com colegas e chefes e colaboração para a realização das tarefas.6
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131
A despeito do grande uso do modelo demanda-controle de Karasek entre os estudos
sobre demandas psicossociais no trabalho, considerando a relevância dada ao suporte social nas
pesquisas sobre DME, evidenciou-se a necessidade de considerá-lo simultaneamente às variáveis
demanda e controle. Para tanto, foi utilizado o critério que considera alta exposição à demanda
psicossocial a satisfação de pelo menos duas das seguintes condições: alta demanda, baixo
controle e baixo suporte.7
Dados sobre sintomas de DME foram coletados por meio da versão ampliada do
Nordic Musculosqueletal Questionnaire (NMQ),8 instrumento amplamente utilizado em
investigações epidemiológicas sobre DME em todo o mundo. Avalia-se a presença de dor ou
desconforto nos últimos 12 meses nas áreas anatômicas estudadas e sua severidade, duração e
frequência.
A equipe de entrevistadores, formada pela autora principal e por estudantes do
curso de graduação em Medicina da Universidade Federal da Bahia, foi treinada previamente para
o uso do instrumento, esclarecida acerca de cada item do questionário e das alternativas de
resposta.
Definiu-se como “caso de DME” a trabalhadora que referiu dor ou desconforto em
coxa ou joelho, pernas e pé ou tornozelo nos últimos doze meses, com duração mínima de uma
semana ou frequência mínima mensal, não decorrente de trauma agudo, acompanhados de pelo
menos um dos seguintes sinais de gravidade:
• grau de severidade maior ou igual a 3, em uma escala numérica de 0 a 5 com
âncoras nas extremidades (nenhum desconforto a desconforto insuportável);
• busca de atenção médica pelo problema;
• ausência ao trabalho (oficial ou não);
• mudança de trabalho por restrição de saúde.8
Para análise dos dados, as variáveis independentes foram as seguintes:
sociodemográficas – idade, estado civil; ocupacionais – horas extras, anos de trabalho
(incluindo vínculos formais e informais), existência de outro vínculo de trabalho, insatisfação
no trabalho, demanda psicossocial, demanda física; estilo de vida e extralaborais – uso de
bebidas alcoólicas, condicionamento físico, obesidade, uso de contraceptivo hormonal e
trabalho doméstico.
Todas as variáveis foram dicotomizadas. Obesidade foi considerada como índice de
massa corporal (IMC) >30 Kg/m2; estado civil foi estratificado em casadas ou que viviam com
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Revista Baiana
de Saúde Pública
companheiro e outros; e para o uso de bebida alcoólica, o consumo com frequência de uma vez
na semana foi adotado como ponto de corte. Para as demais variáveis foi utilizada a mediana como
ponto de corte.
A presença de tabagismo e filhos menores de 2 anos não foram incluídas na análise
multivariada devido à sua baixa prevalência na população estudada.
A abordagem estatística dos dados iniciou com uma etapa descritiva, seguida de
análise tabular, com realização do teste do qui-quadrado, cálculo de razões de prevalência e seus
respectivos intervalos de confiança.
Para identificar os fatores associados aos DME foi conduzida a análise de regressão
logística não-condicional. A pré-seleção das variáveis independentes foi baseada na plausibilidade
biológica das associações. O método de seleção das variáveis foi o “de trás para frente”
(backward).
Visto que o resultado final da regressão logística fornece os resultados utilizando a
odds ratio como medida de associação e considerando a sua inadequação para um estudo de corte
transversal de uma doença com prevalência elevada, foi realizado o cálculo das estimativas de
razões de prevalência e de seus respectivos intervalos de confiança pelo método Delta.9
Este projeto de pesquisa foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisas pelo
Parecer Nº 84/2007, de 23 de maio de 2007. Antes da aplicação dos questionários, as
trabalhadoras foram informadas dos objetivos da pesquisa, da instituição responsável e de que o
hospital apenas liberou o acesso dos pesquisadores à instituição, não tendo qualquer participação
na realização da pesquisa. As convidadas que aceitaram participar do estudo assinaram um Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual foram assegurados o sigilo das informações, a
participação voluntária e o anonimato.
RESULTADOS
A população estudada constituiu-se de 308 trabalhadoras, devido a 12 perdas ou
recusas. As características sociodemográficas da população de estudo foram publicadas em outro
artigo produto desta pesquisa sobre DME em trabalhadoras de enfermagem.10
Foi verificada uma elevada prevalência de DME em membros inferiores: 65,6%. A
prevalência de DME em MMII na população estudada foi mais alta que na região lombar (53,9%) e
membros superiores e pescoço (57,5%). As queixas de DME em MMII distribuíram-se da seguinte
forma: coxa ou joelho, 29,5%, perna, 51,9%, e tornozelo ou pé, 31,5%. Considerando-se apenas
a dor em MMII com duração maior que uma semana ou frequência mínima mensal, sem a adoção
dos critérios de gravidade, verifica-se uma prevalência de 74,7% (Tabela 1).
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Tabela 1. Prevalência de dor e distúrbio musculoesquelético* por segmento corporal em
trabalhadoras de enfermagem (n=308) – Salvador – 2008
A Tabela 2 revela que a maior parte dos casos de DME em MMII estava
acompanhada de dor nos sete dias anteriores à realização da entrevista.
Tabela 2. Dor nos últimos sete dias entre os casos de Distúrbio Musculoesquelético (DME)*
em trabalhadoras de enfermagem por segmento corporal – Salvador – 2008
A Tabela 3 revela, por meio de análises univariadas, a existência de associações
positivas entre DME em MMII e todas as variáveis de demanda física analisadas, porém apenas
para postura de trabalho andando pôde ser verificada significância estatística.
Por meio da análise multivariada, verificam-se associações de DME em MMII com
demanda física, demanda psicossocial, condicionamento físico precário e obesidade, todos com
significância estatística limítrofe (Tabela 4).
134
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Tabela 3. Associação entre Distúrbio Musculoesquelético (DME) em membros inferiores
com variáveis de demanda física em trabalhadoras de enfermagem (n=308) – Salvador –
2008
Tabela 4. Resultado da análise de regressão logística para Distúrbio Musculoesquelético
(DME) em membros inferiores em trabalhadoras de enfermagem (n=308) – Salvador –
2008
DISCUSSÃO
Surpreende a magnitude de DME relatada em membros inferiores, 65,6%.
Verifica-se que a principal região que contribui para esse resultado são as pernas que,
isoladamente, correspondem a 51,9%. As demais regiões dos membros inferiores apresentam
prevalência menor, mas com magnitude relevante.
Assim como neste estudo, pesquisa sobre fatores de risco para DME na Lituânia11
também apontou os MMII como a região corporal mais atingida em trabalhadores da indústria.
Mais da metade dos trabalhadores (61%) referiu DME em MMII, 39,4% tinham dor em joelho ou
perna e 30,9% tinham queixas em tornozelo ou pé. Nesse estudo, DME em pescoço ou braços
corresponderam a 27% e em região lombar a 28,4%.11
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Estudo com trabalhadores da indústria,12 assim como investigação com 12 grupos
ocupacionais diferentes, incluindo enfermeiras,13 encontraram que o acometimento por DME em
MMII ficou atrás apenas da região lombar. Pesquisa sobre fatores prognósticos para afastamento e
retorno ao trabalho por doença osteomuscular12 verificou que, durante um período de seguimento de
dois anos, a proporção de trabalhadores que experimentou pelo menos um período de afastamento
como resultado de dor lombar foi a mesma de dor em membros inferiores, ou seja, 23%.
Para os trabalhadores da indústria do petróleo na China, DME em MMII também se
revelou um problema importante. A prevalência de DME em joelhos entre esses trabalhadores
(20,1%) ficou apenas atrás de DME em lombar (32,4%) e pescoço (25%).14
Deve-se fazer uma ressalva quanto à comparação desses resultados, pois, apesar
desses outros estudos também terem utilizado o NMQ como instrumento para coleta de dados,
eles não citam a adoção dos critérios de gravidade que foram utilizados neste estudo, para a
definição de “caso de DME”. Neste estudo considerou-se DME apenas aqueles sintomas que,
além de terem duração mínima de uma semana ou frequência mínima mensal, motivassem a
busca de atenção médica pelo problema ou ausência ao trabalho (oficial ou não), ou mudança de
trabalho por restrição de saúde, ou que tivessem um grau de severidade maior ou igual a 3 (em
uma escala numérica de 0 a 5). A adoção desses critérios de gravidade visa o aumento da
especificidade da queixa e permite apontar com maior propriedade a grande morbidade que os
DME representam nessa população.8
Os estudos com profissionais de enfermagem também revelam elevadas
prevalências de DME em MMII, embora não tenha sido o principal sítio de DME como no
presente estudo. Nas pesquisas com trabalhadoras de enfermagem identificadas, que abordaram
DME em diversas regiões anatômicas, a lombar foi a principal região acometida.
Quanto à região mais comprometida dos MMII, os resultados diferem entre os
estudos com trabalhadores de enfermagem. Estudo envolvendo TAE em São Paulo15 encontrou
maior prevalência de DME em joelhos (33,3%, comparado com 16,2% em quadril/coxa e 14,3%
em tornozelo/pé). Do mesmo modo, estudo com profissionais de enfermagem, na Holanda,16
encontrou os seguintes resultados: joelho/perna 10,2%, quadril/coxa 6,9% e tornozelo/pé 3,7%.
Já no estudo sobre prevalência de dor musculoesquelética em auxiliares de enfermagem
noruegueses,17 o quadril foi a principal região dos MMII (quadril 26,6%, joelho 20,5% e
tornozelo/pé 15,5%). Nesse estudo, a prevalência de dor em quadril foi maior que em cotovelo
e punho/mão. Tornozelo/pé foi a região mais acometida dos MMII em enfermeiros em Portugal,
com prevalência de 20%18 e em trabalhadores de enfermagem chineses, que reportaram 34%
de DME nessa região.19
136
Revista Baiana
de Saúde Pública
Pesquisa envolvendo enfermeiras e técnicas de enfermagem de um centro cirúrgico
nos Estados Unidos20 revela dados importantes em relação à DME em membros inferiores, cuja
prevalência nos últimos 12 meses foi maior na região lombar (84%) seguida por tornozelo/pé
(74%). Queixas de dor em tornozelo/pé foram a segunda causa de absenteísmo ao trabalho (24%),
apenas atrás da região lombar (31%) e seguida por dor em joelhos (21%). Esse estudo concluiu que
ficar em pé por longas horas (mais de 10 horas em alguns procedimentos cirúrgicos) é um
contribuinte importante para dor em lombar e tornozelo/pé.
No presente estudo, os resultados da análise multivariada revelam associações
fracas, que possivelmente refletem a baixa variabilidade de exposição na população estudada, ou
seja, a exposição às demandas no trabalho, físicas e psicossociais, bem como aos demais fatores,
embora de alta magnitude, está muito uniformemente distribuída entre as TAE, não havendo
gradiente suficiente para revelar intensidade de associações. A despeito disso, optou-se por
mostrar os resultados que revelam essas associações.
A associação entre a postura de trabalho em pé e andando e DME em MMII foi
demonstrada em estudo com trabalhadoras de enfermagem16 e com trabalhadores da indústria.11
Nos trabalhadores da indústria que adotavam a postura sentada frequentemente, a prevalência de
DME em MMII foi um terço da reportada por aqueles que sentavam raramente ou nunca durante a
jornada de trabalho.11 Um estudo de base populacional no Canadá21 também evidenciou que a
postura em pé, sem a liberdade de sentar de acordo com a vontade do trabalhador, está fortemente
associada a dor em pernas e tornozelo ou pé. O desconforto associado à adoção da postura em pé
por tempo prolongado é mediado por mecanismos envolvendo o sistema cardiovascular e o sistema
muscular. Os efeitos da postura em pé sobre a musculatura não estão bem documentados, mas
sabe-se que a fadiga muscular pode ser induzida pela contração isométrica da musculatura durante a
postura em pé estática, mas também pelo caminhar prolongado.21
Para o sistema cardiovascular, a postura em pé é um fator de risco conhecido21 dada
a dificuldade do retorno de sangue venoso nessa posição. Durante o caminhar, tal situação é
amenizada pela ativação da bomba da panturrilha, desde que as válvulas venosas estejam intactas.
Se houver comprometimento dessas válvulas, o andar também acaba aumentando a pressão
venosa nas extremidades inferiores.22
O caminhar pode aumentar a probabilidade de dor no tecido muscular por
mecanismos como o excesso de esforço e impacto, mas pode diminuir a probabilidade de dor em
MMII por outros mecanismos que afetam o sistema vascular. O caminhar pode, portanto, ter
diferentes efeitos sobre o sistema musculoesquelético e sistema cardiovascular dos trabalhadores
submetidos a postura em pé.21 Desta forma, estudo23 reconhece que a quantidade ideal de
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137
mobilidade durante a postura em pé ainda não é conhecida, no entanto seus resultados mostram
que as posturas em pé mais estáticas estão associadas aos sintomas musculoesqueléticos.
A proporção ideal entre as posturas em pé e sentada no trabalho também ainda é
desconhecida. Ficar em pé por tempo prolongado no trabalho tem mostrado associação com problemas
de saúde, incluindo fadiga em membros inferiores, dor e edema em estudos epidemiológicos,
laboratoriais e ergonômicos. O trabalho sentado, por sua vez, também tem sido associado a edema nas
extremidades inferiores e desconforto nos pés.24 Nesse estudo, os autores sugerem que a liberdade de
poder sentar de acordo com a vontade do trabalhador é importante na prevenção dos DME em MMII.
Apenas um estudo encontrado mostrou associação entre a posição agachada (adotar
essa postura por mais de 15 minutos) e DME em MMII.13 No presente estudo, na análise
univariada, essa postura de trabalho mostrou associação com DME em MMII, porém sem
significância estatística.
O manuseio de carga, embora isoladamente não tenha, neste estudo, mostrado
significância estatística para sua associação com DME em MMII, em alguns estudos realizados com
outras categorias profissionais teve associação a DME em joelhos13 e tornozelo ou pé.21,25 A
influência do manuseio de carga (seja carregar, puxar ou empurrar) nos DME em MMII também foi
apontada em estudo envolvendo trabalhadores de diversas ocupações na Dinamarca,26 embora
estudo com trabalhadores da indústria11 não tenha encontrado associação entre DME em MMII e
manuseio de carga.
O manuseio de carga está estabelecido na literatura como importante fator
associado aos DME na região lombar;27 já para MMII, embora exista plausibilidade biológica para tal
associação, os resultados dos estudos epidemiológicos ainda não permitem dizer que existe
evidência científica para essa associação.
As posturas inadequadas adotadas durante a jornada dos trabalhadores de
enfermagem foram apontadas16,28 como associadas a DME em MMII, uma vez que implicam
sobrecarga para as articulações dos MMII, embora neste estudo isso não tenha sido ratificado.
Foi verificada neste estudo a associação entre DME em MMII e demanda
psicossocial no trabalho, assim como em estudo com trabalhadores de uma empresa de petróleo.14
Algumas hipóteses tentam explicar a influência da demanda psicosssocial nos DME. É possível que
o estresse aumente a tensão muscular e se essa tensão persistir por um período prolongado pode
resultar em dor musculoesquelética. Ou, ainda, a demanda psicossocial pode aumentar a
sensibilidade à dor ou aumentar a percepção dos sintomas musculoesqueléticos.14
Neste estudo não foi verificada associação entre DME em MMII e insatisfação no
trabalho, embora tenha sido demonstrada essa associação em trabalhadores de diversas ocupações
138
Revista Baiana
de Saúde Pública
na Dinamarca, incluindo enfermeiros e auxiliares de enfermagem, e ainda que o baixo suporte
social dos colegas também se associa a DME em MMII.26
Quanto às características individuais, este estudo mostrou associação entre DME em
MMII e condicionamento físico precário e obesidade. Nos estudos pesquisados, dois encontraram
associação entre DME em MMII e alto índice de massa corporal.21,26 Em um deles, evidenciou-se
entre os homens a associação entre obesidade e dor em tornozelo ou pé e entre sobrepeso e dor
nas pernas, no entanto essa associação não foi verificada entre as mulheres.21 Embora alguns
estudos apontem associação entre obesidade e DME, mesmo para regiões corporais mais estudas,
como a lombar, este achado ainda é controverso.29
Condicionamento físico precário também se mostrou um fator associado a DME em
MMII neste estudo. Apesar de atividade física e condicionamento físico serem geralmente aceitos
como uma forma de reduzir DME, isso também não está claro na literatura.27,29 Estudo envolvendo
trabalhadores da indústria30 encontrou interação estatística entre aptidão física (AF) e demanda física no
trabalho (DFT) para a ocorrência de DME em pescoço, ombros ou parte alta das costas (DME-POC).
Entre os indivíduos expostos a baixa DFT, a precária AF resultou em 3,19 vezes mais chance (RC=3,19,
IC95% 1,69; 6,04) de adoecimento do que uma boa AF. No entanto, quando os trabalhadores estavam
expostos a altas DFT, ter uma boa AF não foi fator de proteção para DME-POC (RC=1,20, IC95% 0,60;
2,40). O trabalho físico pesado está associado à alta prevalência de DME-POC, mesmo quando os
trabalhadores referem uma boa aptidão física. A aptidão foi um possível fator de proteção apenas entre
aqueles que realizavam trabalho leve. Este estudo não analisou os DME em MMII, no entanto seu
achado já aponta para a relativa importância dos fatores individuais frente à determinação das condições
de trabalho sobre o adoecer dos trabalhadores. É possível que o risco representado pela excessiva
demanda física no trabalho da enfermagem supere a proteção que poderia ser obtida com um bom
condicionamento físico, mas isto requer análises confirmatórias.
O exposto permite concluir-se que, não obstante poucos estudos abordem DME em
MMII, quando esses são considerados nas análises, têm demonstrado prevalências bastante
elevadas que não têm sido discutidas.
Neste estudo, a despeito da pequena força das associações encontradas,
possivelmente devido à baixa variabilidade na exposição entre as trabalhadoras estudadas,
aponta-se para a demanda física e psicossocial, obesidade e condicionamento físico precário
como fatores associados aos DME em MMII.
Os achados deste estudo reforçam a necessidade de investigações que se dediquem
ao estudo de DME em MMII.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 28.04.2011
142
ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
TRABALHADOR-DOENTE E SUA FAMÍLIA: DINÂMICA, CONVIVÊNCIA E PROCESSO DE
RETORNO AO TRABALHO
Paulo Roberto Ferreira da Rochaa
Mônica Angelim Gomes de Limab
Resumo
Diversos fatores biopsicossociais contribuem para o absenteísmo prolongado, dentre
estes as dinâmicas que acontecem na interação do cotidiano familiar. Sabe-se que a família tem
um papel destacado no processo de reabilitação do trabalhador-doente. O objetivo deste estudo
foi compreender as interações e práticas dos membros da família construídas na convivência com o
servidor-doente da UFBA que contribuem ou dificultam a sua recuperação e seu retorno ao
trabalho. Recorreu-se a uma abordagem etnográfica com elementos da etnometodologia,
envolvendo seis famílias de servidores afastados do trabalho por mais de três meses. Utilizaram-se
entrevistas em profundidade e diário de campo. O material empírico foi analisado buscando
reconhecer as ações práticas construídas no processo de adoecimento, afastamento do trabalho e
convivência na família, dando-se particular atenção às falas sobre os cenários de interação no
cotidiano. Os achados mostram que, durante o período de absenteísmo, as famílias sofreram
reestruturação e mudanças nos seus papéis sociais e que a forma de agir e gerenciar, bem como o
modo como os membros compartilham o cotidiano tiveram que ser revistos. Os métodos que
utilizam para dar suporte e se manterem coesos, a habilidade de resolver problemas, como a
economia das perdas e ganhos, foram recursos mobilizados para atenuar as consequências do
adoecimento.
Palavras-chave: Doença crônica. Trabalho. Apoio a reabilitação. Família. Reabilitação.
Mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho. Médico Perito e Cardiologista do Serviço Médico Universitário Rubens Brasil (SMURB),
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
b
Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal
a
da Bahia (UFBA). Doutora em Saúde Pública.
Endereço para correspondência: Av. Reitor Miguel Calmon 1.210, sala 307, Vale do Canela, Salvador, Bahia, Brasil. CEP:
40110.100. [email protected]
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THE SICK WORKER AND HIS FAMILY: DYNAMICS, RELATIONSHIP AND RETURN TO
WORK PROCESS
Abstract
Several biopsychosocial factors contribute to prolonged absenteeism, among them
the dynamics that occur in the interaction of family life. It is known that the family has a
prominent role in the rehabilitation process of the sick worker. Aiming to understand the
interactions and practices of family members living with the UFBA sick worker, which contribute
or hinder their recovery, conducted a study with an ethnographic approach and elements of
ethnomethodology, involving six families of servers out of work for more than three months.
We used semi-structured interviews and field journal. The empirical data were analyzed with a
targeted look at the broad understanding of the practical actions built into the process of illness,
absence from work and life in the family, giving particular attention to the speeches on the
interaction scenarios in everyday life. The findings show that during the period of absenteeism
families experienced restructuring and that changes in their social roles and how to act, manage,
and how members share the daily life had to be revised. The methods they use to support and
remain cohesive, the ability to solve problems such as economic gains and losses were responsible
for mitigating the consequences of illness.
Key words: Chronic disease. Work. Support for rehabilitation. Family. Rehabilitation.
TRABAJADOR-ENFERMO Y SU FAMILIA: DINÁMICA, CONVIVENCIA Y PROCESO DE
REGRESO AL TRABAJO
Resumen
Varios factores bio-psicosociales contribuyen al absentismo prolongado, entre éstos,
las dinámicas que se producen en la interacción de la vida familiar. Se sabe que la familia tiene un
papel destacado en el proceso de rehabilitación del trabajador enfermo. El objetivo de este estudio
fue comprender las interacciones y las prácticas de los miembros de las familias para hacer frente
a un trabajador enfermo de la UFBA, que contribuyen o dificultan su recuperación y su regreso al
trabajo. Se recurrió a un abordaje etnográfico con elementos de Etnometodología, involucrando
a seis familias de trabajadores alejados del trabajo durante más de tres meses. Se utilizaron entrevistas
semiestructuradas y diario de campo. Los datos empíricos fueron analizados procurando reconocer
las acciones prácticas construidas en el proceso de enfermar, alejamiento del trabajo y la convivencia
en la familia, prestando especial atención a los discursos sobre los escenarios de interacción en la
144
Revista Baiana
de Saúde Pública
vida cotidiana. Los resultados muestran que durante el período de ausentismo, las familias sufrieron
reestructuración y mudanzas en sus roles sociales y que la forma de actuar y administrar, así como
el modo en que los miembros comparten la vida diaria tuvieron que ser revisados. Los métodos
que utilizan para apoyar y seguir estando unidos, la capacidad de resolver problemas como la
economía de las ganancias y las pérdidas fueron los recursos responsables de atenuar las
consecuencias de la enfermedad.
Palabras-clave: Enfermedad crónica. Trabajo. Apoyo a la rehabilitación. Familia. Rehabilitación.
INTRODUÇÃO
O adoecimento crônico de trabalhadores, relacionado ou não ao trabalho, está
frequentemente associado a sérias limitações nas atividades da vida diária em geral e à
incapacidadec para o trabalho, além de estar susceptível a aposentadoria precoce. Esta condição
clínica, frequente nas sociedades contemporâneas, gera sofrimento, reduz a autonomia do
trabalhador e limita o seu papel social. O significado da doença, subjetiva e intersubjetivamente
construído, modela a forma de o trabalhador-doente lidar com esse fenômeno, assim como define
sua relação com os serviços de saúde, a aderência ao tratamento, o curso da enfermidade e até
mesmo o tempo de afastamento do trabalho.1, 2
De uma maneira geral, entende-se que estar doente, para a maioria das pessoas, é
uma condição indesejável, embora seja muito atual no campo da psicologia comportamental a
discussão sobre perdas e ganhos para o indivíduo e o seu entorno. Possivelmente, o balanço entre
esses influenciará no processo de adoecimento e na permanência no estado provocado pela
doença. Este debate tem se orientado para identificar, nos indivíduos, comportamentos a favor de
manterem-se doentes sem problematizar as perdas advindas desse processo e sem questionar
sobre o contexto como esse fenômeno desenvolve-se.3
Para entender a contribuição do ambiente social na cronicidade da doença, entre as
oscilações dos sintomas e incapacidade, deve-se ser capaz de ver o doente envolto numa rede de
interações que constitui o mundo da vida cotidiana.d Entre essas, são relevantes as que acontecem com os
serviços de saúde e os sistemas sociais, como, por exemplo, as que advêm da convivência no ambiente
da família que interferem na transição do estado de incapacidade para o estado social normal.5
c
d
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A incapacidade é definida pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) como produto da
interação entre a disfunção apresentada pelo indivíduo (funções e estruturas do corpo), limitação das atividades e restrição na
participação social, bem como fatores ambientais.4
O mundo da vida, às vezes chamado de mundo da vida cotidiana, refere-se ao mundo experiencial de cada pessoa em atitude
natural.6
145
O trabalhador-doente, incapacitado e afastado do trabalho procura abrigo no
ambiente da família, onde tem que representar o seu novo papel, o de doente, que nem sempre
será compreendido. Durante a convivência cotidiana, observa-se mudança na função e estrutura
da família, exigindo dos seus membros um esforço para lidar com as novas demandas que surgem
após o adoecimento.6
As transformações contemporâneas observadas na família, derivadas das relações de
gênero e inserção intensiva da mulher no mercado de trabalho, entre outras, também influenciam
no modelo explicativo de saúde-doença que compreende um conjunto de valores, crenças,
conhecimentos e práticas que guiam as ações, gerenciamento e promoção da saúde.7
Por sua parte, a família tem uma estrutura organizacional própria para administrar
essas demandas mediante a construção de certos padrões representados pela divisão de
responsabilidades, hierarquias e delimitação de fronteiras. Nas inter-relações que se estabelecem
em seu interior, mesmo mantendo a individualidade, os seus membros compartilham sentimentos
e valores, formando vínculos de interesse, solidariedade e reciprocidade. Nesse sentido, buscam e
mediam esforços para atenuar ou resolver o impacto do adoecimento, tolerando situações de alto
estresse em razão da troca dos papéis para dar suporte ao doente.6,8
O estudo da família, numa abordagem etnográfica com elementos da
etnometodologia, deve ser feito pela análise cuidadosa da linguagem em interação ou do discurso
construído no contexto sócio-histórico no ambiente familiar. Dessa forma, busca-se compreender
como os membros de uma família constroem o raciocínio prático e os procedimentos
interpretativos que proporcionam um senso de concretude e ordem social da vida cotidiana
doméstica, em um contexto histórico multigeracional, para lidar com doença, perdas e crises. 6,10
Algumas pesquisas têm destacado a importância da família na recuperação do
trabalhador-doente.8,11-14 Em estudo exploratório realizado no Serviço Médico Universitário Rubens
Brasil (SMURB),e com servidores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), observamos que, de
865 doentes, 127 (14,7%) apresentaram afastamento do trabalho superior a três meses, com
predomínio do sexo feminino (71,6%). Nas avaliações de prontuários, encontramos que as
interações no cotidiano familiar foram citadas como um dos responsáveis pelo tempo de
absenteísmo. No atual estudo, buscamos compreender como as dinâmicas construídas no
cotidiano familiar interferem no processo de adoecimento, afastamento e retorno ao trabalho dos
trabalhadores-doentes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) afastados por mais de três meses.
e
Estudo realizado no SMURB por Rocha PRF (dados não publicados).
146
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de Saúde Pública
METODOLOGIA
Esta pesquisa utiliza abordagem etnográfica com elementos da etnometodologia,
que explora os modos pelos os quais os atores sociais coletivamente criam e mantêm um senso de
ordem e inteligibilidade da vida social cotidiana no ambiente da família.15 Um dos seus
pressupostos centrais é a concepção de que os fatos e as organizações sociais são construções e
realizações contínuas e seu estudo abarca os inúmeros tipos de atividades, circunstâncias e
raciocínios, bem como a ordem social construída.10,16
Por se tratar de um estudo exploratório, numa perspectiva construcionista, a
definição dos sujeitos de pesquisa envolvidos respeitou a saturação dos temas e categorias pela
repetição. Esta abordagem permite a obtenção de informações em profundidade dos sujeitos
dentro do contexto da pesquisa.
O grupo estudado (11 servidores) originou-se de uma amostra de conveniência dos
servidores da UFBA, atendidos no SMURB de 2007 a 2009, afastados do trabalho (>3 meses) por
doença e que não estavam aguardando aposentadoria por invalidez. Destes, 5 servidores foram
excluídos, por causa da perda da gravação e dificuldade de realizar as entrevistas com os familiares.
As seis famílias participantes (6 servidores e um ou mais membros da família) foram consideradas
de acordo com o conceito dado pelos servidores, dentro do seu mundo de significado no contexto
do cotidiano doméstico. Os casos estão representados por 14 sujeitos, sendo 11 do sexo feminino.
Esta pesquisa tem registro número CEP. 043/09 no Comitê de Ética em Pesquisa da Maternidade
Climério de Oliveira.
Os entrevistados foram convocados por telefone, pelo serviço social ou mediante
contato pessoal, quando estavam na “sala de espera” do serviço médico. Apesar de os
servidores serem atendidos na instituição, em nenhum dos casos, o pesquisador-entrevistador foi
o responsável pelo seu acompanhamento. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas no
SMURB e nas residências, de forma aberta e ativa, permitindo-se estender além das questões
pré-definidas.17
As entrevistas foram gravadas e o seu conteúdo lido com um olhar objetivado no
amplo entendimento das ações práticas construídas no processo de adoecimento, afastamento do
trabalho e convivência com a família dando-se particular atenção às falas sobre os cenários de
interação no cotidiano. Algumas categorias foram criadas indutivamente, assim como o modo
lógico de agrupamento ou organização dessas micropráticas. Analisamos as diferentes formas como
esses tópicos emergiram dos dados, que ideias e representações agrupam e quais associações e
significados produzem.17,18
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147
RESULTADOS
As causas de afastamento foram: doença ortopédica, cujos sintomas e incapacidade
apareceram de forma insidiosa durante a jornada de trabalho (Beatriz, 49 anos; Conceição, 56 anos
e Julia, 48 anos); acidente de trabalho (Ivete, 54 anos); neoplasia (Artur, 63 anos) e depressão
(Vitória, 50 anos).
Os achados mostram que, durante o processo de adoecimento do servidor e o
afastamento do trabalho, as famílias sofreram mudanças na sua função e estrutura. Nesse
contexto, os processos de interação, como a forma de agir, gerenciar e o modo de compartilhar o
cotidiano tiveram que ser revistos por seus membros. Os métodos de suporte interpessoal e a
habilidade de resolver problemas, assim como o balanço entre as perdas e os ganhos foram
responsáveis por atenuar ou agravar as consequências do adoecimento e serviram de referência
para se entender o papel desses atores sociais envolvidos no processo de adoecimento e
recuperação para o trabalho.
O ADOECIMENTO: “Foi muito triste... Eu me senti inútil [...]”
As descrições sobre a experiência da doença mostram as condições que deram início
aos sintomas e às mudanças da trajetória vivida durante o período de afastamento do trabalho. O
adoecimento foi capaz de construir nesses servidores uma nova identidade, chamada aqui de
“pessoa doente” em referência à noção de sick rolef e, com base nesse novo significado,
representar o seu papel no cenário atual do cotidiano familiar.
A servidora Ivete, que sofreu um acidente de trabalho durante um plantão, descreve
como permaneceu por vários meses com perda da autonomia: “Peguei-a [a paciente] no chão; eu
senti a dor, dei aquele gemido tá [...] Fiquei muito triste [chorando] porque você vai trabalhar
numa boa e [...] não voltei mais pra trabalhar [...] Eu me senti inútil [...]”
Reclama também que seu tratamento restringiu-se à correção do problema
ortopédico e não teve apoio da instituição para lidar com o seu lado emocional. A vida
transformou-se; ficou depressiva, dependente dos familiares e manteve-se incapacitada para fazer
suas atividades básicas. Apesar de estar se recuperando, não tem intenção de voltar ao trabalho,
porque ficou muito traumatizada, ressentida com a instituição e com o evento ocorrido.
f
Parsons foi um dos primeiros a chamar atenção sobre a legitimação do papel do indivíduo no processo de adoecer. A sociedade
concede ao indivíduo doente direitos e privilégios, como dispensa do trabalho e outras obrigações sociais, mas o condiciona ao
dever de cooperar durante o tratamento até a recuperação, assim que possível.19
148
Revista Baiana
de Saúde Pública
Duas servidoras citaram que os fatores da organização do trabalho, como a forma
de divisão das tarefas, a dificuldade para lidar com a alta demanda de serviço e o conflito com
supervisores para executar as tarefas no trabalho foram responsáveis pelo adoecimento. Julia
descreve a dificuldade de executar as tarefas diante da precariedade das condições de
trabalho: “A noite era um profissional de saúde [...] Sabe lá o que é escrever 90 a 100
prontuários numa noite...”
Julia tentou dialogar com o(a) supervisor(a), mostrando sua dificuldade para fazer as
tarefas, mas não encontrou apoio. Nesse caso, há um conflito de interesse entre as partes
envolvidas; se, por um lado, o servidor busca adequar a sua condição física à tarefa prescrita, por
outro lado, o representante da instituição não aceita, porque tem de fazer cumprir as necessidades
do serviço. Uma forma de supervisão rígida não permite ao trabalhador desenvolver estratégia para
minimizar as cargas diárias de trabalho e se proteger dos danos à sua saúde.20
Beatriz relata que o agravamento da doença foi em parte causado pelo
comportamento gerencial: “A chefia era assim por demais [...] Era uma pessoa muito grossa...
Que não respeitava o trabalho das pessoas, talvez por serem [pausa] né, está abaixo dela [...]”
Este caso pode ser entendido como assédio moral, um tipo de conflito gerado na instituição,
definido pela exposição do trabalhador a situações humilhantes, constrangedoras e repetidas
durante a jornada de trabalho, que pode levar a dano físico e psíquico e é uma das causas de
absenteísmo.21
O MODO DE AGIR E GERENCIAR: “Quando é possível todo mundo ajuda...”
Na medida em que os membros da família incorporam a doença do servidor(a)
como uma realidade, por meio de modos habituais de convivência e formas peculiares de agir,
ressignificam o papel a ser executado por cada um. Isto expressa a relação que um indivíduo tem
em comum com o outro, assim como as formas de agir são construídas de acordo com a
conveniência e os interesses particulares.22
Um ponto comum existente entre os entrevistados foi a dificuldade para
reinserir-se no grupo familiar a que sempre pertenceram. O estranhamento fez parte do
processo de interpretação do quê está acontecendo na residência, de modo a proporcionar
um senso de concretude e ordem para a vida cotidiana. Após retornar ao convívio e desfrutar
a presença dos outros membros da família, sentiram-se excluídos e confrontados com as
regras do próprio grupo. Dessa forma, enfrentaram o desafio de estar entre eles e, para
manterem-se coesos, desenvolveram uma pluralidade de ações e negociações, que, no final,
resultaram na construção desta nova identidade: “Eu acho que minha mãe em casa, não pelo
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149
fato de ela estar doente né, e sim pelo fato de ela estar em casa. A gente está de novo junto,
né? Eu acho que eu perdi um pouco da minha privacidade, mas é uma coisa que [pausa] a
gente vai levando.” (Filho de Beatriz).
O modo de agir do servidor incapacitado mudou e interferiu na forma como os
outros membros da família se ajustaram e construíram as práticas da vida cotidiana. Inicialmente,
observamos um grau de desorganização. Como consequência, são obrigados a usar os seus
métodos para assumir parte das tarefas que compete ao doente e que agora está sem condições
de executá-las e, para benefício do grupo, surge o espaço de negociação. É nesta contingência que
se (re)constrói o papel de cada um nesse processo. Vitória traz um exemplo dessa dinâmica: “Aí eu
fico meio zonza do remédio. Aí deixo melhorar e faço alguma coisa, né? Pra não sobrecarregar
muito minha filha.”
Essas mudanças de plano e responsabilidades na execução das tarefas
domésticas são observadas em todas as situações. No caso de Ivete, os membros da família
articularam-se em diferentes locais e contextos para cumprir a rotinização do trabalho. As
ações práticas foram divididas para balancear as perdas com a doença. Nesse sentido, o grupo
adotou a tática de alternar as tarefas que lhes cabiam e pôde lançar mão de ajuda recíproca
para reduzir o trabalho diário, com o objetivo de não interferir nos seus projetos de vida:
“Rapaz, todo mundo cuida um pouquinho [...], mas todo mundo ajuda [...] Quando é
possível, todo mundo ajuda [...]” (Filho de Ivete).
A ressignificação da nova realidade doméstica serviu para motivar e redefinir o papel
de cada membro por questões de ordem prática. A regra que determina quem, onde e quando
faz, de acordo com as demandas individuais, foram negociadas respeitando as diferenças, a
privacidade e o limite de suas fronteiras. Os vínculos frágeis do passado, motivados por uma
convivência tumultuada, são, nesse momento, um fator adicional de estresse para o servidor
doente e, por causa da perda da identidade, tem dificuldade para resolver esses conflitos:
“Quando ela pede [a Jorge] as coisas [ele] demora pra fazer ou não faz. Aí ela fica mais estressada
[...]” (Filho de Ivete).
Entra em jogo a habilidade da família em lidar com a ambiguidade das fronteiras e
papéis individuais e a forma como se mantêm coesos: “Aí tem um irmão com problema na perna
[...] Tem outro que dá um trabalho danado. Chega de madrugada e é uma preocupação. Aí ela se
mudou pra uma casa perto de mim [...] Ela teve que sair da dela [...]” (Isabel, filha de Vitória).
Isabel relata o grau de desestruturação sofrido, sinalizado pela mudança de endereço em curto
espaço de tempo, troca de papéis e aumento do trabalho ao dividir as obrigações da sua casa com
as que tinha de realizar na casa da genitora.
150
Revista Baiana
de Saúde Pública
A ECONOMIA DAS PERDAS E GANHOS: “Estou passando mal, a parte
financeira...”
Os participantes do estudo foram unânimes em afirmar que só tiveram perdas com
a doença: deixaram de ter autonomia e autoestima, restringiram a vida social, perderam a
estabilidade financeira e limitaram seus papéis familiares. As queixas de isolamento social e falta de
motivação para sair de casa estiveram presentes em todas as entrevistas: “O shopping novo, ainda
eu não conheço, apesar de fazer a infiltração ali perto [risos]” (Julia).
O que mais chamou a atenção foi o relato de perda financeira, presente em todos
os casos, e que foi capaz de interferir na dinâmica da convivência na família. Os(as) servidores(as)
Julia, Vitoria, Artur, Beatriz e Conceição relataram que estariam em melhores condições financeiras
se estivessem de volta ao trabalho: “Estou passando mal, a parte financeira... Atualmente, fico
dependente [financeiramente] [...]” (Artur).
O caso Artur foi o mais emblemático em relação às perdas financeiras. Até o
adoecimento, tinha um estilo de vida típico de classe média alta, com renda vinda do trabalho na
universidade e de uma empresa com um colega. Com o fim dessa sociedade, justamente no
momento em que estava sem condições de buscar outras fontes de renda, ficou sem poder arcar
com todas as despesas da família. Esta situação é citada como um importante fator de conflito com
o genro, residente em sua casa, que lhe cobrava austeridade: “E não dependia dele. E hoje o
problema que ele [genro] fala mais é para segurar os gastos, está entendendo?”
O PROCESSO DE RETORNO AO TRABALHO: “O que eu faço, eu gosto, não é?
Inclusive, estou querendo retornar [...]”
Neste estudo, identificamos os principais fatores que interferiram no processo de
recuperação para o trabalho, como os relacionados aos papéis do servidor e dos membros da
família, as condições no ambiente de trabalho e a forma como foi atendido pela instituição. Os
servidores citaram como ações positivas favoráveis à motivação em seguir o tratamento o
reconhecimento de que o seu trabalho é importante para uma melhor condição de vida.
Conceição (afastada do trabalho por 376 dias) teve perdas financeiras, conflitos em
casa e limitação da capacidade de fazer as coisas que gosta. Lembra que participou ativamente do
tratamento, para ter condições de retornar ao trabalho o mais breve possível: “[...] fisioterapia
intensiva. Tinha que fazer todos os dias. Inclusive em casa; eu fazia em casa, sábado, domingo.”
Observamos, no relato de alguns membros das famílias, a forma como agem e
constroem ação positiva para facilitar o retorno ao trabalho. No caso de Beatriz, o filho decidiu
ajudá-la, mudando o seu comportamento, que antes era de contestação e agora é apaziguador,
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151
para reduzir o estresse: “Olhe, doutor, eu estou procurando [pausa] é, eu estou procurando
[pausa] me comportar, né? De uma forma que a gente não entre em discussão […]”
O mesmo não aconteceu com Vitória, que citou as interações no cotidiano da sua
família, resultante da convivência conflituosa com o filho, usuário de droga, como responsáveis por
dificultar o seu retorno ao trabalho.
DISCUSSÃO
Neste estudo, procuramos identificar as implicações da doença do trabalhador no
ambiente da família, as consequências sociais e econômicas para descrever os papéis dos seus
membros em relação ao processo de adoecimento e de recuperação da capacidade laborativa, que
são influenciados por uma série de fatores individuais e coletivos ou em combinação. Nesta
perspectiva, encontramos evidências de que o processo de adoecimento e a forma como alguns
servidores foram atendidos pela instituição contribuíram para prolongar a incapacidade laboral.
Por outro lado, o suporte da família, a perda financeira, o isolamento social tiveram
peso favorável na decisão do servidor para retornar ao trabalho. Entretanto, a presença de alguns
trabalhadores na residência serviu (Beatriz) e serve (Vitória) de forma paradoxal de estímulo para o
retorno mais rápido ao trabalho, devido às interações conflituosas existentes no cotidiano familiar.
Em relação às famílias estudadas, observamos que sofreram mudanças na sua
estrutura, função e papel social geradas pelo processo de incapacidade por meio do estresse,
pressão financeira e/ou isolamento social. Esses fatores e a falta de compreensão do que
estava acontecendo, por parte dos atores envolvidos, contribuíram para interferir
negativamente no relacionamento entre eles. Entretanto, após o estranhamento inicial e
questionamento do sentimento de pertença do grupo familiar, surgiu espaço para a negociação
e a construção de uma forma de agir compartilhada, que atendesse às necessidades de
adaptação para esse novo contexto.
Como se pode notar ao longo da descrição dos casos, a forma de agir dos
membros de cada família sofreu mudanças, no sentido de reestruturar e efetuar novas
aprendizagens em relação ao modo como percebem e interagem no cotidiano. De fato, o que
era padronizado na rotina diária apresenta-se diferente na situação atual, no aqui e agora,
quando o convívio é partilhado num intercâmbio contínuo entre os membros da família. A
realidade social da vida cotidiana é apreendida e atualizada num contínuo de tipificações que
afetam na interação face a face.22
A tensão provocada pelas exigências contemporâneas em torno da identidade, bem
como o seu impacto na percepção do outro parecem agir como um fator relevante para definir e
152
Revista Baiana
de Saúde Pública
guiar a ação.g A compreensão da ação é baseada na forma como o indivíduo interpreta a sua
própria experiência cotidiana em convivência com o outro. O estabelecimento de uma vida
comum pressupõe compartilhar os significados que sustentam as relações sociais ou uma
identidade coletiva que é reafirmada nas relações interativas, tornando-se possível a existência de
um grupo familiar.23
O redimensionamento dos papéis dos membros da família foi descrito por todos os
servidores. Isso surgiu diante da necessidade de dar suporte ao servidor doente ou de assumir as
tarefas cotidianas atribuídas rotineiramente a eles. Nesse sentido, o impacto na vida cotidiana
corroborou outros estudos sobre trabalhadores com distúrbio músculo-esquelético.24
Em alguns casos, o resultado dessa ação prática foi entendido como um estímulo
positivo na recuperação do trabalhador. Assim como a participação ativa dos filhos(as) e esposos(as)
no acompanhamento do tratamento e visitas aos serviços de perícia. Esse ajuste variou entre as
famílias e foi relatado como um fator importante para atenuar o peso das perdas descritas nesta
fase, a despeito de alguns membros manterem-se distantes desse processo, seja porque antes da
doença tinham um relacionamento conflituoso com o servidor, seja por indisponibilidade de tempo
devido a outros compromissos pessoais.
A família, diante de uma situação de doença e incapacidade que acomete um dos
seus membros, desenvolve ações positivas que facilitam a capacidade de resistir e de recuperar as
consequências do adoecimento. Adota alguns mecanismos de ajustes, que são os meios pelos
quais as normas são delimitadas para manter a estrutura da família, por meio da melhora na
comunicação, da revisão do distanciamento provocado por crises no passado, permitindo, assim,
maior envolvimento emocional, flexibilização e realocação de papéis, além de suporte social.6
Sugerimos que, no gerenciamento do processo de retorno ao trabalho, se busque
conhecer como a família lida com esta experiência disruptiva, com vista a identificar e promover os
principais processos que as tornam mais resistentes nas situações de crises e tensões, dentro ou
fora do ambiente familiar. Entretanto, a depender do arranjo familiar, por exemplo, se é
monoparental (formada por qualquer um dos pais e seus descendentes) ou se o casal tem fonte
de renda dupla, ou ainda possui diferentes recursos organizacionais e financeiros, a doença pode
interferir na capacidade de reagir às novas demandas psicossociais que surgem no seu transcorrer.25
Um achado intrigante desta pesquisa foi a possibilidade de os conflitos gerados pela
presença diuturna do servidor(a) doente em casa e as perdas financeiras terem servido de estímulo
g
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Essas informações foram extraídas de Santos23 que se apoiou em: Schutz A. Fenomenologia e relações sociais (selected texts by
Alfred Schutz). Rio de Janeiro: Zahar; 1979.
153
favorável para o retorno ao trabalho. Este estudo oferece evidências que contradizem a ideia de
ganhos secundários (presença do servidor em casa) e terciários (benefícios para um ou mais
membros da família) predominantes tanto na literatura como no senso comum.26
Estar com os familiares é um desejo de muitos indivíduos. Assim, uma condição de
doença pode ser interpretada como uma situação de ganho secundário e terciário, e pode ser uma
barreira para o retorno ao trabalho. Entretanto, paradoxalmente, os casos Beatriz e Vitória
apresentam-se de forma diferente do que era esperado para essa situação. Os conflitos originados
com o retorno à residência contribuíram para pressioná-las a procurar o serviço de perícia médica,
a fim de negociar o retorno ao trabalho, apesar de ainda possuírem algum grau de incapacidade.
Este achado pode ser explicado em parte pelas condições psicossociais decorrentes do
empobrecimento dos servidores públicos federais.h
Estudo com trabalhadores da indústria afastados do trabalho por dores musculares27
observou uma associação positiva entre o tempo de absenteísmo (> 90 dias) e a perda do poder
aquisitivo combinada com o status marital e número de filhos. Ao longo do tempo, esses fatores
contribuíram para manutenção da incapacidade laboral e, diferente de nossos achados, não foram
citados como motivo para facilitar o retorno ao trabalho.
As perdas econômicas originadas do adoecimento e desse contexto histórico
socioeconômico repercutiram na vida dos servidores(as) e de suas famílias, favorecendo a redução
significativa da qualidade de vida, com reflexo na convivência cotidiana. Em alguns casos, como o
servidor era o único provedor da família, isso pode ter contribuído para um processo de
desorganização no ambiente familiar. Daí a opção de enfrentar as dificuldades no trabalho a ficar
em casa convivendo com os familiares. A prioridade passa a ser sobreviver com um melhor padrão
de vida decorrente das vantagens salariais. Este é um aspecto importante que para ampliar o
presenteísmo, fenômeno crescente mundialmente, decorrente da permanência no trabalho de
pessoas com doenças crônicas, com repercussões sobre a evolução do quadro e prognóstico.29
Para tentar explicar esse achado paradoxal, utilizamos o conceito de “mudança de
resposta”i proposto em estudo que apresenta um modelo teórico para integrar a mudança de
resposta à qualidade de saúde.30 Seus autores descrevem o fenômeno como uma mudança nos
valores interiores ou conceituação básica que ocorre no indivíduo quando está diante de uma
situação como uma doença. Há uma mudança de expectativa sobre o que é mais importante para
h
i
O servidor público federal no Brasil, nas últimas décadas, sofreu perdas salariais secundárias ao enxugamento do Estado, criando
uma condição de empobrecimento.28
Mudança de resposta: tradução livre para Response Shift.30
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Revista Baiana
de Saúde Pública
a sua qualidade de vida dada à nova circunstância. Esse modelo teórico é usado para se entender e
prever as mudanças que ocorrem na qualidade de vida do indivíduo resultantes da interação entre
os fatores catalisadores positivos ou negativos em resposta ao adoecimento, que envolvem
antecedentes pessoais referentes, por exemplo: às características de personalidade; à utilização de
mecanismos comportamentais e cognitivos para adaptação à condição de incapacidade; e às
mudanças de significados produzidas pela doença na vida cotidiana.31
Esta pesquisa expõe alguns aspectos sobre o entendimento do processo de
adoecimento do(a) servidor(a) e seu afastamento do trabalho com implicações no ambiente
familiar, aqui identificados pelos conflitos, questionamentos sobre o sentimento de pertença ao
grupo doméstico, às perdas financeiras e ao isolamento social, além da compreensão dos papéis
encenados por alguns membros no processo de reabilitação profissional.
O enquadramento teórico, que inclui os aspectos sobre o adoecimento e a
incapacidade laboral, repercussão no ambiente da família e o processo de retorno ao trabalho,
articulado com os achados empíricos, reforçam a pertinência dos resultados encontrados neste
estudo, reiterando achados da literatura sobre a experiência da família na relação com o
trabalhador-doente. Isto nos permitiu a oportunidade de ampliar a discussão sobre o tema e, dessa
forma, criar oportunidade para formulação de novas hipóteses sobre o papel da família no processo
de adoecimento e reabilitação profissional do servidor da universidade pública no Brasil.
Este estudo acentua a importância do papel da família na reabilitação do
trabalhador-doente pelo relato das experiências sobre as dificuldades enfrentadas na convivência
cotidiana no contexto familiar. O presente trabalho aponta para a necessidade de se rever as
práticas adotadas nos serviços de reabilitação, atualmente restritas ao indivíduo e, quando muito,
às atividades do trabalho. Nessa perspectiva, sugerimos incorporar a família como um ator-social
integrante do processo de retorno ao trabalho, assim como o empregador, os colegas de
trabalho, o seguro-saúde e os serviços de assistência à saúde, tendo como centro das açõesnegociações o trabalhador-doente.
O produto final deste estudo refletiu os significados originados do processo de
negociação e interação entre o entrevistador e os atores sociais no contexto das entrevistas. As
histórias e relatos dos membros das famílias permitiram uma rica aproximação com as dinâmicas
dessas famílias na relação com o trabalhador-doente, oferecendo elementos que podem orientar a
construção de novas hipóteses para futuros estudos.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 29.04.2011
158
ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
NAS MÃOS DAS CHARUTEIRAS, HISTÓRIAS DE VIDA E DE LER/DORTa
Wéltima Teixeira Cunhab
Maria do Carmo Soares de Freitasc
Resumo
As doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho têm sido uma temática
debatida e discutida nos diversos espaços do mundo contemporâneo, a exemplo da área de
saúde, sindicatos e ambientes de trabalho propriamente ditos, em busca da prevenção dos riscos e
da promoção e proteção à saúde da classe trabalhadora. Este artigo tem como objetivo
compreender a acepção de risco de adoecimento em LER/DORT, nas falas das trabalhadoras que
fazem charutos artesanais e em uma fábrica no município de São Gonçalo dos Campos, Bahia,
Brasil. Esta pesquisa adotou como base científica a abordagem qualitativa, sendo o instrumento
principal a análise narrativa das entrevistas em profundidade. Recorreu-se à observação participante
e a um amplo roteiro de entrevistas para aproximação da realidade do cotidiano dessas
trabalhadoras e suas LER/DORT. A reunião das informações oriundas das charuteiras revela que o
trabalho é prazeroso e que todas elas têm consciência de que a atividade é determinante para o
surgimento de doenças osteomusculares nos membros superiores.
Palavras-chave: Doença ocupacional. Risco. Indústria do Tabaco. Trabalho artesanal.
IN THE HANDS OF CIGAR MAKERS, STORIES OF LIFE AND RSI
Abstract
Work-related musculoskeletal disorders have been an issue debated and discussed
in the various spaces of the contemporary world: in health, trade unions and work environments
themselves, in search of risk prevention and health promotion and protection of working people.
This article aims to understand the sense of risk of musculoskeletal disorders, through the words
Este artigo resultou da dissertação intitulada Acepção de Risco de Adoecimento em LER/DORT por Charuteiras. Foi aprovada
pelo Comitê de Ética da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Parecer no. 15/09.
b
Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador, Salvador, Bahia.
a
c
v.35, n.1, p.159-174
jan./mar. 2011
Escola de Nutrição, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho.
Endereço para correspondência: Rua Bela Vista do Cabral, no. 400/206, Nazaré, Salvador, Bahia. CEP. 40055-000.
[email protected]
159
of workers who make handmade cigars in a factory in the municipality of São Gonçalo dos
Campos, State of Bahia, Brazil. This research adopted as a scientific basis the qualitative approach,
narrative analysis of interviews being the main tool. We used participant observation and an
extensive set of interviews to approach the reality of daily life of these workers and their RSI.
The gathering of information from the cigar makers shows that the work is pleasant, and that all
of them are aware that the activity is determinant to the development of musculoskeletal
disorders in upper limbs.
Key words: Occupational diseases. Risk. Tobacco industry. Craft work.
EN LAS MANOS DE LAS CIGARRERAS, HISTORIAS DE VIDA Y DE LER/DORT
Resumen
Las enfermedades Osteomusculares relacionadas con el trabajo han sido un tema
debatido y discutido en los diversos espacios del mundo contemporáneo: a ejemplo del área de
salud, sindicatos y ambientes de trabajo propiamente dichos, en busca de la prevención de riesgos
y de la promoción y de la protección y a la salud de la clase trabajadora. Este artículo tiene como
objetivo comprender la acepción del riesgo enfermar de LER/DORT, en palabras de las mujeres que
hacen cigarros artesanales y en una fábrica en el municipio de São Gonçalo dos Campos, Bahia,
Brasil. Esta investigación adoptó como base científica el abordaje cualitativo, siendo el instrumento
principal el análisis narrativo de las entrevistas en profundidad. Se recurrió a la observación participativa
y un amplio conjunto de entrevistas para acercarse a la realidad de la vida diaria de estas trabajadoras
y sus afecciones LER/DORT. La reunión de información aportadas por las cigarreras revela que el
trabajo es muy agradable, que todas ellas son conscientes de que la actividad es crucial para el
desarrollo de lesiones Osteomusculares en las extremidades superiores.
Palabras-clave: Enfermedad ocupacional. Riesgo. Industria del Tabaco. Trabajo artesanal.
INTRODUÇÃO
As doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho têm sido temática debatida e
discutida nos diversos espaços do mundo contemporâneo – na área de saúde, nos sindicatos e nos
ambientes de trabalho propriamente ditos –, em busca da prevenção dos riscos e da promoção e
proteção à saúde da classe trabalhadora. Essas afecções foram identificadas por Bernardino
Ramazzini, médico italiano, considerado o Pai da Medicina Ocupacional, que publicou, em 1700,
sua célebre obra De Morbis Artificum Diatriba. Nela, são citadas várias enfermidades ocupacionais
160
Revista Baiana
de Saúde Pública
relacionadas com cinquenta diferentes profissões, algumas medidas de prevenção dos riscos
inerentes às profissões e métodos e conceitos de segurança do trabalho.1
Bernardino Ramazzini também afirmou que o trabalho realizado de forma leve, em
determinados ofícios e em profissões que exigem posturas sedentárias, causavam lesões na
musculatura esquelética. Citou como exemplo dessa patologia o estudo sobre a saúde dos
mineiros, quando observou a brutalidade com que os donos dos meios de produção tratavam a
“máquina humana”. Relatou o sofrimento dos artesãos escriturários, apontando a leveza e a
repetitividade do esforço, a sobrecarga estática das estruturas dos membros superiores e a
aparente tensão exigida pela atenção ao desenvolver aquele ofício.2
Verificou ainda que instrumentos de trabalho construídos de forma rudimentar e a
movimentação anormal das mãos ou movimentos violentos e irregulares, assim como posturas
inadequadas ao executar o trabalho, determinavam uma incidência de sintomas. Esta observação
levou-o a descrever os efeitos do uso constante das mãos em escribas e notários. Já os escrivães,
em razão do ritmo repetitivo nas suas escritas, apresentavam fortes dores nos braços,
formigamentos, dificuldades de movimentos e, consequentemente, perdiam a força nas mãos. Tal
afecção iniciava com uma lassidão em toda a extensão do braço direito, progredindo para uma
completa paralisia deste membro, e graves danos ao organismo. Mais tarde foi denominada de
“cãibra do escrivão” ou “paralisia do escrivão”, e também “doença das tecelãs” (1920) ou “doença
das lavadeiras” (1965).2
Pode-se notar a grande semelhança desse quadro com a atividade atual dos
escriturários.
Em 1818, Velpeau observou nos carpinteiros, embaladores de fumo e de chá, e nos
agricultores, uma inflamação na bainha tendínea, causada por movimentos repetitivos e a
denominou de tenossinovite traumática.2
No ano de 1891, Fritz De Quervain constatou que as costureiras apresentavam a
mesma patologia; fato também verificado nas Olimpíadas da Grécia, com a observação dos
movimentos bruscos e repetitivos, tensão e posturas inadequadas dos atletas, que ocasionavam
muitas dores musculares.2
Fritz De Quervain descreveu uma doença denominada entorse em mulheres que
lavavam roupas e apresentavam lesão dos tendões adutores longos e extensores curtos do polegar.
Hoje, essa doença é denominada de De Quervan, de acordo com os estudos.3
As epidemias surgiram em 1775, após o advento da Revolução Industrial na
Inglaterra, com a introdução de máquinas em substituição ao trabalho manufaturado e artesanal; a
abundância de mão de obra composta por homens, crianças e mulheres despreparados para a
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161
nova atividade; e as instalações das fábricas em galpões, estábulos e velhos armazéns.4 Nesse
período, a sobrecarga de trabalho estática e/ou dinâmica exigida no decorrer das atividades e em
longas jornadas gerou nos trabalhadores quadros clínicos diagnosticados como danos dos membros
superiores, trazendo como exemplo, entre outros, os anotadores do serviço britânico, que faziam
uso de uma pena de aço mais pesada. 5
A necessidade da inovação tecnológica nas indústrias, verificada na segunda metade
do século XVIII, e o surgimento de novas tecnologias em meados do século XX, que obrigaram o
trabalhador a operar mais de uma máquina, intensificando o processo de trabalho com vistas à
produtividade, concorreram para o agravamento das doenças osteomusculares, que, desde então,
ganharam visibilidade nos dados estatísticos e relevância do ponto de vista social, político e
econômico.4
No final da década de 1950, no Japão, esses tipos de distúrbios foram observados
em perfuradores de cartões, operadores de caixas registradoras, datilógrafos e outros. Afinal, foi
naquele país que a automação conduziu à racionalização do trabalho, agravando a situação de
saúde dos trabalhadores, por uma série de razões, dentre as quais se destacam, em decorrência da
intensa sobrecarga de trabalho: a velocidade em que era desenvolvida a atividade por máquinas
operadas manualmente; jornadas longas de trabalho contínuo; aumento de tarefas por trabalhador,
que exigiam movimentos exagerados das estruturas dos membros superiores; esvaziamento do
conteúdo do trabalho pela sua fragmentação; rigidez da chefia no controle da produtividade; e
redução do tempo de repouso e do tempo de lazer.5
Desde os anos 1960, o quadro clínico das Lesões por Esforço Repetitivo (LER)/
Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) vem sofrendo mudanças, em razão
das transformações do processo produtivo. Com a implantação da organização científica do
trabalho e, posteriormente, com a automação dos processos de produção, houve um aumento do
ritmo de trabalho e a adaptação do homem ao ritmo da máquina, fazendo com que o trabalhador
permanecesse em posto fixo de trabalho, executando, de forma simultânea, uma série de
movimentos, sem, contudo, avaliar as consequências sobre o seu corpo e suas estruturas
osteomusculares. Adicionalmente, a automação levou à redução das tarefas que requeriam dos
trabalhadores grandes esforços físicos e à diminuição da exposição a agentes físicos e químicos
nocivos à saúde.6 Hoje, entende-se que as LER/DORT resultam de processos de trabalho
caracterizados pela parcialização, rotinização e fixação do trabalhador em seu posto de trabalho,
durante toda a jornada, e com ritmo acelerado.
Constata-se, ao longo do capitalismo, a evolução histórica do processo de trabalho,
evidenciando o interesse dos empregadores em obter a máxima produtividade à custa da
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Revista Baiana
de Saúde Pública
exploração do trabalho humano, com a criação do processo de terceirização, redução de mão de
obra e mudanças na organização do trabalho, o que implica perdas das conquistas sociais
resultantes de reformas instituídas pelas leis e pela Justiça.6
No Brasil, as LER/DORT passaram a ser reconhecidas oficialmente pela Previdência
Social, com a terminologia tenossinovite dos digitadores, em decorrência da pressão realizada pelo
sindicato dos profissionais de processamento de dados.7
As doenças do trabalho estão no foco dos profissionais de saúde e representam
também um desafio muitas vezes não assumido pelas empresas. Dentre essas doenças,
destacam-se as LER/DORT. A incidência deste distúrbio vem aumentando nos últimos vinte
anos, constituindo a principal afecção à saúde entre as doenças ocupacionais que acometem
trabalhadores cada vez mais jovens.7 As LER/DORT originam-se do exercício da profissão, por
uma ação contínua, às vezes lenta, causada por multifatores que produzem nexo etiológico.
Essas doenças formam um conjunto de aproximadamente trinta doenças, das quais a tendinite, a
tenossinovite e a bursite são as mais conhecidas.8
As lesões osteomusculares relacionadas ao trabalho são causadas pelo uso
inadequado, excessivo e contínuo de determinada articulação – músculo e tendão, por rápidos
movimentos repetitivos e de força – e ordinariamente atingem os membros superiores e pescoço,
embora possam afetar todo o corpo do ser humano.9 O nexo causal deve ter como base de
sustentação uma equipe multiprofissional e um diagnóstico clínico, psicológico e organizacional do
trabalho – porque essa compreensão está associada às condições do ambiente de trabalho, ao
posto de trabalho, à organização e relação de trabalho e a fatores psicossociais envolvidos.6
A intervenção ergonômica visa analisar e entender a organização do trabalho na
perspectiva de encontrar proposições para a melhoria de suas condições e, consequentemente,
para o conforto e bem-estar do trabalhador.10 Nesse sentido, a Norma Regulamentadora (NR) 17
estabelece parâmetros que permitem adaptação das condições de trabalho às características
psicofisiológicas dos trabalhadores, para proporcionar um máximo de conforto e segurança.11
Considera-se que a LER/DORT faz parte de um conjunto de patologias de caráter
inflamatório que afetam os músculos, tendões e nervos, localizados principalmente nos dedos,
punho, braços, ombros e região cervical, causadas por movimentos repetitivos, posturas estáticas,
posturas inadequadas, jornada de trabalho prolongada e ritmo acelerado de trabalho. Essas
patologias provocam dores (que passam a ser contínuas e vão aumentando conforme o seu grau),
sensação de peso e fadiga, enrijecimento muscular, choque, câimbra, falta de firmeza nas mãos,
sensação de fraqueza muscular, sensação de frio ou calor, limitação dos movimentos, edema e
parestesia. Esses sintomas podem levar os trabalhadores à incapacidade física (mutilação) dos
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membros superiores (ombros, braços, antebraços, punhos, mãos e dedos), assim como dos
membros inferiores (joelho e tornozelo), alterando, assim, a rotina diária do trabalhador e
interferindo em sua qualidade de vida.8,12
O crescimento das doenças osteomusculares no Brasil deve-se às modificações no
processo produtivo, decorrentes da modernização. Dentre elas, podem ser citadas as de natureza
biomecânicas, como mobiliário inadequado, posturas incorretas ou viciosas, força muscular,
repetitividade; e fatores ligados à organização do trabalho, tais como ritmo acelerado, falta de
autonomia, tempo a cumprir, fragmentação das tarefas, cobrança de produtividade, relação com a
chefia, falta de conteúdo das tarefas, rotatividade de mão de obra, relações autoritárias,
intensificação do ritmo de trabalho, terceirização das tarefas de risco, trabalhador desqualificado
para o desempenho da atividade e falta de informações sobre as doenças.13
No Brasil, a despeito da subnotificação das doenças relacionadas ao trabalho, as LER/
DORT vêm crescendo anualmente nas estatísticas oficiais e nos centros de referência em saúde
do trabalhador, o que constitui a maior causa de afastamento dos trabalhadores dos diversos ramos
de atividade e de aumento do número de desempregados.
A fragmentação do processo produtivo resulta na consequente fragmentação do
trabalhador, com o uso parcial do intelecto ou de seu corpo, quando utiliza apenas as mãos. Essa
fragmentação ocorre quando o trabalhador perde a condição de categoria coletiva e passa a ser
individualizado, em um processo que separa os que planejam o trabalho, os que detêm as
informações, os que executam o trabalho e aqueles que controlam os que o executam.14 Deste
modo, toda atividade laborativa é constituída de fatores de natureza intrínseca ao trabalho, tais
como esforço físico, monotonia ou variação de trabalho destituído de significado, possibilidade de
criação e autorrealização, status na empresa ou na sociedade e nível de remuneração.15
Os impactos do ambiente e do processo de trabalho, a exemplo de sua organização
e divisão, devem ser estudados sob o ponto de vista da saúde do trabalhador, com a finalidade de
entender melhor como esses elementos são capazes de consumir a força de trabalho ou desgastar
a capacidade vital do trabalhador. Tais elementos, articulados, formam um conjunto de cargas de
trabalho às quais o trabalhador está exposto diariamente. Daí, para cada ramo produtivo e para
cada processo de trabalho é possível identificar cargas de trabalho e, consequentemente, o
desgaste causado no operário.16 Considera-se carga de trabalho as exigências ou demandas
psicobiológicas do processo produtivo que, ao longo do tempo, se manifestam na saúde do
trabalhador. Carga é um atributo de um determinado processo que, estando presente no ambiente
de trabalho, expõe um grupo de trabalhadores à probabilidade de experimentar uma deterioração
física e psicológica.17
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Revista Baiana
de Saúde Pública
Com base nesses estudos, é possível relacionar certas atividades profissionais que
exigem do trabalhador posturas e esforços físicos que possam levá-los ao adoecimento – dentre
elas, está a de fazer charutos.
A atuação profissional em ambulatório do Centro Estadual de Referência em Saúde
do Trabalhador, da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (CESAT), possibilitou a uma das autoras
deste artigo o acesso a histórias de vida laboral de mulheres charuteiras que apresentavam
sintomatologia das LER/DORT. No levantamento realizado nos bancos de dados da BIREME,
SciELO e LILACS, não se encontrou qualquer estudo sobre saúde ocupacional que contemplasse
essa categoria de trabalhadoras.
Além do grau de risco que uma determinada atividade laboral apresenta em relação ao
desenvolvimento de LER/DORT, é importante também compreender o significado de risco no
entendimento dos trabalhadores, o que pode determinar maior vulnerabilidade e/ou colaborar para
ações preventivas. Portanto, faz-se necessário buscar, com base em estudos teóricos, os significados
atribuídos à acepção de risco, do ponto de vista das ciências naturais e das ciências sociais. Nesse
sentido, cabe dizer que o conceito ganha diferentes conotações em cada campo de estudo.
Segundo a epidemiologia, risco refere-se à probabilidade da ocorrência de uma
doença em uma população, em dado período de tempo. A definição de risco também
envolve a identificação de fatores que são associados ao desenvolvimento das doenças ou
agravos.18 O risco, de maneira geral, é entendido como toda e qualquer possibilidade de
algum elemento ou circunstância existente no ambiente de trabalho e/ou no processo
produtivo causar dano à saúde do trabalhador, por meio de acidentes, doenças, sofrimento ou
poluição ambiental.19 O risco também significa o entendimento dos não especialistas ou dos
considerados leigos sobre o risco de adoecer e inclui um conjunto de crenças e valores que
dão significado a cada situação de sofrimento. Se o risco não for entendido como tal, as
decisões e os comportamentos dos trabalhadores não serão compatíveis com a segurança que
uma dada situação exige.21 Sejam os riscos de caráter ambiental ou ocupacional, ou mesmo de
qualquer outra natureza, os processos subjetivos devem ser considerados quando se busca
compreender a forma como as situações de risco são enfrentadas por determinadas pessoas.
Deste modo, o significado de risco depende de uma multiplicidade de fatores, a exemplo do
contexto e da inserção da pessoa em um determinado evento, da função ocupada em
determinado espaço social, dos aspectos culturais, da personalidade, da história de vida, das
características pessoais e da pressão e/ou demandas do ambiente.22
Acredita-se que os indivíduos constroem seu espaço perceptivo por meio do
contato direto e íntimo com o ambiente vivido no seu cotidiano. Logo, os riscos no trabalho,
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também denominados de riscos ocupacionais, têm encontrado espaço nas discussões a respeito
da saúde e segurança dos trabalhadores, cujas abordagens trazem uma diversidade de enfoques
teóricos, alguns especialmente tecnicistas e outros que recorrem a uma perspectiva que prioriza
os aspectos sociais.
Especificamente em relação ao estudo em questão, é necessário esclarecer que a
Bahia é o terceiro produtor de fumo do Brasil, atendendo quase que exclusivamente ao mercado
externo, o que inclui Argentina, Estados Unidos, Austrália, Europa e Oriente Médio. Já no mercado
interno, os principais consumidores são Rio de Janeiro e São Paulo.23
A mão de obra utilizada na produção de charutos é constituída exclusivamente de
mulheres, que trabalham 8 h/dia nas diversas etapas da fabricação do produto.23 A fábrica em
estudo fica na cidade de São Gonçalo dos Campos, na região do Recôncavo baiano, e produz 12
mil charutos diários, tendo fechado o ano de 2007 com uma produção de 4 milhões de charutos,
resultado do trabalho de 100 charuteiras. Esta fábrica é a maior em produção no Brasil.24 O
processo utilizado na fabricação de charutos é considerado estritamente artesanal, por exigência do
próprio mercado.25
Na fábrica de charutos, as trabalhadoras executam movimentos suaves e repetitivos
que atingem os membros superiores e a sua coluna vertebral. Todavia, à organização do trabalho,
com situações envolvendo a biomecânica e fatores ligados à psicodinâmica, somam-se elementos
que levam ao surgimento das LER/DORT.8,9,26
Constata-se que os estudos realizados nas últimas duas décadas sobre as LER/DORT,
nas diversas categorias profissionais, remetem-nos ao uso total ou parcial de tecnologias e muito
raro ao trabalho artesanal e àquelas atividades que utilizam ferramentas rudimentares. Entretanto,
parece claro que o esforço repetitivo a que essa categoria de trabalhadoras está submetida a fim
de atingir as metas de produção pode desencadear e/ou contribuir para a geração dessas lesões.
Em estudos relacionados a outros tipos de produção, que incluem etapas de
trabalho artesanal/manual realizado por mulheres, tais como corte com tesoura em tecido e
couro em indústrias de tecelagem e pequenas confecções, foram detectadas lesões associadas a
traumas crônicos secundários e sobrecarga das atividades diárias de mão e punho.27 Outra
constatação foi observada no estudo realizado com 89 rendeiras de Maceió, em que
aproximadamente 90% declararam lombalgia e disfunção nos membros superiores,
demonstrando um resultado preocupante do ponto de vista da epidemiologia.28 Igualmente
artesanal é o trabalho das marisqueiras, pois estas possuem os instrumentos de trabalho
considerados rudimentares, executam a atividade em áreas limitadas e sobrevivem da venda
desse produto. Essas trabalhadoras reservam apenas os domingos à tarde e alguns feriados
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Revista Baiana
de Saúde Pública
religiosos para o descanso, pois a perda na produção significa diminuição na renda mensal e,
consequentemente, queda na renda familiar. Na contagem dos mariscos, essas mulheres
desenvolvem aproximadamente 10.200 movimentos repetitivos por hora, desencadeando dores
nos membros superiores, sintomas típicos da LER.29
A relevância desta pesquisa está em analisar as informações sobre a realidade desses
problemas nosológicos que aparecem no processo de trabalho, especificamente na atividade de
fabricação dos charutos, que causam ou podem concorrer para o surgimento das lesões por
esforços repetitivos relacionados ao trabalho (LER/DORT).
Esta pesquisa teve como objetivo principal analisar/compreender os significados
atribuídos pelas charuteiras às LER/DORT que atingem os membros superiores. Seus objetivos
específicos foram: observar as etapas do processo de fabricação de charutos e descrever a relação
entre as etapas do processo de fabricação de charutos e as afecções dos membros superiores.
DESENHO METODOLÓGICO
Adota-se como base científica a abordagem qualitativa, que, no momento atual, é o
tipo de investigação que ocupa uma reconhecida posição para estudar os fenômenos que
envolvem os seres humanos em diversos contextos.30 Especificamente, aborda a experiência do
sujeito sobre uma problemática de saúde.
A abordagem qualitativa não está preocupada com a demonstração quantitativa do
ponto de vista da estatística inferencial das variáveis pesquisadas, mas sim com a qualidade da
informação baseada no discurso de cada sujeito pesquisado. Cada relato é importante para o
pesquisador, e seu envolvimento é fundamental em todas as etapas do estudo. Esse tipo de
pesquisa leva em consideração o indivíduo inserido em um determinado contexto, não impõe e
nem controla a forma e a estrutura do resultado final. Compreende, pois, a experiência humana.30
Deste modo, a fala, conteúdo do discurso social, é o instrumento fundamental para aprofundar um
objeto estudado. Dentre as diversas correntes de pensamento, este estudo traz autores da
fenomenologia30 e da análise de discurso,31 para dar conta do aprofundamento desta pesquisa.
Ambas as linhas teórico-filosóficas apresentam a acepção, os significados, as aspirações, as crenças,
as atitudes e os valores, aspectos não quantificáveis do sujeito sobre um fenômeno, traduzindo,
assim, a intersubjetividade e a acepção do sujeito sobre o modo de viver e de adoecer.30 Nesse
sentido, esta pesquisa é desenvolvida com os recursos das ciências sociais para subsidiar a
abordagem qualitativa, observacional, para entender melhor as etapas do processo produtivo e
compreender os significados atribuídos pelas trabalhadoras à sua atividade e às doenças localizadas
especificamente nos seus membros superiores.
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• Local e período da investigação
A pesquisa de campo foi realizada no mês de setembro e outubro de 2009, com
entrevistas narrativas envolvendo trabalhadoras de uma fábrica de charutos situada no município de
São Gonçalo dos Campos, Bahia. Colaboraram com as entrevistas 2 trabalhadoras afastadas pela
Previdência Social, 9 trabalhadoras em atividade, 3 ex-funcionárias e 6 charuteiras artesanais, num
total de 20 indivíduos, com base no critério de vínculo com a empresa há mais de 5 anos.
O número de entrevistas varia conforme o nível de saturação das informações e,
nesse sentido, o total de 20 entrevistas foi suficiente para obter as informações pertinentes à
pesquisa.30
O critério para o tempo mínimo na atividade de trabalho deve-se ao tempo de
exposição ao risco (sobrecarga das estruturas anatômicas) e ao surgimento da doença, devido a
sobrecargas osteomusculares e ao fato de essas afecções terem múltiplos determinantes.26,8
Visando atender às recomendações da pesquisa qualitativa, adotou-se como técnica
de coleta de dados/informações a observação das etapas do trabalho, com possível contagem dos
movimentos repetitivos, e a entrevista narrativa.31 Nesta atividade, utilizou-se um roteiro de
questões com a finalidade de orientar o pesquisador e não influenciar de forma negativa ou
positiva as respostas do sujeito.30 Também foi elaborado um roteiro de entrevista, para aplicação
junto ao representante do empregador, contendo informações sobre a fábrica, a organização do
trabalho e as trabalhadoras.
O pesquisador/entrevistador interagiu e teve certo envolvimento com as charuteiras,
condição importante para o aprofundamento de uma relação intersubjetiva, fazendo com que elas
se sentissem estimuladas a participar.
• Aspectos éticos da pesquisa
O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da Escola de Nutrição da
Universidade Federal da Bahia, para ser avaliado. Após esta avaliação, a pesquisa foi iniciada com
os sujeitos que atenderam aos critérios estabelecidos na metodologia, para composição da
amostra. Em seguida foi lido, para cada participante, o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. A elaboração desse documento teve como base a Resolução No 196/96 do Conselho
Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Após o aceite das charuteiras em participar da
pesquisa, cada uma delas assinou o termo em duas vias; uma ficou com a trabalhadora e a outra
com a pesquisadora. Nesse termo constou o telefone de contato do pesquisador e informações
sobre a pesquisa, de forma clara e de fácil compreensão. Para algumas participantes, o termo foi
lido pela pesquisadora, porém assinado por elas.
168
Revista Baiana
• Procedimentos para a coleta das informações
de Saúde Pública
O estudo foi realizado em quatro momentos distintos, em uma fábrica situada no
Município de São Gonçalo dos Campos, no estado da Bahia, com trabalhadoras que produzem
charutos.
No contato inicial com um dos responsáveis pela empresa, foi realizada uma
entrevista seguindo-se o roteiro previamente preparado. Obteve-se, então, dados sobre a empresa
e as atividades dos(as) trabalhadores(as), envolvendo a organização e as relações de trabalho,
tamanho da área física da fábrica, número de trabalhadores, vínculo empregatício, jornada de
trabalho, produtividade, prêmio assiduidade e de produção, quantidade produzida/dia/mês,
descrição do processo produtivo, equipamento de proteção individual (EPI), assistência médica,
dentre outros. Em seguida, ele indicou as trabalhadoras que tinham mais de 5 anos de vínculo
empregatício nessa atividade, ou seja, que estavam dentro dos critérios determinados para a
seleção. Nesse contexto, as trabalhadoras, voluntariamente, deram início à colaboração com este
estudo, colocando-se à disposição para a realização das entrevistas propriamente ditas.
Naquele momento, foi-lhes esclarecido o objetivo da pesquisa; cada trabalhadora
leu o termo de consentimento e, só depois, assinou-o para dar início à entrevista. Em primeiro
lugar, foram coletadas informações sociodemográficas – idade, escolaridade, estado civil, número
de filhos, salário liquido. Em seguida, elas falaram sobre a organização e o processo de trabalho:
jornada, ritmo, uso de equipamentos, pausa, postura, atividade física e lazer, questões de saúde e
qualidade de vida, se gosta do que faz, tarefas domésticas, dificuldades para realizar as tarefas e se
o trabalho pode prejudicar a saúde, dentre outras.
Os sujeitos, voluntários deste estudo, que trabalham na fábrica, foram entrevistados,
sem, contudo, abandonar completamente seu posto de trabalho. Com a permissão prévia do
responsável pela empresa, estabeleceu-se o número de sujeitos que seriam entrevistados por
turno, de modo a se respeitar o intervalo (pausa) e o horário de saída. Os outros sujeitos foram
entrevistados nas próprias residências e na feira livre da cidade.
As entrevistas foram realizadas com a utilização do gravador, diário de campo, para
anotar as observações, termos e sentenças mais significantes, bem como foram fotografadas
posturas das trabalhadoras durante a atividade de fabricação dos charutos. Um terceiro momento
foi dedicado à observação das etapas do processo de produção dos charutos, com as respectivas
anotações no diário de campo, sobre a maneira de as trabalhadoras utilizarem os membros
superiores, destacando a parte do braço, a postura, o tempo e a repetitividade das atividades.
Às participantes da pesquisa foram atribuídos nomes fictícios, escolhidos por elas
mesmas, para preservar-lhes a identidade.
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Em seguida realizou-se a transcrição, análise e interpretação dos conteúdos das
falas, segundo orientação da teoria que apoiou esta ação. O objetivo da análise de conteúdo é
trabalhar as falas e suas significações/conteúdos, manifestadas por cada indivíduo, buscando
outras realidades no interior das mensagens. Nesse sentido, a análise de conteúdo acontece em
três fases: a pré-análise, também denominada de leitura flutuante, ou seja, primeiro contato
com o material a ser analisado, caracterizada pela tomada de conhecimento do texto e a
impressão que este causa ao pesquisador; a fase seguinte à exploração do material é a
codificação dos dados brutos, transformando-os, por enumeração ou agregação, de modo que
permitam uma descrição exata dos conteúdos ou falas; na última fase, o resultado bruto é
submetido a tratamento para que se torne significativo e válido, e permita buscar-se a inferência
e a interpretação.31
RESULTADOS
• As trabalhadoras da fábrica de charutos: perfil e processo de trabalho
A idade das trabalhadoras entrevistadas (em atividade, trabalhadora afastada pela
Previdência Social e ex-trabalhadoras) varia entre 32 e 46 anos de idade; grande parte é
casada e tem filhos. No que se refere à escolaridade, predomina curso fundamental
incompleto. Quase todas aprenderam esse ofício na própria fábrica. Todas trabalham na
fábrica há mais de 8 anos e menos de 21. Produzem cerca de 400 charutos por dia, com
carga horária diária de 9 horas. Recebem por mês um salário mínimo, o equivalente ao preço
de 32 charutos. Quando questionadas se há relação entre trabalho e saúde, todas afirmaram
que a atividade de charuteira pode causar doenças osteomusculares, como dor nas mãos,
braços e região lombar, além de sentirem-se cansadas. Todas afirmaram que o risco de adquirir
doenças músculoesqueléticas decorria da quantidade de charutos produzidos e do uso da
máquina de enchimento e do macaco para prensar os charutos. Todas se queixaram das
cadeiras inadequadas, e grande parte referiu-se ao desconforto térmico do ambiente, devido à
temperatura elevada. Usam pequenas toalhas para enxugar o rosto sujo de suor, que pinga
sobre as folhas de fumo. As entrevistadas afirmaram que sentem dores nos membros
superiores, porém somente algumas têm diagnóstico médico de doenças osteomusculares.
Como a empresa não oferece plano de saúde, são amparadas exclusivamente pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). Elas apresentam os sintomas e/ou diagnóstico de LER/DORT em plena
idade produtiva.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
• As charuteiras artesanais: perfil e processo de trabalho
Foram entrevistadas mulheres com idade entre 55 e 83 anos, casadas e viúvas.
Quanto ao nível de escolaridade, todas são alfabetizadas, porém não concluíram o curso fundamental
nas séries iniciais. Começaram como artesãs aos 8 anos de idade. Passaram toda a vida produzindo
charutos em casa, abrindo cada folha, delicadamente, sobre as coxas ou sobre a mesa, como quem
abre um tecido de algodão, ofício que herdaram dos conhecimentos familiares. Em relação à saúde e
à prática de fazer charutos, queixaram-se de dor na região da coluna lombar e de cansaço. Poucas
falaram em dor ou outro sintoma nos braços ou mão, a despeito de fazerem mais charutos por dia
que as trabalhadoras da fábrica. Informaram produzir mais de 500 charutos, numa jornada de
aproximadamente 10 horas por dia. Uma delas relatou que há 10 anos começou a sentir dores na
mão, em consequência da utilização da faca para cortar a ponta do charuto. Trabalham na própria
residência, sentadas em um banco de madeira quase rente ao chão e, às vezes, no próprio chão,
utilizando uma placa de madeira apoiada em latas ou pedras, para servir de mesa. As folhas de fumo
ficam em sacos de papel e de ráfia ou cestos. Durante a produção dos charutos, elas se vestem com
roupas mais velhas, porque as folhas do fumo soltam uma coloração escura, produzindo mancha de
difícil lavagem. Elas ganham menos que as trabalhadoras da fábrica; em compensação, adoecem
pouco. Essas mulheres são donas e administradoras do seu próprio tempo de trabalho e repouso.
DISCUSSÃO
Nas vozes das trabalhadoras ativas da fábrica, das ex-trabalhadoras da fábrica,
demitidas ou afastadas por problemas de saúde, e das trabalhadoras artesãs, a atividade é
prazerosa e traz felicidade, a despeito de exigir uma forte carga de trabalho da musculatura
esquelética dos membros superiores. A produção diária destina-se ao cumprimento de meta,
quando se refere às trabalhadoras da fábrica; porém, a alta produção das artesãs realiza-se para
compensar o baixo valor unitário dos charutos no mercado. Consequentemente, a quantidade de
charutos produzida por dia e por qualquer charuteira, seja ela artesã ou não, desencadeia sintomas
na musculatura esquelética, que, em algumas trabalhadoras, foram diagnosticados como LER/
DORT pelo Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (CESAT). No entanto, a
maioria delas, talvez por medo de ser demitida, não procura o médico e se automedica.
Nas falas, as charuteiras revelam perfeita compreensão de que a atividade de fazer
charutos causa doenças ou sintomas como dor nos membros superiores, pescoço e na coluna
vertebral, devido às ferramentas de trabalho e à carga horária.
Tomando por base os afastamentos das charuteiras, pela previdência social, por
doença ocupacional – com relatório e Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) emitidos pelo
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CESAT –, fica evidente a falta de responsabilidade e compromisso das empresas para reconhecer a
doença como uma patologia ocupacional, não obstante o tratamento civilizado que mantêm com
as trabalhadoras no ambiente de trabalho.
O sindicato, por sua vez, pouco ou nada tem feito pelos trabalhadores e,
principalmente, pelas trabalhadoras, o que, segundo um de seus diretores, se deve à baixa filiação,
reflexo da desmobilização da categoria.
A aproximação com o material da pesquisa possibilitou a análise, a visualização e a
compreensão do oficio das charuteiras, destacando situações referentes à divisão e condições de
trabalho, fragmentação do grupo de trabalhadoras de acordo com os postos de atividade e atitudes
de defesa. É necessário compreender-se que essas defesas, conscientes ou inconscientes,
utilizadas pelas trabalhadoras no desenvolvimento da atividade, traduzem a acepção que elas têm
sobre o seu ambiente e posto de trabalho, que são geradores de doenças, sendo algumas defesas
capazes de negar o risco de adoecimento ou agravamento da doença e favorecer a sua adaptação
e manutenção no ambiente de trabalho nocivo.
Vale salientar que os charutos são fabricados manualmente, porém não podem ser
considerados artesanais, porque as trabalhadoras não são possuidoras dos meios de produção,
tampouco da matéria-prima. Elas são exclusivamente consideradas como força de trabalho.
Diante desse quadro, emergiu, possivelmente pela primeira vez por parte das
trabalhadoras, a vontade de se expressar sobre o ambiente de trabalho e a própria atividade.
Com as informações coletadas, os registros da observação participante e dos dados
obtidos nos prontuários médicos, pretende-se propor ações de educação, vigilância e intervenção
nesses setores considerados artesanais de trabalho, mostrando a morbidade dessa atividade para as
trabalhadoras e para a sociedade.
REFERÊNCIAS
172
1.
Ramazzini B. As doenças dos trabalhadores. 2a. ed. São Paulo: Fundacentro;
2000.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 03.05.2011
174
ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
DOENÇAS EM TRABALHADORES DA PESCAa
Antoniel de Oliveira Riosb
Rita de Cássia Franco Regoc
Paulo Gilvane Lopes Penad
Resumo
A pesca, atividade humana muito antiga, como a caça e a agricultura, é praticada pelo
homem desde a pré-história com o objetivo de obter os meios necessários à subsistência no meio
aquático. Atrelada a essa ocupação, existem os riscos e agravos à saúde de seus trabalhadores. O
presente trabalho tem como objetivo fazer uma revisão bibliográfica acerca dos fatores de risco para
doenças ocupacionais e agravos à saúde dos trabalhadores da pesca, excetuando-se os relativos a
acidentes de trabalho. Os resultados apontam que os principais fatores de risco para doenças relativas
ao setor da pesca podem ser divididos em: relativos ao ambiente de trabalho, como o frio, o calor, a
umidade, os ventos, a radiação solar, as vibrações e ruídos; comportamentais, como o fumo, o
consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o uso de drogas e medicamentos; e fatores sociais, como a
prolongada jornada de trabalho, as condições socioeconômicas desfavoráveis, o baixo nível de
instrução e o fato de pertencerem a classes sociais mais baixas. Os principais agravos à saúde foram
problemas músculo-esqueléticos, lesões de pele, alergias respiratórias, problemas oftalmológicos,
respiratórios e urogenitais, doenças sexualmente transmissíveis, entre outros.
Palavras-chave: Pescadores. Doenças profissionais. Saúde do trabalhador.
a
b
Revisão desenvolvida como trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
Graduando do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Bahia. Doutora em Saúde Pública. Tutora do Programa de Educação Tutorial
(PET). Vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Ambiental e Trabalho da Universidade Federal da Bahia.
d
Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Bahia. Doutor em Saúde Pública. Coordenador do Programa de Pós-graduação
c
em Saúde Ambiental e Trabalho da Universidade Federal da Bahia.
Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Saúde Ambiente e Trabalho, Faculdade de Medicina da
Bahia. Largo do Terreiro de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia. CEP: 40.026-010. [email protected]
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jan./mar. 2011
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DISEASES IN FISHING WORKERS
Abstract
Fishing is a very ancient human activity that, such as hunting and agriculture, has
been practiced by man since prehistoric times in order to obtain the resources necessary for
their subsistence from water. Coupled with this occupation are the risks and harms to the
health of their workers. This paper aims to review part of the present literature about the risk
factors for diseases and health hazards to workers from fishing, except to those related to
workplace accidents. The main risk factors for illnesses related to the fishing sector can be
divided into the ones which are related to the workplace as the cold, heat, humidity, wind,
solar radiation, vibration and noise; behaviors such as smoking, excessive consumption of
alcoholic beverages, and use of drugs and medications) social factors as long working hours,
unfavorable social economic conditions, low educational level and the fact that they belong
to lower social classes. The most important health problems were musculoskeletal and skin
diseases, respiratory allergies, eye problems, respiratory and urogenital diseases, sexually
transmited diseases, and others.
Key words: Fishermen. Occupational diseases. Occupational health.
ENFERMEDADES DE LOS TRABAJADORES DE LA PESCA
Resumen
La pesca es una actividad humana muy antigua, como la caza y la agricultura, es
practicada por el hombre desde tiempos prehistóricos, con el fin de obtener los medios necesarios
para su subsistencia provenientes del medio acuático. Unidos a esta ocupación existen los riesgos
y daños para la salud de sus trabajadores. Este trabajo tiene como objetivo hacer una revisión
bibliográfica sobre los factores de riesgo de las enfermedades profesionales y riesgos para la salud
a los trabajadores de la pesca, exceptuando los relativos a accidentes de trabajo. Los resultados
apuntan que los principales factores de riesgo para las enfermedades relacionadas con el sector de
la pesca se puede dividir en: relativos al ambiente de trabajo, como el frío, el calor, la humedad,
los vientos, la radiación solar, las vibraciones y ruidos; de comportamiento como el tabaquismo, el
consumo excesivo de bebidas alcohólicas, drogas y medicamentos; y factores sociales como las
prolongada jornada de trabajo, las condiciones socioeconómicas desfavorables, el bajo nivel de
instrucción y el hecho de pertenecer a las clases sociales más bajas. Los principales problemas de
176
Revista Baiana
de Saúde Pública
salud fueron músculo-esqueléticos, lesiones de piel, alergias respiratorias, problemas oftalmológicos,
respiratorios y urogenitales, enfermedades de transmisión sexual, entre otros.
Palabras-clave: Pescadores. Enfermedades profesionales. Salud del trabajador.
INTRODUÇÃO
A pesca e a mariscagem são atividades muito antigas. Tal como a caça e a
agricultura, são praticadas pelo homem desde a pré-história com o objetivo de obter os meios
necessários à subsistência, utilizando-se do meio aquático. Para além do aspecto fundamental da
subsistência humana, a pesca é uma atividade econômica importante, geradora de várias outras
em terra (transporte, armazenamento, transformação e venda dos produtos da pesca, construção e
reparação das embarcações, construção de artes e utensílios de pesca), empregando uma grande
quantidade de pessoas.1 Esses trabalhadores estão sujeitos a fatores de risco como radiação solar,
frio, calor e excesso de umidade e agravos a sua saúde, sendo acometidos por lesões de pele,
problemas músculo-esqueléticos, alergias e outras.
A legislação brasileira considera pesca toda operação, ação ou ato tendente a extrair,
colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros.2 Sendo assim, para efeitos legais, as
pessoas que realizam a atividade mariscagem são também consideradas pescadores. A pesca, em
geral, é realizada principalmente pelos homens e a mariscagem pelas mulheres e crianças para a
extração de moluscos e crustáceos.3 É vista como atividade comercial e não-comercial. No
primeiro caso, pode se dar de maneira artesanal. Isto é, quando praticada diretamente por
pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de
produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar
embarcações de pequeno porte. Comercialmente, também verificada no setor industrial, é
praticada por pessoa física ou jurídica e envolve pescadores profissionais, empregados ou em
regime de parceria por cotas-partes, utilizando embarcações de pequeno, médio ou grande porte,
com finalidade comercial. A atividade pesqueira não-comercial pode ser praticada por pessoa física
ou jurídica, com a finalidade de pesquisa científica; por brasileiro ou estrangeiro, com
equipamentos ou petrechos previstos em legislação específica, tendo por finalidade o lazer ou o
desporto; com fins de consumo doméstico ou escambo sem fins de lucro e utilizando petrechos
previstos em legislação específica.2
Pesquisa que utilizou dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) refere
um contingente e 25 a 34 milhões de pescadores artesanais no mundo; dados oficiais de 2006
indicavam existir 390.761 pescadores artesanais no Brasil. A Bahia possuía 36.861 pescadores
registrados, podendo ter chegado a 150 mil no momento de divulgação dos dados.4
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Durante o ano de 1993, segundo dados da Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação (FAO), foram capturados mundialmente cerca de 100 milhões de
toneladas de peixe, sendo 77 milhões relativas à pesca no mar, 16 milhões oriundas da aquicultura
e maricultura e 7 milhões gerados pela pesca em águas interiores. No Brasil, a produção de
pescado estimada em 2007 foi de 1.072.226 toneladas, cujo valor em reais corresponde a
R$3.603.726.475,00.5
Pesquisa apoiada em dados da FAO revela a ocorrência, nos últimos anos, de
grandes mudanças no setor pesqueiro mundial, devido à substituição de métodos tradicionais por
tecnologias modernas de captura. A introdução dessas tecnologias na atividade pesqueira tem
gerado um alto custo à sociedade, sendo essa a principal razão da redução quantitativa e qualitativa
dos trabalhadores desse setor, bem como da desestabilização da pesca artesanal.6
No tocante às doenças provocadas pelo trabalho ou pela atividade desenvolvida
pelos indivíduos junto às águas, estudos realizados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
atestam lesões de ouvido interno, durante a atividade de mergulho, em crânios encontrados em
sambaquise em Ilha Grande, Rio de Janeiro, datados de 10.000 anos, sendo considerada como a
primeira doença ocupacional de que se tem notícia no continente americano.7
Para as comunidades ribeirinhas que vivem próximas aos manguezais, os moluscos
representam um dos grupos de maior relevância econômica. Nessas áreas, a coleta desses animais
pode constituir-se na principal fonte de renda das famílias envolvidas ou como complemento de
outras atividades extrativistas.8 Tanto a pesca quanto a cata de crustáceos e moluscos ao longo da
costa brasileira, realizadas por pessoas conhecidas como marisqueiros, podem ocasionar agravos à
saúde desses trabalhadores. Essas pessoas estão envolvidas, além da cata, com o processamento
manual ou automatizado de caranguejos, camarões, mexilhões, sendo normalmente expostas a
vários constituintes dos frutos do mar. A manipulação direta e a aerolização de frutos do mar e do
líquido de cozimento durante o processamento são potenciais situações ocupacionais que podem
resultar em doenças para esses trabalhadores.9
Como em toda atividade laboral, os trabalhadores da pesca estão submetidos a
riscos e agravos à saúde. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), os riscos
relacionados ao trabalho podem ser classificados em cinco grandes grupos: físicos – agressões ou
condições adversas de natureza ambiental que podem comprometer a saúde do trabalhador;
e
Enormes montanhas erguidas em baías, praias ou na foz de grandes rios por povos que habitaram o litoral do Brasil na
Pré-História. São formados principalmente por cascas de moluscos. A própria origem tupi da palavra sambaqui significa
“amontoado de conchas”.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
químicos – agentes e substâncias químicas, sob a forma líquida, gasosa ou de partículas e poeiras
minerais e vegetais, comuns nos processos de trabalho; biológicos – microorganismos geralmente
associados ao trabalho em hospitais, laboratórios e na agricultura e pecuária; ergonômicos e
psicossociais – que decorrem da organização e gestão do trabalho; acidentes – ligados à proteção
das máquinas, arranjo físico, ordem e limpeza do ambiente de trabalho, sinalização, rotulagem de
produtos e outros que podem levar a acidentes do trabalho.10
No Brasil, a despeito de a pesca ser realizada por grandes empresas, uma parte é
praticada de forma artesanal, com utilização de embarcações pequenas (botes ou canoas) a remo
ou à vela ou mesmo motorizadas, sem instrumentos de apoio à navegação, contando tão somente
com a experiência e o saber tradicional.10 Já a coleta de caranguejos constitui um universo
particular no cenário da atividade pesqueira, na medida em que se realiza nos manguezais e não
no espelho d´água e implica processos de comercialização diretos e pulverizados que contam
quase sempre com a participação dos próprios catadores.
Há que se frisar a precariedade da legislação trabalhista específica para o setor
pesqueiro,11 a despeito de o Brasil ser signatário de convenções da Organização Mundial para o
Trabalho (OMT) que recomenda essa regulamentação, inclusive sobre a participação de trabalho
infantil.12 Aqui, a profissão de pescador foi regulamentada pelo Decreto-Lei N° 221/1967, que
dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca; em 2009, foi aprovada a Lei N° 11.959, que, além
do aspecto regulador da profissão, instituiu uma nova opção de contratação de pescadores,
mediante acordos especiais, além da possibilidade de que o processo se desse segundo a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Essa nova legislação teve alguns artigos vetados por
decisão presidencial, inclusive aqueles que tratavam da regulamentação da profissão de pescador.
Isso significa que, não obstante ser uma profissão bastante antiga e tradicional em nosso meio, os
profissionais da pesca carecem de uma regulamentação mínima de sua profissão.
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma revisão bibliográfica acerca dos
fatores de risco para doenças e dos agravos à saúde (excetuando-se os acidentes de trabalho) dos
trabalhadores da pesca, aí incluídos os pescadores propriamente ditos e aqueles trabalhadores do
extrativismo marinho de coleta de crustáceos conhecidos como marisqueiros.
METODOLOGIA
Foi realizada pesquisa em bancos de dados nacionais e internacionais (BIREME,
LILACS, MEDLINE e SciELO), utilizando-se como estratégia de busca palavras-chave em português
e a correspondente em inglês, com o uso do operador booleano “AND” da seguinte forma:
pescadores (fishermen) AND doenças profissionais (occupational diseases) e pescadores (fishermen)
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179
AND saúde do trabalhador (occupational health). Como critérios de inclusão foram aceitas
publicações realizadas nos últimos 10 anos, que tivessem como objeto de estudo fatores de risco e
doenças relativas ao trabalho de pescadores e marisqueiros; publicações escritas em português,
inglês e espanhol, que possuíssem, no mínimo, o resumo disponível eletronicamente nos sites de
busca. Foram excluídas do estudo as publicações sobre pessoal envolvido com a pesca, mas que
não se tratavam de pescadores e/ou marisqueiros propriamente ditos (por exemplo: vendedores
de peixe, trabalhadores da indústria pesqueira e de artefatos para pesca); estudos do tipo relato de
caso; estudos focados nos acidentes do trabalho (por exemplo: lesões de ouvido por barotrauma e
doenças de descompressão brusca em pescadores de mergulho); e estudos que não tivessem
relação direta com o trabalho da pesca.
A seguir, fez-se a leitura dos títulos e resumos das publicações pré-selecionadas
pelos critérios de exclusão e inclusão citados e refinada a busca com foco nos fatores de risco e
doenças ocupacionais em pescadores e marisqueiros. A busca dos textos completos foi feita nos
próprios sites de busca, quando disponíveis gratuitamente, ou no Portal CAPES. A fim de ampliar a
base bibliográfica, foram selecionadas fontes de artigos científicos com base nas referências citadas
nos textos pré-selecionados que também preenchessem os critérios de inclusão/exclusão
previamente escolhidos.
As publicações selecionadas foram estratificadas e distribuídas em tabelas com
relação aos seguintes itens: título do trabalho; autor(es); ano de publicação; país; tipo de estudo;
amostra estudada; principais resultados obtidos sobre fatores de risco e doenças ocupacionais.
A seguir, são descritos e discutidos os principais achados com relação aos fatores de
risco e doenças ocupacionais em pescadores.
RESULTADOS
Após aplicar as estratégias de busca nos bancos de dados, foram obtidos e
selecionados 12 artigos de um total de 108, sendo, portanto, excluídos 96 artigos (Quadro 1). Os
principais motivos de exclusão estão listados no Quadro 2. A fim de ampliar a base bibliográfica,
selecionaram-se estudos científicos citados como referência nos artigos selecionados, num total de
cinco que traziam resultados importantes sobre os fatores de riscos e principais agravos que
acometem os pescadores/marisqueiros, perfazendo um total de 17 artigos. O Quadro 3 resume as
principais informações dos artigos selecionados.
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Quadro 1. Total de artigos pré-selecionados e selecionados após aplicação dos critérios de
inclusão/exclusão por base de dados
Quadro 2. Principais motivos de exclusão dos artigos pré-selecionados
Quadro 3. Principais achados dos trabalhos científicos selecionados por ano, país, autor,
tipo de estudo e número da amostra
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FATORES DE RISCO E AGRAVOS À SAÚDE
Estudo realizado em 2010, em uma população de pescadores e marinheiros
franceses, mediante aplicação de questionários sobre o consumo e dependência com relação ao
tabaco e ao álcool, bem como verificação sobre o uso de maconha através de exames de urina,
verificou que o consumo de fumo foi maior entre os pescadores do que entre os marinheiros
(47,6% versus 41,4%), assim como a prevalência de dependência à nicotina foi maior entre os
pescadores. O consumo diário de álcool foi significantemente maior entre os pescadores do que
com relação aos marinheiros (52.4 g/dia, 95% CI = 49.3–55.4 vs. 44.8 g/dia, 95% CI = 43.0–
46.6; p = 0.0003). A prevalência do uso de maconha e outras drogas foi maior entre os
marinheiros do que entre os pescadores. Os autores apontam as condições de trabalho para
explicar essas diferenças.13
Artigo publicado em 2006 relaciona a exposição prolongada de pescadores e outros
trabalhadores ao sol em seus ambientes de trabalho com doenças de pele causadas pela radiação
ultravioleta. Os autores posicionam-se quanto à necessidade de prevenção primária dos
trabalhadores contra os efeitos dos raios ultravioletas, especialmente naqueles trabalhadores de
pele menos pigmentada.14
Estudo de coorte realizado em 2008, com 9.419 pescadores da região da Andaluzia,
Espanha, verificou que 54% deles relataram lesões de pele relacionadas à exposição solar. A
automedicação foi referida por 72% dos trabalhadores, que faziam uso de analgésicos,
anti-inflamatórios, antiácidos, mucolíticos e ansiolíticos. Um total de 60% dos pescadores fumava;
um terço deles fazia uso de uma média de 30 cigarros por dia; 9% admitia fazer uso regular de
maconha, especialmente entre os jovens; na última viagem, 3% admitiram ter usado drogas ilícitas
a bordo. As maiores queixas com relação à saúde envolveram o sistema musculoesquelético,
doenças respiratórias, doenças do sistema digestivo e olhos, além de problemas auditivos.15
Em 2000, estudo observacional descritivo, envolvendo 174 pescadores, encontrou
uma prevalência maior de patologias auditivas atribuíveis ao excesso de ruído das embarcações.16
A saúde e os riscos dos pescadores e catadores de caranguejo da Baía de Guanabara,
no Rio de Janeiro, foram verificados em pesquisa realizada no ano de 2007.11 Os autores
realizaram uma pesquisa de campo de caráter quanti-qualitativo com uma amostra aleatória de 80
pescadores e 20 catadores de caranguejo sobre suas condições de saúde. Os principais agravos à
saúde relatados vinculavam-se aos problemas articulatórios e neuromusculares, refletidos por dores
nas costas, coluna, braços e pernas. Os problemas respiratórios, traduzidos por pneumonias e
tuberculoses, estavam relacionados à grande exposição às variações climáticas, agentes patológicos
e deficiência alimentar. Ao uso abusivo do álcool foi atribuída a chance maior de adoecer.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
Estudo de natureza qualitativa realizado em 2008 com aproximadamente 800
habitantes na Ilha de Maré, município de Salvador, Bahia, entrevistou 27 mulheres e 3 homens,
todos trabalhadores extrativistas de mariscos em manguezais e arenosos das praias, e realizou
observações sobre as condições de trabalho, as doenças e os acidentes mais frequentes.4 Verificou-se
que a exposição aos riscos do trabalho na pesca e extração de mariscos ocorre desde a infância,
quando estão expostos à radiação solar e às intempéries, além de sobrecarga muscular e excesso de
atividades repetitivas centradas no punho. A este último fator foi atribuído um nexo causal com
Lesões por Esforços Repetitivos (LER). Os autores chamam a atenção para a inclusão desses
profissionais entre os grupos sociais de risco para essa doença.
Foi publicado, em 2008, um estudo de coorte baseado em uma população de 4.570
pescadores dinamarqueses que procuravam assistência hospitalar em dois períodos: o primeiro,
entre os anos de 1994-1998 e o segundo, entre 1999-2003.17 Evidenciou-se entre os pescadores
do sexo masculino que trabalhavam no primeiro período uma Razão de Incidência Padrão (SIR–
Standard Incidence Reazon) elevada para lesões musculoesqueléticas (SIR=122); uma subanálise
revelou elevada SIR para artrose do joelho (SIR=127), doenças dos discos tóraco-lombar
(SIR=224) e, especialmente, síndrome do manguito rotador (SIR=225), além de lesões gerais
(SIR=112). Valores de SIR elevadas para a síndrome do túnel do carpo foram observadas
(SIR=315) em ambos os período de amostragem.
Os mesmos autores da pesquisa mencionada realizaram estudo de revisão de
prontuários médicos de contatos hospitalares de pescadores dinamarqueses sobre doenças crônicas
em dois períodos compreendidos entre 1989-1998 e 1994-1999. O estudo desenvolvido foi de
coorte baseado na população, publicado em 2007, tendo registrado uma alta razão de contato
hospitalar devido a problemas com bronquite e câncer de pulmão, excedendo a taxa nacional em
ambos os períodos analisados. Em compensação, foi observada, nos mesmos períodos, uma baixa
razão de contato hospitalar com relação à diabetes e obesidade.
Em 2002, na Suíça, investigação utilizando uma proposta alternativa de calcular a
exposição ocupacional em relação a câncer de pulmão evidenciou que pescadores e outros
profissionais que trabalhavam expostos ao ambiente possuíam um risco menor (42,1 por
100.000 pessoas-ano) e uma frequência de fumantes de 44,7%.18 A função pulmonar foi
verificada em estudo com 183 homens e 192 mulheres ligadas à pesca na Nigéria. A função
pulmonar foi verificada através dos índices de pulmonares. Os resultados mostraram uma
mistura de padrões tanto restritivos quanto obstrutivos de má função pulmonar quando
comparados a um grupo controle. Os principais sintomas respiratórios incluíam tosse com e sem
secreção, dor torácica e dispneia.19
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Em um estudo de coorte com pescadores suíços, realizado em 2009, encontrou-se
menor taxa de incidência para doenças respiratórias e cardiovasculares, bem como de câncer de cólon.
Paralelo a isso, verificou-se maior incidência de câncer de lábio e de câncer de células escamosas da
pele.20 Corrobora esses achados a pesquisa realizada em 2010, no Brasil, estudando uma amostra de
125 pescadores, em que se demonstrou que a prevalência de displasia epitelial e lesões malignas foi
maior do que na população em geral.21 Os autores atribuem esses achados à maior exposição desses
profissionais aos raios ultravioletas. Outros achados importantes relacionaram-se ao consumo de álcool
por parte de 38,4% dos estudados e de 32% com relação ao consumo de tabaco.
Em 2001, uma revisão geral da literatura enfocando a exposição ocupacional a
antígenos do mar em trabalhadores que realizam o processamento de crustáceos e moluscos
afirma que alergias têm sido reportadas por trabalhadores expostos aos crustáceos e moluscos e
outros produtos do mar. A prevalência de asma ocupacional variou de 7% a 36% e para dermatites
de contato de 3 a 11%.9
Revisão de literatura realizada em 2006, sobre a asma ocupacional no ambiente
marítimo, relacionou diversos constituintes do meio marinho e de trabalho dos pescadores que
apresentam grande potencial alergênico, como peixes, crustáceos, moluscos, entre outros, além
de produtos da combustão do óleo diesel das embarcações, a exemplo do SO2, CO e CO2, como
causas da exacerbação dos sintomas.22
Em 2001, publicou-se uma revisão bibliográfica sobre a saúde de pescadores e
pessoas que trabalham no setor de catação na indústria de pesca.23 É referido um robusto estudo
de coorte sobre doenças crônicas e o trabalho na pesca em trabalhadores da Itália. Foi observada
maior prevalência de ceratose solar [odds ratio (OR) = 22,5], bronquite obstrutiva (OR=11,6) e
ferimentos diversos (OR=3,56). Análises de regressão múltiplas evidenciaram associação entre
trabalho e disfunções musculoesqueléticas [razão relativa (RR) = 13,8] e bronquite crônica
(RR=4,40). Os autores referem ainda um estudo de coorte com pescadores na Espanha, em que
foram detectados problemas digestivos em 29,7% dos pescadores enquanto no grupo controle
verificava-se 8,6%; problemas respiratórios foram identificados em 21,6% e no grupo controle
15,1%; problemas oftalmológicos em 41,8% e no grupo controle 4,1%.
Em 2001, estudo de coorte com uma amostra de 818 pescadores do Golfo da
Tailândia e do Mar de Andaman no oceano Índico investigou as Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DST). Constatou-se que 30% (n=243) dos pescadores tinham histórico de DST. Os
principais sintomas relatados foram descarga uretral (84%), úlceras genitais (41%) e verrugas
genitais (10%). Dentre os pescadores que haviam reportado história de DST, cerca de um terço
afirmou ter feito automedicação.
184
Revista Baiana
de Saúde Pública
Em 2001, estudo calculou o risco relativo para câncer de estômago na população da
Suécia. Com relação aos pescadores, foi evidenciado um risco relativo de 1,41, considerado
excessivo pelos autores da pesquisa. Os autores sugerem que esse maior risco está relacionado a
hábitos alimentares dessa população de trabalhadores, principalmente com relação à alta ingestão
de peixes, conservantes, fumo e alimentos curados, além de baixo consumo de frutas e vegetais.25
DISCUSSÃO
Os principais fatores de risco para doenças ocupacionais relativas ao setor da pesca
podem ser divididos em: relativos ao ambiente físico do local de trabalho, como o frio, o calor, a
umidade, os ventos, a radiação solar, as vibrações e os ruídos; comportamentais, como o fumo, o
consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o uso de drogas e medicamentos; sociais, como a
prolongada jornada de trabalho, as condições socioeconômicas desfavoráveis, o baixo nível de
instrução e por pertencerem a classes sociais mais baixas.
Os fatores de riscos ambientais estão ligados basicamente ao ambiente externo de
trabalho, sujeitando os trabalhadores a condições insalubres. Alguns desses fatores podem ser de
alguma forma minorados pela adequada relação de trabalho e uso de equipamentos de proteção
individual, a exemplo do uso de filtros solares, agasalhos e abafadores de ruído.
Os fatores de risco comportamentais são de mais difícil prevenção, pois dependem,
em parte, de mudanças de hábitos e de uma postura individual mais proativa do próprio
trabalhador. Com relação ao fumo, por exemplo, pesquisa sugere que a alta taxa de pescadores
que fumam pode ser devida ao intenso período de trabalho, para promover um relaxamento e
como resultado da frustração pelo pouco pescado. São recomendadas campanhas antifumo, para
tentar controlar esse fator de risco. A ingestão em excesso de bebidas alcoólicas também é
bastante referida pelos autores como fator de risco para agravos à saúde, assim como aumenta
também o risco de acidentes.26
Os fatores sociais estão em parte relacionados ao nível de desenvolvimento
socioeconômico da população estudada e às melhores relações de trabalho. A precariedade da
legislação trabalhista e a realização de pesca ainda de modo artesanal são citadas como alguns dos
problemas que podem interferir na condição de vida e de saúde dos trabalhadores,
especificamente com relação aos pescadores do Brasil, mais precisamente os pescadores e
marisqueiros da Baia da Guanabara, Rio de Janeiro.11
Os principais agravos à saúde foram atribuídos a problemas musculoesqueléticos
devido aos grandes esforços e movimentos repetidos desempenhados pelos trabalhadores, além
de uma má postura ocupacional;4,15,17 lesões de pele atribuídas principalmente à ação da radiação
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185
solar;14,15,20,21 alergias respiratórias e dermatites ao contato com produtos marinhos, como
crustáceos e moluscos, que possuem um reconhecido potencial antigênico,9,22 e problemas
oftalmológicos23 e respiratórios,11,18 doenças sexualmente transmissíveis,24 entre outros.
Uma breve análise dos fatores de risco e dos agravos à saúde dos pescadores
relacionados pelas publicações científicas leva ao entendimento de quais fatores podem ser, de
alguma forma, evitados ou minorados, reduzindo-se assim os agravos à saúde desses trabalhadores.
Ações simples de prevenção de agravos à saúde, como o combate ao fumo e ao excesso de
bebidas alcoólicas; uso de equipamentos ou meios de proteção individual e coletiva do
trabalhador; políticas públicas de regulamentação da profissão e fiscalização de empresas
pesqueiras; educação sobre noções gerais de saúde, como dieta, combate à hipertensão arterial,
são exemplos de ações que podem evitar que essa categoria de trabalhadores tenha a sua saúde
prejudicada pelo trabalho.
A pesquisa realizada permitiu inferir que as condições de saúde dos trabalhadores da
pesca, seja em mar ou águas continentais, têm sido pouco estudadas. Alguns fatores de risco e
alguns agravos à saúde dessa classe de trabalhadores já foram identificados, porém novas pesquisas
se fazem necessárias, especialmente dentro de um rigor científico mais atual. Especial atenção
deve ser dada a uma classe específica desses trabalhadores, aqueles que realizam a cata de
mariscos e crustáceos, os conhecidos marisqueiros, sobre os quais ainda são escassos os estudos
das suas condições de saúde e os riscos específicos a sua atividade laboral.
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Recebido em 14.12.2010 e aprovado em 04.05.2011
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ARTIGO ORIGINAL
Revista Baiana
de Saúde Pública
OBESIDADE E TRABALHO DAS BAIANAS DE ACARAJÉ NA CIDADE DO SALVADOR,
BAHIA, BRASIL
Amanda Ornelas Trindade Melloa
Maria do Carmo Soares Freitasb
Ronaldo Ribeiro Jacobinac
Resumo
Este estudo tem como tema o trabalho artesanal das baianas de acarajé e a relação
com a saúde dessa trabalhadora e com o seu ambiente de trabalho. As baianas de acarajé
garantem a sua subsistência com o preparo e a venda de produtos como o acarajé, em pontos de
vendas apropriados, executando um trabalho desgastante e que exige muita dedicação. Trata-se de
um estudo de caráter qualitativo, cujo objetivo é analisar as acepções sobre o fenômeno do corpo
obeso das baianas de acarajé e a relação com sua saúde, ambiente e práticas alimentares no
trabalho. Os resultados indicam que o fogo, a fumaça e os movimentos repetitivos são vistos pelas
baianas como possíveis riscos para os acidentes e aquisição de enfermidades; elas elegem um
duplo corpo em relação ao modo de viver no mundo: obeso para o seu trabalho de baiana e
magro para sua vida cotidiana; a falta de tempo para a vida social leva-as a não cuidar do próprio
corpo e de sua alimentação. Conclui-se que o trabalho árduo e desgastante executado pelas
baianas de acarajé promove uma fadiga recorrente, que se agrava na repetição dos movimentos
gerados no processo de produção dos bolinhos e causa problemas de saúde agravados com o
sobrepeso e a obesidade.
Palavras-chave: Obesidade. Saúde do trabalhador. Alimentação e cultura. Trabalhador artesanal.
a
Mestre pela Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho, Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS),
Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade Federal da Bahia (UFBA).
b
Professora da Escola de Nutrição, Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
c
Endereço para correspondência: Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Medicina da Bahia. Departamento de
Medicina Preventiva e Social. Largo do Terreiro de Jesus, s/n, Centro Histórico, Salvador, Bahia, Brasil. CEP: 40026-010
[email protected].
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OBESITY AND WORK OF THE BAIANAS DE ACARAJÉ IN THE CITY OF SALVADOR,
BAHIA, BRAZIL
Abstract
This is a qualitative study aiming to examine the meanings of the phenomenon of
the obese body of the baianas de acarajé and the relationship with their health, environment and
eating habits at work. The work of the baiana de acarajé is exhausting and requires much dedication.
While that is the livelihood of these workers, this kind of activity can bring harm to the health of
these women. The fire, smoke and repetitive movements are mentioned as possible risks for the
acquisition of accidents and illnesses. It was identifeid that the baianas de acarajé elect a double
body regarding the way of living in the world: obese for their work and lean to your daily life. In
this sense it is perceived that the lack of time for social life allows them to not take care of their
body and their food.
Key words: Obesity. Health worker. Food and culture Handicraft worker.
OBESIDAD Y EL TRABAJO DE LAS BAIANAS DE ACARAJÉ EN LA CIUDAD DE SALVADOR,
BAHIA, BRASIL
Resumen
Este estudio tiene como tema el trabajo del artesano del baianas de acarajé y de la
relación con la salud de este trabajador y su ambiente del trabajo. El trabajo de la baiana de acarajé
es agotador y requiere mucha dedicación. Mientras es el sustento de esos trabajadores, este tipo
de actividad puede traer el daño a la salud de estas mujeres. El fuego, movimientos repetitivos y
humos se mencionan como posibles riesgos para la adquisición de accidentes y enfermedades;
ellos eligen un cuerpo doble en lo referente a la manera de vivir en el mundo: obesos para su
trabajo y magra para su vida cotidiana. En este sentido se percibe que la falta de tiempo para la
vida social permite que no cuidar de su cuerpo y su comida. Uno concluyó que el trabajo arduo y
del desgastante ejecutado por el baianas de acarajé promueve una fatiga recurrente, eso si agrava
en la repetición de los movimientos generados en curso de producción de galletas y problemas de
la causa de la salud agravados con el exceso de peso y el obesidade.
Palabras-clave: Obesidade. Salud del trabajador. Alimentación y cultura. Trabajador del artesano.
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Revista Baiana
de Saúde Pública
INTRODUÇÃO
A cidade de Salvador, Bahia, Brasil, tem três milhões de habitantes e cerca de cinco
mil comerciantes do acarajé.1 São personagens femininas e nomeadas baianas de acarajé.
Espalhadas por toda a cidade (também na zona urbana do interior do estado), formam um cenário
estético-visual próprio.2 Essas baianas têm o ofício de preparar e vender os produtos do tabuleiro,
principalmente o acarajé, em pontos de vendas apropriados, bem como vestir-se de forma
adequada, com as indumentárias brancas (batas, torços, anáguas) e colares de contas coloridos,
chamados de “guia” no candomblé.3
A comercialização do acarajé teve início no final do período da escravidão (século XIX),
com as escravas de ganho (ou ganhadeiras). Estas trabalhadoras eram negras e ocupavam um lugar
destacado no mercado de trabalho urbano. Tanto poderiam ser mulheres escravas, colocadas no
ganho pelos seus proprietários, como mulheres libertas que lutavam para garantir o seu sustento e o
dos seus filhos.4 As ganhadeiras trabalhavam nas ruas com quitutes em tabuleiros ou produtos da
terra e do mar que compravam para revender. Isto lhes possibilitou a compra da alforria dos maridos,
a criação de irmandades religiosas e a manutenção do candomblé.5 Nessa tradição de “ganhar a
vida”, o acarajé – um dos símbolos da comida de santo na Bahia – deixou de ser apenas uma
oferenda e passou a ser vendido como uma mercadoria dos terreiros de candomblé, à qual também
foram acrescidos outros produtos, como abará, vatapá, caruru, salada de tomate verde, passarinha
(baço de boi), bolinho de estudante (massa de tapioca frita), cocadas, peixe frito, entre outros.
Recentemente, em 15 de agosto de 2005, ocorreram algumas conquistas, em
especial o seu tombamento histórico como patrimônio imaterial nacional, pelo Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial (PNPI), instituído pelo Decreto N° 3.551, de 4 de agosto de 2000. O
registro do “Ofício da Baiana de Acarajé” (inscrito no Livro de Registros e Saberes, das Celebrações,
das Formas de Expressão e dos Lugares) reconhece não apenas o acarajé como uma representação
da culinária histórica, mas também outros saberes e fazeres tradicionais aplicados na produção e na
comercialização das chamadas comidas da Bahia, feitas com dendê.6 Outras conquistas foram a
inauguração, em 9 de junho de 2009, do “Memorial da Baiana do Acarajé”, situado na Praça da
Cruz Caída, Salvador, Bahia,7 e o estabelecimento, por lei federal (DOU, 20/01/2010), do dia 25
de novembro, como o “Dia Nacional da Baiana do Acarajé”.8 Vale ressaltar, porém, que suas
condições de trabalho continuam precárias, a despeito deste reconhecimento para a profissão. Não
há condições sanitárias para atender às demandas pessoais da baiana e nem higienização do
ambiente ou do ponto do trabalho.
Desta forma, o trabalho dessas mulheres torna-se invisível às políticas públicas e às
relações sociais em seus cotidianos, uma vez que possuem uma árdua jornada de trabalho, que
191
abarca todo o processo de preparação do acarajé somado à responsabilidade com a casa e a
família. Esta condição produz uma fadiga crônica, que pode ser consequente do sobrepeso e da
obesidade. As enfermidades associadas à obesidade, como a hipertensão e a diabetes, aparecem
como parte de seus destinos e sua sobrevivência previsível é permanentemente ameaçada pelo
meio ambiente do posto de trabalho insalubre.
As primeiras incursões em campo, para o exercício etnográfico, justificam a escolha
de gênero neste estudo, vez que, inicialmente, elegem a mulher e trabalhadora como a
protagonista do risco de obesidade.
O livro Baía de Todos os Santos: Guias de Ruas e Mistérios (de 1945, reeditado com
modificações em 1969, e novos acréscimos em 1976), de Jorge Amado, traz alguns trechos que
caracterizam as baianas:
Aqui é o restaurante de Maria José, nem sala existe, é a liberdade da praça
[...] Apenas um tabuleiro de vatapá e caruru, de frigideira e xinxim, de efó e
moqueca, as latas de querosene cheias de mingau e mungunzá [...] Maria
José é gorda e risonha. Mulata clara de olhos dengosos [...] O chofer tem
ciúmes, mas são zelos passageiros porque sabe que dele é o coração da
baiana.9:108, grifo nosso
As baianas, carregadas de colares, balangandãs nas orelhas e no pulso [...] os
seios saltando das combinações, estão ante os tabuleiros, vendem comidas,
as frutas e os doces. O acarajé, o abará, o vistoso vatapá, o caruru tão
popular, a delícia do efó.9:12
As baianas levam seus tabuleiros com comidas e frutas num equilíbrio
impossível.10:32
Como uma figura antiga, a baiana de perfeito colo desabrochado nas
rendas da bata, sentada em frente do tabuleiro de acarajé e abará, de
moqueca de aratu, de cocada e beijus.10:58
Essas mulheres são nomeadas como baianas pelo seu trabalho, sua identidade
profissional, que se confunde com a naturalidade (origem). Para o trabalho, usam vestimentas do
candomblé, como se transferissem para as ruas um rito sagrado que está em si mesmas. Para elas,
conforme observação inicial, o Santo protege sua filha para vender o produto, envolve seu
tabuleiro, seu posto de trabalho, seu corpo; e o movimento de mãos e braços que faz é uma
analogia com a dança no terreiro de candomblé.
Nessa cena de comércio e crença, essas trabalhadoras, com suas indumentárias de
rendas brancas e contas de muitas cores, chamam a atenção do público, em sua maioria, pelo seu
corpo volumoso e tantas vezes em sobrepeso e obeso. Diante do corpo em opulência, enquanto uma
192
Revista Baiana
de Saúde Pública
visível representação desse profissional no mercado da Bahia, este estudo tem como objetivo analisar as
acepções sobre o fenômeno do corpo obeso das baianas de acarajé, considerando o livre curso de suas
narrativas a respeito de seu corpo, suas condições de saúde e práticas alimentares no trabalho.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado no período de setembro
a dezembro de 2009, em Salvador, Bahia, com dez baianas de acarajé que trabalham em vários
pontos da cidade. A inserção nessa comunidade deu-se após a escolha das trabalhadoras que mais
se destacam nas vendas do acarajé, conforme informação da Associação de Baianas do Acarajé,
Mingaus e Similares (ABAM). Esta instituição indicou as baianas que poderiam ser entrevistadas,
levando em consideração os bairros em que trabalham, locais turísticos ou que apresentam uma
característica histórica na construção da profissão, como os bairros de Liberdade, Rio Vermelho e
Comércio, onde surgiram as primeiras baianas de acarajé.
Por se tratar de uma cidade histórica, turística e com a forte presença cultural, em toda
a cidade há o contato com uma baiana de acarajé. Este fato propiciou a utilização de instrumentos
metodológicos como a observação participante e os registros em diário de campo, ainda que o foco
mais importante tenha se dado em dez pontos da cidade, nos seguintes bairros: Barris, Canela,
Itapuã, Barra, Praça da Sé, Pelourinho, Campo Grande, Federação, Rio Vermelho e Liberdade.
Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas com essas baianas, cujos
encontros foram marcados diretamente. As entrevistas foram feitas no próprio local de trabalho,
com o uso do gravador, seguindo um roteiro semiestruturado de questões que abrangeram três
blocos relacionais: o cotidiano do trabalho, a obesidade e as práticas alimentares. As entrevistadas
participaram de modo voluntário, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os critérios para eleição dos sujeitos deste estudo foram: ser mulher, ser baiana de
acarajé e trabalhar ao menos cinco dias na semana.
As entrevistas foram transcritas e analisadas, após identificação dos termos analíticos,
como palavras e sentenças significantes, as quais foram agrupadas em categorias que revelaram
similitudes e diversidades do tema estudado. Para a categorização foi construído um quadro
analítico com fragmentos das falas e comentários conjugados.11 A partir desse momento, teve
início a escrita do texto.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Nutrição
da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 18 de setembro de 2009 (Parecer No. 20/09) e
financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital
N° 57/2008.
193
• Caracterização das baianas de acarajé do estudo
As baianas entrevistadas são mulheres organizadas, associadas à ABAM, situada no
bairro do Pelourinho. Para elas, as verdadeiras baianas são aquelas que apresentam uma geração de
mulheres que seguiram o oficio de baiana de acarajé. Denominam-se baianas “Patrimônio”, ou
seja, devem aprender o oficio desde a infância, no tabuleiro da mãe ou avó, e seguir na profissão
também repassar a tradição para as filhas e netas. Por esta razão, neste estudo, apenas as “baianas
patrimônio” foram entrevistadas.
O TRABALHO DA BAIANA DE ACARAJÉ NA CIDADE DE SALVADOR, BAHIA
As baianas de acarajé são mulheres, em sua maioria, negras, que fazem parte do
cenário estético-visual da cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Elas trabalham vestidas com trajes
próprios, sentadas com seus tabuleiros, e estão espalhadas por todo o país, vendendo os quitutes
trazidos da época da escravidão, como o acarajé e o abará.
I – “É um trabalho muito duro”: O trabalho e a saúde da baiana de acarajé
Todo o processo de trabalho da baiana acontece em três espaços distintos, que
fazem parte de um ritual que transcende a originalidade de um trabalho artesanal, uma vez que
esse rito abrange uma relação com o divino, sacralizando todas as etapas do “fazer-acarajé”. O
primeiro espaço do trabalho é a feira; a presença da baiana, nesse momento, é imprescindível
para a aquisição dos melhores produtos; o segundo espaço é a cozinha, onde será realizado o
pré-preparo e preparo dos quitutes que estarão à venda nos tabuleiros; e o terceiro espaço é o
ponto de venda desses quitutes. Este deve ser um ambiente apropriado pela baiana e localizado
principalmente nas esquinas das ruas da cidade.
Tanto o ponto de venda como o ofício dessas trabalhadoras são passados
hereditariamente para as filhas, sobrinhas ou agregadas. A despeito de, algumas vezes, haver a
presença do homem, este trabalho fica centrado na figura feminina. Estas aprendem desde criança
algumas atividades menos específicas, tornando um espaço de aprendizagem e destinação.
Todo esse processo é tradicionalmente artesanal, derivado de uma forma
individual, em que a trabalhadora, em geral, é a proprietária do seu material (instrumentos de
trabalho). Deste modo, a baiana domina todas as etapas do trabalho e vende o produto final
para garantir a sua subsistência.12 A despeito de haver características que demonstram uma
transição para o mercado formal, já que existe o assalariamento dos ajudantes que realizam
algumas atividades, esta organização ainda se situa no mercado informal, pois não há contratação
194
Revista Baiana
de Saúde Pública
por meio de carteira de trabalho assinada, conforme ditames da Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT). No entanto, em uma das baianas entrevistadas foi identificada a iminência de
registro (pessoa jurídica) do seu estabelecimento, com o intuito de obter maiores benefícios,
como aquisição de créditos e planos de saúde para os funcionários, além do serviço de entrega
em domicílio, com o disk-acarajé.
Por ser artesã, a baiana de acarajé está presente em todas as etapas de preparação e
venda dos quitutes. Este trabalho torna-se, para ela, árduo e desgastante, pois está exposta a todos
os riscos provenientes das atividades realizadas. Todas as exigências demandadas pelo processo de
fabricação do acarajé pode proporcionar às baianas problemas de saúde, provocados pelas ações
desenvolvidas na atividade laboral (dores, cansaço, fadiga) e pelas condições insalubres que este
tipo de trabalho proporciona.
O artesanato, no Brasil, de forma geral, não apresenta regulamentação específica
para a proteção à saúde e à segurança no trabalho. O artesão, em geral, não tem direito ao seguro
de acidentes no trabalho. Com isso, o adoecimento ou afastamento resulta em não trabalho,
consequentemente na perda de vendas e, por extensão, na perda da principal fonte de renda das
famílias.
II – “Sinto muitas dores nos braços e na coluna”: o sofrimento gerado pelo processo
de trabalho da baiana
As condições de trabalho das baianas proporcionam-lhes uma espécie de fadiga
crônica. Casos graves e prolongados de fadiga são atualmente caracterizados como um quadro
sindrômico – a “síndrome de burnout” (burn out = queimar por completo) –, caracterizado pelo
esgotamento físico e mental intenso ligado à vida profissional, com perda de interesse pela
atividade. Surge principalmente nas profissões que trabalham em contato direto com pessoas em
prestação de serviço, como consequência desse contato diário no seu trabalho.13 Este é um bom
tema para pesquisa, pois, embora o trabalho da baiana seja artesanal, ela vive pressionada a se
manter permanentemente nesse processo fatigante.
Em dois dos espaços de trabalho da baiana, a cozinha e o ponto de venda dos
quitutes, diversos fatores podem contribuir para um processo de adoecimento. No trabalho da
cozinha, elas passam em média sete horas em pé, preparando os quitutes. Dentre as
atividades desenvolvidas nesse espaço, estão o pré-preparo dos alimentos e a preparação dos
acompanhamentos, como vatapá e caruru, e de outros quitutes do tabuleiro, como as cocadas
e os doces.
195
“Sinto muito as pernas, porque a gente fica em pé o dia todo. É difícil a gente
sentar, só na hora de almoçar mesmo; aí senta um pouquinho, almoça. Na hora de
cortar a salada, a gente senta também meia hora, mais ou menos, mas o que dói
mais são os braços e as pernas.” (Baiana Ana).
Por outro lado, no ponto de venda, essas mulheres ficam nove horas sentadas,
fritando, vendendo e despachando os produtos, totalizando 16 horas de trabalho. “Ficar sentada
por muito tempo. Sinto dores na coluna.” (Baiana Joana).
Por ser um trabalho centrado na baiana, essas mulheres sentem o peso das atividades
realizadas em seu corpo, em forma de cansaço, dores e doenças. Das atividades mais desgastantes em
todo o processo de trabalho, o ato de lavar o feijão e bater a massa do acarajé foi apresentado de forma
mais relevante: “[...] tem um rapaz que lava o feijão porque nós em casa temos uma quantidade
grande de feijão, a coluna não aguenta [risos].” (Baiana Isadora). Isto lhes proporciona um desgaste que
se agrava dia a dia. Aliado a isto, a profissão não é regulamentada no Brasil e, consequentemente, não
é alcançada pelos direitos previdenciários. Assim, a saúde e segurança no trabalho, bem como as
doenças, os acidentes gerados pela atividade laboral e os acidentes ocupacionais passam sem o amparo
da Previdência Social. Anotação do Diário de Campo é um exemplo de acidente de trabalho: “Ontem
fui comer acarajé, mas a baiana não estava no ponto. Disseram que ela está internada há 15 dias,
porque o tacho cheio de dendê quente virou em cima dela.”
O fazer-acarajé associado às adaptações nocivas do corpo ao trabalho e ao uso de
equipamentos, muitas vezes improvisados, pode ter graves consequências para esses
trabalhadores. Atividades exaustivas, prejudiciais à saúde, constituem riscos para Lesões por Esforço
Repetitivo / Distúrbios Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (LER/ DORT).
As narrativas demonstram que muitas dessas mulheres já apresentam enfermidades
relacionadas ao trabalho, uma vez que a exposição às atividades que geram movimentos
repetitivos acontece desde a infância, quando iniciam a aprendizagem desse fazer. “Toda baiana
tem [lesões]. No começo eu não tinha, mas agora vai chegando aos quarenta, vai começando a
aparecer tendinite, bursite, LER, por causa da movimentação repetitiva.” (Baiana Isadora).
Em outros estudos realizados com trabalhadores artesanais também foi identificada a
presença de movimentos que possibilitam o aparecimento de doenças relacionadas ao trabalho,
principalmente as LER/DORT. Estudo com marisqueiras – tipo de trabalho artesanal com extração de
mariscos – da Ilha de Maré, Salvador, Bahia, em 2008, identificou nove casos de LER/DORT.14 Pesquisa
envolvendo rendeiras, em uma comunidade em Fortaleza, Ceará, identificou a presença de esforços
repetitivos entre essas trabalhadoras, porém nenhum caso da doença foi diagnosticado a época.15
196
Revista Baiana
de Saúde Pública
Essas e outras questões relacionadas à saúde da baiana agrava-se quando elas
priorizam o trabalho e os afazeres em detrimento de prevenção da saúde, como a ida a um
serviço de saúde. O relato da baiana Solange é exemplar: “Você fica escrava de si própria.”
Além disso, justificam que não têm plano de saúde e esperar pelo Sistema Único de Saúde
(SUS), além de demandar muito tempo, não garante o atendimento adequado. Estudo com
mulheres obesas,16 constatou que os profissionais de saúde apresentam limitações para o
atendimento a essas mulheres, uma vez que têm dificuldade de enxergá-la fora do seu papel
de mãe. Devido ao fato de a maioria das mulheres brasileiras, neste caso as baianas,
acumularem várias funções (mãe, trabalhadora, dona de casa) para garantir a sobrevivência, o
atendimento a elas dispensado deveria perceber esses múltiplos espaços ocupados pela
mulher hoje.
Em 2003, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Humanização da
Atenção e Gestão do SUS, conhecido como HumanizaSUS, que apresenta uma proposta de
humanização, cuja construção deverá contar com a participação de todos e esteja
comprometido com a qualidade dos seus serviços e com a saúde integral para todos. Apesar
desse avanço, o serviço público não atinge a baiana, pois não prioriza a sua saúde, nem
considera que o seu trabalho é a sua principal fonte de renda, e este tempo para a realização
das atividades é sagrado. Além da exigência do seu trabalho e da escravização no tempo, as
baianas utilizam manobras para evitar a dor proveniente do processo de trabalho: “Às vezes eu
uso doutorzinho [para as dores no corpo], as vezes eu faço massagem. No outro dia alivia, e
pronto.” (Baiana Ana). Neste sentido, é de extrema importância o olhar atento das políticas
públicas para esta categoria profissional, no que tange aos possíveis danos causados pelo
processo de trabalho, que também inclui, entre outras, as enfermidades causadas pelo cheiro
do dendê.
III – “Aparentemente não fumaça”: o cheiro do acarajé
Uma das atividades realizadas pelas baianas de acarajé é fritar os bolinhos de feijão,
em tachos com azeite de dendê aquecido que pode chegar a mais de 200 °C. Estudo17 identificou
que a cocção de alimentos, principalmente a fritura, pode originar compostos orgânicos prejudiciais
à saúde como os Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA). Esses compostos pertencem a
uma família que apresenta dois ou mais anéis aromáticos fundidos e podem ser encontrados em
todos os compartimentos ambientais, em misturas complexas. Sua importância decorre do fato de
apresentar um potencial carcinogênico.
197
A exposição dos alimentos a altas temperaturas (acima de 200 °C) gera a formação
de HPA, principalmente pela pirólise das gorduras. Esses hidrocarbonetos também podem ser
produzidos pela queima de outras fontes orgânicas, como as proteínas e os carboidratos.18
Segundo a Portaria N o 3.214/78 NR1, anexo n° 13 – Agentes químicos:
Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos e seus compostos carbono são considerados substâncias
cancerígenas,19,20 o contato dessa substância com os olhos pode provocar irritação acompanhada de
vermelhidão das conjuntivas. Este entendimento é ratificado pela Portaria No 14, de 20/12/95. O
risco, entretanto, está mais associado à ingestão e aspiração dos hidrocarbonetos; neste caso, não
só a baiana, mas também os consumidores podem estar expostos.
Pesquisa realizada na cidade do Salvador identificou uma elevada quantidade de HPA
em hambúrgueres, o que pode contribuir para a aquisição de doenças.21 Este fato é agravado pela
ausência de informações, uma vez que ainda não está estipulada a quantidade mínima desse
componente a ser ingerida pelo ser humano sem lhe trazer prejuízos a saúde.
Nas entrevistas com as baianas, muitas referiram que a fumaça do dendê era
prejudicial a saúde, a despeito de não apresentarem nenhum respaldo científico. O trabalho diário
proporciona o aparecimento de alguns sintomas:
“E outra coisa que me prejudica no acarajé é o azeite. Tem dias que eu sinto muita
rouquidão. Agora mesmo estou sendo encaminhada para um oftalmologista para
fazer um exame (das vistas) devido à fumaça.” (Baiana Maria).
“Porque aparentemente não fumaça, mas isso aqui, esse cheiro todo dia, bate em
cima de você e aí pode vir um prejuízo, sim, como para muitas Baianas já vieram.”
(Baiana Helena).
“A fumaça incomoda um pouco, a fumaça do azeite que eu trabalho. A gente não pode
ficar tomando essa fumaça toda hora, mas a gente tem que tomar; essa fumaça prejudica
muito a saúde da gente. Ficar todo dia tomando essa fumaça não é bom. A maioria das
baianas começa a ter problemas cardíacos devido a essa fumaça.” (Baiana Ana).
Além dos aspectos patológicos que esta fumaça pode proporcionar às baianas, existe
uma particularidade simbólica, encontrada na intersubjetividade desses sujeitos que atribuem a sua
obesidade, o seu corpo gordo, ao confronto diário com o “cheiro do dendê” resultante da fritura
do acarajé.
198
Revista Baiana
“Misericórdia, eu digo, só esse cheiro de acarajé aqui me engorda [...] é possível,
de Saúde Pública
porque antes de eu trabalhar com o acarajé eu não tinha esse corpo.” (Baiana
Helena).
“Eu tenho pra mim que o que engorda a baiana é o dendê, a satura do dendê, a
fritura. Aquilo ali constante [aponta para a fumaça do dendê fritando acarajé], você
engorda. Não tem baiana que não engorde.” (Baiana Sara).
O seu corpo pode até estar emagrecido pela falta de uma alimentação adequada,
mas, ao se inserir no universo do acarajé como baiana, encontra-se destinado a ser um corpo
obeso.
Segundo a Teoria dos Miasmas,22,23 que vigorou no século XVIII e grande parte do XIX,
muitas enfermidades que acometiam os indivíduos naquela época eram causadas pelo mau cheiro
ou odores. Estes continham os miasmas e eram transmitidos pelo ar. Enquanto a teoria do contágio
estava relacionada ao tato, a teoria miasmática enfatizava o olfato. Dizia-se que as pessoas que
estivessem em locais com mau cheiro e o aspirassem poderiam ser contaminadas e desenvolver
qualquer tipo de doença. Os miasmas seriam todas as emanações nocivas, as quais corrompiam o ar
e atacavam o corpo humano. A atmosfera podia ser infectada por eflúvios resultantes da alteração e
da decomposição de substâncias orgânicas, vegetais, animais ou humanas.23 Para a teoria miasmática,
tanto o meio físico quanto o social seriam produtores de miasmas. Essas emanações eram
combatidas pela renovação e circulação do ar. Assim, tudo o que estivesse parado, estagnado,
poderia ser elemento perigoso à saúde pública, produtor de miasmas. Inicialmente, supunha-se que
a doença estava no ar e que, portanto, era necessário fazê-lo circular.24
Analogamente, pode-se entender que os miasmas de proveniência espiritual
também são nocivos à saúde incorpórea. Estes seriam todas as sujidades associadas ao profano que
ficariam “presas” ao corpo imaterial (ou Espírito) podendo também ocasionar enfermidades.
Estudo25 afirma que sinais e sintomas de uma doença, quando presentes no corpo, indicam que a
causa desta manifestação já se encontra no Espírito. Em ambos os casos, deve haver uma
“higienização” do corpo ou do Espírito para evitar certos tipos de enfermidades.
Em Salvador, nas festas de largo, as “limpezas” realizadas por meio dos banhos de
folhas, banho de pipoca, banho de sal grosso, que são preceitos oriundos do Candomblé, ensejam
a retirada do mau olhado proveniente das relações interpessoais e espirituais.
Estudo sobre as representações do corpo no universo afro-brasileiro26 afirma que o
equilíbrio existente entre o fiel e o orixá é designado pela expressão “fechamento do corpo”.
199
Assim, fechar o corpo significa protegê-lo, ter força – e esta força pode aumentar ou diminuir – ter
poder, sucesso; é estar sadio. Este estudo afirma também que o corpo se abre em situações
específicas, ou seja, quando o axé diminui, o corpo fraqueja e este enfraquecimento expressa-se
na doença.
As falas das baianas evidenciam uma combinação entre a teoria química da mudança de
estado (do líquido – azeite de dendê – para o gasoso – representado pela fumaça na fritura do bolinho
no azeite) e a ideia da teoria miasmática de que, pelo olfato, aspirando a fumaça de modo contínuo, a
quituteira fica obesa (“só esse cheiro... me engorda”, “aquilo ali constante, você engorda”).
As falas também expressam uma visão tradicional do adoecer – a visão ontológica,
na qual “[...] doença entra e sai do homem como por uma porta”.27:19 A herança, os aspectos
dinâmicos da pessoa não têm importância, ou, pelo menos, não têm tanta importância como os
agentes externos, em particular a fumaça, relacionada a valores simbólicos subjacentes aos saberes
religiosos.
IV – Gordura sadia x gordura doentia: o corpo das baianas e o trabalho
Diante das narrativas, foi identificada uma diferença entre o corpo para o trabalho de
baiana e o corpo para a vida social. O corpo, para essas mulheres, é mais do que um instrumento
de execução do trabalho. Ele faz parte de um campo estético em que esse corpo volumoso,
adicionado às suas roupas, suas vestimentas, seus adereços, se apresenta como uma condição para
as suas vendas. É como se o encontro do freguês com um corpo gordo e caracterizado se
apresentasse de forma positiva, trazendo a ideia defendida no passado de que gordura seria
significado de poder e ostentação. “Porque o corpo da gente representa mais a baiana; a gente
meio magrinha fica meio estranha. A gente fortizinha já sai mais, a baiana sai mais, representa mais
um pouco a baiana.” (Baiana Ana, grifo nosso).
Estudo sobre o corpo como lócus de poder afirma que28 existe um elo entre a
beleza e o poder retratados pelos corpos esculpidos da sociedade contemporânea, sugerindo a
ideia de que pessoa obesa, que um dia inspirou obras de arte, é hoje condenada pelo contexto
sociocultural e pela medicina e responsável por sua obesidade, devido à falta de vontade de se
exercitar/disciplinar e de autocontrole. No entanto, neste estudo, que toma a mulher enquanto
trabalhadora, esse elo apresenta-se situado em seu corpo volumoso, centrado na baiana de acarajé
como um cartão postal da cidade do Salvador.
Este fato pode ser observado na baiana Cecília. Seu ponto é localizado no coração
do Pelourinho, onde há muita passagem de turistas. Ela não permite que lhe tirem uma foto sem
200
Revista Baiana
de Saúde Pública
que lhe paguem a quantia de R$10,00 ou comprem o seu acarajé. Deste modo, corpo e beleza
passam a ser atributos do mercado como um objeto de consumo.
Estudo com mulheres obesas de uma favela carioca29 identificou um corpo obeso apto
para o trabalho. Entre um corpo gordo e ágil e um magro e doente, este último parecia ser ameaçador
para o trabalho. Particularmente neste grupo, o uso do corpo pode compreender uma visão mais
utilitária, fruto da importância da força física nas ocupações desempenhadas (trabalhos informais).
No século XIX, um pouco de adiposidade era sinal de status e riqueza e,
consequentemente, de prestígio social. Em contraponto a essa ideia, hoje o mínimo sinal de
gordura é rechaçado. Além disso, os referenciais de obesidade e magreza podem mudar com o
tempo. No passado, era “[...] preciso ser bem mais gordo para ser julgado obeso e bem menos
magro para ser considerado magro”.30:79 Este referencial, porém, pode também mudar com o lugar,
o ambiente em que ele está alocado. “Ser gordo em Salvador não necessariamente implica o
mesmo em outras localidades.”3:98 O termo obeso é para o doente portador de uma patologia; o
termo gordo, no entanto, não necessariamente se refere a uma doença. Distinção não é separação
e, não por acaso, ela foi adotada para nomear a Associação dos Gordos e Obesos de Salvador
(ASGOBS), organização da sociedade civil.
O corpo magro está relacionado às classes mais populares enquanto corpo fraco,
inapto para enfrentar as tarefas diárias de trabalho. Nas classes mais altas, porém, o corpo magro
representa um padrão utilizado como forma de ascensão ou promoção social, como requisito de
inserção no mercado de trabalho e como símbolo de status social.31
No Brasil, estudo sobre as organizações populares e o significado da pobreza32
revelou que, para as mulheres das classes populares, a obesidade era por vezes valorizada como
elemento de força. Estudo com mulheres obesas de baixa renda16 constatou que a obesidade era
um atributo sexual importante no grupo. Pesquisa desenvolvida em um bairro popular de Salvador
encontrou que a obesidade, nessa comunidade, não é considerada uma doença, mas, antes, uma
escolha de ser, em que a estética corporal representa saúde e atrativo sexual.33 Em outros
momentos históricos, ser obeso significava beleza, grandiosidade e feminilidade.31 O corpo erótico
e sensual era representado pelas formas arredondadas. Neste sentido, há um paradoxo nos
discursos das mulheres entrevistadas, que elegem um corpo obeso para o trabalho de baiana e um
corpo mais magro para a vida cotidiana.
“Que as baianas magras me perdoem, mas a gordura em si, eu tô falando aquela
gordura sadia, que você fica bem na roupa. Aquela gordura doentia não, não serve,
nem pra mim nem pra ninguém. Pelo menos a minha, ela é sadia.” (Baiana Helena).
201
“Baiana magra é feinha; baiana magra é feia [risos]. Eu reclamo, assim: eu sou gorda
para meu marido, quando eu tiro a roupa aquele negócio, mas eu sou gorda para o
meu trabalho? Eu me acho o máximo. Há 13 anos eu era um palitinho, vestia as
roupas, ficava tudo balançando em mim, e agora não, eu to chique, eu me acho o
máximo.” (Baiana Joana).
Este corpo obeso para a vida social não é satisfatório, pois, quando não estão em
seus pontos de trabalho, o referencial de corpo referido por estas trabalhadoras é o padrão de
beleza divulgado pela mídia: corpos magros, esculpidos e belos. “Eu queria perder uns quilinhos”
(Baiana Helena). Adicionado a isso, este corpo obeso é sempre relacionado com a estética que
apresenta a baiana de acarajé, mas não como um corpo doente que pode ser adquirir outras
enfermidades.
“Porque tem pessoas que é gorda demais por doença, né? E tem aquelas pessoas
gordinhas, cheinhas, que é uma gorda cheinha, mas a saúde tá inteira.” (Baiana
Helena).
“Eu sou uma pessoa que eu gosto de tudo de mim. Eu não sinto complexo de nada,
eu não me acho feia de nada, tudo para mim está confortável, eu tô achando agora
que eu estou com uma barriguinha, estou caminhando todos os dias pela manhã e
fechando a boca; só tenho colesterol alto.” (Baiana Maria).
Estas mulheres podem achar a sua corpulência “normal”, por exemplo, pelo fato de
que algumas doenças atualmente associadas à obesidade pela Medicina, como hipertensão arterial,
diabetes, colesterol elevado e muitas outras, não apresentarem sintomas nas fases iniciais, o que
pode tornar mais difícil a busca pelo tratamento, pois não sente a doença (dor, por exemplo).34 Este
fato pode ser agravado quando se sabe que existe um ritual de oferenda por detrás de todo o
processo de trabalho. Neste sentido, agradar o orixá pode trazer uma sensação de prazer e
satisfação, mascarando todo o processo de dor e sofrimento que pode gerar este tipo de trabalho.
No candomblé, os corpos mais aceitos são os volumosos, corpulentos, por existir
uma relação destes com os rituais desta religião. Esses corpos significam saúde e beleza. Neste
sentido, um frequentador desta religião não deve realizar nenhum tipo de dieta ou regime, pois
quem determina as formas anatômicas do seu corpo é o “Santo que faz sua cabeça”, ou seja, o
Orixá, e isso é determinado desde o seu nascimento.
202
Revista Baiana
de Saúde Pública
Nas narrativas, percebe-se uma relação com as formas do corpo e o Candomblé.
“Vou logo dizer, numa roda de samba, quando tá todo mundo vestido, as gordinhas ressaem mais
até. Porque a roupa combina mais, cai melhor a roupa.” (Baiana Helena). Assim, o conhecimento
do corpo, das percepções sensoriais, para o Candomblé, é um aspecto importante para a iniciação,
e a possibilidade de dançar no rito público desta religião.35 A gestualidade e a dança podem ser
entendidas como uma linguagem ou como outra possibilidade da palavra, pois é o corpo que fala
ao grupo social.36
O corpo volumoso da baiana e os movimentos de suas mãos e braços apresentam-se
de forma inerente ao trabalho, não mais como um instrumento apenas para a execução das tarefas.
A movimentação do seu corpo na batida da massa e na fritura dos acarajés remete a um ritual
presente nas festas do Terreiro que é a dança dos Orixás. Com o corpo movimentando de forma
cadenciada, ombros levemente arqueados, seus braços seguram forte a colher de pau, como se
segurasse o chicote de Iansã. Seus braços levantam e abaixam a colher na massa, em um movimento
circular de fora para dentro, como quem puxa o alimento para si. Ao formar o bolinho com a colher
e colocá-lo em pequenas quantidades nos tachos para fritar, as baianas realizam mais um
movimento, agora lateralizado. Com os braços arqueados, na altura dos ombros, estas mulheres
afastam e aproximam seus membros do corpo em um movimento típico da dança africana.
Um momento de naturalização das relações com o sagrado verifica-se ao colocar a
panela no meio de suas pernas. A fazer isto, estas mulheres estabelecem um elo com a
fertilidade representada por cada bolinho retirado do seu ventre. Assim com sua mãe Iansã. Esse
ritual encerra-se na venda do acarajé para o cliente, sempre aberto ou furado, nunca fechado,
com o intuito de impedir que o utilizem de forma prejudicial à baiana, uma vez que a
sacralização com o divino deve ocorrer da mãe para a filha. É o sagrado e o profano que se
encontram no universo do acarajé.
V – “Todo mundo acha que baiana é gorda porque come acarajé o tempo todo”: as
práticas alimentares no tabuleiro
O trabalho da baiana envolve muitas atividades e isto requer dedicação. Devido a
isto, a baiana prioriza o seu trabalho em detrimento de outras atividades como, por exemplo, o
lazer, a alimentação e o cuidado com o corpo. Em muitas narrativas foi referido que a quantidade
de trabalho que realizam é muito grande, impossibilitando a ida a serviços de lazer, como teatro,
cinema, praia, e também a prática de atividade física, como caminhadas, pois o tempo que se
apresenta é para o trabalho e para o descanso.
203
Adicionado à escravização no tempo, estas trabalhadoras não apresentam uma rotina
alimentar, principalmente em seu ambiente de trabalho. Em sua maioria, elas não se alimentam
enquanto estão trabalhando, pois referem não ter tempo para isto. “Aqui eu não como, porque eu
não sinto fome por causa das coisas que eu faço [...] Uma vez na vida e só como metade [o
acarajé] porque não desce, enjoa.” (Baiana Sara). Além disso, o acesso aos alimentos pode
conduzir os grupos menos favorecidos a diferentes arranjos de sobrevivência. Nessa perspectiva, as
estratégias de consumo alimentar são caracterizadas pela seleção de gêneros básicos e de alta
densidade calórica, como as gorduras e os açúcares, por meio dos quais os indivíduos conseguem
as calorias necessárias para reproduzir a força de trabalho de que necessitam.
Os alimentos que se fazem presentes em seu ambiente de trabalho são os que são
vendidos por elas e os que são vendidos nas ruas pelos vendedores ambulantes, como beiju de
tapioca, milho verde cozido, amendoim. Apesar de algumas narrativas referirem a aquisição
esporádica desses alimentos, na observação participante não foi percebido esse consumo no
ambiente de trabalho.
A despeito da crença existente no senso comum de que as baianas engordam
devido ao alto consumo dos bolinhos de feijão, nas observações realizadas nas ruas da cidade não
foi identificado nenhum consumo de acarajé pelas baianas. Segundo algumas narrativas, o ato de
comer acarajé ocorre mais na “prova” da massa, para avaliar a quantidade de tempero e a
qualidade do produto; o contato direto e diário com o acarajé acaba por produzir uma sensação de
enjoo: “Muitas pessoas acham que as baianas engordam porque comem o acarajé todos os dias,
mas a gente não come o acarajé todo dia não, porque a gente enjoa.” (Baiana Isadora).
Em tempos do discurso sobre alimentação saudável, essas mulheres não identificam
que este “movimento” pode ser prejudicial às suas vendas. Elas acreditam que o acarajé, quer
dizer, as comidas de azeite ou comidas baianas, apesar de serem vistas como alimentos calóricos,
pesados, não deixam de ser consumidas pela população. Independentes da classe social, crença,
estado de saúde, as comidas de tabuleiro sempre serão vendidas, pois fazem parte da história da
cidade do Salvador. Já existem baianas que, reconhecendo a natureza calórica de seus produtos,
utilizam manobras para tornar mais light as suas preparações:
“Eu quero o melhor para o meu cliente. Se eu não faço pra mim também não vou
querer para ele. O meu camarão eu não frito mais no azeite por muito tempo. O
vatapá e o caruru, eu coloco o azeite quando eles já estão quase prontos. No abará
só utilizo a flor do azeite, pois é mais saudável. E o meu azeite que frito o acarajé,
eu troco todo dia. Utilizo 75 litros na semana.” (Baiana Margô).
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Revista Baiana
de Saúde Pública
As constatações deste estudo permitiram concluir-se que a baiana de acarajé, um
ícone da cidade do Salvador, tem um trabalho desgastante, que lhe traz problemas de saúde,
agravados com o sobrepeso ou a obesidade da maioria das trabalhadoras artesanais. As atividades
demandadas pelo trabalho árduo produzem uma fadiga recorrente que se agrava na repetição dos
movimentos gerados no processo de produção dos bolinhos.
Apesar do reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial, a profissão não
obteve melhoras em relação às condições de trabalho, uma vez que a atividade exige esforços
repetitivos que resultam em dores de coluna, nas pernas e nos braços. O significado de ser baiana
em Salvador, porém, envolve um conjunto de possibilidades permeadas pela tradição,
ancestralidade, ritual e também modo de subsistência.
O corpo da baiana é seu instrumento de representação no mundo sagrado e
profano, uma vez que é através dele que a sua santidade se manifesta, como num transe. Neste
sentido, a baiana traz para as ruas de Salvador esse ritual de comidas e objetos sagrados, além das
roupas e da movimentação do corpo como numa dança.
Não obstante toda a ancestralidade e tradição presente nessa trabalhadora artesanal
(ou categoria profissional), é preciso que haja uma atenção especial para elas, uma vez já existe
um precedente de sintomas que se manifestam nas baianas e podem estar sendo silenciados ou
despercebidos pelos serviços de saúde e pela Previdência Social.
Diante do exposto, fica evidente a necessidade de estudos mais detalhados sobre as
condições de trabalho e riscos presentes nesse espaço do acarajé, tão disputado e polêmico.
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26. Sousa Junior VC. As representações do corpo no universo afro-brasileiro.
Projeto História. 2003:25:125-44.
27. Canguilhem G. O normal e o patológico. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária; 2006.
28. Meurer B, Gesser M. O corpo como lócus de poder: articulações sobre
gênero e obesidade na contemporaneidade. Fazendo Gênero 8 - Corpo,
Violência e Poder. 2008. Extraído de [http://www.fazendogenero8.ufsc.br/
sts/ST39/ Meurer-Gesser_39.pdf], acesso em [30 de novembro de 2009].
207
29. Ferreira VA. O corpo cúmplice da vida: considerações a partir dos
depoimentos de mulheres obesas de uma favela carioca. Ci Saúde Col.
2006;11(2):483-90.
30. Fischler C. Obeso benigno, obeso maligno. In: Sant’ Anna DB, organizador.
Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São
Paulo: Estação Liberdade; 1995. p. 69-80.
31. Tonial S. Desnutrição e obesidade: faces contraditórias na miséria e na
abundância. Recife: IMIP; 2001.
32. Zaluar A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado
da pobreza. 2ª. ed. São Paulo: Brasiliense; 1985.
33. Freitas MCS. Mulher light: corpo, dieta e repressão. In: Nascimento ER,
Ferreira SL, organizadores. Imagens da mulher na cultura contemporânea.
Salvador: UFBA; 2002. p. 23-34. Coleção Bahiana.
34. Gonçalves CA. O “peso” de ser muito gordo: um estudo antropológico
sobre obesidade e gênero. Mneme – Rev Virtual Humanidades. 2004;11(5).
35. Barbara R. A dança das Iabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres do
candomblé [Tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2002.
36. Leite F. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. África.
1996;18-19(1):103-17.
Recebido em 12.3.2011 e aprovado em 16.05.2011
208
Revista Baiana
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
de Saúde Pública
A Revista Baiana de Saúde Pública (RBSP), publicação oficial da Secretaria da Saúde do
Estado da Bahia (SESAB), de periodicidade trimestral, publica contribuições sobre aspectos
relacionados aos problemas de saúde da população e à organização dos serviços e sistemas de saúde
e áreas correlatas. São aceitas para publicação as contribuições escritas preferencialmente em
português, de acordo com as normas da RBSP, obedecendo a ordem de aprovação pelos editores.
Os trabalhos são avaliados por pares, especialistas nas áreas relacionadas aos temas referidos.
Os manuscritos devem destinar-se exclusivamente à RBSP, não sendo permitida sua
apresentação simultânea a outro periódico, tanto no que se refere ao texto como às ilustrações e
tabelas, quer na íntegra ou parcialmente. Devem ainda referenciar artigos sobre a temática abordados
nesta Revista. Os autores devem assinar e encaminhar uma declaração de responsabilidade.
CATEGORIAS ACEITAS:
1
Artigos originais:
1.1 Pesquisa: artigos apresentando resultados finais de pesquisas científicas (10 a
20 laudas);
1.2 Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema específico (5 a 8 laudas);
1.3 Revisão: artigos com revisão crítica de literatura sobre tema específico,
solicitados pelos editores (8 a 15 laudas).
2
Comunicações: informes de pesquisas em andamento, programas e
relatórios técnicos (5 a 8 laudas).
3
Teses e dissertações: resumos de dissertações de mestrado e teses de
doutorado/livre docência defendidas e aprovadas em universidades
brasileiras (máximo 2 laudas). Os resumos devem ser encaminhados com o
título oficial da tese, dia e local da defesa, nome do orientador e local
disponível para consulta.
4
Resenha de livros: livros publicados sobre temas de interesse, solicitados
pelos editores (1 a 4 laudas).
5
Relato de experiências: apresentando experiências inovadoras (8 a 10
laudas).
6
Carta ao editor: comentários sobre material publicado (2 laudas).
7
Editorial: de responsabilidade do editor. Pode também ser redigido por
convidado, mediante solicitação do editor.
8
Documentos: de órgãos oficiais sobre temas relevantes (8 a 10 laudas).
209
ORIENTAÇÕES AOS AUTORES
INSTRUÇÕES GERAIS PARA ENVIO
Os trabalhos a serem apreciados pelos editores e revisores seguirão a ordem de recebimento e
deverão obedecer aos seguintes critérios de apresentação:
• encaminhar à secretaria executiva da revista uma cópia impressa. As
páginas devem ser formatadas em espaço 1,5, com margens de 2 cm,
fonte Times New Roman, tamanho 12, página padrão A4, numeradas no
canto superior direito;
• enviar opcionalmente para o e-mail da revista, desde que não contenham
desenhos ou fotografias digitalizadas;
• entregar uma cópia em CD-ROOM ou via e-mail com a versão final
aceita para publicação.
ARTIGOS
Folha de rosto: informar o título (com versão em inglês e espanhol), nome(s) do(s) autor(es),
principal vinculação institucional de cada autor, órgão(s) financiador(es) e endereço postal e
eletrônico de um dos autores para correspondência.
Segunda folha: iniciar com o título do trabalho, sem referência à autoria, e acrescentar um resumo
de no máximo 200 palavras, com versão em inglês (Abstract) e espanhol (Resumen). Trabalhos em
espanhol ou inglês devem também apresentar resumo em português. Palavras-chave (3 a 5)
extraídas do vocabulário DECS (Descritores em Ciências da Saúde/www.decs.bvs.br) para os
resumos em português e do MESH (Medical Subject Headings/ www.nlm.nih.gov/mesh) para os
resumos em inglês.
Terceira folha: título do trabalho sem referência à autoria e início do texto com parágrafos alinhados
nas margens direita e esquerda (justificados), observando a sequência: introdução – conter
justificativa e citar os objetivos no último parágrafo; material e métodos; resultados, discussão e
referências. Digitar em página independente os agradecimentos, quando necessários.
RESUMOS
Os resumos devem ser apresentados nas versões português, inglês e espanhol. Devem expor
sinteticamente o tema, os objetivos, a metodologia, os principais resultados e as conclusões. Não
incluir referências ou informação pessoal.
210
Revista Baiana
de Saúde Pública
TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS
Obrigatoriamente, os arquivos das ilustrações (quadros, gráficos, fluxogramas, fotografias,
organogramas etc.) e tabelas devem ser independentes e impressos em folhas separadas; suas
páginas não devem ser numeradas. Estes arquivos devem ser compatíveis com processador de
texto “Word for Windows” (formatos: PICT, TIFF, GIF, BMP).
O número de ilustrações e tabelas deve ser o menor possível. As ilustrações coloridas somente
serão publicadas se a fonte de financiamento for especificada pelo autor.
Na seção resultados, as ilustrações e tabelas devem ser numeradas com algarismos arábicos, por
ordem de aparecimento no texto, e seu tipo e número destacados em negrito (e.g. “[...] na
Tabela 2 as medidas [...]).
No corpo das tabelas, não utilizar linhas verticais nem horizontais; os quadros devem ser fechados.
Os títulos das ilustrações e tabelas devem ser objetivos, situar o leitor sobre o conteúdo e informar
a abrangência geográfica e temporal dos dados (e.g.: Gráfico 2. Número de casos de AIDS por
região geográfica – Brasil – 1986-1997).
Ilustrações e tabelas reproduzidas de outras fontes já publicadas devem indicar esta condição após
o título.
ÉTICA EM PESQUISA
Trabalho que resulte de pesquisa envolvendo seres humanos ou outros animais deve vir
acompanhado de cópia de documento que ateste sua aprovação prévia por um Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP), além da referência na seção Material e Métodos.
REFERÊNCIAS
Preferencialmente, qualquer tipo de trabalho encaminhado (exceto artigo de revisão) deverá listar
até 30 fontes.
As referências no corpo do texto deverão ser numeradas em sobrescrito, consecutivamente, na
ordem em que forem mencionadas a primeira vez no texto.
As notas explicativas são permitidas, desde que em pequeno número, e devem ser ordenadas por
letras minúsculas em sobrescrito.
211
As referências devem aparecer no final do trabalho, listadas pela ordem de citação, alinhadas
apenas à esquerda da página, seguindo as regras propostas pelo Comitê Internacional de Editores
de Revistas Médicas (Requisitos uniformes para manuscritos apresentados a periódicos biomédicos/
Vancouver), disponíveis em http://www.icmje.org ou http://www.abec-editores.com.br.
Quando os autores forem mais de seis, indicar apenas os seis primeiros, acrescentando a
expressão et al.
Exemplos:
a) LIVRO
Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales.
2ª ed. Washington: Organizacion Panamericana de la Salud; 1989.
b) CAPÍTULO DE LIVRO
Almeida JP, Rodriguez TM, Arellano JLP. Exantemas infecciosos infantiles. In: Arellano JLP, Blasco
AC, Sánchez MC, García JEL, Rodríguez FM, Álvarez AM, editores. Guía de autoformación en
enfermedades infecciosas. Madrid: Panamericana; 1996. p. 1155-68.
c) ARTIGO
Azevêdo ES, Fortuna CMM, Silva KMC, Sousa MGF, Machado MA, Lima AMVMD, et al. Spread and
diversity of human populations in Bahia, Brazil. Human Biology. 1982;54:329-41.
d) TESE E DISSERTAÇÃO
Britto APCR. Infecção pelo HTLV-I/II no estado da Bahia [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade
Federal da Bahia; 1997.
e) RESUMO PUBLICADO EM ANAIS DE CONGRESSO
Santos-Neto L, Muniz-Junqueira I, Tosta CE. Infecção por Plasmodium vivax não apresenta disfunção
endotelial e aumento de fator de necrose tumoral-? (FNT-?) e interleucina-1? (IL-1?). In: Anais do 30º
Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Salvador, Bahia; 1994. p. 272.
f) DOCUMENTOS EXTRAÍDO DE ENDEREÇO DA INTERNET
Autores ou sigla e/ou nome da instituição principal. Título do documento ou artigo. Extraído de
[endereço eletrônico], acesso em [data]. Exemplo:
COREME, Comissão de Residência Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos
(HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Regimento Interno da COREME. Extraído de
[http://www.hupes.ufba.br/coreme], acesso em [20 de setembro de 2001].
212
Revista Baiana
Não incluir nas Referências material não-publicado ou informação pessoal. Nestes casos, assinalar
de Saúde Pública
no texto: (i) Antunes Filho FF, Costa SD: dados não-publicados; ou (ii) Silva JA: comunicação
pessoal, 1997. Todavia, se o trabalho citado foi aceito para publicação, incluí-lo entre as
referências, citando os registros de identificação necessários (autores, título do trabalho ou livro e
periódico ou editora), seguido da expressão latina In press e o ano.
Quando o trabalho encaminhado para publicação tiver a forma de relato de investigação
epidemiológica, relato de fato histórico, comunicação, resumo de trabalho final de curso de pósgraduação, relatórios técnicos, resenha bibliográfica e carta ao editor, o(s) autor(es) deve(m)
utilizar linguagem objetiva e concisa, com informações introdutórias curtas e precisas,
delimitando o problema ou a questão objeto da investigação. Seguir as orientações para
referências, ilustrações e tabelas.
As contribuições encaminhadas só serão aceitas para apreciação pelos editores e revisores
se atenderem às normas da revista.
Endereço para remessa de trabalho:
Revista Baiana de Saúde Pública
Escola da Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto
de Magalhães Netto
Rua Conselheiro Pedro Luiz, nº 171
Rio Vermelho – Salvador – Bahia
CEP 41950-610
TEL/FAX 0XX 71 3334 0428
[email protected]
213
PUBLICATION STANDARDS AND GUIDELINES
The Public Health Journal of Bahia (RBSP), a quarterly official publication of the Health
Secretariat of the State of Bahia (SESAB), publishes contributions on aspects related to population’s health
problems, health systems’ services and related areas. It accepts for publication written contributions,
preferably in Portuguese, according to the RBSP standards, following the order of approval by the editors.
The papers are evaluated by a pair of experts in the areas related to the topics in question.
The manuscripts must be exclusively destined to RBSP, not being allowed its
simultaneous submission to another periodical, neither of texts nor illustrations and charts, in part or
as a whole. They must also mention articles about the topics addressed in this Journal. The authors
must sign and send a declaration of responsibility.
ACCEPTED CATEGORIES:
1
Original articles:
1.1 Research: articles presenting final results of scientific researches (10 to 20
pages);
1.2 Essays: articles with a critical analysis on a specific topic (5 to 8 pages);
1.3 Review: articles with a critical review on literature about a specific topic,
requested by the editors (8 to 15 pages).
2
Communications: reports on ongoing research, programs and technical
reports (5 to 8 pages).
3
Theses and dissertations: abstracts of master degree’ dissertations and
doctorate thesis/ licensure papers defended and approved by Brazilian
universities (2 pages maximum). The abstracts must be sent with the official
title, day and location of the thesis’ defense, name of the counselor and an
available place for reference.
4
Book reviews: Books published about topics of current interest, as
requested by the editors (1 to 4 pages).
5
Experiments’ report: presenting innovative experiments (8 to 10 pages).
6
Letter to the editor: comments about published material (2 pages).
7
Editorial: a responsibility of the editor. It can also be written by an invited
author upon request of the editor.
8
214
Documents: of official organization about relevant topics (8 to 10 pages).
Revista Baiana
de Saúde Pública
GUIDELINES TO THE AUTHORS
GENERAL INSTRUCTIONS FOR SENDING MATERIAL
The papers must be evaluated by the editors and the revisers will follow the order of receipt and
shall abide by the following criteria of submission:
• send it to the journal’s executive office by email or printed copy. The
pages must be formatted in 1.5 spacing, with 2cm margins, Times New
Roman typeface, font size 12, A4 standard page, numbered at top right;
• optionally send it to the journal’s e-mail, provided that it doesn’t contain
drawings or digitalized photographs;
• send a copy in CD-ROM or by e-mail with the final version accepted for
publication.
ARTICLES
Cover sheet: inform the title (with an English and Spanish version), name(s) of the author(s), main
institutional connection of each author, funding organization(s) and postal and electronic address of
one of authors for correspondence.
Second page: Start with the paper’s title, without reference to authorship and add an abstract of up
to 200 words, followed with English (Abstracts) and Spanish (Resumen) versions. Spanish and
English papers must also present an abstract in Portuguese. Keywords (3 to 5) extracted from DECS
(Health Science Descriptors at www.decs.bvs.br) for the abstracts in Portuguese and from MESH
(Medical Subject Headings at www.nlm.nih.gov/mesh) for the abstracts in English.
Third page: paper's title without reference to authorship and beginning of the text with paragraphs
aligned to both right and left margins (justified), observing the following sequence: introduction –
containing justification and mentioning the objectives in the last paragraph; material and methods;
results, discussion and references. Type in the acknowledgement on an independent page
whenever necessary.
ABSTRACTS
The abstracts must be presented in the portuguese, english and spanish versions. They must
synthetically expose the topic, objectives, methodology, main results and conclusions. It must not
include personal references or information.
215
CHARTS, GRAPHS AND FIGURES
The files of the illustrations (charts, graphs, flowcharts, photographs, organization charts etc.) and
tables must forcibly be independent and printed in separate pages; their pages must not be
numbered. These files must be compatible with "Word for Windows” word processor (formats:
PICT, TIFF, GIF, BMP).
Colored illustration will only be published if the funding source is specified by the author.
On the results section illustrations and tables must be numbered with Arabic numerals, ordered by
appearance in the text, and its type and number must be highlighted in bold (e.g. “[...] on Table 2
the measures […]).
On the body of tables use neither vertical nor horizontal lines; the charts must be framed.
The titles of the illustrations and tables must be objective, contextualize the reader about the
content and inform the geographical and time scope of the data (e.g.: Graph 2. Number of Aids
cases by geographical region – Brazil - 1986-1997).
Illustrations and tables reproduced from already published sources must have this condition
informed after the title.
RESEARCH ETHICS
Paper that result from research involving human being or other animals must be followed with a
document which attests its previous approval by a Research Ethic Committee (REC), in addition to
the reference at the Material and Methods Section.
REFERENCES
Preferably, any kind of paper sent (except review article) must list up to 30 sources.
The references in the body of the text must be consecutively numbered in superscript, in the
order that they are mentioned for the first time.
Explanatory notes are allowed, provided that in small number and they must be ordered by low
case letters in superscript.
216
Revista Baiana
de Saúde Pública
References must appear at the end of the work, listed by order of appearance, aligned only to the
left of the page, following the rules proposed by the International Committee of Medical Journal
Editors (Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to Biomedical Journals/Vancouver),
available at http://www.icmje.org or http://www.abec-editores.com.br.
When there are more than six authors, indicate only the first six, adding the expression et al.
Examples:
a) BOOK
Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales.
2ª ed. Washington: Organizacion Panamericana de la Salud; 1989.
b) BOOK CHAPTER
Almeida JP, Rodriguez TM, Arellano JLP. Exantemas infecciosos infantiles. In: Arellano JLP, Blasco
AC, Sánchez MC, García JEL, Rodríguez FM, Álvarez AM, editores. Guía de autoformación en
enfermedades infecciosas. Madrid: Panamericana; 1996. p. 1155-68.
c) ARTICLE
Azevêdo ES, Fortuna CMM, Silva KMC, Sousa MGF, Machado MA, Lima AMVMD, et al. Spread and
diversity of human populations in Bahia, Brazil. Human Biology 1982;54:329-41.
d) THESIS AND DISSERTATION
Britto APCR. Infecção pelo HTLV-I/II no estado da Bahia [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade
Federal da Bahia; 1997.
e) ABSTRACT PUBLISHED IN CONFERENCE ANNALS
Santos-Neto L, Muniz-Junqueira I, Tosta CE. Infecção por Plasmodium vivax não apresenta disfunção
endotelial e aumento de fator de necrose tumoral-α (FNT-α) e interleucina-1β (IL-1β). In: Anais do
30º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Salvador, Bahia; 1994. p. 272.
f) DOCUMENTS OBTAINED FROM INTERNET ADDRESS
Author and/or name of the main institution. Title of document or article. Obtained from [electronic
address], accessed on [date]. Example:
217
COREME, Comissão de Residência Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos
(HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Regimento Interno da COREME. Obtained from
[http://www.hupes.ufba.br/coreme], accessed on [20 september, 2001].
Do not include unpublished material or personal information in the References. In such cases,
indicate it in the text: (i) Antunes Filho FF, Costa SD: unpublished data; or Silva JA: personal
communication, 1997. However, if the mentioned material was accepted for publication, include it
in the references, mentioning the required identification entries (authors, title of the paper or book
and periodical or editor), followed by the Latin expression In press, and the year.
When the paper directed to publication have the format of an epidemiological research report,
historical fact report, communication, abstract of post-graduate studies’ final paper, technical report,
bibliographic report and letter to the editor, the author(s) must use a direct and concise language,
with short and precise introductory information, limiting the problem or issue object of the research.
Follow the guidelines for the references, illustrations and tables.
The contribution sent will only be accepted for evaluation by the editors and reviewers if they
comply with the standards of the journal.
Endereço para remessa de trabalho:
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Escola da Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto
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218
Revista Baiana
NORMAS PARA PUBLICACIÓN
de Saúde Pública
La Revista Baiana de Salud Pública (RBSP), publicación oficial de la Secretaria de la
Salud del Estado de la Bahia (SESAB), de periodicidad trimestral, publica contribuiciones sobre
aspectos relacionados a los problemas de salud de la población y a la organización de los servicios y
sistemas de salud y áreas correlatas. Son aceptas para publicación las contribuiciones escritas
preferencialmente en portugués, de acuerdo con las normas de la RBSP, obedeciendo la orden de
aprovación por los editores. Los trabajos son evaluados por pares, especialistas en las áreas
relacionadas a los temas referidos.
Los manuscritos deben destinarse exclusivamente a la RBSP, no siendo permitida su
presentación simultánea a otro periódico, tanto en lo que se refiere al texto como a las
ilustraciones y tablas, sea en la íntegra o parcialmente. Deben, aún, referenciar artículos sobre la
temática abordados en esta Revista. Los autores deben firmar y encaminar una declaración de
responsabilidad.
CATEGORÍAS ACEPTAS:
1
Artículos originales:
1.1 Investigación: artículos presentando resultados finales de investigaciones
científicas (10 a 20 hojas);
1.2 Ensayos: artículos con análisis crítica sobre un tema específico (5 a 8 hojas);
1.3 Revisión: artículos con revisión crítica de literatura sobre tema específico,
solicitados por los editores (8 a 15 hojas).
2
Comunicaciones: informes de investigaciones en andamiento, programas y
relatorios técnicos (5 a 8 hojas).
3
Tesis y disertaciones: resúmenes de disertaciones de master y tesis de
doctorado/libre docencia defendidas y aprobadas en universidades brasileñas
(máximo 2 hojas). Los resúmenes deben ser encaminados con el título
oficial de la tesis, día y local de la defensa, nombre del orientador y local
disponible para consulta.
4
Reseña de libros: libros publicados sobre temas de interés, solicitados por
los editores (1 a 4 hojas).
5
Relato de experiencias: presentando experiencias innovadoras (8 a 10 hojas).
6
Carta al editor: comentarios sobre material publicado (2 hojas).
219
7
Editorial: de responsabilidad del editor. Puede, también, ser redigido por
convidado, mediante solicitación del editor.
8
Documentos: de órganos oficiais sobre temas relevantes (8 a 10 hojas).
ORIENTACIONES A LOS AUTORES
INSTRUCCIONES GENERALES PARA ENVIO
Los trabajos apreciados por los editores y revisores seguirán la orden de recibimiento y deberán
obedecer a los siguientes criterios de presentación:
• encaminar a la secretaria ejecutiva de la revista una copia impresa. Las
páginas deben ser formateadas en espacio 1,5, con márgenes de 2 cm,
fuente Times New Roman, tamaño 12, página patrón A4, numeradas en
el lado superior derecho;
• enviar opcionalmente para el correo electrónico de la revista, desde que
no contengan imágenes o fotografias digitalizadas;
• entregar una copia en CD-ROOM o via correo electrónico con la versión
final acepta para publicación.
ARTÍCULOS
Pagina de capa: informar el título (con versión en inglés y español), nombre(s) del(los) autor(es),
principal vinculación institucional de cada autor, órgano(s) financiador(es) y dirección postal y
eletrónica de uno de los autores para correspondencia.
Segunda página: iniciada con el título del trabajo, sin referencia a la autoría, y agregar un
resumen de 200 palabras como máximo, con versión en inglés (Abstract) y español
(Resumen). Trabajos en español o inglés deben también presentar resumen en portugués.
Palabras-clave (3 a 5) extraidas del vocabulario DECS (Descritores en Ciências da Saúde/
www.decs.bvs.br) para los resúmenes en portugués y del MESH (Medical Subject Headings/
www.nlm.nih.gov/mesh) para los resúmenes en inglés.
Tercera página: título del trabajo sin referencia a la autoría e inicio del texto con parágrafos alineados
en las márgenes derecha e izquierda (justificados), observando la secuencia: introducción – contener
justificativa y citar los objetivos en el último parágrafo; material y métodos; resultados, discusión y
referencias. Digitar en página independiente los agradecimientos, cuando sean necesarios.
RESÚMENES
Los resúmenes deben ser presentados en las versiones portugués, inglés y español. Deben
exponer sintéticamente el tema, los objetivos, la metodología, los principales resultados y las
conclusiones. No incluir referencias o información personal.
220
Revista Baiana
de Saúde Pública
TABLAS, GRÁFICOS Y FIGURAS
Obligatoriamente, ls archivos de las ilustraciones (cuadros, gráficos, fluxogramas, fotografías,
órganogramas etc.) y tablas deben ser independientes e impresas en hojas separadas; sus páginas
no deben ser numeradas. Estos archivos deben ser compatibles con el procesador de texto “Word
for Windows” (formatos: PICT, TIFF, GIF, BMP).
El número de ilustraciones y tablas debe ser el menor posible. Las ilustraciones coloridas solamente
serán publicadas si la fuente de financiamiento sea especificada por el autor.
En la sección de resultados, las ilustraciones y tablas deben ser enumeradas con algarismos árabes,
por orden de aparecimiento en el texto, y su tipo y número destacados en negrita (e.g. “[...] en la
Tabela 2 las medidas [...]).
En el cuerpo de las tablas, no utilizar lineas verticales ni horizontales; los cuadros deben estar
cerrados.
Los títulos de las ilustraciones y tablas deben ser objetivos, situar al lector sobre el contenido e
informar el alcance geográfico y temporal de los datos (e.g.: Gráfico 2. Número de casos de SIDA
por región geográfica – Brasil – 1986-1997).
Ilustraciones y tablas reproducidas de otras fuentes ya publicadas deben indicar esta condición
después del título.
ÉTICA EN INVESTIGACIÓN
Trabajo resultado de investigación envolviendo seres humanos u otros animales debe venir
acompañado con copia de documento que certifique su aprovación prévia por un Comité de Ética
en Investigaciónes (CEP), además de la referencia en la sección Material y Métodos.
REFERENCIAS
Preferencialmente, cualquier tipo de trabajo encaminado (excepto artículo de revisión) deberá
listar un máximo de 30 fuentes.
Las referencias en el cuerpo del texto deberán ser enumeradas en sobrescrito, consecutivamente,
en el orden en que sean mencionadas la primeira vez en el texto.
221
Las notas explicativas son permitidas, desde que en pequeño número, y deben ser ordenadas por
letras minúsculas en sobrescrito.
Las referencias deben aparecer al final del trabajo, listadas en orden de citación, alineadas apenas a
la izquierda de la página, siguiendo las reglas propuestas por el Comité Internacional de Editores de
Revistas Médicas (Requisitos uniformes para manuscritos presentados a periódicos biomédicos/
Vancouver), disponibles en http://www.icmje.org o www.abec-editores.com.br.
Cuando los autores sean más de seis, indicar apenas los seis primeros, añadiendo la expresión et al.
Ejemplos:
a) LIBRO
Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisibles comunes al hombre y a los animales.
2ª ed. Washington: Organizacion Panamericana de la Salud; 1989.
b) CAPÍTULO DE LIBRO
Almeida JP, Rodriguez TM, Arellano JLP. Exantemas infecciosos infantiles. In: Arellano JLP, Blasco
AC, Sánchez MC, García JEL, Rodríguez FM, Álvarez AM, editores. Guía de autoformación en
enfermedades infecciosas. Madrid: Panamericana; 1996. p. 1155-68.
c) ARTÍCULO
Azevêdo ES, Fortuna CMM, Silva KMC, Sousa MGF, Machado MA, Lima AMVMD, et al. Spread and
diversity of human populations in Bahia, Brazil. Human Biology 1982;54:329-41.
d) TESIS Y DISERTACIÓN
Britto APCR. Infecção pelo HTLV-I/II no Estado da Bahia [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade
Federal da Bahia; 1997.
e) RESUMEN PUBLICADO EN ANALES DE CONGRESO
Santos-Neto L, Muniz-Junqueira I, Tosta CE. Infecção por Plasmodium vivax não apresenta disfunção
endotelial e aumento de fator de necrose tumoral-α (FNT-α) e interleucina-1β (IL-1β). In: Anais do
30º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Salvador, Bahia; 1994. p. 272.
f) DOCUMENTOS EXTRAIDOS DE SITIOS DE LA INTERNET
Autores o sigla y/o nombre de la institución principal. Título del documento o artículo. Extraido de
[sitio eletrónico], consultado en [fecha]. Ejemplo:
222
Revista Baiana
de Saúde Pública
COREME, Comissão de Residência Médica do Hospital Universitário Professor Edgard Santos
(HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Regimento Interno da COREME. Extraído de
[http://www.hupes.ufba.br/coreme], acesso em [20 de setembro de 2001].
No incluir en las Referencias material no publicado o información personal. En estos casos, indicar
en el texto: (i) Antunes Filho FF, Costa SD: datos no publicados; o (ii) Silva JA: comunicación
personal, 1997. Sin embargo, si el trabajo citado es acepto para publicación, incluirlo entre las
referencias, citando los registros de identificación necesarios (autores, título del trabajo o libro y
periódico o editora), seguido de la expresión latina In press y el año.
Cuando el trabajo encaminado para publicación tenga la forma de relato de investigación
epidemiológica, relato de hecho histórico, comunicación, resumen de trabajo final de curso de
postgraduación, relatórios técnicos, reseña bibliográfica y carta al editor, el(los) autor(es) debe(n)
utilizar lenguaje objetiva y concisa, con informaciones introductorias cortas y precisas, delimitando
el problema o la cuestión objeto de la investigación. Seguir las orientaciones para referencias,
ilustraciones y tablas.
Las contribuiciones encaminadas a los editores y revisores, solo serán aceptadas para
apreciación si atienden las normas de la revista.
Endereço para remessa de trabalho:
Revista Baiana de Saúde Pública
Escola da Saúde Pública Prof. Francisco Peixoto
de Magalhães Netto
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Revista Baiana
de Saúde Pública
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SUPERINTENDÊNCIA DE RECURSOS HUMANOS E EDUCAÇÃO EM SAÚDE - SUPERH
ESCOLA ESTADUAL DE SAÚDE PÚBLICA PROF. FRANCISCO PEIXOTO DE MAGALHÃES NETTO - EESP
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