UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
SHREK, DO CONTO AO FILME:
um “reino” não tão distante.
EDVÂNEA MARIA DA SILVA
João Pessoa - PB
2007
EDVÂNEA MARIA DA SILVA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA E CULTURA
LINHA DE PESQUISA: LEITURAS DO TEXTO LITERÁRIO
SHREK, DO CONTO AO FILME:
um “reino” não tão distante.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Colegiado do
Programa de Pós-graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Literatura e Cultura
Orientadora: Profª Drª Genilda Azerêdo
João Pessoa - PB
2007
iv
v
Os contos de fadas são verdadeiros.
Ítalo Calvino
vi
...
Muitos cavaleiros falharam ao tentar libertála da prisão.Ela ficou aguardando no quarto
mais alto da mais alta torre por seu verdadeiro
amor e pelo beijo dele.
Como se isso acontecesse.
Quanta...
“Minina, pára de ler. Vai estudar!” Eu tinha 12 anos e essa era/ é a voz de
minha mãe, Marinalva Augusta, a quem, ao longo desses anos, em alguns momentos eu
(des-) obedeci.
A Marinete Vasconcelos, minha tia-fiandeira, que despertou em mim o prazer
em ouvir/ ler o conto maravilhoso.
Aos meus irmãos e sobrinhos, ótimos espectadores-torcedores.
Aos meus alunos, co-responsáveis por meu constante aprendizado.
A Adriana Paiva, Andréa Bühler, Carol Araújo, Ednalva Silva, Fanka Santos,
Gilvan de Melo, Jacinto Santos, Kátia Simone, Luis Diniz, Marcos de Andrade, Mário
Sérgio, Nivaldo Tenório, Rosângela da Silva, Rosanne Bezerra e Zonda (Geyzon Dantas),
amigos generosos que ouviram/ leram essa história (Dissertação) quando ela, muitas vezes,
não passava de uma narrativa tão tão distante.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, especialmente, à Profª Drª Genilda Azerêdo, minha orientadora, pelo
constante incentivo, sensibilidade, guiando-me, serenamente, pelo reino da Literatura e do
Cinema nos momentos de maior inquietação em minha pesquisa.
A Lúcia Gaspar, da Biblioteca Central Blanche Knopf da Fundação Joaquim
Nabuco.
E, é claro, a ele, Shrek, esse ogro irreverente que não apenas reforçou o meu
encantamento pelos contos de fadas, mas também estreitou a minha relação com a Sétima
Arte, o que tem contribuído para a minha prática em sala de aula.
...meus sinceros agradecimentos e até a próxima adaptação!
vii
Resumo
A presente dissertação tem como objetivo investigar a crítica à sociedade contemporânea
presente no espaço social do conto Shrek! (2001), de William Steig, e do filme Shrek 2
(2004), adaptado por Andrew Adamson (DreamWorks). Para tal, mesclamos reflexões
acerca do contexto sócio-cultural em que livro e filme foram produzidos com análise
intertextual. Observamos ainda como autor e cineasta utilizam-se da paródia aos contos
de fadas tradicionais não só para confirmar a perenidade dessas narrativas, mas também
para nos proporcionar uma leitura crítica de nossa sociedade. Nesse sentido, a inserção
dos símbolos do poder capitalista na construção do espaço social da adaptação fílmica é
um recurso eficaz, uma vez que amplia os significados do texto literário.
Palavras-chave: Shrek. Contos de fada. Paródia. Adaptação fílmica. Espaço social
viii
Abstract
The present dissertation aims at investigating how our contemporary society is criticized
through social space in Shrek! (2001), a fairy tale by William Steig, and the movie Shrek 2
(2004), adapted by Andrew Adamson (DreamWorks). For this purpose we mixed
reflections about the socio-cultural context in which the book and the movie have been
produced with an intertextual analysis. We also observed how the author and the director
make parodies of the traditional fairy tales not only to confirm the perennial property of
these narratives, but also to provide readers and spectators with a critical reading of our
society. In this sense, the insertion of symbols revealing of capitalist power in the
construction of the filmic social space constitutes an effective resource once it enlarges
the meanings of the literary text.
Key-words: Shrek. Fairy tales. Parody. Filmic adaptation. Social space.
ix
Sumário
1 – Era uma vez um projeto de pesquisa... (Introdução)
10
2 – No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve história da boa
idade dos contos de fadas.
14
2.1 - No reino de Steig e Andrews: a história do moderno conto de fadas na
literatura e no cinema.
3 – Literatura e
Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações.
27
38
3.1 –- Do Buraco negro ao castelo maluco: o herói moderno desnuda o espaço social
do conto Shrek!, de William Steig.
52
3.2 – Far Far Away: uma alegoria da sociedade contemporânea.
4 – De Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante
4.1 – Far Far Away: o não-lugar é o melhor lugar.
5–
69
91
108
E eles viverão horríveis ( e felizes) até a próxima adaptação...
(Conclusão)
120
6 – Créditos finais (Referências)
125
10
1 - Era uma vez um projeto de pesquisa... (Introdução)
A experiência que anda de boca em boca é a fonte
onde beberam todos os narradores.
Walter Benjamin
Minha gente, se acomode,
que agora eu vou contar
uma história bem bonita
pra móde vos entreter,
pra móde vos agradar.
Quando a gente fala assim
e começa: “era uma vez”,
não tem quem não se interesse,
nem quem não queira escutar.
A criançada se achega
e gente grande com estresse
que foi menino também
se aquieta, vem, sossega,
senta ou deita, se aconchega,
se prepara pra sonhar.
E então tudo é possível
e se pode acreditar
quando se é bom ouvinte;
tudo pode ser verdade
e tudo se pode inventar.
Ouçam a história seguinte:1
[...]
1
Uma delirante confusão fabulística, versos de Maria Luiza Newlands Silveira para Escola de Samba Imperatriz
Leopoldinense, Carnaval de 2005. Disponível em http://liesa.globo.com/2007/por/ 18-outroscarnavais /carnaval05
/ enredos /imperatriz/imperatriz_meio.htm. Acesso 13 set. 2006.
11
A “contação” de histórias, quer seja do texto literário, quer seja do texto
fílmico, costuma exigir todo um ritual. No caso do texto verbal, é necessária a presença
do (a) narrador (a), de um público ouvinte, de um local adequado (quarto, sala, cozinha,
calçada, quintal). Com o texto fílmico não é (muito) diferente: espectadores, narrador
cinemático (às vezes, aliado a uma voz-over ou off), sala de projeção e, é claro, em ambos
os casos, a história a ser contada.
Tecida para “prender” o leitor/ espectador, uma narrativa como o conto de
fada, a partir do Era uma vez, cria expectativas em seu público que deseja conhecer seus
personagens (geralmente, príncipes e princesas), vilões (bruxas e ogros), conflitos e reinos;
torcendo, para que seu (sua) herói/ heroína seja venturoso (a) em sua luta e que tudo
termine com um “feliz (es) para sempre”.
Situação análoga ocorre em um projeto de pesquisa. Após a introdução de
“praxe”, Este projeto se propõe a analisar as relações entre ..., o narrador-pesquisador deseja contar
mais sobre o seu protagonista (objeto de estudo) e como ele se relaciona no reino (linha
de pesquisa) por onde transita. Definidas essas questões, o narrador inicia uma narrativa
que busca convencer o leitor de que essa “história” (dissertação) pode ser tão reveladora
como um conto de fada.
Nesse sentido, “Leituras do texto literário” é uma linha de pesquisa que nos
permite investigar de que forma a Literatura dialoga com outras áreas, como o Cinema. O
diálogo/ namoro entre as linguagens verbal e audiovisual se dá através do viés da
adaptação, que, no caso específico dessa pesquisa, será considerada como diálogo ativo
entre filme e texto-fonte.
Considerando que o texto literário e o texto fílmico, quando narrativas
lineares, possuem os mesmos elementos constituintes -- narrador, personagem, espaço e
tempo --, dentre esses elementos, elegemos como tópico de análise o espaço social do
filme (o reino Tão Tão Distante), uma vez que este cenário, inexistente no texto literário,
amplia os significados do texto adaptado.
Inconscientemente, talvez seduzidos pelas características dos contos de fadas
em que a narrativa, geralmente, se passa num reino distante, numa época imprecisa e com
personagens nem sempre nomeados, optamos pela não rigidez na estrutura dissertativa,
situando-nos num vaivém entre teoria, análise e interpretação, não necessariamente nessa
ordem.
12
O texto escolhido não poderia ser outro que não um conto de fadas, ainda que
moderno. Trata-se da animação Shrek 2, de Andrews Adamson, uma adaptação do conto
de fada Shrek!, de William Steig. Ao longo deste trabalho, mesclamos reflexões acerca do
contexto sócio-cultural em que livro e filme foram produzidos com análise intertextual,
bem como uma análise paratextual; nesse caso, a relação que o texto mantém com o seu
título.
Na história do ogro-herói, Steig e Adamson, na literatura e no cinema,
utilizam-se da paródia não só para homenagear essas narrativas (infantis, juvenis, adultas),
mas também para criticar a sociedade em que vivemos. Vale ressaltar que livro e filme não
se digladiam. A adaptação, ainda que de maneira indireta, tem o mérito de levar o público
em geral a ter acesso ao texto literário.
A fim de melhor discutir essas questões, dividimos nosso trabalho em três
capítulos: 2 – No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve história da boa idade
dos contos de fadas; 3 – Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações; 4 – De
Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante.
No primeiro capítulo, analisamos a importância dos “primeiros” narradores
para a perenidade dos contos de fadas e das fábulas, bem como a relação dessas narrativas
com o contexto sócio-cultural e econômico em que foram adaptadas. Também
observamos como a história do ogro, quer seja na literatura, quer seja no cinema,
confirma a boa idade dessas narrativas tradicionais, uma vez que, embora às avessas,
recorrem à sua morfologia; falando, como fizeram essas histórias, a públicos diferentes.
O segundo capítulo trata das questões envolvidas no processo de adaptação de
um texto literário, bem como de que maneira certos elementos constituintes da narrativa
são traduzidos e/ ou dilatados na transposição do texto à tela. Discutimos, também, a
relevância do nome e da “figura” do protagonista e por que Shrek! e Shrek 2 são textos
paródicos e satíricos.
Ainda nesse capítulo, procuramos analisar o personagem ogro, à luz da
gramática do monstruoso, e sua relação com o espaço social do texto literário. Quanto ao
texto fílmico, entendemos o espaço social como representação da sociedade
contemporânea. Nesse sentido, os estudos de Adorno e Horkheimer acerca da Indústria
Cultural são uma contribuição valiosa.
13
O terceiro capítulo propõe um cotejo entre o texto literário e o fílmico
procurando diferenciar o que é análise e o que é interpretação. Como Shrek 2 é uma
animação, um parêntese sobre 3D2 precede a análise do filme a fim de esclarecer como os
recursos técnicos utilizados são relevantes para a interpretação do texto adaptado. São
colocadas, também, reflexões sobre as intervenções que o texto literário sofreu; como
exemplo, citamos a mudança no perfil psicológico do protagonista já no primeiro filme,
Shrek. Esse fato é importante para o conflito que o personagem terá com o espaço social
em Shrek 2.
A leitura que fazemos desse conflito leva-nos a interpretar o espaço social da
narrativa fílmica como um não-lugar do personagem. Tal interpretação ganha espaço a
partir de estudos da Geografia (humanística) e da Antropologia.
Com este trabalho, esperamos poder comprovar que a inserção dos símbolos
do poder capitalista na construção do espaço social da adaptação fílmica, Shrek 2, amplia
os significados do conto de fadas Shrek!, mas também que a linguagem fílmica utilizada
na adaptação de Shrek 2, através do recurso da paródia, promove a reflexão crítica acerca
da homogeneização da cultura na formação do modo de vida contemporâneo.
Esses argumentos (outrora hipóteses), a nosso ver, justificam a adaptação
desse moderno conto de fada. Ademais, esta história (a do ogro, não a nossa) pode
despertar o interesse naqueles que, pouco afeitos aos contos de fada, ainda não conhecem
os textos de Steig e de Adamson.
2
Terceira dimensão.
14
2 - No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve
história da boa idade dos contos de fadas.
Et conter pour conter me semble peu d'affaire3
La Fontaine
O ato de contar histórias começou nos primórdios da humanidade, percorreu
o trajeto da oralidade à escritura; das lavanderias e salas de fiar às ruelles4; do feminino ao
masculino. Em sua forma oral, coube às mulheres o papel de fiandeiras dos contos
maravilhosos5. Para Liborel (2005, p. 370), as fiandeiras “alimentam em nós a inesgotável
compreensão do desenrolar de toda existência, enquadrada pelo nascimento e pela
morte”. Travestidas de Sherazades, avós, amas e criadas teciam histórias sobre reinos
distantes, príncipes encantados, fadas e/ou bruxas, profecias, obstáculos, ameaças,
auxiliares, dentre outras funções dos personagens apresentadas na Morfologia do conto
maravilhoso (PROPP, 1984).
Essas histórias, contos de fadas ou contos maravilhosos, resistiram por toda
Idade Média e, como a teoria da onda, metáfora para disseminação dos contos, estão
presentes em todas as culturas.
3
E contar por contar me parece algo irrelevante. (Tradução nossa)
Na segunda metade do século XVII, a marquesa de Rambouillet, por achar rústica demais a corte de Luís XIII,
passou a receber seus convidados em sua alcova, deitada em seu lit parade (leito de gala), enquanto aqueles se
sentavam na ruelle -- “ruela” (espaço entre a cama e a parede) e contavam-lhe histórias reais e imaginárias [...] Cf.
WARNER, 1999, p. 76.
5 Vladimir Propp prefere a expressão “conto maravilhoso” a “conto de fada”, mas optamos por usar a expressão
“conto de fada”, uma vez que, apesar de pertencerem ao universo do maravilhoso, ambas as narrativas “apresentam
diferenças essenciais, quando analisadas em função da problemática que lhes serve de fundamento. Grosso modo,
pode-se dizer que o conto maravilhoso tem raízes orientais e gira em torno de uma problemática material/social/sensorial – a
busca de riquezas; a conquista de poder; a satisfação do corpo etc. -, ligada basicamente à realização socioeconômica
do indivíduo em seu meio. Ex: Aladim e a lâmpada maravilhosa; O Gato de Botas; O Pescador e o Gênio; Simbad, o Marujo.
[...] Quanto ao conto de fadas de raízes celtas, gira em torno de uma problemática espiritual/ética/existencial, ligada à
realização interior do indivíduo, basicamente por intermédio do Amor. [...] Ex: Rapunzel, O Pássaro Azul, A Bela
Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela e a Fera. Cf. COELHO, 2003, p. 79.
4
15
Acerca da propagação dos contos de fadas, Warner (p. 21) observa que
Os teóricos de hoje em dia preferem visualizar modelos de disseminação dos
contos de fadas tomando emprestadas metáforas da ciência: a teoria da onda
oferece a imagem de uma pedra atirada num lago, provocando sobre a
superfície círculos que podem se encontrar com outros círculos, dessa forma se
unindo por reverberação com outras pedras, lançadas em outros oceanos da
história.
Para Benjamin (p. 62), “Narrar histórias é sempre a arte de as continuar
contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas”; em outras palavras,
cabe à memória a perenidade dessas histórias. Imaginar uma narrativa contada às crianças
e/ou aos adultos que será transmitida aos seus descendentes, os quais darão continuidade
ao ofício da fiandeira, herdado de seus pais, avós e tios, num incansável jogo de “atirar
pedras no lago”, é entender a teoria da onda, metáfora emprestada da Física. Nesse
sentido, a transmissão dos contos de fada às gerações vindouras, muitos deles adaptados a
uma nova audiência por razões que discutiremos mais adiante, evita que as “ondas”
(histórias) percam sua “força” ao se afastar dos “círculos concêntricos” (época/ lugar em
que foram narradas).
Em sua forma escrita, essas histórias foram coletadas (e adaptadas) por
Perrault (séc. XVII), Irmãos Grimm (séc. XVIII) e Andersen (séc. XIX). De acordo com
Warner (1999, p. 43), os contos maravilhosos “freqüentemente eram transmitidos por
mulheres no ambiente íntimo ou doméstico”. Dois argumentos corroboram sua assertiva:
As mulheres que inauguraram em Paris a moda de escrever contos de fadas, no
final do século XVIII, afirmaram consistentemente que haviam sido amas e
criadas que lhes contaram as histórias que relatavam [...] A coleção de Perrault,
datada de 1697, tinha como título alternativo Contes de ma Mère l’Oye6; num
prefácio anterior para o conto “Peau d’Ane”7, Perrault também situou sua obra
na tradição milésia de sátira amorosa, como a fábula de “Eros e Psique”, mas
acrescentou que transmitia “uma história totalmente inventada e um conto de
velhas senhoras”, tal como as amas os contavam desde tempos imemoriais para
as crianças (p. 43).
Em sua forma mais bruta, o conteúdo desses contos assemelha-se ao dos
mexericos. Estes surgiam metamorfoseados nos contos de fadas que eram ouvidos pelas
crianças, independente de sua classe social. Todavia, ambos os textos tendiam “a ser
praticados pelos membros menos favorecidos da sociedade” (WARNER, 1999, p. 76).
Apesar do epíteto pejorativo, o mexerico
6
7
Contos da Mamãe Gansa.
Pele de Asno.
16
passa informações vitais sobre os valores e crenças da comunidade em que
crescem – ensina-lhes em quem se deve confiar, o que é considerado louvável,
o que é condenado, fala de alianças e inimizades, esperanças e perigos. [...]
Paradoxalmente, o mexerico era um dos campos de batalha onde elas [as
mulheres] combatiam seus inimigos, uma das armas que empunhavam
(WARNER, p. 76).
A importação do ofício das fiandeiras (leiam-se narradoras/ mexeriqueiras)
pelos freqüentadores das ruelles promoveu os mexericos a histórias lúdicas e pedagógicas.
E, embora algumas características se mantivessem, como a do noivo predatório, “as
histórias eram elaboradas para divertir e instruir; os relacionamentos eram definidos e
refinados através de diálogos de intensidade íntima, mas de decoro imaculado”
(WARNER, p. 77). A (re-) elaboração desses contos implica movimento, uma vez que “O
texto oral pode ser diferente a cada vez que for narrado, pois a recriação e a invenção
fazem parte dele” (CALDIN, 2002, p. 4).
Capinha Vermelha, versão oral de Chapeuzinho vermelho, remonta a, pelo menos,
seis séculos antes da adaptação de Perrault para a linguagem escrita. Os elementos básicos
dessa narrativa, menina com capuz vermelho e lobo mau que devora criancinhas, estão
presentes em várias versões; dentre elas, há aquelas que exacerbam a caracterização do
lobo.
Vale ressaltar que, enquanto a escrita não vinha, a oralidade cumpria o seu
papel de salvaguardar a memória do povo e de preservar o mito (CALDIN, p. 2). O
registro desses contos folclóricos permite-nos compreender os costumes, as tradições e a
realidade sócio-econômica de uma determinada época; o que não quer dizer que essas
narrativas estejam senis. Antes, gozam de uma jovialidade invejável porque lidam “com
17
conteúdos da sabedoria popular, com conteúdos essenciais da condição humana”
(ABRAMOVICH apud CALDIN, p. 9).
“Existirmos: a que será que se destina?”8 Segundo Bettelheim (p. 59), os
contos de fadas respondem a questões eternas como essa. A esse respeito, Coelho é
categórica: “A verdade é que, desde sempre, o homem preocupou-se com o enigma das
origens e, não podendo explicá-lo pela lógica, projeta-o no mistério” (p. 65). Para
Benjamin (1980, p. 69), o conto de fadas “ainda hoje é primeiro conselheiro das crianças”
e observa que isso ocorre “porque foi outrora o primeiro da humanidade”; ademais,
“permanece vivo, em segredo, na narrativa”.
Darnton (1986, p. 26), por sua vez, vê os contos de fadas como documentos
históricos. Em O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa, explica
que os contos possuem uma origem remota e “sofreram diferentes transformações, em
diferentes tradições culturais”. Contrário ao pensamento de Bettelheim, Darnton observa
que essas histórias não expressam as imutáveis operações do ser interno do homem”; o
que elas fazem é sugerir que “as próprias mentalidades mudaram”. A fim de ilustrar seu
pensamento, Darnton comenta que, à época do Ancien Régime9, devido à situação de
miséria em que viviam os camponeses, era comum os pais abandonarem seus filhos nas
florestas. Esse fato está presente no tradicional conto de fada João e Maria.
Os camponeses, no início da França moderna, habitavam um mundo de
madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções brutais,
tanto aparentes como reprimidas. A condição humana mudou tanto, desde
então, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas realmente
desagradáveis, grosseiras e curtas. É por isso que precisamos reler Mamãe
Ganso. (DARNTON, 47)
A França, assim como outros países desenvolvidos, vive uma nova era. Mas, o
ser humano não. A nosso ver, a (re-) leitura de O Pequeno Polegar, um dos contos da
Mamãe Gansa, permite-nos não só compreender o contexto social da França do séc.
XVII - “período em que a peste e a fome dizimavam a população”, “os pobres comiam
carniça atirada nas ruas por curtidores” e “as mães “expunham” os bebês que não podiam
alimentar, para eles adoecerem e morrerem” (DARNTON, p. 49), mas também
comprovar a atualidade dos contos de fadas, uma vez que essas histórias transmitem uma
verdade importante, desagradável e, acrescentamos, atemporal: “a pobreza e a privação
8
9
Primeiro verso da canção Cajuína (1979), de Caetano Veloso.
Do fr. Antigo Regime, trata-se do período histórico anterior à Revolução Francesa.
18
não melhoram o caráter do homem, mas, sim, o tornam mais egoísta e menos sensível aos
sofrimentos dos outros, e assim sujeito a empreender feitos malvados” (BETTELHEIM,
p. 195). Vejamos:
O lobo e o cordeiro
A razão do mais forte é a que vence no final
(nem sempre o Bem derrota o Mal).
Um cordeiro a sede matava
nas águas limpas de um regato.
Eis que se avista um lobo que por lá passava
em forçado jejum, aventureiro inato,
e lhe diz irritado: - "Que ousadia
a tua, de turvar, em pleno dia,
a água que bebo! Hei de castigar-te!"
- "Majestade, permiti-me um aparte" diz o cordeiro. - "Vede
que estou matando a sede
água a jusante,
bem uns vinte passos adiante
de onde vos encontrais. Assim, por conseguinte,
para mim seria impossível
cometer tão grosseiro acinte."
- "Mas turvas, e ainda mais horrível
foi que falaste mal de mim no ano passado.
- "Mas como poderia" - pergunta assustado
o cordeiro -, "se eu não era nascido?"
- "Ah, não? Então deve ter sido
teu irmão." - "Peço-vos perdão
mais uma vez, mas deve ser engano,
pois eu não tenho mano."
- "Então, algum parente: teus tios, teus pais. . .
Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais;
por isso, hei de vingar-me" - e o leva até o recesso
da mata, onde o esquarteja e come sem processo. (La Fontaine)10
Crescemos (ou será que voltamos à infância?) com essas narrativas. Quem não
conhece a história de uma linda garota, maltratada por sua madrasta e filhas, que recebe a
ajuda de sua fada madrinha para ir ao baile real, onde conhece o príncipe, que a tira do
borralho, e os dois vivem felizes para sempre? Ou a história do patinho que, por ser
grande e feio, causava vergonha aos seus irmãos? E, um dia, quando nadava, passou por
dois cisnes que não o enxotaram. O “patinho” estranhou tal atitude. Viu sua imagem
refletida no lago e descobriu que havia se transformado num belo cisne, causando
admiração, inclusive, em seus “irmãos”.
10
Cf. http://www.metaforas.com.br/infantis/oloboeocordeiro.htm
19
Ambas as narrativas encerram o elemento mágico de forma natural. O Patinho
Feio, de Hans Christian Andersen (1805-1875), contudo, aproxima-se mais da fábula, uma
vez que apresenta, como personagens, animais que falam, pensam e sofrem como se
fossem seres humanos. Além do mais, a moral desse conto, “as aparências enganam”,
remete-nos à fábula O Leão e o Rato, de Esopo11 reescrita, no século XVII, por La
Fontaine. Nessa fábula, o leão “poupa” a vida do ratinho que, apesar do desdém do rei da
floresta, promete retribuir tal bondade. Não demora muito e o rato salva o leão das redes
dos caçadores. Contos maravilhosos ou fábulas, essas narrativas têm desempenhado um
papel lúdico-pedagógico, desde tempos imemoriais, que começou com a oralidade e
chegou ao texto escrito.
Observando os momentos de mutações e a crise do Ensino que aportou há um século
em nossa sociedade, Coelho (2003, p. 121, grifo da autora) chama a atenção para algo
muito mais profundo que as “metodologias, estratégias didáticas ou instrumental de
transmissão de informações [...]: trata-se, como sabemos, de uma mudança de visão de mundo
ou de paradigmas”. Os contos de fadas têm um papel fundamental nessa tarefa, pois lidam
com dois importantes ingredientes: a existência humana e a palavra. O primeiro é sua
matéria-prima; o segundo, seu meio transmissor (p. 122).
Apesar de todos os avanços tecnológicos e de diferentes áreas de pesquisas, o
homem busca o EU, mas “consciente de sua relação substancial com o OUTRO”
(COELHO, p. 122). Em seu papel pedagógico, os contos de fadas possibilitam ao
homem ordenar o mundo, harmonizando passado e presente. (p. 121). Além disso, a
consciência de si mesmo e do outro, do passado e do presente, ou seja, a apreensão do
real, é possível graças à linguagem simbólica dessas narrativas.
No último capítulo de O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos (2003, p. 125126), Coelho conta-nos “Uma narrativa ancestral”. Trata-se da história de um médico que
foi designado pelo imperador Cosroe Anchiran para encontrar ervas milagrosas em certas
montanhas da Índia. Quase desistindo de sua busca, o médico encontra um sábio que lhe
dá o seguinte ensinamento:
A história que ouviste é verdadeira. Mas deves apreender seu sentido real, velado por
símbolos. As montanhas são os sábios. As ervas milagrosas são suas palavras. Os
mortos são os ignorantes. Os sábios transformam a mente dos ignorantes, com seus
11
Fabulista grego que viveu por volta do século VI a.C. foi o primeiro criador/ divulgador de fábulas, “seguido em
Roma pelo grande fabulista Fedro (séc. I d. C.)”. Cf. COELHO, 2003, p. 133.
20
conceitos e sua sabedoria, como se estivessem ressuscitando os mortos. A sabedoria dá
imortalidade aos que a possuem e a transmitem aos outros.
Assim como faz a fábula, esse conto de fada, através do lúdico, veicula o
pedagógico, enfatizado pela moral que o encerra. Longe de se aposentar, fábula e conto
gozam de uma boa idade que nasceu adulta, já foi criança e hoje, indiferente à faixa etária,
transita pelo universo do humano. Isso posto, convém definir esses contos fabulosos e
sua morfologia; (re-) conhecer seus mais famosos narradores; cabe, ainda, o
reconhecimento do conto de fadas como gênero de protesto.
No que diz respeito à sua nomenclatura, embora contenham o substantivo
“fada”, muitos contos não apresentam essa personagem. Nesse caso, o vocábulo deve ser
entendido no sentido etimológico da palavra a fim de caracterizar essas narrativas.
Segundo Cunha, A. (2001, p. 347), fada vem do “lat. fāta, pl. de fātum ‘destino’”. Para
Warner (p. 49, grifo nosso),
Os contos de fadas são histórias que, nas mais antigas menções de sua
existência, incluem o círculo de ouvintes, o público; enquanto apontam para
possíveis destinos, possíveis finais felizes, envolvem com sucesso os ouvintes ou
leitores ao levá-los a se identificarem com os protagonistas, com seus
infortúnios e triunfos.
Era uma vez, uma pequena meiga menina da qual todo mundo passava a gostar assim que
a conhecia. Mas ninguém a amava tanto quanto sua vovozinha, que não sabia mais o que fazer para
agradá-la. Certo dia deu a ela um chapeuzinho de veludo vermelho. [...] Um dia sua Mãe lhe chamou e
disse:
- Chapeuzinho, leve este bolo e essa garrafa de vinho para a vovozinha, pois ela está doente
e fraca, e isto lhe fará muito bem. Vá logo. [...] Não se desvie da estrada, senão você poderá cair, quebrar
a garrafa e estragar o bolo, e assim a pobre vovozinha não receberá nada. [...] "Se eu levar um ramalhete
de flores para a vovó, ela ficará muito contente; ainda é bem cedo e eu chegarei a tempo." [...] “Nunca
mais sairei da estrada e penetrarei na floresta, quando isso for proibido por minha mãe”. (GRIMM,
1987, p. 4 et seq.)
Chapeuzinho vermelho é uma das muitas histórias que, apesar de não apresentar
uma fada, aponta um destino, um final feliz. Contudo, o destino desses enredos, no
processo de escritura, nem sempre percorreu um mesmo caminho. Em “O condão
cognitivo: passe de mágica como metonímia” (2005, p. 7), Rocha observa que Cinderela, de
21
Perrault, baseado no conto popular A Gata Borralheira, possui uma versão diferente da dos
Irmãos Grimm:
Na Cinderela de Charles Perrault, uma fada madrinha aparece para ajudar a
moça ir ao baile. Com sua varinha, a fada transforma as pobres roupas da
jovem num belo vestido, seus sapatos em sapatos de cristal, uma abóbora em
carruagem, dois ratos em cavalos e um cachorro em cocheiro.
No conto dos Irmãos Grimm, dois passes de mágica chamam atenção. Em um
deles, a madrasta lança desafios a Cinderela. Se cumpridos, a moça poderia ir ao
baile no palácio. Primeiramente, a madrasta manda a enteada catar, em duas
horas, um tacho de lentilhas despejado nas cinzas do fogão. Cinderela evoca os
pássaros para lhe ajudar: “Mansas pombinhas e rolinhas! Passarinhos do céu
inteiro! Venham me ajudar a catar lentilhas! As boas vão para o tacho! As ruins
para o seu papo!”
Mais do que o resgate da literatura guardada na memória popular,
entretenimento ou simples alteração do meio mágico12 - substituição da fada madrinha
pelas intervenções mágicas dos pássaros – a coletânea dessas narrativas pelos Irmãos
Grimm atendia a um contexto político-social. De acordo com Volobuef (1993, p. 103),
“na Alemanha ocupada pelos exércitos de Napoleão havia um sentido nacionalista e de
resistência ao poder estrangeiro na busca e preservação das tradições populares
(representantes do espírito da nação alemã)”. Vale ressaltar ainda que, influenciados pelo
ideário cristão, os Grimm lançaram mão de uma estratégia já utilizada por Perrault:
suavizaram a crueldade dos contos de fadas.
Embora não saibamos que versão (oral) influenciou Perrault na escritura de
Chapeuzinho Vermelho -- há versões em que “o lobo faz Capinha Vermelha comer a carne
da avó e beber seu sangue, apesar de vozes advertirem-na do contrário” (BETTELHEIM,
1980, 205) – e mesmo tendo excluído o canibalismo de Capinha Vermelha, sua
Chapeuzinho tem um final infeliz: “é engolida e vai para dentro do corpo do lobo junto
com a avó, e de lá não volta a emergir” (WARNER, p. 214). Coube aos Grimm
introduzirem um caçador que teria a tarefa de abrir a barriga do lobo e salvar a vovó e sua
netinha. Ao mudar o curso da história, Jacob e Wilhelm evitam ferir “os valores culturais
e morais” da família classe média alemã do séc. XVIII (VOLOBUEF, p. 104).
12
O meio mágico é um auxiliar do herói e corresponde a uma das funções do personagem. Cf. PROPP, 1984, p. 44.
22
Como as amas negras no “Abrasileiramento da língua portuguesa”13, Perrault e
os Grimm tiraram as espinhas e as durezas de Chapeuzinho vermelho. Além do mais, o final
incomum para a doce capuchinho e sua avó corresponderia à parte da epígrafe deste
capítulo (contar por contar), se Perrault, contemporâneo de La Fontaine, não acreditasse
ser essa uma tarefa de muita seriedade e relevância. Ao sair impune, o lobo de Perrault dá
margem a outras interpretações.
Não é incomum descobrir em Perrault que suas moralités introduzem uma
ironia: aqui o lobo já não representa o ambiente selvagem, mas sim os enganos
da cidade e dos homens que nela exercem a autoridade. Ele abertamente vira a
identidade costumeira do lobo de cabeça para baixo e o situa próximo de si, em
vez de distante e como Outro (WARNER, p. 215).
Embora suas narrativas divertissem a aristocracia francesa de Luís XIV, a
biografia de Charles Perrault revela o seu engajamento na “Querela dos Antigos e
Modernos”, polêmica cujo objetivo era a valorização da língua francesa como oficial em
detrimento do latim (COELHO, p. 75). Um século mais tarde, os Grimm trilharam um
caminho parecido ao registrar, em língua oficial alemã, as narrativas ancestrais “colhidas”
ao pé do fogo (COELHO, p. 99).
Benjamin apresenta um argumento que, a nosso ver, também justifica a
suavização/ re-elaboração dos contos de fadas. Para o autor de “O narrador. Observações
sobre a obra de Nikolai Leskow” (p. 62-63),
A narrativa [...] é ela própria algo parecido a uma forma de comunicação. Não
pretende transmitir o puro “em si” da coisa, como uma informação ou um
relatório. Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez
dela. É assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como a tigela de
barro a marca das mãos do oleiro.
Se não faltaram razões a Perrault e aos Grimm que influenciassem na (re-)
escritura dessas histórias, com Andersen não foi diferente. Segundo Coelho (p. 24), no
início do séc. XIX, a Dinamarca viveu sob o domínio napoleônico e o progresso
industrial aprofundou o fosso entre a abundância e a miséria. Isso se refletiu em suas
histórias que carregam um tom nostálgico com finais, geralmente, tristes ou trágicos. O
que não impediu, contudo, que o autor passasse à história “como a primeira voz
autenticamente “romântica” a contar história para as crianças e a sugerir-lhes padrões de
13
Parte do título de um excerto de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, adaptado para a prova de Língua
Portuguesa da UFPE-UFRPE/2001. Embora não tenhamos encontrado a expressão (exata) em Freyre, a nosso ver,
ela corresponde ao pensamento do Mestre de Apipucos. Cf. FREYRE, 2004, p. 413-415.
23
comportamento a serem adotados pela nova sociedade que naquele momento se
organizava” (p. 25).
Por outro lado, suas histórias (contos ou fábulas) “mostram à saciedade as
injustiças que estão na base da sociedade, mas, ao mesmo tempo, oferecem o caminho
para neutralizá-las: a fé religiosa” (p. 25). Dentre os valores ideológicos, identificados na
obra de Andersen e citados por Coelho, destacamos “a valorização do indivíduo por suas
qualidades próprias e não por seus privilégios ou atributos sociais (O Patinho Feio, A
Pequena Vendedora de Fósforos)” (p. 25).
Essas considerações iniciais buscam desencorajar qualquer tentativa de rotular
o conto de fadas como uma narrativa simplória que começa com um Era uma vez, termina
com um felizes para sempre e no meio aparecem proibições e auxiliares mágicos ao herói. O conto
de fadas “é falsamente simples” (PITTA, 2002, p. 180). Warner o vê como “um gênero
essencialmente moralizante”, de “disfarce denso” que vai “na contramão da ética
comum” (p. 51). Moralizantes e densas são características que se aplicam, também, às
fábulas.
Por moralizante entendemos infundir idéias sadias como “Os pequenos
amigos podem se revelar grandes aliados”, moral presente na fábula O Leão e o Rato, ou,
como em uma das acepções do verbo moralizar, “conformar aos princípios de uma
determinada moral” (FERREIRA, A., p. 504). A questão é: que moral? Dos dominantes
ou dos dominados? Em O lobo e o cordeiro, La Fontaine encerra a narrativa com “A razão
do mais forte é a que vence no final” ratificando o que diz Coelho (p. 22), acerca de essas
narrativas simbólicas serem “verdadeiros textos cifrados que denunciavam as intrigas, os
desequilíbrios ou as injustiças entre o povo”.
Contemporâneo de Perrault, Jean de La Fontaine resgatou as fábulas não
apenas da memória popular, mas também de “fontes documentais da Antigüidade: Grécia
(Fábulas de Esopo); Roma (Fábulas de Fedro); parábolas bíblicas, coletâneas orientais e
narrativas medievais ou renascentistas” (COELHO, p. 22). Acerca da origem das fábulas,
Lucena e Oliveira (2004, p. 114) afirmam que elas são “tão velhas quanto o próprio
mundo, foram passando de geração em geração, sofrendo interferências impostas pelas
crenças, pelos valores, pelos costumes dos povos dos lugares por onde percorriam [...]”.
Definir a fábula como narrativa curta, alegórica, que tem, geralmente, animais
como protagonistas é reduzir a importância desse gênero literário. Segundo Lucena e
24
Oliveira, a fábula já foi considerada por vários autores como o “estudo da natureza
humana”. La Fontaine (apud Lucena e Oliveira, p. 114) é enfático: “Le fables ne sont pas
ce qu'elles semblent être”14 Essas narrativas “pueris” atravessaram os séculos
denunciando e criticando as injustiças sociais. Elas são, como bem lembram Lucena e
Oliveira, “pequenos repositórios de sabedoria que têm instruído e encantado povos das
mais diversas nações” e atribuem ao seu caráter mitológico a responsabilidade de tirá-las
“do vulgar, do lugar comum” (p. 114).
Era uma vez... Moral da história... Contos de fadas ou fábulas? Mitos. De acordo
com Fiker (2000, p. 39), “o mito se dá originalmente a partir da narrativa oral, não
dispondo em si mesmo de “forma literária”. Esta lhe é dada a posteriori, ao ser escrito ou
anotado”. Assim, sendo filhos da oralidade, os contos de fadas e as fábulas são mitos.
Explicando a origem do termo, Fiker observa que uma das acepções da palavra “mito”
(Do gr, mithos) refere-se a uma “narrativa qualquer” (p. 40). Weinrich (apud Fiker, p. 41)
aponta alguns sinais (a presença de todos não é obrigatória) que caracterizam a narrativa
como mito, dentre eles: sinais situacionais, vários ouvintes reunidos em torno de um
narrador; e sinais textuais persistentes, fórmulas de introdução como “Era uma vez...”15.
Acerca do “parentesco” entre conto de fada e mito – este aqui interpretado
como fábula – Bernadette Bricout (2005, p. 192) observa que ambas as narrativas orais
têm origem na memória coletiva e são contadas “por um grande locutor anônimo de
contornos indecisos”. A inscrição do conto de fada na tradição, contudo, parece revelar as
limitações do narrador. Em outras palavras, o narrador (fiandeira-Sherazade), através de
motivos (Aarne-Thompson) ou das funções dos personagens (Propp) apodera-se do
modelo da tradição oral – foi assim com Perrault, Grimm, Steig e Adamson, conforme
veremos mais adiante – e dá à sua narração uma palavra nova, muitas vezes, em
consonância com o contexto sócio-político-cultural de sua platéia.
O Leão e o Rato, O Lobo e o Cordeiro, Cinderela, Chapeuzinho vermelho - fábulas e
contos de fadas – essas histórias nasceram adultas. De acordo com Mário Corso16, não é
de hoje que o conto de fadas é uma história para todos. Corso cita como exemplo O
Patinho Feio, de Andersen. Trata-se de uma história que não só traduz o desamparo
14
As fábulas não são o que parecem ser (Tradução nossa).
Essas informações são dadas na nota de rodapé. Cf. FIKER, 2000, p. 41.
16
Cf.
Freud
e
as
fadas
Revista
Época,
nº
384,
26/09/2005.
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,ESP889-1654,00.html. Acesso em 05 jul. 2006.
15
Disponível
em
25
infantil, mas também a sensação de insignificância que temos para com o mundo. Se os
contos de fadas hoje têm um forte apelo junto ao público infantil - basta olhar de soslaio
para a variedade de publicações, reedições e releituras destinadas à garotada -, é graças a
uma revisão do conceito de infância.
A partir dos estudos de Ariès, Corsino observa que as mudanças pelas quais a
sociedade passou, tais como “a ascensão da burguesia e o crescente interesse pela
alfabetização” (p. 12), foram fundamentais para a valorização - e por que não dizer
civilização? - da infância. Zipes (apud Abramowicz, 1998) acredita que a civilidade é “a
chave para se compreender o papel que os contos de fadas tiveram na França e sua
importância dinâmica da civilização”.
À época do já citado Ancien Regime, a infância não era vista como uma fase
“claramente distinta da adolescência, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de
vestir e de se comportar” (DARNTON, p. 47). Tal fato acarretava o conhecimento
precoce da vida sexual dos adultos por parte dos seus filhos, uma vez que todos (pessoas
e animais) eram obrigados a dormirem juntos a fim de se aquecerem.
Por civilização, compreendemos o processo pelo qual os elementos culturais
de uma sociedade, leiam-se conhecimentos, técnicas, bens materiais, valores, costumes,
etc, são elaborados, desenvolvidos e aprimorados. Elias (apud Brandão, 2003, p. 2)
entende que “o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos
humanos rumo a uma direção muito específica”.
Nesse sentido, como os contos de fadas poderiam ter “civilizado” a infância?
De acordo Velay-Vallantin (apud Abramowicz, p. 9), o conto era um discurso literário que
tinha por objetivo
nutrir de hábitos, práticas e valores permitindo uma entrada mais fácil na
civilização regida por códigos sociais aristocráticos; é necessário analisar as
narrações como apelos às reivindicações nobres e às novas alianças
socioculturais.
Alcançada a civilidade, os contos de fadas e as fábulas são histórias que não
pereceram com a pós-modernidade, pois, através (ou será apesar?) dos milênios, a
natureza humana continua a mesma. Ademais, para Lyotard (apud Souto, 1998, p. 194) “a
pós-modernidade é a reescrita de traços presentes na própria modernidade, reescrita que
já se encontra em curso na modernidade, e não uma era nova”. Vejamos: A verdadeira
26
história dos três porquinhos (1993), de Jon Sciezka, é contada sob o ponto de vista do lobo,
que acaba reforçando a história “original” contada há três séculos.
Em O fantástico mistério de Feiurinha (1997), Pedro Bandeira não só vai além do
“Felizes para sempre” – as princesas dos contos de fadas estão velhas e rabugentas – mas
também age como seus predecessores: escreve a história de Feiurinha, colhendo-a da
tradição oral. Suas personagens Jerusa e Escritor têm um papel importante nesta peça
teatral: a primeira resgata a figura da fiandeira; a segunda presta uma homenagem a
Perrault, Grimm, Andersen, dentre outros escritores e escritoras.
Em “Hierarquia” (FERNANDES, M., 1973, p. 123), de forma bem humorada,
Millôr revisita a fábula O Leão e o Rato e propõe-nos não só uma outra moral: “AFINAL
NINGUÉM É TÃO INFERIOR ASSIM”; mas também uma submoral: “NEM TÃO
SUPERIOR, POR FALAR NISSO”. A paródia de Millôr humaniza-nos e sacraliza o
texto de La Fontaine. Por humanização, Candido (1989, p. 117) entende
o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade e penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a
sociedade, o semelhante.
A paródia aos contos de fadas e às fabulas se dá porque “o homem pósmoderno continua a falar, a produzir seu discurso, embora consciente de que nada mais
pode fazer a não ser reciclar significados já cristalizados” (SOUTO, 1998, p. 198). Nesse
sentido, parece que Perrault, La Fontaine, Grimm e Andersen não só vivem a boa idade
dos contos de fadas, como também estão longe da aposentadoria.
27
2.1 - No reino de Steig e Andrews: a história do moderno
conto de fadas na literatura e no cinema.
“Quem conta um conto adapta um ponto.”
Era uma vez um ogro verde, feiíssimo, que cuspia fogo e soprava fumaça pelas orelhas.
Quando já estava “grandinho”, seus pais o expulsaram do buraco negro, de onde ele nunca havia saído.
Shrek (como era chamado), feliz, saiu pela estrada, soltando “puns” e assustando cobras, bruxas,
criancinhas, chuva, relâmpago, trovão e dragão. Mas o ogro também queria saber o que lhe reservava o
futuro. Ao saber que encontraria uma princesa para se casar e que esta era mais feia do que ele, o ogroherói vibra e vai ao encontro de sua amada. No caminho, encontra um “alazão”, quer dizer, um burro,
que vai levá-lo até o castelo maluco, onde está a princesa. Lá chegando, zomba do cavaleiro que guarda a
entrada do castelo, cospe uma rajada de fogo nele e deixa-o torradinho nas águas do fosso. Antes de chegar
ao salão onde a princesa mais horrorosa do planeta o aguardava, Shrek se depara com a Sala de
Espelhos: é o momento de revelação, pois o ogro-herói não conhecia a própria imagem. Ao se reconhecer tal
qual se havia imaginado, sente-se cheio de uma raivosa auto-estima; em seguida, encontra a princesa a
quem dedica versos horrorosos que são retribuídos com a mesma intensidade. Os passos seguintes são
trocar mordidas e beliscões, casarem o mais depressa possível e viverem horríveis para sempre.17
A história do ogro começa como tantos outros contos de fadas tradicionais,
com a expulsão do herói. Mas, diferente dessas narrativas, o conto Shrek! não precisou
percorrer o caminho da oralidade à escritura. Ademais, a figura clássica do herói é
substituída por um ogro verde. Para Warner (p. 458), “quem reformula os personagens e
muda o tom torna-se muito importante”. Isso ocorre porque uma história narrada, ainda
que tenha o mesmo título, jamais é igual ao seu modelo. Se tomarmos como exemplo
Chapeuzinho Vermelho, veremos que Perrault e Grimm transformaram-na, deixando-a ao
gosto de sua platéia, ou seria mais próxima de sua realidade?
A guinada do herói clássico (o príncipe encantado) para o herói moderno (o
ogro), nos contos de fadas, é uma resposta à saturação daquele que não atende mais a um
contexto moderno (pós-industrial). O responsável pela reformulação do “príncipe” foi o
cartunista e autor de livros infantis, William Steig (1907-2003). Colaborador da revista The
New Yorker, desde 1930, Steig foi considerado pela concorrente Newsweek como o rei dos
17
O texto destacado é uma paráfrase nossa e busca resumir os eventos principais do conto de Steig.
28
cartuns. Em 1968, iniciou uma nova carreira: escritor (e ilustrador) de histórias infantis.
Fazendo uma breve incursão por alguns dos contos18 infantis, de Steig, deparamo-nos
com estórias de animais, particularmente com asnos e porcos, dentre as quais, Sylvester and
The Magic Pebble, Shrek! e The toy brother.
Sylvester and The Magic Pebble é a história de um pequeno asno que coleciona
seixos. Certo dia, o pequeno Sylvester descobre que uma de suas pedras é mágica e que,
ao fazer um pedido, seu desejo torna-se realidade. Um dia, estando em apuros, deseja se
transformar em um rochedo. A partir desse momento, os pais do pequeno asno sofrem
com o seu desaparecimento. Como muitos contos de fadas, essa narrativa tem um final
feliz, mas, como as fábulas, também encerra uma moral: “Be careful what you wish for”.19
Esse conto protagonizou dois momentos díspares: em 1970, a crítica
americana premiou Steig com The Caldecott Medal; no ano seguinte, as associações de
polícias tentaram remover as cópias do livro de várias bibliotecas dos Estados Unidos,
alegando que havia uma representação satírica das polícias como porcos. Irônico, Steig
respondeu que não incomodaria as crianças com propaganda política.20 Os contos de
Steig sempre tiveram uma recepção positiva por parte da crítica, não só americana - que o
agraciou com o American Book Award, em 1983, por Doctor De Soto -, mas também da
crítica italiana, que lhe concedeu o prêmio de melhor livro infantil, em 1990, por The Real
Thief (LORENZ, 1998, p. 673).
Em 1990, aos oitenta e três anos, Steig apresentou ao público americano
Shrek!. Indubitavelmente, esse irreverente conto de fada atingiu um público maior quando
a indústria da animação adaptou a história do ogro, resultando em dois filmes: Shrek
(2001) e Shrek 2 (2004). A escritura dessa narrativa parece a retomada de uma tradição
oral. Explicamos: nos contos de fadas, e com Shrek! não é diferente, é possível
encontrarmos traços do ciclo arturiano – cujas narrativas derivam da tradição oral célticobretã -- como “a freqüência de situações, em que as mais perigosas tarefas são confiadas
ao herói, a presença do amor como força impelente à demanda de aventuras, tendo como
prêmio a bela noiva meta e conquista” (FERREIRA, J., 1979, p. 42).
18
Steig publicou mais de 15 livros infantis entre 1968 e 1998, todavia, a maioria das edições está esgotada, inclusive
nos Estados Unidos. Cf. LORENZ, 1998, p. 673.
19 “Cuidado com o que você deseja” (Tradução nossa).
20 Disponível em < http://www.williamsteig.com> Acesso em 09 jul. 2006.
29
“Sou bruxa, velha adivinha, teu futuro vou contar.
Um burro vai te levar a um cavaleiro feroz
Que num sangrento combate tu vais derrotar.
Então irás te casar com alguém de feiúra atroz,
Bem mais feia que tu: a princesa do lugar!
Pé de pato, mangalô, ouça o que vou te dizer.
É uma palavra mágica: ‘Apfelstrudel’,
É melhor não esquecer!”
“Oba, uma princesa!”, exclamou Shrek. “Lá vou eu!”
Essa divertida previsão que a bruxa faz para Shrek ratifica o que diz Ferreira, J.
acerca de o amor ser a força que impele o ogro à aventura; todavia, numa inversão
paródica, o “prêmio-meta” é uma noiva bem mais feia que o ogro-herói. Em a História do
Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai Não Torna, Severino Milanês da Silva,
poeta cordelista, narra a história do personagem João que é obrigado, pelo príncipe do
Reino do Barro Branco, a trazer a princesa do Reino do Vai Não Torna para que se
casem. Todos os outros enviados sempre falharam e não voltavam porque não
conseguiam esconder-se do livro e do espelho com que os via a princesa. João, auxiliado
por uma ovelha, sai vitorioso e casa-se com a princesa.
[...]
João lhe disse princesa
eu venho aqui obrigado
do príncipe do Barro Branco
eu sou o encarregado
para levar a princesa
na côrte do seu reinado
[...]
João chegou no reinado
estava um desgôsto profundo
tudo coberto de luto
desde o rico ao vagabundo
e o príncipe do Barro branco
morrendo no outro mundo
30
João voltou com a princesa
Naquele mesmo momento
já na côrte anunciava
a hora do casamento
no Reino do Vai Não Torna
receberam o sacramento. (SILVA, S., p. 11; 16)
Parte do conteúdo da sinopse e das estrofes desse folheto de cordel
assemelha-se à animação Shrek (2001), pois o ogro é “obrigado” por Lord Farquaad a
trazer a princesa com quem este iria casar. No entanto, da mesma forma que ocorre no
folheto de cordel, é o ogro quem desposa a princesa Fiona. Esse “parentesco” entre os
textos de William Steig, Andrew Adamson e Severino Milanês comprova que essas
narrativas, a saber, conto de fada, animação e cordel, beberam todas na mesma fonte, na
oralidade.
Shrek! chegou às telonas pelas mãos de Andrew Adamson. Embora tenha
trabalhado em outros filmes como Toys (1992) e Batman Forever (1995), o neozelandês
Adamson ganhou projeção ao dirigir Shrek e, mais tarde, Shrek 2. Continuando no
universo do maravilhoso, Adamson adaptou O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (2005),
primeiro de sete livros escritos por C. S. Lewis sobre o reino de Nárnia.
Se ao adaptar o texto de Lewis, Adamson busca aproximar-se do texto
literário; na adaptação do conto de Steig, a aproximação entre texto literário e texto
fílmico é no nível da irreverência. Por outro lado, pensando no que seria uma forma bem
comportada, Shrek!, Shrek e Shrek 2 mantiveram a morfologia dos contos de fadas
tradicionais. Através da linguagem verbal ou audiovisual, ao contar essas histórias, Steig e
Adamson ratificam o papel dos contos de fadas de “transmitir ao mesmo tempo
significados manifestos e encobertos” e de “falar simultaneamente a todos os níveis da
personalidade humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da
criança tanto quanto a do adulto sofisticado” (BETTELHEIM, p. 14).
Além do mais, o texto de Steig - assim como fizeram as obras de Perrault, dos
Irmãos Grimm e de Andersen, à sua época – fala sobre as condições da vida moderna a
públicos diferentes. Ao ler o livro, certamente, uma criança de seis anos e uma pessoa
adulta farão leituras diferentes da “lição” que o relâmpago, a chuva e o trovão dão em
Shrek. Situação análoga deverá ocorrer no texto fílmico quando o ogro diz ao Burro que
31
“os ogros têm camadas”: a criança sorrirá da “chatice” do asno, mas o adulto,
provavelmente, entenderá a metáfora21. Texto literário ou texto fílmico, a história do
ogro-herói significa e confirma a boa forma dos contos de fadas. Destarte, a fim de
comprovar nossa assertiva, analisaremos Shrek! e Shrek 2 à luz de algumas das funções das
personagens de Propp.22
Em sua Morfologia do conto maravilhoso, Vladimir Propp tece várias críticas aos
trabalhos que se propuseram a estudar o conto maravilhoso. De acordo com Propp (p.
14),
O estudo do conto maravilhoso era abordado sobretudo através de uma
perspectiva genética, e, na maioria dos casos, sem a menor tentativa de uma
prévia descrição sistemática. [...] falar da gênese sem dar atenção especial ao
problema da descrição, como geralmente costuma ser feito, é completamente
inútil.
Sobre as tentativas de sistematização do conto maravilhoso que antecederam à
sua Morfologia, Propp as classifica de “indicador convencional, e de valor bastante
duvidoso” (p. 17) ou “importante como guia prático” [grifo do autor] (p. 19). Essas críticas
referem-se, respectivamente, a Volkov e Aarne. Segundo Propp, aquele declarava que o
conto maravilhoso possuía quinze enredos, mas não “nos diz, entretanto, como estes
foram estabelecidos”(p. 17); este denominou os enredos de tipos o que, para o autor de
Morfologia do conto maravilhoso, “dá idéias falsas sobre o essencial”, uma vez que “não existe
uma divisão nítida dos contos em tipos e ela, com freqüência, é puramente fictícia” (p.
19). Apesar da “alfinetada”, Propp reconhece que Aarne “prestou enorme serviço no
campo do estudo do conto maravilhoso” e que “graças ao índice” foi “possível numerar os
contos” (p. 19).
Propp considera que o “método adequado de pesquisa é o estudo dos
fragmentos mais curtos que constituem o conto” (p. 20). Ele se referia às funções dos
personagens que “são partes constituintes básicas do conto”. Juntas, elas correspondem a
trinta e uma funções identificadas por Propp em sua Morfologia e, apesar de nem todos os
contos maravilhosos apresentarem todas as funções, a seqüência é sempre idêntica e
independe de como os personagens as executam (p. 27). A insistência nesta sistematização
21
Discutiremos essa questão no capítulo 3, “Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações”.
Optamos por analisar apenas os textos Shrek! e Shrek 2 (e não outros contos), tendo em vista que nossas reflexões
ao longo desse trabalho irão recair sobre eles, já que constituem o objeto de nossa pesquisa.
22
32
deve-se ao fato de que uma elaboração histórica correta está condicionada a uma
elaboração morfológica também correta (p. 23).
Discutindo acerca do “Método e Material” de estudo do conto maravilhoso,
Propp observa que essa narrativa “atribui freqüentemente ações iguais a personagens
diferentes”, permitindo estudar “os contos a partir das funções dos personagens” (p. 25), e que
por função “compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua
importância para o desenrolar da ação” [grifos do autor] (p. 26), por exemplo, “o herói é
mandado embora de casa”. De acordo com Propp, é essa função que “introduz o herói
no conto” (p. 39). Vale lembrar que o ogro, no conto de Steig, é expulso de casa por seus
pais para fazer sua dose de maldades; na adaptação fílmica, Shrek (2001), ele deixa seu
“lar” porque este havia sido invadido pelas “coisas dos contos de fadas”, o que leva Shrek
a fazer um acordo com Lord Farquaad: salvar a princesa Fiona da guarda do dragão e, em
troca, ter seu pântano de volta.
Acreditamos que (re)conhecer tais vestígios (as funções) no moderno conto de
Steig e nas adaptações de Adamson é relevante porque confirma a perenidade dos contos
de fadas tradicionais, através da escrita palimpsesta de Shrek!, Shrek e Shrek 2. Visando a
uma melhor compreensão por parte do leitor, propomos analisar essas narrativas à luz das
funções de Propp; antes, convém realizar a mesma tarefa com o tradicional conto de fada
A Bela Adormecida, de Perrault. Nossa escolha deve-se ao fato de que na abertura de Shrek
e Shrek 2 os personagens ogro e Encantado fazem, claramente, uma referência ao conto
da Mamãe Gansa.
A história da bela jovem, condenada a dormir por cem anos, começa quando
um sapo (ou rã, depende da adaptação) prevê, para a alegria do casal real, o nascimento de
uma linda princesinha. Com a chegada de tão gracioso presente, o rei e a rainha decidem
dar uma festa para apresentá-la e convidam toda a corte, inclusive as fadas que vêm como
convidadas de honra. Esta seria uma situação inicial23 de A Bela Adormecida. Uma das
fadas, entretanto, foi preterida. Rancorosa, dirige-se ao berço da princesinha, no
momento em que a última fada ofereceria o seu presente, e lança um feitiço: quando a
princesa completar quinze anos vai se ferir com o fuso de uma roca e morrerá. O feitiço é
suavizado pela última fada: a morte se converterá em sono profundo por um século.
23
Grifos nossos a fim de destacar a presença das funções de Propp nos contos de fadas.
33
Impõe-se uma proibição: o rei ordena que todas as rocas do reino sejam
destruídas. Geralmente nos contos de fadas, a proibição é imposta ao herói, mas
conforme observa Propp (p. 26) “as funções de certos personagens dos contos
maravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que
existem bem poucas funções, enquanto os personagens são numerosíssimos”. A
proibição é transgredida, pois uma das rocas havia sido esquecida numa velha torre. A
princesa, então com quinze anos, encanta-se com o instrumento e pede a uma velhinha (a
fada-má) para experimentá-lo; no instante seguinte, cumpriu-se o feitiço, o antagonista
causa dano ou prejuízo a um dos membros da família.
Segundo Propp (p. 35), “as formas de dano são extremamente variadas”
dentre elas, o antagonista provoca um desaparecimento repentino [grifos do autor, p. 36). Como
exemplo, Propp cita o caso de uma madrasta que faz o enteado adormecer e sua noiva
desaparece para sempre. Após tocar no fuso da roca, a jovem princesa adormece e com
ela todo o seu reino e em volta do seu castelo surge uma vegetação tão densa que o
encobre, uma espécie de desaparecimento. Um século mais tarde, é divulgada a notícia
do dano ao herói e deixam-no ir. “Esta é a função que introduz o herói no conto”,
afirma Propp (p. 39). O príncipe toma conhecimento da história da bela princesa
adormecida, decide ir ao seu encontro, mas é desencorajado, uma vez que outros bravos
cavaleiros haviam falhado, pois temiam que ele tivesse a mesma sorte.
Na versão adaptada por Perrault, o príncipe enfrenta dificuldades para entrar
no castelo, pois cada vez que ele cortava as plantas que impediam a sua passagem, elas
ressurgiam mais fortes. Uma fada ouve a sua reclamação, vem em seu socorro e
transmite-lhe um auxiliar mágico, uma espada espacial com que ele abriu caminho até
chegar ao interior do castelo, deparar-se com um dragão feroz para em seguida vencê-lo.
Em seguida, o príncipe dirige-se ao quarto onde estava a princesa, beija-a, acordando-a, e
todo seu reino, do sono profundo.
Shrek! trilha um caminho análogo ao dos contos de fadas tradicionais. Ou seja,
o conto começa com uma certa situação inicial. Ficamos conhecendo a descrição dos
pais do herói, o seu nome (Shrek) e suas características físicas e psicológicas. “Embora
esta situação não constitua uma função, nem por isso deixa de ser um elemento
morfológico importante” (PROPP, p. 31). Nos contos de fadas, essa situação inicial é
seguida do afastamento de um dos membros da família, às vezes, por morte ou trabalho.
34
Em Branca de Neve e os sete anões, primeiro morre a mãe da protagonista, depois é a vez de
seu pai, ficando a jovem aos cuidados de sua invejosa madrasta.
No conto de Steig, Shrek é expulso de sua casa e enviado a um mundo
desconhecido, a fim de cumprir uma designação: “fazer sua dose de maldade”. De
acordo com Bettelheim (p. 124), “Ser enviada para o mundo ou abandonada numa
floresta simboliza tanto o desejo dos pais de que a criança se torne independente, quanto
o desejo ou ansiedade da criança pela independência”. Todavia, como bem lembra
Bettelheim, esse impacto sobre a criança só é possível porque, antes de tudo, o conto é
“uma obra de arte” (p. 20).
Sendo esta uma narrativa de transgressões em que o herói é horrendo e sua
expulsão de casa em nada abala a sua moral, é compreensível que ele não respeite a
proibição de não entrar no bosque, do mesmo jeito que assume o papel de agressor,
destruindo “a paz da família feliz” (PROPP, p. 33). Nesse sentido, Shrek é mais
aterrorizante que a bruxa e o dragão, personagens (quase) inofensivos do conto de Steig.
Apesar disso, o ogro, como o príncipe, tem uma carência: ele deseja uma noiva. É nesse
instante que entra a figura do doador, a bruxa. Segundo Propp (p. 41), o doador costuma
ser “encontrado na mata, no caminho, etc. [...] Mas antes de receber o meio mágico, o
herói é submetido a certas ações bem diferentes entre si [...]”.
Nesse sentido, Steig parece ter compreendido a morfologia dos contos de
fadas e aplica-a, ainda que às avessas. Nas narrativas clássicas, é comum o doador mostrar
ao herói um objeto mágico e propor-lhe uma troca. Em Shrek!, é o ogro quem propõe à
senhora dos horrores alguns de seus piolhos raríssimos; em troca, ela lhe diria o seu
futuro. Na busca por sua noiva, é indispensável a ajuda de um meio mágico que pode
ser “maçãs, água, cavalo, espadas, etc.” (PROPP, p. 38). A bruxa de Shrek! oferece-lhe
não a maçã, mas a torta de maçã travestida da palavra mágica “Apfelstrudel”24. Esta será a
senha que levará o ogro ao “meio mágico”: um burro sonolento e apático que, apesar de
levar Shrek até o castelo onde estava a princesa, não participa de suas outras ações como:
assustar um lavrador e outras criaturas, enfrentar relâmpagos, chuvas e trovões e um
dragão enorme.
Além do mais, a escolha de um asno, em vez de um alazão, que levaria o
“herói” à princesa, ratifica duas características importantes desse animal na literatura:
24
Tipo de doce da culinária alemã, semelhante a um folhado, recheado com maçãs.
35
divertir-nos e revelar a tolice alheia. A ignorância do burro pode ser lida como uma
metáfora da alienação humana na sociedade contemporânea, conforme discutiremos mais
adiante. Por ora, cumpre registrar o que nos diz Warner acerca da figura do asno (p. 167)
O animal mais intimamente associado com o divertimento e tolice é o asno;
mas, paradoxalmente, os burros também são os bichos com maiores poderes de
adivinhação e sabedoria do folclore popular e encantado. Com efeito,
equiparam-se aos gansos em seu dom de se fazer de tolos e assim revelar a
tolice alheia.
O papel do auxiliar mágico é transportar o herói ao objeto desejado. No conto
Shrek!, o burro ajuda o ogro a completar o trajeto até o castelo maluco. Lá, o antagonista
é vencido. Shrek derrota o cavaleiro biruta que guardava a entrada do castelo.
Finalmente, ao encontrar sua princesa, a carência é reparada. “Com esta função o conto
atinge o ápice”, afirma Propp (p. 51).
A análise da história do ogro, contudo, não se encerra com esta função. Ela
continua, por duas razões: primeiro, devido à sua adaptação para a linguagem do
audiovisual; segundo, porque, em Shrek 2, ao retomar a narrativa do ponto em que muitos
contos de fadas terminam, Adamson submete o ogro-herói a novas adversidades. É o
início de uma nova série de funções. Propp explica que
Este fenômeno mostra que um grande número de contos maravilhosos se
compõe de duas séries de funções, que podemos chamar de seqüências. Uma nova
desgraça dá origem a uma nova seqüência, e deste modo uma história reúne, às
vezes, toda uma série de contos (p. 55).
A resistência em aceitar o “Felizes para sempre” aparece em outras narrativas.
Acerca desse tema, o Escritor, personagem de Feiurinha, faz as seguintes considerações:
“Mas afinal de contas, o que significa “viver feliz para sempre”? Significa casar, ter filhos,
engordar e reunir a família no domingo pra comer macarronada? Ora, quer dizer que a
felicidade não é viver mais nenhuma aventura? [...]”, e completa: “É preciso saber o que
acontece depois do fim! Sabem?” (BANDEIRA, p. 8). Adamson parece concordar com o
personagem Escritor.
Depois de casados, Shrek e Fiona recebem um convite para o baile real em Far
Far Away25, mas a recepção não é das mais calorosas. O ogro e seu sogro, o rei Harold,
não se entendem. Shrek quer voltar para casa, Fiona discorda, e eles brigam. Mais tarde,
25
O reino Tão Tão Distante.
36
fingindo tentar se entender com Shrek, o rei convida-o para uma caçada no dia seguinte.
Esta representaria a situação inicial em Shrek 2. O rei não comparece ao compromisso,
mas envia o Gato de Botas que tem a missão de matar o ogro. Ao tomar tal atitude, o rei
(antagonista) causa um dano. “Essa função é extremamente importante, porque é ela, na
realidade, que dá movimento ao conto maravilhoso” (PROPP, p. 35). Além do mais, a
ordem para matar “é, em essência, uma expulsão modificada (reforçada)” (PROPP, p. 37).
A certeza de que não é bem-vindo ao reino e, conseqüentemente, à vida de
Fiona, abala o ogro. No entanto, como faz um herói-buscador, Shrek reage e vai à
procura da fórmula mágica que lhes traria (a ele e a Fiona) o “Felizes para sempre”. Antes
de partir nessa aventura, Shrek atende ao pedido de clemência do Gato de Botas e
poupa-lhe a vida. O passaporte, leia-se objeto mágico, para um “novo” eu, oferecido
pela Fada Madrinha e recusado pela princesa Fiona, passa a ser agora objeto de desejo do
ogro. Na seqüência do conto, “coloca-se à disposição do herói um novo objeto mágico”
(PROPP, p. 55). Em Shrek 2, junto com o Burro e seu mais novo companheiro, o Gato
de Botas, o ogro rouba a poção mágica do “Felizes para sempre” e, de certa forma, chega
incógnito a Far Far Away.
Todavia, em seu lugar, apresenta-se um falso herói: o Príncipe Encantado,
filho da Fada Madrinha. No decorrer da trama, o verdadeiro herói é reconhecido
“graças a uma marca ou estigma” (PROPP, p. 57). A marca de Shrek é a sua voz.
Simultâneo ao reconhecimento do ogro, ocorre o desmascaramento do príncipe
Encantado. As funções, assim como a narrativa, caminham para o fim: o herói recebe
nova aparência, ou seja, retorna à sua condição ogra; os inimigos são castigados.
Em geral, são castigados apenas o malfeitor da segunda seqüência e o falso
herói; o primeiro antagonista só é castigado no caso de não haver na narrativa
nem combate nem perseguição. Caso contrário, morre durante a luta ou a
perseguição (a bruxa estoura ao tentar beber o mar, etc.) (PROPP, p. 58).
Nesse sentido, a Fada Má-drinha desaparece como bolhas no ar; o rei Harold
volta à sua forma anfíbia e o Encantado termina “nos braços” da Irmã Feia. Quanto a
Lord Farquaad, antagonista de Shrek (primeiro filme), foi devorado por um dragão-fêmea.
Como última função, é comum o herói se casar e subir ao trono. Sendo os
protagonistas desse moderno conto de fadas “marido e mulher”, há, na verdade, uma
renovação do casamento. Isso posto, cabe uma indagação: Qual é a importância dessas
funções na tessitura dos textos de Steig e Adamson?
37
Página por página, cena por cena, Steig e Adamson confirmam a perenidade
dos contos de fadas tradicionais, mas também tecem um retrato mais humano do
“príncipe encantado”. Metamorfoseado em ogro, ele desobedece ao “curso da história”,
vai de encontro ao seu destino, e é feliz. Para BOURJEA (1986, 141-142), “as
metamorfoses são sempre o sinal de um desbloqueamento, simbolizam a liberação das
pulsões contidas por muito tempo e a brusca realização de um desejo”. Na aventura em
busca e pela preservação do “Felizes para sempre”, o ogro revela a (falsa) harmonia do
campo florido e entra em conflito com o reino Tão Tão Distante.
Identificar as funções de Propp na história do ogro verde, sujo e flatulento dános a impressão de que estamos diante de um palimpsesto. Isso ocorre porque Shrek! e
Shrek 2 possuem camadas de sentidos que são construídos a partir de uma escrita
paródica. Voltando à indagação acima, Propp sugere que o problema “só pode ser
resolvido mediante uma análise dos textos” (p. 59). Destarte, como leitores do irreverente
ogro, na literatura e no cinema, sugerimos não esperar “que uma palavra madrinha” nos
conceda a nós e a nosso “discurso a benção de uma interpretação” (NÓBREGA, 1986, p.
122); antes, propomos partir imediatamente para o próximo capítulo.
38
3 – Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações.
Era uma vez, num reino tão tão distante, um rei e uma rainha que foram abençoados com
uma linda menininha. E por toda a parte, todos ficaram felizes até o Sol se pôr e eles verem que sua filha
estava com um feitiço terrível que a transformava todas as noites.
Desesperados, eles pediram ajuda a uma fada madrinha que os fez trançarem a jovem
princesa numa torre para esperar o beijo do belo Príncipe Encantado. Ele faria uma perigosa jornada
através do frio cortante e do deserto escaldante viajando vários dias e noites arriscando a própria vida para
enfrentar a guarda do Dragão. Porque ele era o mais corajoso e o mais belo de toda aquela terra. E o
destino era que o seu beijo quebraria o horrível encanto.
Ele subiria sozinho até o quarto mais alto da mais alta torre para entrar nos aposentos da
princesa e chegar até a sua silhueta adormecida, abrir as cortinas e ...26
A Bela Adormecida, de Gustavo Doré
O
Essa narrativa, com reino distante, princesa, feitiço, fada madrinha, príncipe
belo-corajoso-encantado e beijo salvador, poderia ser confundida com a história de A Bela
Adormecida se, ao invés de encontrar uma linda princesa, o destemido cavaleiro não se
deparasse com o lobo mau (travestido de vovozinha) lendo a “Pork Illustrated”, espécie
de Playboy com uma porca de biquíni na capa. O lobo-vovozinha, impaciente com a
interrupção, pergunta: “O que foi?”, ao que o príncipe, inseguro, indaga: “Princesa
Fiona?”. O lobo, enfático, responde: “Não!”; o príncipe, aliviado, “Graças a Deus!”.
“Onde está ela?”, questiona. “Na lua-de-mel”.__ diz o lobo. E volta a “ler” a sua revista.
Perplexo, o príncipe pergunta “Lua-de-mel?”, “Com quem?”
A partir desse momento, aparece uma seqüência da lua-de-mel de Shrek e
Fiona no “Chalé da lua-de-mel do João” (espécie de casa de doces onde vivia a bruxa que
prendeu os irmãos João e Maria, personagens do conto homônimo dos Irmãos Grimm).
O ogro Shrek ajusta a câmera, toma Fiona, princesa-ogra, nos braços e entra no chalé.
26
Essa narrativa é citada da abertura do filme Shrek 2.
39
Enquanto Shrek prova um doce, oferecido por sua amada, que havia ficado sobre sua
cabeça, ouve-se a canção “Accidentally in Love", dos Counting Crows, e só então surge o
letreiro Shrek 2 (2004).
Como em muitas produções cinematográficas, só conheceremos os envolvidos
no processo de realização de Shrek 2, direção, produção, música, figurino, edição e, no
caso de desenhos animados, vozes do elenco, no final da película. Observamos, também,
que a história do ogro não é o resultado de um roteiro original; na verdade, trata-se da
adaptação do moderno conto de fadas Shrek! (2001), de William Steig.
Diferentemente dos contos de fada tradicionais adaptados pela Disney, dentre
eles, Branca de Neve e os sete anões27 (1937), Cinderella (1950), A Bela Adormecida (1959), A Bela
e a Fera (1991), em Shrek (2001) e sua seqüência Shrek 2 (2004), ambos produção da
DreamWorks, a história do ogro-herói tem vida própria; em outras palavras, o texto
fílmico não pretende ser uma cópia do texto literário. Na tradicional história da jovem de
cabelos negros como o ébano, poucas são as intervenções na transposição, o que nos leva,
de certa forma, a buscar um “parentesco”, no sentido de equivalência, entre ambas as
linguagens.
A título de exemplo, destacamos que, no texto literário, os anões não
possuíam nomes; a Rainha tentou diversas vezes, e não uma apenas, matar Branca de
Neve; e, ao invés do beijo salvador do príncipe, os anões são os verdadeiros responsáveis
por sua salvação, uma vez que ao carregarem o esquife de ouro, tropeçam numa pedra e o
pedaço da maçã envenenada salta da garganta da bela, devolvendo-lhe a vida.
Quanto às adaptações do conto de Steig, não somos levados a buscar esse grau
de “parentesco”. Talvez porque só tomemos conhecimento da existência de um texto
“original” nos créditos finais das animações, ou porque, diferente de as Crônicas de Nárnia:
o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C. S. Lewis -- sucesso de crítica e público,
publicadas na metade do século passado e que tiveram o seu relançamento em 2005 -- a
obra de Lewis ainda figure nas prateleiras de livrarias e de grandes estabelecimentos
comerciais.
Shrek e Shrek 2 são textos que parecem ter uma independência maior do texto
que os inspirou. A independência das adaptações em relação ao texto de Steig ocorre
27
Primeiro longa de animação da Disney teve 8 relançamentos nos cinemas americanos: 1944, 1952, 1958, 1967,
1975, 1983, 1987 e 1993. Cf. http://www.animatoons.com.br/movies/snow_white/curiosidades.php.
40
porque Adamson exacerba as intervenções paródicas realizadas nas animações no
processo de transposição para a linguagem do audiovisual, com a inserção dos
personagens dos contos de fadas como os três porquinhos e Chapeuzinho Vermelho. O
diálogo que esta personagem tem com o lobo mau no conto de fada tradicional é
adaptado para a fala do Burro, em Shrek (2001), que tenta fugir do dragão, uma relação
clara de intertextualidade. Vejamos:
Não! Não!
Que dentes enormes você tem.
Brancos e brilhantes. Deve ouvir sempre isso da sua comida. Deve fazer
clareamento porque tem um sorriso ofuscante. Senti um frescor de hortelã?
Sabe o que mais? Sabe o que mais? Você é um dragão moça!
Em Shrek 2, Adamson continua a revisitar os contos de fadas, e alguns dos
personagens dessas narrativas, como o lobo mau e os três porquinhos, agem como
auxiliares mágicos do ogro-herói, reforçando uma das funções dos personagens
apresentadas por Propp, cristalizando, assim, a paródia àquelas narrativas. Vale ressaltar
que estas considerações acerca de Shrek 2 não nega o texto-fonte; antes, amplia o seu
significado, pois insere um espaço social inexistente em Shrek!, além de recorrer à sátira a
fim de criticar o modo de vida na sociedade contemporânea, recurso esse já utilizado pelo
criador do ogro verde.
No que diz respeito à relação entre o texto literário e o texto fílmico, Cunha R.
(2006, p. 63) afirma que: “É importante se ter em mente que qualquer obra realizada a
partir de outra, para ser relevante, deve valer por si só, ou seja, ter vida própria”. Para Bela
Balaz (apud. Brito, 1996, p. 18), “quem adapta só pode utilizar a obra existente como
matéria prima, considerando-a sob o ângulo específico de sua própria natureza de arte,
como se ela fosse a realidade bruta, e nunca se ocupar da forma já conferida a essa
realidade.”
Há de se considerar que sendo a adaptação “o catalisador das relações entre
literatura e cinema”, conforme observa Brito (op. cit., p. 17), faz-se necessário
compreender por que adaptar o conto de Steig, à luz de estudos que versam sobre o tema.
Convém, ainda, ressaltar que o “namoro” entre a literatura e o cinema não teve início no
século passado com o desenvolvimento do aparato tecnológico deste. De acordo com
Nazário (apud Cunha, R., p. 17),
O homem sempre desejou compartilhar seus sonhos e, deste modo, o cinema
sempre existiu: o avanço das técnicas apenas tornou possível a exteriorização
41
mecânica do sonho. Assim, alguns pesquisadores remontam a invenção do
cinema à pré-história, citando as pinturas rupestres nas paredes das cavernas.
Outros mencionam a caverna de Platão e a câmara obscura imaginada no século IV
a. C. por Aristóteles, e realmente inventada por Roger Bacon em 1267.
De certa forma, a literatura também sempre existiu. Para Rosenfeld (2005, p.
11, grifo nosso), “Na acepção lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras –
obras científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de
cozinha etc.” Dissemos anteriormente que a adaptação é “o catalisador das relações entre
literatura e cinema”; além do mais, existem razões que podem justificar a adaptação de
Shrek!, pela concorrente da criadora do camundongo Mickey.
De acordo com Johnson (1982, p. 9), “Muitos romancistas modernos já
escrevem com uma adaptação fílmica em mente, tendo em vista tanto o público
cinematográfico
potencial
quanto
o
público
leitor”.
A
questão
financeira,
indubitavelmente, é relevante se considerarmos que Shrek faturou cerca de meio milhão
de dólares, e os realizadores de Shrek 2 estimavam que a seqüência dobraria esse valor.28
Para Johnson,
Um filme é, pelo menos num contexto capitalista, uma mercadoria que dá (ou
deve dar) lucro. [...] Mas, não se pode dizer que o lucro seja o único motivo
atrás de cada adaptação fílmica de um romance. George Lukács sugere que as
obras de arte são revitalizadas quando correspondem a ansiedades similares
àquelas do período no qual foram originalmente produzidas. (p. 9)
Nesse sentido, um dos possíveis motivos para a adaptação fílmica do conto de
Steig diz respeito à demanda de um contexto moderno (pós-industrial), que responde à
saturação das composições clássicas presas a um referencial de unidade e exemplaridade ou seja, o príncipe encantado – e apresenta-nos como “herói” moderno, fragmentado,
desencantado, anômalo: um ogro. Shrek, embora filho dessa modernidade, não consegue
integrar-se à sociedade moderna e excludente a qual parodia.
Corseuil (2003) destaca que os elementos narrativos estão presentes tanto na
literatura como no cinema. Ademais, é possível observar a manipulação do tempo, o
enredo, a voz do narrador, do focalizador (personagem através do qual se vê a ação),
dentre outros, bem como de que forma “certas culturas são representadas na narrativa
cinematográfica ou literária” (p. 299).
28ISTOÉ
Dinheiro, 26/05/2004. Cf. http://www.terra.com.br/istoedinheiro/351/negocios/351_apetite_shrek2.htm
42
Sobre a temporalidade nos textos literários narrativos, Santos e Oliveira (2001,
p. 51) afirmam que
O tempo ficcional não ocorre no âmbito do discurso, mas no plano daquilo que
é narrado, ou seja, na história propriamente dita. Esse tempo é, na verdade, a
atribuição de uma dimensão temporal aos eventos relatados, por meio de
palavras ou expressões que recorrem geralmente, ao calendário e ao relógio, tais
como: “em 1930”, “às oito horas da manhã”, “naquele inverno”, “durante
quarenta minutos”.
A idéia de uma dimensão temporal se dá, no conto de Steig29, através do
emprego não só de orações subordinadas adverbiais temporais “Quando aprendeu a
andar, Shrek era capaz [...]”, “Quando ela voltou a si [...]”, mas também de adjuntos
adverbiais em “Um dia os pais de Shrek trocaram más idéias [...]”, “E, claro, mal entrou
no bosque,” “[...]ficou inconsciente até o fim do dia”, “Ia perguntando aos seus botões
se um dia encontraria mesmo a tal princesa [...]”, “Trataram de se casar o mais depressa
possível”, “E viveram horríveis para sempre, [...]”; além do verbo intransitivo
“demorar” no pretérito perfeito acompanhado de advérbio de negação e intensidade que
intensificam e/ou indicam tempo decorrido: “Não demorou muito e Shrek encontrou
[...]”.
Em Shrek 2, o tempo ficcional é representado ora de forma cronológica, ora de
forma paródica. Na primeira, duas das estações do ano, clima ameno e inverno rigoroso,
ilustram não só a passagem do tempo como também a distância, no sentido denotativo –
marcada por espécies de placas de trânsito que mostram os quilômetros que restam para
chegar a Far Far Away -- e conotativo, entre o pântano e o reino Tão Tão Distante;
voltaremos à discussão da distância conotativa em momento ulterior.
A alusão paródica do tempo ficcional, no sentido de homenagem, está
presente na cena inicial da animação em que aparece a voz-off do Príncipe Encantado
narrando Era uma vez... sincronizada à imagem das páginas de um livro de contos de fadas,
conforme mostramos no início deste capítulo. Outra alusão paródica ao tempo ocorre
quando, após beber da poção mágica “Felizes para sempre”, o Gato de Botas alerta Shrek
que a fórmula só terá um efeito permanente se ele beijar a princesa à meia-noite. Ao que
Shrek responde: “Por que é sempre à meia-noite?”
Voltando à questão da adaptação, teóricos como André Bazin (apud Brito,
1996, p. 20) apresentam dois argumentos indiretamente favoráveis à adaptação: um é de
29
O conto Shrek! não possui paginação.
43
ordem histórica e social; o outro, de ordem prática. “Para Bazin, o cinema teria realizado,
no nosso século, o que nenhuma atividade artística conseguira ao longo da história
moderna, que foi reacender a popularidade da arte, como só existira na idade média [...]” e
acrescenta “Ora, se os grandes escritores estão sendo adaptados pelo cinema, o público
em geral está tendo acesso indireto a eles, e este já é o argumento de ordem prática [...]”
(p. 20). Noutras palavras, a relação entre a literatura e o cinema não é uma via de mão
única. Acreditamos que muitos leitores não-americanos só tiveram contato com o conto
de Steig após assistirem ao (s) texto (s) fílmico (s).
Além das peculiaridades das linguagens do texto literário e fílmico, Azerêdo
(2003, p. 58) chama a atenção para a importância dos diversos fatores envolvidos no
processo de adaptação:
[...] a demanda do mercado, a reputação do autor30 a ser adaptado, a existência
de um público prévio para aquele tipo de filme, a forma como a tradição
literária já interpretou o autor, os discursos variados que circulam sobre o autor,
a interpretação e escolhas do roteirista e cineasta, enfim, aspectos que situam a
adaptação num entrecruzamento de diálogos e contextos. Portanto, a análise de
um texto adaptado pressupõe uma consciência a respeito de tais fatores, de
modo a fornecer uma base relevante para a discussão dos (novos) efeitos que o
texto adaptado, em geral, suscita.
No processo de cotejamento entre Shrek! e Shrek 2, texto literário e texto
fílmico respectivamente, faz-se necessário, antes, uma breve análise do filme Shrek a fim
de observar não apenas a questão de equivalência de sentidos, mas também, e
principalmente, como determinados acréscimos são significativos para que se perceba
como os adaptadores traduziram uma determinada idéia. Para dar um exemplo, os
roteiristas de Shrek, ao inserirem a discussão do ogro com o Burro sobre o fato de “os
ogros serem como cebolas”, recriam/ dilatam uma cena já existente no conto de Steig:
trata-se do diálogo da “lição” que o Relâmpago e o Trovão tentam dar em Shrek por
acharem-no nojento. A atitude desses personagens equivale, de certa forma, àquela dos
camponeses que, no filme, perseguem o ogro por julgarem-no por sua aparência, não
reconhecendo que os “ogros têm camadas”.
Ambas as cenas são significativas e merecem ser aqui descritas:
a) no conto, Shrek estava indo ao encontro da princesa mais horrorosa de
todo o planeta quando se deparou com uns pingos de chuva grossa que batiam em sua
30
Discutimos acerca da reputação de William Steig, criador de Shrek, no capítulo No reino de Steig e Adamson: a
história do moderno conto de fadas na literatura e no cinema.
44
corcunda e “chiavam como água na frigideira”. Nesse momento, começa um breve
diálogo entre dois dos personagens da narrativa:
“Já viu alguém mais nojento?”, o Relâmpago perguntou para o Trovão.
“Nunca na vida”, trovejou o Trovão. “Vamos lhe dar uma lição.”
O Relâmpago disparou seu raio mais terrível no cocuruto do Shrek.
b) no filme, o ogro faz um acordo com Lord Farquaad: ele salvaria a princesa
Fiona da guarda de um dragão e em troca teria o seu pântano de volta, pois o seu “lar”
havia sido invadido por personagens dos contos de fadas. O Burro não entendia por que
Shrek simplesmente não fazia “umas coisas de ogro” para assustá-los.
A discussão que se inicia é reveladora . . .
“Eu sei. Eu poderia decapitar a vila toda, espetar as cabeças deles, pegar uma
faca, abrir seus baços e beber seus fluidos. Gosta disso?”, pergunta Shrek revoltado.
“Na verdade, não”, afirma o Burro pensativo.
“Os ogros são bem melhores do que as pessoas acham”, diz Shrek, desolado.
“Por exemplo”, indaga o Burro.
“Os ogros são como cebolas”, esperando que o Burro tenha entendido.
“Eles fedem?”, questiona o asno como se tivesse acertado.
“Sim. Não!”, grita Shrek, impaciente.
[..]
“Não! Camadas! As cebolas têm camadas. Os ogros têm camadas. As cebolas
têm camadas. Entendeu? Ambos temos camadas”; irritado, Shrek joga a cebola no chão e
continua a caminhar.
“Ambos têm camadas”, diz o Burro malicioso; cheira a cebola e afirma: “Não
são todos que gostam de cebola”. Em seguida, como se houvesse entendido a metáfora,
salta, gritando, na frente de Shrek: “Bolo! Todos adoram bolo! Os bolos têm camadas!”
45
Shrek, visivelmente irritado, afirma: “Não me interessa o que as pessoas
gostam. Os ogros não são iguais a bolo.” A veemência com que Shrek afirma que os
ogros têm camadas e são melhores do que as pessoas pensam, reverbera o que diz Cooper
(2000, p. 45) acerca da simbologia da cebola: “La unidad de lo múltiple; el cosmos; la
Causa Primera; inmortalidad; revelación, por cuanto para alcanzar el centro hay que
mondarla. Apotropaica y especialmente potente contra los poderes lunares siniestros.”31 É
preciso “mondarla”, ou seja, limpar, tirar as camadas do ogro-cebola para se chegar à sua
essência.
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 260), o
substantivo “apotropismo” significa aquilo “que tem poder de afastar (desgraça, influência
maléfica)”. No conto, ao casar-se com uma princesa feíssima e aterrorizar todos que
cruzassem seu caminho, Shrek cumpre o significado de sua forma apotropáica: afasta, por
temor, aqueles que o julgavam por sua aparência. Em Shrek (filme), ao beijar a princesa
Fiona, no dia de seu casamento com Farquaad, o ogro a liberta dos “poderes sinistros” do
entardecer -- razão que motivou seus pais a trancafiá-la em uma torre alta guardada por
um dragão feroz. O beijo salvador de Shrek não só a torna, definitivamente, uma ogra,
como desmascara uma sociedade excludente que encerra em guetos aqueles que ameaçam
a ordem estabelecida32.
Ainda sobre a questão da tradução de uma idéia, a dilatação do diálogo entre o
Relâmpago e o Trovão, no texto fílmico, é um índice revelador de mudança no
comportamento da personagem. “São essas pequenas coisas, essas minúcias que tecem a
tradução e a revelam uma leitura, ou melhor, uma recriação” (Cf. CUNHA, R., p. 74).
Para o autor de As formigas e o fel, no processo de recriação, “busca-se a essência das
coisas, e não a aparência” (p. 93).
Quanto à dilatação de uma cena, Brito acredita que
[...] um pequeno detalhe, físico ou psíquico, que não havia no romance pode
aparecer no filme como um deflagrador semântico importante, em substituição ou
não a elementos da estrutura romanesca, do mesmo modo que o destino do
protagonista no romance pode receber, no filme, um desenvolvimento maior
que responda por deficiências que a narração havia tido em recobrir aspectos
abstratos do discurso literário, [...](p. 22, grifo nosso)
31
“A cebola é a unidade do múltiplo; o cosmo; a causa primeira; imortalidade; revelação, visto que para alcançar o
centro é necessário limpá-la. Apotropáica, é especialmente poderosa contra os poderes lunares sinistros” (Tradução
nossa).
32 Ampliaremos essa discussão em “Far Far Away: uma alegoria da sociedade contemporânea”, capítulo posterior.
46
De acordo com Whelehan (1999, p. 12), raramente, as imagens literárias
transpostas para o cinema são acidentais ou desprovidas de ideologia. Na verdade, “They
have been designed and built (consciously or unconsciously) by their author(s) in order to
project a specific agenda and to encourage a particular set of responses.”33
Para Vanoye (1994, p. 144), “Adaptar é, portanto, não apenas efetuar escolhas
de conteúdo, mas também trabalhar, modelar uma narrativa em função das possibilidades
ou, ao contrário, das impossibilidades inerentes ao meio”.
A idéia de que “Os ogros são bem melhores do que as pessoas acham”, de
certa forma, é elastecida em Shrek 2 uma vez que o casal de ogros busca manter distância
da hostilidade humana. Sobre essa questão e de suas implicações, trataremos mais adiante.
Antes, contudo, analisaremos a condição ogra de nossos protagonistas, a saber, Shrek e
Fiona, a partir do Dicionário de Mitos Literários.
Segundo Bouloumié (2005, p. 758-759), o ogro é um mito ambivalente, pois,
como qualquer mito, debate-se entre forças antagônicas. E é graças a esses
sentidos contraditórios que ele não é uma figura estática. [...] A etimologia
sugere que o ogro seria a valorização negativa de Gargântua, o Sol céltico.
Gargântua é um ogro bom, só que um glutão insaciável, nisso parecido com o
ogro do Pequeno Polegar, que tem “para sua ceia um carneiro inteiro assando no
espeto”. Como o ogro, ele pode ir de montanha em montanha, sem ser detido
pelos rios. Apesar de não ser mau, pode fazer o papel de bicho-papão. [...] A
oposição vida/morte estrutura o mito do ogro. Quem pode dar a morte, pode
igualmente salvar da morte. [...] os ogros podem transformar-se em salva-vidas
e vigilantes.
Essa ambivalência mau/bom, vida/morte está presente não só no diálogo de
Shrek e do Burro, mas também na atitude do ogro. Em outras palavras, em vez de “fazer
coisas de ogro”, como sugeriu o Burro, Shrek, civilizadamente, resgata a princesa Fiona e
33
“Foram projetadas e construídas consciente ou inconscientemente por seu (s) autor (es) a fim de projetar uma
agenda específica e incentivar um conjunto particular de respostas” (Tradução nossa).
47
tem o seu pântano de volta. Além disso, em momento algum o ogro mata; antes, age
como um salva-vidas, pois livra a princesa do dragão, quando outros já haviam falhado.
“Apesar de não ser mau, pode fazer o papel de bicho-papão.” É interessante
observar como essa assertiva pode ilustrar uma cena de Shrek. O ogro jantava
tranqüilamente em sua casa, no pântano, quando ouviu um barulho lá fora: eram os
camponeses que, armados com instrumentos de trabalho e tochas, vinham capturá-lo.
Shrek, esperto, sai de casa e segue-os sem ser visto. Ao verem luzes na cabana, deduzem
que o ogro está em casa. Um dos camponeses diz que vai pegá-lo, mas é desencorajado
por um companheiro:
“Sabe o que ele pode fazer com você?” Alguém se antecipa e diz: “É. Ele vai
moer todos os seus ossos”. Shrek sorri; todos olham para trás assustados, e o ogro corrige
a “informação”, ironizando: “Na verdade, isso é coisa de gigante. Agora, os ogros são
piores. Fazem um terno com sua pele recém-arrancada. Cortam seu fígado em fatias,
espremem a geléia dos seus olhos. Fica gostosa na torrada.”
Enquanto descrevia a cena de tortura, Shrek caminhava em direção aos
camponeses que estavam visivelmente aterrorizados. Um dos ex-algozes, contudo, decidiu
enfrentar o ogro: “Para trás, fera! Para trás! Estou lhe avisando”. Indiferente à ameaça,
Shrek molha os dedos com sua saliva e apaga sua tocha; em seguida, dá um grito
assustador e nojento (já que saem “melecas” de sua boca) que apaga as demais tochas.
Paralisados de medo, os camponeses não conseguiam fugir; Shrek, então, calmamente
aproxima sua mão esquerda do rosto e, como se confidenciasse algo, diz: “É nessa parte
que vocês fogem.” Todos largam suas armas e fogem; o ogro, gargalhando, ameaça: “E
fiquem longe daqui!”
Essa agressividade irônica do Shrek, tanto no texto literário como no texto
fílmico, está sintonizada com o seu parônimo “Shriek”. Substantivo ou verbo, esse
vocábulo tanto pode nos remeter à idéia de “som agudo, alto; grito”, como também, se
acrescentarmos a ele a expressão with laugther, “rir às gargalhadas” (MICHAELIS, 2001, p.
286). Acerca do significado do nome, Chevalier e Gheerbrant (2000, p. 641) afirmam que
Para os egípcios da Antiguidade, o nome pessoal é bem mais que um signo de
identificação. É uma dimensão do indivíduo. O egípcio crê no poder criador e
coercitivo do nome. O nome será coisa viva. Escrevendo-se ou pronunciandose o nome de uma pessoa, faz-se com que ela viva ou sobreviva, o que
corresponde ao dinamismo do símbolo.
48
Dada a contemporaneidade de Shrek! e suas adaptações, que possíveis
implicações teria a escolha do nome “Shrek” no conto de Steig e a preservação desse
antropônimo nas animações dirigidas por Andrew Adamson? De acordo com Kátia Rose
Pinho, em seu ensaio “Mistérios dos nomes”34 (2003),
Hoje, talvez, na sociedade de consumo em que vivemos, a escolha de um nome
não atenda tão somente aos ditames da própria obra. Há de se encontrar um
meio para que se satisfaçam os desejos do autor, do editor e fisguem o leitor,
incauto ou não. Para além (ou, quem sabe?, para aquém) de tudo isso, sabemos
que numa obra nada é aleatório, tampouco o seu nome. [...] Que significa
nomear um livro? Nomear uma obra não seria a possibilidade do [sic] autor
atribuir-lhe uma função?
A título de exemplificação, podemos constatar a não-aleatoridade do nome do
protagonista no filme Duas Inglesas e o Amor (Les Deux et le Continent, 1971), de François
Truffaut. Segundo Vanoye (1994, p. 96), “as dificuldades futuras de Claude para afirmar
sua identidade, sua pessoa, seus desejos” manifestam-se através de indícios na narrativa,
dentre eles, “seu nome (Claude: o que manca)”. O termo cognato “claudicar” vem do
latim [claudicare] e significa “coxear; cometer falta; errar” (FERREIRA, A., 2001, p. 167 ).
Discutindo acerca dos nomes em um romance, Lodge (1992, p 37) observa
que aqueles “are never neutral. […] The naming of characters is always an important part
of creating them, involving many considerations, and hesitations […]”35. Lodge observa
também que, ao contrário do sobrenome, nossos primeiros nomes carregam uma
intenção semântica e que nossos pais vêem neles “some pleasant or hopeful association”36
(p. 36).
Nesse sentido, o “pai” do ogro, indubitavelmente, tinha consciência de sua
escolha uma vez que a palavra “Shriek” identifica-se com Shrek não apenas sonora e
graficamente, mas, principalmente, nos significados que o vocábulo tem no texto literário
e no texto fílmico. Noutras palavras, o grito e o riso estão presentes em Shrek! e Shrek 2,
simultaneamente, através da paródia e da sátira. Essa é empregada como crítica ao modo
de vida na sociedade contemporânea; aquela, para desconstruir os contos de fadas
tradicionais.
34
Artigo publicado na Revista Tambor, Recife, v. 01, n. 01, p. 63-69, 2003, da Faculdade de Formação de Professores
de Belo Jardim, Pernambuco. Cf. http://www.secrel.com.br/jpoesia/katiarose3.html
35 nunca são neutros. [...] A nomeação dos personagens é sempre uma parte importante na criação dos autores,
envolvendo muitos considerações, e hesitações […] (Tradução nossa).
36 algo agradável ou associação esperançosa (Tradução nossa).
49
A paródia, contudo, não busca destruir ou apagar o texto parodiado. Em Um
olhar sobre a fábula: confabulando com o lúdico, o poder e os sentidos, Oliveira (2001, p. 37) observa
que o que o texto parodiado “intenciona é re-significá-lo, descontruí-lo, é instaurar, nos
sentidos já existentes, sentidos contrários, que afastados e unidos irão, numa incessante luta
de vozes, significar.”
De acordo com Fiker (2000, p. 95), em seu Mito e paródia: entre a narrativa e o
argumento, a paródia “cumpre um duplo papel: revela e anula a partir da relevação.” Na
análise que faz do termo paródia, o autor observa que
A origem do termo é grega e significa “canto paralelo”, refere-se ao comentário
da ação na tragédia clássica pelo coro. O procedimento cômico-burlesco, bem
como o caráter de reversão que lhe são associados podem estar relacionados ao
fato de cada trilogia trágica ser seguida pela apresentação de um drama satírico.
(p. 96)
A idéia de “canto paralelo”, contudo, não é consenso entre os estudiosos. A
maioria dos teóricos limita-se à noção de “contra-canto” como “Imitação cômica de uma
composição literária” (FERREIRA, A., 2001, p. 551), definição usual para o substantivo
grego paródia. Para a autora de Uma teoria da paródia, tal interpretação remonta à “raiz
etimológica do termo” (p. 47). Hutcheon, todavia, insiste que o radical “para” também
pode significar “ao longo de” e que a paródia pode sugerir acordo ou intimidade. Ao
discutir a prática paródica moderna, Hutcheon contesta uma caracterização
ridicularizadora e cômica, presente “na maioria das definições da paródia”, e sugere “um
leque de ethos pragmático (orientando os efeitos pretendidos), que inclua o reverencial, o
lúdico e o desdenhoso” (p. 38-39).
Tal argumento se sustenta no fato de que, diferente da piada e da burla, “Nada
existe em parodia que necessite da inclusão de um conceito de ridículo [...]” (p. 48). Na
verdade, a função de zombaria cabe à sátira. Esta, segundo Ferreira, A., constitui uma
“composição poética que visa a censurar ou ridicularizar defeitos ou vícios” (p. 662).
Diferente da paródia, esse “objectivo correctivo do ridículo desdenhoso da sátira é central
para sua identidade (HUTCHEON, p. 77).
De acordo com Bakhtin (apud Hutcheon, p. 98), a paródia tanto pode ser
centrípeta como centrífuga. Linda Hutcheon traduz essa ambivalência: “A paródia é
normativa na sua identificação com o outro, mas é contestatória na sua necessidade
edipiana de distinguir-se do outro anterior”. Nesse sentido, tanto Shrek! como Shrek 2 são
textos ao mesmo tempo homogeneizantes e desnormativos. No primeiro caso, mantêm,
50
em sua estrutura narrativa, os mesmos elementos dos contos de fadas tradicionais:
príncipe encantado, princesa, bruxa/ fada, cavalo branco, feitiço. No segundo,
transgridem esses contos, pois o príncipe é um ogro; a princesa é horrorosa; o cavalo
branco é um burro; e a fada madrinha, na verdade, é uma bruxa.
Destarte, seguindo o que argumenta Hutcheon, Shrek! e Shrek 2 são textos
paródicos, pois repetem-se “com distância crítica que marca a diferença em vez da
semelhança” (p. 17). Além do mais, ao parodiar a estrutura do conto de fadas tradicional,
essas narrativas prestam-lhe uma homenagem, mas também torcem “o nariz a uma
tradição muito antiga” (Fowles apud Hutcheon, p. 49). Para Fiker (p. 99), o parodista tem
um duplo papel: exorciza a moléstia, o clichê37
com o conhecimento de sua origem, e de desmistificador revelando ao público
o fundo falso (exaurido) da cartola. As condições propícias para tal
manifestação residem na crise ou fim de uma tradição38, formação ou gosto
literário, quando as formas estabelecidas estão prestes a se exaurir ou já exaustas
e reduzidas no mais das vezes a clichê. Um clichê, conforme definição de
dicionário, é uma expressão esgotada.
Ainda acerca da paródia e da sátira, Hutcheon (p. 67-68) ressalta a precisão
da definição que Ziva-Ben-Porat faz dos termos, que aqui transcrevemos parcialmente:
[...] As representações paródicas expõem as convenções do modelo e põem
a nu os seus mecanismos, através da coexistência de dois códigos na
mesma mensagem [...]
A sátira, em contraste, é:
“Representação crítica, sempre cómica e muitas vezes caricatural, de
uma “realidade não modelada”, i. e., dos objectos reais (a sua realidade
pode ser mítica ou hipotética) que o receptor reconstrói como referentes
da mensagem. A “realidade” original satirizada pode incluir costumes,
atitudes, tipos, estruturas sociais, preconceitos, etc.
Como exemplos de textos paródicos e satíricos, Hutcheon cita Dom Quixote, de
Cervantes e Love and Friendship, de Jane Austen. O primeiro, através da paródia às
convenções do romance épico e de cavalaria, satiriza aquele que acredita “que semelhante
heroicização na literatura é potencialmente transferível para a realidade” (p. 38). No
segundo, Austen, através da paródia ao romance popular de sua época, faz uma sátira
social à “visão tradicional do papel da mulher como amante dos homens” (p. 63).
37
38
O clichê, a nosso ver, corresponde ao estereótipo do príncipe encantado, da bela princesa, etc.
Falamos sobre o esgotamento das composições clássicas, na página 37.
51
Todas essas considerações confirmam Shrek! e Shrek 2 como textos paródicos
e satíricos. Por outro lado, observando o leque de ethos pragmático sugerido por
Hutcheon, seria suficiente afirmar que são textos paródicos. Ou seja, dizem respeito a
narrativas respeitosas, divertidas e escarnecedoras. Além do mais, uma vez que se trata de textos
literário e fílmico, respectivamente, convém destacar que a literatura e o cinema servem-se
“hoje da paródia para comentar o “mundo” de alguma maneira” (HUTCHEON, p. 141,
grifo da autora).
No diálogo entre literatura e cinema, os realizadores de Shrek 2, assim como já
havia feito William Steig em Shrek!, utilizam-se da paródia e da sátira a fim de “criar novos
efeitos”. Essa estratégia, a nosso ver, ratifica o que havíamos dito, inicialmente, acerca de
o texto fílmico ampliar o significado do texto literário.
52
3.1 – Do buraco negro ao castelo maluco: o herói moderno
desnuda o espaço social do conto Shrek!, de William Steig.
Shrek, um ser de fronteira
“A personagem é um ser fictício” (CANDIDO, 2005, p. 55). A expressão
pode soar paradoxal, mas define bem o personagem Shrek. O ogro é fictício por
pertencer ao mundo da fabulação e é um “ser” porque “a noção a respeito de um ser,
elaborada por outro ser, é sempre incompleta, em relação à percepção física inicial”
(CANDIDO, p. 56). Dessa maneira, a percepção que temos desse “ser” fictício pode ser
fragmentária.
Essa assertiva, contudo, em nada diminui sua profundidade na obra literária;
ao contrário, “[...] o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada
mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária,
incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes” (CANDIDO,
op. cit., p. 58). Nesse sentido, reconhecer Shrek como personagem fragmentário e
incompleto, é (re-)conhecer os nossos semelhantes a quem “conhecemos” a partir da
percepção externa e, portanto, incompleta.
Conscientes da diversidade do ser, na vida, a qual acrescentaremos o adjetivo
“real”, interpretamos cada pessoa de uma maneira a fim de conferir-lhe uma unidade.
Foster (apud Candido, p. 62), retoma essa distinção de forma pitoresca, classificando as
53
personagens como “planas” e “esféricas”. As primeiras “são facilmente reconhecíveis
sempre que surgem,” e acrescenta: “permanecem inalteradas no espírito porque não
mudam com as circunstâncias”; as segundas, Candido conclui, são “organizadas com
maior complexidade e, em conseqüência, capazes de nos surpreender” (p. 62-63).
Plana ou estática, esférica/ redonda ou dinâmica, a classificação da
personagem se amplia em A narrativa de ficção (ATAÍDE, 1973). Para Ataíde, aquelas
vivem “uma vida que acontece a elas, não dentro delas”, além de não evoluírem ou
apresentar “alterações na conduta interior” e parecem “não ter eu” (p. 43). As dinâmicas,
por sua vez, possuem “profundidade, vida interior, dramaticidade consciência do seu eu,
dos conflitos e problemas internos” que vivem (op. cit, p. 43).
“Eles todos são eu!”, “TODOS SÃO EU!” (STEIG, 2001). Vibra o
personagem Shrek que, embora desconhecesse a própria feiúra, não se entristece ao ver
que as várias imagens horrendas refletidas nos espelhos eram suas. Estar consciente do
seu eu -- “feliz por ser exatamente como sempre tinha sido” (STEIG) --, a nosso ver,
caracteriza Shrek como uma personagem redonda. Respaldamos nossa assertiva a partir
do argumento de Ataíde: “A personagem redonda supera o meio em que vive, possuindo
particularidades próprias. É indivíduo, ela mesma, singular e pessoal, e não se importa
com o que os outros pensem dela, pois o que lhe interessa é o seu eu” (p. 44).
Esse herói horrendo que se aceita tal como é, sem esperar que o encantamento
se desfaça a fim de que ele possa assumir uma forma humana, bela e perfeita, não é
comum nos contos de fada tradicionais. De acordo com Warner (1999, p. 314), “contos
sobre noivos animalescos oferecem o sonho de que, embora o pai da heroína a tenha
entregue à guarda de uma Fera, esta se transformará – num jovem radiante, um amante
perfeito”.
O ogro, protagonista do moderno conto de Steig, assemelha-se, em parte, à
figura do Barba Azul, um bicho-papão que, segundo Warner, fascina e “o nome em si
desperta associações com sexo, virilidade, energia masculina e desejo” (p. 275). O fato de
Perrault ter tingido sua barba de azul “intensificou o horror por sua aparência”; ademais,
Barba Azul “é representado como um homem contrário à natureza, seja quando sua barba
se tinge como a de um luxurioso oriental, ou quando ganha volume monstruoso sem que
ele recorra a artifícios” (p. 276). Para Warner, esse monstro azul tem a cor da profundeza
54
ambígua, ou seja, representa o céu e o abismo. Essa assertiva nos remete à expressão “ser
de fronteira”, sobre a qual discutiremos em momento ulterior.
Por ora, convém nos determos na simbologia das cores, mais precisamente na
cor de nosso herói, o verde. Na nossa época, em que o avanço tecnológico permitiu que o
homem, primeiro, fosse à Lua, e mais tarde depositasse um robô em solo marciano, a fim
de que este percorresse a superfície em busca de “seres” vivos, é lugar comum vermos
esses seres tingidos de verde – como outrora Perrault tingiu de azul, o Barba - na tentativa
de mostrar que os marcianos são o avesso da humanidade e que, portanto, devem ser
escondidos para que os papéis “jamais se invertam” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p.
942, grifo nosso).
Nesse sentido, ao ser expulso por seus pais, Shrek ameaça a ordem
estabelecida. A semelhança do ogro-marciano com o “homenzinho verde” estende-se,
também, à sua moradia. Em outras palavras, o “planeta” de Shrek, o buraco negro,
aproxima-se do planeta vermelho (não na tonalidade), já que ambos encerravam seres
avessos àquilo que a sociedade, meio em que o indivíduo habitante do planeta Terra vive,
dita como normal.
O personagem de Steig pode ser identificado com o Barba Azul, o marciano, o
herói moderno e fragmentado, o monstro pós-romântico. De acordo com Bellei (2000, p.
11, grifo do autor), “O conceito de “monstruoso” aplica-se, de forma geral, tanto ao
humano quanto ao não-humano e designa principalmente o híbrido e o deformado [...]”.
Etimologicamente, a palavra monstro, dentre outras acepções, significa “ser de
conformação extravagante, imaginado pela mitologia [...], pessoa cruel, desnaturada ou
horrenda” (CUNHA, A., 2001, p. 531). Nesse sentido, Shrek, o ogro, é um monstro, uma
vez que “[...] era capaz de cuspir fogo a cem metros de distância e soprar fumaça pelas
duas orelhas. Só de olhar, ele fazia os jacarés se esconderem de medo. Se uma cobra
bancasse a boba e o mordesse, ela entrava imediatamente em convulsão e morria”.
O ogro (Do fr. ogre) é um ser fantástico, como o bicho-papão, de que se fala
para assustar as crianças. No universo da simbologia, o ogro liga-se à imagem “simbólica
do monstro, que engole e cospe fogo, lugar das metamorfoses, de onde a vítima deve sair
transfigurada” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 651).
Todavia, no conto de Steig, mesmo quando nos parece que o ogro vai sofrer
uma transformação, tudo não passa de um sonho. A (única) cena que ilustra nosso
55
comentário ocorre quando Shrek “estava fora do ar”, ou seja, ele sonhou que estava
recebendo abraços, beijos e carinhos das crianças. Acordou assustado, mas tranqüilizouse: “Ainda bem que foi só um pesadelo... um pesadelo aterrador!”. Ironicamente, o que
acontecia era as pessoas e os fenômenos naturais, como o relâmpago, o trovão e a chuva,
assustarem-se com ele.
Uns pingos de chuva grossa começaram a cair. Quando batiam na corcunda do
Shrek, chiavam como água na frigideira. “Já viu alguém mais nojento?”, o
Relâmpago perguntou para o Trovão. “Nunca na vida”, trovejou o Trovão.
“Vamos lhe dar uma lição.” O Relâmpago disparou seu raio mais terrível no
cocuruto do Shrek. Shrek nem ligou: engoliu o raio, cuspiu um pouco de
fumaça e deu uma gargalhada. O Relâmpago, o Trovão e a Chuva caíram fora.
A fim de tornarmos nossa análise mais produtiva, e por que não dizer, também
mais prazerosa, convém analisarmos a monstruosidade de Shrek “não apenas como
fantasia exótica, mas como história social” (BELLEI, p. 14). Essa análise será
fundamental quando observarmos a relação entre o personagem e o espaço social.
A história tem-nos legado uma gramática do monstruoso com registro na
Idade Média, na época clássica e no Romantismo. Santo Agostinho, citado por Bellei,
preocupava-se com as formas mais diversas do monstruoso: “E existem homens sem
boca, que vivem apenas absorvendo odores pelo nariz; e outros que têm apenas um
cúbito de altura [...]”. David Williams, também citado por Bellei, observa que a cultura
Medieval européia “dedicou-se assiduamente a estabelecer quadros taxonômicos da
monstruosidade”, e acrescenta: “uma verdadeira gramática do monstruoso que tenta
explicar como o monstro é fabricado com base, principalmente, em quatro tipos diversos
de deformação: deformação por excesso, por falta, por deslocamento e por hibridismo”
(BELLEI, p. 12-13).
A figura do monstro tem se apresentado sempre como um ser de fronteira.
No período medieval, ele participava tanto do mundo material como do espiritual. Bellei
cita, como exemplo, um monstro de três cabeças representando a divina trindade.
Ademais, na cultural medieval, uma forma de “garantir simultaneamente as dimensões
material e simbólica do monstro era imaginá-lo com freqüência como dotado de uma
existência ao mesmo tempo real e incerta [...]” (Williams apud Bellei, p. 15).
No Classicismo, embora continue um ser de fronteira, o monstro é redefinido
sendo visto apenas como aberração da ordem natural das coisas. Tal redefinição não o
impede de querer participar dessa ordem. Diferente do monstro medieval que transitava
56
entre o divino e o terreno, o monstro clássico não tinha a mesma “desenvoltura” uma vez
que “sua condição híbrida de humanidade (que o torna semelhante ao outro superior) e de
monstruosidade (que o torna um outro inferior a ser excluído)” (BELLEI, p. 17). Nesse
sentido, e como afirma Bellei (p. 17-18), trata-se de uma “Criatura da Fronteira marcada
sempre por um não-ser mais do que pelo ser”. Em outras palavras, o monstro clássico
vive tanto dentro da norma como fora dela. No primeiro caso, ele a questiona; no
segundo, confirma-a.
No séc XIX, o monstro sofre uma nova redefinição, em face do contexto
cultural, e, possivelmente, persiste até nossos dias. Segundo Bellei (p. 21), o monstro pósromântico distancia-se do monstro clássico: primeiro, porque é ambivalente, ou seja, é
humano e não-humano ao mesmo tempo; segundo porque, embora autônomo, ele está
“condenado a uma permanente falta de identidade”. A insegurança social que vive tem
levado-o a negar “a sua condição anômala”, todavia essa atitude não tem proporcionado a
sua integração completa “no sistema dominante de valores ao qual deseja pertencer”
(BELLEI, p. 11).
A figura do monstruoso, contudo, já aparece na mitologia clássica. Em seu
“Introdução ao Mito dos Heróis”, Brandão (1987, p. 53) observa que
a beleza e a bravura de Aquiles podem ser empanadas física e moralmente por
caracteres monstruosos: um herói aparece igualmente e com muita freqüência
sob forma anormalmente gigantesca ou como baixinho; pode ter um aspecto
teriomorfo e andrógino; apresentar-se como fálico; sexualmente anormal ou
impotente; pode ser aleijado, caolho, ou cego; estar sujeito à violência
sanguinária, à loucura, ao ardil e astúcia criminosa, ao furto, ao sacrilégio, ao
adultério, ao incesto e, em resumo, a uma contínua transgressão do métron, vale
dizer, dos limites impostos por deuses aos seres mortais.
Admitindo uma tradução “mais ou menos livre” acerca do pensamento de
Angelo Brelich, Brandão (p. 67) atribui essa ambivalência no caráter do herói ao também
“mundo ambivalente dos começos, um mundo diferente do atual”. Ademais, personagens
“monstruosas e imperfeitas”, dentre as quais incluímos Shrek, “se constituem
simultaneamente nos agentes sobre-humanos da transformação criadora de que surge a
ordem atual”. Vale ressaltar que diferente do herói-monstro clássico que “está sempre
pronto para defender o status quo vigente” (p. 68), Shrek surge para romper com ele.
Retomando a análise do personagem Shrek, agora à luz dessa gramática do
monstruoso, observamos que o ogro verde é, de fato, um ser de fronteira e, tal qual o
57
monstro clássico, revela-se como parte do dentro e do fora. Em outras palavras, enquanto
permanecia no buraco negro, longe da “civilização”, Shrek confirmava a ordem: as flores
desabrochavam; a bruxa cantarolava enquanto cozinhava morcegos num caldo de
terebintina e tartaruga; o lavrador ceifava; o dragão, ainda, era assustador, enfim, o mundo
estava harmônico.
Ao ser expulso do buraco negro, o ogro passa a ameaçar a ordem com sua
forma excêntrica, diversa, horrenda, ou seja, humana. Conforme citado anteriormente, a
humanidade persiste na própria deformação. Além disso, como o humano, ele deseja
saber do amanhã: “Diga o meu futuro, dona, que eu lhe dou alguns dos meus piolhos
raríssimos”. A dona com que ele fala é a bruxa, e o pedido é feito depois que ela volta a si.
A revelação que a bruxa lhe faz deixa-o contentíssimo: “Oba, uma princesa!”. “Lá vou
eu!”
Nesse sentido, a atitude de Shrek aproxima-o do herói dos contos de fadas
tradicionais que busca uma princesa com a qual irá se casar; bem como do monstro pósromântico uma vez que este, produto da insegurança social, marginalizado, deseja a
confirmação da norma. Todavia, a princesa com que se casou era mais feia do que ele, daí
o seu contentamento; além do mais, o fato de os dois, após o casamento, viverem
horríveis (e não felizes) confirma Shrek, assim como a sua esposa, mais como um não-ser
do que um ser, ou seja, um ser de fronteira.
58
Quem transforma quem?
Puseram-no então para fora de casa com um bom pontapé no traseiro. Foi a primeira vez
que Shrek saiu do buraco negro em que fora criado.
Essa é a primeira referência verbal que temos do espaço social onde principia a
ação em Shrek!. Segundo Gancho (2003, p. 23), “Espaço é, por definição, o lugar onde se
passa a ação numa narrativa”. Nelly Novaes Coelho (apud Lins, 1976, p. 74), observa o
espaço social como ambiente natural e ambiente social. O primeiro corresponde à
natureza, paisagem livre; o segundo, à natureza modificada pelo homem, a saber, casa,
castelo.
Nesse sentido, o conto de Steig ocorre tanto em um ambiente natural como
em um ambiente social, uma vez que o cenário onde se desenrola a ação é a estrada, o
mato escuro, o bosque, o meio do caminho, o campo florido, o castelo maluco, a sala de
espelhos e o salão do castelo.
O que nos chama a atenção é o fato de esses lugares, aparentemente, ao
contrário do que preceitua Gancho (p. 25), parecerem não influenciar atitudes,
pensamentos e emoções do personagem ou, ainda, não sofrerem, eles próprios, eventuais
transformações. Principalmente, se levarmos em consideração que o espaço, em alguns
casos, “é o móvel, o fulcro, a fonte da ação” (LINS, 1976, p. 67).
Ademais, que funcionalidade um elemento espacial teria se não estivesse
relacionado a um outro elemento da narrativa? Segundo Lins, “a funcionalidade de um
fator incorporado à narrativa, (sic) só chega a ser devidamente captada e avaliada em
termos de macro-estrutura” (p. 95). Em outras palavras, não poderíamos estudar o
espaço, unidade do sistema complexo narrativo, sem considerarmos, por exemplo, o
tempo, o personagem. Isso ocorre porque as unidades desse sistema “se refletem entre si e
repercutem umas sobre as outras” (p. 95, grifo nosso).
Isso posto, o espaço social em Shrek! pode revelar-se cheio de surpresas. A fim
de confirmar nossa assertiva, começaremos por analisar a “casa” onde Shrek viveu. O
buraco negro, diferente dos demais ambientes da narrativa, passa-nos a idéia de sujeira e
mistério; além disso, a paisagem em volta parece sem vida, devastada.
59
O buraco negro em que Shrek vivia, embora se situasse num mundo obscuro,
não era vazio, uma vez que encerrava possibilidades. Em outras palavras, ele encerrava o
herói moderno, excêntrico, falho, inconformado. Este seria revelado ao mundo, saturado
pelo estereótipo do herói clássico.
Em sua caminhada, Shrek se depara com um cenário diverso do que conhecia:
havia luz, flores, árvores e as duas últimas “vergam-se” à sua passagem ao sentir seus
gases horríveis. Destarte, o ogro se impõe à ordem que impera no ambiente natural da
narrativa.
Convém destacar que o buraco negro e o mato escuro contrastam com a
luminosidade dos demais ambientes de Shrek!. Segundo Schüler, “Desde a antigüidade
clássica, o mundo civilizado é luminoso, são nítidos os contornos dos objetos, a luz da
razão atravessa a realidade. O sombrio, o exótico determinam as fronteiras [grifo nosso] do
mundo civilizado (p. 64)
Dissemos, anteriormente, que Shrek é um ser de fronteira e sua relação com a
norma vai depender do seu grau de distância. Observamos que nosso argumento se
confirma a partir da análise de um outro ser especialista em horrores, a bruxa. Em “Pósmodernidade e publicidade: a desinvenção da infância”, Tonin (2005, p. 10-11) observa
que nos contos
os monstros assumem a função socializadora, seja a de atribuir castigos às
pessoas que não seguem as regras sociais de determinadas épocas, ou de servir
como ameaça às ações consideradas transgressoras. A Mula-Sem-Cabeça, o Boida-Cara-Preta, o Lobo Mau, o Bicho-Papão, o Diabo e a Bruxa estabelecem os
limites, os campos de ação e também fornecem a idéia da transgressão, ou seja,
figuram o que não se pode fazer: adultério, preguiça, desobediência, ambição,
fuga, etc., todas as condutas morais extintas de uma sociedade que se quer
civilizada.
Ameaça à sociedade “civilizada”, assim como Shrek, o lugar reservado à Bruxa
é o mato escuro. Desse modo, estar longe da “civilização” confirma a ordem,
principalmente, quando ela própria, uma especialista em horrores, se assusta com a
aparência do ogro e desmaia.
Outro cenário em Shrek! repleto de simbologia é o bosque39. De acordo com
Fernandes, F. (1999)40, “O bosque desempenha um papel arquétipo (sic) essencial no
39
Usaremos o vocábulo “floresta” uma vez que este, assim como “mata” e “grande porção de árvores reunidas”, é
um sinônimo para a palavra bosque. Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 114.
60
imaginário dos contos de fadas. Crianças e princesas perdem-se nele. Também nos
bosques se encontram os seres sobrenaturais e as bruxas”. A assertiva da autora pode ser
ilustrada com as estórias de “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho.”
Nesse sentido, o significado do vocábulo bosque passa-nos a idéia de
ambiente aterrador, uma floresta perigosa. De acordo com Chevalier e Gheerbrant, “a
grande floresta devoradora tem sido cantada numa abundante literatura hispanoamericana inspirada pela floresta virgem, a madre-selva [...]”. Os autores registram ainda que
há “outros poetas mais sensíveis ao mistério ambivalente da floresta, que gera, ao mesmo
tempo, angústia e serenidade, opressão e simpatia, como todas as poderosas
manifestações da vida” (p. 439, grifo dos autores).
No conto de Steig, a cena que ocorre à entrada do (a) bosque/floresta
permite-nos observar essas características. Vejamos: ao se aproximar do bosque, Shrek
encontra um cartaz pregado numa árvore com os seguintes dizeres:
Presta atenção viajante,
É grande o perigo que corres:
Dê meia-volta, não vá adiante,
Se entras no bosque, tu morres!
O alerta sobre os perigos que o bosque oferecia não deteve o ogro viajante que
seguiu o seu caminho tranqüilamente. Quanto ao mistério ambivalente da floresta,
reconhecemos a opressão, no dragão, e a simpatia, em Shrek.
E, claro, mal entrou no bosque, um dragão enorme cortou seu caminho. Shrek
sorriu e curvou-se, fazendo reverência. O dragão derrubou-o no chão, mas
Shrek nem ligou: ficou ali deitado, achando divertidíssimo.
Convém ressaltar que o caminho percorrido por Shrek, em busca de sua noiva,
paulatinamente, desnuda a (falsa) harmonia do espaço social, revelando seres que, embora
pareçam autômatos e acríticos, não admitem ser questionados. A título de exemplo,
reproduzimos abaixo o diálogo entre Shrek e um lavrador que ceifava e cantava:
“Ei, jeca”, chamou Shrek. “Por que você está tão feliz?” O lavrador cantarolou:
“Eu nunca parei para me perguntar Por que é que eu vivo feliz a ceifar.
Ceifando e cantando eu quero morrer, Então caia fora, cansei de te ver.”
40
Fátima Fernandes apresentou o ensaio “Os contos de fadas na poesia de Fernanda de Castro”, no SEXTO
CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Disponível em <
http://www.geocities.com/ail_br/oscontosdefadasnapoesia.htm> Acesso em 11 nov. 2005.
61
Parte da resposta automatizada do lavrador assemelha-se à do burro41, que ao
ouvir a palavra mágica, dita por Shrek, reage de forma sonolenta, zurrando:
Pelos campos vou andando,
Pelos campos vou pastando.
Eu pasto trevo e capim,
Ando e pasto, pasto e ando,
Nunca paro, sou assim.
“Eu nunca parei para me perguntar”. A fala do lavrador, ao afirmar que nunca
havia se questionado acerca da sua felicidade, está em consonância com o que diz Heller
(1992, p. 37) sobre a vida cotidiana ser aquela que mais se presta à alienação. Para a autora de
O Cotidiano e a História (p. 37-38, grifos da autora),
Na cotidianidade, parece “natural” a desagregação, a separação de ser e
essência. [...] o homem devorado por e em seus “papéis” pode orientar-se na
cotidianidade através do simples cumprimento adequado desses “papéis”. A
assimilação espontânea das normas consuetudinárias dominantes pode
converter-se por si mesma em conformismo, na medida em que aquele que as
assimila é um indivíduo sem “núcleo”; e a particularidade que aspira a uma
“vida boa” sem conflitos reforça ainda mais esse conformismo com a sua fé.
Nesse sentido, Lavrador e Burro cumprem os seus papéis: “ceifando e
cantando eu quero morrer”, “ando e pasto, pasto e ando/ nunca paro, sou assim”. Tudo a
que almejam é uma vida boa, sem conflitos. Comportamento oposto é o de Shrek, que
mesmo se deparando com seres alienados, é um ser consciente, condutor de sua própria
vida. De acordo com Heller (p. 40, grifo da autora).
41
Na linguagem pejorativa, trata-se de um indivíduo pouco inteligente; bronco; estúpido. Cf. FERREIRA, A., 2001,
p. 120.
62
A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendose a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da
realidade e impor a ela a marca de sua personalidade. [...] a condução da vida
não pode se converter em possibilidade social universal a não ser quando for
abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-se na condução
da vida mesmo enquanto as condições gerais econômico-sociais ainda
favorecem a alienação. Nesse caso, a condução da vida torna-se representativa,
significa um desafio à desumanização [...].
Ao soltar “puns” e assustar todas as criaturas: homens, mulheres crianças,
porcos, vacas, galinhas, cães, coelhos e pássaros, Shrek impõe a “marca de sua
personalidade”. Além do mais, o seu diálogo com (o que estamos considerando) seres
autômatos, destaque para o lavrador, desvela a desumanização do indivíduo, subjugado
pela classe dominante.
Do ponto de vista da narrativa, a atitude do ogro desperta até a atenção do
narrador que, num raro momento de intromissão, indaga: “Como é que ele podia gostar
de ser tão repulsivo?” Esse herói anômalo, liberto do buraco negro, não conhece a
repressão. Sua linguagem, sua forma monstruosa, seus (maus) hábitos estão em sintonia
com o mundo real, não mais idealizado.
A retórica, que nos romances anteriores silenciava os conflitos com o peso da
inércia, fragmenta-se agora. As palavras, libertas do respeito a convenções,
afrontam, ferem, denunciam os véus com que se pretendia esconder a face real
das coisas (SCHÜLER, 1989, p. 66).
Como ocorrem em muitos contos de fadas tradicionais, os lugares por onde
Shrek transita não são nomeados de modo definido: no meio do mato escuro, perto de
um bosque. Essa imprecisão do lugar não é privilégio apenas dos contos de fadas que,
visando ao mergulho na fantasia, conjugam a imprecisão de tempo e lugar: “era uma vez”,
“há muito anos atrás” bem como “num certo reino”, “próximo à cabana” e “no meio da
floresta”.
Acerca dessa questão, convém registrar o que diz Lins:
[...]os graus através dos quais o escritor define o espaço: sua liberdade de
escolha (liberdade relativa, pois nunca é indiferente à estrutura global do texto)
oscila entre a pintura minuciosa de uma sala, como em Thomas Mann, à
simples nomeação de uma rua, um hotel, uma cidade etc., havendo ainda os
casos em que nem sequer se chega ao nome, observando-se, em relação ao
espaço, uma imprecisão que de certo modo, nega-o (p. 88, grifo nosso)
Ao nomear o cenário de Shrek! com dísticos (buraco negro, castelo maluco,
num campo florido), Steig faz algo que data de uma época longínqua e que já havia sido
63
observado por Michel Butor (1974, p. 42), “primeiramente, como no teatro de outrora,
bastará uma tabuleta: “lugar magnífico”, “bosque encantador”, “floresta horrível”, “uma
esquina”, “um quarto”. [...] Lugar magnífico, você diz, mas que estilo de magnificência?”
A imprecisão, assim como a precisão, é muito freqüente no tratamento do
espaço e pode ser comprovada a partir da “leitura de relatos inseridos numa tradição
remota, tanto do Ocidente como do Oriente (LINS, p. 88). Como ilustração, citamos os
excertos de “Tema para versos” e “A perfeição”, contos de Eça de Queirós (DUARTE,
2002):
Era, pois, uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em
cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste
a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas
(p. 138, grifo nosso).
Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos,
donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses,
o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar
muito azul que mansa e harmoniosamente rolava sobre a areia muito branca (p.
257, grifo nosso).
Embora no segundo excerto percebamos, claramente, uma especificação do
espaço, isto não “significa obrigatoriamente uma ruptura com o universo” (SCHÜLER,
op. cit, p. 71). Entendemos que as indagações/considerações de Ulisses, embora este esteja
na ilha de Ogígia, são universais. Ademais, acreditamos que a imprecisão do espaço social
no conto de Steig universaliza os pensamentos e conflitos vividos pelo homem/herói
moderno.
Além do mais, como esse é um conto de fadas moderno, entendemos que
algumas referências espaciais buscam parodiar os contos de fadas tradicionais. A título de
exemplificação, transcrevemos o diálogo entre Shrek e o burro:
“Não era para você me levar a um lugar, sei lá onde?”
“Era sim. Ao cavaleiro biruta. Que guarda a entrada. Do castelo maluco. Onde
a repugnante princesa. Espera.”
“[...] a um lugar, sei lá onde”, essa imprecisão do espaço social é
indubitavelmente paródica e, como tal, subverte os modelos estéticos do passado,
proporcionando uma transformação renovadora. Em outras palavras, a expressão
coloquial “sei lá” corrobora a idéia de que os valores louvados numa época clássica não
atendem mais às necessidades do herói moderno. Sobre essa questão, Nina comenta:
64
[...] o conceito de paródia no mundo moderno inclui um aspecto fundamental:
a renovação. Os modelos estéticos – sejam eles provenientes da Antiguidade,
Renascença, ou de décadas atrás – são revistos sob outros ângulos,
dimensionados por um novo contexto histórico (1994, p. 17)
Há uma outra questão até então não discutida, mas que consideramos
relevante; refere-se à região escolhida por Steig para situar a narrativa: o campo. Por que
não a zona urbana ou o litoral? Segundo Ferreira, A. (2001, p. 132), dentre outras
acepções, o campo se caracteriza como “zona fora do perímetro urbano das grandes
cidades, na qual predominam as atividades agrícolas”. Para Schüler (p. 67), “as regiões que
se distanciam das cidades litorâneas podem atrair por lembrarem o paraíso [...]”.
Nesse sentido, o lugar onde o ogro se encontra quando “está fora do ar”
representa o paraíso: “Sonhou que estava num campo florido, onde as crianças brincavam
e os passarinhos gorjeavam. Algumas delas o abraçavam, cobrindo-o de beijos e carinhos
sem parar.”
A resposta de Shrek a essa demonstração de afeto é o choro. O que nos leva a
supor ser essa uma reação normal, pois, talvez, ele estivesse emocionado com o carinho
recebido. Nossa suposição, contudo, não se confirma uma vez que, no momento
seguinte, o ogro acorda assustado e diz: “Ainda bem que foi só um pesadelo... um
pesadelo aterrador!”
Então, como explicar o choro de Shrek? Uma possível interpretação seria,
justamente, por ele não querer recuperar a condição divina do herói clássico, obediente às
leis divinas, oprimido, conformado, acrítico. Além disso, Shrek é um monstro e ao
divergir da norma, reafirma sua liberdade. Em relação ao espaço (buraco negro), porém,
não há divergência.
Essa liberdade, contudo, é colocada à prova no momento em que o ogro
atravessa a ponte levadiça e adentra no castelo maluco. Shrek, sempre tão seguro, parece
titubear diante de sua até então desconhecida condição: aceitar-se como ser horrendo ou
negar sua condição anômala. Transcrevemos, abaixo, como o ogro se sentiu:
Shrek ficou tão assustado que mal conseguiu dar uma cusparadinha de fogo.
Todos aqueles horrores cuspiram de volta. Ele saiu correndo; todos correram
também. Deu um murro em um deles, mas seu punho atingiu um vidro! Shrek
estava na Sala de Espelhos! “Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO
EU!” Olhou-se nos espelhos, cheio de uma raivosa auto-estima, feliz por ser
exatamente como sempre tinha sido.
Mas, o que o espelho (Do lat. speculum) reflete/revela?
65
A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência [...]De acordo
com sua orientação, o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra. [...]
O espelho não tem como única função refletir uma imagem; tornando-se a
alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação,
passa por uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o
sujeito contemplado e o espelho que o contempla. A alma termina por
participar da própria beleza à qual ela se abre. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, p. 393 et. seq.)
Destarte, os espelhos refletem a verdade. Revelam ao mundo o herói
moderno, crítico, despido da falsa perfeição, que mais se impõe do que se intimida diante
da sociedade moderna. Ou seja, o espaço social, em Shrek!, não robotiza o personagem.
Ainda acerca dos espelhos, Colasanti (p. 104-105) observa que há os “que
abrem passagem para dentro do seu próprio reflexo, como o de Alice”, bem como
“imagens de todo tipo” e que “Preciso é fazer a própria escolha”. Shrek fez a sua. Ao
vibrar por sua forma anômala, reafirma sua individualidade.
O mesmo não ocorreu com o Anão, personagem do conto “O Aniversário da
Infanta” (1992), de Oscar Wilde. No dia de seu 12º aniversário, a Infanta de Espanha
recebeu várias homenagens, dentre elas, a mais engraçada de todas: “a dança do pequeno
Anão” (p. 92). Capturado por dois nobres que caçavam, era a primeira vez que o
monstrinho aparecia em público. A analogia do personagem de Wilde com Shrek se dá
por duas razões: primeiro, como o ogro, o Anão tinha “total falta de consciência do
grotesco de sua aparência. Na verdade, ele parecia muito feliz e com uma energia
infindável” (p. 93). Apaixonado e acreditando ser correspondido, o Anãozinho ficou
extasiado ao saber que repetiria, mais tarde, sua “dança” diante da Infanta.
66
Enquanto aguardava, o Anão andou por toda parte esperando encontrar a
princesinha e declarar-lhe o seu amor. Confiante que a Infanta aceitaria o seu convite de ir
para a floresta com ele, o Anão entra na sala mais bela e brilhante, lugar da revelação, e vê
uma outra figurinha que o observava. Seria a Infanta?
Seu coração estremeceu, um grito de alegria escapou-lhe dos lábios, e ele saiu
para a luz do sol. Quando o fez, a figura também se moveu, e ele pôde vê-la
claramente. A Infanta! Era um monstro, o monstro mais grotesco que ele vira
em toda a sua vida. Não era formado corretamente como eram todas as outras
pessoas, mas corcunda, com as pernas e os braços tortos, e uma cabeça enorme
com vasta juba de cabelo preto. O Anãozinho franziu o cenho, e o monstro
também franziu o seu. Ele riu, e o outro riu com ele, pousando as mãos nos
quadris, como ele mesmo estava fazendo. [...] Quando a verdade despontou
dentro dele, o Anãozinho soltou um grito louco de desespero e caiu no chão
aos prantos. [...] Por que não o haviam deixado na floresta, onde não havia
espelhos que lhe dissessem o quanto ele era repulsivo? Por que seu pai não o
matara, ao invés de vendê-lo, para passar essa vergonha? (p. 103-105)
Há uma outra questão que aproxima Shrek! e “O Aniversário da Infanta”:
trata-se da postura preconceituosa dos personagens secundários em relação ao ogro e ao
Anão, respectivamente. Enquanto no texto de Steig coube ao relâmpago, ao trovão e à
chuva esse comportamento, conforme discutimos anteriormente; no conto de Wilde, são
as flores do jardim do palácio que julgam o Anãozinho por sua aparência o que, segundo
Mendonça (1999, p. 185), não difere da opinião da Infanta. Em seu artigo “A reading of
Oscar Wildes’s “The Birthday of The Infanta””, Mendonça sugere que há conexões entre
as primeiras descrições do jardim do palácio e a personalidade da Princesinha. Vejamos
como se comportam as flores...
-- Ele é realmente feio demais para ter permissão de brincar em qualquer lugar
onde nós estejamos – gritaram as Tulipas.
-- Ele deveria beber suco de papoula e dormir por mil anos – disse um dos
grandes Lírios escarlates, muito acalorado e zangado (WILDE, p. 94).
[...]
Empinaram seus narizes, fazendo caras de grande superioridade, e ficaram
encantadas quando, depois de certo tempo, viram o Anãozinho levantar-se da
relva e caminhar na direção do Palácio.
67
-- Não há dúvida de que ele deve permanecer trancado dentro de casa pelo
resto de sua vida – disseram elas. – Olhem só a corcunda dele, e suas pernas
tortas – e começaram a dar uns risinhos entre si. (Ibidem, p. 97)
E a Princesinha...
-- Mas por que não haveria ele de dançar de novo? – perguntou a Infanta rindo.
-- Porque seu coração partiu-se – respondeu o Tesoureiro.
E a Infanta franziu o cenho, enquanto seus delicados lábios cor-de-rosa
comprimiam-se com desdém.
-- No futuro, os que vierem brincar comigo não devem ter coração – gritou ela
e saiu correndo para o jardim. (Ibidem, p. 107)
Em uma cena como essa, podemos constatar que o narrador guia o leitor do
“world of fantasy” ao “world of reality”42 (MENDONÇA, p. 185). A leitura que temos
feito de Shrek! também aponta nessa direção. O julgamento (preconceituoso) do Trovão,
da Chuva e do Relâmpago, no conto de Steig, é traduzido/ ampliado no mundo fantástico
da animação Shrek (2001): “Os ogros são como cebolas”, “Os ogros têm camadas”, “Os
ogros são melhores do que as pessoas acham”, fazendo um “link” como o mundo real:
“As pessoas julgam-nos por nossa aparência”.
Retomando a questão do espelho nos textos de Steig e Wilde, constatamos que
ambas as cenas das salas de espelhos nos colocam diante de uma indagação feérica e
humana: “Espelho, Espelho meu, há alguém neste mundo mais belo do que eu?” Embora
metonímia da beleza na sociedade contemporânea, ironicamente, os espelhos do castelo
maluco, em Shrek!, multiplicam a feiúra do ogro (pleonasmo?, hipérbole?), subvertendo a
função tradicional que lhe foi atribuída.
Apesar da subversão, a localização da Sala de Espelhos dentro de um castelo,
construção que figura, geralmente, como local “tão inacessível quanto desejável”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 199), confirma a idéia de que o castelo maluco
possui dois dos principais “valores” dessa sociedade: fama e dinheiro. E, mesmo que falte
o fator beleza, essa sociedade leva em consideração a questão financeira. Ilustraremos
42
“mundo da fantasia”; “mundo da realidade” (Tradução nossa).
68
nosso argumento com o diálogo entre Shrek e o cavaleiro que guardava a porta do
castelo, onde a princesa se encontrava:
“Tem alguém aí dentro e lá no castelo?” “Aqui há um cavaleiro que nada teme
na vida, e lá dentro uma donzela horrorosa e bem-nascida”, foi a resposta.
Em outras palavras, embora o dinheiro da princesa minimizasse a sua
condição anômala, não impediu que ficasse encerrada num castelo (maluco!). Nesse
sentido, o castelo e o buraco negro, espaços sociais que iniciam e encerram esse conto
moderno, assemelham-se, pois ambos mantiveram os monstros (ogro e princesa
horrorosa) longe da sociedade “perfeita”.
Isso posto, podemos constatar que, ao percorrer o trajeto do buraco negro ao
castelo maluco, o herói moderno, além de desmascarar a sociedade contemporânea,
permite que outros seres anômalos (como a princesa horrorosa) passem a fazer parte
dessa sociedade, mas não como seres autômatos, robotizados. Ademais, o casamento de
um ogro verde com uma princesa (horrorosa) contribui para que se revejam os padrões
estabelecidos pela classe dominante.
69
3.2 - Far Far Away: uma alegoria da sociedade
contemporânea.
Todo mundo lê “filmes”.
Graeme Turner
Durante séculos, tem sido possível ler o mundo, principalmente, a partir de
textos escritos, muitos deles clássicos como: Dom Quixote, de Cervantes; Hamlet, de
William Shakespeare; Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões; Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Ao leitor mais atento, foi possível, além do prazer
da leitura, compreender o homem e o meio social inseridos nessas narrativas.
Situação análoga ocorreu com a leitura dos contos de fadas como Branca de
Neve e os sete anões, Peter Pan, A Bela e a Fera, Alice no país das maravilhas, Cinderela, João e
Maria, dentre outros, uma vez que segundo Warner (1999, p. 18) essas histórias possuem
duas importantes características: “sentir prazer pelo fantástico e curiosidade pelo real”.
Para Wallace Stevens (apud Warner) “visualizar um mundo fantástico nos ajuda a enxergar
o mundo real” (p. 19).
Enxergar o mundo real a partir do universo fantástico dos contos de fadas tem
sido possível, uma vez que os elementos estruturais dessas narrativas – a saber, tempo,
espaço, personagens, etc. -- são anônimos, o que corrobora a universalização dos
conflitos vividos pelo sujeito leitor que, de alguma forma, se identifica com os conflitos
vividos pelas personagens.
Acerca dessa questão, convém registrar o que diz Warner:
Paradoxalmente, o aspecto remoto de seu cenário tradicional – o palácio, a
floresta, o reino distante e sem nome, o anonimato e a falta de particularidade
de seus personagens: reis, rainhas e princesas com nomes como Bela ou
Princesa dos Cabelos de Ouro – que não podiam pertencer a ninguém no
âmbito histórico e social dos narradores ou dos receptores dos contos de fadas
-, tudo isso fortalece a capacidade das histórias de prender-se à realidade (p. 18).
Coelho (2003), por sua vez, analisando “Os contos de fadas e a memória
popular”43 observa que as fábulas de La Fontaine são atemporais, uma vez que se
fundamentam na natureza humana “e esta, como sabemos, continua a mesma através dos
milênios” (p. 23).
43
Trata-se do segundo capítulo do livro O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos, de Nelly Novaes Coelho.
70
No século XX, com a consolidação do cinema, assistimos a uma nova
possibilidade de leitura do mundo: o texto fílmico. Através da sétima arte, tem sido
possível, de acordo com Turner (1997, p. 83), “[...] compreendermos as sociedades
retratadas nos filmes por meio da experiência em nossa própria sociedade”. Turner,
contudo, chama-nos a atenção para o fato de levarmos em consideração
[...] as relações específicas estabelecidas entre um filme e todo o contexto em
que ele é visto. [...] No nível mais simples, as narrativas do cinema são vistas
dentro de um contexto que tanto é textual como social. Do contexto social
pode-se (sic) inferir as ligações entre um filme e um movimento social – Rambo
e o reaganismo, por exemplo – ou entre um filme e os fatos contemporâneos –
Tubarão como um filme de Watergate, ou The Fly/A Mosca como uma alegoria
da Aids, por exemplo (p. 81).
Desde a primeira metade do século passado, essas duas formas de leitura, a
saber: texto literário e texto fílmico, têm se aproximado através da adaptação da
linguagem verbal para a linguagem audiovisual. Diversos são os textos literários (e
consagrados) que foram adaptados pela indústria cinematográfica. Sem dúvida, o sucesso
econômico de adaptações fílmicas de obras conhecidas é um estimulo a produtores e
cineastas, mas, conforme já observado por George Lukács (apud Johnson, p. 9) a questão
não é só financeira, diz respeito à revitalização da obra literária.
Se o lucro não é o único motivo, que outra razão, então, teria um cineasta ao
adaptar Morte em Veneza, de Thomas Mann; Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, de Mário
de Andrade; e histórias infantis como Cinderella, de Perrault; Crônicas de Nárnia: O Leão, a
Feiticeira e o Guarda-roupa, de C. S. Lewis e Shrek!, de William Steig?
Tomemos como exemplo, inicialmente, a adaptação do romance Macunaíma,
pois este reverbera o que diz Lukács uma vez que, para Johnson, “Joaquim Pedro44
tentou, em todos os momentos, fazer o filme relacionar-se diretamente com a realidade
social, política e econômica do Brasil moderno” (p. 123). A título de exemplo, o autor
observa que, na adaptação, Joaquim Pedro “inverteu o código de expectativas e
comportamento da ideologia dominante” (p. 155).
Noutras palavras, o herói (de mau caráter) do texto fílmico, diferentemente do
homem provedor da sociedade patriarcal, fica em casa desempenhando o papel de objeto
sexual, enquanto sua mulher vai “guerrear na cidade” (JOHNSON, p. 155). O tempo e as
44
Joaquim Pedro de Andrade é o roteirista do filme Macunaíma, o herói de mau caráter (1969), adaptado da obra
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade. Cf. JOHNSON, 1982, p. 39 e 185.
71
diferentes linguagens (verbal e visual) não impediram que os textos de Mário de Andrade
e Joaquim Pedro coincidissem em determinadas questões – no combate à ideologia
dominante, por exemplo – e divergissem em outras.
Quanto aos contos de fadas tradicionais, percebemos que em determinadas
adaptações fílmicas realizadas pela Walt Disney, destaque para Cinderella (1950), quatro
séculos depois da publicação do texto escrito, permanecem vivos os valores da sociedade
patriarcal como a submissão da criança e da mulher e o poder divino nas mãos de
personagens masculinos.
O que dizer, então, do moderno conto de fadas Shrek! (2001), de William Steig,
e suas adaptações na década seguinte? A adaptação Shrek 2 revitalizou, para usarmos a
expressão de Lukács, o já revitalizado45 conto de Steig? Compreendemos a sociedade
retratada na animação “por meio da experiência em nossa própria sociedade”, como disse
Turner? O que vem depois do “viveram felizes”?
Segundo Warner, “Os finais felizes dos contos de fadas são apenas o começo
da história maior, e qualquer estudo que tente dar conta de sua totalidade irá tropeçar e
cair antes que qualquer tipo de final possa ser alcançado” (p. 24). Essa assertiva nos
remete ao texto fílmico Shrek 2, uma vez que Andrew Adamson, roteirista e diretor da
animação, inicia a história com os recém-casados, Shrek e a princesa Fiona, em viagem de
lua-de-mel.
Além do mais, a animação vai discutir o que vem depois do casamento: eles
são felizes – ou horríveis, como queria Steig – para sempre? Vejamos: ao retornarem da lua-
45
Atribuímos essa revitalização ao conto Shrek! uma vez que, diferentemente dos contos de fadas tradicionais, o
autor nos apresenta como herói um ogro-herói verde, feiíssimo, que cuspia fogo e soprava fumaça pelas orelhas.
72
de-mel, os recém-casados recebem um convite dos pais de Fiona para irem a Far Far
Away. Shrek não acha que seja uma boa idéia, mas é convencido pela esposa.
No trajeto entre o pântano e Far Far Away, percebemos que a distância do
reino não se restringe à questão denotativa; na verdade, a distância entre o pântano e o
buraco negro em relação ao reino Tão Tão Distante se manifesta, principalmente, no nível
sócio-econômico, uma vez que os personagens não correspondem aos ideais do reino –
sendo este o símbolo da sociedade contemporânea. O reino Tão Tão Distante, assim
como a tríade que forma seu nome, ilustra os valores da sociedade capitalista: fama, beleza
e riqueza.
Dissemos anteriormente, ao citar Turner, que podemos inferir ligações entre
um filme e um movimento social e que uma película pode representar uma alegoria de um
fato contemporâneo. Conscientes da densidade do significado do vocábulo “alegoria”,
que compõe o título deste subcapítulo, convém registrar que o utilizamos no seu sentido
mais comum: “exposição de um pensamento sob forma figurada” (CUNHA, A., 2001, p.
28).
Para Rodella et al. (2005, p. 113),
A alegoria é uma metáfora elaborada, geralmente na forma de uma imagem. [...]
Os gregos já usavam essa figura de linguagem em sua Filosofia e na Literatura.
[...]Nas fábulas geralmente é comum termos atitudes e sentimentos humanos
representados em animais. A raposa esperta também é uma forma de alegoria.
Na escultura e na pintura as alegorias são bastante tradicionais. Desde a Idade
Média, por exemplo, a figura de esqueletos tem sido utilizada para representar a
morte”.
É no sentido de representação que entendemos o reino Tão Tão Distante
como uma alegoria da sociedade contemporânea que tem os seus símbolos parodiados46
no espaço social da adaptação fílmica Shrek 2; ademais, a animação tem muito de paródia
ao conto de fadas tradicional, conforme já discutimos.
Feitas essas considerações, convém retornarmos à análise da animação: Shrek
parecia prever o que lhes aguardava, pois reluta em ir conhecer os pais de sua esposa.
Essa relutância, contudo, não é mera implicância do ogro rabugento, uma vez que tanto
ele como Fiona se surpreendem com o convite. Vejamos a descrição da cena:
46
O termo paródia que ora utilizamos, ao contrário do que defende Linda Hutcheon em sua obra Uma teoria da
paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX, corresponde a irônico, jocoso, ridicularizador.
73
Shrek e Fiona acabam de chegar da lua-de-mel quando o burro comunica que
há uma “galera” lá fora, no pântano: trata-se do mensageiro do rei e da comitiva de
recepção. O mensageiro lê o seguinte convite:
Querida Princesa Fiona
Está convidada ao reino Tão Tão Distante para um baile real em homenagem ao seu
casamento. Quando o rei concederá a bênção real a você e a seu Príncipe Encantado [o
mensageiro hesita ao ler as duas últimas palavras].
Com amor, o Rei e a Rainha de Tão Tão Distante. Ou melhor, mamãe e papai.
Fiona, surpresa, indaga: “Mamãe e papai?”
Shrek, confuso: “Príncipe Encantado?”
O Burro, por sua vez, pergunta se pode ir ao baile, mas Shrek diz que eles não
irão. Fiona quer saber o porquê, e Shrek pergunta: “Não acha que eles podem ficar um
pouco chocados de verem você assim?” Vendo que não conseguiria dissuadir a Princesa,
o ogro, pouco otimista, concorda: “Certo, mas sinto que não serei bem-vindo no country
club.”
A preocupação de Shrek tem fundamento uma vez que os pais de Fiona
trancaram-na em um quarto de uma torre muito alta, guardada pelo dragão, até que seu
príncipe viesse salvá-la, com um beijo, de sua condição anômala47. Além disso, a
referência ao country club já é uma crítica à sociedade de consumo em que vivem os pais de
Fiona.
Os temores do ogro se confirmam no instante em que eles entram no reino
Tão Tão Distante e nossos protagonistas deparam-se com um cenário que em nada
lembra o pântano em que Shrek sempre viveu.
47
Com a chegada do pôr-do-sol, Fiona deixava de ser uma linda princesa e transformava-se em uma ogra. O
casamento com Shrek, contudo, fez com que ela passasse, definitivamente, àquela forma anômala.
74
Shrek, Fiona e o Burro não pertencem àquele universo exuberante com
castelos/mansões de princesas/atrizes e de lojas de grife famosas como a
Versarchery/Versace, além de um outdoor exibindo a Fada Madrinha, em uma roupa
sensual, e a frase: “Venha viver feliz para sempre”. Esse cenário exótico leva o Burro a
fazer o seguinte comentário: “Vai ser só champanhe e caviar de agora em diante”. O ogro
verde, sujo e flatulento, agora também desolado e deslocado, constata: “Definitivamente,
não estamos no pântano!” O alumbramento do Burro diante do luxo e ostentação de Far
Far Away, contudo, não assegura que este seja um lugar melhor que o pântano, conforme
iremos constatar.
Analisando o luxo e magnificência do palácio onde vive a Infanta, personagem
do conto de Oscar Wilde, Mendonça (p. 187) observa que tais características, comuns a
qualquer outro palácio dos contos de fadas, “does not convince us of it being a better
place the Dwarf’s forest”48. Mendonça observa, ainda, que o palácio é uma extensão dos
princípios, nada admiráveis, de seus habitantes, e que a descrição do palácio aponta para
sua artificialidade em oposição à vivacidade da floresta.
Todavia, a vivacidade da floresta refletida na figura do Anão não é suficiente
para ratificar a moral dos contos de fadas, e o bem não triunfa no final (MENDONÇA,
188). Ao construir esse cenário “medonho” (o palácio) num jogo “world of fantasy” x
“world of reality”, Wilde denuncia a segregação racial da sociedade de sua época e mostranos como as construções do espaço e o modo de agir de seus personagens podem estar
imbricados.
De acordo com Santos (2004, p. 36-37), em sua obra Pensando o espaço do homem,
“Os construtores do espaço não se desembaraçam da ideologia dominante quando
48
“não nos convence de que é um lugar melhor que floresta do Anão” (Tradução nossa).
75
concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade”; o que justificaria, inicialmente,
a desolação do ogro, bem como o fato do criador de Shrek 2 -- assim como fez Wilde e
como fazem os construtores do espaço -- também ter “pensando o espaço do ogro”.
Além do mais, o cenário de Tão Tão Distante, juntamente com a assertiva do Burro,
remete-nos ao pensamento de Adorno e Horkheimer (1985) acerca da Indústria Cultural.
Para os teóricos da Escola de Frankfurt, “a Indústria Cultural permanece a
indústria da diversão” (p. 128). Os autores, contudo, afirmam que essa indústria “não
cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer”
(p. 130) e completam:
A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é
prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o
espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado
deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por nomes e
imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do
quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar (p. 130-131).
Observamos que a promissória sobre o prazer, em Shrek 2, diz respeito ao
“Felizes para sempre”, embora o ogro, protagonista dessa narrativa, jamais venha a ter o
direito à fórmula mágica. A fim de justificar nossa assertiva, convém analisarmos três
cenas que consideramos emblemáticas:
1 – após o jantar desastroso em que Shrek e o rei Harold (pai de Fiona) travam
uma batalha gastronômica (ambos disputam um leitão) e verbal acerca do pântano e da
possibilidade de Shrek vir a ser o pai de seus netos-ogros, Fiona, magoada, vai para o seu
quarto. Lá chegando, dirige-se à sacada. Nesse momento, a câmera focaliza primeiro o
letreiro Far Far Away, em seguida, o rosto triste da princesa que olha para a placa e chora.
Convém salientar que a relação entre esses dois planos, a saber: letreiro e tristeza de
Fiona, revela, indubitavelmente, que a princesa-ogra está distante daquela sociedade de
consumo em que o Ter (beleza, fama, dinheiro) é valorizado em detrimento do Ser, o que
nos leva à cena seguinte;
2 – a lágrima que escorre dos olhos de Fiona é a “senha” para chamar a Fada
Madrinha, que surge entoando a seguinte estrofe:
Suas lágrimas me chamaram
E aqui está o meu doce remédio
Sei o que toda princesa precisa
Para ter uma vida feliz
76
Ao se dar conta de que o “chamado” foi feito pela princesa Fiona, a fada se
assusta e diz: “Minha querida. Olhe só como está!” Em seguida, disfarça: “Como você
cresceu”. Fiona indaga: “Quem é você?” E a fada responde: “Que docinho!” “Sou a sua
fada madrinha”. Fiona, desconfiada, pergunta: “Tenho uma fada madrinha?” E a fada,
silenciando-a, responde: “Não se preocupe. Estou aqui para resolver tudo”.
A partir desse momento, a fada começa a cantar uma espécie de “receituário”
do “Felizes para sempre”, acompanhada pelo coro dos amigos-mobília que buscam
adequar a princesa ao universo de Tão Tão Distante, o que nos lembra o fetichismo da
mercadoria; por ora, nos limitaremos a transcrever o “receituário” da fada.
Só com um movimento
Da minha varinha mágica
Seus problemas desaparecerão
Com um toquezinho, ganhará
Um príncipe cheio de grana
Um vestido caríssimo
Dos ratinhos
Sapato de cristal
E chega de estresse
Acabarão as preocupações
E terá paz
Confie nos amigos-mobília
Ajudaremos a achar uma nova
Tendência de moda
- Vou deixá-la diferente, linda!
Bem ao estilo do Príncipe!
Escreverão seu nome no banheiro
“Feliz para sempre?
Ligue para Fiona!”
Carruagem esporte, cheia de estilo
Um chofer muito gato: “Kyle”.
Nada de espinhas nem cáries
E o fim da celulite
77
E já ia me esquecendo
Do bichon frisé!
Uma plasticazinha
Para ganhar o Príncipe bem penteado
Batom, sombras, blush
Para o príncipe saradão
Dia de sorte, ele é gostoso
Você e o seu Príncipe no feno
Olhando para a Lua
Ouvindo esta música
Você será fabulosa
Ele terá abdome desenhado
Suflê, Dia dos Namorados
E fricassê de frango
Uma plasticazinha para
O Príncipe bem penteado...
Fiona grita:
“- Pare! Escute... muito obrigada, Fada Madrinha, mas não preciso disso”.
Tanto a fada como a mobília se surpreendem, e um dos amigos-mobília
retruca:
“- Como quiser”. “Não gostei de você”.
Ao oferecerem à Princesa Fiona “um príncipe cheio de grana”, “vestido
caríssimo”, “uma nova tendência de moda”, “carruagem esporte”, o “fim da celulite”, e
um “príncipe saradão”, o que a fada e os amigos-mobília fazem é ratificar o que já tinha
sido investigado por Marx acerca de as mercadorias exercerem “um poder mágico sobre o
homem” (MARTINS, 1998, p. 67). Para Martins, é possível exemplificar, hoje, quais
seriam os objetos de consumo. Como exemplo, o autor cita “caros automóveis, aparelhos
eletrônicos de última geração, etc” (p. 67).
Fiona é bombardeada com todo esse material publicitário e, ao afirmar que
não precisa disso, é hostilizada com um “Não gostei de você”. De acordo com Martins, a
partir do pensamento do autor de O Capital, “[...] é natural para o homem ter e
desenvolver esses desejos, posto que é um ser social inserido num sistema econômico e
78
quanto mais abundância a produção gera, tanto mais desperta possibilidades de consumo”
(p. 67-68).
Os produtos-fetiche do receituário são oferecidos à princesa-ogra como se
fossem necessidades vitais: Sei o que toda princesa precisa/ Para ter uma vida feliz, diz a fada. A
assertiva de Fiona, recusando o que lhe é oferecido, revela o que acontece na sociedade
capitalista.
Martins observa que no mercado, o qual o autor chama de “instituição
capitalista por excelência”, há uma relação entre coisas, e que, para Marx “há relações
humanas” por trás dessa instituição e que “o mercado ‘personifica as coisas’ e ‘coisifica as
pessoas’ (p. 69). Em outras palavras, o papel de sujeito ativo da produção social não é
desempenhado por Fiona, e sim pelos amigos-mobília (objetos nada inanimados na
narrativa) restando àquela a condição passiva de observadora.
A Indústria Cultural apresenta-se como saciadora das “necessidades”, de que
falou Martins. Para Adorno e Horkheimer, essas necessidades são “de antemão
organizadas de tal sorte que ele [o sujeito] se veja nelas unicamente como um eterno
consumidor, como objeto da indústria cultural” (p. 133). De acordo com Aumont e Marie
(2003, p. 123), os antropólogos vêem o fetiche como “um objeto ao qual se atribuem
poderes mágicos e benéficos”. Nesse sentido, Fiona seria uma consumidora das (pseudo-)
necessidades que lhe são apresentadas, e satisfeitas, pela representante da Indústria
Cultural, ironicamente, a fada.
Outrora conselheira, guardiã de princesas ameaçadas por seres cruéis, a fada
madrinha cumpria seu tradicional papel: como uma mãe zelosa, salvava sua “filha” do
borralho ou da ira de uma madrasta invejosa. Em Perrault e Grimm, a fada é boa; a bruxa é
má. Shrek 2 afasta-se do maniqueísmo dessas narrativas e demole estereótipos: a fada é
uma bruxa. Ironicamente, ao desconstruir esse “modelo”, Adamson resgata a “qualidade”
de conselheira da fada; pois esta, na história do ogro, continua a indicar o caminho que
levaria sua protegida à ascensão social, ou seja, ao príncipe encantado.
A terceira cena, que requer uma análise nossa, diz respeito à “distância” de
Shrek diante da realidade de Far Far Away. Shrek entra no quarto logo após a recusa de
Fiona à “ajuda” da fada. A princesa apresenta-o à mobília e à fada como seu marido. Esta,
perplexa, não entende como isso pôde acontecer, e Fiona lhe explica que Shrek a salvou.
O ogro interrompe a conversa e diz que eles vão voltar para o pântano e Fiona quer saber
79
quando ele tomou essa decisão. Shrek afirma que foi assim que chegou. A fada se
desculpa dizendo que precisa ir embora; antes, contudo, avisa: “[...] lembre-se, querida, se
precisar de mim, a felicidade está a uma lágrima de distância” e entregou-lhe seu “cartão
de visitas”.
Com a saída da fada, o casal de ogros discute: Fiona acusa-o de se comportar
como um ogro; Shrek lhe diz que, seus sogros gostando ou não, ele é um ogro. Desolada,
Fiona responde: “Mudei muita coisa em mim por você, Shrek. Pense nisso!” Em seguida,
retira-se do quarto. Mais tarde, sem conseguir dormir, Shrek vê as horas passarem. Já é
tarde. Levanta-se da cama e olha, também desolado, pela janela e vê o letreiro com o
nome do reino - essa cena, assim como ocorreu com Fiona, não é gratuita: Shrek estava,
de fato, muito distante dos valores daquela sociedade.
O desejo de Shrek de voltar para o pântano, bem como o “deslumbramento”
do Burro em sua chegada ao reino Tão Tão Distante, está em sintonia com a análise que
Ramos (1998) faz sobre a representação do meio urbano na poesia de Mário de Andrade.
Para a autora, “A cidade exerce um fascínio no novo morador, seja pela presença das
luzes noturnas, seja pela sintaxe urbana, constituída por ruas, esquinas, prédios, igrejas,
bairros que se fundem dando um novo colorido a este meio que congrega diferentes
culturas” (p. 39).
Por outro lado, ela (a cidade) “fica indiferente ao desespero de seus filhos, pois
no momento em que eles se sentem ameaçados, devem fugir para casa, para o campo,
abrigo que os acolhe” (p. 39).
No dia seguinte à discussão com Fiona, Shrek descobre que seu sogro havia
contratado o Gato de Botas para matá-lo. O ogro desabafa e diz que seria melhor para
Fiona se ele fosse um príncipe encantado. O Burro lembra-lhe que Fiona sabe que ele
faria tudo por ela, e o ogro responde: “Se eu pudesse, eu mudava”. “Só queria fazê-la
feliz”. Nesse momento, Shrek lembra-se do cartão que a fada deu a Fiona, mas que ele
interceptou. De um lado do cartão, lia-se “Felicidade”; do outro, “A uma lágrima de
distância”. A pedido de Shrek, mas forçado pelo Gato de Botas, o Burro chora e sua
lágrima traz a figura da fada como em uma gravação telefônica ou programa de televisão:
80
O quê? Está ligada?49
Aqui é a Fada Madrinha. Estou longe da mesa ou com um cliente. Se vier ao escritório,
marcaremos uma hora para você. Seja “Feliz para sempre”!
Shrek, então, decide ir ao chalé/ fábrica de poções mágicas da fada para lhe
pedir ajuda. Na fábrica, o funcionário diz que a fada está, mas não pode recebê-los. Shrek,
juntamente com o Gato e o Burro, diz que são do sindicato e pergunta se ele tem alguma
queixa a fazer. O funcionário estranha: “Sindicato?” Shrek diz que eles representam os
operários da indústria de magia tanto negra como branca e pergunta-lhe se ele se sente
menosprezado ou oprimido. Ele diz que um pouco, pois não tem assistência dentária.
Shrek aproveita a deixa e diz que irá dar uma “olhada”; pede-lhe, contudo, que não avise à
fada. O funcionário, cúmplice, libera sua entrada. O ogro, com seus amigos, encontram a
fada trabalhando em uma nova poção mágica com os seguintes ingredientes:
Uma dose de desejo
Uma pitada de paixão
E só uma alusão de luxúria!
Picante!
Ao perceber a presença de Shrek, a fada esconde seu mais novo experimento e
quer saber o que ele faz ali. Shrek diz que veio à sua procura, pois Fiona parece não estar
muito feliz. A fada ri irônica e diz: “Há alguma dúvida de qual seja o motivo?” Dirige-se a
uma estante onde há livros com contos de fadas e vai lendo o final das histórias:
“Viveram felizes para sempre”. “Cinderela, nenhum ogro!” – ela frisa. “Branca de Neve,
um belo príncipe”. “Bela Adormecida, nenhum ogro”. “João e Maria? Não”. “Tumbelina?
Não”. “Pássaro Dourado, Pequena Sereia, Uma linda mulher... Não, não, não, não!” E
completa: “Vê? Ogros não vivem felizes para sempre”.
Nesse bombardeio feito pela fada, três questões merecem nossa atenção:
a) dentre os contos de fadas tradicionais elencados, a fada cita o moderno (mas
não menos tradicional) “Uma linda mulher”;
b) essas histórias não apresentam nenhum ogro;
c) o fato de ogros não viverem felizes para sempre.
49
Nesta cena, a fada age como se estivesse diante de uma câmera, o que gera ironia, devido à explicitação do recurso
discursivo.
81
Uma linda mulher (Pretty Woman, 1990), filme dirigido por Garry Marshall, tenta
mostrar que o quase impossível pode se tornar realidade: Vivian (Julia Roberts) é uma
bela garota de programa que “trabalha” na Hollywood Boulevard e conhece por acaso
Edward Lewis (Richard Gere), homem milionário, que a contrata por algumas noites e
acaba se apaixonando por ela.
Em outras palavras, na película, a Cinderela moderna (prostituta) encontra seu
príncipe encantado (homem de negócios) e são felizes para sempre. Convém ressaltar que
a idéia de quase impossível é reforçada com uma mensagem no final do filme que diz “[...]
Qual é o seu sonho? Todo mundo vem aqui. Isso é Hollywood, terra dos sonhos. Alguns
se realizam, outros não. Mas continue sonhando. [...]”
No que diz respeito ao fato de os ogros não serem felizes para sempre, os
contos de fadas têm difundido essa idéia de geração a geração por vários séculos, uma vez
que não há espaço para o bizarro, para o estrangeiro nessas histórias. Além disso, é
comum a associação do belo com o bom, e do feio com o mau: heróis, heroínas e fadas
são bons e bonitos; vilões e bruxas são feios.
Ademais, quando povoam os contos de fadas, os ogros são maus como o
Barba Azul ou príncipes vítimas de algum encantamento, como a Fera do conto “A Bela e
a Fera”, e o sapo em “A Princesa e o Sapo”; neste caso, contudo, são redimidos de sua
monstruosidade e transformam-se em belos príncipes.
Embora não a tenhamos citado como cena emblemática - mas que julgamos
igualmente importante – convém ressaltar que o momento em que a fada cita os
“ingredientes” de uma nova poção mágica remete-nos às simpatias ensinadas por sites e
revistas esotéricas como algo do tipo “apimente o sexo”, “mantenha o fogo da paixão” e
“melhore o apetite sexual”.
Voltando à descrição da cena em que a fada é categórica ao dizer que “ogros
não são felizes para sempre”, Shrek não se conforma e, com a ajuda de seus amigos,
dirige-se a uma espécie de depósito de poções mágicas. Lá, pede ao Gato de Botas que
procure algo como “beleza”; o Gato encontra o frasco “Felizes para sempre”, cujo efeito
é o de “beleza divina”, localizado numa prateleira de uma estante muito alta onde se lê
“Acesso Restrito”.
Segundo a bula da poção mágica, se um dos apaixonados bebesse a fórmula,
os efeitos prometidos - “Felicidade, Bem-estar e Beleza Divina” - seriam sentidos por
82
ambos. Antes de beber a fórmula, o Burro lembra a Shrek que ele não fará mais as coisas
de que gosta como: “chafurdar na lama” e “coçar o traseiro”. Além disso, ele “ama ser
ogro”. Shrek concorda; mas, acredita que, se tornando um príncipe encantado, seria aceito
pelos pais de Fiona, o que a deixaria feliz. Em seguida, bebe o resto50 do conteúdo do
vidro.
Nesse ínterim, Fiona, sentindo a ausência do marido, diz aos pais que foi um
erro trazer Shrek e que iria “consertar as coisas”. O rei prontamente concorda: “Essa é a
minha menina!” Sendo assim, ela comunica que vai procurá-lo para juntos voltarem ao
pântano que é o lugar deles.
A idéia de que aquele reino não é o seu lugar é ratificada quando na noite do
baile, em meio a fogos de artifícios, a voz do espelho-mágico-locutor anuncia: “Abdomes
fabulosos e glúteos que são o máximo aqui no Baile Real de Tão Tão Distante!”
“Carruagens fazem fila para as celebridades descerem... Todos os famosos vieram...” - sua
fala é completada por uma apresentadora - “... homenagear a Princesa Fiona e o Príncipe
Shrek.” “Nossa! Os trajes são maravilhosos.” “Vejam! João e Maria! – e, irônica, completa
- Para que essas migalhas?” “E, atrás deles, o Pequeno Polegar e Tumbelina! Não são
adoráveis?!”
Contrariando a exclamação da apresentadora, alguém os varre juntamente com
as migalhas deixadas por João e Maria. “Aí vem a Bela Adormecida! Como está cansada!”
– comenta surpresa ao ver a Bela cair de bruços quando o cocheiro/ chofer abriu a porta
da carruagem-limusine. Em seguida, o que parece ser o momento mais aguardado,
“Quem será? Quem será? É ela, a única, é a Fada Madrinha!”
50 O Burro, num gesto de amizade ao ogro, toma boa parte da poção mágica. No dia seguinte, ele tem se
transformado em um belo cavalo branco.
83
Neste momento, aquela que representa, a nosso ver, a indústria do espetáculo,
sai de sua carruagem e, sob aplausos, diz “Olá, Tão Tão Distante!” “E as exclamações?”
Ouve-se em uníssono um “Uh! Uh!”, ao que a fada completa: “Que todos os seus finais
sejam felizes e ... bem, já conhecem o resto!”, ouve-se novamente a voz do locutor:
“Voltamos já com o Baile Real de Tão Tão Distante depois dos comerciais.”
Convém destacar que a transmissão do “evento” foi realizada pela ME –
Medieval Entertainment e os “telespectadores” eram Pinóquio, o Lobo Mau (ainda
travestido de vovozinha), os Ratinhos Cegos e o Biscoito, personagens excluídos desse
espetáculo. O mesmo ocorre com os espectadores que assistiam ao vivo à entrada dos
famosos sob luzes e fogos de artifício. Em outras palavras, restava-lhes a “leitura do
cardápio”, da qual falamos anteriormente.
A probabilidade de algum desses espectadores vir a andar sobre o tapete
vermelho da fama é muito remota. Este argumento pode ser fundamentado através da
visão de Adorno e Horkheimer para quem
A felicidade não deve chegar para todos, mas para quem tira a sorte, ou melhor,
para quem é designado por uma potência superior – na maioria das vezes a
própria indústria do prazer, que é incessantemente apresentada como estando
em busca dessa pessoa. [...] Só uma [espectadora, grifo nosso] pode tirar a sorte
grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma
probabilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e
regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no
entanto, jamais é (p. 135-136).
No que diz respeito aos votos de felicidade da fada “Que todos os seus finais
sejam felizes...”, eles não se estendem a todos, uma vez que, como a fada havia dito a
Shrek, não há ogros nos contos de fadas nem eles são felizes para sempre. Ou seja, não há
espaço para o diferente, para a subjetividade, para o “amar ser ogro”.
Na sociedade contemporânea, da qual Far Far Away é uma alegoria, não há
espaço para a originalidade de Shrek uma vez que vivemos sob a ditadura da moda em
que, segundo Goblot (apud Santos, 1987, p. 36, grifos dos autores),
[...] cada qual deve tornar-se semelhante aos outros. É preciso “fazer como
todo mundo”; não devemos “nos fazer notar”. Pois fazer-se notar, não fazer
como todo mundo, é se excluir do meio social ao qual se pertence. Ser “ ‘um
original’ é ser uma pessoa isolada. O que a sociedade, em geral, e cada uma das
sociedades restritas que a compõem perdoam menos é todo ato pelo qual um
dos seus membros dela se separa.
O ogro, contudo, passa a fazer parte desse espetáculo ao ingerir a poção
mágica. No dia seguinte, Shrek acorda, em um celeiro, queixando-se de sua cabeça, e uma
84
bela jovem camponesa traz-lhe um pouco de água em um balde. Ao estender as mãos
para pegar o recipiente, Shrek observa que algo está diferente, vê sua imagem refletida na
água e deixa o balde cair: “Um nariz bonito?” “Cabelo ondulado?” “Bundinha durinha?”
“Eu estou...” E a jovem completa: “Lindo!”
Com essa metamorfose, o ogro havia se tornado no modelo de príncipe do
receituário da fada: sarado, gostoso e de abdome desenhado, disputado pelas jovens que estavam
no celeiro. O Gato de Botas observa que para que a poção tenha efeito permanente é
preciso que ele beije a princesa Fiona à meia-noite. As jovens camponesas, numa atitude
antes impensável, oferecem-se para o “papel” de princesa, mas Shrek diz-lhes que já tem
um amor. O Gato concorda e afirma que Fiona ficará satisfeita com sua aparência.
O Burro, gozador, observa que por dentro ele continua o mesmo ogro
malvado, desagradável, fedorento, imundo e zangado de sempre. Em outras palavras, a
mudança ocorreu no nível da aparência, diferentemente do que aconteceu com a Fera e o
Sapo que se tornaram gentis e educados.
Antes de prosseguirmos em nossa análise, cabe abrir um parêntese acerca do
comportamento inovador das jovens camponesas/ princesas. Nos contos de fadas
tradicionais, ao escolher seu príncipe encantado, é comum a princesa destacar como
principal qualidade de seus pretendentes, a coragem: “Porque ele era o mais corajoso e o
mais belo de toda aquela terra”. As camponesas, contudo, subvertem uma tradição, pois
disputam o “novo” Shrek não por sua coragem, mas por causa de seus atributos físicos:
sarado e gostoso.
Tal atitude ratifica a animação, Shrek 2, como obra atualizadora dos contos de
fadas uma vez que apresenta as princesas-camponesas-mulheres despertas, ativas, com
desejos e admiração pelo corpo do parceiro. Vale destacar que Shrek já havia explorado
essa questão ao colocar a princesa Fiona lutando contra (e derrotando) o bando de
Robbin Hood sem a ajuda de um bravo cavaleiro; Shrek, passivo, assiste à surra, quer
dizer, à luta. É compreensível que a coragem não seja um atributo do ogro, uma vez que
Shrek representa o anti-herói moderno e aquela é uma característica do herói clássico/
épico.
Retomando a observação do Gato de Botas, Shrek, sintonizado, ao menos na
aparência, com os valores da sociedade capitalista, retorna a Far Far Away. A recepção,
contudo, em nada se parece com a que ele e Fiona tiveram antes, quando se apresentaram
85
com sua forma ogra. Montado em um belo cavalo branco, com roupas finas e aparência
elegante, o “príncipe” Shrek atrai os olhares de todos: as mulheres suspiram à sua
passagem, e os aldeões, sisudos e armados com ferramentas de trabalho, sorriem e
retribuem o tímido aceno do ogro que estava receoso da recepção que teria. Ao constatar
que agora é “aceito”, ou seja, ele não está mais tão distante dos valores daquele reino,
Shrek parte a galope ao encontro de Fiona.
Com a transformação, o lugar de Shrek, e conseqüentemente de Fiona, não é
mais o pântano, e sim, o reino Tão Tão Distante. Nesse sentido, convém registrar a
análise que Mayer (1994) faz acerca da ambientação:
O lugar é aquele onde o indivíduo se encontra ambientado, no qual está
integrado. Ele faz parte do seu mundo, dos seus sentimentos e afeições e é o
“Centro de significância ou um foco de ação emocional do homem”. O lugar não é toda e
qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva para uma pessoa
ou grupo de pessoas (p. 94, grifo do autor).
De certa forma, o reino Tão Tão Distante tem significância para Shrek, uma
vez que ele julgava ser aquele o lar de sua amada e, para vê-la feliz, procura adequar-se à
nova realidade. Sua transformação, porém, não surte o efeito desejado, pois, ao chegar ao
castelo, os ex-ogros se desencontram, e como Fiona desconhecesse a forma humana de
Shrek, confunde-o com Encantado51, o príncipe que deveria salvá-la.
Do quarto de Fiona, impedido de sair pela fada, Shrek vê Fiona sendo
abraçada por outro homem. A fada zomba de seu desespero e lhe diz que ele já
atrapalhou bastante a vida de Fiona, mas que agora “ela achou o príncipe dos sonhos”.
Além disso, a fada diz que é hora de ele parar de viver num conto de fadas, pois Fiona é
uma princesa, e ele é um ogro e que nenhuma poção poderá mudar isso.
Na verdade, Shrek continuava distante daquele cenário de lojas caras, carros
luxuosos e mansões magníficas. Como havia alertado o Burro, ele ainda era o mesmo por
dentro, permanecendo, assim, um estrangeiro na sociedade do espetáculo. Deprimido, o
ogro dirige-se à taberna “The Poison Apple”52, lugar reles onde os seres anômalos dos
contos de fadas, como os ciclopes53, o capitão Gancho e a irmã Feia trabalham.
Enquanto a Irmã Feia tecia comentário à beleza do Príncipe Encantado, Shrek
e seus amigos percebem que o rei Harold entra na taberna disfarçado e dirige-se a uma
51
Encantado é filho da Fada Madrinha.
Maçã envenenada (Tradução nossa).
53 Na mitologia grega, gigante com um só olho na testa Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 161.
52
86
sala onde estão a fada e o seu filho. O rei sugere que desistam de fazer com que Fiona se
apaixone pelo príncipe, pois diz que não se pode forçar uma pessoa a isso. A fada
discorda, alegando que faz isso sempre, e entrega ao rei uma nova poção mágica que deve
ser dada a Fiona. Este, contudo, recusa, e a fada, ameaçadora, lembra-lhe que o ajudou
com o “seu feliz para sempre” e que pode desfazer o encanto facilmente. O rei esmorece
e desiste de enfrentar a fada.
Acerca desse episódio, convém observar que o esmorecimento dá-se porque,
inicialmente, o rei Harold é o ex-sapo da história “A Princesa e o Sapo”; em um segundo
momento, porque ele era um prisioneiro da Indústria Cultural. Nossa assertiva confirmase a partir da mise-en-scène54 do seu quarto, em que o tom verde é predominante nos
quadros, cortinas e roupas de cama. Ademais, a inserção desse personagem (também
verde) parece-nos um indício de quão semelhantes são sogro e ogro. Segundo, porque ele
(o rei) não é livre para tomar suas decisões; caso insista, será punido com a exclusão da
sociedade do espetáculo.
A ameaça que a fada faz ao rei Harold está em consonância com o que diz
Adorno e Horkheimer:
Sob o monopólio privado da cultura “a tirania deixa o corpo livre e vai direto à
alma. O mestre não diz mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é
livre de não pensar como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar,
mas de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós” (p. 125).
No final da animação, contudo, numa atitude de desalienação55, o rei impede
que Shrek seja destruído pela fada, recebendo o feitiço destinado àquele, e transforma-se
no sapo (-rei) de outrora. Segundo Santos (1987), a desalienação é o antídoto para o
homem ‘manietado’56 e que teve os olhos ‘fechados para a essência das coisas’ [grifos
nossos]. Convém registrar o pensamento do autor:
[...] nenhum ser humano se contenta com a simples aparência. A busca da
essência é a sua contradição fundamental, num movimento sem-fim que inclui
o sujeito em um processo dialético e o restitui a si mesmo. Aí a aparência dilui
sua feição claro-escura, e nesse processo sofrido, porque atinge a profundidade
do ser, a essência do homem se revigora. Quando a aparência se dissolve, é a
essência que começa a se impor à sensibilidade. Essa mutação é reveladora
porque permite abandonar o mundo do fenômeno e abordar o universo das
significações. É assim que renasce o homem livre (p. 53-54).
54
“Apesar da flutuação em sua definição, a noção de “mise-en-scène” guarda o vestígio do valor espacial da cena Cf.
AUMOT, 2003, p. 45
55 Expressão utilizada por Milton Santos em sua obra O espaço do cidadão.
56 Privado da liberdade, constrangido, subjugado. Maniatar ou manietar Cf. FERREIRA, A., p. 476.
87
É compreensível que o rei, acuado pela fada, retrocedesse, uma vez que não
desejava voltar a ter a condição estrangeira de seu genro e filha. A condição anômala de
Shrek diante do universo de Far Far Away não se restringe à questão da beleza física; na
verdade, ela representa a luta de classes na sociedade contemporânea. Para Chauí (1995),
“A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária e
educacional, está na propaganda e no consumo [...]” (p. 76). De acordo com a autora de O
que é ideologia,
(um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um cigarro
vale “um estilo de vida”, um automóvel zero km. vale “um jeito de viver”, uma
bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem”, etc., etc.) (p.
57).
Nesse sentido, reconhecemos não só os comentários do rei Harold e da fada -esta disse que ajudaria Fiona a “achar uma nova tendência de moda”, aquele fez um
comentário mordaz ao saber onde Shrek morava: “Um ogro do pântano. Que original!”--,
mas também o estilo de vida e as condições de trabalho de Far Far Away como
características da sociedade capitalista.
Nossa assertiva pode ser comprovada quando observamos a coexistência de
realidades díspares no reino:
1 - enquanto a carruagem-cebola que conduzia o casal de ogros e o Burro ao
castelo real aguardava num cruzamento de Tão Tão Distante, um flanelinha limpava uma
das ancas do cavalo que puxava o veículo.
2 – uma carruagem-limusine cruza a avenida na frente da carruagem cebola, e
em uma outra avenida passa, puxada por cerca de oito cavalos, uma carruagem-ferrari.
Essa descrição, a nosso ver, é relevante, uma vez que ilustra o mundo do
consumo. Para Pankow (1988, p. 42), este mundo é uma “variante contemporânea do
mundo do ter”.
Além do mais, no momento em que a carruagem-cebola entra na avenida
principal em direção ao castelo real, um narrador em voz-over57 anuncia “Piscinas! Estrelas
de cinema”, e a câmera focaliza primeiro o castelo/mansão da princesa/atriz Cinderela,
em seguida o nome do reino nas montanhas. Vale ressaltar que, embora o cenário e o
letreiro de Far Far Away nos lembrem Hollywood, a paródia aos elementos inseridos no
57
(...) a voz-over com freqüência, apenas inicia a estória e é subseqüentemente substituída pelo diálogo sincrônico,
permitindo à diegese “falar por si mesma”. Cf. DOANE, 1983, p. 466.
88
espaço social de Shrek 2 promove a reflexão crítica acerca da homogeneização da cultura
na formação do modo de vida contemporâneo, não necessariamente da Meca do Cinema.
Embora todo o reino estivesse em festa e o porta-voz do rei anunciasse “a tão
aguardada volta da bela [grifo nosso] Princesa Fiona e seu novo marido”, a recepção deixa
de ser calorosa quando os noivos saem da carruagem. Todos silenciam e recuam o tórax,
sincronicamente, assustados com sua aparência; nem mesmo uma das pombas, que havia
sido solta na chegada dos recém-casados, fica indiferente: assustada, bate na parede do
castelo e cai desmaiada (ou será que já morta?) aos pés do casal real.
Em seguida, ouve-se um choro de criança. Shrek pega a mão de Fiona e,
enquanto se dirigem aos sogros, indaga: “Ainda... acha isso uma boa idéia?” O rei, sem
reconhecer a própria filha, pergunta à rainha quem são aquelas pessoas. A rainha
responde que é a “pequenina” deles, numa referência à filha Fiona. E o rei responde:
“Não tem nada de pequeno! O problema é grande! Não beijou o Príncipe para quebrar o
encanto?”
Vendo que o casal de ogros se aproximava cada vez mais, o rei propõe fingir
que não estão em casa; Shrek, por sua vez, sugere a Fiona irem embora enquanto eles não
acendem as tochas. Fiona afirma que são seus pais, mas Shrek lembra-lhe que eles a
trancaram na torre, e ela diz que foi para seu próprio bem.
A idéia de trancafiar Fiona numa torre de difícil acesso, guardada por um
dragão feroz, assemelha-se ao enredo de outras narrativas, em que o pai entrega sua filha
ao noivo animalesco – que é a própria fera – certo de que este se transformará “num
jovem radiante, um amante perfeito” (WARNER, p. 314). A diferença neste moderno
conto de fadas é que a princesa Fiona não se transforma numa jovem radiante, bela e
perfeita, e o seu “príncipe”, na verdade, é um ogro.
89
Além disso, a torre muito alta, assim como o pântano, a taberna “Maçã
Envenenada”, o buraco negro e o mato escuro representam os lugares onde estão
encerrados os seres anômalos e que lá devem permanecer. Sair desses “guetos”, antes que
haja alguma mudança, significa ameaçar a ordem estabelecida.
Em outras palavras, houvesse Fiona beijado o Príncipe Encantado, e Shrek
permanecido encerrado no pântano com os demais personagens anômalos de contos
fadas (vale ressaltar que não fazem parte desse grupo as belas: Adormecida, Cinderela e
Rapunzel), dificilmente o reino se chamaria Tão Tão Distante; ademais, esse reino faz eco
à significação do vocábulo “espaço”. De acordo com Santos, o “espaço é, na linguagem
filosófica, sinônimo de objetificação, coisificação, reificação [...]” (p. 60).
Nesse sentido, Far Far Away é o palco onde os sujeitos são reduzidos a valores
de coisas. O autor também chama a nossa atenção para o fato de que o valor de cada
homem “depende de sua localização no território” (p. 81). O “valor” de Shrek
corresponde ao valor que o rei Harold dá ao pântano: “Um ogro do pântano. Que
original!”
No início deste subcapítulo, observamos que, segundo Turner, é possível
inferir ligações entre um filme e os fatos contemporâneos. Paulo Emílio Gomes (apud
Lopes, 2000, p. 67), afirma que “Qualquer filme exprime, ao seu jeito, muito do tempo
em que foi realizado”. Essas assertivas, de certo modo, respaldam a análise que
procuramos fazer acerca do espaço social do texto fílmico Shrek 2, pois acreditamos que
Far Far Away revela muito da sociedade contemporânea em que vivemos.
Procuramos, também, seguir o que preceitua Lins (1976, p. 92):
Não deve o estudioso do espaço, na obra de ficção, ater-se apenas à sua
visualidade, mas observar em que proporção os demais sentidos interferem.
Quaisquer que sejam os seus limites, um lugar tende a adquirir em nosso
espírito mais corpo na medida em que evoca sensações. Jean-Pierre Richard,
estudando a presença do mundo exterior na obra de Chateaubriand, registra a
freqüência dos latidos de cão no silêncio noturno, os gritos de pássaros, os
murmúrios, observando ainda como o som do canhão de um navio que ergue
as velas vem “redobrar intelectualmente o imediato poder sugestivo, e
expansivo, do impacto”.58
Longe de esgotar nossa análise, mas a fim de justificar o número (significativo)
de parágrafos que dispensamos à fada, uma vez que nosso objeto de estudo é o espaço,
buscamos - como recomenda o autor de Lisbela e o Prisioneiro – não nos ater apenas ao
58
Grifo de Jean-Pierre Richard, destacado em nota de rodapé. Cf. LINS, 1976, p. 92
90
espaço da narrativa, uma vez que constamos como o “receituário” da fada duplica a idéia
de que Shrek e Fiona estão distantes da tríade da sociedade contemporânea, representada
no cenário de Far Far Away por mansões magníficas, lojas caras e carros luxuosos.
91
4 - De Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante
Diferentemente de Cinderella (dir. Wilfred Jackson, Clyde Geronimi e Hamilton
Luske), A Bela Adormecida (dir. Clyde Geronimi), A Bela e a Fera (dir. Gary Trousdale e
Kirk Wise), que mantiveram os mesmos títulos, tema, fábula, contexto sócio-cultural,
aspectos estético-ideológicos dos textos literários adaptados, Shrek 2 é mais que a
transposição de um texto literário para a linguagem do audiovisual.
A adaptação é uma ampliação do conto Shrek!, uma vez que retoma a narrativa
de onde William Steig havia parado: “E viveram horríveis para sempre, apavorando todos
os que tinham o azar de encontrá-los”. A retomada de Shrek 2, desse ponto em que
muitas narrativas são concluídas, reverbera o que diz Benjamin (1980, p. 68) sobre o fato
de não haver “narrativa alguma em que a pergunta: como continuou? pudesse perder o
seu direito”.
É preciso entender a ampliação não apenas no sentido de inserção de novos
personagens e de um novo espaço social à narrativa, mas, principalmente, como
discussões que a adaptação suscita. A fim de analisar como se dá a transposição de Shrek!,
propomos cotejar os elementos da narrativa comuns à literatura e ao cinema, com ênfase
ao espaço social e à relação de conflito que ele mantém com o personagem.
Antes de iniciarmos o cotejo entre os textos, convém fazer uma distinção
entre os termos “análise” e “interpretação” a fim de que possamos compreender como se
dá esse processo. Segundo Ferreira, A. (2001, p. 48), enquanto a análise é o “exame de
cada parte de um todo, para conhecer-lhe a natureza, as funções, etc.”, o ato de
interpretar busca “Explicar ou declarar o sentido de (texto, lei, etc.)” (p. 427).
92
Sobre o cientificismo do processo analítico e o sentido da interpretação, Reis
(1976, p 36-38) afirma que enquanto
a análise se concebe, [...] como operação em certo sentido sistemática porque
orientada por regras definidas em sintonia com a metodologia crítica eleita, a
interpretação é essencialmente hermenêutica; como tal, procura, em última
análise, concretizar uma penetração que se propõe ultrapassar a mera
verificação dos elementos constitutivos do texto literário e revelar o sentido que
esses elementos (assim como o sistema de relações entre eles estabelecidas)
sustentam.
A título de exemplicação, em “Sobre ogros, cebolas e adaptações”, analisamos
a cena em que, no conto, o Relâmpago e o Trovão querem dar uma “lição” no
personagem Shrek por julgá-lo nojento, e a cena equivalente na animação, quando o ogro
diz ao Burro que “os ogros são bem melhores do que as pessoas acham” e que eles “são
como cebolas”: não nos limitamos a descrever as cenas, buscamos, antes, descobrir que
sentido a metáfora da cebola produzia no texto adaptado.
Convém observar, contudo, que Shrek 2 é um desenho animado em 3D, fato
que o aproxima dos filmes feitos “com pessoas reais”, permitindo-nos, portanto,
empregar o mesmo jargão técnico da filmagem (cena, mise-en-scène, plongée, câmera
subjetiva, etc.). Ademais, Cunha, R. (op. cit., p. 66) afirma que “ao se comentar um filme,
não é comum se referir ao plano tal, e sim, intuitivamente, à cena tal, até em razão de o
termo ter sido consagrado pela dramaturgia.”
Visando a uma melhor compreensão, por parte do leitor, propomos abrir um
parêntese sobre os desenhos animados de uma forma geral, e a adaptação Shrek 2. Em
“Alice no país das maravilhas e Peter Pan: imagens amadas de um desenho social”,
Almeida (1994, p. 84-85) tece considerações sobre a linguagem cinematográfica entre um
filme “produzido com pessoas em locais existentes” e a reprodução de um plano em duas
dimensões no desenho animado.
Segundo Almeida,
Não só por economia técnica mas também por decisões de estilo, o desenho
animado vai apresentar somente os traços considerados mais importantes para
reproduzir o que mais interessa expressivamente. Por exemplo, um rosto que ri,
na realidade retorce-se inteiramente, inúmeros músculos alteram a máscara
facial, a ponto de um riso poder ser triste, escancarado, nervoso, sarcástico, e
assim por diante. Esse rosto num desenho animado vai aparecer somente com
um ou dois traços característicos, aqueles mais facilmente entendidos pelo
espectador [...] (p. 86-87)
93
O autor afirma ainda que, num filme com pessoas reais, a câmera pegaria
todos os detalhes de uma determinada cena de forma indiferenciada; mas, em uma
animação, serão relacionados apenas aqueles “que forem considerados importantes para a
cena do desenho de acordo com escolhas de estilo e possibilidades técnicas” (p. 86).
Contrariando o pensamento de Almeida, em 2001, a DreamWorks lançou em
3D, Shrek. Acerca da técnica, Jeffrey Katzenberg, produtor da animação, observa que
“Este foi somente o quarto filme já feito com essa técnica, e para algo ainda em sua
infância, o tipo de progresso que ocorre do dia para noite é algo de tirar o fôlego”59.
Dentre os vários avanços, podemos citar a criação de ambientes ricos e orgânicos, o
vestuário que se move, enruga e reage à luz como um tecido na vida real.60
Para Simon J. Smith (Head of layout)61, o que se aprende sobre filmagens em 3D
“[...] é que você precisa imitar todas as grandes técnicas cinematográficas que já foram
usadas anteriormente em filmes de ação ao vivo”; além do mais, no filme em 3D, “o céu é
o limite para a câmera” e foi preciso que os produtores abdicassem de ângulos
impossíveis, a fim de manter a naturalidade de Shrek.
A título de exemplo, Bob Whitehill (Layout Artist)62 explica que, em uma cena
de ação ao vivo, tentou imitar uma “steady-cam” (câmera parada) para captar a cena em
que o Burro e Shrek cruzam a ponte cambaleante, até o castelo do dragão, para salvar
Fiona. O objetivo era que o espectador percebesse que ele podia estar ali. “Esse é o ponto
de vista da câmera, e dá a impressão de que a ponte é muito mais do que é, que ela sacode
e balança muito mais do que está.”
Sobre outros efeitos criados, como o vento, a poeira, a fumaça e o fogo,
Andrew Adamson, diretor de Shrek e Shrek 2, afirma que eles “adicionam riqueza e
realidade ao nosso mundo, o que é valioso quando se tenta criar essa ilusão de vida”.
Essas considerações, além de enfatizarem a aproximação entre as técnicas utilizadas em
3D e aquelas de filmes “com pessoas reais”, permitem-nos empregar as expressões: plano,
cena, mise-en-scène, plongée, câmera subjetiva, dentre outras, na análise do texto fílmico Shrek
59
As informações aqui colocadas sobre a técnica de Shrek são transcritas do “Special Features” (Recursos Especiais)
do DVD, uma vez que não tivemos acesso ao Roteiro. Acreditamos não haver um roteiro da animação, no sentido
cinematográfico da palavra. As várias seqüências do filme foram feitas a partir de storyboards criadas por diferentes
desenhistas, o que ratifica a nossa assertiva.
60 Essas informações são dadas por Leo Laporte, narrador do “Special Features”.
61 Responsável pelo “layout”; aquele que está à frente da equipe do “layout”.
62 Artista/ profissional que trabalha com “layout”.
94
2. Discutidas essas questões, retomamos o cotejo entre os textos literário e fílmico,
objetos de nosso estudo.
Quando se fala nos elementos constituintes do texto literário, é comum se
destacar a figura do narrador. No conto Shrek!, o foco narrativo é em terceira pessoa,
narrador heterodiegético, que ao longo de 32 páginas conta a história de um ogro verde
horrendo. O narrador limita-se a contar, exceto por raras intromissões:
Por onde quer que o Shrek passasse, todas as criaturas fugiam. Como é que ele
podia gostar de ser tão repulsivo?
“Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO EU!” Olhou-se nos espelhos,
cheio de uma raivosa auto-estima, feliz por ser exatamente como sempre tinha
sido.
O narrador heterodiegético é uma entidade que, geralmente, se enuncia na 3ª
pessoa e faz parte do universo extra-diegético63. Contudo, essa caracterização não o
impede de realizar intrusões, por exemplo, ao afirmar que o ogro sente-se feliz por ser
exatamente como sempre tinha sido. Segundo Reis e Lopes (1988, p. 123), a objetividade
narrativa é inatingível; sendo assim, “o narrador heterodiegético protagoniza, de modo mais ou
menos visível, intrusões [...] que traduzem juízos específicos sobre os eventos narrados”.
Na animação, o que há é uma voz-off
64
que, numa gradação, narra a cena
inicial do anti-conto Shrek 2, à moda dos contos de fadas tradicionais. O Príncipe
Encantado é o dono dessa voz, e a paródia ao “Era uma vez ...” já assinala uma das
primeiras intervenções do texto fílmico, uma vez que o texto literário não apresenta tal
abertura. Na animação, a “tarefa” de mostrar/contar a cena seguinte, seqüência da lua-demel, é delegada ao narrador cinemático.
63
De acordo com Genette (apud REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. 1988, p.27), diegese é “o universo do
significado, o “mundo possível” que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história” (Grifos do autor).
64 A voz-off “refere-se a momentos nos quais ouvimos a voz de um personagem o qual não é visível no quadro” (Cf.
DOANE, 1983, p. 462).
95
Acerca de tell/show (contar e mostrar), Chatman (1993, p. 112) faz a seguinte
distinção:
In “told” narratives, such as epics and most novels, the narrating function is
assigned to a set of signifiers that are “arbitrary”, unanalogous to the actions,
characters, or settings they signify. In “shown” stories, such as narrative films,
both characters and actions tend to be represented in an iconic or “motivated”
fashion. For example, the reader of Joseph Conrad’s Outcast of the Islands can
find little in the names “Willems” or “Lingard” or, indeed, in the descriptive
epithets applied to them by narrator to form a precise mental image in Carol
Reed’s film version of the novel.65
O papel da câmera não se restringe a mostrar as cenas; a câmera também narra
(tell). Para Xavier (2003, p. 74), a câmera “tem prerrogativas de um narrador que faz
escolhas ao dar conta de algo: define o ângulo, a distância e as modalidades do olhar [...]
dizer que um filme “mostra” imagens é dizer pouco e muitas vezes elidir o principal”.
Brait (2004, p. 56) compara a câmera a um narrador em terceira pessoa que “simula um
registro contínuo, focalizando a personagem nos momentos precisos que interessam ao
andamento da história e à materialização dos seres que a vivem”.
Acerca desse narrador cinemático, Chatman (op. cit., p. 134) chama a atenção
para o fato de o mesmo não ser confundido com a narrativa em voz-over66.
The cinematic narrator is not to be identified with the voice-over narrator. A
voice-over may be one component of the total showing, one of the cinematic
narrator's devices, but a voice-over narrator's contribution is almost always
transitory; rarely does he or she dominate a film the way a literary narrator
dominates a novel - that is, by informing every single unit of semiotic
representation.67
65
“Em narrativas “contadas”, tais como épicas e a maioria dos romances, a função narrativa é atribuída a um
conjunto dos indicadores que são “arbitrários”, que não são análogos às ações, aos personagens, ou aos cenários que
eles significam. Em histórias “mostradas”, tais como filmes narrativos, ambos os personagens e as ações tendem a
ser representados de forma icônica ou “motivada”. Por exemplo, o leitor de Outcast of the Islands de Joseph Conrad
pode encontrar pouco sentido nos nomes “Willems” ou “Lingard” ou, certamente, nos epítetos descritivos aplicados
a eles pelo narrador para compor uma imagem mental precisa do romance na versão fílmica de Carol Reed.”
(Tradução nossa)
66
Ao contrário da voz-off, a voz-over é descorporalizada, ou seja, não pertence à diegese; dessa maneira, não pode ser
“localizável, por não ser escrava de um corpo” Cf. DOANE, 1983, p. 466.
67 O narrator cinemático não deve ser identificado com a narração em voz-over. A voz-over pode ser um componente
da exibição total, um dos recursos do narrator cinemático, mas, a contribuição da voz-over do narrador é quase
sempre transitória; raramente ele ou ela domina um filme do mesmo modo que um narrator literário domina um
romance – ou seja, de modo a informar cada unidade de representação semiótica. (Tradução nossa)
96
Nesse sentido, observamos que “E viveram horríveis para sempre, apavorando
todos os que tinham o azar de encontrá-los” do conto Shrek! é traduzido para Shrek 2,
através do narrador cinemático que, sem o recurso da voz-over, conta-nos, em um clipe –
cujo fundo musical era uma canção romântica --, como foi a lua-de-mel do casal de ogros.
No clipe, além do prazer visual, ao flagrar o rosto aterrorizado de Chapeuzinho Vermelho
que foge, ao ser recebida por Shrek e Fiona -- esquecendo sua cesta com um par de coxas
de frango assadas que seria, mais tarde, saboreado pelos ogros --, a câmera estabelece um
vínculo entre Shrek! e Shrek 2.
Personagens como Chapeuzinho Vermelho, Lobo Mau, Três Porquinhos,
Pinóquio, dentre outros, presentes em Shrek e Shrek 2, são homenagens aos contos de
fadas tradicionais. Outras formas de homenagens são as citações de longas-metragens
como Missão Impossível 2 (2000, de John Woo), O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel (2001,
de Peter Jackson), Homem Aranha (2002, de Sam Raimi), só para citar alguns. Essas são
intervenções não encontradas no texto literário. Por outro lado, há personagens comuns
aos textos literário e fílmico cuja transposição sofre dilatações, que ampliam os
significados do moderno conto de fadas Shrek!, de William Steig.
No conto, as personagens, por ordem de aparição, são Shrek e seus pais, uma
bruxa, um lavrador, as criaturas (homens, mulheres, crianças e animais), o Trovão, a
Chuva e o Relâmpago, o dragão, o burro, o cavaleiro biruta, e a princesa horrorosa. O
personagem “burro”, animal de carga (jerico, jegue, jumento), imbecil, curto de
inteligência (acrítico) ganha espaço no texto fílmico e transforma-se no “Burro” falante,
espécie de “fiel escudeiro” do ogro. Quanto à bruxa e aos pais de Shrek, não há quaisquer
referências a eles na animação. Por outro lado, a princesa “horrorosa e bem nascida” -características observadas pelo cavaleiro biruta --, na animação, recebe o nome de Fiona,
97
cujo significado em inglês antigo é “branca”68. Tal significado, a nosso ver, além de
corresponder à locução adjetiva “bem nascida”, é uma paródia à cor da pele das princesas
dos contos de fadas tradicionais, com destaque para Branca de Neve.
Diferentemente do conto, em que o dragão habitava o bosque e foi derrotado
por uma das “pestilentas chamas azuis” de Shrek, na animação69 o dragão-fêmea que
guarda o castelo apaixona-se pelo Burro. Quanto aos personagens, lavrador e criaturas
que no texto literário fogem do ogro, na animação, embora assustados, tentam capturar
Shrek em troca de uma recompensa. O Trovão, a Chuva e o Relâmpago, por sua vez, não
são transpostos para a tela.
As intervenções que sofreram esses personagens, no processo de transposição
do conto ao filme, estendem-se também ao protagonista da história, Shrek. A auto-estima
elevada do ogro-herói, personagem literária, é abalada por causa de um “mal entendido”:
o ogro ouviu uma conversa entre o Burro e a princesa, e esta dizia-lhe que “Princesa e
feiúra não combinam”. Fiona falava da própria feiúra, pois o Burro havia descoberto que,
ao entardecer, a princesa se transformava numa ogra. Tentando acalmá-la, disse-lhe que,
embora fosse muito feia, ela só era uma ogra à noite; já Shrek era feio o dia inteiro. A
princesa, inconformada, questiona: “Mas Burro, eu sou uma princesa, e não é assim que
uma princesa deve ser?”
Então, o Burro sugere que ela não se case com o Lord Farquaad; mas ela
contesta: “Só o beijo do meu verdadeiro amor quebrará o encanto”. O Burro insiste,
lembrando-lhe que é “meio ogro” e que ela e Shrek têm “muito em comum”. Surpresa,
Fiona indaga: “Shrek?” Essa cena intercala-se com outra em que Shrek vai ao encontro da
princesa, levando-lhe um girassol, e “ensaia” o que vai lhe dizer: “Achei esta flor e pensei
em você porque ela é bonita e, bem... Não gostei muito, mas achei que gostaria, porque
você é bonita. Mas gosto de você assim mesmo [...]”.
Ao se aproximar da porta da cabana, Shrek ouve o que Fiona dizia ao Burro:
“Quem amaria uma fera tão medonha e feia? Princesa e Feiúra não combinam. Não
posso ficar com o Shrek. A única chance de ser feliz é casando com meu verdadeiro
amor. Está vendo, Burro? É assim que tem que ser.” Shrek, triste, deixa cair a flor e
afasta-se da cabana, sem ouvir o que Fiona diz em seguida: “O encanto deve ser
68
69
Cf. http://www.mingaudigital.com.br/article.php3?id_article=526.
Trata-se do filme Shrek (2001).
98
quebrado.” E o Burro lhe diz: “Conte a verdade para o Shrek.” A intercalação dessas
cenas é importante, uma vez que ilustra a “personagem como reflexo da pessoa humana”
(BRAIT, 2004, p. 23), e alguém que está em conflito com o mundo do conformismo e das
convenções.
Embora amasse ser ogro e gostasse de Fiona mesmo ela sendo bonita, Shrek
percebe que, no mundo das convenções, Princesa e feiúra não combinam. Essa situação se
exarceba em Shrek 2 quando, já casados, Shrek e Fiona chegam a Far Far Away e têm uma
recepção nada calorosa por parte do rei Harold (pai de Fiona), dos seus súditos e,
principalmente, da Fada Madrinha: “Ogros não vivem felizes para sempre.”
A auto-confiança do ogro, no conto -- “Eles todos são eu!” --, é minada pelo
mundo de Fiona, principalmente, em Shrek 2, o que o leva a adequar-se às convenções,
beber da fórmula “Felizes para sempre” a fim de obter felicidade, bem-estar e beleza
divina. A poção mágica dá a Shrek um nariz bonito, cabelo ondulado e bunda durinha, o
que o faz sentir-se “lindo”. Na Sala dos Espelhos do conto, o ogro está “feliz por ser
exatamente como sempre tinha sido; no filme, ao ver sua imagem refletida em um balde
de água, Shrek fica feliz por não ser mais um ogro. Tal intervenção por parte dos
adaptadores aproxima cada vez mais o anti-herói Shrek de Steig, do herói problemático de
Lukács. Segundo o autor de A teoria do romance (2000, p. 82),
O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a
peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o
opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia
de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. Depois da
conquista desse autoconhecimento, o ideal encontrado irradia-se como sentido
vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser não é
superada, e tampouco poderá sê-lo na esfera em que tal se desenrola, a esfera
vital do romance; só é possível alcançar um máximo de aproximação, uma
profunda e intensa iluminação do homem pelo sentido de sua vida.
Sobre “A Personagem do Romance”, Candido (2005, p. 53) afirma que há o
pensamento simultâneo enredo-personagens-vida-problemas. Estes se “enredam,
na
linha do seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a
determinadas condições de ambiente.” Rosenfeld (op. cit., p. 45), por sua vez, compara o
papel das personagens ao dos seres humanos, e como estes “encontram-se integrados
num tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social, e tomam
determinadas atitudes em face desses valores.”
99
A atitude de Shrek é influenciada pelo espaço social onde ocorre a narrativa
fílmica, o reino de Tão Tão Distante. Martin (2003, p. 211) observa que “o cinema é
sobretudo um meio magistral para nos fazer defrontar com espaços dramáticos”. Em
Como analisar narrativas, Gancho (2003, p. 23-25) argumenta que o espaço influencia
atitudes, pensamentos e emoções dos personagens; ademais, há casos em que o espaço se
opõe aos personagens e estabelece com eles um conflito. Para Betton (1987), “o cenário é
freqüentemente mais um protagonista do que um simples ambiente sem outra implicação
além de sua própria materialidade” (p. 52).
Tanto em Shrek!, mas, principalmente, em Shrek 2, o espaço é “o móvel, o
fulcro, a fonte da ação”, para usarmos uma expressão de Lins (1976, p. 67). Na narrativa
literária, o caminho percorrido por Shrek até chegar ao castelo maluco revela guetos como
o buraco negro e o mato escuro, espaços habitados por um ogro e uma bruxa,
respectivamente. Na narrativa fílmica, esses lugares sombrios são representados através
do pântano e da taberna “The Poison Apple”. O primeiro é a casa dos ogros; o segundo é
um ambiente freqüentado por seres anômalos, como o Ciclope, o Capitão Gancho, o
Cavaleiro Sem Cabeça, o Gato de Botas -- espécie de matador profissional contratado
pelo pai de Fiona para “acabar” com Shrek --, dentre outros.
Por outro lado, o campo florido, espaço belo e (aparentemente) harmônico,
tem como transposição correspondente o reino de Tão Tão Distante. A criação desses
espaços e a transposição recriada dos mesmos não é gratuita, pois o ser necessita de um
estar. “[...] quando concebemos um determinado ente – seja humano ou não, animado ou
inanimado --, criamos uma série de referências com as quais ele se relaciona de algum
modo. Ou seja: imaginamos uma forma de situá-lo, atribuímos ao ser um certo estar”
(Santos e Oliveira, op. cit., p. 67).
Segundo Santos e Oliveira, “o ser é porque se relaciona, a personagem existe
porque ocupa espaços na narrativa.” (p. 68). Os autores observam ainda que percebemos
100
a individualidade do personagem à medida que ele contrasta “com aquilo que se diferencia
dele” (p. 68). Essa assertiva corrobora a idéia de individualidade de Shrek; além do mais,
está claro o contraste do ogro com o campo florido e Far Far Away, espaços sociais do
conto e do filme, respectivamente.
Acerca dos valores espaciais, Santos e Oliveira chamam-nos a atenção para o
fato de que “Quando falamos de espaço na análise de uma narrativa literária, pensamos,
imediatamente, no espaço físico por onde as personagens circulam” (p. 68); observam
também que “é impossível dissociar, do espaço físico, o modo como ele é percebido”(p.
69). Nesse sentido, buscamos ampliar a análise do espaço, no conto e no filme, para além
do “componente físico – paisagens, interiores, decorações objetos etc.”, ou seja, como
lugar de “configurações sociais” (p. 79).
Por configurações sociais, entendemos o estilo de vida de Far Far Away, que é
apregoado por uma voz-over, tanto na chegada de Shrek, Fiona e do Burro ao reino Tão
Tão Distante: “Piscinas! Estrelas de cinema”, como na voz do espelho-mágico-locutor
que anuncia o baile real: “Abdomes fabulosos e glúteos que são o máximo aqui no Baile
Real de Tão Tão Distante!” “Carruagens fazem fila para as celebridades descerem... Todos
os famosos vieram...”. Outros exemplos de configurações sociais, a nosso ver, dizem
respeito ao “receituário”70 da Fada Madrinha e à poção mágica do “Felizes para sempre”.
Esse estilo de vida é ratificado por imagens de carruagem-limusine e
carruagem-ferrari que circulam pelas ruas de Tão Tão Distante; um outdoor que exibe a
Fada Madrinha, em uma roupa sensual, e a frase: “Venha viver feliz para sempre”; pela
70
Discutimos a relevância do “receituário” da Fada Madrinha, no item 3.2 “Far Far Away: uma alegoria da sociedade
contemporânea”.
101
paródia a lojas de grife famosas como a Versace, e aos castelos/mansões das Estrelasatrizes-princesas dos contos de fadas.
Sobre o fato de a câmera mostrar as lojas de grife e o outdoor da Fada
Madrinha, Michael Andrews, editor de Shrek 2, observa que os críticos disseram tratar-se
de “merchandising”. Segundo Aron Warner, produtor de Shrek e Shrek 2, a idéia não era
fazer propaganda, “mas sim mostrar como tudo se tornou homogeneizado” e que “Todos
os lugares com dinheiro hoje em dia têm uma similaridade”. Michael Andrews corrobora
a assertiva de Aron e afirma:
Todas as sementes que plantamos, ao longo do filme, desde o diário até a
seqüência do jantar, são para fazer o Shrek pensar: “De repente eu não
pertenço aqui71.
Bowen (apud Stevick, 1967, p. 314) argumenta que “Scene is only justified in
the novel where it can be shown, or at least felt, to act upon action or character. In fact,
where it has dramatic use.”72 Nesse sentido, os elementos “plantados” no espaço social da
narrativa fílmica, como carruagem-limusine e celebridades que, provavelmente, possuem
abdomes fabulosos, correspondem à tríade de Far Far Away: dinheiro, fama e beleza, que
não estão distantes dos valores da sociedade do espetáculo em que vivemos.
Em A sociedade do espetáculo (1997, p. 30-31), Debord observa que
O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social.
Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada
além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna
espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura. Nos lugares menos
industrializados, seu reino já está em algumas mercadorias célebres e sob a
forma de dominação imperialista pelas zonas que lideram o desenvolvimento da
produtividade. Nessas zonas avançadas, o espaço social é invadido pela
superposição contínua de camadas geológicas de mercadorias.
Na sociedade do espetáculo, não há lugar para a originalidade, “o indivíduo deve
desdizer-se sempre, se desejar receber dessa sociedade um mínimo de consideração”
(DEBORD, p. 191). Conforme já observado por Goblot (apud Santos, p. 36), é preciso
“fazer como todo mundo”, não “nos fazer notar”, ou seja, seguir as prerrogativas que
fundamentam os valores associados ao “reino do príncipe encantado”.
71
É possível verificar essa informação ao assistir à versão comentada de Shrek 2.
“a cena só se justifica no romance quando se percebe que ela age sobre a ação ou o personagem. Na realidade,
quando ela tem uma função dramática.” (Tradução nossa)
72
102
Ao beber a poção do “Feliz para sempre”, Shrek se desdiz, faz como todo
mundo, nega a sua originalidade. Isso ocorre porque a tríade de Tão Tão Distante “mina”
a feiúra, o diferente do monstruoso, o “amar ser ogro”. Na sociedade de consumo, é
preciso ser igual para ser aceito. Essa “uniformidade”, ofertada através da publicidade,
vende o sonho de uma vida “perfeita”: os problemas desaparecem, assim como as
celulites, as espinhas e as cáries; é o início de uma nova “era”: carro esporte, vestidos
caros, plásticas que tornam as mulheres lindas e desejáveis, por homens-príncipes ricos e
donos de corpos esculturais.
De acordo com Silva, A. (2001, p. 93-94),
As imagens utilizadas pela propaganda, de maneira subliminar ou não, são de
juventude em liberdade, imagens de opulência e saúde, temperadas pelo
erotismo e vinculadas, em geral, a uma estética da magreza. A intermediação
das imagens veiculadas acaba por constituir parte dos indivíduos e das culturas:
o corpo assume os traços dessas imagens e dos artigos ali expostos, em
detrimento das raízes étnicas e culturais e da individualidade em questão.
Adissemelhança do Outro, pelo contrário, ou gera hostilidade e, na melhor das
hipóteses, a tolerância, ou gera a curiosidade por aquilo que é tornado exótico.
Em Far Far Away, a oferta da vida “perfeita” vai do outdoor à entrada do reino
ao “cartão de visitas”, espécie de cartão de crédito oferecido pela Fada Madrinha a Fiona,
cuja senha para a felicidade é uma lágrima. Ironicamente, o cartão de crédito (objeto
destituído de vida, passaporte para o consumo) necessita de “uma lágrima” (sentimento),
que é “símbolo da dor e da intercessão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 533).
Em Shrek 2, as lágrimas remetem ao sentimento de dor, tristeza, amargor. São
as lágrimas de Fiona que “chamam” a Fada que, dentro de uma bolha-lágrima, oferece à
princesa um “doce remédio”, a cura para os seus problemas: “Sei o que toda princesa
precisa/ Para ter uma vida feliz”, diz a Fada. As (pseudo-) necessidades propagadas pela
Fada são criadas pela sociedade de consumo, que através da publicidade, busca vender a
103
felicidade. Em sua crônica “A felicidade é a empada do “Bigode””, Jabor (2004, p.190)
afirma que,
Hoje, felicidade é ser desejado. Felicidade é ser consumido, é entrar num
circuito comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo. Hoje,
confundimos nosso destino com o destino das coisas... Uma salsicha é feliz? Os
peitos de silicone são felizes?
Na animação, após beber do “Felizes para sempre”, Shrek tem seu corpo
enquadrado num certo padrão de beleza: cabelo ondulado, nariz bonito, bumbum
durinho. Metamorfoseado, este corpo movimenta-se pelas ruas de Tão Tão Distante, sem
causar repulsa aos seus moradores, uma vez que o ex-ogro, ao menos na aparência, está
sintonizado com o glamour do reino. Agora, Far Far Away é a “sua casa” e a localização do
castelo confirma o status dele. Embora existam exceções, de acordo com Tuan (1983, p.
43-44),
As localizações residenciais têm a mesma hierarquia de valores. Assim como em
uma casa as áreas de serviço estão escondidas no porão, [...] e as casas
particulares aumentam de prestígio com a elevação. Os ricos e poderosos não
somente possuem mais bens imóveis do que os menos privilegiados, como
também dominam mais espaço visual. O status deles se torna evidente aos
estranhos pela localização superior de suas residências; e de suas residências os
ricos reafirmam sua posição na vida a cada vez que olham pela janela e vêem o
mundo aos seus pés.
A localização do castelo onde vivem os sogros de Shrek corresponde,
exatamente, a essa descrição; além do mais, há uma clara separação entre as classes sociais.
Em outras palavras, enquanto a classe burguesa de Tão Tão Distante possui mansões,
lojas de grife e vai ao baile real, os camponeses limitam-se a olhar as vitrines e ver não o
baile real, mas a chegada das celebridades que passam sobre o tapete vermelho à entrada
do castelo.
104
Mas não é só a “Romeo Drive” (avenida principal de Far Far Away) que separa
ogros e princesas; na verdade, é dentro do castelo real que o conflito de classes se
exacerba. Nesse sentido, a seqüência do jantar é significativa, pois ilustra a opressão do
espaço social através da mise-en-scène. Sobre o conceito de mise-en-scène, Turner (1997, p. 43)
observa que ela “nos permite falar de modo como os elementos dentro de um quadro ou
filme, ou de uma tomada composta de muitos quadros consecutivos, são dispostos,
movimentados e iluminados”. Estáticos ou em movimento, esses elementos podem
significar.
A título de exemplificação, destacamos a iluminação obscurecida da sala de
jantar do castelo real de Shrek 2 que, assim como os demais elementos postos em cena,
significa. Turner observa que há dois tipos de iluminação: high-key (luz alta) e low-key (luz
baixa). Enquanto a primeira é realista, a segunda é expressiva e nos dá “uma impressão de
ambigüidade ou ameaça” (p. 62). Para Turner, isso acontece porque
A iluminação low-key geralmente deslocará a luz-chave (luz principal) de sua
posição convencional para um dos lados da personagem, de modo a deixar
visível apenas metade da face, ou aumentar o ângulo para que o rosto seja
iluminado de baixo e adquira um aspecto distorcido e ameaçador (p. 62).
Da cena do reencontro da Princesa Fiona com seus pais, e a conseqüente
apresentação de seu marido ogro, passa-se para um plano em que a câmera focaliza uma
imensa ave de rapina sobre a cabeça de Shrek que, desolado, ocupa uma das extremidades
da mesa; a câmera vai abrindo e capta toda a mesa de jantar, focaliza a rainha que come
delicadamente um escargot; depois o rei que, com um olhar baixo e furioso como se
estivesse pronto para atacar o “inimigo”, ocupa a outra cabeceira da mesa; a câmera, agora
alta, mostra o prato de Shrek, que sem saber usar os talheres, opta por “lançar” com as
mãos um escargot na boca, mastiga-o de forma barulhenta e sorri constrangido. Enquanto
isso, Fiona bebe o que parece ser um pouco de vinho e, sem querer, dá um arroto; meio
sem jeito, pede desculpas; os pais olham-na surpresos; Shrek sorri e diz: “Melhor soltar do
que prender! Não é?” Os ogros riem; Shrek, ainda sorrindo da própria piada, diz: “Essa é
boa!”. Logo em seguida, ele e Fiona percebem que o rei e a rainha não compartilham da
mesma opinião, e corrige-se: “Acho que não!”
105
As gafes do ogro não param por aí. Tentando fugir do clima pesado que se
instaurara à mesa, Shrek concentra-se em tomar o que julga ser uma “sopa”. Fiona,
contudo, corrige-o, mostrando que se trata de um recipiente para lavar as mãos. O
constrangimento do ogro só não é maior do que a ira do rei Harold, o seu sogro.
Incentivados pela rainha, os ogros iniciam uma descrição do lugar em que vivem. Shrek,
no entanto, buscando ser aceito pela família real, “floreia” na descrição do pântano: “É
uma floresta encantada, repleta de esquilos e lindos patinhos e ...”; jocoso, o Burro revela
a verdadeira imagem do pântano. Após essa revelação, a face do rei passa do tom
ameaçador ao irônico e comenta: “Um ogro do pântano. Que original!”
Está claro que Shrek não pertence àquele espaço social. Para o rei, o lugar de
“tipos” como Shrek era o pântano e não Far Far Away. Não há mais espaço para a
tentativa de cordialidade. Em suas posições, ogro e rei dão início a um duelo verbal que é
interrompido pelo chef. Enquanto os garçons colocam os pratos sobre a mesa, a câmera,
num jogo campo-contracampo, focaliza Shrek e o rei que se olham ameaçadores puxando
os pratos principais para si, como se preparassem para a segunda fase do duelo, o verbogastronômico. A música extra-diegética, que durante a primeira parte do jantar era
discreta, a partir desse momento, é mais intensa e dá o ritmo dos garçons que, em volta da
mesa, servem o jantar como se valsassem. Toda essa cena é mostrada por uma câmera
plongée73, que faz uma panorâmica da mesa de jantar, captando, inclusive, parte dos
requintados lustres.
Acerca da composição audiovisual, Aumont e Marie (2003, p. 205) observam
que ela tem, dentre outras funções, a de ilustrar ou criar “uma atmosfera correspondente à
situação dramática (cena lírica, violenta, elegíaca etc)”. Nesse sentido, o cenário do castelo
73
“Fala-se de enquadramento plongée, quando o objeto é filmado de cima; em contra-plongée quando ele é filmado de
baixo [...]” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 98)
106
real de Tão Tão Distante com sua low-key; a disposição dos protagonistas desse duelo à
mesa do requintado jantar; as gafes cometidas pelo ogro; as tomadas da câmera que
revelam/ narram a inabilidade e o desconforto do ogro diante de tamanha opulência; a
música que se exacerba na terceira parte do duelo, o gastronômico; tudo corrobora uma
atmosfera dramática que ratifica o quanto um ogro do pântano está distante daquela
realidade.
Servido o jantar, o chef retira-se desejando um bon appétit; a trégua termina, é o
começo de uma nova batalha. A “luta” que já havia sido verbal e verbo-gastronômica,
passa a ser agora apenas gastronômica. Explicamos: os participantes do duelo levantam-se
de suas cadeiras e tentam puxar para si o leitão que estava no centro da mesa. O assado
desprende-se de suas mãos, “voa” em direção ao lustre, enquanto a câmera ora mostra
Fiona que reclama com Shrek, ora mostra seu pai, e ambos tentam se defender como se
não tivessem culpa alguma, retorna (a câmera) para Fiona que pede ajuda à mãe, esta
chama a atenção do rei e, finalmente, focaliza o Burro que chama a si próprio. Nesse
momento, o leitão cai sobre a mesa de jantar, que em nada lembra o requinte de instantes
atrás. Revoltada com a atitude do pai e do marido, Fiona ergue-se, sai da sala de jantar e
dirige-se para o seu quarto: é o fim do desastroso jantar em família.
Toda essa seqüência dura aproximadamente três (longos) minutos, tempo
suficiente para mostrar que o principal rival de Shrek não é o rei, mas sim a mise-en-scène do
ambiente. Turner (p. 65) enfatiza que a “montagem do cenário, o figurino, o arranjo e o
movimento das personagens, as relações espaciais (quem é obscurecido, quem parece
dominar, e assim por diante) [...]” são importantes porque “aprendemos muito com a miseen-scène” (p. 66). Parafraseando Turner, aprendemos muito com Tão Tão Distante, pois,
como já havia observado Vanoye (p. 77), “Nenhum elemento do cenário é gratuito”.
107
Destarte, tudo no espaço social de Shrek 2 significa: da localização do castelo
real à variedade de talheres sobre a mesa de jantar, todos os elementos corroboram a idéia
de que Shrek está distante daquele reino. Na ampliação de Shrek!, de William Steig, para
além do horríveis para sempre, leia-se Shrek 2, de Andrew Adamson, Kelly Asbury e
Conrad Vernon, a animação enriquece o campo da percepção humana e amplia nossa
consciência crítica da realidade. Este é um importante papel do cinema já apontado por
Walter Benjamin e lembrado por Stam (2003, p. 84).
No final de “Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações”,
dissemos que, no cotejo entre os textos literário e fílmico, a “fidelidade” não seria objeto
de nossas preocupações. E, embora ambos os textos apresentem um ogro-herói e espaços
indeterminados, como “um lugar sei lá onde” e “Tão Tão Distante”, é no texto fílmico
que vemos mais claramente o reflexo de uma sociedade que nos é contemporânea. Nosso
propósito era dar início à discussão sobre como a inserção dos símbolos do poder
capitalista na construção do espaço social da adaptação fílmica, Shrek 2, ampliou os
significados do conto de fadas Shrek!; esperamos, portanto, ter atingido nosso objetivo.
108
4.1 - Far Far Away: o não-lugar é o melhor lugar
O lugar é o palimpsesto.
Michel de Certeau
[...]
Eu sou a fenda para o cartão de crédito
E a esteira do chek-in...
Eu sou o shopping center
Aquela vitrine
Aquele manequim sem cabeça
E sou de novo a rua
A rua ex-ponto de encontro
Eu sou o porto de passagem
E a fluidez dos líquidos que facilmente se moldam...74
[...]
Fenda, esteira, shopping, rua, Far Far Away. . . O que têm em comum esses
espaços? De acordo com Marc Augé, são todos não-lugares. Augé (1994, p. 87) entende
por não-lugar “duas realidades complementares, porém distintas: espaços constituídos em
relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos
mantêm com esses espaços”. Idéia esta corroborada por Relph (apud MAIA, 2004, p. 3-4)
para quem os não-lugares não se definem apenas por seus aspectos físicos, mas também
por ser “uma atitude e uma expressão desta atitude que está se tornando cada vez mais
dominante”.
Em seu artigo “Shopping center – entre a identidade e a inautenticidade na
construção do lugar”, a partir da leitura de Relph, Maia (p. 4) observa que os não-lugares
são “fruto de uma atitude inautêntica das pessoas, que cada vez agem como os outros
agem, sem qualquer reflexão, porque este é o comportamento aceito”. Em outras
palavras: é preciso “fazer como todo mundo”.
Substantivos concretos, espaços e lugares carregam significados que, muitas
vezes, parecem sinônimos. A narrativa classifica o espaço como físico, social e
psicológico. Na nossa pesquisa, tem nos interessado o estudo do espaço social, quer seja
no texto literário, quer seja no texto fílmico.
Por outro lado, sentimos necessidade de abrir um espaço (!) para discutirmos o
lugar como expressão geográfica de singularidade. Essa discussão nos permitirá entender
74
Excerto do poema “Não-lugar” (Cf. ANDRADE FILHO, 2005. p. 93).
109
o não-lugar -- como queria Augé – de Shrek no reino Tão Tão Distante, e como este se
transforma no melhor lugar; antes, retomaremos a caracterização do espaço social, à luz da
geografia humanística.
De acordo com Santos (2004, p. 55), “O espaço social, como toda realidade
social, é definido metodológica e teoricamente por três conceitos gerais: a forma, a
estrutura e a função” e, ao citar Lefèbvre, observa que esse espaço é passível de uma
análise correspondente, ou seja, “formal, funcional e estrutural”.
Quanto à forma do espaço social, Lefèbvre (apud Santos, p 32) destaca que ela
é “o encontro, a reunião, a simultaneidade”. E, não sendo ele uma forma vazia, uma vez
que é cúmplice da estrutura social, Santos argumenta que “com o desenvolvimento das
forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para
aprofundar as diferenças de classes” (p. 32).
A assertiva de Santos acerca da não neutralidade do espaço social pode ser
comprovada se atentarmos para o fato de que desconhecemos localidades que não
“abriguem” diferentes classes sociais e relações de poder entre elas. Mesmo nos bairros
nobres é comum, mas nem sempre pacífica, a convivência de ricos e miseráveis. Nas
principais capitais do país, as favelas estão ao lado dos shopping centers, ou de prédios
luxuosos, alguns deles apenas com um apartamento por andar. A título de exemplos,
citamos a cidade do Recife e a cidade de São Paulo – o que não impede de encontramos
exemplos semelhantes em outras cidades e/ ou países -- por apresentarem duas realidades
díspares.
Na primeira, o maior centro de compras da América Latina – essa referência
nos remete ao que diz Tuan (p. 193) sobre o fato de os líderes das cidades novas, carentes
de “um passado venerável”, através da propaganda, promoverem-na por suas “excelências
abstratas e geométricas”: “a maior”, “a mais alta”, dentre outros superlativos --, fica à
entrada da favela Entra a Pulso, uma das principais da Veneza Brasileira, cujos moradores
buscaram assessoria jurídica, na década de 80, para garantir o direito de permanecer na
área ocupada desde os anos 50 do século passado.
Na capital paulista, há um exemplo semelhante: nos fundos da butique de luxo
Daslu está a favela Coliseu, cuja renda mensal somada das 215 famílias correspondia,
segundos dados do Censo do IBGE de 2000, ao valor de duas calças jeans de grifes
110
famosas, conforme a matéria “Entre falcões e peruas”, publicada no site da revista Caros
Amigos.75
Apesar da proximidade geográfica entre as favelas e os centros de consumo
acima citados, há uma distância social que separa os personagens que habitam esses
lugares ou circulam por eles. De acordo com Tuan (p. 56), “A distância social pode ser o
inverso da distância geográfica. O criado vive perto do patrão, mas ambos não são amigos
chegados”.
Guardadas as devidas proporções, essa distância social não impede que a
parcela menos favorecida da sociedade freqüente esses lugares e fique tentada a consumir
os mesmos bens dos “patrões”. De acordo com Santos (1987, p. 34), “O poder do
consumo é contagiante, e sua capacidade de alienação é tão forte que a sua exclusão
atribui às pessoas a condição de alienados”. O consumo de um ou de vários itens de grifes
famosas, contudo, não é suficiente para diminuir a distância entre ricos e pobres, uma vez
que ambos pertencem a mundos diferentes. O lugar de um dominado não é o mesmo da
classe dominante.
Sendo assim, o “encontro” de que falou Lefèbvre revela-se um desencontro, uma
vez que, para o autor de Pensando o espaço do homem,
O que une, no espaço, é a sua função de mercadoria ou de dado fundamental
na produção de mercadorias. O espaço, portanto, reúne homens tão
fetichizados quanto as mercadorias que eles vêm produzir nele. Mercadorias
eles próprios, sua alienação faz de cada homem um outro homem (p. 33-34).
Espaço-mercadoria, a alienação de Far Far Away faz de Shrek um príncipe. O
que parecer ser, apenas, o lugar onde se desenrola a narrativa fílmica, revela-se como
elemento perturbador de uma “simples” estória. Falsamente simples, a história do ogro
confirma o que nos diz Colasanti (2004, p. 222) acerca dos contos de fadas: “Uma falsa
ingenuidade as percorre. Uma linguagem muito simples as narra. Nada nelas parece
destinado a abalar adultos acostumados a diurnas e constantes violências”.
Em Shrek 2, o leitor mais atento, provavelmente, perceberá que o espaço social
da narrativa fílmica é violento, porque é excludente. Personagem e espaço vivem uma
relação conflituosa em que este tenta excluir aquele. Essa assertiva corrobora a idéia de
que ambas as categorias da narrativa -- a saber, personagem e espaço – estão intricadas.
75
Cf. http://carosamigos.terra.com.br/do_site/reportagem/reportagem17.asp. Acesso em 12 jan. 2007.
111
Acerca dessa questão, mas sem se ater aos elementos constituintes do texto
narrativo, Tuan (p. 40) afirma que “Homem e mundo indicam idéias complexas”. É
possível entender essa complexidade se apreendermos, por exemplo, o sentido de lugar.
Em “Cultura e territorialidades urbanas – uma abordagem da pequena cidade”, Silva, J.
(2000, p. 17) observa que
A dimensão subjetiva da relação entre os homens e o espaço tem sido
explorada pela corrente humanística da geografia através da categoria "lugar".
Os geógrafos que fazem parte desta corrente preocupam-se em interpretar os
códigos e significados dos lugares, desvendando as idéias e as ideologias dos
indivíduos, pois estes vivem o lugar através de suas culturas que, por sua vez,
influenciam suas experiências e ações.
Ao longo de seu artigo, Silva, J. discute o significado de termos como espaço,
território e lugar. Dentre as leituras do “território” que a autora apresenta, à luz de
diversos teóricos, destacamos a de Holzer (p. 20):
o território pode ser visto como um conjunto de lugares, onde se desenvolvem
laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social, que o
território não precisa ser necessariamente fechado a partir de uma delimitação
rígida de fronteiras.
Principalmente produto da experiência humana, Relph (apud Leite, 1998, p. 10)
observa que o lugar é “muito mais que o sentido geográfico de localização”; diz respeito a
“tipos de experiência e envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança”.
Tuan (op. cit., p. 3) concorda com Relph e afirma que “lugar é segurança”. Tuan cita como
exemplo de lugar, e, portanto, de segurança, a casa. O autor de Espaço e lugar (p. 184)
atribui àquela quatro qualidades: “Proporciona abrigo; a sua hierarquia de espaços
corresponde às necessidades sociais; é uma área onde uns se preocupam com os outros,
um reservatório de lembranças e sonhos”.
Duas dessas qualidades correspondem ao sentimento que Shrek tem em
relação à sua casa. Primeiro, nela, o ogro se sentia abrigado, seguro, sensação ratificada
pelo ar de satisfação de Shrek e Fiona ao reverem seu lar, após o retorno da lua-de-mel,
bem como pelo ar de desolação do ogro por ter que deixar o seu abrigo, o pântano, e
partir para o desconhecido Tão Tão Distante; segundo, os poucos cômodos visíveis no lar
de Shrek parecem ser suficientes para acomodar o ogro e, mais tarde, a sua esposa, a
princesa Fiona. Essa análise nos leva a pensar que o espaço representa uma antítese, ou
seja, insegurança, ameaça. Desse modo, o pântano é melhor lugar que Far Far Away.
112
De acordo com Tuan, tal conclusão não é de todo errada se analisarmos o
termo “espaço” de uma forma negativa. Uma análise positiva, contudo, não elide a
diferença entre espaço e lugar. Esse “é um centro calmo de valores estabelecidos”; aquele,
“símbolo comum de liberdade no mundo”, “permanece aberto; sugere futuro e convida à
ação” (p. 61).
Quando analisamos um texto literário, é comum nos referirmos ao lugar onde
ocorre a narrativa como espaço. Para Gancho (2003, p. 23), o termo espaço “só dá conta
do lugar físico onde ocorrem os fatos da história”. A autora prefere o vocábulo
“ambiente” uma vez que este carrega aquele “de características socioeconômicas, morais,
psicológicas, em que vivem os personagens” (p. 23).
Essa descrição do ambiente proposta Gancho aproxima-se da indagação/
definição que Lins (1976, p. 74) faz do espaço social:
Como nomearíamos, senão assim, certo conjunto de fatores sociais,
econômicos e até mesmo históricos em que muitas narrativas assumem extrema
importância e que cercam as personagens, as quais, por vezes, só em face desses
mesmos fatores adquirem plena significação?
Nesse sentido, parece-nos acertada a escolha de caracterizar, desde as
primeiras linhas de nossa pesquisa, Far Far Away como um espaço social. O efeito desse
ambiente sobre o ogro verde eleva o espaço social em Shrek 2 -- como ocorre em outras
narrativas literárias e/ ou fílmicas -- à categoria de opressor do personagem. Como
exemplos, citamos as análises que Osman Lins e Antonio Candido fazem do espaço social
(opressor) de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), de Lima Barreto e L’Assommoir
(1877), de Émile Zola, respectivamente. De acordo com Lins (p. 74),
A luta de Quaresma, travada contra a terra, é ordinariamente empreendida
contra entidades menos concretas: circunstâncias sociais, econômicas e
históricas nas quais está mergulhado. A Revolta da Armada, tão importante
para o seu destino e essencial no plano do romance, cria um cenário específico,
inconfundível, não construído com volumes, linhas, cores, mais respirável e que
nos parece necessário precisar.
“Época de opressão como o grau de civilização de uma determinada área
geográfica”, “a festa”, “a peste ou a subversão da ordem (manifestações de rua, revolta
armada)” todas essas manifestações, juntamente com as edificações, compõem o espaço
social (LINS, p. 75). Da mesma maneira, o estilo de vida de Tão Tão Distante, o
receituário da Fada Madrinha, o baile real, os castelos/ mansões, as lojas, as carruagens,
113
corroboram a análise que fizemos acerca de a composição do espaço da narrativa fílmica
ocorrer através, também, das configurações sociais, conforme discutido em “De Shrek! a
Shrek 2: um “reino” não tão distante”, bem como o espaço social como opressor do
indivíduo na modernidade.
Ambientes, edificações, manifestações, configurações. Em “Degradação do
espaço” (2004), Candido observa a correlação dos ambientes (o quarto de hotel, a
lavanderia e o botequim), das coisas e do comportamento em L’Assommoir. Na obra
analisada, Candido argumenta que “o significado da correlação estaria na intercalação da
limpeza entre a sujeira física e moral” (p. 65).
Para Candido, esses ambientes “exprimem em termos polares as opções que
regem os atos dos personagens, vinculando-os aos líquidos, que aparecem nos níveis
natural, social, metafórico e simbólico” (p. 56). Além disso, o autor de O discurso e a cidade
acredita ser significativo que o narrador retome esses lugares, uma vez que eles são vistos
pela protagonista degradada que tenta, através da prostituição, saciar sua fome. Convém
registrar a análise de Candido:
Neste recuo aos níveis mais ínfimos, parece que a dimensão cultural da cidade é
dissolvida num desmesurado ambiente natural, formado pela noite, o frio, a
chuva, a lama, a neve, o vento, a escuridão. Cuspida do universo da técnica e do
objeto manufaturado, Gervaise retorna a uma situação primitiva que procura
superar usando o próprio corpo como objeto negociável. Ou seja: indo ao cabo
do processo alienador, ela se define como coisa, no espaço de um mundo que
lhe nega condições para se humanizar (p. 79).
Nesse sentido, à personagem de Zola cabe o Pavé aux vaches76; assim como
convém a Shrek o seu pântano. Embora mais de um século e gêneros narrativos
diferentes separem L’Assommoir e Shrek 2, ambos os textos, através de seus espaços sociais
assépticos, expulsam seus personagens. É a luta de classes. No texto de Zola, após o
casamento -- realizado de má vontade pelo padre, “entre duas missas de verdade”
(CANDIDO, p. 48) --, Gervaise, Coupeau e seus convidados são discriminados ao saírem
às ruas para comemorar as bodas.
Uma vez que são operários (portanto, ogros), eles não têm direito ao “Felizes
para sempre”. De acordo com Candido (p. 48),
[...] é nas ruas do centro que a marginalidade explode, definida pelo riso com
que é recebido o desejo de, pelo menos uma vez na vida, o operário vestir e
passear como os burgueses. Nesse espaço ele não cabe, tem um ar de bicho de
76
Pavimento destinado às vacas (Tradução nossa).
114
outro tempo e outro lugar, com as roupas desemparceiradas, misturando
diversos momentos da moda num vago carnaval; [...]
Silêncio sepulcral, tórax recuados, susto e um “Não beijou o Príncipe para
quebrar o encanto?”, eis a “recepção” oferecida ao casal de ogros em sua chegada a Far
Far Away. Desemparceirado, bicho de outro lugar, “cuspido” daquele ambiente, para
usarmos as expressões significativas de Candido, Shrek deseja retornar ao pântano
porque, como os personagens de L’Assommoir, “o seu lugar não é em cima; é embaixo”
(CANDIDO, p. 49). Em vez do Museu do Louvre, “o restaurante modesto onde vão
comer o jantar das bodas” (p. 49); no lugar do castelo real dos contos de fadas, o pântano.
O que têm em comum esses lugares para Gervaise, Coupeau e Shrek? Servem de “âncora
no mar hostil da grande cidade” (p. 49).
A leitura que Candido faz do texto de Zola, especialmente acerca da
celebração das bodas, ratifica a distinção entre lugar e espaço. Essa distinção, contudo,
não impede que o espaço seja “promovido” à condição de lugar, conforme discutiremos
mais adiante; antes, vale ressaltar que Tuan “divide” o espaço em aberto e fechado. Este,
humanizado, é lugar; aquele, por sua vez, “como uma folha em branco”, necessita ser
trilhado, sinalizado. Ademais, no espaço aberto, “uma pessoa pode chegar a ter um
sentido profundo de lugar”. E, conforme argumenta Tuan, “Os seres humanos
necessitam de espaço e de lugar” (p. 61). Em outras palavras, os seres humanos precisam
de segurança e liberdade.
“O espaço é um lugar praticado”. A afirmativa de Michel de Certeau (1994, p.
202) corrobora a idéia de que espaço e lugar não se opõem; na verdade, eles estão
imbricados. Tal argumento, contudo, não impede que o autor de A invenção do cotidiano
diferencie esses elementos.
Inicialmente, entre espaço e lugar, coloco uma distinção que delimitará um
campo. Um lugar é a ordem (seja ela qual for) segundo a qual se distribuem os
elementos nas relações de coexistência. [...] os elementos considerados se
acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto
que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições.
Implica uma indicação de estabilidade (p. 201).
Se lugar é estabilidade, espaço é movimento. Para Certeau (p. 202),
Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam,
o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas
conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Diversamente do lugar, não tem
portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”.
115
Estabilidade e movimento, também, são características apontadas por Tuan.
Resta-nos saber como o reino Tão Tão Distante pode ser compreendido através dessa
classificação. É território, lugar ou espaço? O que nos autoriza a responder,
antecipadamente, que Far Far Away é um não-lugar? Antes de responder a essas
indagações e uma vez que “o espaço influencia atitudes, pensamentos e emoções dos
personagens”, conforme já discutimos, é preciso estender a discussão a uma perspectiva
antropológica.
Nesse sentido, Augé (op. cit., p. 75) observa que lugares e não-lugares passam
pela mesma “oposição do lugar ao espaço”. Identitário, relacional e histórico são
características daquele. Dessa forma, um espaço que não se defina por essas características
é um não-lugar. Na sociedade contemporânea, os não-lugares são contrastantes: cadeias
de hotéis, terrenos invadidos, clubes de férias e favelas destinadas aos desempregados são
alguns dos exemplos apontados por Augé (p. 74).
São não-lugares, também, as máquinas automáticas e os cartões de créditos.
Esses “lugares” levam-nos à individualidade solitária, em que o indivíduo, como observa
Debord em A sociedade do espetáculo, se desdiz sempre. Assim, individualidade não é
originalidade, é solidão. Paradoxal ou não, ser sozinho é ser semelhante aos outros, é
“abrir mão” de sua identidade. A esse respeito, Augé argumenta que
O cliente do supermercado, se paga com cheque ou com o cartão do banco,
também declina sua identidade, assim como o usuário da auto-estrada. De certo
modo, o usuário do não-lugar é sempre obrigado a provar sua inocência. [...] O
passageiro dos não-lugares só reencontra sua identidade no controle da
alfândega, no pedágio ou na caixa registradora. Esperando, obedece ao mesmo
código que os outros, registra as mesmas mensagens, responde às mesmas
solicitações. O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem
relação, mas solidão e similitude (p. 94-95).
Nesse sentido, viajar, comprar, repousar são ações que resumem a relação
indivíduos/ espaços. De acordo com Augé (p. 87-88), coube às palavras o papel de
mediadoras dessa relação: “Sabemos, antes de mais nada, que existem palavras que fazem
imagem, ou melhor, imagens: a imaginação de cada um daqueles que nunca foram ao Taiti
ou a Marrakesh pode se dar livre curso apenas ao ler ou ouvir esses nomes”.
Os não-lugares são criados pela supermodernidade que não integra a si os
lugares antropológicos que o passado criou. De acordo com Augé (p. 101), diferente da
116
modernidade em que “os campanários e as chaminés são os “donos da cidade””, na
supermodernidade, o antigo é visto como “espetáculo específico”, “exotismo”.
Na sociedade contemporânea, onde abundam exemplos de não-lugares, a
experiência destes é significativa. Segundo Augé (p. 108-109),
O que é significativo na experiência do não-lugar é sua força de atração,
inversamente proporcional à atração territorial, ao peso do lugar e da tradição.
A invasão de motoristas na estrada do fim de semana ou das férias, as
dificuldades dos controladores de tráfego em dominar o congestionamento das
vias aéreas, o sucesso das novas formas de distribuição certamente comprovam
isso. Mas também fenômenos que, à primeira vista, poderiam ser imputados à
preocupação de defender os valores territoriais ou de encontrar as identidades
patrimoniais.
Nos não-lugares da supermodernidade, a história de cada indivíduo parece
referir-se a três questões: onde moro/ aonde vou, que tal estou, o que tenho. Essas questões
aproximam-se do que Augé chama de “cocooning”77 ou “voltar-se para si mesmo” e,
acrescenta: “nunca as histórias individuais (pelo fato de sua necessária relação com o
espaço, a imagem e o consumo) foram também tomadas dentro da história geral, da
história simplesmente” (p. 109).
Espaço + imagem + consumo = Far Far Away. A equação traduz bem o que
havíamos dito, anteriormente, acerca de esse espaço social da narrativa fílmica ser um
símbolo da sociedade contemporânea, bem como de sua tríade significar: fama, beleza e
dinheiro. Nesse espaço, o outdoor da Fada Madrinha convida “Venha viver feliz para
sempre”, ou seja, usufruir a tríade; desde, é claro, que o indivíduo “zele” por sua imagem,
ou seja, consuma. Não corresponder a essa tríade, não ser um “igual” pode gerar atitudes
que, conforme aponta Augé, são concebíveis: fuga, medo ou revolta (p. 110).
Em Shrek 2, o ogro relutou em ir ao reino Tão Tão Distante, pois temia não
ser aceito pelos pais de Fiona nem por seus súditos. Confirmado o seu temor, o ogro
desejou voltar para o pântano, pois lá era o seu “lugar”. Mas, como nos diz Augé (p. 110),
revoltar-se contra os valores estabelecidos também faz parte das atitudes individuais
concebíveis.
Como exemplo de valor estabelecido e já apontado em nossa pesquisa,
citamos o fato de “os ogros não serem felizes para sempre”, segundo a Fada Madrinha.
Inconformado com sua “sentença”, Shrek luta por sua felicidade. O preço desta, contudo,
77
Der. “cocoon”, casulo (Cf. MICHAELIS, 2001, p. 58).
117
é esquecer o “amar ser ogro” para tornar-se um príncipe encantado. Adentrar em Tão
Tão Distante metamorfoseado, e não ser rechaçado por seus habitantes, dá a Shrek a
sensação de pertencer àquele reino. De acordo com Augé (p. 99),
O personagem está em casa quando fica à vontade na retórica78 das pessoas
com as quais compartilha a vida. O sinal de que se está em casa é que se
consegue se fazer entender sem muito problema, e ao mesmo tempo se
consegue entrar na razão de seus interlocutores, sem precisar de longas
explicações.
Discutindo acerca dos “Efeitos de lugar” (p. 165), Pierre Bourdieu observa
que “certos lugares, e em particular, os mais “seletos” -- entendam-se bairros chiques ou
residências de luxos -- exigem não somente capital econômico e capital cultural como
também capital social”. Bourdieu chama de efeito de clube a “associação durável de pessoas
e de coisas, que sendo diferentes da grande maioria, têm em comum não serem comuns”
(p. 165). Todavia, estão exclusos desse “círculo” todos aqueles que “não apresentam as
propriedades desejadas ou que apresentam uma (pelo menos) das propriedades
indesejáveis” (p. 166).
Sobre as considerações de Bourdieu, duas questões chamam a nossa atenção: o
“efeito de clube” e a “exclusão dos diferentes”. A primeira remete-nos ao comentário de
Shrek sobre não ser bem-vindo ao “country club”, ou seja, a Far Far Away, lugar chique
com mansões luxuosas e lojas caras. A segunda, conforme haviam lhe lembrado a Fada
Madrinha e o Burro, que, apesar de seu gesto, beber da fórmula do “Felizes para sempre”,
ele continuava o mesmo por dentro. Em outras palavras, ele não só não apresentava todas
as propriedades desejadas (faltavam-lhe fama e dinheiro) como, ainda, possuía uma das
indesejáveis: era um ogro.
Essas considerações, a nosso ver, ratificam o espaço social da narrativa fílmica
como um não-lugar. Este, contudo, “ascende” à categoria de melhor lugar. Longe de fazer
apologia ao modo de vida de Far Far Away, acreditamos que o reino Tão Tão Distante é o
lugar certo para discutirmos a marginalização e intolerância de que o ogro é vítima. Ao
experienciar esse não-lugar, Shrek quebra os padrões estabelecidos e leva-nos a repensar a
sociedade, seus valores, as instituições e as regras dominantes.
Acerca da experiência, Tuan (p. 10) afirma que
78
a palavra é tomada no seu sentido clássico, “sentido definido por atos retóricos como a peroração, a acusação, o
elogio, a censura, a recomendação, a advertência etc” (AUGÉ, 1994, p. 99).
118
Experienciar é vencer perigos. A palavra “experiência” provém da mesma raiz
latina (per) de “experimento”, “experto” e “perigoso”. Para experienciar no
sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o
ilusório e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar
os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O indivíduo é compelido a isso.
Está apaixonado, e a paixão é um símbolo de força mental.
Acreditamos que a palavra “experiência”, no sentido de “vencer perigos”
(TUAN, p. 10) é mais coerente com a postura ativa do ogro-herói. Apaixonado por
Fiona, Shrek arrisca-se a ser um “igual” em Far Far Away. Para ser um experto79, enfrenta
o pai de Fiona e a Fada Madrinha. Essa, conforme discutimos em “Far Far Away: uma
alegoria da sociedade contemporânea”, é uma representante da Indústria Cultural. E, ao
mesmo tempo em que o texto fílmico mostra a “corrida” do ogro em busca de sua
felicidade, revela o “preço” que o rei Harold pagou para fazer parte daquela sociedade do
espetáculo, bem como a desalienação do (s)ogro-rei.
Embora pague o preço por sua desalienação, ou seja, voltar a sua forma
anfíbia, o rei liberta-se do jugo da Fada Madrinha e, assim como Shrek, torna-se
experiente, pois vence os perigos. O mundo do Ter em que viveu por muito tempo o pai
de Fiona não o satisfaz mais, é preciso Ser. Revigorado na sua essência e aceito por sua
família e súditos, o sapo-rei continua a ser uma “Very Important Person” (VIP) desse
“country-club” que é Far Far Away.
A fim de ratificar a relevância da experiência que os ogros (Shrek e o rei)
viveram no espaço social da narrativa fílmica, convém observarmos que Far Far Away já
não está mais tão distante, uma vez que o seu líder maior, o rei Harold, não apresentava
todas as propriedades desejadas/ propagadas por Tão Tão Distante: fama, beleza e
dinheiro. Esse fato abre espaço para a tolerância; afinal, sogro mas também ogro não são
belos.
A (nova) condição do rei e o retorno de Shrek à sua forma anômala, sem ser
execrado, ao que nos parece, contribuem para que Far Far Away torne-se um “lugar” para
o ogro. De acordo com Augé (p. 74),
existe certamente o não-lugar como o lugar: ele nunca existe sob uma forma
pura; lugares se recompõem nele; relações se reconstituem nele [...] O lugar e o
não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente
apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se
reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação.
79
“Que tem experiência”. Difere de “esperto”: indivíduo inteligente que “entende tudo o que lhe explicam”. Cf.
FERREIRA, A., 2001, p. 311; 330, respectivamente.
119
Entender esse jogo identidade/ relação é possível graças a dois fatores: o
primeiro de ordem literária e o segundo de ordem econômica. Explicamos: espaço e
personagem são unidades do sistema complexo narrativo que “se refletem entre si e
repercutem umas sobre as outras” (LINS, 1976, p. 95). Nesse sentido, Far Far away não é
só o espaço social onde se desenrola a narrativa. Para usarmos uma expressão de Betton
(1987, p. 52), Far Far Away é mais um “protagonista” que leva Shrek a reagir, ainda que
inicialmente o ogro se curve, à “pressão que o espaço exerce sobre ele” (LINS, p. 100).
No que diz respeito à questão financeira, não podemos ignorar que o ogro,
quer dizer, o homem é um ser social e a concepção dialética em que esse ser está inserido
só é possível se levarmos em consideração que o fator econômico é fundamental
(MARTINS, 1998, p. 50). Nesse sentido, vale lembrar que não é gratuito o comentário da
Fada Madrinha em seu “receituário” sobre poder oferecer a Fiona “um príncipe cheio de
grana” e “um vestido caríssimo”, bem como não é gratuita a inserção dos símbolos do
poder capitalista na construção do espaço de Shrek 2.
“Não há mais análise social que possa fazer economia dos indivíduos, nem
análise dos indivíduos que possa ignorar os espaços por onde eles transitam”, diz-nos
Augé (p. 110), ao comentar as atitudes individuais concebíveis no não-lugar. Assim, como
essas análises não se ignoram, acreditamos que não há espaço para ignorar que Far Far
Away é o melhor lugar para se fomentar o debate sobre a valorização do Ter em detrimento
do Ser na sociedade contemporânea.
120
5 - E eles viverão horríveis (e felizes) até a próxima adaptação...
(Conclusão)
“E eles viveram felizes para sempre!”. Guardadas as devidas adaptações, é com
essa frase que as fiandeiras-Sherazades de ontem e hoje encerravam/ encerram os contos
de fadas; não havendo, muitas vezes, espaço para análise e interpretação dessas histórias
por parte das narradoras. Essa tarefa, parece-nos, sempre coube ao ouvinte/ leitor que
procura desmanchar os fios que compõem o tecido dessas narrativas maravilhosas e
entender-lhes o significado para, mais tarde, na condição de contador, tecê-las com outros
fios.
Analisar a adaptação do texto literário Shrek!, de William Steig, para a
linguagem do audiovisual nos proporcionou instigantes descobertas: se o conto de fada é
falsamente simples, o caminho trilhado para se chegar à interpretação do texto-fonte, bem
como de suas adaptações, Shrek e Shrek 2, de Andrew Adamson, revelou-se igualmente
complexo uma vez que estavam “em jogo” questões socioculturais, ideológicas, bem
como as intervenções do adaptador, que possibilitaram a ampliação do texto literário.
Observamos que, embora independentes, os textos de Steig e Adamson
dialogam e percorrem as mesmas vias. Explicamos: através do ethos pragmático da paródia
proposto por Hutcheon e discutido em nosso texto, Shrek!, Shrek e Shrek 2 utilizam-se de
uma escrita palimpsesta (portanto, paródica) e reverenciam os contos de fadas
tradicionais, confirmando a perenidade dessas narrativas. Essa reverência, contudo, ocorre
às avessas, ou seja, desconstruindo arquétipos como nobreza de caráter, amor, grandeza
interior, dentre outros, que não correspondiam mais a um contexto pós-industrial.
Vale lembrar que, na adaptação Shrek, o que “move” o ogro partir para
resgatar a bela (?) princesa Fiona da torre mais alta do quarto mais alto é mais o desejo de
reaver o seu pântano, que havia sido invadido por “coisas dos contos de fadas”, do que a
nobreza de caráter de salvar a princesa da guarda do dragão feroz.
Por outro lado, Shrek! parece manter aqueles arquétipos, pois o ogro verde,
como o príncipe dos contos de fadas, deseja uma noiva, vai em sua busca, encontra-a,
apaixonam-se e vivem horríveis para sempre. A desconstrução do texto de Steig não se
restringe ao adjetivo “horríveis”; na realidade, ela se estende à caracterização avessa dos
121
personagens: príncipe/ ogro; princesa/ horrorosa; alazão/ burro; bruxa/ dragão (quase)
inofensivos.
Falamos em desconstrução, não no sentido de destruição -- uma vez que seria
negar a história do ogro verde sujo e flatulento, quer seja na literatura quer seja no cinema,
como uma escrita palimpsesta dos contos de fadas tradicionais – mas como
recomposição, renovação. Ora, o que fizeram os textos de Steig e Adamson senão nos
apresentar novas possibilidades que vieram re-significar o clichê, o Príncipe Encantado,
por exemplo?!
A re-significação dos personagens em Shrek!, Shrek e Shrek 2 – esta ainda tem o
mérito de ampliar os significados do texto-fonte com a inserção de Far Far Away, espaço
social que se revela excludente uma vez que apresenta seres preocupados com o Ter – a
nosso ver, é uma sátira ao que Coelho (p. 95) chama de lei do mercado. Embora a discussão
da autora refira-se à “mitologia cibernética” (p. 94), ela se aplica, também, ao nosso
debate. Segundo Coelho, essa lei é “perversa, pois transforma tudo e todos em produtos”.
Nesse “sistema”, o indivíduo é levado a “consumir” ou “ser consumido” (p. 95).
Trazendo essas considerações para a reflexão de nosso objeto de pesquisa,
observamos que o “receituário” proposto pela Fada Madrinha é um exemplo contundente
de que a princesa Fiona deverá consumir para ser consumida. Em outras palavras, se usar “um
vestido caríssimo”, possuir “uma carruagem esporte, cheia de estilo” e fizer “uma
plasticazinha”, “escreverão seu nome no banheiro: Feliz para sempre?, Ligue para Fiona!”. O
“receituário” convida-nos a fazer parte do espetáculo, na maioria das vezes como
espectadores/ consumidores do que está exposto em revistas semanais como “Quem”,
“Caras”, “Contigo!”; sites de fofocas como “O Fuxico” e “Babado”, bem como de
programas televisivos vespertinos como “De olho nas estrelas”, da Rede Bandeirantes, e
“TV Fama”, da Rede TV!, dentre outros.
Mas há, também, casos em que o indivíduo “ascende” à condição de ser
consumido, ratificando o que diz Adorno e Horkheimer acerca de “A felicidade não deve
chegar para todos, mas para quem tira a sorte, ou melhor, para quem é designado por uma
potência superior – na maioria das vezes a própria indústria do prazer [...]” (p. 135). A
título de exemplo, citamos o quadro Dia de Princesa do extinto “Programa Domingo da
Gente” (2005), da Rede Record.
122
Nele, a “princesa”, geralmente uma jovem da periferia, tinha a sua auto-estima
elevada através de certas doses de “Felizes para sempre” como tratamento de beleza, um
novo guarda-roupa, doação de dinheiro por parte dos anunciantes, cursos gratuitos de
capacitação profissional, um jantar com seu ídolo, tudo para ficar “Bem ao estilo do
Príncipe!”. Mas, como já haviam observado Adorno e Horkheimer (p. 136), só uma
“princesa” tira a sorte grande, restando às demais se regozijarem com a felicidade daquela;
o que de fato acontece, basta olharmos para o número significativo de ligações que um
programa como o Big Brother, da Rede Globo, costuma receber, em sua etapa final,
quando os espectadores elegem um “igual” (vendedor de coco, babá, diarista, etc) como
ganhador do prêmio máximo.
Agora, rico, belo e famoso, esse “igual” continuará a consumir e está “pronto”,
também, para ser consumido, ser notado. É a sua vez de entrar para o “seleto” (sic) mundo
dos famosos: posar para revistas e ter sua vida exposta em sites e programas de televisão.
São os quinze minutos de fama, depois mais um para os comerciais; são os quinze
minutos de fama, depois o descanso em paz (?), de que falam os Titãs (2001). Então, onde
poderia se dar esse binômio senão em um lugar de configurações sociais -- ou seria um
não-lugar? – um espaço social em que o ser humano é levado à condição de objeto, coisa;
importando, apenas, o que ele possui. Desse espaço social estão/ são excluídos aqueles
que ignoram a lei do mercado. O espaço social onde ocorre esse “jogo” é construído/
formatado com os símbolos do poder capitalista, ratificando o que diz o geógrafo Milton
Santos acerca do envolvimento dos construtores do espaço com a ideologia dominante.
Configurado, construído, “empossado” com os símbolos do poder capitalista,
o espaço social, alegoria da ideologia dominante, torna-se, ele próprio, o opressor do
estrangeiro, ou seja, daquele que não fizer parte do espetáculo. Nesse sentido, Far Far Away,
espaço social da narrativa fílmica Shrek 2, foi idealizado para que se configurasse como
uma alegoria da sociedade contemporânea. Mais do que “merchandising” de lojas de grife,
e um cenário criativo/ divertido, o cenário de Tão Tão Distante aponta para uma
importante questão: a cultura está homogeneizada, e não há, portanto, lugar para o
diferente.
Por ser diferente, Shrek não pertence àquele meio. Far Far Away é um nãolugar; o pântano é o seu lugar, no sentido proposto por Marc Augé
e Relph,
respectivamente. Nesse sentido, a inserção de Far Far Away, na seqüência Shrek 2,
123
indubitavelmente, amplia o conto Shrek! uma vez o espaço social sai da condição de mero
lugar onde ocorre a narrativa para a condição de antagonista, opressor do ogro-herói.
Nossa assertiva se respalda em duas cenas que representam o encontro/
desencontro do ogro com o lugar e o não-lugar. A primeira corresponde à chegada de
Shrek e Fiona ao pântano, após a lua-de-mel. Nela, constatamos a satisfação do ogro por
retornar ao seu lugar; o mesmo não acontece quando o casal de ogros adentra em Far Far
Away. Intimidado, Shrek olha aquele cenário de luxo e ostentação, certo de que,
definitivamente, eles não estavam mais no pântano, estavam em um não-lugar.
Mas, como nos programas de TV, Shrek tem direito à sua versão masculina
do Dia de Princesa. A (usurpada) poção do “Felizes para sempre” eleva a auto-estima do
ogro, pois lhe proporciona um “tratamento” de beleza: nariz bonito, cabelo ondulado,
bunda durinha, enfim, Shrek estava lindo e Far Far Away passa a vê-lo como um dos seus.
Apesar de o preço para entrar no “country club” ser a alienação, e dela foram vítimas o
Shrek e o rei, é em Far Far Away que ambos recobram a sua originalidade: ogro e sapo,
respectivamente.
Esta cena final ocorre no meio do baile, na presença dos “famosos”, e é
“costurada” por falas e gestos que confirmam Far Far Away, agora, como o melhor lugar
para se discutir a valorização do Ser:
“Desculpe, Lillian. Só queria ser o homem que você merece”, diz o sapo-rei.
“E agora você é esse homem mais do que nunca. Com rugas e verrugas”,
responde, feliz, a rainha.
Mas, é meia-noite, hora da transformação. Enquanto nos contos de fadas
tradicionais, tudo é feito à revelia do personagem, em Shrek 2 -- embora deseje o que toda
princesa quer: “Viver feliz para sempre com o ogro com quem me casei” --, a princesa
Fiona escolhe ser feia porque Shrek é feio e sua origem é ogra.
De volta à forma anômala, o casal de ogros é aplaudido pelos famosos que
vieram homenageá-los. Isso posto, os textos de Steig e de Adamson permitem a quebra
de padrões estabelecidos, levam-nos, através do riso, a repensar a sociedade, seus valores,
as instituições e as regras dominantes.
The End ?
124
Ainda não!
Percebemos que foi na condição de curiosos que começamos a tecer esse texto
que, como a tapeçaria de Penélope, encontra-se, ainda, à espera de novos fios
(argumentos) que se juntem a estes a fim de recobrir as lacunas desse tecido, corrigir-lhe
as falhas, mas sem nunca preenchê-lo, pois acreditamos que assim como aquele que “[...]
se indaga é incompleto” – já dizia Rodrigo S. M., narrador de A hora da estrela
(LISPECTOR, 1998, p. 15) --, essa narrativa (Dissertação), como um conto de fada, segue
também incompleta, ansiosa de outros (novos) narradores-leitores-pesquisadoresadaptadores!
125
Créditos finais...
Bibliografia:
ABRAMOWICZ, Anete. Contos de Perrault, imagens de mulheres. Cad. CEDES, Jul.
1998, vol.19, nº.45, p.80-98. ISSN 0101-3262.
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como
Mistificação das Massas. In:__. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985. p. 113-156.
ALMEIDA, Milton José de. Alice no País das Maravilhas e Peter Pan: Imagens amadas de
um desenho social. In: __. Imagens e sons: A nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994,
cap. 8, p. 84-96.
ANDRADE FILHO, Marcos de. Não-lugar. In: __. Não-lugar: poesia. Recife: Ed. do
Autor, 2005, p. 93-94.
ATAÍDE, Vicente de Paula. A narrativa de ficção. 2. ed. Ver. São Paulo: McGraw-Hill do
Brasil, 1973.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São
Paulo: Papirus. 1994.
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. São Paulo: Papirus,
2003.
AZERÊDO, Genilda. Jane Austen, adaptação e ironia: uma introdução. João Pessoa: Ed.
Manufatura, 2003.
BANDEIRA, Pedro. O fantástico mistério de feiurinha: teatro. São Paulo: FTD, 2001 (Coleção
literatura em minha casa; v. 5).
BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Definindo o monstruoso: forma e função histórica. In: __.
Monstros, índios e canibais: ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Editora
Insular, 2000. p. 11-22.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: __ et
alli. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores)
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
BETTON, Gérard. Estética do cinema. 1. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1987. Coleção
Opus 86.
BOULOUMIÉ, Arlette. O ogro na literatura. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos
Literários. 4. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 754-764.
BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: BOURDIEU, Pierre (Coord.) A Miséria do
mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. 159-166.
BOURJEA, Michelle. Um livro para crianças que fascina os adultos. In: KHÉDE, Sônia
Salomão (Org.). Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. 2. ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1986. p.133-145.
126
BOWEN, Elizabeth. Collected Impression. London [s.n.], 1950. In: STEVICK, Philip.
The theory of the novel. New York: The Free Press, 1967. p. 314.
BRAIT, Beth. A personagem. 7. ed. São Paulo: Editora Ática, 2004.
BRANDÃO, Junito de Souza. Introdução ao Mito dos Heróis. In: __. Mitologia Grega. 2.
ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 15-71.
BRICOUT, Bernadette. Conto e mito. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários.
4. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.191-199.
BRITO, João Batista de. Literatura, Cinema, Adaptação. Graphos: Revista da PósGraduação em Letras. João Pessoa, vol. I, n. 3, junho de 1996. p. 9-28.
BUTOR, Michel, Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974.
CALDIN, Clarice Fortkamp. A oralidade e a escritura na literatura infantil: referencial
teórico para a Hora do conto. Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação. Encontros
Bibli, Florianópolis, v. 13, 2002. nº 13, maio/2002. ISSN 1518-2924. Disponível em
<http://www.encontros-bibli.ufsc.br> Acesso 03 jul. 2006.
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e Literatura. In: FESTER, Antonio Carlos
Ribeiro (org.) Direitos humanos e . . . São Paulo: Editora brasiliense, 1989. p. 107-126.
________. Degradação do Espaço. In: __. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades;
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 47-79.
________. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de
ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 51-80.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 3. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 1994.
CHATMAN, Seymour. The Literary Narrator. In: Coming to Terms: The Rhetoric of
Narrative in Fiction and Film. Ithaca and London, Cornnell University Press, 1993. p.
109-123.
CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia. 39. ed. São Paulo: Editora Brasiliense. 1995.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: Mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 15. ed., Rio de Janeiro: José Olympio,
2000.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos. São Paulo: DCL,
2003.
COLASANTI, Marina. E as fadas foram parar no quarto das crianças. In: __. Fragatas para
Terras Distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 221-241.
________. Um espelho para dentro. In: __. Fragatas para Terras Distantes. Rio de Janeiro:
Record, 2004, p. 101-111.
COOPER, J. C. Diccionario de Símbolos. México: Editora Gustavo Gili, 2000.
CORSEUIL, Anelise R. Literatura e Cinema. In: Bonnici, Thomas & Zolin, Lúcia Osana.
(orgs.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá:
Eduem, 2003.
127
CORSINO, Patrícia. Infância, história, sociedade e cultura. In: __. Infância, linguagem e
letramento: Educação Infantil na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. PUC-RIO. Certificação
Digital
n°
9815964/CA.
2003,
p.
8-64.
Disponível
em
<http://
www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br > Acesso em 07 jul. 2006.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2.ed.,
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
CUNHA, Renato. As formigas e o fel: literatura e cinema em Um Copo de Cólera. São
Paulo: Annablume, 2006.
DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos, e outros episódios da história cultural
francesa. 5. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DOANE, Mary Ann. A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço. In: XAVIER,
Ismail (org.). A Experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes,
1983. p. 455-475.
DUARTE, Luiz Fagundes (org.). Eça de Queirós: Contos. 2. ed. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 2002.
FERNANDES, Fátima. Os contos de fadas na poesia de Fernanda de Castro.
CONGRESSO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, VI, 1999, Rio de Janeiro:
Disponível em < http://www.geocities.com/ail_br/oscontosdefadasnapoesia.htm >
Acesso em 11 nov. 2005.
FERNANDES, Millôr. Hierarquia. In:__. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1973.
p. 123.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: O minidicionário da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001
FERREIRA, J. C. P. Cavalaria em cordel – O Passo das Águas Mortas. São Paulo: Hucitec,
1979.
FIKER, Raul. Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento. Araraquara: FCL/
Laboratório Editorial/UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da familia brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 49. ed. rev. São Paulo: Global, 2004.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 2. ed. São Paulo: Ática, 2003.
GRIMM, Jacob. Chapeuzinho vermelho. (Coleção Era uma vez...) 4. ed. Porto Alegre:
Kuarup, 1987.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 4. ed., Série: Interpretações da história do
homem, vol. 2. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século
XX. Lisboa: Edições 70, 1985.
128
JABOR, Arnaldo. A felicidade é a empada do “Bigode”. In: __. Amor é prosa, sexo é poesia.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 189-192.
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao
cinema novo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
LEITE, Adriana Filgueira. O Lugar: Duas Acepções Geográficas. Anuário do Instituto de
Geociências. UFRJ, vol. 21, 1998, p. 9-20.
LIBOREL, Hughes. As fiandeiras. In: BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de Mitos Literários.
4. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 370-384.
LINS, Osman. Espaço romanesco. In: __. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo:
Ática, 1976. p. 62-76
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LODGE, David. Names. In: The art of fiction. England: Penguin Books, 1992. p. 35-40.
LOPES, Denise. Terra Estrangeira: “as cores do desterro” da era Collor. Contracampo:
revista do mestrado em comunicação, imagem e informação. Instituto de arte e
comunicação social, UFF, v. 4, p. 59-73, jan. 2000.
LORENZ, Lee, (ed.). The World of William Steig. New York: Artisan 1998. In:
Encyclopedia Americana . International Edition. U.S.A: Grolier, v. 25, 2000. ISBN 0-71720133-3.
LUCENA, Ivone Tavares de; OLIVEIRA, Maria Angélica de. Nos liames da interdição
do dizer da fábula: as argutas ferramentas de denúncias e críticas. Revista Conceitos, João
Pessoa, nº 10, jul/2003 a jun/2004, p. 112-118.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da
grande épica. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000.
MAIA, Rosemere . Shopping center- entre a identidade e a inautenticidade na construção
do lugar. In: VI CONGRESSO BRASILEIRO DE GEÓGRAFOS, 2004, GOIÂNIA.
ANAIS DO VI CONGRESSO BRASILEIRO DE GEÓGRAFOS, 2004. Disponível
em: http://www.igeo.uerj.br/VICBG-2004/Eixo1/E1_116.htm. Acesso em 19 jan. 2007.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.
MARTINS, Alexandre Lyra. Fundamentos de economia política marxista. João Pessoa: Imprell,
1998.
MAYER, Waldyr Verinaud. A Geografia Humana e o Espaço Social. In:
MARCELLINO, Nelson Carvalho (org.). Introdução às ciências sociais. 5 ed. São Paulo:
Papirus, 1994. p. 89-96.
MENDONÇA, Jeová Rocha de. A reading of Oscar Wilde’s “The Birthday of The
Infanta”. In: Revista Letra Viva, nº 1, João Pessoa: UFPB, 1999. p. 180-190.
MICHAELIS: Dicionário Escolar Inglês. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2001.
NINA, Cláudia Mendes. O diálogo paródico entre os filmes Casablanca e Sonhos de um sedutor.
Vertentes, São João del-Rei, n. 4, p. 16-21, jul./dez., 1994.
129
NÓBREGA, Francisca. Na freqüência das fadas. In: KHÉDE, Sônia Salomão (Org.).
Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
p.111-124.
OLIVEIRA, Maria Angélica de. Um olhar sobre a fábula: confabulando com o lúdico, o
poder e os sentidos. Dissertação de Mestrado. UFPB: João Pessoa, 2001, 202 páginas.
PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. São Paulo: Papirus, 1988.
PINHO, Kátia Rose Oliveira de. Mistérios dos nomes. Revista Tambor, Recife, v. 01, n. 01,
p. 63-69, 2003, da Faculdade de Formação de Professores de Belo Jardim, Pernambuco.
PITTA, Patrícia. Uma vez Cinderela... Sempre Cinderela?, Uma análise do mito como
paradigma nos contos de fadas através dos tempos. Letras de Hoje. Porto Alegre: Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. V. 37, nº 2, jun. 2002, p. 173-182.
PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1984.
RAMOS, Flávia Brocchetto. A representação da cidade em Paulicéia Desvairada. SIGNO,
Santa Cruz do Sul, v. 23, n. 35, p. 29-41, jul./dez. 1998.
REIS, Carlos A. dos. Técnicas de Análise Textual: Introdução à leitura crítica do texto
literário. Coimbra: Almedina, 1976. p. 34-44.
REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário da teoria narrativa. São Paulo: Ática,
1988.
ROCHA, Luiz Fernando Matos. O condão cognitivo: passe de mágica como metonímia.
RECORTE – Revista de Linguagem, Cultura e Discurso. Ano 2, nº 2, jan./jun de 2005.
Disponível em <http: //www.unincor.br/recorte/artigos/2artigos.htm>. Acesso em 24
jun. 2006.
RODELLA, Gabriela et al. Português, a sua língua: ensino médio, volume único. São Paulo:
Nova Geração, 2005.
ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio et al. A
personagem de ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 9-49.
SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.
________. Pensando o espaço do homem. 5. ed., São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2004.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo: Ática, 1989, p. 43-62.
SCIESZKA, Jon. A verdadeira história dos três porquinhos! / por A. Lobo, tal com foi contada
a Jon Scieszka. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1993.
SILVA, Ana Márcia. Corpo e diversidade cultural. Revista Brasileira de Ciências do Esporte,
Campinas, v. 23, n. 1, p. 87-98, set. 2001.
SILVA, Joseli Maria. Cultura e territorialidades urbanas – uma abordagem da pequena
cidade. Revista de História Regional. vol. 5, nº 2, Inverno 2000. p. 9-37.
130
SILVA, Severino Milanês da. História do Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai
Não Torna. Folheto de cordel, [S.l : s.n], [19--]. 16 p. Acervo: Biblioteca Central Blanche
Knopf da Fundação Joaquim Nabuco.
SOUTO, Carla Cristina Fernandes. “O castelo dos destinos cruzados” e a pluralidade da
narrativa pós-moderna de Ítalo Calvino. Gragoatá. Niterói, nº 5, p. 193-208, 2º sem. 1998.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. São Paulo: Papirus, 2003.
STEIG, William. Shrek! Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2001.
________. Sylvester and the magic pebble. New York: Aladim Paperbacks, 1969.
________. The toy brother. [USA] Michael di Cápua Books Harper Trophy, 1996.
TONIN, J. Pós-modernidade e publicidade: a desinvenção da infância. INTERCOM,
2005, Rio de Janeiro. Anais Intercom 2005. São Paulo : Intercom, 2005, p. 1-15.
Disponível em http://reposcom. portcom.intercom.org.br/ bitstream/1904/17483/1/
R1776-1.pdf#search=%22juliana%20tonin%22. Acesso em 14 set. 2006.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
TURNER, Graeme. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997
VANOYE, Francis. Ensaio sobre a análise fílmica. São Paulo: Papirus, 1994.
VOLOBUEF, Karin. Um estudo do conto de fadas. Revista de Letras. São Paulo:
Universidade Estadual Paulista/ UNESP. V. 33, 1993. p. 99-114.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema.
In: PELLEGRINI, Tânia. et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São
Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-89.
WARNER, Marina. Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
WHELEHAN, Imelda. Adaptation: The contemporary dilemmas. In: CARTMELL,
Deborah and WHELEHAN, Imelda (eds). Adaptations: From Text to screen, Screen to
Text. London and New York, Routledge, 1999. p. 3-19
WILDE, Oscar. O Aniversário da Infanta. In: __. Histórias de fadas. Tradução de Bárbara
Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. p. 83-107.
Discografia:
A melhor banda de todos os tempos da última semana. TITÃS A melhor banda de todos os
tempos da última semana. Faixa 2, n. 1104007-2 Abril Music. 2001. 1 CD de áudio.
Filmografia:
UMA LINDA MULHER (Pretty Woman) Direção: Garry Marshall. Intérpretes: Richard
Gere; Julia Roberts. Roteiro: J. F. Lawton. TOUCHSTONE PICTURES - EUA. 1990. 1
DVD (119 min.), letterbox, color., legendado.
131
SHREK. Direção: Andrew Adamson e Vicky Jenson. Produção: PDI/DreamWorks,
2001. 1 DVD (93 min.), widescreen, color., desenho animado baseado no conto Shrek!, de
William Steig.
SHREK 2. Direção: Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon. Produção:
PDI/DreamWorks, 2004. 1 DVD (92 min.), widescreen, color., desenho animado
baseado no conto Shrek!, de William Steig.
Sites consultados:
http://www.animatoons.com.br/movies/snow_white/curiosidades.php
http://www.terra.com.br/istoedinheiro/351/negocios/351_apetite_shrek2.htm
http://www.secrel.com.br/jpoesia/katiarose3.html
http://www.mingaudigital.com.br/article.php3?id_article=526.
http://www.geocities.com/ail_br/oscontosdefadasnapoesia.htm
http://www.metaforas.com.br/infantis/oloboeocordeiro.htm
http://www. revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,ESP889-1654,00.html
http://www.williamsteig.com
http:// www. liesa. globo.com/2007/ por/18-outroscarnavais/ carnaval05/enredos/
imperatriz/ imperatrizmeio.htm
http://www.carosamigos.terra.com.br/do_site/reportagem/reportagem17.asp
Download

“ShereK do Conto ao Filme: um “reino” não tão distante”