Amor e sublimação na formação do eu
Introdução
O conceito de sublimação na obra freudiana, embora possua várias
possibilidades de entrada, não alcançou uma delimitação epistemológica suficiente a
respeito de sua operatividade e entendimento. De certo modo, podemos dizer que o
mesmo ocorre na teoria freudiana com parte de seus conceitos principais. Assim como a
história do movimento psicanalítico tratou a questão dos conceitos de afeto,
representação, pulsão e fantasia, não se pode assumir que a compreensão destes tenha
alcançado um estatuto epistemológico unívoco, como um esforço de definição de
conceito fechado, tal como ocorreu com os conceitos sistematizados por Freud na
metapsicologia (o inconsciente, o recalque e a melancolia, para citar apenas três
exemplos). Mesmo que tenhamos a possibilidade de ver retomados e reestruturados os
conceitos metapsicológicos ao longo da teoria freudiana e, mais ainda, nas pósfreudianas, estes possuem referências claras a respeito da tentativa de Freud em
estabelecer um conhecimento comum ao tema, o que não necessariamente ocorre com o
conceito de sublimação.
Na introdução aos Artigos sobre Metapsicologia, Strachey afirma o dado
histórico segundo o qual Freud teria escrito mais sete artigos, sendo que cinco deles
têm-se conhecimento do assunto e, dentre os dois remanescentes, supõe-se que um
trataria do conceito de sublimação. Segundo Strachey: “Podemos até mesmo adivinhar
os assuntos que talvez tenham sido abordados pelos dois artigos não especificados – a
saber, Sublimação e Projeção (ou Paranóia) –, pois há alusões mais ou menos claras a
eles.” (STRACHEY In: FREUD, 1915/1996)
Nesse sentido, devemos reavaliar a situação epistemológica do conceito de
sublimação: posto como uma das saídas possíveis para um processo de análise (ao lado
da aceitação e do juízo de condenação)1, sendo utilizado como ferramenta de leitura de
fenômenos artísticos, culturais e mesmo nos processos de análise, ainda assim, o
fechamento de sua caixa-preta não passa de uma alusão a um artigo perdido no tempo e
no espaço. Dito de outra forma, não se coloca em questão a operatividade do conceito
1
Ver FREUD, 1909/1996.
nas práticas e teorias psicanalíticas, entretanto, sua referência enquanto processo
psicológico ainda não alcançou um delineamento preciso. Poderíamos, nesse sentido,
dizer que o conceito de sublimação entra para a história do pensamento freudiano como
uma noção norteadora nas práticas analíticas, mas sem uma maior compreensão de seus
mecanismos psíquicos? Sendo assim, torna-se fundamental a retomada do estudo do
conceito.
Dentre as referências esparsas de Freud sobre a sublimação, destacamos a que
encontra-se no texto “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução”:
A sublimação é um processo que diz respeito à libido objetal e
consiste no fato de a pulsão2 se dirigir no sentido de uma finalidade
diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse
processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade. (FREUD,
1914/1996, p. 101).
Assim, Freud diferencia a noção de sublimação da de idealização, sendo que na
primeira é dada especial importância à questão do deslocamento do objeto da pulsão,
enquanto que, na segunda, o tema implica num modo de construção de um objeto
amoroso. Tal lógica de entrelaçamento econômico entre idealização, amor e sublimação
pode ser mais bem abordado na segunda das “Contribuições à psicologia do amor”, na
qual, o processo de depreciação do objeto aponta para o rebaixamento da idealização
como meio necessário para a realização das moções vinculadas ao objeto sexual. Visto
pelo ângulo contrário, a construção de um objeto idealizado igualmente desvia as
condições para o investimento da libido. Nesse sentido, se descrito em seus aspectos
econômicos, a idealização igualmente requer o mesmo tipo de procedimento de
deslocamento da finalidade pulsional. A saída freudiana passa a ser a requisição de um
referente cultural: a sublimação visa altos objetos, logo, necessita de um olhar avaliativo
sobre o seu produto. Contudo, somente haveria sublimação nas mais altas produções
artísticas, o que acentuaria o seu caráter de aplicabilidade apenas para poucos?3 Ou
ainda, deveríamos considerar a realização do fenômeno sublimatório somente quando
2
Optamos por substituir, mesmo nas citações diretas, o termo instinto pelo conceito – já bem aceito pela
literatura psicanalítica brasileira – de pulsão sempre que se tratar de trieb no original em função do
primeiro imprimir uma biologização excessiva ao conceito.
3
Sobre a questão, ver Freud, 1930/1996.
observado de um ponto exterior ao sujeito? Propomos, a seguir, uma possibilidade de
rediscutir a questão.
Sujeito e sublimação: diálogo com a teoria de Badiou
Defendemos a hipótese segundo a qual, em sua descrição metapsicológica, a
sublimação poderia encontrar sua principal característica no resultado que o desvio do
investimento quanto ao objeto pode trazer à formação do sujeito a partir das
modificações egóicas realizadas. Reside aí o ponto principal de nosso trabalho, onde
supomos a possibilidade de diálogo com a concepção filosófica de Badiou (1994) sobre
uma nova teoria do sujeito.
Segundo Badiou, a condição de sujeito não é um estado no qual o indivíduo
habite constantemente enquanto ser, mas, ao contrário, é antes um momento efêmero
em que ele é suporte de uma verdade. Essa verdade é a revivência de um estado
experimentado anteriormente, pela ocorrência de um evento, que altera radicalmente o
indivíduo de modo que ele não mais será aquela mesma pessoa de antes, mas estará
buscando sempre o sentimento daquela experiência, enquanto fidelidade àquele evento
– que pode ser do campo da ciência, das artes, da política e do amor. Qualquer tentativa
de um retorno àquele fenômeno de corte que o evento causou será chamada de pontosujeito. Assim sendo, é através de um discurso político, na composição de uma pintura
ou música, numa descoberta científica ou na própria realização do ato amoroso – para
citar apenas alguns poucos exemplos – que o indivíduo poderia se re-encontrar
enquanto sujeito.
Deste modo, podemos nos utilizar de uma articulação desta concepção de sujeito
unida à sublimação para começarmos a pensar este processo enquanto um fenômeno de
estruturação do Ego, de possibilidade de retorno ao seu momento de construção
narcísica a partir da dialética da diferenciação/indiferenciação. Tomando as próprias
palavras de Freud em seu texto de 1923, O Ego e o Id:
A transformação da libido do objeto em libido narcísica, que assim se
efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma
dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade,
surge a questão que merece consideração cuidadosa, de saber se este
não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se
efetua através da mediação do ego, e começa por transformar a libido
objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro
objetivo. Posteriormente teremos de considerar se outras vicissitudes
pulsionais não podem resultar também dessa transformação; se, por
exemplo, ela não pode ocasionar uma desfusão das diversas pulsões
que se acham fundidas. (FREUD, 1923/1996, p. 43).
O retorno da libido objetal à libido narcísica é o caminho tomado por grande
parte das pulsões barradas pelo que é cultural e socialmente aceito. A forma ou objeto
de satisfação pulsional, uma vez negada a se realizar, lança seus investimentos
novamente de encontro ao Ego na tentativa de encontrar uma nova forma ou novo
objeto com o qual possa, enfim, descarregar seu investimento afetivo. Uma vez de volta
ao Ego, a pulsão tem possibilidades de fazer novas identificações com outros objetos
presentes no aparelho psíquico, evitando o recalque, sobretudo, na possibilidade de
retomada de estados iniciais de dispersão pulsional e indiferenciação.
Referências bibliográficas
BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
FREUD, S. Cinco lições de psicanálise. In: Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1909/1996, vol. XI.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1914/1996, vol. XV.
FREUD, S. O Ego e o Id. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1923/1996, vol. XIX.
FREUD, S. Mal-estar na civilização. In: Edição Standard das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1930/1996, vol. XXI.
STRACHEY, J. In: FREUD, S. Artigos sobre metapsicologia. In: Edição Standard das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1915/1996,
vol. XV.
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