PROCESSO DE TRABALHO E AUTONOMIZAÇÃO DO CAPITALDINHEIRO SOB A FORMA CAPITAL PORTADOR DE JUROS
Márcio Lupatini1
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas do Século XX e início do Século XXI, observam-se dois
traços principais: a) aumento das taxas de desemprego, flexibilização das leis
trabalhistas, precarização do trabalho, crescimento do “trabalho informal”, acentuação
das desigualdades inter e intra-regiões e entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos,
entre outros; b) crescimento exponencial da “espera financeira”, percebida, sob o prisma
da aparência, pelas cifras (em trilhões de dólares) que se movimentam diariamente nos
“mercados financeiros”. Dos mais de 1 trilhão de dólares que se “realizam” diariamente
no mercado de câmbio, menos de 10% têm relação direta com o “fluxo real” de
mercadorias - comércio de mercadorias.
Na essência, frente à crise dos anos 1960/70, expressa na queda das taxas de
lucro, para o capital recuperar sua força de acumulação, os processos produtivos nas
indústrias tornam-se cada vez mais automatizados (introdução da base técnica
microeletrônica), com crescente prescindibilidade do trabalho vivo imediato, e
fortalece-se de forma paradoxal a autonomização do capital-dinheiro sob a forma de
capital portador de juros. A tendência à prescindibilidade do trabalho vivo imediato nos
processos produtivos e a autonomização do capital-dinheiro, longe de inaugurarem per
se uma nova e diferenciada fase do modo de produção capitalista, pertencem as suas
próprias entranhas, mas atualmente apresentam configurações quantitativas e
qualitativas diferenciadas.
2. OBJETIVOS
Este texto apresenta-se apenas com objetivo de indicar a configuração atual do
processo de trabalho e da autonomização do capital-dinheiro sob a forma capital
1
Professor Assistente da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
[email protected] .
1
portador de juros e demonstrar a necessidade de uma análise do “mundo do trabalho” e
da “esfera financeira”, sem transgredir as suas particularidades, como uma totalidade,
como duas dimensões que coexistem de forma integrada, pois se entende ser este um
imperativo para a compreensão do capitalismo contemporâneo. Estudo este que
demanda ainda um grande esforço para delinear as primeiras conclusões.
3. METODOLOGIA
Para nossos objetivos, fizemos um estudo, ainda em caráter inicial, sobre: a) a
autonomização do capital-dinheiro sob a forma capital produtor de juros, como
analisado por Marx na Seção V, Livro III, d’O Capital ; b) capital financeiro, nas
abordagens clássicas realizadas por Hilferding, Hobson e Lênin; e c) período recente,
“mundialização financeira”.
Além disso, retomamos textos, já estudados em outro momento, acerca do
desenvolvimento histórico dos processos de trabalho, o qual se desenvolve nas formas
de trabalho social, a saber: cooperação simples, manufatura, grande indústria
(maquinaria), analisadas por Marx, além de seu desenvolvimento no século XX sob as
formas: do taylorismo, do fordismo, do ohnoísmo e da automação.
4. RESULTADOS
4.1. Autonomização do capital-dinheiro sob a forma de capital a juros
No Livro I d’O Capital, Marx já demarcava que o “movimento do capital é
insaciável”, como nos revela esta passagem:
A circulação do dinheiro como capital é (...) uma finalidade em si mesma, pois a
valorização do valor só existe dentro deste movimento sempre renovado. Por
isso o movimento do capital é insaciável. Como portador consciente desse
movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor,
seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de retorno do dinheiro. O conteúdo
objetivo daquela circulação – valorização do valor – é sua meta subjetiva, e só
enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo indutor
de suas operações, ele funciona como capitalista ou capital personificado,
dotado de vontade e consciência. (MARX, 1983, p. 129)
Desta forma, a valorização do valor só é possível no movimento sempre
renovado de valorização do capital (D-M-D’) e o objetivo final é a apropriação de
2
riqueza abstrata. Ou seja, o capital “precisa existir permanentemente de forma ‘livre’ e
líquida (...)” (TAVARES e BELLUZZO, 1980, p. 114).
O processo de reprodução do capital em seu conjunto é simultaneamente
também um movimento de “transfiguração dos capitais individuais em suas formas
necessárias” (TAVARES e BELLUZZO, 1980), a saber: capital-dinheiro, capitalmercadoria e capital produtivo. Marx sintetiza o processo global de circulação do
capital neste trecho:
(...) o processo global é, de fato, a unidade dos três ciclos, que são as diferentes
formas em que se expressa a continuidade do processo. O ciclo global
apresenta-se para cada forma funcional do capital como seu ciclo específico e
cada um desses ciclos condiciona na verdade a continuidade do processo global;
o circuito de uma forma funcional determina o outro. É uma condição
necessária para o processo de produção global, especialmente para o capital
social, que ele seja ao mesmo tempo processo de reprodução e portanto ciclo de
cada um de seus momentos. Diferentes frações do capital percorrem
sucessivamente os diferentes estágios e formas funcionais. Cada forma
funcional, embora sempre outra parte do capital se apresente nela, percorre por
causa disso, com as outras, seu próprio ciclo. Uma parte do capital, mas uma
parte sempre em mutação, sempre reproduzida, existe como capital-mercadoria
que se transforma em dinheiro; outra, como capital monetário que se transforma
em capital produtivo; uma terceira, como capital produtivo que se transforma
em capital mercadoria. A presença permanente de todas as três formas é
mediada pelo ciclo do capital total exatamente por essas três fases. (MARX,
1983b, p.77-8)
Para aumento do valor-capital e para o seu sempre retorno a forma capitaldinheiro, apropriação de riqueza abstrata, o capital tem que, necessariamente, percorrer
as três fases, capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital produtivo, assim como “deve
existir permanentemente sob cada uma destas três formas” (TAVARES e BELLUZZO,
1980), como nos revelou, acima, a citação de Marx.
Neste sentido, o capital só pode ser compreendido em seu movimento. Daí a
dificuldade de compreensão nas análises que permanecem na produção imediata do
capital, ou nas análises que se concentram apenas em uma das formas, em uma das fases
do capital. Marx é claro: “[o capital só] pode (...) ser entendido como movimento e não
como coisa em repouso” (1983b, p. 78). Mas logo em seguida, não hesita e adverte:
“Aqueles que consideram a autonomização do valor como mera abstração esquecem
que o movimento do capital industrial é essa abstração in actu. O valor percorre aqui
diferentes formas, diferentes movimentos, nos quais se mantém e, ao mesmo tempo, se
valoriza, aumenta” (MARX, 1983b, p. 78).
3
Como se sabe, o valor aumenta quando o processo de trabalho se converte em
instrumento do processo de valorização do capital, a partir do momento que a produção
capitalista se inicia. De acordo com Marx, (1983, p.257) a produção capitalista começa,
de fato, apenas quando:
(...) um mesmo capital individual ocupa simultaneamente um número maior de
trabalhadores, onde o processo de trabalho, portanto, amplia sua extensão e fornece
produtos numa escala quantitativa maior que antes. A atividade de um número
maior de trabalhadores, ao mesmo tempo, no mesmo lugar (ou, se quiser, no
mesmo campo de trabalho), para produzir a mesma espécie de mercadoria sob o
comando do mesmo capitalista, constitui histórica e conceitualmente o ponto de
partida da produção capitalista.
A partir deste momento o processo de trabalho se converte em instrumento do
processo de valorização do capital. Conforme Marx (1985, p. 87) “(...) o processo de
trabalho converte-se no instrumento de processo de valorização, do processo da
autovalorização do capital: da criação de mais-valia2. O processo de trabalho subsumese no capital (...) [como] um processo de exploração do trabalho alheio”. O
sobretrabalho humano apropriado pelo capital na forma de mais-valia é o elemento
único e imprescindível para a reprodução e valorização do capital.
Ora, a compreensão do incremento do valor-capital e de seu retorno a sua forma
capital-dinheiro, apropriação de riqueza abstrata, está alicerçada na extração de maisvalia, a qual se dá necessariamente no “processo de produção real”. A autonomização
do capital-dinheiro deve ser compreendida a partir desta perspectiva.
Com intuito de passarmos a análise para o capital portador de juros e a fase
monopolista do sistema capitalista, citamos:
(...) na lei geral da acumulação capitalista estão estruturalmente implícitas as
necessidades de concentração e centralização dos capitais, principalmente
através da ampliação e externalização crescentes do capital a juros, com
predomínio cada vez maior do sistema de crédito sobre as órbitas mercantil e
produtiva. O capital a juros nasce, portanto, da necessidade de perpétua
expansão e valorização do capital para além dos limites de seu processo mais
geral e elementar de circulação e reprodução. Para revolucionar periodicamente
2
Marx define mais-valia da seguinte forma: “A função verdadeira, função específica do capital enquanto
capital é pois a produção de valor excedentário e esta, (...) não é mais do que produção de sobretrabalho,
apropriação – no decurso do processo de produção real – de trabalho não pago, que se apresenta à vista e
se objetiva como mais-valia” (MARX, 1985, p. 42). É importante mencionar que a possibilidade da
produção de valor excedentário, de apropriação de trabalho não pago pelo capital, se dá devido ao fato do
capitalista comprar a força de trabalho pelo seu valor de troca (salário – que equivale aos meios de
subsistência necessários para produzir e reproduzir a força de trabalho) e utilizar o seu valor de uso no
decurso do processo de produção real. A produção de sobretrabalho ocorre quando o capitalista
“consome” o valor de uso da força de trabalho de modo que seja utilizada em tempo de trabalho superior
ao tempo de trabalho necessário para produzi-la e reproduzi-la.
4
a base técnica, submeter massas crescentes de força de trabalho a seu domínio,
criar novos mercados, o capital precisa existir permanentemente de forma
“livre” e líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada. (...). A
autonomização do capital-dinheiro sob a forma capital a juros, e a
correspondente expansão do crédito são os elementos que permitem entender a
centralização do capital e a fusão dos interesses entre os Bancos e a indústria.
(TAVARES e BELLUZZO, 1980, p. 114-5)
Como nos mostram os autores, o capital portador de juros nasce da necessidade
de expansão e valorização do capital além dos limites do seu processo de circulação e
reprodução. O capital a juros nasce, portanto, das próprias entranhas do capital, do “seu
jeito de ser”. A respeito do capital portador de juros, deve-se demarcar que o juro, como
nos adverte Marx, “aparece originalmente, é originalmente e continua sendo, na
realidade, apenas parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capitalista funcionante,
industrial ou comerciante, à medida que não emprega seu próprio capital, mas capital
emprestado, tem de pagar ao proprietário e prestamista desse capital” (MARX, 1983c,
p. 277).
Entretanto o capital portador de juros tem um caráter específico, como nos
revelam estas duas citações:
(...) O capital existe como capital, em seu movimento real, não no processo de
circulação, mas somente no processo de produção, no processo de exploração
da força de trabalho. A coisa é diferente com o capital portador de juros, e
justamente essa diferença constitui seu caráter específico. O possuidor de
dinheiro que quer valorizar seu dinheiro como capital portador de juros aliena-o
a um terceiro, lança-o na circulação, torna mercadoria como capital; não só
como capital para si mesmo, mas também para outros; não é meramente capital
que o aliena, mas entregue ao terceiro de antemão como capital, como valor que
possui valor de uso de criar mais-valia, lucro; como valor que se conserva no
movimento e, depois de ter funcionado, retorna para quem originalmente o
despendeu, nesse caso o possuidor de dinheiro; portanto afasta-se dele apenas
por um período, passa da posse de seu proprietário apenas temporariamente à
posse do capitalista funcionante, não é dado em pagamento nem vendido, mas
apenas emprestado; só é alienado sob a condição, primeiro, de voltar, após
determinado prazo, a seu ponto de partida, e, segundo, de voltar como capital
realizado, tendo realizado seu valor de uso de produzir mais-valia. (MARX,
1983c, p. 258-9)
No movimento real do capital, o retorno é um movimento do processo de
circulação. Primeiro, o dinheiro é transformado em meios de produção; o
processo de produção transforma-o em mercadoria; mediante a venda da
mercadoria é retransformado em dinheiro e nessa forma retorna às mãos do
capitalista. Mas o caso do capital portador de juros, o retorno bem como a
entrega são apenas resultados de uma transação jurídica entre o proprietário do
capital e uma segunda pessoa. Vemos somente entrega e reembolso. Tudo o que
o ocorre de permeio é apagado. (MARX, 1983c, p. 263)
5
Para o prestamista, o capital portador de juros “aparece” sob a “forma absurda” e
mais “fetichizada do capital”, a forma D-D’. “Tudo o que ocorre de permeio é
apagado”, ou seja, a extração de mais-valia (sob a forma absoluta e relativa) no processo
de produção real. Entretanto, o capital nas mãos do prestamista não se valoriza, precisa
novamente retornar “ao capitalista funcionante”; só há valorização do valor neste
movimento sempre renovado do capital. Como bem coloca François Chesnais,
observando o período recente: “[na esfera financeira nada] cria por si só. Representa o
tipo mesmo de arena onde se joga um jogo de soma zero: aquilo ganho por um, dentro
do campo fechado do sistema financeiro, é perdido por outro. As bolhas especulativas
que se desenvolvem em torno deste ou daquele ‘produto’, deste ou daquele
compartimento do mercado pressupõem que, em paralelo, as punções e as transferências
continuem ocorrendo a partir da esfera produtiva, se possível de modo ininterrupto”
(CHESNAIS, 1995, p. 21).
4.1.2. A fase monopolista do sistema capitalista
Na passagem do Século XIX para o Século XX, o modo de produção capitalista
sai de sua fase concorrencial e passa para a monopolista.3 A partir deste período, há uma
brutal concentração e centralização do capital expressa em diversas morfologias, a
saber: cartéis, pool, trustes, entre outros4. Ainda que as sociedades anônimas surjam
num período anterior, as sociedades anônimas em atividades manufatureiras são típicas
deste período. Desde o surgimento das sociedades anônimas na esfera industrial se
redefiniu a função do capitalista industrial. Antes ele gerenciava a empresa, decidia
sobre os investimentos, enfim, tomava todas as decisões: o que produzir, quanto
produzir e como produzir. Era o proprietário e o empresário/gerente simultaneamente. A
sociedade anônima industrial redefine a função do capitalista industrial, como nos
mostra Rudolf Hilferding:
A sociedade anônima industrial (...) significa antes de tudo uma alteração da
função exercida pelo capitalista industrial. Ela transforma em princípio
fundamental o que tem sido ocorrência ocasional, casual na empresa individual:
ou seja, a liberação do capitalista industrial de suas funções de empresário
industrial. Para o capitalista, essa alteração de função atribui ao capital investido
na sociedade anônima a função de puro capital monetário. O capitalista
monetário enquanto credor, nada tem a ver com o que é feito com seu capital no
3
Esta fase foi analisada por vários autores e objeto de um intenso debate entre os marxistas. Pela
dimensão deste texto e pelo seu objetivo apenas abordaremos alguns elementos.
4
Uma análise detalhada e rica foi feita por John A. Hobson (1983).
6
processo de produção, embora esse emprego, em realidade, a condição
necessária da relação de empréstimo (...). Sua função é apenas ceder seu capital
monetário e recuperá-lo com juros depois de certo tempo (...) assim também o
acionista atua como simples capitalista monetário. Ele fornece o dinheiro para
receber (em termos bem genéricos) um rendimento. (HILFERDING, 1985, p.
111)
Além disso, evidentemente, a sociedade anônima possibilitou e alavancou a
concentração e centralização do capital. Mas este fato não se restringiu às empresas.
Este fenômeno se apresentou também nos bancos. Lênin nos mostra, analisando os
bancos, a expressiva concentração e centralização do capital neste setor.
Os bancos, “produtos da evolução das ‘casas bancárias’”, “tornaram-se as peças
básicas do sistema de crédito. Reunindo capitais inativos de capitalistas e a soma das
economias de um grande contingente de pessoas, os bancos passaram a controlar massas
monetárias gigantescas, disponibilizadas para empréstimos – e a concorrência entre os
capitalistas industriais levou-os a recorrer ao crédito bancário para seus novos
investimentos” (NETTO e BRAZ, 2006, p. 178). Ora, como nos demonstrou Marx (no
capítulo XXIII d’O Capital), “o sistema de crédito (...) [apresenta-se] como uma nova e
temível arma na luta da concorrência e finalmente se transforma em enorme mecanismo
social para centralização de capitais” (MARX, 1984, p.197).
A sociedade anônima colocada nos bancos e na indústria propicia um
entrelaçamento entre os monopólios nas indústrias e os monopólios bancários, o qual
cria uma nova forma de capital, cujo poder de acumulação e valorização do capital se
potencializa exponencialmente, e é então denominado por capital financeiro. Este
entrelaçamento pode ser vislumbrado através destas citações:
(...) desenvolve-se, por assim dizer a união pessoal dos bancos e das empresas
industriais e comerciais, a fusão de uns com os outros pela compra de ações,
pela entrada dos diretores dos bancos nos conselhos fiscais (ou de
administração) das empresas industriais e comerciais e vice-versa. (LÊNIN,
1979, p.40)
Uma porção cada vez maior do capital da indústria não pertence aos industriais
que o aplicam. Dispõem do capital somente mediante o banco, que perante eles
representa o proprietário. Por outro lado, o banco deve imobilizar uma parte
cada vez maior de seus capitais. Torna-se, assim, em proporções cada maiores,
em capitalista industrial. Chamo de capital financeiro o capital bancário,
portanto o capital em a forma de dinheiro que, desse modo, é na realidade
transformado em capital industrial. (...) Uma parte cada vez maior do capital
empregado na indústria é capital financeiro, capital à disposição dos bancos e,
pelos industriais. (HILFERDING, 1985, p. 219)
7
A esta definição de capital financeiro de Hilferding, Lênin (1979) faz
observações e torna-a mais precisa e completa:
Esta definição não é completa porque não indica um dos aspectos mais
importantes: o aumento da concentração da produção e do capital em grau tão
elevado que conduz, e tem conduzido, ao monopólio. (...) Concentração da
produção; monopólios que resultam da mesma; fusão ou junção dos bancos com
a indústria. (LÊNIN, 1979, p. 46)
A despeito de todas as controversas desta definição de Hilferding, ou mesmo do
tratamento dado por Lênin, o que se pretende demarcar é que o sistema capitalista
inaugura uma fase quantitativa e qualitativamente diferenciada sob a égide do capital
financeiro, a qual potencializa o movimento insaciável do capital, apropriação de
riqueza abstrata.5
Desde a década 1960/1970, frente ao declínio das taxas de lucro6, sob a égide do
capital financeiro, o capital vem rompendo crescentemente as amarras impostas no pósguerra (período histórico o qual muitos pensaram ser possível domesticar o capital), e o
seu ímpeto insaciável vem se manifestando em sua plenitude. Desde então, a interrelação entre a “esfera das finanças” e a “esfera produtiva”, entre o capital monetário e o
capital produtivo têm sofrido transformações. Desde os anos 1980, a “esfera das
finanças” ganhou contornos e amplitude e com essa configuração adentrou nas décadas
seguintes. Belluzzo sintetiza as principais mudanças “na estrutura e na gestão da riqueza
capitalista e na operação dos mercados financeiros” das últimas três décadas:
1) o maior peso da riqueza financeira na riqueza total; 2) o poder crescente dos
administradores da massa de ativos mobiliários (fundos mútuos, fundos de
pensão, seguros) na definição das formas de utilização da “poupança” e do
crédito; 3) a generalização da abertura das contas de capital, dos regimes de
taxas flutuantes e do uso de derivativos; 4) as agências de classificação de risco
assumem o papel de tribunais, com pretensões de julgar a qualidade das
políticas econômicas nacionais. (BELLUZZO, 2006, p. 10)
Se a autonomização do capital-dinheiro sob a forma de capital portador de juros
é um traço do modo de produção capitalista já abordado por Marx no século XIX –
quando ainda o sistema capitalista estava na fase concorrencial –, nas últimas décadas,
5
Outro aspecto fundante desta fase é a criação de uma oligarquia financeira, como acentua Lênin (1978,
p. 88) quando sintetiza as cinco características fundamentais do Imperialismo, sendo que uma delas é:
“fusão do capital bancário e do capital industrial, e criação, com base nesse ‘capital financeiro’, de uma
oligarquia financeira”. Sobre esta importante questão, ver Lênin (1979), capítulo III, e Hobson (1983),
capítulo X.
6
Este processo é tratado amplamente na literatura.
8
com as configurações abordadas por Belluzzo, o capital portador de juros assume o
epicentro. Como bem assinala Chesnais, o capital portador de juros:
(...) busca “fazer dinheiro” sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de
empréstimos, de dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de
ações e, enfim, de lucros nascidos de especulação bem-sucedida. Ele tem como
terreno de ação os mercados financeiros integrados entre si no plano doméstico
e interconectados internacionalmente. Suas operações repousam também sobre
as cadeias complexas de créditos e de dívidas, especialmente entre bancos.
(CHESNAIS, 2005, p. 35)
Entretanto, esta autonomia do capital-dinheiro sob a forma de capital portador de
juros deve ser entendida como uma “autonomia relativa”. Chesnais, com precisão, diz:
O capital que se valoriza na esfera financeira nasceu – e continua nascendo – da
esfera produtiva. Assumiu, no começo, ou a forma de lucros (lucros não
reinvestidos na produção e não consumidos, parte dos lucros cedida enquanto
juros ao capital de empréstimo) ou a forma de salários e rendas agrícolas que
foram depois objeto de punções mediante impostos ou que sofreram a forma
moderna de usura dos “créditos de consumo” ou, finalmente, de quarenta anos
para cá, a forma dos salários adiados depositados em fundos privados de pensão
cuja natureza vai se modificando assim que penetram a esfera financeira e se
tornam massas, buscando a máxima rentabilidade. (CHESNAIS, 1995, p. 21)
Desenvolveu-se até aqui que a autonomização do capital-dinheiro sob a forma
capital portador de juros é própria das entranhas do sistema capitalista e se potencializa
exponencialmente nas últimas décadas. Falta-nos, para cumprir o objetivo proposto,
mostrar como o capital revoluciona periodicamente a “base técnica” sob a qual está
assentado e as implicações disso. A inter-relação entre autonomização do capital
dinheiro sob a forma de capital portador de juros e revolucionamento da “base técnica”
é evidenciada de forma clara a seguir:
O capital a juros nasce, portanto, da necessidade de perpétua expansão e
valorização do capital para além dos limites de seu processo mais geral e
elementar de circulação e reprodução. Para revolucionar periodicamente a base
técnica, submeter massas crescentes de força de trabalho a seu domínio, criar
novos mercados, o capital precisa existir permanentemente de forma “livre” e
líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada. (...). (TAVARES e
BELLUZZO, 1980, p. 114-5)
No próximo item serão abordados o desenvolvimento histórico do processo de
trabalho e as “bases técnicas” em que o capital estava e está assentado, para em seguida
esboçarmos algumas conclusões.
4.2. Desenvolvimento histórico do processo de trabalho
9
Marx, no Livro I d’O Capital, diz que o processo de trabalho “(...) é atividade
orientada a um fim para produzir valor de uso, apropriação do natural para satisfazer a
necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza,
condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma
dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais” (MARX,
1983a, p. 153). Entretanto, houve uma transformação radical da própria maneira de
produzir, assim que o trabalho foi subsumido realmente pelo capital, ou, o que é a
mesma coisa, quando o processo de trabalho se tornou específico ao modo de produção
capitalista.
Para entender esse processo é preciso evidenciar, primeiramente, a
particularidade da maquinaria e grande indústria perante a manufatura. Posteriormente
mostrar que só a partir de 1970/80 é que a “base técnica”, em todos os ramos industriais,
se transformou em especificamente capitalista, prescindindo para o processo de trabalho
do trabalho vivo imediato. Entretanto, vamos apontar que, paralelamente, o capital
submete “massas crescentes de força de trabalho a seu domínio” (TAVARES e
BELLUZZO, 1980). Esse processo se manifesta na utilização cada vez mais extensiva
de força de trabalho extremamente qualificada, principalmente na forma de serviços, na
valorização do capital; e na recriação de “formas pretéritas” de exploração do trabalho,
extração de mais-valia sob a forma absoluta.
A produção capitalista, desde o início, tem por objetivo a produção e
acumulação de capital, via extração de mais-valia. Ainda que esse seja seu fim, os
meios para isso se concretizar modificaram-se ao longo do processo histórico. “No
início, o capital submete o trabalho ao seu domínio nas condições técnicas em que o
encontra historicamente” (MARX, 1983, p.244). Entretanto, isso não basta, como nos
evidenciou Marx:
[Não basta] (...) que o capital se apodere do processo de trabalho em sua forma
historicamente herdada ou já existente, e apenas alongue sua duração. Tem de
revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho (...) a fim
de aumentar a força produtiva do trabalho, mediante o aumento da força
produtiva do trabalho reduzir o valor do trabalho, e assim encurtar parte da
jornada de trabalho necessária para a reprodução deste valor. (MARX, 1983, p.
251)
Marx quando trata do desenvolvimento das forças produtivas na trilogia
“Cooperação”, ‘Divisão do Trabalho e Manufatura” e “Maquinaria e Grande Indústria”
d’O Capital e em algumas partes dos Grundrisse, nos evidencia que é somente com a
10
maquinaria que a revolução nos meios de trabalho é realizada, ou seja, o modo de
produção torna-se especificamente capitalista.
Mesmo que na manufatura tenham ocorrido revolucionamentos no processo de
trabalho, não houve revolucionamento nos instrumentos de produção e o processo de
trabalho não se objetivou. O aumento da eficiência produtiva7 decorreu apenas pela
divisão do trabalho – antes executado por um trabalhador – agora entre os diversos
trabalhadores, de maneira que cada um execute apenas uma das partes do processo de
trabalho. Surge, então, o trabalhador parcial e desqualificado. Essa imprescindibilidade
do trabalho vivo imediato no processo produtivo revela um claro limite, pois, como nos
diz Marx (1984, p. 10) o homem é “(...) um instrumento muito imperfeito de produção
de movimento uniforme e contínuo”, além disso, tem-se no esgotamento físico
decorrente de muitas horas de trabalho uma barreira à extração de mais-valia.
Com a maquinaria supera-se o limite orgânico encontrado na manufatura para
crescente valorização, pois é criada a máquina-ferramenta, “(...) mecanismo que, ao serlhe transmitido o movimento correspondente, executa com suas ferramentas as mesmas
operações que o trabalhador executava antes com ferramentas semelhantes” (MARX,
1984, p. 9). O processo produtivo independe da habilidade do trabalhador, pois “o
conjunto do processo de produção já não está, então, subordinado à habilidade do
operário; tornou-se uma aplicação tecnológica da ciência” (MARX, 1978, p.221) e,
portanto, tem-se a objetivação do processo de trabalho. Neste entendimento, a máquina
é um “grande autômato” na medida em que há continuidade no processo produtivo, sem
a interferência humana. Ao se produzir máquinas por máquinas o processo produtivo
torna-se adequado ao modo de produção especificamente capitalista:
A grande indústria teve (...) de apoderar-se de seu meio característico de
produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Só
assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés.
(MARX, 1984, p. 16)
A conseqüência da introdução da maquinaria sobre o trabalho vivo imediato é a
de torná-lo desqualificado, um apêndice ou mesmo supérfluo.
Entretanto, a indústria metal mecânica (a qual inclui a automobilística) e a
indústria eletrônica, ou seja, a indústria de montagem em geral, as quais tiveram um
grande peso no emprego e no PIB dos países durante o século XX, não seguiram a trilha
7
Fato já observado por Adam Smith (1983).
11
da maquinaria e grande indústria. Foram estas o locus das práticas tayloristas-fordistas e
ohnoistas. Desta forma, defende-se aqui, com base na obra de Moraes Neto (1991, 1998
e 2003), que as práticas tayloristas-fordistas e ohnoistas não foram aplicadas a toda
atividade industrial – por exemplo, desde a Revolução Industrial, a indústria têxtil está
alicerçada na maquinaria – e não se caracterizam como “formas técnicas” adequadas ao
modo de produção especificamente capitalista, pois se trata de uma reinvenção da
manufatura numa fase histórica mais avançada. Acerca da natureza do fordismo e do
ohnoísmo, citamos:
A manufatura representa uma fase de desenvolvimento do trabalho sob sua
forma burguesa, caracterizando-se portanto uma etapa necessária desse
desenvolvimento. Nesse sentido, o desenvolvimento da manufatura levou à sua
negação, à máquina como forma mais desenvolvida do trabalho. A recriação da
manufatura no século XX, o fordismo, apresenta um caráter radicalmente
diverso. A forma manufatureira já estava superada historicamente,
conseqüentemente, o fordismo não representa uma etapa necessária do trabalho
humano; muito pelo contrário, caracteriza-se, isto sim, como o
desenvolvimento, até o paroxismo, da forma historicamente menos
desenvolvida. (MORAES NETO, 1991, p. 59).
Ao buscar a natureza do ohnoísmo, verificamos que o mesmo não superou o
lastro do trabalho vivo característico do fordismo, à medida que efetuou, sobre o
fordismo da fase da “ridificação”, uma significativa mudança de natureza
estritamente organizacional. Podemos, portanto, caracterizar o fordismo como
produção em massa rígida alicerçada no trabalho vivo, e o ohnoísmo como
produção em massa flexível igualmente alicerçada no trabalho vivo. Este fato
crucial fornece ao fordismo/ohnoísmo sua diferença específica relativamente à
produção em massa lastreada na maquinaria, caso típico das indústrias têxtil e
de processo contínuo. Ora, a automação de base microeletrônica terá como
conseqüência permitir às indústrias de cunho fordista ou ohnoísta passar a
alicerçar a produção em massa (necessariamente flexível) na maquinaria, e não
mais no trabalho vivo. Isto significará, simplesmente, o fim histórico do
fordismo, e de sua “reinvenção”, o ohnoísmo, e a emergência de um conceito
unificado de produção industrial, que se constituirá, em todos os seus
segmentos, numa “aplicação tecnológica da ciência”. (MORAES NETO, 1998)
Ora, como reinvenção da manufatura, tanto o fordismo, como sua forma
reinventada, o ohnoísmo, estão alicerçados sobre o trabalho vivo imediato, e portanto,
sob uma “base técnica” inadequada a forma especificamente capitalista. Esta
característica será superada com a introdução da base técnica microeletrônica, a qual
permitirá a automação do processo produtivo de fabricação, com as MáquinasFerramentas de Controle Número (MFCN)8, e da montagem com o robô. É só depois da
introdução da microeletrônica, portanto nas últimas décadas do século XX, que as
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indústrias de montagem em geral estarão alicerçadas sobre “base técnica” adequada a
forma especificamente capitalista, pois se tem a objetivação do processo de trabalho em
todos os ramos industriais.
A conseqüência imediata da automação dos processos produtivos nas indústrias
de montagem em geral ocasionou à expulsão em larga escala da força de trabalho das
fábricas – evidenciadas nas taxas de desemprego, tanto nos países desenvolvidos como
nos subdesenvolvidos. Ocorre, porém, que com adequação do processo produtivo
imediato ao modo de produção especificamente capitalista há um crescimento da
utilização de serviços para valorização direta de capital. Estas atividades, que, em sua
maioria, são trabalhos extremamente qualificados, apresentam-se em várias esferas, a
saber: trabalho do professor, do médico, cientistas nas indústrias (engenheiro, químico,
físico, entre outros), designers, etc. Ao mesmo tempo em que o capital utiliza estes
trabalhos qualificados para se valorizar, utiliza-se mundialmente de trabalhadores com
salários baixíssimos ou mesmo em condições de escravidão para o processo de
produção propriamente dita, através de relações de subcontratação.9
5. CONCLUSÕES
A autonomização do capital-dinheiro, antes de ser elemento transitório, factível
de ser minimizado e contornado, como no passado – referimos-nos ao período do pósguerra –, só pode ser superado para além da égide do capital, pois como demonstramos
no item 4.1., a autonomização do capital-dinheiro é própria da forma “de ser do capital”,
da forma que se produz e se reproduz. O capital em seu “movimento insaciável” precisa
existir de forma líquida, sem amarras e centralizado para garantir as bases de sua
reprodução. Esta condição foi permitida e levada ao paradoxismo no momento atual
graças à “desregulamentação e liberalização financeira” (abertura dos sistemas
financeiros nacionais e desregulamentação monetária e financeira; expansão dos
mercados de bônus, interligados mundialmente; “mercadorização” dos títulos públicos);
aos novos atores (fundos de pensão, fundos mútuos de investimentos) e novos “produtos
financeiros” (como o “mercado de derivativos”); à abertura e desregulamentação dos
8
E seus desenvolvimentos Módulos Flexíveis de Manufatura (FMM), as Células Flexíveis de Manufatura
(FMC) e os Sistemas Flexíveis de Manufatura (FMS).
9
O tema, a recriação de formas “pretéritas de exploração”, foi tratado por Lupatini (2007).
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mercados acionários, entre outros. O resultado disso é que uma massa de trilhões de
dólares que se movimentam diariamente nos “mercados financeiros”. Entretanto, este
movimento na “esfera financeira” está inter-relacionado com a “esfera produtiva”, como
abordamos, é uma “autonomia relativa”.
Este movimento e configuração observados na “esfera financeira” coexiste no
mesmo momento histórico em que a “base técnica” adequada ao modo de produção
especificamente capitalista, a maquinaria, se torna predominante, ou seja, prescinde do
trabalho vivo imediato. Com isso a autocontraditoriedade, em que se move o capital, se
explicita: “o capital mesmo é a contradição em processo, pelo fato de que tende a
reduzir a um mínimo o tempo de trabalho, enquanto que, por outro lado, põe o tempo de
trabalho como única medida e fonte de riqueza” (MARX, 1978, p. 229). Ou seja, o
capital ao tornar o trabalhador um apêndice ou mesmo supérfluo, elimina a sua única
fonte de extração de mais-valia. Como já colocamos, esta é uma tendência a se
generalizar, embora o capital ainda utilize “formas pretéritas” de exploração do
trabalho, cabe ressaltar que estas só são formas de valorização do capital enquanto o
valor da força de trabalho for mais atrativo aos “ganhos do capital” do que a aplicação
da “base técnica” adequada ao modo de produção especificamente capitalista, ou seja, é
uma “questão do cálculo” do capitalista. O mesmo não se dá com a utilização dos
trabalhos mais qualificados, que apesar de inadequados ao modo de produção
especificamente capitalista, uma vez que o processo de trabalho não pode ser
objetivado, estes são inerentes ao próprio processo de desenvolvimentos das forças
produtivas, ao menos no que se refere aos trabalhos qualificados ligados à produção da
riqueza material, exclui-se daqui os serviços pessoais (como do professor e do médico).
Podemos concluir que neste movimento o capital se move contraditoriamente,
pois: tenta eliminar sua fonte e medida de valor – o trabalho – e ao mesmo tempo o
coloca como única referência; captura atividades com atributos imanentemente
humanos (saúde, educação, etc.), as quais, entretanto, são atividades não ajustadas à
forma especificamente capitalista; e aparece na “esfera financeira” em sua forma
absurda de valorização D-D’, embora necessite para isso da extração de mais-valia no
processo produtivo.
14
6.
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