Revista
Revista Acadêmica
Acadêmica da
da FAMAM
FAMAM
TEXTURA
V. 6 - N. 11 - Jan./Jun. de 2013
ISSN: 1809-7812
Governador Mangabeira - BA
Revista Acadêmica
Acadêmica da FAMAM
Revista
TEX TURA
Governador Mangabeira - BA
Jan./Jun. de 2013
FAMAM - FACULDADE MARIA MILZA
DIRETOR DA FAMAM
Weliton Antonio Bastos de Almeida
DIRETORAS DO CEMAM (Instituição mantenedora da FAMAM)
Jucinalva Bastos de Almeida Costa
Janelara Bastos de Almeida Silva
EDITORA RESPONSÁVEL
Josemare Pereira dos Santos Pinheiro
CONSELHO EDITORIAL
Adriana Pinheiro Martinelli (Universidade de São Paulo)
Alex Gutterres Taranto (Universidade Federal de São João Del-Rei)
Carmem Lieta Ressurreição dos Santos (Universidade Estadual de Feira de Santana)
Celi Nelza Zulke Taffarel (Universidade Federal da Bahia)
Edmar José de Santana Borges (Universidade Federal da Bahia)
Elisabete Rodrigues da Silva (Faculdade Maria Milza)
Maria Lúcia Silva Servo (Universidade Estadual de Feira de Santana)
Marina Siqueira de Castro (Universidade Estadual de Feira de Santana / Empresa Baiana
de Desenvolvimento Agrícola)
Marly de Jesus (Faculdade Maria Milza)
Robson Rui Cotrim Duete (Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola / Faculdade Maria Milza)
Sérgio Roberto Lemos de Carvalho (Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola /
Faculdade Maria Milza)
Simone Garcia Macambira (Universidade Federal da Bahia)
ASSISTENTE EDITORIAL
Jonas Cavalcante da Silva
CAPA
Nelson Magalhães Filho
Ficha Catalográfica
TEXTURA. Faculdade Maria Milza. - v. 1, n. 1. (jan. - jun. 2006) - Cruz das Almas, BA,
2006.
Semestral
ISSN: 1809-7812
1. Ciências Humanas. 2. Ciências da Saúde. I Faculdade Maria Milza II. Título
Tiragem: 300 exemplares
Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, desde que devidamente citada a fonte.
SUMÁRIO
Mulheres fumageiras do recôncavo baiano: heranças socioculturais ...................................................................01
Elizabete Rodrigues da Silva
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral ..........................................................................07
José Clerison Santos Alves
Mulheres negras e poder na indústria fumageira ..................................................................................................21
Luzia Souza Ferreira; Elizabete Rodrigues da Silva
Festas juninas em Cruz das Almas/BA: suas implicações urbanas e o papel da municipalidade frente às
políticas de planejamento ......................................................................................................................................31
Reinaldo dos Santos Silva; Jânio Roque Barros de Castro
O trem e a comunidade quilombola na cidade de Cruz das Almas/BA .................................................................39
Nilton Antonio Souza Santos
Revisão de literatura sobre o mecanismo de ação da artemisinina e dos endoperóxidos
antimaláricos - Parte II ...........................................................................................................................................47
Laís Cardoso Almeida; Elisângela Santos; Carine Sampaio; Alex G. Taranto; Franco Henrique Andrade Leite
Prevalência de hipertensão arterial sistêmica e indicadores antropométricos associados em escolares
na cidade de Muritiba/BA.......................................................................................................................................57
Fabrício Sousa Simões; Adriano Batista Souza; Jorge Luiz Santos de Jesus; Tarcísio Dias da Silva
Descentralização: um estudo sobre sua interferência nos serviços de saúde no Brasil .......................................63
Laudiceia Garcia Neves; Norma Irene Soza Pineda
APRESENTAÇÃO
Neste número foram reunidos artigos que contemplam e retratam preocupações que vão desde a
composição histórica do Recôncavo Baiano até a descentralização dos serviços de saúde no Brasil.
Mulheres fumageiras no Recôncavo Baiano: heranças socioculturais, é um trabalho que abre a
seção Ciências Humanas, e que nos contempla com uma investigação em torno da composição do quadro social e as características étnico-culturais que compunham, historicamente, a região fumageira do
Recôncavo da Bahia, na primeira metade do século XX. A partir de tal levantamento é traçado um perfil
socioeconômico e cultural, destacadamente, das trabalhadoras da indústria do fumo.
O artigo Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral, destaca que na filosofia de
Schopenhauer não é possível fundamentar a moral a partir da faculdade da razão, posto que a razão, em
seu sistema, possui apenas uma função lógica, em outras palavras, ela nada tem a ver com a moralidade.
Nesta perspectiva, é apresentada uma crítica de Schopenhauer ao formalismo da moral kantiana.
Em continuidade, no trabalho Mulheres negras e poder na indústria fumageira, são evidenciadas as
trajetórias das mulheres negras que ocuparam espaços de poder no âmbito do trabalho com o fumo na
cidade de Cruz das Almas/BA, num intervalo de quarenta anos (1950 a 1990), destacando, especialmente, as mulheres que presidiram o Sindicato da Indústria do Fumo. Nessas trajetórias, constatou-se a luta
acirrada destas mulheres pela sobrevivência material, bem como pelos espaços de poder, minando a invisibilidade social e política a que eram submetidas no contexto das relações sociais de gênero, raça e classe do período em foco.
Segue-se Festas juninas em Cruz das Almas/BA: suas implicações urbanas e o papel da municipalidade frente às políticas de planejamento, que objetivou compreender os processos e as implicações
espaciais de tais festas no território urbano cruzalmense, principalmente quanto à dinâmica de planejamento. O estudo aponta que, devido a dimensão grandemente espetacularizada que a festa junina da
cidade alcançou, é preciso lançar mão de novos mecanismos de planejamento, que efetivamente gerem
a infraestrutura adequada para a festa.
O artigo que encerra esta seção é O trem e a comunidade quilombola na cidade de Cruz das
Almas/BA, cujo intento principal foi, a partir das memórias e narrativas dos quilombolas, entender em que
medida o funcionamento da linha férrea contribuiu tanto para o desenvolvimento da comunidade em questão como da própria cidade.
A seção Ciências da Saúde é iniciada com o artigo Revisão de literatura sobre o mecanismo de
ação da artemisinina e dos endoperóxidos antimaláricos - parte II, que corresponde à segunda parte de
uma revisão sobre os endoperóxidos antimaláricos, na busca de novas alternativas terapêuticas para o
tratamento da malária, apontada como uma doença que mata mais do que a AIDS e cujo parasito tem
apresentado crescente resistência aos fármacos atuais.
Em seguida, Prevalência de hipertensão arterial sistêmica e indicadores antropométricos associados em escolares na cidade de Muritiba/BA, objetivou estimar a prevalência da HAS em escolares e sua
associação com indicadores antropométricos de risco para a população infanto-juvenil. O estudo revelou
uma relação negativa entre o nível de atividade física e os níveis pressóricos, demonstrando a necessidade da prevenção dos fatores de risco através de mudanças nos hábitos de vida dessa população estudada e o desenvolvimento de programas específicos dentro das escolas, que enfatizem a prática da atividade física e bons hábitos alimentares, minimizando a prevalência da HAS precoce.
Finalizando esta edição, Descentralização: um estudo sobre sua interferência nos serviços de
saúde no Brasil, aponta a descentralização das ações e serviços de saúde como um dos principais com-
ponentes do processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, em contraposição
a um modelo centralizador. Entretanto, conforme o estudo, intervenções político-partidárias e deficiências, tanto na administração das verbas públicas destinadas ao setor saúde, quanto na profissionalização
dos gestores do setor, têm rebatido negativamente no propósito de facilitar à população um maior acesso
nos serviços de saúde.
Boa leitura!
Josemare Pereira dos Santos Pinheiro
Editora Responsável
MULHERES FUMAGEIRAS DO RECÔNCAVO BAIANO: HERANÇAS SOCIOCULTURAIS
Elizabete Rodrigues da Silva*
O presente estudo visa delinear a composição do quadro social e as características étnico-culturais que
compunham, historicamente, a região fumageira do Recôncavo baiano, na primeira metade do século XX. A
pesquisa respalda-se em fontes históricas, primárias e secundárias, que consistem em documentos como “Ficha de
Registro de Empregado” das Empresas Fumageiras Suerdieck e Carlos Pimentel, no período que se estende de
1906 a 1959, depositadas na Biblioteca da FAMAM; os Censos de 1940, 1950 e 1980 (IBGE); a obra do
memorialista Anphilófio de Castro (1941); além da literatura que se debruça sobre a região e que tem como
expoentes Maria de Azevedo Brandão (1998) e L. A. Costa Pinto (1998). Com ênfase na formação étnico-racial da
região, nas condições econômicas, grau de instrução e estado civil da população representada nas fontes
históricas, o levantamento e leitura dos dados permitiu, então, traçar um breve perfil socioeconômico e cultural das
trabalhadoras e trabalhadores da indústria fumageira.
Palavras-chave: Trabalhadoras fumageiras. Traços étnicos. Perfil socioeconômico.
This study aims to delineate the composition of the social and ethno-cultural characteristics that made historically the
tobacco region of the Reconcavo Baiano in the first half of the twentieth century. The research draws upon in
historical sources, primary and secondary documents that consist of horn "Employee Registration Card" of tobacco
companies Suerdieck and Carlos Pimentel, the period extending from 1906 to 1959, deposited in the Library of
FAMAM, the censuses of 1940, 1950 and 1980 (IBGE), the work of memoirist Anphilófio de Castro (1941), and the
literature that focuses on the region and whose exponents Maria Brandão de Azevedo (1998) and L. A. Philo Costa
(1998). With an emphasis on ethnic and racial formation in the region, economic conditions, education and marital
status of the population represented in the historical sources, the survey and reading of the data allowed, then trace a
brief profile of the socioeconomic and cultural workers and industrial workers tobacco.
Keywords: Workers furnageiras. Ethnic traits. Socioeconomic profile.
INTRODUÇÃO
O estudo sobre as mulheres fumageiras¹ do
Recôncavo Baiano circunscreve-se à primeira metade
do século XX, considerando que se trata de um período
de relativas mudanças econômicas e sociais para a
região, tendo em vista a implantação do parque industrial fumageiro que acelerou, dentre outros fatores, as relações de trabalho e a dinâmica urbana das cidades de
Maragojipe, Cachoeira, São Félix e Cruz das Almas.
Esse contexto demarca a trajetória de vida das
mulheres fumageiras, como trabalhadoras, que buscaram neste cenário socioeconômico a sobrevivência
material e a visibilidade social, fatos que evidenciavam
e, ao mesmo tempo, transgrediam a norma patriarcal,
esta que permeava as relações sociais de gênero
naquele tempo e espaço².
Partindo desta pesquisa mais ampla, o tema em
evidência, trata especificamente de delinear a composição do quadro social e as características étnicoculturais que compunham, historicamente, a região
fumageira.
TRAÇOS ÉTNICOS DA POPULAÇÃO DO
RECÔNCAVO
A composição do quadro social e cultural da população fumageira, no período supracitado, é herdeira da
mais ampla e histórica formação social do Recôncavo
baiano, onde ameríndios, africanos e europeus se “encontraram” e, como em outras regiões, não puderam
impedir o processo de miscigenação e a interpenetração de suas culturas. Apesar da participação dos europeus, em particular dos portugueses, considera-se
maior a presença de traços étnicos e culturais dos indí-
*Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero e Feminismo (Universidade Federal da Bahia); Professora da Faculdade Maria
Milza – FAMAM. E-mail: [email protected]
¹A expressão “mulheres fumageiras” aqui utilizada baseia-se na identidade de gênero, que, por sua vez, é composta e ao mesmo tempo
diferenciada por identidades sociais e políticas. (SCOTT, 1997). Mas, sobretudo, perpassada por uma construção histórica das diferenças e um
contexto histórico específico, revelador da experiência dessas mulheres.
²O tema das relações sociais patriarcais no contexto da indústria fumageira deverá ser tratado em um momento.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 01-06, jan./jun., 2013.
Elizabete Rodrigues da Silva
genas, e, sobretudo, dos africanos, no período em estudo, o que determina a formação étnico-cultural e social
das/dos trabalhadoras(es) fumageiras(os).
Quanto aos autóctones, são esparsas as informações. Em “Histórias Menores”, Osvaldo Sá descreve
que havia em Maragojipe as aldeias de Conquista da
Pedra Branca, dos índios Quiriris e Tapuias e a de Santo
Antônio da Aldeia, pertencente à Freguesia de São Bartolomeu, sendo dos Tupinambás. Em consequência da
comunicação, através do Rio Paraguaçu, do arraial de
Santo Antônio da Aldeia com o ancoradouro de Najé³,
onde os índios praticavam o escambo e o que mais interessasse à sua manutenção, esta aldeia passou a pertencer à Vila de Najé. Ainda descrevendo as belezas
naturais do Rio das Caboclas situado entre Najé e Maragojipe, o autor afirma que este último “produziu a maior
safra de mamelucos”. (SÁ, 1981, p. 31-33).
Ainda conta o mesmo autor que “tribos valentes,
aparentadas aos Aimorés”, invadiram Capanema, um
dos sítios das terras maragojipanas, no século XVIII,
embora muito antes Mem de Sá já houvesse “destroçado aimorés da Serra da Copioba, afugento-os do litoral”.
(SÁ, 1981, p. 73).
Mais à frente, em direção a Muritiba, a região era
totalmente povoada pelos índios Tupinambás que, no
período dos três governos gerais, somaram 47 aldeias.
Somente São Félix, constituiu-se numa aldeia de índios
com 20 palhoças habitadas por cerca de 200 índios.
Porém, logo que o colonizador chegou à região esta
população foi gradativamente sendo dizimada. Segundo Silva (2001):
Com a instituição do domínio português e a
resistência indígena, instalou-se a guerra de
destruição à esses índios que constituiu-se em
um denominador comum na história de ocupação do Recôncavo, da qual resultou o gradativo
despovoamento desta região. (SILVA, 2001,
p.39).
No entanto, é sabido que os autóctones resistiram contundentemente à exploração, à dominação e a
quaisquer outras formas de destruição de sua espécie
impostas pelo colonizador português. Foi neste processo de luta e resistência à escravidão e ao poder sobre o
seu território que os índios, mesmo sofrendo grandes
baixas em seu efetivo, sobreviveram favorecendo ao
processo de miscigenação do Recôncavo4.
A presença da população negra no Recôncavo
está relacionada à escravidão africana que, desde a
colonização até o final do século XIX, apresentava a
maior concentração do Estado da Bahia. Ao examinar
os inventários post-mortem da população desta região,
do período de 1750 a 1800, Parés (2005), identificou
dentre os 1.400 cativos africanos uma maioria cujos
etnônimos referiam-se a mina, jeje, nagô e angola dentre outros, termos que designavam uma pluralidade de
grupos heterogêneos, mas guardavam certas afinidades linguísticas e culturais. Ressalta, ainda, que este
tipo de documentação expressa o uso dessas categorias feitas comumente pelos senhores e traficantes.
(PARÉS, 2005, pp. 96-97).
Eliane Azevedo (1968), afirma que a demanda dos
africanos no Recôncavo da Bahia vinculou-se ao crescimento da indústria do açúcar e as plantações de fumo,
sendo estas últimas para sustentar o tráfico de escravos
no "comércio triangular". (AZEVEDO, 1968, p. 7).
Quanto à evolução demográfica desta população
na região, nos séculos seguintes, fez-se necessário cruzar as informações fornecidas pela Sinopse Preliminar
do Censo Demográfico (1980) e os números sugeridos
por Roger Bastide (1980), para obter as seguintes informações: no final do século XIX, exatamente em 1890, a
população da Bahia era de 1.919.802 habitantes e, destes 75,97% eram de negros, relativamente proporcional
a estes números também todo o Recôncavo, considerando que as cidades de Cachoeira e São Félix eram os
principais centros de irradiação negra do Estado, pois foi
nessa microrregião que se concentrou o maior número
de engenhos de açúcar da Bahia. (IBGE, 1980, pp. 1415; BASTIDE, 1980, p. 68-70; AZEVEDO, 1968, p. 4).
Mas, “as terras em volta d'água” estabelecia
comunicação entre o sertão e a Baía de Todos os Santos que, com o passar do tempo, contribuiu para dissolver a distância entre as diferentes matrizes e processou
significativas mudanças no quadro étnico e cultural do
Recôncavo. Inicialmente a comunicação se deu através
dos rios que ali desembocam e, mais tarde, através das
rodovias, contribuindo para a distribuição tanto de produtos e mercadorias diversas como da população que
transitava em direção à capital ou ao sertão, destacando-se nesse trajeto o porto de Cachoeira como principal
ponto de encontro das pessoas e entrelaçamento de culturas. (AZEVEDO, 1968, p. 4-7). Ao longo do tempo,
este trânsito de coisas, costumes e pessoas promoveu
um processo de redefinição étnico-cultural e social, particularmente, para a zona do fumo que aqui é denominada de Recôncavo Fumageiro.
Assim, Lilia Schwarcz (1998) afirma que “era a
cultura mestiça que, nos anos 30 [do século XX] despontava como representação oficial da nação”.
(SCHWARCZ, 1998. p.193). Ainda, na primeira metade
do século XX, em viagem pela Bahia, o escritor austríaco, residente no Rio de Janeiro, visitou as fábricas de
charutos de Cachoeira e descreveu as etapas da feitura
dos charutos se referindo às trabalhadoras, de modo
particularizado, pelo seu tipo étnico, como “centenas de
³ Anajé que significa gavião na língua nativa é um topônimo que os conquistadores deturparam para Najé.
Para a questão vê: AMSF: Jornal da Cidade. Edição Especial, 10/1990; AZEVÊDO, UFBA/Salvador, 1968, pp. 3-14; CASTRO, 1941, p. 34;
MATTOSO, 1992, pp. 69-81; SCHWARCZ, 1998, vol. 4, cap. 3, p.193; SILVA, 2001, pp. 39 - 43.
4
02
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 01-06, jan./jun., 2013.
Mulheres fumageiras do recôncavo baiano: heranças socioculturais
moças morenas acham-se sentadas nas salas da
fábrica uma ao lado da outra e cada grupo delas exerce
uma atividade diferente”. [grifo nosso]. (SWEIG, 1941,
p.116).
Ao final da primeira metade do século XX, a população dessa região já se apresentava densamente miscigenada, principalmente, de um tipo étnico que Azevedo (1968) denomina de "mulato escuro". Conforme
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
no ano de 1940, a população dos municípios de Maragojipe, Cachoeira, São Félix e Muritiba somava 105.047
habitantes, sendo 34,14% de cor preta e 46,33% de cor
parda. Em 1950, estes municípios somavam uma população de 110.253, sendo 52,75% de cor parda, ou seja,
revela que a maioria era de uma população não branca,
nem exclusivamente de cor preta. (IBGE/CENSO,
1950/1958, pp. 95-105).
Apesar da sobrevivência em grande parte, nesta
região, da herança de elementos da cultura européia,
nativa e, sobretudo, africana, a efetiva convivência
entre esses povos, os frequentes deslocamentos das
populações, bem como as interpenetrações sociais e
culturais que se processavam em todo o Nordeste brasileiro facilitaram, particularmente ao Recôncavo, uma
complexa formação étnica, cultural e social específica
dessa região que, mesmo não sendo estática, contribuiu para a definição, com certa peculiaridade, das características de sua população.
Além das atividades sociais e culturais, as atividades econômicas ali desenvolvidas, também, representaram fatores constitutivos da especificidade da
população de cada zona que compunha o Recôncavo,
considerando que a atividade fumageira marcou, ao
longo do tempo, os comportamentos, os costumes, o
convívio social e até o modo de pensar e viver daquelas/daqueles que trabalharam e viveram no Recôncavo
fumageiro.
OUTRAS HERANÇAS
O Recôncavo dos canaviais, dos engenhos,
aquele chamado de “celeiro da capital”, dentre outros
que formavam o conjunto das áreas produtivas e, portanto ricas da Bahia, enfrentou a partir da segunda metade do século XIX, principalmente após a abolição do
regime escravocrata e consequentemente o “quebramento das forças produtivas”, uma progressiva decadência que levou a região a perder a sua antiga importância econômica, política e social, isolando-a dos processos que desde então marcaram a vida nacional. Diferentemente da Cidade da Bahia, aonde tudo ia florescendo, “o Recôncavo açucareiro se retrai e suas áreas
periféricas se marginalizam”, conforme afirma Maria de
A. Brandão (1998, p. 40), dentre outros. Nesse contexto, C. Pinto descreve a pauperização da população da
região e a intensa utilização da mão de obra feminina,
principalmente, na indústria fumageira e afirma que:
E não resta dúvida que é aqui, entre as subáreas do Recôncavo, que atraso e pobreza são
mais visíveis e mais chocantes (...) visitar os
bairros proletários de Cachoeira, São Félix,
Muritiba, Maragojipe, Cruz das Almas é ver de
perto a pobreza amarela da classe trabalhadora urbana dedicada à manipulação industrial do
tabaco. (PINTO, 1998, p. 122 e 128).
Além do quadro econômico que se delineava na
região fumageira, que já inclinamos nosso olhar em
momentos anteriores, outras peculiaridades e características de cunho sociocultural que ali se desenvolveram emprestaram uma fisionomia própria à população
ligada especificamente à atividade fumageira.
Quanto ao nível de escolarização das/dos trabalhadores fumageiras(os), há controvérsias. Para a
indústria fumageira, Anfilófio de Castro avalia que "(...) é
a ocupação de quási a totalidade do seu povo" [Muritiba], "o qual, embora com qualidades apreciáveis, é
pouco instruído e pouco afeiçoado às letras".
(CASTRO, 1941, p. 5). Esta afirmativa deve estenderse nas mesmas proporções para todos os outros municípios da região fumageira, pois, conforme o Censo de
1940, o total da população de cinco anos e mais de
idade dos municípios de Maragojipe, Cachoeira, São
Félix e Muritiba era de 88.275 e destes 65.720, ou seja,
74.45% não sabiam ler e escrever. Em 1950, segue
com pequena diferença, o mesmo ritmo das proporções, uma média de 70.65% de analfabetos para o total
da população de cinco anos e mais de idade. (IBGE.
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. R.J.: XX
vol. 1958, pp. 95-105).
Considerando que a atividade fumageira se dividiu no binômio agroindustrial, é preciso não generalizar
em qualquer avaliação do gênero. De certo que, a passagem das relações sociais estruturadas sob o trabalho
no campo para as relações sociais estruturadas sob o
trabalho fabril não determinou um corte radical nos
padrões sociais vigentes, permanecendo, ainda, por
algum tempo, os mesmos valores, comportamentos,
bem como, a formação sociocultural da população
envolvida com o trato do fumo. Contudo, quando Maria
de A. Brandão, afirma que “as relações de produção
determinam aí relações sociais (...)”, (BRANDÃO,
1998, p. 18), possibilita compreender que, de alguma
maneira, o processo de industrialização da zona fumageira influenciou na dinâmica urbana, social e cultural e,
que se analisada separadamente pode-se obter resultados diferenciados.
Assim, conforme as anotações das Fichas de
Registro das/dos trabalhadoras(es) das principais fábricas charutos – C. Pimentel em Muritiba, Suerdieck em
Maragojipe e Cruz das Almas, no período de 1906 até à
década de 1950 –, ocorreu um processo gradativo de
escolarização dessa população. Embora, deva-se considerar que se trata de uma amostra restrita e que os
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 01-06, jan./jun., 2013.
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Elizabete Rodrigues da Silva
dados são relativos pela flutuação do pessoal naquela
localidade, mas, de qualquer maneira, trata-se da realidade cultural das/dos trabalhadoras(es) das fábricas de
charutos do Recôncavo. Outro fator preponderante
para esta análise é considerar que, naquele momento,
tratava-se de um processo lento e que a escolarização
das classes populares, ainda, não aparecia como um
valor, muito menos como valor positivo. Assim, segue a
amostra nas tabelas abaixo:
As relações conjugais também revelavam outra
face de uma realidade característica da massa trabalhadora da região fumageira. O casamento nos moldes
oficiais previstos pelo Estado e pelo Cristianismo, predominante naquele período, apresentava número bastante reduzido, cedendo lugar às uniões livres, na forma
do concubinato, àquelas que Pinto denominou de
“uniões conjugais extralegais, de puro amasiado, tão frequente entre as classes pobres brasileiras, especial-
mente no interior” (PINTO, 1998, p.128), mas que se institucionalizaram como uma prática recorrente nas áreas
urbanas da zona do fumo do Recôncavo.
Em seu estudo sobre Muritiba, Anfilófio de Castro
identificou que "numa população entre 37 a 40.000
almas, realizando-se apenas, anualmente, 156 casamentos legais, atinge as raias do espanto pela insignificância". (CASTRO, 1941, p. 36). Tomando o Censo de
1940, este informa que a população dos quatro municípios – Muritiba, Cachoeira, São Félix e Maragojipe – na
faixa etária de 15 anos e mais, somava um total de
105.047, destes 76,88% (80.762) eram de pessoas solteiras. (IBGE. Censo, 1940. XX vol. 1958, pp. 95-105).
Para as décadas de 1930, 1940 e 1950, uma
amostra das Fichas de Registro de Empregados das
Empresas C. Pimentel em Muritiba, Suerdieck em Maragojipe e Cruz das Almas, trazem as seguintes informações quanto ao estado civil das/dos trabalhadoras(es):
Tabela 1 - Grau de instrução - Mulheres
DÉCADA
1930
1940
1950
TOTAL
5
ALF
170
278
204
%
31.89
55.60
71.58
652
49.47
MULHER
N/ALF
%
160
30.02
145
29.00
47
16.49
352
26.71
Legenda: ALF=Alfabetizada(o).
NI/O=Não Informado ou Outros
NI/O
203
77
34
%
38.09
15.40
11.93
TOTAL
533
500
285
314
23.82
1.318
N/ALF=Não Alfabetizada(o).
FONTE: Fichas de Registro de Empregados das Fábricas Suerdieck Maragojipe/Cruz das
Almas), Pimentel (Muritiba).
DÉCADA
1930
1940
1950
TOTAL
ALF
98
121
112
331
Tabela 2 - Grau de instrução - Homens
HOMEM
%
N/ALF
%
NI/O
49.75
50
25.38
49
67.60
21
11.73
37
80.58
15
10.79
12
86
118
61.87
16.07
TOTAL GERAL (MULHER E HOMEM)
Legenda: ALF=Alfabetizada(o).
NI/O=Não Informado ou Outros
%
24.87
20.67
8.63
22.06
TOTAL
197
179
139
515
1.833
N/ALF=Não Alfabetizada(o).
FONTE: Fichas de Registro de Empregados das Fábricas Suerdieck (Maragojipe/Cruz das
Almas), Pimentel (Muritiba).
5
Foram selecionadas estas décadas por apresentarem informações mais uniformes, uma vez que as Fichas de Registro de Empregados das
fábricas de charutos foram preenchidas e regularizadas a partir do ano de 1938. Para as décadas de 1910/20, as Fichas apresentam várias
lacunas quanto as informações mais específicas das/dos trabalhadoras(es).
04
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 01-06, jan./jun., 2013.
Mulheres fumageiras do recôncavo baiano: heranças socioculturais
Tabela 3 - Estado Civil - Mulheres
MULHER
DÉCADA
CAS
%
SOLT
%
NI/O
%
TOTAL %
1930
29
5.44
86
16.14
418
78.42
533
1940
68
13.60
258
51.60
174
34.80
500
1950
71
24.91
197
69.12
17
5.97
285
TOTAL
168
12.75
541
41.05
609
46.20
1.318
Legenda: CAS=Casada(o).
SOLT=Solteira(o).
NI/O=Não Informado ou Outros
FONTE: Fichas de Registro de Empregados das Fábricas Suerdieck
Maragojipe/Cruz das Almas), Pimentel (Muritiba).
Tabela 4 - Estado Civil - Homens
HOMEM
DÉCADA
CAS
%
SOLT
%
NI/O
%
TOTAL %
1930
42
21.32
57
28.93
98
49.75
197
1940
31
17.32
82
45.81
66
36.87
179
1950
41
29.50
98
70.50
0
0
139
TOTAL
114
22.14
237
46.02
164
31.84
TOTAL GERAL (MULHER E HOMEM)
515
1.833
Legenda: CAS=Casada(o).
SOLT=Solteira(o).
NI/O=Não Informado ou Outros
FONTE: Fichas de Registro de Empregados das Fábricas Suerdieck
(Maragojipe/Cruz das Almas), Pimentel (Muritiba).
Como informa os números acima, do total de
1.318 mulheres registradas nas fábricas de charutos
supracitadas, no período de três décadas, apenas
12.75% declararam-se casadas. Assim, as mulheres
solteiras na região tinham a primazia numérica em relação às demais. Seguidas, proporcionalmente, dos
homens.
É necessário, entretanto, relativizar estes resultados, pois nesta época, muitas mulheres eram casadas “no padre” – expressão usada popularmente para
designar o casamento religioso – e, neste caso, elas
não eram consideradas, legalmente, casadas. No
entanto, conviviam com seus companheiros/cônjuges
considerando e absorvendo as mesmas regras de convivência conjugal do casamento que ocorria dentro das
formalidades oficiais, por este configurar-se como um
valor social e moral de alta relevância para aquela sociedade. Segundo o redator do jornal Correio de são
Félix:
Indiscutivelmente, o casamento, nas suas devidas condições, é uma grande felicidade; é o
aurorear de uma nova vida, pontilhada de ternuras e esperanças; é a iniciação de uma exis-
tência nova, para novos surtos de trabalho e de
fé, para a segurança do futuro, que deve ser a
preocupação maiór daqueles que se unem e
vão constituir famílias. (DANTAS, 1942, n.º 67).
O casamento civil não era tão comum entre as
mulheres das camadas mais baixas daquela população, por ser distante de sua realidade econômica e social, considerado um ato e um valor da elite motivado por
interesses econômicos e sociais. Enquanto que, ser
uma mulher solteira não significava apenas aquela que
não fosse casada, mas a mulher livre, sem marido e passível de envolvimento em relações amorosas clandestinas, situação em que muitas mulheres se encontravam,
embora quisessem fugir, pois era um comportamento,
radicalmente, rejeitado pelos valores morais daquela
sociedade.
Assim, é que o casamento na igreja era entendido e vivido por essas mulheres como uma válvula de
escape, uma opção para se aproximarem do ideal
comum – a convivência conjugal reconhecida – à todas
as mulheres daquela época e contexto e de não serem
enquadradas na categoria de "solteiras", além do casamento religioso ser mais acessível em termos de custos
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 01-06, jan./jun., 2013.
05
Elizabete Rodrigues da Silva
que o casamento civil.
Enfim, dados referentes ao estado civil, grau de
instrução, status econômico e traços étnicos/raciais de
uma população tão heterogênea e dinâmica no percurso de sua história não são, certamente, suficientes para
delinear sua identidade sociocultural, mesmo se tratando especificamente de uma população de trabalhadoras/trabalhadores, tampouco determinam, por si só, as
origens biossociais desse grupo. Contudo, esses
dados, no conjunto, são representativos e permitem
uma aproximação do perfil socioeconômico e cultural
das mulheres fumageiras do Recôncavo baiano, na primeira metade do século XX, que fizeram parte desse
cenário e que, certamente, abrigaram a mesma crença
subjetiva em uma procedência comum.
sil/IBGE. Rio de Janeiro: 1948. Disponível em:
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LOCAL
Arquivo Municipal São
Félix -BA
Arquivo Muni cipal São
Félix -BA
LOCAL
MAÇO
P/ANO
JORNAL
09/08/1942 Correio de São Félix (DANTAS, Pedro J. A família)
10/1990
N.º
PUBLICAÇÃO
67
Edição
Especial
Jornal da Cidade
DOCUMENTO
Fichas de Registro de Empregado da Suerdieck. (1906 a 1998)
Biblioteca da FAMAM
(Cruz das Almas -BA)
06
Fichas de Registro de Empregado da Empresa C. Pimentel S.A. (1930 a 1988)
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 01-06, jan./jun., 2013.
SCHOPENHAUER E A RECUSA DA RAZÃO COMO FUNDAMENTO DA MORAL
José Clerison Santos Alves*
[...] a ação e o comportamento do homem se diferenciam bastante da
ação e do comportamento animal, e como semelhante diferença deve
ser vista tão-somente como consequência da presença de conceitos
abstratos na consciência.
(Schopenhauer. O Mundo como vontade e representação.)
Neste artigo, mostraremos que, na filosofia de Schopenhauer, não é possível fundamentar a moral a partir da
faculdade de razão. Pois a razão, em seu sistema, possui apenas uma função lógica, em outras palavras, ela não
tem nada a ver com a moralidade. Nesta medida, apresentaremos a crítica de Schopenhauer ao formalismo da
moral kantiana. O filósofo recusa a distinção kantiana entre razão prática e razão teórica, pois, na sua visão, a razão
não é uma faculdade do incondicionado, ou seja, ela não pode emitir leis puras para conduzir o agir humano. Na
concepção de Schopenhauer, o imperativo categórico não tem poder para fundamentar a moral, pois este, no seu
entender, se apoia em meros conceitos abstratos e vazios de conteúdo. À diferença de Kant, o filósofo sustenta que
a moral precisa ter uma base empírica.
Palavras-chave: Entendimento. Razão. Vontade. Moral. Liberdade. Compaixão.
In this article, we show that, in the philosophy of Schopenhauer, cannot justify the moral from the faculty of reason.
For reason, in his system, has only one logical function, in other words, it has nothing to do with morality. To this
extent, we present Schopenhauer's criticism of Kantian moral formalism. The philosopher refuses the Kantian
distinction between practical reason and theoretical reason, because, in his view, the reason is not a faculty of the
unconditioned, that is, it cannot issue laws to conduct pure human action. In Schopenhauer's view, the categorical
imperative has no power to support the morale, because this, in his view, rests on mere abstract concepts and empty
of content. Unlike Kant, the philosopher argues that morality must have an empirical basis.
Keywords: Understanding. Reason.Will. Moral. Freedom. Compassion.
INTRODUÇÃO
No prefácio de O Mundo, Schopenhauer evidencia que a sua filosofia é a expressão de um pensamento
único no que concerne à Ética, à Estética e à Metafísica.
Para o filósofo, todas as partes conservam a unidade
desse pensamento único, em outras palavras, há uma
espécie de coesão orgânica entre as partes
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 19-20). Ademais, mesmo
que cada parte seja visivelmente independente, cada
uma resguarda a expressão do todo. No livro IV de sua
obra magna, o filósofo desenvolve a sua ética não prescritiva. Para isso, ele se recusa a tomar como ponto de
partida uma metafísica no sentido dogmático, como também, rejeita a distinção kantiana de razão prática e
razão teórica. Além disso, Schopenhauer afirma que a
filosofia possui um caráter puramente teórico. Vejamos
isso, em suas palavras:
A filosofia nada mais pode fazer senão interpretar e explicitar o existente, a essência do
mundo – que se expressa de maneira compreensível in concreto, isto é, como sentimento de
cada um – e trazê-la ao conhecimento distinto e
abstrato da razão, em todas as suas relações
possíveis e em todos os pontos de vista.
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 354)
Segundo Schopenhauer, a abordagem filosófica
será sempre abstrata, pois a própria filosofia é a expressão de um esforço contínuo para interpretar e explicitar
o mundo e as coisas por meio dos conceitos abstratos
da razão, levando sempre em consideração todas as
suas relações possíveis. Partindo desse ponto de vista
puramente abstrato da filosofia, no que tange à expressão da existência das coisas, vê-se que a abordagem
filosófica da ética schopenhaueriana possui um cunho
estritamente abstrato, e, por esse motivo, não pode ser
*Mestre em Filosofia (Universidade Federal da Bahia); Professor da Faculdade Maurício de Nassau e da Academia de Polícia Militar da Bahia. Email: [email protected]
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
José Clerison Santos Alves
prescritiva. Na concepção do filósofo, para tratar da
ética não é necessário ser bom, virtuoso e dotado de
uma consciência que julgue certos casos com rigor,
mas apenas ter condições “de fundamentar filosoficamente e expor in abstracto o significado moral das
ações”(SCHOPENHAUER, 2005, p. 317). Nesta medida, o filósofo apresenta o lema: “Pregar a moral é fácil,
fundamentar a moral é difícil”. O mais importante na
ética schopenhaueriana é inquirir¹, não prescrever. Em
suas palavras, podemos ver isso da seguinte forma:
[...] toda filosofia é sempre teórica, já que lhe é
sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa, não importa o quão próximo seja o objeto de investigação, e sempre
inquirir, em vez prescrever regras. Tornar-se
prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis
aí pretensões antigas que uma intelecção mais
perspicaz fará por fim a filosofia abandoná-las.
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 353)
Como vimos nos capítulos anteriores, “todo valor
do conhecimento abstrato reside sempre na sua referência ao conhecimento intuitivo” (SCHOPENHAUER,
2005, p. 139). Neste sentido, devemos levar em consideração que o conhecimento imediato e intuitivo, que
dá origem à virtude e à negação da vontade, é diferente
do conhecimento mediato e abstrato que é produzido
pela razão. A distinção entre conhecimento intuitivo e
conhecimento abstrato é fundamental para que possamos compreender o modus operandi da ética schopenhaueriana. No Livro I de O Mundo, Schopenhauer, ao
tratar da ética estoica (Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p.
148), sustenta que o mais importante é que a filosofia
transfira o conceito para a vida e não a vida para o conceito (Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 147).
Na filosofia de Schopenhauer, o domínio ético se
iguala ao estético. Aqui, as regras prescritivas e o pensamento conceitual não são o que nela há de essencial.
Neste sentido, não podemos ensinar a virtude e nem a
genialidade. Na visão do filósofo, assim como o conceito é infrutífero para a virtude, ele também o é para a arte.
Depreenda-se daí, que, na perspectiva do autor de O
Mundo, os nossos sistemas morais religiosos e a nossa
ética não podem produzir homens virtuosos, nobres e
santos e nem a nossa estética pode produzir poetas, pintores e músicos (Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 353354).
No sistema de Schopenhauer, o problema do
conhecimento está, mais do que em qualquer outro sistema filosófico, estritamente vinculado ao problema do
valor. Por sua própria constituição basilar, a filosofia
schopenhaueriana atrela o problema da essência ao
problema do valor (Cf. CASSIRER, 1957, p. 522). Aqui,
a ética funciona como uma espécie de farol que serve
para iluminar os caminhos percorridos pela metafísica,
ao passo que recebe desta a plena claridade acerca
dos seus próprios fundamentos últimos. Ademais, essa
interdependência está presente em todas as partes da
filosofia schopenhaueriana: “Sua ação determinante se
estende à teoria do conhecimento, cuja orientação é,
em aparência, puramente teórica” (CASSIRER, 1957,
p. 522).
É importante destacar que a filosofia de Schopenhauer não recebe seus maiores impulsos da simples
intuição do ser do mundo, mas sim da experiência do
sofrimento que encontramos nele. De acordo com o filósofo, o ponto de partida do problema filosófico e de sua
resolução não pode ser encontrado numa dúvida lógica
ou em uma certeza lógica mediata, senão na certeza
verdadeiramente imediata do mal físico e moral do próprio mundo. Segundo Schopenhauer, a solução para o
problema filosófico só será encontrada a partir do
momento em que compreendermos, claramente, que o
mundo não é uma manifestação de um Deus – uma teofania – e sim uma manifestação e obra de uma vontade
cega de viver. Nas palavras de Schopenhauer, vemos
da seguinte maneira: “Se o mundo é uma teofania,
então tudo que faz o homem, e faz o animal, é divino e
excelente: nada se pode censurar e nada se pode elogiar frente à outra coisa: assim, não temos ética alguma”
(SCHOPENHAUER, 1958, p. 646).
No livro I de O Mundo, é possível notar que Schopenhauer apresenta uma concepção “instrumental” da
faculdade de razão (Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p.
141). Para ele, a razão é uma faculdade que possui apenas uma função lógica, uma vez que ela produz apenas
os conceitos abstratos (as representações abstratas),
que, unidos à linguagem, servem tão somente para fixar
o conhecimento que a fugacidade do tempo deixaria
escapar. Enquanto Kant pensa a faculdade de razão
como uma faculdade legisladora de imperativos morais
para as ações, em Schopenhauer, a razão responde
apenas pelo aspecto lógico e teórico no que concerne
ao campo dos fenômenos. Aqui, o uso prático da razão
diz respeito apenas à técnica, e, consequentemente,
não poderá ter um uso moral. Podemos notar esta
mesma percepção em Sílvia Faustino, quando escreve:
Agir racionalmente significa, para Schopenhauer, simplesmente agir conforme leis da lógica,
utilizando conceitos gerais e guiando-se por
representações abstratas – nada a ver, portanto, com a moralidade. Nenhuma decisão moral
tem valor intrínseco, já que esta pode ser tanto
boa quanto má e servir tanto aos virtuosos
quanto aos malvados e injustos. (FAUSTINO,
2007, p. 259)
Toda obra da razão e dos conceitos abstratos
¹A novidade da ética de Schopenhauer consiste na sua proposta de ser uma ética de cunho “descritivo”. As éticas anteriores a dele – a ética
aristotélica das virtudes e a ética cristã – eram “normativas”, pois acreditavam que a virtude poderia ser ensinada e que também era
possível prescrever normas morais para conduzir as ações humanas. Para Schopenhauer, a “virtude” não pode ser ensinada.
08
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral
não nos leva, em última análise, para além do conhecimento de determinadas relações do real (que são produzidas pela ação do princípio de razão suficiente), mas
sem dizer e nem determinar o que o real é em sua verdadeira essência. Para Schopenhauer, o núcleo da
natureza é o coração do ser humano: só a nossa própria
experiência interior, em que nos conhecemos, não
como entes que consideram e julgam, que arguem e
deduzem, mas sim como seres dotados de vontade,
nos entrega a chave para todos os problemas da física e
da metafísica. Trata-se, neste sentido, de uma experiência fundamental, que não nos limita a captar a
essência, simplesmente, pensando-a e, portanto, de
fora. É a partir dessa experiência singular que, em certa
medida, podemos captar diretamente o que realmente
somos. É aqui que podemos descobrir, em partes, a
solução do mistério.
Schopenhauer postula que a vontade é o substrato de todo fenômeno. Para o filósofo, a vontade metafísica possui em si mesma um caráter moral. Porém,
isso não significa dizer que a vontade metafísica possa
ser considerada como uma espécie de agente moral
concebido desde o paradigma da vontade humana.
Aqui, a vontade humana concerne apenas ao grau superior de objetivação da vontade. Neste sentido, ela coincide com a vontade moral. Contudo, essa coincidência
não deriva diretamente da sua condição humana, mas
apenas do fato de ser vontade. Segundo Schopenhauer, o homem é o mais alto grau de objetivação da vontade porque nele a vontade se manifesta de forma mais
clara e adequada. Ora, o que o fenômeno humano oferece de mais distintivo em relação aos outros fenômenos naturais? Para o filósofo, a faculdade de razão é a
causa dessa distinção.
Na filosofia de Schopenhauer, a faculdade de
razão não pode dar conta da privilegiada adequação do
fenômeno humano a uma vontade que é, por natureza,
irracional. Essa adequação tem sua raiz, mais precisamente, em algo que a faculdade de razão não origina, e
sim condiciona: a moralidade. Na concepção do filósofo, a razão, de forma alguma, pode ser considerada
como a fonte da moralidade, em outras palavras, não é
possível extrair a moral da razão. Segundo Schopenhauer, a razão condiciona a moralidade na medida em que
ela proporciona ao homem a percepção do passado e
do futuro, que carece o animal, tornando possível a possibilidade de negar ou afirmar a vontade. Aqui, podemos encontrar o núcleo e a base de todo comportamento moral. Sendo assim, é possível afirmar que o caráter
privilegiado do homem em relação aos mais variados
fenômenos naturais não estriba na sua simples racionalidade, e sim na própria possibilidade de negar ou afirmar o substrato de toda realidade: a vontade.
O aspecto mais singular do fenômeno humano
não reside na capacidade de produzir as representações abstratas, senão na constatação de que nele se
manifesta o caráter moral da vontade metafísica. Além
disso, o reconhecimento de que este fenômeno não
pode manifestar-se em outros graus de objetivação, por
carecer das condições necessárias para isso, contribui,
ainda mais, para fortalecer essa perspectiva. O caráter
moral da vontade se manifesta no homem; mas não em
suas ações, que são meramente fenomênicas, e, por
conseguinte, moralmente neutras, mas sim em um
único e milagroso acontecimento por meio do qual a
liberdade da vontade se manifesta no fenômeno, a
saber: a abnegação. A moralidade, no sistema de Schopenhauer, não é uma característica exclusiva da vontade humana. Neste sentido, não queremos dizer que a
vontade se torne moral no homem, já que, como vimos
anteriormente, o fenômeno humano, por causa de suas
particularidades, não consegue dar conta da moralidade como tal, mas apenas de uma moralidade consciente. Enquanto a moralidade comumente pensada tem
por fundamento a racionalidade, a moralidade consciente consiste em ver o mundo numa perspectiva correta, em outras palavras, na constatação de que a moral
não pode ter a racionalidade por fundamento.
Na filosofia de Schopenhauer, a ética se nos apresenta como a máxima expressão do seu pensamento.
Pois, para o filósofo, ela é a chave para a solução do
enigma do mundo. Segundo Schopenhauer, a ética descritiva expressa, com uma maior clareza possível, esse
“quê” do mundo procurado pela filosofia. Porém, isso
não significaria atribuir a todos os fenômenos naturais
um caráter moral. Seria absurdo, com efeito, qualificar
de moral a caída de uma folha seca. Não menos absurdo seria, dentro da perspectiva da filosofia schopenhaueriana, considerar a ação humana como tal. No entender de Schopenhauer, as ações humanas são, assim
também como os fenômenos naturais, incapazes de
moralidade. A moralidade do homem não reside em
suas ações propriamente ditas, mas apenas em sua
essência: a vontade. Aqui, a mesma vontade que constitui a essência da força natural que origina a caída de
uma folha seca é também aquela que produz a ação
humana. Para Schopenhauer, não podemos conferir
moralidade nem às ações e nem à razão, mas apenas à
vontade².
Na concepção de Schopenhauer, o mundo e
nossa própria existência aparecem necessariamente
como enigmas, precisamente, porque a essência interior
e originária do mundo não é racional; de qualquer maneira, o mundo, não é, em todo caso, absolutamente transparente à nossa razão. Neste sentido, o desafio é aceitar
a finitude da razão e levar em consideração a impossibili-
²Em Schopenhauer, o significado da ética estriba, em última instância, no caráter intrinsicamente moral que adquire a vontade em seu sistema.
Em suma: a vontade moral corresponde à mesma vontade metafísica. Mas, para o filósofo, a vontade metafísica, no que tange à questão da
moral, adota um caráter muito particular, a saber: a maldade.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
09
José Clerison Santos Alves
dade de oferecer soluções definitivas para os problemas. Para o filósofo, fazer filosofia é também aprender a
viver sem respostas últimas. Schopenhauer expõe o verdadeiro sentido do filosofar com a seguinte passagem
com que abre o segundo volume de O Mundo:
No espaço infinito existem inúmeras esferas
luminosas, em torno de cada uma delas gira
aproximadamente uma dúzia de outras menores iluminadas por elas, e, que, quentes em seu
interior, estão cobertas de uma crosta sólida e
fria sobre a qual uma capa tem engendrado
seres viventes e cognoscentes: esta é a verdade empírica, a realidade, o mundo. Mas para
um ser pensante é uma situação penosa
encontrar-se numa daquelas inumeráveis esferas que flutuam livremente no espaço infinito,
sem saber de onde vem e nem aonde vai, e ser
nada mais do que um dos inumeráveis seres
semelhantes que se amontoam, se agitam e se
atormentam, nascendo e perecendo rapidamente e sem trégua dentro do tempo sem começo e sem fim: nada há ali de permanente,
somente a matéria e a repetição da mesma variedade de formas orgânicas através de vias e
canais inalteráveis. (SCHOPENHAUER, 1958,
p. 03)
Com esta passagem, podemos notar que Schopenhauer escancara o abismo que revela a falta de sentido da vida humana. Essa explícita ausência de uma
teleologia em sua filosofia é o background da sua concepção de razão. Desprezando o reino dos fins, alicerce
de muitos sistemas morais, Schopenhauer propõe uma
nova forma de pensar a ética, na medida em que não
pode aceitar que o eu – enquanto núcleo essencial do
ser humano – seja assimilado ao intelecto, entendimento ou razão (Cf. FAUSTINO, 2007, p. 260). Com isso,
temos aqui a noção de uma subjetividade na qual o intelecto não se define como parte essencial do eu. Pois,
para o filósofo, o ser humano, em sua essência, é pura
vontade. De forma curiosa, no segundo volume de O
Mundo, Schopenhauer compara o intelecto com um
parasita que habita o corpo (Cf. SCHOPENHAUER,
1958, p. 201). Aqui, temos a imagem de um intelecto
que parece surgir mais como um acidente em nossa
consciência. Todas as funções orgânicas do nosso corpo, como também a nossa consciência de modo geral,
se nos apresentam como condicionadas por uma vontade inconsciente e indestrutível.
Na filosofia de Schopenhauer, o conhecimento é
reduzido apenas a uma função puramente biológica, ou
seja, ele é o instrumento para os impulsos imperativos
da vida. Ele indica a estes impulsos os estímulos e os
obstáculos; ilumina o caminho que estes precisam
seguir para alcançar seu fim determinado; e, por último,
como conhecimento racional abstrato, dá a escolher
entre diversas “possibilidades” e mune a vontade dos
motivos para essa opção (Cf. CASSIRER, 1957, p.
501). Em suma, todo conhecimento empírico sofre a
ação imperativa de vontade, como ressalta Ernst Cassirer, até mesmo a ciência, que representa uma das mais
altas funções teóricas, aqui, se revela como sujeita aos
impulsos e decisões da vontade (Cf. CASSIRER, 1957,
p. 501).
No entender de Schopenhauer, a estrutura de
toda teoria está secretamente condicionada e dominada pela “ditadura” da vontade. Nesta medida, até
mesmo a ética está sujeita aos seus comandos imperativos. Para Schopenhauer, o significado da epistemologia e da metafísica é valorizado apenas na perspectiva
em que se vincula a uma análise e solução do problema
da moral, que, para ele, é por excelência o problema de
toda a filosofia. Como Oscar Damm bem coloca, o centro de gravidade de todo o sistema de Schopenhauer
encontra-se em sua ética (Cf. TSANOFF, 1910, 512).
A CRÍTICA DE SCHOPENHAUER À MORAL
KANTIANA
Para que possamos compreender a crítica de
Schopenhauer à fundamentação racional da moral, fazse necessário realizar uma passagem pela ética kantiana. Schopenhauer se considerou um verdadeiro seguidor da filosofia kantiana, e, em determinados momentos, chamou a si mesmo de kantiano. Contudo, a sua
fidelidade à herança kantiana não se estende à ética de
Kant. Ao contrário da filosofia teórica de Kant, a qual
Schopenhauer via como expressão dos maiores
insights que já foram produzidos pela mente humana,
ele considerou a filosofia prática de Kant como uma verdadeira catástrofe intelectual. Para o filósofo, essa
catástrofe foi produto do amor de Kant pela simetria
arquitetônica, do temor adquirido pela crescente reputação filosófica e dos efeitos debilitantes da velhice (Cf.
SCHOPENHAUER, 2001, p. 19-22).
No escrito Sobre o Fundamento da Moral de
(1840), não premiado pela Real Sociedade Dinamarquesa³, Schopenhauer evidencia a necessidade de primeiro expor e criticar a moral kantiana, como uma espécie de preparação para desenvolver o seu raciocínio.
Nesta medida, o filósofo afirma a sua intenção: “[...]
declaro francamente minha intenção de demonstrar
que a Razão Prática e o imperativo categórico de Kant
são suposições injustificadas e inventadas para provar
que também a ética de Kant carece de um fundamento
sólido” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 16). É importante
levar em consideração que, nesta obra em particular,
Schopenhauer realiza sua crítica à moral kantiana sem
fazer uso de sua metafísica da vontade. Neste escrito, o
³Por causa das inúmeras ofensas dirigidas a Hegel e a outros filósofos, a Real Sociedade Dinamarquesa se recusou a premiar o escrito de
Schopenhauer.
10
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral
filósofo se debruça, de forma analítica, sobre o problema que envolve o verdadeiro fundamento da moral.
Também na Crítica da filosofia kantiana, obra que foi
publicada como apêndice ao O Mundo como vontade e
representação, Schopenhauer não recorre à sua metafísica da vontade para solapar a ética kantiana.
Schopenhauer reserva um terço da obra Sobre o
fundamento da moral para expor, de forma detalhada,
sua crítica à moral kantiana. No primeiro momento, o filósofo reconhece a grande contribuição de Kant no que
se refere a uma suposta fundamentação de uma ética
não dogmática. No entender de Schopenhauer, a moral
kantiana estava à frente das demais de sua época. Ao
questionar a fundamentação kantiana da moral, Schopenhauer pretendia também refutar toda moral produzida na sua época, e, de modo particular, a que estava em
voga na Alemanha, a saber: a moral dos pós-kantianos.
No segundo momento, o filósofo apresenta a sua moral
como diametralmente oposta à moral kantiana, mostrando que há uma diferença basilar no que concerne
ao fundamento de sua ética frente ao fundamento da
ética kantiana.
Partindo de uma visão antiformalista da ética,
Schopenhauer argumenta que a ética kantiana começa
com um passo em falso, pois, na visão dele, Kant assume uma concepção controversa de ética quando afirma: “Numa filosofia prática não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece, mas leis daquilo que
deve acontecer, mesmo que nunca aconteça”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 20-21). Para o filósofo,
Kant falhou na justificação dessa afirmação, e, por esse
motivo, ela pode ser considerada como uma decisiva
“petitio principi” (Cf. SCHOPENHAUER, 2001, p.23).
Schopenhuaer questiona:
Quem nos diz que há leis às quais nossas
ações devem submeter-se? Quem vos diz que
deve acontecer o que nunca acontece? O que
vos dá direito de antecipá-lo e logo impor uma
ética na forma legislativo-imperativa como a
única para nós possível? Digo, contrapondome a Kant, que em geral tanto o ético quanto o
filósofo têm de contentar-se com a explicação e
com o esclarecimento do dado, portanto com o
que é, com o que acontece realmente, para chegarem ao seu entendimento, e que eles aí têm
muito que fazer, muito mais do que foi feito
desde há séculos até hoje.
(SCHOPENHAUER, 2001, p 23)
O filósofo da vontade discorda de Kant quando
este afirma, no prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que existem leis morais puras (Cf.
KANT, 1974, p. 200-201). Ora, por que Schopenhauer
não aceita a afirmação do seu mestre sobre a existência
de leis morais puras? Porque, para ele, o conceito de
uma lei nos remete à lei cívil (“lex”): “uma instituição
humana que repousa no arbítrio humano”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 23). Além disso, o concei-
to de lei, quando aplicado à natureza, ganha um caráter
metafórico, pois uma parte dos modos de proceder dela
é conhecida a priori e outra é apreendida a posteriori.
Esses modos de proceder da natureza são mantidos
sempre de forma constante, e, por esse motivo, “nós os
chamamos metaforicamente de leis da natureza”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 23-24).
Para Schopenhauer, só uma pequena parte dessas leis da natureza pode ser vista a priori. Na concepção do filósofo, essa pequena parte fora reunida por
Kant, de modo perspicaz, sob o nome de Metafísica da
Natureza. Segundo ele, também, a vontade humana se
nos apresenta como submetida a uma lei, a saber, a lei
da motivação: a motivação é uma forma da lei de causalidade, isto é, “uma causalidade mediada pelo conhecimento” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 23-24). Sendo o
homem parte da natureza, a vontade humana estará
condicionada a uma lei: “[...] uma lei estritamente
demonstrável, inviolável, sem exceções, irrevogável,
que não traz consigo uma necessidade “vel quasi” (de
uma certa maneira) como imperativo categórico, mas
uma necessidade efetiva” (SCHOPENHAUER, 2001, p.
23-24).
Segundo Schopenhauer, toda ação só acontece
na condição de consequência de um motivo suficiente
(Cf. SCHOPENHAUER, 2001, p. 23-24). A lei da motivação, a qual está submetida à vontade humana, é uma
lei da natureza. Neste sentido, a lei da motivação é
necessária por si mesma, pois é possível dar provas de
sua existência. Em contrapartida, as leis morais, para
Schopenhauer, não são necessárias por si mesmas,
uma vez que elas encontram suas referências nas doutrinas religiosas ou nas instituições estatais. Por esse
motivo, as leis morais “não podem ser admitidas como
existentes sem prova” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 2324). Schopenhuaer sustenta que Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, ao argumentar que a
lei moral deve trazer consigo uma espécie de necessidade absoluta comete uma “petitio principii”. O filósofo
pergunta:
Como se pode falar de necessidade absoluta
para estas supostas leis morais – como, por
exemplo, ele cita o “tu não deves ('sollt') mentir”
– já que elas, reconhecidamente e como ele
mesmo garante, na maioria das vezes e
mesmo via de regra, não têm êxito?
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 24)
Schopenhauer se recusa a admitir a existência
de uma necessidade absoluta para as leis morais. O filósofo argumenta que Kant, no prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tenta justificar uma
absoluta necessidade de leis morais, dando como
exemplo o comando: “tu não deves mentir” (Du sollt
nicht lügen). Schopenhauer percebe que o comando
kantiano “Du sollt” (tu deves) encontra sua origem na
ética teológica, mais precisamente, nos dez manda-
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
11
José Clerison Santos Alves
mentos do Decálogo Mosaico. Na visão de Schopenhauer, quando Kant utiliza, de forma ingênua, a tradução arcaica do alemão para o “Du sollt” e não a forma
padrão “Du sollst” ele deixa transparecer claramente a
influência teológica em sua ética (Cf. JANAWAY, 1999,
p. 255-256). Para Schopenhauer, Kant segue inconscientemente uma tendência de, após anos de filosofia
atrelada ao cristianismo, levar os postulados teológicos
para dentro da ética filosófica.
Na perspectiva do filósofo da vontade, o grande
problema da ética teológica reside na sua essência “ditatorial”. Neste campo, a ética é movida por comandos
categóricos, que, internamente, representam a “vontade de Deus”. Na visão de Schopenhauer, a ética filosófica deve colocar essa concepção de ética à prova. No
entender dele, Kant falhou quando tentou justificar a
sua concepção de ética. Schopenhauer argumenta
que Kant, ao vincular a ética à lei, acaba se colocando
numa situação delicada, uma vez que este rejeita a teologia como base da moralidade. Schopenhauer concorda com a afirmação kantiana de que a ética é distinta e
independente da teologia, mas argumenta que essa afirmação implica numa constatação de que a ética filosófica é também independente dos conceitos morais teológicos.
Kant utiliza os conceitos teológicos como “lei
moral”, “comando”, “dever” e “obrigação” em sentido
categórico. No entanto, Schopenhauer afirma que
esses conceitos precisam de um contexto teológico
para fazer sentido. Por exemplo, o comando “tu não
deves mentir” (Du sollt nicht lügen) pressupõe a existência de um comandante para que possa ser conotativamente efetivo, isto é, ele deve ser imaginado como
dotado de uma força interna para que possa ser executado mediante uma punição ou uma recompensa. Dentro de um contexto teológico, Deus serve como comandante. Ao rejeitar o contexto teológico, Kant termina por
solapar os conceitos básicos de sua moral. De acordo
com Schopenhauer, quando esses conceitos são separados do contexto teológico, local de onde eles vieram,
eles perdem todo o significado.
Cacciola, em sua obra Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, ressalta que o criticismo de Kant,
na visão de Schopenhauer, teria perdido sua força inicial na segunda edição da Crítica da Razão Pura. Segundo ela, o filósofo acusa Kant de uma espécie de “recaída no dogmatismo” (Cf. CACCIOLA, 1997, p. 20). Essa
“recaída”, na concepção dele, trata-se de uma brecha
que Kant teria deixado em sua própria filosofia, na perspectiva de atenuar o confronto entre a filosofia e a teologia, que, por sua vez, terminou permitindo a entrada dos
postulados teológicos. É na ética de Kant que, segundo
Schopenhauer, essa “recaída” fica mais evidente, pois
ele acolhe os postulados teológicos: Deus, imortalidade
da alma e liberdade (Cf. CACCIOLA, 1997, p. 20).
No entender de Schopenhauer, Kant, na Crítica
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da Razão Pura, não soube definir rigorosamente a
essência do entendimento e da razão. Na Crítica da filosofia kantiana, o filósofo apresenta vários trechos da Crítica da Razão Pura que, na sua visão, demostram a dificuldade de Kant em determinar, de modo preciso, a
essência do entendimento e da razão. Schopenhauer
afirma que “Kant nunca chegou a distinguir claramente
o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 542). Ora, por que o autor
de O Mundo considera tão importante a apresentação
de uma definição concisa dessas duas faculdades do
conhecimento? Podemos obter uma resposta a partir
da seguinte passagem:
[...] se Kant [...] tivesse investigado seriamente
em que extensão se dão a conhecer essas
duas faculdades diferentes de conhecimento,
uma das quais é distintiva da humanidade, e o
que, conforme o uso linguístico de todos os
povos e filósofos, se chama razão e entendimento não teria dividido a razão em prática e
em teórica, sem outra autoridade de senão o
intellectus theoreticus e praticus dos escolásticos (que usam os termos em sentido totalmente diferente) e jamais teria feito da razão prática
a fonte das ações virtuosas.
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 542)
A falta de uma definição precisa das duas faculdades do conhecimento (entendimento e razão), na
perspectiva do filósofo, causou algumas falhas na teoria kantiana da representação. Além disso, “este erro de
Kant teria acarretado, segundo Schopenhauer, graves
consequências no domínio da moral” (CACCIOLA,
1997, p. 95-96). A distinção kantiana entre razão prática
e razão teórica, para o autor de O Mundo, é uma prova
viva do erro que foi cometido por Kant: a razão prática
acabou se misturando com a razão teórica, transformando-se assim, numa espécie de órgão capaz de captar o Absoluto. Neste sentido, na concepção de Schopenhauer, a filosofia se tornou vulnerável aos postulados
teológicos, passando com isso a ser uma ancilla theologiae.
Schopenhauer concentra a força do seu ataque
no núcleo da filosofia transcendental, a saber: na concepção de razão. Na visão do filósofo, a distinção kantiana entre as aplicações teóricas e práticas da razão fez
com que a própria razão esquecesse os limites que ela
mesma se impôs no campo teórico, tornando-se, com
isso, no domínio prático, a porta de entrada dos pressupostos teológicos. Assim, sustenta Cacciola:
É no próprio núcleo da filosofia transcendental,
na concepção de razão, que Schopenhauer
localiza o germe que teria sido responsável
pelo retorno ao dogmatismo. A saber, esta
razão, investida do poder de, a partir de si mesma, produzir ideias e buscar legitimamente o
incondicionado, teria de certo modo, “esquecido” as limitações que ela mesma se impôs no
domínio teórico, transformando-se, no interes-
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral
se prático, na fonte de uma causalidade por
liberdade, donde emanaria um dever moral
absoluto, o imperativo categórico.
(CACCIOLA, 1997, p. 20)
Na perspectiva de Schopenhauer, Kant não
soube definir, de modo preciso, o que é a razão nem na
primeira e nem na segunda crítica. Na Crítica da razão
pura, Kant apresenta sete definições da faculdade de
razão: 1. Faculdade dos princípios a priori; 2. Faculdade
dos princípios em oposição ao Entendimento; 3; Faculdade de inferir; 4. Condição permanente de todas as
ações arbitrárias; 5. Condição de prestar conta das afirmações; 6. Faculdade de unir os conceitos do entendimento em ideias; 7. Faculdade de deduzir o particular
do universal. Na visão de Schopenhauer, Kant demonstra, com todas essas definições da faculdade de razão,
a sua dificuldade em determinar com precisão o que é a
razão. Na concepção do filósofo, Kant não consegue
determinar uma única definição da faculdade de razão.
Com isso, no entender dele, surge também uma dificuldade de expor a característica essencial desta faculdade.
Em meio às sete definições da faculdade de
razão encontradas na primeira crítica, Schopenhauer
afirma, nos Manuscritos Póstumos, no texto Zu Kant
(1982), que Kant deriva a razão pura prática da primeira
definição, a saber: faculdade dos princípios a priori. Na
perspectiva de Kant, para que o conhecimento das
ações éticas tenha um caráter universal, ele não pode
ter uma origem empírica, e, por conseguinte, deve derivar da razão. Aqui, a faculdade de razão determina a priori os princípios. Para Kant, a razão apresenta-se como
prática quando realiza o mesmo procedimento do
conhecimento teórico. Nesta medida, da mesma forma
que a razão determina os objetos da experiência no seu
uso teórico, ela também determina os objetos no seu
uso prático, ou seja, ela apresenta leis para as ações.
Kant define a razão teórica como a faculdade dos
princípios a priori, e, além disso, estende essa definição
à razão prática. Entretanto, ao reservar um uso puro prático para razão, na visão do filósofo, ele não leva em consideração as diferenças basilares entre o conhecimento
teórico e o prático. Schopenhauer acredita que o conhecimento teórico e o conhecimento prático são bem distintos, em outras palavras, cada um responde por uma
jurisdição em particular. Para Kant, todo conhecimento
teórico é produzido pelo uso teórico da razão; mas uso
teórico e uso prático também são distintos por jurisdições particulares. Contudo, parece que Schopenhauer
concebe essa distinção de uma forma diferente, em
outras palavras, de um modo mais radical. Essa querela
surge a partir do momento em que Schopenhauer diferencia o processo de determinação de princípios a priori
para os objetos da natureza do processo de determina4
5
ção de princípios para o agir. Pois, para ele, a razão não
pode ser responsável por realizar esses dois processos
de forma igualmente pura e a priori. Em suma, o problema é que Kant chancela o conhecimento teórico e ético
com o mesmo sinal de universalidade e necessidade,
porém, no entender de Schopenhauer, ele não leva em
consideração que a necessidade das formas dessas
duas instâncias do conhecimento é de natureza diversa. Cacciola sustenta: “Schopenhauer discorda de que,
no domínio teórico e também no domínio prático tenhamos uma mesma faculdade exercendo funções diversas” (CACCIOLA, 1997, p. 150).
Com se sabe, o sujeito kantiano do conhecimento é composto pelas formas e pelos conceitos a priori
que, por sua vez, são a condição de possibilidade dos
objetos na experiência. É importante salientar que a
dimensão incondicional das formas a priori da razão teórica diz respeito apenas ao modo como os objetos
devem aparecer a nós. Aqui, a necessidade da dimensão apriorística da razão teórica mostra-se apenas na
experiência, como também, apenas a ela se refere. As
formas a priori presentes na sensibilidade e no entendimento do sujeito transcendental produzem uma necessidade do müssen4 (ter de), e é por meio dela que opera
a razão teórica.
A lei moral que acompanha a razão prática possui uma incondicionalidade diferente da incondicionalidade da razão teórica. O müssen (ter de) que acompanha a razão teórica é diferente do sollen5 (dever) que
acompanha a razão prática. Diferentemente do müssen
da razão teórica, o sollen da razão prática representa a
lei não do que acontece efetivamente, mas sim do que
deve (soll) acontecer. Desta forma, é possível notar que
a necessidade que envolve a razão teórica é diferente
da necessidade que envolve a razão prática. Por esse
motivo, para Schopenhauer, elas não podem derivar de
uma mesma faculdade, uma vez que uma instaura o
müssen e a outra o sollen.
Schopenhauer ressalta, em diversas partes dos
seus escritos, que Kant prestou um serviço imortal à filosofia quando apresentou a distinção entre o a priori e o a
posteriori em sua filosofia teórica. Mas, para o filósofo, o
grande problema de Kant, no que concerne ao problema da moral, foi o de ter utilizado a sua célebre distinção
entre o a priori e o a posteriori, como uma espécie de
médico que oferece o mesmo medicamento para todas
as enfermidades, para fazer com que a faculdade de
razão pudesse oferecer leis puras para o nosso agir.
Schopenhauer condena, de forma enérgica, a assertiva
kantiana de um fundamento a priori para as ações humanas. Nas palavras de filósofo, vemos da seguinte forma:
Desde que Kant transpôs o método que ele
tinha aplicado de modo tão feliz na filosofia teórica para a filosofia prática, tendo querido sepa-
O verbo “müssen” se refere á uma necessidade (necessidade absoluta): “Es ist ein Mus” (tem de ser).
O verbo “sollen” se refere a um dever (sem necessidade absoluta): “Was soll ich tun” (que devo fazer).
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
13
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rar aqui o puro conhecimento a priori do empírico a posteriori, admitiu que, do mesmo modo
que conhecemos a priori as leis do espaço e do
tempo e da causalidade, também, ou de modo
análogo, o fio de prumo moral para o nosso agir
nos é dado antes de toda experiência e se exterioriza como imperativo categórico, como deve
absoluto. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 35)
Na filosofia de Kant, a razão recebe o nome de
prática quando se move para produzir um raciocínio
que desenvolva uma lei para a vontade: o imperativo
categórico é a lei que emana desse processo realizado
pela razão: “Age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1974, p. 223). Aqui, na perspectiva kantiana, podemos encontrar a origem da moralidade. Não
obstante, Schopenhauer acusa a moral kantiana de formalista partindo da constatação de que “só lhe restou
assim, como matéria (Stoff) desta lei, sua própria forma.
Esta não é senão a sua legalidade. A legalidade consiste em valer para todos, portanto, a sua universalidade”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 49). Schopenhauer considera que uma operação puramente intelectual – o
imperativo categórico – não tem poder suficiente para
fundamentar a moral, uma vez que esta se distancia do
real, ou seja, da realidade empírica. Em síntese, na concepção do autor de O Mundo, não podemos fundamentar a moral a partir de meras combinações conceituais
produzidas pela razão. Vejamos isso, em suas palavras:
Combinações artificiais de conceitos de qualquer espécie não podem nunca, quando se
leva a sério o assunto, conter o verdadeiro
impulso para a justiça e a caridade. Este tem,
antes, de ser algo que exige pouca reflexão,
ainda menos abstração e combinação, algo
que, sendo independente da cultura do intelecto, fale a todo homem, mesmo ao mais tosco,
repousando meramente na apreensão intuitiva
e impondo-se imediatamente a partir da realidade das coisas. Enquanto a ética não tiver um
fundamento desta espécie para apresentar, ela
pode promover-se, disputar e exibir-se nos
auditórios, mas a vida real dela zombará.
Tenho por isso de dar ao éticos o conselho paradoxal de primeiro olhar um pouco para vida
humana. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 108)
Segundo Schopenhauer, a contribuição da razão
no que se refere à fundamentação da moral é mínima
ou, até mesmo, nula. Neste sentido, a ética não tem
nada a ver com elucubrações conceituais, já que, na
sua concepção, “o fundamento racional da moral acarreta carência de realidade e de efetividade”
(CACCIOLA, 1997, p. 151). Na visão do filósofo, o “motor” que move a moral deve ser algo que se apoie na
dimensão intuitiva do conhecimento; algo que atue com
violência (Gewalt) para solapar as motivações egoístas
que atravessam as ações humanas. Em suas palavras,
vemos da seguinte forma:
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[...] a moral tem a ver com a ação efetiva do ser
humano e não com castelos de cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria
caso em meio ao ímpeto da vida e cuja ação,
por isso mesmo, seria tão eficaz contra a tempestade das paixões quanto a de uma injeção
para um incêndio. (SCHOPENHAUER, 2001,
p. 52)
Para Kant, a razão é uma faculdade que se refere
“apenas à totalidade absoluta na síntese das condições
e só termina no absolutamente incondicionado, ou seja,
incondicionado em todos os sentidos” (KANT, 2001, p.
342). Porém, essa busca da razão pela totalidade é sempre precária, pois ela “nunca está confinada dentro de
limites determináveis” (KANT, 2001, p. 343).
Em suma, a razão sempre acaba extrapolando
os limites da experiência sensível, e, por esse motivo,
acaba tentando enquadrar os objetos que estão fora da
experiência possível – Deus, o mundo e a alma – dentro
de uma experiência possível. Para resolver esta problemática, Kant afirma que as ideias transcendentais da
razão correspondem apenas a princípios regulativos,
em outras palavras, a princípios não constitutivos (Cf.
KANT, 2001, p. 460). Além disso, ele assegura que os
limites encontrados pela razão no que concerne ao seu
uso especulativo na presença de “o que é” não tem
valor dentro do seu uso prático quando ela produz o
“deve ser” (Cf. KANT, 2001, p. 483). Schopenhauer vê a
saída kantiana, para resolver o problema da faculdade
de razão que sempre tenta ultrapassar os seus próprios
limites constitutivos, como uma catástrofe. Como se
sabe, Schopenhauer, em sua filosofia, pretende romper
definitivamente com a teologia e com todos os conceitos concernentes a ela. Mesmo que, para seu mestre,
os conceitos teológicos correspondam apenas a princípios regulativos, o filósofo da vontade se recusa a admitir a presença deles na ética filosófica. É necessário lembrar que Schopenhauer pretende eliminar todo resquício de teologia da filosofia. Pois, para ele, “um filósofo
deve ser, antes de mais nada, um descrente”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 45). Isso justifica sua hostilidade em relação a todas as formas de religiões positivas e clericais, e, de modo particular, a religião judaica,
que, no seu entender, é uma espécie de realismo, de otimismo e de monoteísmo. Para o filósofo, a lealdade filosófica exige um decidido ateísmo no que diz respeito ao
ato de fazer filosofia.
Schopenhauer assinala que um dos erros da
moral kantiana consiste na sua falta de conteúdo. Para
ele, o imperativo categórico carece de realidade e efetividade. O filósofo afirma que Kant se apoia em meros
conceitos abstratos – em bolas de sabão vazias de conteúdo – para fundamentar a sua moral. Vejamos isso,
em suas palavras:
Temos de nos lamentar pelo fato de que puros
conceitos a priori, sem conteúdo real e sem
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral
qualquer tipo de fundamentação empírica,
nunca poderiam pôr em movimento pelo
menos os homens: de outros seres racionais
não posso falar. (SCHOPENHAUER, 2001, p.
52)
Kant pensa numa filosofia moral que se apoie em
conceitos puros. Pois, para ele, o fundamento da ética
deve ser puro, ou seja, não empírico. Utilizando um
caminho diametralmente oposto ao de Kant, Schopenhauer afirma que a filosofia moral deve se apoiar na
representação, quer dizer, no lado tangível da realidade. Na visão do autor de O Mundo, o fundamento da
ética deve ser encontrado na empiria, uma vez que os
conceitos abstratos da razão, em sua filosofia, não são
construções que se dão a priori, mas sim a posteriori.
Em suma, ao contrário da filosofia de Kant, não existem
conceitos puros na filosofia de Schopenhauer.
Schopenhauer vê o imperativo categórico como
uma formulação egoísta, que, por sua vez, pretende
assumir uma forma universal. O filósofo objeta que, no
sistema de Kant, os animais, por não serem racionais,
foram excluídos da dimensão moral dessa filosofia.
Para o autor de O Mundo, um sistema moral que exclua
a compaixão para com os animais, não pode ser considerado como verdadeiramente moral. Assim, argumenta Schopenhauer:
[...] esta moral filosófica que é [...] uma teologia
travestida depende totalmente da moral bíblica. A saber, porque a moral cristã não leva em
consideração os animais. Estes estão de imediato também fora da lei na moral filosófica, são
meras coisas, meros meios para fins arbitrários, por exemplo, para vivissecção, caçada com
cães e cavalos, tourada, corrida de cavalos, chicoteamento até a morte diante de carroças de
pedra inamovíveis etc. Que vergonha desta
moral de párias, “schandalas” e “mletschas”,
que desconhece a essência eterna que existe
em tudo o que tem vida e reluz com inesgotável
significação em todos os olhos que vêem à luz
do dia. Porém aquela moral só reconhece e considera a única espécie que tem valor a que tem
como característica a razão, sendo esta a condição pela qual um ser pode ser objeto de consideração moral. (SCHOPENHAUER, 2001, p.
77)
No prefácio da tradução brasileira de Sobre o fundamento da moral, Alain Roger afirma que Schopenhauer rompe efetivamente com Kant no início do Livro II de
O Mundo. Para Roger, o “parricídio” acontece quando
Schopenhauer afirma a cognoscibilidade da coisa-emsi, evidenciando que esta afirmação paradoxal, que
seria um escândalo aos olhos de Kant, é o procedimento mais original da sua filosofia (Cf. SCHOPENHAUER,
2001, p. 40). Diferentemente de Roger, Alexis Philonenko, em sua obra Schopenhauer: uma Filosofia da Tragédia, sustenta que a identificação da coisa-em-si com
6
a vontade, ao seus olhos, não ressoa tanto como um
“parricídio”. Segundo Philonenko, é muito mais grave
ver Schopenhauer renunciando o primado da razão prática (Cf. PHILONENKO, 1989, p. 233).
Philonenko ressalta que Kant não pretende propor, em absoluto, uma nova moral – mesmo que uma
minuciosa análise da Fundamentação da Metafísica
dos Costumes possa revelar algumas inovações no
âmbito da moral – ele pretende se restringir a uma formulação exata do pensamento ético. Mesmo que Kant
não altere em nada o conteúdo da ética, ela não deixa
de ser edificante. Porém, o filósofo da vontade se recusa a sustentar o discurso edificante: “seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem
caracteres virtuosos, nobres e santos”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 354). O sollen kantiano é
a necessidade de um querer que se mostra independente do desejo. Mas, para Schopenhauer, entre vontade e desejo existe apenas uma diferença de grau, não
de natureza. É a partir desse momento que a ética de
Schopenhauer adquire uma conotação psicológica,
uma vez que ela se torna uma espécie de descrição psicológica dos conteúdos éticos. Aqui, a vontade se
encontra reduzida ao desejo, com isso, podemos
observar um movimento de “naturalização de todas as
orientações morais”. A ruptura com Kant é clara: “o
autor da Crítica da Razão Prática distingue desejo e vontade; Schopenhauer os confunde” (Cf. PHILONENKO,
1989, p. 234).
Ao confundir vontade com desejo, Schopenhauer nega energicamente o primado da razão prática.
Neste momento, na visão de Philonenko, podemos
encontrar o verdadeiro “parricídio” (Cf. PHILONENKO,
1989, p. 234). Essa negação da razão prática tem como
pano de fundo uma metafísica da natureza, que, por
sua vez, apresenta a vontade como um esforço cego
para obter satisfação. Entenda-se aqui o conceito de
vontade não como princípio racional da ação, e sim
como expressão de uma força cega e irracional que
manipula internamente o corpo.
O que orienta a concepção ética de Schopenhauer é a Gleichsetzung, que pode ser traduzida como uma
espécie de “equivalência” entre vontade e desejo. A concepção de querer schopenhaueriana não será, como
em Kant, para além do desejo, uma função metafísica
positiva, mas sim um querer que se descobrirá sem fim
(Zwecklos). A expressão: “Das Stittengesetz ist das
Endgesetz”6 indicará, com uma triunfal clareza, a ideia
rechaçada por Schopenhauer: ele nega que a lei moral
seja a lei final e descarta com força a ideia de um reino
dos fins, pedra angular da filosofia prática kantiana.
Enquanto Kant pensa numa realização da liberdade
como expressão de uma pura independência; Schopenhauer acredita numa espécie de liberação das paixões
(Cf. PHILONENKO, 1989, p. 235).
A lei moral é a lei final.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
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José Clerison Santos Alves
Kant retira a moralidade do campo fenomenal,
substituindo as considerações empíricas por categorias
a priori.7 Não obstante, ao contrário de Kant, Schopenhauer argumenta que a moralidade deve ser pensada
empiricamente (Cf. MESTROVIC, 1989, p. 431).
Enquanto Kant sustenta que a base da moralidade se
apoia num dever, ou seja, numa obrigação, Schopenhauer afirma que a verdadeira moralidade deve ser baseada na compaixão e no desejo.8 Em síntese, para usar o
dualismo de Schopenhauer entre o “coração” e a “mente”, que é a base da distinção entre “vontade” e “ideia”, o
filósofo alinha a moralidade com o 'coração' e, por conseguinte, vai de encontro à compreensão kantiana da
moralidade, que, por sua vez, considera a moralidade
como um fenômeno da mente e do esclarecimento
(Enlightenment) (Cf. MESTROVIC, 1989, p. 431).
É importante evidenciar que Schopenhauer não
aceita a concepção de razão como intimamente vinculada à ética. No entender do filósofo, não existe necessariamente, uma relação entre o comportamento racional e a ética. Neste sentido, é possível notar a diferença
entre Kant e Schopenhauer. Para o primeiro, é a razão
pura prática que emite a lei para determinar a vontade
na ação moral. Para o segundo, a razão não pode determinar a vontade, pois a vontade é anterior a razão. Na
filosofia de Schopenhauer, a noção de vontade anterior
à faculdade de razão está internamente ligada à metafísica da vontade. Aqui, agir racionalmente não tem nada
a ver com caridade e retidão. O filósofo afirma:
Pode-se pelo contrário agir muito racionalmente, portanto refletida, prudente, consequente,
planejada e metodicamente, seguindo todavia
as máximas mais egoístas, injustas e perversas. Por isso é que, antes de Kant, jamais ocorreu a alguém identificar o comportamento justo,
virtuoso e nobre com o comportamento racional. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 57)
Schopenhauer acredita que a moral kantiana é
essencialmente egoísta. Na sua visão, a razão prática
possui uma base empírica. O filósofo sustenta que a formulação do imperativo categórico – “Age apenas
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal” – não é desinteressada. No seu entender, o imperativo categórico é apenas uma nova versão de uma antiga máxima moral egoísta: “Não faças aos outros o que não queres que te
façam”. Schopenhauer estava determinado em mostrar
que a moral kantiana era apenas a moral teológica disfarçada.
LIBERDADE E DETERMINISMO
Na concepção de Schopenhauer, a filosofia
moral de Kant não conseguiu se distanciar do eudemonismo da antiguidade, pois retomou em sua forma e em
seu princípio uma moral do dever, os pressupostos de
origem teológica. Na sua dissertação de doutorado,
Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente,
Schopenhauer apresentou um determinismo absoluto
no que concerne às ações humanas. O filósofo retoma
o tema do determinismo, por uma segunda vez, no
escrito Sobre a liberdade da vontade (1839). Como crítico do princípio escolástico de “liberdade de indiferença”, Schopenhauer questiona se a vontade humana,
em suas mais variadas manifestações exteriores pode
não ser determinada por nenhum motivo, em outras
palavras, permanecer independente do princípio de
razão suficiente. O filósofo pretende abalar a crença
que possuímos no conceito de liberdade enquanto autonomia.
Segundo Schopenhauer, a motivação é uma
forma da lei de causalidade. Aqui, no entender do filósofo, a ligação entre causa e efeito não é muito clara. Por
esse motivo, surgem muitos equívocos em relação ao
conceito de liberdade. A solução para o problema do
determinismo das ações, que se defronta na filosofia
moral, não pode ser encontrada na distinção entre
razão teórica – que diz o que é – e a razão prática – que
dita o que deve ser. A solução para o respectivo problema pode ser encontrada na distinção entre coisa-em-si
(vontade que se mostra independente do princípio de
razão suficiente) e fenômeno (representação submetida ao princípio de razão suficiente). Em síntese, na perspectiva schopenhaueriana, a liberdade reside no ser e a
necessidade reside no ato.
O filósofo cita a expressão escolástica para legitimar a sua teoria determinista: “operari sequitur esse” (a
ação decorre do ser). Neste sentido, é possível afirmar
que “a responsabilidade moral é a responsabilidade
daquilo que o sujeito é na ocasião fornecida pela ação”
(LEFRANC, 2005, p. 149). Em contraste, ocorre o contrário com o livre-arbítrio: “é a hipótese do livre-arbítrio
que torna incompreensível a responsabilidade transportando a liberdade para o ato” (LEFRANC, 2005, p.
149). É importante assinalar que Schopenhauer não
nega a liberdade: o filósofo retira a liberdade dos atos
de volição e a transfere para vontade enquanto coisaem-si. Em suas palavras, podemos ver da seguinte forma:
7
É importante ressaltar que Kant, em sua filosofia, proibiu expressamente a ligação entre ciência empírica e moralidade. Cf. MESTROVIC,
Stjepan G. Moral theory based on the 'heart' versus the 'mind': Schopenhuaer's and Durkeim's critiques of Kantian ethics.
8
A reputação de Schopenhauer como filósofo é baseada na força da seguinte expressão: “vontade de vida”, o que, às vezes, ele chama de
“coração” – paixão, desejo, sexualidade, inconsciente, compaixão etc. – como uma força superior e mais importante que a faculdade de razão, a
“ideia” ou a “mente”.
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Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral
“operari sequitur esse”. A liberdade não pertence ao caráter empírico, mas tão-só ao inteligível. O “operari” de um homem dado é determinado, necessariamente, a partir do exterior
pelos motivos e a partir do interior pelo seu caráter. Por isso, tudo o que ele faz acontece necessariamente. Mas no seu “esse” aí está a liberdade. (LEFRANC, 2005, p. 96)
A vontade é livre porque ela encontra-se fora do
princípio de razão suficiente. Para Schopenhauer, a resposta para o problema do determinismo já estava presente na filosofia de Kant, mais precisamente, na Crítica da razão pura. Na visão do filósofo, não havia necessidade de Kant ter introduzido, no que concerne a essa
questão, o conceito de razão prática e de autonomia,
mas apenas o conceito de caráter inteligível (intelligible
Charakter) bastaria, aos seus olhos, para resolver essa
problemática. Parece que Schopenhauer não demonstra muito apreço pelas páginas introdutórias da Dialética transcendental. Porém, na Estética transcendental,
o filósofo reconhece a importância da contribuição kantiana. Na Crítica da razão pura, Kant nos oferece uma
definição do que ele entende por inteligível: “Chamo
inteligível, num objeto dos sentidos, ao que não é propriamente fenômeno” (KANT, 2001, p. 478). No entender de Schopenhauer, essa definição não nos direciona, de forma alguma, a uma noção de razão prática. A
partir daí, o filósofo reabilita a expressão kantiana de
“caráter inteligível”, operando uma distinção entre caráter empírico (empirischer Charakter) e caráter inteligível
(intelligible Charakter).
Com isso, o filósofo cria uma oposição entre o ato
e o ser. Neste sentido, podemos notar, do ponto de vista
da metafísica schopenhaueriana, que essa oposição
pode ser pensada em referência a dois atos: um no
campo dos fenômenos e outro no campo da coisa-emsi. Nas palavras do filósofo, vemos da seguinte forma:
O caráter de cada homem isolado, em virtude
de ser por completo individual e não estar totalmente contido na espécie, pode ser visto como
uma Ideia particular, correspondendo a um ato
próprio de objetivação da Vontade. Esse ato
mesmo seria o caráter inteligível, enquanto seu
caráter empírico seria o fenômeno dele. O caráter empírico é absolutamente determinado pelo
caráter inteligível, o qual é sem-fundamento,
isto é, enquanto coisa-em-si, Vontade submetido ao princípio de razão suficiente (forma do
fenômeno). O caráter empírico tem de fornecer
num decurso de vida a imagem-cópia do caráter inteligível, e não pode tomar outra direção a
não ser aquela que permite a essência deste
último. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 224)
Na filosofia de Schopenhauer, a origem do significado moral da ação humana está ligada à doutrina do
caráter inteligível. O pano de fundo da sua teoria do
caráter é a metafísica da vontade. Como se sabe, a vontade se manifesta na representação através dos seus
graus de objetivação. Nos animais, a vontade se objetiva na espécie. No homem, a vontade se objetiva em
cada indivíduo. No pensamento de Schopenhauer, o
caráter consiste na forma empiricamente conhecida,
constante e imutável de uma vontade individual. No
plano da representação, a ação de cada homem é
determinada por sua índole mais íntima, a saber: o caráter inteligível. Nesta medida, todas as ações humanas
correspondem ao caráter empírico – manifestação do
caráter inteligível. Schopenhauer assinala que os motivos não têm poder para determinar o caráter do
homem, mas apenas o fenômeno desse caráter. Isto se
verifica nas palavras do próprio filósofo:
Os motivos não determinam o caráter do
homem, mas tão-somente o fenômeno desse
caráter, logo as ações e atitudes, a feição exterior de seu decurso de vida, não sua significação íntima e conteúdo: estes últimos procedem
do caráter, que é fenômeno imediato da Vontade, portanto sem-fundamento. Que um seja
mau e o outro bom, isso não depende de motivos e influências exteriores, como doutrinas e
sermões; nesse sentido, o caráter é algo absolutamente inexplicável. (SCHOPENHAUER,
2005, p. 201)
Aos olhos de Schopenhauer, uma educação
moral é impossível, uma vez que somente as circunstâncias e o conhecimento dos motivos – por dependerem do intelecto – podem sofrer mudanças. Em síntese,
dentro do direito penal e da pedagogia, através de uma
dinâmica motivacional de recompensa e punição, não é
possível moldar o comportamento do indivíduo para
que ele possa ter uma clareza maior em relação às consequências provenientes de um determinado tipo de
ação. Como se sabe, a partir da teoria de Kant, Schopenhauer desenvolve a noção de caráter inteligível. Para
isso, ele nega o primado da razão prática, separando a
liberdade da razão.
A teoria ética de Schopenhauer é, essencialmente, uma ética da compaixão. Por esse motivo, ela se
opõe a ética kantiana do dever. Como foi dito, a ética de
Kant formula um imperativo que deve funcionar para
conduzir os homens em suas ações. Para Schopenhauer, a moralidade não tem nada a ver com “dever” ou
“obrigação”, e, além disso, não pode ter a faculdade de
razão como fundamento. Aqui, a questão é ver um
mundo na perspectiva correta. O filósofo pontua que
comportamento racional nem sempre pode ser considerado como um comportamento bom.9 Ele acredita
que as ações humanas são formadas mediante a combinação do caráter imutável, presente em cada pessoa,
com um motivo que tem sua origem na consciência de
cada uma delas. Portanto, para o filósofo, todas as
9
É importante assinalar que vontade e razão, na filosofia schopenhaueriana, correspondem a dois conceitos distintos. Por ser anterior a razão, a
vontade exerce um domínio sobre a razão.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
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José Clerison Santos Alves
ações humanas são determinadas, ou seja, não existe
liberdade do ponto de vista das ações humanas.10
Na perspectiva de Schopenhauer, o homem concentra todas as formas da causalidade, por esse motivo, ele se diferencia das demais mudanças que ocorrem dentro do campo fenomênico. Aqui, a mediação do
conhecimento – a motivação – é indispensável no que
concerne ao desenvolvimento das ações humanas:
essa é a especificidade do princípio de razão suficiente
do agir (a autoconsciência é a forma de conhecimento
que atua no motivo). Todas as ações que se referem
aos motivos podem ser caracterizadas como ações
conhecidas pelo corpo do sujeito do conhecimento.
Além disso, esse tipo de conhecimento se dirige ao interior do sujeito. Aqui, as ações são compreendidas como
movimento do próprio corpo.¹¹ É através da experiência
interna (innere Erfahrung) que cada indivíduo reconhece que esses movimentos correspondem aos atos da
vontade provocados por motivos. As sensações são as
reações imediatas da vontade. Os conceitos são reações mediatas.
A partir da sua teoria dos caracteres, Schopenhauer apresenta as três motivações que determinam, de
forma imediata, o agir humano: o egoísmo, a maldade e
a compaixão. Na perspectiva de Schopenhauer, essas
três motivações estão presentes em cada indivíduo em
diferentes proporções. Diante disso, temos aqui três classes de motivos: o bem próprio, o sofrimento alheio e o
bem alheio. Segundo Schopenhauer, um homem de
coração duro nunca poderá se transformar, por meio dos
conceitos abstratos da razão discursiva, num homem
compassivo. Na sua concepção, o coração do homem é
incorrigível. Os conceitos abstratos podem até atuar
para iluminar a inteligência e oferecer outras opções que
determinem os meios para se atingir algo. Mas, mesmo
diante disso, o querer permanece inalterável.
A negação da vontade de viver (Verneinung des
Willens) é a única forma de libertar as ações humanas
do caráter necessário instaurado pelo caráter inteligível. Desse movimento, surge um novo tipo de conhecimento que liberta o fenômeno humano da influência e
do poder dos motivos. Este tipo especial de conhecimento pode ser concebido como uma espécie de consciência da unidade da vontade presente em todos os
fenômenos da representação. Com essa percepção, o
homem deixaria de depender dos motivos. Para Scho-
penhauer, o verdadeiro fundamento da moral reside na
superação da consciência individual e na constatação
de que todos nós fazemos parte da vida universal da
vontade metafísica. Através do caminho empírico, o filósofo tenta encontrar ações que possuam um autêntico
valor moral. Aqui, a ética deve explicar e esclarecer o
que realmente acontece, ou seja, observar como agem
efetivamente os homens e não como eles devem agir.
Em síntese, a ética schopenhaueriana não se propõe a
oferecer leis absolutas para reger o fenômeno humano.
O FUNDAMENTO E PRINCÍPIO DA MORAL
Schopenhauer acredita que o verdadeiro fundamento da moral não reside numa pretensa razão prática, mas sim no “coração” humano. Contudo, o filósofo
não deixa de enunciar um princípio geral: ”Neminem laede, immo omnes, quantum potes, iuva”. (“Não prejudiques ninguém, ao contrário, ajuda a todos quanto puderes”). É importante ressaltar que o filósofo, mesmo diante da sua teoria sobre o caráter imutável, não se contentou com uma psicologia que excluísse todo juízo de
valor. Ao renunciar a moral do imperativo categórico, o
filósofo não renuncia um fundamento para a moral. Por
vias empíricas, Schopenhauer pretende estabelecer a
existência do fenômeno ético.
Schopenhauer sustenta que o egoísmo e a maldade são motivações antimorais: “a motivação principal
e fundamental, tanto no homem como no animal, é egoísmo, quer dizer, o ímpeto para existência e o bemestar” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 120). Imerso em
sua subjetividade, separado por completo de todos os
seres por um abismo, cada indivíduo é para si mesmo o
seu próprio mundo. No âmbito social, o egoísmo é o
combustível que alimenta a guerra de todos contra
todos. Além disso, outros dois móveis alimentam a experiência moral: a maldade e a bondade. É importante ressaltar que a filosofia moral clássica acreditava que era
possível ensinar a virtude e que ninguém poderia ser
voluntariamente maldoso. Contudo, ela esquece que o
sofrimento de um determinado indivíduo pode ser procurado acima de qualquer interesse pessoal – apenas
na perspectiva de fazer o mal pelo mal. Neste sentido,
só o ser humano, nunca o animal, é capaz de cometer
10
Podemos encontrar no seu escrito Sobre a liberdade da vontade, uma complexa discussão sobre o tema. Neste escrito, Schopenhauer nos
apresenta os diferentes sentidos de liberdade, e, finaliza com a afirmação de que a verdade do determinismo não deve servir para legitimar a falta
de responsabilidade para com as nossas ações – questão que, para ele, ainda necessita de uma explicação. Em Sobre a liberdade da vontade,
Schopenhauer nos apresenta uma distinção entre liberdade da vontade e liberdade de ação. A liberdade da ação consiste na capacidade de
fazer alguma coisa, caso um indivíduo queira. Mas, essa liberdade pode ser retirada por obstáculos, por leis, por ameaças ou por danos que
comprometam a capacidade física do sujeito. Para Schopenhauer, existem três tipos de liberdade de ação: a liberdade intelectual, a liberdade
física e a liberdade moral. Todavia, a questão mais importante, em relação a essa problemática da liberdade, é se, de fato, existe liberdade para
desejar entre esse ou aquele curso de uma determinada ação. Visando encontrar uma resposta para este problema, o filósofo apresenta duas
fontes de dados concernentes à questão: a consciência de si e a consciência das coisas distintas do eu.
¹¹É necessário evidenciar que não existe uma relação causal entre os atos da vontade e os movimentos do corpo: ambos são a mesma coisa. A
única diferença que existe entre os atos da vontade e o corpo concerne apenas ao modo como eles são conhecidos. O sujeito do querer não está
submetido à causalidade, em outras palavras, ele não é uma realidade empírica. Aqui, a consciência aparece de forma imediata. As ações do
corpo funcionam como um meio de conhecer os atos da vontade. Em suma, ato da vontade e movimento do corpo são a mesma coisa.
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Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
Schopenhauer e a recusa da razão como fundamento da moral
uma ação “diabólica”.
O egoísmo essencial, que atravessa a existência
de todos os seres, tem sua origem na vontade que se
objetiva na pluralidade dos indivíduos. Essa pluralidade
é condicionada por tempo e espaço, e, por conseguinte,
só pode ser pensada nestes. O filósofo denomina essa
pluralidade de principium individuationis (princípio de
individuação). O princípio de individuação é a base de
todo egoísmo, pois é através dele que a vontade se fragmenta no fenômeno e nos fornece uma consciência individual que, por sua vez, não condiz com a sua verdadeira natureza (a vontade é una). Em cada fenômeno, a
vontade está inteira e indivisível. A pluralidade concerne
apenas aos fenômenos da representação. Essa constatação está presente na dupla consideração schopenhaueriana do mundo: como (als) representação e
como (als) vontade. Não existem dois mundos, mas sim
duas formas diferentes de considerar o próprio mundo.
Schopenhauer rejeita as questões relativas a
obrigações morais, pois não é possível prescrever à
vontade nenhum dever – a vontade é livre. “[...] é uma
contradição flagrante denominar a Vontade livre, e, no
entanto prescrever-lhe leis segundo as quais deve querer: “deve querer!”, “ferro-madeira!”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 354). No entender do filósofo, é um absurdo tentar impor normas para o querer. A
negação do primado da razão prática nasce da constatação de que a vontade é anterior à razão. Além disso, a
razão se nos apresenta como submetida à vontade e
não o contrário. O filósofo cria uma oposição entre egoísmo e ação moral. Deste modo, a ética aparece como
alheia a toda utilidade e finalidade. Na filosofia schopenhaueriana, não é possível compreender o significado
ético através do prisma da finalidade, já que os fins – a
teleologia – só tem lugar no mundo como representação. A liberdade concerne somente à vontade enquanto
coisa-em-si e esta é, por sua vez, sem fundamento
(Grundlos).
Na ética schopenhaueriana, o sentimento moral
é estabelecido pelo próprio caráter do indivíduo – sem a
influência de circunstâncias exteriores. Para Schopenhauer, a moral está intrinsecamente ligada à vontade
metafísica. Por esse motivo, não serão as boas ações
que irão tornar um homem bom. Aqui, é o próprio
homem bom que pratica as boas ações. Segundo o filósofo, o verdadeiro fundamento da moral reside no sentimento de compaixão. Ora, o que vem a ser esse sentimento? Esse sentimento consiste na capacidade de perceber a unidade metafísica da vontade em todos os
seres que compõem a tessitura da representação. No
entanto, essa unidade só poderá ser percebida mediante a junção entre ética e metafísica. A verdadeira motivação moral surge a partir do abandono do princípio de
razão suficiente, onde acontece a superação do princípio de individuação.
CONCLUSÃO
Para tomar o sentimento de compaixão como legítimo fundamento da moral, Schopenhauer altera o modo
de operação da faculdade de razão. O filósofo apresenta
uma divisão entre conhecimento intuitivo (as representações intuitivas) e conhecimento abstrato (as representações abstratas). Por causa dessa divisão, a razão
acaba saindo empobrecida. Em síntese, a faculdade de
razão passa a responder por aspectos meramente lógicos no que concerne ao processo de construção do
conhecimento. À diferença do transcendentalismo kantiano, que considera a faculdade de razão como responsável pela produção dos conceitos puros e das ideias
transcendentais, Schopenhauer oferece uma razão com
uma única função, a saber: a capacidade de produzir
conceitos abstratos. Contudo, na visão do autor de O
Mundo, a razão aparece com uma faculdade essencialmente dependente do entendimento. Aqui, é o entendimento que oferece as regras para a atuação da razão.
Como se sabe, o entendimento (através de sua de categoria de causalidade) unido às formas puras do espaço
e do tempo produz as representações intuitivas. Segundo o filósofo, a faculdade de razão desenvolve as suas
esferas conceituais a partir das representações intuitivas.
Os conceitos produzidos pela razão devem sempre se referir à dimensão intuitiva do conhecimento. Para
o filósofo, quando a razão deixa de observar essa regra
fundamental, ela passa a produzir conceitos vazios de
conteúdo, ou seja, conceitos sem referência empírica.
Por exemplo: Deus, alma, substância etc. Essa superioridade do conhecimento intuitivo em relação ao conhecimento abstrato perpassa todas as obras de Schopenhauer. Na filosofia schopenhaueriana, essa superioridade
do conhecimento intuitivo é apresentada, com muita clareza, na estética, na ética e na metafísica. É no campo
da representação que Schopenhauer desenvolve a imagem de uma razão “instrumental”, ou seja, de uma razão
“passiva”. Com isso, a razão perde todo o protagonismo
de que gozava nos sistemas racionalistas.
É importante evidenciar que a filosofia de Schopenhauer pretende separar a filosofia da teologia, pois
o bom Deus do cristianismo não pode dividir o mesmo
espaço com uma força cega e sem fundamento: a vontade. Schopenhauer ambiciona suprimir toda teleologia
e teologia presentes na filosofia. Neste sentido, os conceitos teológicos nem servem como acessórios. Essa
aversão à teologia se estende à distinção kantiana de
razão teórica e razão prática, pois o filósofo acredita
que a moral kantiana é uma moral teológica disfarçada,
e que Kant adota os conceitos teológicos em sua filosofia moral, a saber, a ideias transcendentais da razão.
Schopenhauer rechaça a teoria kantiana que considera
a razão como a faculdade das três ideias do incondicionado (Deus, alma, mundo). Segundo o filósofo, a facul-
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dade de razão não tem nada ver com o pensamento do
incondicionado: “o essencial na razão não consiste de
maneira alguma na exigência de um incondicionado,
pois, tão logo ela proceda com plena clarividência, tem
por si mesma de encontrar que um incondicionado é literalmente uma incoisa” (Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p.
602). Em sua filosofia, ela é apenas a faculdade das
representações abstratas, ou seja, dos conceitos.
Aqui, a razão é a faculdade que distingue o homem do
animal. Todos os conceitos da faculdade de razão recebem todo o seu conteúdo e significado das representações intuitivas. Sem as representações intuitivas, as
representações abstratas apenas se convertem em
palavras vazias.
No sistema de Schopenhauer, a faculdade de
razão carece de elementos apriorísticos, pois o seu
conhecimento puro se limita as relações formais, em
outras palavras, aos quatro princípios de verdade metalógica: identidade, contradição, terceiro excluído e
razão suficiente do conhecer. Sendo assim, podemos
afirmar que não há uma diferença entre Kant e Schopenhauer no que concerne ao tema geral da razão prática,
mas sim uma divergência radical quanto às questões de
princípios. Schopenhauer acusa a ética kantiana de
operar com pressupostos indemonstráveis, mas a sua
não fica, de modo algum, imune a essa crítica. A moral
da compaixão de Schopenhauer não é autônoma, já
que necessita do apoio de sua epistemologia e de sua
metafisica para sustentar-se. Diante do que foi exposto
nos capítulos dessa dissertação, podemos apresentar
alguns aspectos que podem corroborar essa afirmação:
a inclusão da necessidade no princípio de razão suficiente, a asseidade como requisito da vontade, a abnegação como expressão da liberdade da vontade, a identificação da coisa-em-si com a vontade, o irracionalismo e
a inexistência da razão prática em sentido moral e a
ampliação dos conceitos de experiência, intuição e
conhecimento.
Na perspectiva de Schopenhauer, o sentimento
de compaixão nasce da percepção da unidade que
envolve todos os seres pela experiência do sofrimento.
Nesta medida, é o sofrimento irredutível, essência da
própria vida de todos os seres, que desperta o sentimento de compaixão. A moral schopenhaueriana pode
ser traduzida como a negação da própria vontade na
natureza. Esse processo de negação começa a partir
do momento em que a vontade se torna consciente no
fenômeno humano. Aqui, a vontade pode negar a si a
mesma. Para Schopenhauer, a abnegação pode ser
considerada como uma espécie de “milagre”. Em suma,
o verdadeiro fundamento da moral consiste na identidade metafísica da vontade para além dos seus mais variados fenômenos. Diminuir a distância entre o eu e o
não-eu: eis aí, na perspectiva do filósofo, o mais valioso
princípio moral. Podemos resumir essa atitude com a
fórmula oriental: “tat twam ai” – isso és tu
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 454).
20
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Jun. 2010, 1910.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 07-20, jan./jun., 2013.
MULHERES NEGRAS E PODER NA INDÚSTRIA FUMAGEIRA
Luzia Souza Ferreira*
Elizabete Rodrigues da Silva**
Este artigo tem como objetivo evidenciar a trajetória das mulheres negras que ocuparam espaços de poder no
âmbito da indústria fumageira na cidade de Cruz das Almas-BA, no período de 1950 a 1990, destacando
especialmente as mulheres que ocuparam a presidência do Sindicato da Indústria do Fumo. Dentre elas, evidenciase a forte presença de Maria Joaquina, uma mulher negra e semi-analfabetizada que fundou o primeiro movimento
social desta cidade e sofreu várias formas de repressão nos anos da ditadura. A pesquisa teve como percurso
metodológico o acervo documental da empresa Suerdieck, depositado na Faculdade Maria Milza – FAMAM e do
Sindicato dos Trabalhadores do Fumo - STIF, bem como, a Fonte Oral, uma metodologia indispensável para trazer à
tona as memórias das mulheres negras e trabalhadoras. Desta forma, observou-se que a trajetória das mulheres
negras, trabalhadoras da indústria de fumo, foi marcada por uma luta acirrada pela sobrevivência material, bem
como, pelos espaços de poder, minando a invisibilidade social e política a que eram submetidas no contexto das
relações sociais de gênero, raça e classe daquele contexto.
Palavras-chave: Mulher Negra. Trabalho. Poder.
This article aims to show the trajectoy of Black women who occupied positions of Power within the tobacco industry in
the city of Cruz das Almas, Bahia, in the period 1950 to 1990 with particular emphasis on women who occupiend the
chair of the Industry Union tobacco. Among them, highlights the strong presence Maria Joaquina, a black women
and semi-analfabetizada who founded the first social movement of this city and suffered various forms of repression
during the years of dictatorship. The research was methodological course documental company Suerdieck
deposited Milze Mary College – FAMAM and Tobacco Workers Union – STIF, as well as the oral source, an
indispensable method to elicit memories of black women and workers. Thus, it was observed that the trajectory of
blakwomen, workers in the tobacco industry was marked by a bitter struggle for material survival, as well as the
spaces of power, undermining the social and political invisibility that were submitted in the context of social relations
of gender, race and class that context.
Keywords: Black Women. Work. Power.
INTRODUÇÃO
O trabalho e o lugar das mulheres trabalhadoras
da indústria fumageira do Recôncavo Baiano, no período de 1950 a 1990, se explica a partir da compreensão
de um contexto mais amplo que remonta à história do
trabalho no Brasil e as várias formas de ocupações
assumidas – ou forçadas a assumir – pelas mulheres
negras durante o sistema escravista e que traz as suas
reminiscências até os dias atuais, no que tange aos
espaços de trabalho e de poder ocupados por mulheres
negras.
Nesta perspectiva, observa-se, inicialmente,
uma historiografia que avança para a história dos excluídos e suas lutas por ocupar seus espaços, pois são produções que oferecem elementos para se compreender
as novas temáticas que podem ser, dentre tantas que a
história vista de baixo contemplam, o lugar das mulheres negras e trabalhadoras. (BURKE, 1992). Ainda,
para refletir sobre a vida dessas mulheres trabalhadoras, toma-se a concepção de Eduard Thompson (1989),
ao afirmar que “a formação social e cultural que pode
ser estudada quando eles [operários] mesmos operam
um considerável processo histórico”. E, neste caso,
dado o significativo contingente da mão-de-obra feminina, considerada a força motriz que impulsionava a economia e a cultura da região fumageira, as trabalhadoras
se inscrevem na história.
Rachel Soihet (1992) escreve sobre a grande
reviravolta na história, pois nas últimas décadas vários
grupos se interessaram pela temática dos excluídos,
destacando também os estudos sobre as mulheres.
*Especialista em História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena (Faculdade Maria Milza-BA); Diretora do Departamento de Políticas para
as Mulheres do Município de Cruz das Almas – BA. E-mail: [email protected].
**Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (Universidade Federal da Bahia); Professora da Faculdade
Maria Milza- BA; E-mail: [email protected].
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
Luzia Souza Ferreira; Elizabete Rodrigues da Silva
Esta autora ainda afirma que “as mulheres são elevadas à condição de objeto e de sujeito da história isto porque as mulheres têm constantemente, através da história cultural e social, encontrado novo campo do seu
desenvolvimento”. (SOIHET, 1992).
Assim, as motivações para a realização da pesquisa partiram da necessidade de discutir a presença
das mulheres negras no espaço fabril fumageiro e a sua
atuação nos espaços de poder na indústria do fumo na
cidade de Cruz das Almas, lugar onde, por um longo
período de tempo, foi o maior produtor de fumo do
Recôncavo. Também, chama à atenção neste contexto
a presença de uma mão de obra especificamente feminina, enquanto o comando do trabalho se encontrava
em mãos masculinas.
As fontes históricas que permitem evidenciar
parte da história das mulheres fumageiras são as fontes
orais que, por sua vez, possibilitam o contato direto com
os sujeitos e objeto. As fontes escritas e impressas,
como as fichas de registro de empregados da fábrica
Suerdieck de Cruz das Almas, que se encontram no
acervo da Faculdade Maria Milza (Centro de Documentação e Memória - CEDOC), permitem compreender as
relações de trabalho, inclusive os processos de admissão e demissão do trabalho, o sistema de contratação
temporária, o quesito raça/cor, onde percebe-se nitidamente a grande quantidade de mulheres negras através de suas fotografias nos livros de registro. Outra
fonte que ofereceu dados significativos foram as Fichas
de Filiação do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria
do Fumo.
O período pesquisado parte da década de 1950,
quando a indústria fumageira no Recôncavo começa a
se reestruturar após os problemas enfrentados com a
Segunda Guerra Mundial até a década de 1990, quando encerra suas atividades em Cruz das Almas. Apesar
de Blay (1978) afirmar que a partir da década de 1950
começa a ocorrer um processo de declínio da incorporação das mulheres no setor de atividades industriais
no Brasil, chegando em 1970 com apenas 10,5% das
mulheres integradas, na indústria fumageira pode-se
fazer uma leitura diferente em função de sua especificidade quanto à predominância da mão de obra das
mulheres, explicada pelo estereótipo da sensibilidade
feminina em executar trabalhos manuais e/ou artesanais. Por outro lado, é nesse período que as mulheres já
se encontram inserida nos movimentos sindicais e
lutam por direitos adquiridos, como, por exemplo, em
1986 a fábrica Suerdieck ameaça encerrar suas atividades e mais uma vez são as mulheres que tomam as
rédeas da situação e vão até Brasília, capital do país,
solicitando uma posição do governo federal para que
400 mães de família não ficassem desempregas. Esse
período de quatro décadas dá uma dimensão de como
as mulheres atuaram dentro e fora dos estabelecimentos da indústria fumageira.
22
Desta forma, a preocupação que norteia esta pesquisa se expressa a partir de alguns questionamentos
que apontam para as mudanças e permanências na história das mulheres negras trabalhadoras da indústria
fumageira no Recôncavo. Refletir brevemente sobre
essas mulheres trabalhadoras exige questionar o
seguinte: Como as trabalhadoras, enquanto mulheres e
negras, ocuparam ou construíram espaços de atuação
de poder na indústria fumageira do Recôncavo? Nesta
perspectiva, é que esta pesquisa caminhou para buscar
compreender parte da trajetória de mulheres negras no
trabalho e nos espaços de poder dentro da indústria
fumageira da cidade de Cruz das Almas, no período
supracitado.
MULHERES NEGRAS: BREVE PERFIL DE UMA
TRAJETÓRIA
O Brasil, que se favoreceu do trabalho escravo
ao longo de mais de três séculos, colocou à margem o
seu principal agente construtor – negros e negras, estes
que passaram a viver na miséria, sem trabalho, sem
possibilidade de sobrevivência e condições dignas de
vida. Com o incentivo do governo brasileiro à imigração
estrangeira e à tentativa de extirpar os negros e as
negras da sociedade brasileira, aprendemos a conhecer a África por meio dos marcos da história européia.
No recorte metodológico que se denomina como préhistória, o continente Africano aparece como o local
onde viveram nossos primeiros antepassados; na
Idade Antiga, surge como o berço da civilização egípcia.
Por fim, só reaparece a partir do século XV, como um
apêndice do mundo moderno europeu. (NOGUEITA,
2001).
A África, porém, tem uma história para contar e
nós temos Áfricas a conhecer. E é por meio da tradição
oral e de outros olhares sobre a documentação escrita e
iconográfica que os historiadores tentam, hoje, reconstruir os fragmentos da memória desse continente tão
dilacerado pelo intenso tráfico de escravos e pela partilha colonial. Uma história que explica grande parte da
história do Brasil e, por conseguinte, do povo negro,
inclusive os trabalhadores e trabalhadoras da indústria
fumageira.
A história da construção do Brasil se confunde
com a história dos trabalhadores negros e das trabalhadoras negras que aqui chegaram e aqui permaneceram. Segundo Maria Nilza (1999), em seu artigo “Mulheres Negras”, ao longo da história a mulher negra foi a
“espinha dorsal” da família que, muitas vezes, constituía-se dela mesma e dos filhos. Quando havia o companheiro, especialmente no período pós-abolição, este
significava para aquelas mulheres apenas alguém a
mais para ser sustentado.
O trabalho escravo no Brasil passou desde a agri-
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
Mulheres negras e poder na indústria fumageira
cultura pesada nos canaviais, nas roças de fumo, nos
cafezais, na lavoura de subsistência, à mineração, ao
doméstico (trabalhadores na casa grande) até ao trabalho de ganho, sendo assim essenciais para a manutenção da economia. Em todos esses espaços, as mulheres
negras participaram com seu trabalho de amas de leite,
cuidadoras, conzinheiras, ganhadeiras, além de muitas
outras formas. Nessa situação, uma escrava poderia
vender “doce de tabuleiro”, realizar o transporte de cargas e pessoas, cuidar de um estabelecimento comercial ou fabricar utensílios e quitutes que, geralmente, o
seu dono ficava com a maior parte dos lucros obtidos ao
longo do dia. A parcela destinada a escrava poderia ser
utilizada para alimentação, vestuário e, até mesmo,
para a compra de sua alforria. (SOARES, 2007).
Em outros casos também se pode assinalar a
existência das chamadas “escravas de aluguel”. Geralmente, um senhor que passava por dificuldades financeiras ou não tinha meios para explorar todo o seu plantel acabava cedendo parte de suas “peças” para um terceiro, que em troca lhe recompensava com uma quantidade de dinheiro. A própria administração colonial utilizou desse recurso para empreender a extração de
pedras preciosas no século XVIII. (SOARES, 2007).
Estas questões permitem entender outras. Como
observa Douglas Cole Libby (2006) quando afirma: “O
braço escravo foi tão ou até mais produtivo que o livre e
foi utilizado em virtualmente todas as atividades produtivas presente na sociedade escravista, inclusive aquela de cunho industrial.” Com isto pode-se perceber que
a habilidade, o conhecimento dos africanos em muito
superava os europeus nos artífices e ofícios na sociedade escravista do Brasil Colonial. Libby (2006) descreve a evolução das técnicas agrícolas, a arte da culinária, as fundições de ferro com os artefatos na construção de ferramentas, a habilidade com madeira nas construções navais, o uso da pedra-sabão na fabricação de
utensílios de cozinha, tigelas, jarras e variados objetos
ornamentais, o trabalho em ouro e prata, o curtume, o
trabalho em couro e a tecelagem dos africanos aqui
escravizados.
É a partir deste percurso histórico que, nos séculos seguintes, se formou uma massa de trabalhadores
livres, tanto para o campo quanto para as cidades, principalmente no Nordeste brasileiro e, em escala menor,
o Recôncavo Baiano, este que representou, por muitos
anos, grande parcela da economia baiana. E, é na
indústria fumageira que a maioria das mulheres negras
do Recôncavo vai encontrar espaço para trabalhar e
ascender social e economicamente, durante quase
todo o século XX.
A partir desse contexto e considerando as variações temporais que favorecem às transformações sociais e culturais, faz-se necessário identificar os lugares
ocupados pelas mulheres trabalhadoras da indústria
fumageira do Recôncavo Baiano. Para tanto, Silva
(2011) traz uma discussão dos traços étnicos raciais
dos povos do Recôncavo onde a composição desse
quadro social e cultural da população fumageira, na
segunda metade do século XX, é a herdeira máxima da
junção de ameríndios, negros e europeus, o que faz
uma miscigenação muito própria do Recôncavo Baiano. Ela ainda afirma que a presença da população
negra no Recôncavo está relacionada à escravidão africana que desde a colonização até o final do século XIX,
apresentava a maior concentração do Estado da Bahia.
(SILVA, 2011). Essa composição étnico-racial, apesar
das oscilações no tempo, permanece formando o grande contingente de trabalhadoras negras na indústria
fumageira no Recôncavo.
No universo de 900 fichas analisadas, dispostas
em 09 livros de registro de associados do Sindicato dos
trabalhadores do fumo em Cruz das Almas observa-se
pelas fotografias que a maioria é de mulheres e mulheres negras. Embora o registro da cor tenha passado
pelo olhar e concepção do funcionário que preencheu a
ficha naquele momento, o que favorece a um resultado,
relativamente, diferente, mas que não altera a estrutura
do perfil étnico-racial dos trabalhadores e trabalhadoras. Tomando como parâmetro os livros de número 08 e
09 datados de 1953 a 1954, respectivamente, tem-se
uma amostra dos quesitos cor e sexo, conforme se
observa nas Tabelas abaixo.
Tabela 1 - Quesito Cor
Cor
Homem
Mulher
Total
Preta
Parda
Branca
Outra
09
05
00
04
47
25
04
06
56
30
04
10
Total
18
82
100
FONTE: Livro nº 08 de Registro de associados do Sindicato
dos Trabalhadores do Fumo, 1953.
Tabela 2 - Quesito Cor
Cor
Preta
Parda
Branca
Outra
Total
Homem
09
13
03
00
25
Mulher
37
36
01
01
75
Total
46
49
04
01
100
FONTE: Livro nº 09 de Registro de associados do Sindicato
dos Trabalhadores do Fumo, 1954.
Além da evidencia da “cor preta” nas Fichas de
Registros de Associados do Sindicato, as tabelas evidenciam a predominância do sexo feminino no trabalho
fabril fumageiro, constituindo um campo fértil para uma
futura discussão sobre as relações de gênero nesses
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
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Luzia Souza Ferreira; Elizabete Rodrigues da Silva
espaços. Assim, partindo da premissa de que as mulheres formavam um contingente maior que os homens,
pergunta-se, então, por que somente 03 mulheres chegaram ao espaço de presidência do sindicato? Neste
caso, especificamente, a explicação poderá se encontrar nas relações sociais de gênero que, a partir das diferenças biológicas, norteiam as desigualdades de gênero, tornando as mulheres vulneráveis e sujeitas à exclusão social que se dá no âmbito do trabalho, da classe,
da cultura, da raça e da geração.
A AÇÃO DAS MULHERES TRABALHA-DORAS NOS
ESPAÇOS FABRIS
Quando Cristina Bruschini (2000) discute Trabalho e Gênero – Mudanças, permanências e desafios,
vemos claramente os desafios, mesmo em contextos
diferentes no tempo e no espaço, podemos fazer uma
correlação para compreender os desafios na hierarquia
e poder das mulheres da indústria fumageira, para
comandar um setor ou vários setores dessa indústria,
setores esses que no armazém se tratava das bancas
de capas, salão de escolhas e o salão das camas de
fumo. Nas fábricas, os principais setores eram salão de
capas, charutaria e o anelamento, departamentos distintos comandados por contramestre ou contramestra e
no geral mestres ou mestras. A essas pessoas era dado
o poder de decidir quem trabalhava naquela safra ou
não, quem exercia tal função ou não, dentro das empresas eram os/as mestres/as que decidiam a vida daquele/a trabalhador/a.
Um exemplo era D. Maria Lúcia Oliveira, conhecida como Cinha, mulher negra, mãe de sete filhos
sendo cinco mulheres e 02 homens, solteira, chefe de
família que com maestria conduzia o contingente de
duzentas mulheres ou mais no período de grandes
safras no armazém de seu Edgar, localizado na Praça
Geraldo Suerdieck. Neste caso, ao entrevistar mulheres que trabalharam com ela, percebeu-se que o poder
dado a ela não a desumanizou e não a fez ser tirana.
Ela era muito boa com agente, quando um filho
nosso adoecia ela entendia, pois ela também
era mãe, diferente do contra mestre Y (preferiu
omitir o nome), aí ela dizia: adianta a tarefa e
vai ver teu filho. (JOSELINA DA SILVA
SANTOS, 2011).
Quando Joselina diz: “ela não se desumanizou”
dá a entender que ela era sensível ao sofrimento e a dor
de outra mãe que saía para trabalhar e deixava seu filho
doente. D. Maria Bernadete ainda enfatiza:
Cinha foi uma grande amiga das mulheres e
todos que trabalhava com ela, podia ser
homem podia se mulher, ela entendia todo mundo. Quando tinha uma mulher passando dificul24
dade ela fazia rifa, fazia caixa para arrecadar
dinheiro para essa pessoa resolver o problema
que a afligia, era muito boa, boa mesmo.
(MARIA BERNADETE PEREIRA
RODRIGUES, 2011).
Assim, esse espaço não deixa de ser um espaço
político, que segundo Foucault as relações de poder
entre os indivíduos é algo que se exerce em rede, não
existe um agente centralizador, esse poder pode ser do
micro ou do macro. As mulheres da indústria fumageira
que ocuparam esses espaços sabiam como ninguém
exercer o poder fosse ele micro ou macro, estando no
comando ou na subalternidade.
As empresas eram da mesma forma, avaliadas
pelas mulheres e, segundo seus interesses, elas podiam ter um conceito positivo ou negativo. Em entrevista
com dona Raimunda ela diz:
Armazém bom de trabalhar foi o de seu Jorge
Almeida, lá era muito bom, o mestre era
homem, o nome dele era Nelson, dava vez
agente mulher, pra tomar conta das bancas de
capa, da escolha e com isso ficava mais fácil,
eu mesma tomei conta da escolha muitas
vezes e o trabalho saia melhor porque todo
mundo era companheira, companheira mesmo
de uma ser pela outra, fosse no que fosse.
Tinha Neuza no escritório era boa demais, no
dia de pagamento ela chamava uma por uma
pra receber o dinheiro e tratava agente muito
bem, não esqueço dela. (Raimunda Souza,
2011).
Com isso dona Raimunda afirma que era bem
mais harmonioso o processo de relações de poder
entre elas, de modo que o companheirismo fazia a coisa
fluir de forma melhor. Entre as décadas de 70 e 80, a
Suerdieck esteve sob o comando do Grupo Alemão Melita. Dona Vera Lúcia se lembra desse tempo com certa
nostalgia.
Foi um período bom quando era com a Melita,
gente boa aquele pessoal, não que os daqui
fosse ruim não, não, mas quando eles tomaram
conta da Suerdieck foi bom pra gente sim! Agente passou a ter merenda que eles davam, de
oito e meia a nove horas agente ia tomar leite e
comer pão, todo santo dia, era bom, pois agente até levava pra casa, eu mesmo tomava um
pouco e botava o outro no quente frio (garrafa
térmica) pra levar pra meus filhos (respira fundo), pois em casa não tinha. O mestre não queria que agente levasse pra casa, era pra tomar
lá, mas agente dava um jeito, levava escondido. Agente dava um jeito, pelos nossos filhos
agente faz tudo não é? (VERA LÚCIA, 2009).
Resistência sutil, também era uma atitude consciente e presente nas ações das mulheres fumageiras,
nesse momento elas exerciam o poder por está numa
posição de subalternidade o que não a impedia de levar
o leite pra casa. Conforme Silva (2001):
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
Mulheres negras e poder na indústria fumageira
Embora fosse na sutileza dessa obediência
que residia a sabedoria política da charuteira,
ou seja, obedecer não significava recuar, deixar-se dominar ou acomodar-se, mas aprender
a conviver habilmente com a "inevitável" dominação daquela circunstância para atingir o seu
objetivo que era manter-se no trabalho. (SILVA,
2001).
Na fala de dona Vera Lúcia acima, é possível perceber que muitas vezes se burlava a lei imposta dentro
desses estabelecimentos, como por exemplo, levar
qualquer coisa que fosse oferecida pela empresa sem a
autorização dos chefes, nesse sentido essas mulheres
exerciam o poder de burlar a ordem expedida, essa
estratégia era comum entre elas, desta forma era proibido levar para casa o leite que a empresa fornecia aos trabalhadores, mas para D. Vera Lúcia tomar o leite ali e
não ter em casa para seus filhos soava como incoerente
e ela ainda acentua;
Como é que eu adulta tomava leite e meus
filhos que era pequeno não tomava! Não tava
certo. Tinha vez que eu levava o café no quente
frio aí eu tomava o café e botava o leite no lugar,
nem dava pra desconfiar. (VERA LÚCIA, 2009).
Burlar a lei imposta dentro dessas empresas
parecia fácil para elas. Não era permitido conversar nas
bancas, mas isto não quer dizer que elas se mantinham
caladas, obedientes à toda e qualquer norma estabelecida. Dona Maria de Lourdes conta que:
Não era pra nós conversarmos de jeito
nenhum, pois eles achavam que atrapalhava
na tarefa, mas quem ia aguentar ficar calada o
dia todo, agente não era animal, agente conversava baixinho com a cabeça baixa, quando
eles estavam por perto agente ficava calada,
tinha mulher que de pirraça cantava e tudo. Ah!
Agente contava até novela, mas eles não viam
ou fingia que não via. Mas de vez em quando
tinha um zunzum danado, aí era cada bronca
que agente tomava que ficava até com vergonha (...). (MARIA DE LOURDES, 2009).
A “bronca” tomada não as impedia de conversar,
nessa rede fazia valer o poder de não se calar, mas burlar o sistema macro do empregador. Diante deste contexto, foi possível perceber que os espaços de trabalho
não são apenas preenchidos com as atividades meramente técnicas, além destas a trama cotidiana se
encarrega de preencher, historicamente, os espaços e
o tempo com os interesses, principalmente os das classes, de uma forma muito peculiar elas exerciam o poder
de ir contra o que era (pré) estabelecido. Assim, a história das mulheres negras fumageiras, a partir de seus
espaços de trabalho, também, permite vislumbrar parte
da história da região do Recôncavo, àquela ligada à cultura e indústria do fumo e, especificamente, a história
das mulheres negras no trabalho e espaços de poder.
O Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do
Fumo de Cruz das Almas era e é uma entidade que
representava e representa os/as trabalhadores/as da
indústria fumageira também das cidades circunvizinhas
como Sapeaçu, Baixa de Palmeira, Castro Alves, São
Felipe, Dom Macedo Costa, Governador Mangabeira,
Muritiba entre outras. Fundado em 5 de julho de 1942 e
reconhecido pelo decreto-lei n. 1402, de 5 de julho de
1949. Sede própria inaugurada em 22/12/1968, Travessa Cícero Nazareno n.º 57, Cruz das Almas-Ba.
O Sindicato dos/as trabalhadores/as da Indústria
do Fumo da cidade de Cruz das Almas, entidade pesquisada onde encontramos mulheres negras no exercício do poder. A pesquisa feita no livro número um (01) do
registro de chapas para composição da diretoria do Sindicato dos trabalhadores da Indústria do fumo, permite
uma análise de classe, gênero e raça. Os registros
encontrados estão datados de 1949 e tem em sua composição apenas 63 mulheres fazendo parte da diretoria
do sindicato onde somente três ocuparam o lugar de presidente, as demais ocupavam lugares de secretária,
suplentes conselhos fiscais e tesoureiras.
Não cabe aqui uma discussão de classe, mas
identificar as mulheres que ocuparam esse espaço de
poder e em especial a mulher negra. No contexto fumageiro onde a divisão sexual do trabalho se dava com
ênfase bem maior que outros seguimentos, vale destacar as mulheres negras que em sua maioria formavam a
população operária dessa indústria e que foram não só
mestras e contramestras, mas presidentes de Sindicatos assim como suas respectivas suplentes. Uma
chapa para composição de diretoria era composta por
Presidente, Secretária/o, Tesoureira/a e Conselheira/o
fiscal.
No livro número 01 (um) de registro de chapas
para candidatas/os a diretoria não apenas constava a
composição das chapas, mas também o registro da
chapa vencedora daquele pleito. Essa constatação permite analisar que diante da quantidade de mulheres filiadas ao sindicato dos trabalhadores da indústria do
fumo de Cruz das Almas, a participação e atuação das
mesmas não chegaram a 6% das trabalhadoras. A composição de 1962 mostra a chapa vencedora somente de
mulheres e a participação dessas mulheres no movimento sindical, embora sendo reduzida, não intimidava
a fazer uso do poder em prol das companheiras. No livro
de ata do dia 03 de julho de 1966, na página 35, relata
que quando uma companheira reclama da empresa
que está exigindo uma quantidade maior de charutos
para a tarefa, ela convoca a todos para não se renderem ao empregador, fazendo-se presentes no dia da
reunião cento e um associados.
Quando um livro de ata deixa transcrito em seus
autos situações como esta, significa que essas mulheres exerciam não só o direito que possuíam, mas o
poder para se confrontar ao patrão. “Não havia tarefa,
agora exigiram, e nem servente tem para ir buscar os
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
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Luzia Souza Ferreira; Elizabete Rodrigues da Silva
paus de charutos, e eu não vou pegar nenhum, eles tem
que dá um jeito”. São palavras de Maria Joaquina reforçadas pela companheira Albertina França. Essa fala
revela a forma de exploração aplicada às trabalhadoras,
no sistema de produção e a reação delas à situação.
A chapa vencedora de 1978 tem como presidente outra mulher negra e que permanece no sindicato por
cinco gestões, Benedita Souza Salomão. Ela é mulata,
tipo cabocla, semi analfabeta, tímida por natureza, mas
firme em suas decisões, trabalhou toda sua vida na
fábrica de charutos Suerdieck, dedicou a maior parte
dela ao Sindicato e à luta por suas companheiras, foi
presidente, secretária, suplente, conselheira e ainda foi
juíza classista junto a Justiça do trabalho representando as operárias.
Como presidente do Sindicato, Benedita Souza
Salomão, em 1978 traz consideráveis melhorias para a
classe. Para a sede do sindicato ela contrata médicos
na área de clinica geral, dentistas; cria toda uma estrutura para acolhimento e atendimento aos associados,
cede o espaço permitindo o funcionamento de uma
escola para o ensino fundamental I, não só para filhos
de associados, mas também para a comunidade do
entorno.
Quadro 1 - Chapa da Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Fumo, 1962
CARGO/FUNÇÃO
NOME
Presidente
Marieta Costa Borges
Secretária
Benedita Souza Salomão
1ªTesoureira
Albertina França
2ª Tesoureira
Eufrásia Brandão Braga
Suplente da diretoria
Inês Caldas Peixoto
Conselho fiscal
Maria Joaquina Souza
Rosinel Silva Lôbo
Maria Luiza Boaventura
Suplente do Conselho Fiscal
Rosalina Lopes Santos
Aládia Borges da Silva
FONTE: Livro1 de registro de chapas para diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Fumo de Cruz das Almas
Quadro 2 - Chapa de Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Fumo, 1978
Presidente
Benedita Souza Salomão
Secretária
Neusa Pereira da Silva
Suplente diretoria
Claudia Oliveira Souza
Conselho fiscal
Antônia Oliveira Cruz
Maria Aurea Oliveira Cruz
Suplente Conselho Fiscal
Maria Luiza Boaventura
Nilza Maria Pereira Silva
FONTE: Livro1 de registro de chapas para diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Fumo de Cruz das Almas
Quadro 3 - Chapa de Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Fumo, 1993
Presidente
Josenita Souza Salomão
Suplente da diretoria
Maria Bernadete Rebouças Salomão
Ana Lúcia da Conceição Silveira
Conselho Fiscal
Valdete Passos Batista
Maria Sonia dos Santos Cruz
Suplente conselho fiscal
Rita Maria dos Santos
Raimunda Cerqueira de Souza
Maria da Conceição Trindade
Fonte: Livro1 de registro de chapas para diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Fumo de Cruz das Almas
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Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
Mulheres negras e poder na indústria fumageira
Em 1993, o Sindicato dos trabalhadores do fumo
chega a sua terceira gestão presidida por uma mulher
negra, e ativamente politizada dentro dessa dinâmica
das lideranças sindicais. Sobrinha da ex-presidente
Benedita Souza Salomão, Josenita Souza Salomão
ocupa o cargo de presidente deixado por sua tia que se
encontrava doente não podendo mais concorrer. Em
1993 a indústria fumageira do Recôncavo passa por
uma reestruturação do trabalho e com isso alguns armazéns voltam a produzir e o sindicato, que segundo Josenita, tem em seu quadro quase cinco mil associados,
porém não perdura e o declínio vem de forma voraz, de
modo que no início de século XXI essa indústria sucumbe às altas taxas de impostos, e as propagandas que
falam do malefício que o tabagismo provoca. Desde
então, o Sindicato continua com atividades limitadas,
são poucos os armazéns que ainda funcionam com o
mínimo de trabalhadores e as grandes fábricas fecharam definitivamente.
nheiras que não conseguiam emprego nas empresas
enfardadoras (armazéns de fumo), Maria Joaquina decidiu fundar uma associação chamada CLUBE DAS
MÃES em parceria com amigas e amigos operários (os)
que estavam na ativa, a exemplo de Maria Conceição
(Lozinha), Maria Benedita, Marieta Costa então presidente do sindicato, Maria Helena Rodrigues, Hélio
Pitanga e alguns estudantes da Escola de Agronomia
que admiravam a sua luta e coragem. Esse foi um período conturbado na década de 1960. Nasce aí o primeiro
movimento social de mulheres na cidade de Cruz das
Almas. A implantação da associação trouxe benefícios
para várias mulheres, que juntas conseguiram máquinas para os cursos de corte e costura, datilografia, as
aulas aconteciam na Sociedade Euterpe Filarmônica.
Além disso, eram doados às mães pobres, gêneros alimentícios como leite, arroz e feijão. Vale lembrar que
elas faziam doações e recebiam doações.
Maria Joaquina foi uma mulher e tanto, não
suportava injustiça, ela ficava comovida quando via as mulheres e as crianças com trouxas
de fumo na cabeça para levar pra fazer o serviço em casa, pelo meio da rua, nos passeios das
casas perto dos armazéns, fazia dó! E brigava
com os donos de armazéns porque não dava
trabalho às mulheres dentro das empresas, ela
sabia que era pra não pagar a carteira, e aí o
pau quebrava. Ela não tinha medo, os enfrentava. (MARIA CONCEIÇÃO- LOZINHA, 2011).
MARIA JOAQUINA: A VISIBILIDADE DE UMA
MULHER NEGRA
Falar em mulher negra na indústria fumageira
exercendo certas formas de poder sem falar de Maria
Joaquina da Conceição seria deixar uma lacuna aberta.
Nascida na cidade de Cruz das Almas, Maria Joaquina
da Conceição, nascida em 07 de agosto de 1920, mãe
de nove filhos, avó de 41 netos, 50 bisnetos e 03 tataranetos. Segundo sua filha Jussara, ela estudou até 3ª
série do antigo primário, teve seu primeiro filho aos 16
anos de idade, e teve que ir trabalhar para sustentar a
família.
A luta de Maria Joaquina começou na antiga
fábrica de Charutos Suerdieck, local onde trabalhou até
se aposentar, o que não a retirou da luta, pois em 1986
quando a Fábrica Suerdieck estava para fechar as operárias recorreram a ela, pois tinha uma grande influência no meio político, para mediar e ver o que seria possível ser feito para impedir tamanha catástrofe, pois se tratava de quinhentos empregos diretos, na fábrica de
Cruz das Almas, uma vez que a fábrica de Maragogipe
já havia encerrado suas atividades, seriam mais de quatrocentas mães de família desempregadas, uma vez
que o declínio da indústria fumageira já se encontrava
em andamento.
Falar de Maria Joaquina é falar de trabalho, resistência, movimento social e trazer um pouco da história
da África e de mulheres negras. Sempre preocupada
com o bem-estar de todas as companheiras operárias,
reivindicava os direitos das trabalhadoras e se envolvia
nas questões entre patrões e empregados, o que lembra Luiza Mahim em sua trajetória ao comandar a
Revolta dos Malês em Salvador no século XIX. Diante
das grandes injustiças e situação precária das compa-
Maria Joaquina foi uma líder nata, participou ativamente do Sindicato dos Trabalhadores do Fumo,
mesmo não ocupando nenhuma cadeira dentro da instituição. Segundo sua filha Jussara, defendia as causas
operárias, brigava pelos direitos das mulheres, nas
questões de aumento de tarefas (produção) de charutos, questões de saúde, questões de emprego com carteira assinada e todos direitos trabalhistas, dentre
outros. Vale lembrar que Maria Joaquina da Conceição
nunca esteve no espaço de poder do Sindicato dos trabalhadores do fumo, mas fazia valer esse poder de militante de movimento social e conhecedora dos direitos
adquiridos pelas leis trabalhistas e pela constituição.
Maria Joaquina sofreu com a repressão no período da
Ditadura Militar, foi apontada como subversiva, teve sua
casa invadida pelos militares, chegou a ser presa, precisou se esconder, mas não desistiu da luta.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
(...) Minha filha entraram lá na nossa casa uma
meio dia, ela veio da Suerdieck, quando chegou lá tenente Romualdo com um policiais pra
ver se tinham alguma coisa lá... aí desmancharam a associação e aí foi uma perseguição
muito grande com ela, Maria Benedita que era
companheira dela, e outras pessoas que era
pobre e tava no meio desse pessoal defendendo e eles acharam que por baixo de tudo isso
tinha alguma coisa mais forte, e aí minha filha
foi uma perseguição muito grande (...).
(JUSSARA, 2011).
27
Luzia Souza Ferreira; Elizabete Rodrigues da Silva
Maria Joaquina continuou sua militância pela justiça social com suas companheiras. Foi uma mulher à
frente do seu tempo, sindicalizada, politizada, nunca pleiteou um cargo dentro do sindicato, muito menos político, porém sentava-se a mesa de negociação com os
empregadores e, na maioria das vezes, saía vitoriosa
em suas reivindicações. Foi juíza classista, a favor dos
empregados em 1974, função exercida na Justiça do
Trabalho, para fazer as negociações das rescisões trabalhistas quando um empregado ou empregada era
demitido, sem justa causa.
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na indústria paulista. São Paulo: Ed. Ática, 1978.
O objetivo principal deste artigo foi tentar revelar
alguns aspectos das mulheres negras que estiveram
nos espaços de poder da indústria fumageira da cidade
de Cruz das Almas e a forma como conduziram essa performance, seja na presidência do sindicato, seja na
subalternidade. Enfrentando, no dia a dia, as condições
adversas, inclusive àquelas inerentes às relações de
gênero, de raça e de classe, algumas mulheres trabalhadoras conseguiram, nesse universo fabril, sair da
invisibilidade a que eram submetiam.
As mulheres negras trabalhadoras da indústria
do fumo, por muitas vezes burlaram as leis impostas
pelo patronato exercendo assim o micro poder que Foucault discute tão bem. Os espaços de poder conquistados foi fruto de uma força própria da ancestralidade herdada por mulheres negras africanas.
O espaço do Sindicato dos Trabalhadores da
Indústria do Fumo, embora de conotação tão desigual,
foi de grande relevância para essas mulheres, ali elas
conseguiram evidenciar o poder que as mulheres organizadas podiam ter. Embora, possa se afirmar que em
função da construção dos estereótipos de gênero, que
ofereciam as bases para a divisão sexual do trabalho,
das 18 eleições, somente em 03 as mulheres chegaram
ao poder.
Assim, pode-se constatar que as rupturas e as
permanências ainda são fortes dentro dessa dinâmica.
Maria Joaquina, mulher negra e fumageira, que também conquistou seu espaço político dentro desse contexto, num período conturbado como foi a Ditadura Militar e diante de toda repressão a que foi submetida, não
fugiu da luta e enfrentou, politicamente, o poder instituído em nome de suas companheiras. Portanto, escrever
parte da história das mulheres trabalhadoras da indústria fumageira, considerando sua atuação frente ao
poder estabelecido, no sentido de burlar as reações ou
de lutar pelos seus direitos e de suas companheiras é
tirar-lhes da invisibilidade histórica e da situação de vítima apenas, a que são muitas vezes vistas. É fazê-las
existir com dignidade a partir dos espaços de trabalho e
político em que atuou para sobreviver e viver.
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das Almas- Ba. (2011).
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(2011).
Maria Conceição. 86 anos Operária aposentada. Suzana, Cruz das Almas-Ba. (2011).
Maria de Lourdes Sergio Queiroz, 53 anos. Ex-operária
da Fábrica Suerdieck. Travessa da Rua Tiradentes s/n,
Bairro D. Rosa, Cruz das Almas – Ba. (2009).
Vera Lúcia Nascimento, 56 anos. Operária aposentada
Rua Tiradentes Bairro Dona Rosa. Cruz das Almas-Ba.
(2009).
Raimunda Souza, 73 anos. Operária aposentada. Rua
Valtércio Barroso Fonseca, 163. Cruz das Almas – Ba.
(2009 a 2011).
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Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 21-29, jan./jun., 2013.
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FESTAS JUNINAS EM CRUZ DAS ALMAS/BA: SUAS IMPLICAÇÕES URBANAS E O
PAPEL DA MUNICIPALIDADE FRENTE ÀS POLÍTICAS DE PLANEJAMENTO
Reinaldo dos Santos Silva*
Jânio Roque Barros de Castro**
As festas juninas se apresentam como uma das mais importantes manifestações culturais do nordeste brasileiro e
sua difusão se estabelece no âmbito regional de forma mais notável em algumas cidades, que através de suas
peculiaridades, atraem anualmente milhares de pessoas, tanto do entorno da cidade quanto de outras regiões.
Esses deslocamentos inter-regionais são motivados na maioria das vezes, por símbolos culturais, religiosos ou não
religiosos, além da intenção de festejar o São João do interior. Pretende-se por meio deste trabalho compreender os
processos envolvidos, seus desdobramentos e as implicações espaciais dos festejos juninos da cidade de Cruz das
Almas-BA, que é conhecida regionalmente pela ampla dimensão festiva sazonal. A fim de possibilitar o
entendimento dessas questões, esse trabalho foi desenvolvido através de entrevistas e questionários à população
local e representantes políticos e análise do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), além de contar com
alguns autores como Corrêa, Castro, Serpa, entre outros, que serviram como aporte teórico-metodológico para o
trabalho. É notório que um grande evento festivo demanda de um planejamento adequado, na medida em que
grandes espetáculos podem comprometer sazonalmente, a rotina e o equilíbrio do local, e consequentemente toda
dinâmica de circularidade da população. Nesse sentido, conclui-se nessa pesquisa que há a necessidade de
repensar o planejamento da festa junina da cidade, na medida em que sua ampla dimensão espetacular, demanda
de uma infraestrutura mais adequada.
Palavras-chave: Festas Juninas. Espetacularização. Planejamento. Desenvolvimento Urbano.
The June festivities as one of the most important cultural events in northeastern Brazil and its dissemination is
established at the regional most notably in some cities, which through its peculiarities, each year attract thousands of
people, both around the city as of other regions. These displacements interregional are motivated mostly by cultural
symbols, religious or nonreligious, beyond the intention to celebrate St. John the interior. It is intended by this
research to understand the processes involved, its aftermath and the spatial implications of the June festivities city of
Cruz das Almas, Bahia, which is known regionally by wide seasonal festive dimension. In order to facilitate the
understanding of these issues, this study was conducted through interviews and questionnaires to local people and
politicians and analysis of the Master Plan for Urban Development (PDDU), besides having some authors as Correa,
Castro, Serpa, between Others, who served as the theoretical-methodological work. It is clear that a great festive
event demand for adequate planning, in that great performances can compromise seasonally, the routine and the
balance of the site, and consequently the whole of the population dynamics of circularity. In this sense, this research
concludes that there is a need to rethink the planning Jerk city, since its large scale spectacular, demand a more
adequate infrastructure.
Keywords: June Festivals. Spectacularization. Planning. Urban Development.
*Graduando em Licenciatura Plena em Geografia - Bolsista PIBIC-CNPq, Universidade do Estado da Bahia – Campus V. E-mail:
[email protected]
**Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UFBA); Professor Adjunto do DCH - Campus V – UNEB. E-mail: [email protected]
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
Reinaldo dos Santos Silva; Jânio Roque Barros de Castro
INTRODUÇÃO
As festas populares são de expressiva importância para o entendimento do contexto sociocultural de
determinadas sociedades. Nessa perspectiva, propõese tratar aqui, da manifestação cultural conhecida nacionalmente como festas juninas, que ocorre praticamente em todo Nordeste brasileiro com destaque para algumas cidades que, a partir de suas particularidades culturais, desenvolve festejos juninos mais importantes do
ponto de vista da sua projeção imagética e midiática.
O objeto de estudo deste trabalho se constitui
nos festejos juninos, com recorte no São João da cidade de Cruz das Almas. A cidade se localiza no Recôncavo Sul da Bahia, distando 146 km de Salvador e com
uma população de 58.606 hab. pelo censo demográfico
do IBGE (2010). No seu espaço urbano, é realizada
uma das mais importantes festas juninas do interior da
Bahia e durante o período festivo, a cidade recebe
cerca de cem mil pessoas segundo informações da
Secretaria Municipal de Esporte, Cultura, Turismo e
Lazer.
Nesse contexto, busca-se entender a dimensão
atual da festa, o seu sentido e as questões políticas e
urbanas que envolvem as potencialidades turísticas da
cidade, ao mesmo tempo fazendo uma associação com
aspectos históricos da prática lúdico-festiva em questão.
Tal estudo remete a necessidade da discussão
do planejamento turístico no âmbito das festas populares no espaço urbano do município. Nesse sentido, este
trabalho tem grande relevância como instrumento de
auxilio para o planejamento urbano e do São João de
Cruz das Almas enquanto manifestação cultural de
importância significativa no contexto regional.
OS FESTEJOS JUNINOS NO BRASIL
As festas populares surgem acompanhadas
pelos diversos cultos ou tradições, e se estabelecem,
das mais diferenciadas formas, configurando-se em
eventos lúdicos onde as pessoas buscam fugir da cotidianidade do trabalho, buscando a obtenção de
momentos de prazer com amigos ou familiares.
Para Castro (2009) a sociedade é dinâmica, e
dessa o significado dos festejos se modificam ao longo
do tempo. As inovações tecnológicas mudou a roupagem das manifestações, atendendo a interesses políticos e do Estado, e ao mesmo tempo se adaptando às
novas demandas da sociedade.
Nesse contexto, o poder público pode torná-la
mais complexa a partir de quando ele passa a controlar
os espaços festivos, desde que o atendimento aos interesses políticos e do capital implicará em mudanças na
estrutura dos espaços festivos, portanto causando
32
outras interpretações e percepções sobre determinadas manifestações.
O Brasil é conhecido pela diversidade dos seus
eventos festivos, e essas particularidades fazem parte
da constituição da sua identidade e de uniformização
dos valores e de condutas. Partindo dessa ideia, podese complementar que as festas populares são importantes influenciadores na identidade cultural que por
sua vez pode ser transformada seguindo padrões da
sociedade ou interesses políticos.
As festas populares estão vinculadas na maior
parte das vezes com lazer, movimentos religiosos e
ciclos de trabalho, e essas manifestações são potencialmente reveladoras da cultura de determinados grupos socias. Esses movimentos são concretizados em
locais amplos em que há a suspensão ou inversão de
algumas normas sociais, nas ruas, avenidas ou arenas
projetadas, de modo que venha atender aos anseios
dos interessados.
Nesse contexto, segundo Da Matta (1987), as
dimensões espaciais como a casa, a rua e a praça tornam-se sazonalmente importantes em diferentes níveis
ao longo do tempo, e tudo isso se explica através do
modelo social, político e econômico vigente. É na cidade que se destaca a maioria dos espaços projetados de
lazer, e nele as relações sociais mais complexas do
ponto de vista da utilização dos espaços e equipamentos de uso público ou privado.
No espaço urbano que se realiza grande parte
das manifestações culturais de maior reconhecimento
na atualidade, que por sua vez adquirem novas características através do tempo. Nesse contexto, Corrêa afirma que:
O espaço urbano é tanto o reflexo das ações
que se realizam no presente como também
daquelas que se realizaram no passado e que
deixaram suas marcas impressas nas formas
espaciais do presente. (995, p.8)
Tais manifestações são verdadeiras encenações
a céu aberto e acontecem nas ruas e praças públicas
das cidades visto que são áreas amplas de uso coletivo
da população, e dessa forma, os movimentos culturais
possuem características particulares de identificação,
onde são revividos eventos do passado, lutas, ou mitos
folclóricos. Além desses aspectos podem-se destacar
as questões religiosas como importantes mediadoras
desses movimentos na atualidade a exemplo das festas
juninas, com ênfase no São João específico do nordeste brasileiro.
Porém outras questões são observadas no processo histórico, das manifestações de cunho religioso,
aonde alguns componentes estruturais se extinguem
em detrimento de outros, indicando mudanças processuais, transformando os caracteres de ordem religiosa
e profana.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
Festas juninas em Cruz das Almas/BA: suas implicações urbanas e o papel da municipalidade frente às políticas de planejamento
AS FESTAS JUNINAS NA ATUALIDADE
As características de alguns movimentos nem
sempre são constantes devido ao processo de modernização urbana e tecnológica, o que os levam a se tornar eventos espetaculares com estruturas grandiosas
em espaços amplos, com uma aparelhagem técnica
diversificada, comprometendo na maioria das vezes, o
seu significado cultural/religioso.
Serpa (2007, p.107) considera que na contemporaneidade, o consumo da cultura parece ser o novo
paradigma para o desenvolvimento urbano, onde as
cidades são reinventadas a partir da reutilização das formas do passado, gerando uma urbanidade que se baseia, sobretudo, no consumo e na proliferação (desigual)
de equipamentos culturais. Nasce a cidade da “festamercadoria”.
Será que as festas populares são suficientemente fortes para resistirem aos impactos da crescente
modernização capitalista e ao desenvolvimento de atividades turísticas? É notório que as transformações de
ordem cultural das fastas populares estão intimamente
relacionadas a condições econômicas, sociais e políticas, entendendo a partir daí a importância dessa nova
ordem de festas-espetáculo na sociedade.
Sobre essa questão, Castro (2009, p.69) afirma
que a espetacularização da sociedade vem acompanhada da mercantilização e da necessidade de difundir
através dos meios de comunicação, ideias, valores e
culturas que antes e limitavam a uma projeção local e
regional. Esse fato está associado a crescente mercantilização da cultura, ampliando as possibilidades e
anseios do capital, através da mídia.
Nas festas-espetáculo atuais, é de extrema
importância a discussão do planejamento para que se
possa pensar numa forma de execução mais promissora do ponto de vista da redução dos possíveis impactos
sociais e ambientais provenientes da atividade turística.
Para Rushmann (2002) qualquer atividade seja ela política, econômica ou social é necessário um planejamento prévio, a fim de evitar problemas futuros.
mo como uma atividade de lazer e como fonte de renda.
A REALIZAÇÃO DOS FESTEJOS JUNINOS EM
CRUZ DAS ALMAS
Cruz das Almas se destaca no cenário nacional
pela promoção das festas juninas com enfoque para o
São João. Até a década de 1980, predominavam os bailes carnavalescos como manifestações mais importantes e logo após tais práticas lúdicas foram aos poucos
sendo substituídas pelas festas urbanas com os trios
elétricos, promovidas pela municipalidade.
Essas mudanças estão se intensificando ao
longo do tempo, repercutindo nas formas e funções
espaciais e culturais da cidade, principalmente no que
tange a importância histórica das dimensões espaciais,
determinada pelos interesses dos grupos promotores,
nesse caso a prefeitura.
As manifestações lúdico-festivas no espaço urbano se constituem por todos os bairros da cidade, a partir
das visitas às casas de amigos e familiares, ou uma
caminhada pelas praças ornamentadas durante o São
João, consumindo comidas e bebidas típicas, além de
adereços que compõe a simbologia cultural do período.
Nas festas espetacularizadas que são realizadas
na cidade, se apresentam bandas de projeção nacional,
com grande carga midiática, tornando a festa em um
grande evento regional, e essa característica é capaz
de explicar o intenso fluxo turístico sazonal em Cruz das
Almas no mês de Junho.
Por volta de 1990, são implantados os Festejos
Juninos espetacularizados na cidade pelos gestores
públicos, em detrimento dos antigos carnavais e os trios
elétricos, estabelecendo-se uma modalidade festiva,
corrompida pelos interesses do capital, caracterizandose, portanto, como um marco para uma configuração primitiva e espetacular do são João de Cruz das Almas.
A finalidade do Planejamento turístico consiste
em ordenar as ações do homem sobre o território e ocupa-se em direcionar a construção de
equipamentos e facilidades de forma adequada evitando, dessa forma, os efeitos negativos
nos recursos, que os destroem ou reduzem sua
atratividade. (RUSCHMANN, 2002, p 9).
Assim o planejamento, em linhas gerais, significa
projetar ou organizar a fim de se obter resultados econômicos ou sociais satisfatórios. Não diferente de qualquer outra forma, o planejamento turístico perpassa por
essa significação e requer uma ação conjunta dos variados atores, e a atuação de órgãos administrativos competentes na idealização e promoção de atividades e
equipamentos necessários para a subsistência do turisTextura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
33
Reinaldo dos Santos Silva; Jânio Roque Barros de Castro
Considera-se que os eventos festivos podem
interferir significativamente na dinâmica espacial local.
É importante, portanto, pensar num planejamento por
parte dos órgãos responsáveis, estabelecendo as decisões de acordo com as necessidades da comunidade.
Os principais locais públicos frequentadas pelos
foliões são a Praça Senador Temístocles, Praça Multiuso e Praça do Sumaúma (Bairro Lauro Passos). A Praça
Senador Temístocles, por exemplo, se localiza no centro comercial, próximo a Prefeitura Municipal, Bancos e
a Igreja Matriz da cidade e era um antigo local de realização da abolida prática da “Batalha de Espadas”. Tal
praça foi recentemente reformada pelo poder público
municipal em 2010.
A reforma da Praça Senador Temístocles atende
à proposta prevista no PDDU da cidade, atualizada em
2008, que prevê a:
Assim como a Senador Temístocles Passos, a
Praça do Sumaúma, localizada no bairro Lauro Passos,
próximo ao centro da cidade, se destaca no que tange o
São João no sentido de sediar o “Arraiá”, ou seja, o
momento culminante dos festejos. O bairro onde se
localiza a praça é composto por moradores de classe
média, e possui estrutura plana com ruas largas, interligadas ao centro, e sem dúvida, esses fatores contribuíram para a sua escolha pela prefeitura.
Figura 02 - Praça do Parque Sumaúma
Qualificação urbanística e paisagística da
sede, de modo a propiciar um ambiente que responda às necessidades dos moradores quanto
à qualidade dos serviços básicos, lazer, cultura
e outros. (PDDU, 2008, p.12).
É percebido, a partir de medidas como essa a criação de estratégias, através da consolidação de atributos paisagísticos para fomentar o desenvolvimento social e econômico. Assim sendo, o poder público completa
o sentido com a importância da qualificação urbanística
e paisagística da área do centro tradicional de modo a
reforçar a referência e o caráter simbólico de centralidade local e regional. (PDDU, 2008, p.12).
Observa-se que a proibição da prática da batalha
de espadas determinada pelo poder judiciário municipal, leva em consideração, entre outras razões, a reforma da praça principal e a questão da preservação urbanística e paisagística da cidade, considerando que as
espadas são artefatos capazes de depredar equipamentos particulares e de uso coletivo.
Figura 01 - Praça Senador Temístocles Passos
Fonte: Reinaldo Silva. Saída de campo, Janeiro de 2012.
A Praça do Sumaúma tem esse nome em decorrência de uma grande árvore que foi reservada no local
é um espaço pouco frequentado em relação às outras.
Tal situação se deve pelo fato da população do bairro
ser de classe média, e a partir daí não ter o hábito de
caminhar, pois a maioria dispõe de meios de transportes, mantendo uma relação indireta com esse espaço
público.
Por ser uma área consideravelmente tranquila,
do ponto de vista do fluxo de pessoas, a mesma é utilizada como espaço de caminhada matinal e andar de
bicicleta ou skate, além de ser utilizada para treinamento ou provas de autoescolas, como se pode observar na
figura 02.
Desse modo, é percebido que o bairro foi planejado no intento de proporcionar um cotidiano confortável aos moradores, fato que é contraditório durante os
festejos de São João. É, portanto nesse espaço que se
realiza o grande espetáculo junino de Cruz das Almas, e
nesse período a praça recebe, segundo a prefeitura,
mais de cem mil pessoas, o que seria uma quantidade
questionável para a capacidade do local.
Fonte: Reinaldo Silva. Saída de Campo, Janeiro de 2012.
34
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
Festas juninas em Cruz das Almas/BA: suas implicações urbanas e o papel da municipalidade frente às políticas de planejamento
Figura 03 - O Espetáculo Junino no Sumaúma.
No que tange ao “Projeto espaço do São João”,
reconhece-se a importância de se pensar na relocação
do espaço a partir da capacidade do Parque Sumaúma.
No entanto, a festa ainda carece de uma
melhor estruturação, sendo indicada a realização de estudos e plano específico que contemple, dentre outros aspectos, o local mais apropriado, a infraestrutura para realização do evento e medidas para recuperação dos investimentos do Poder Público, mediante utilização de
instrumentos fiscais. (PDDU, 2008, p.47).
Fonte: Reinaldo Silva. Saída de Campo, Junho de 2012.
Além do Arraiá da Cultura Popular I no Parque
Sumaúma, é também realizado o Arraiá da Cultura
Popular II na Praça Multiuso ou Praça Ramiro Eloy Passos. A Praça Multiuso ou Ramiro Eloy Passos se constitui como um espaço alternativo em que as pessoas que
preferem uma festa mais tranquila podem frequentar.
O PLANEJAMENTO DO SÃO JOÃO NA
P E R S P E C T I VA D O P L A N O D I R E T O R D E
DESENVOLVIMENTO URBANO (PDDU)
O planejamento e a organização correta de manifestações culturais que atraem grande massa, principalmente em espaços públicos, são de fundamental
importância para garantir o sucesso de tais projetos, de
acordo com os anseios e necessidades da população
envolvida e dos foliões.
Nesse sentido, pensar no planejamento festivo
junino no âmbito de cidades como Cruz das Almas
implica na ideia de construção de propostas concretas a
partir do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, a
fim de solucionar problemas do passado e prevenindo
futuros.
Nessa perspectiva, o PDDU do referido município contempla o São João no sentido de buscar, como
proposta de estruturação espacial:
Sobre essa questão, a relocação é sem dúvida
uma alternativa de melhoria da qualidade dos festejos
na cidade, a partir da redução da densidade massiva da
festa. Além da importância do planejamento espacial, a
relação custo/benefício deve ser analisada, de modo
que o investimento na promoção da festa não onere a
receita municipal, proporcionando prejuízos aos cofres
públicos e, portanto à população.
Pensar na população que reside no Parque
Sumaúma reforça ainda mais essa necessidade, desde
que a mesma consiste num bairro residencial, e desse
modo, o espetáculo modifica completamente a dinâmica da mesma.
A Secretaria Municipal de Esporte, Cultura, Turismo e Lazer, em consonância com o Plano Diretor, considera a inviabilidade de adquirir outro local, por algumas
razões relevantes. Primeiro porque o investimento para
a montagem de uma infraestrutura adequada seria
muito cara, tanto no quesito da dimensão quanto ao
preço de lotes de terra por m² na cidade de Cruz das
Almas, que é considerado muito elevado.
Mas, portanto o que deve ser feito? Esse questionamento deve ser debatido, uma vez que as questões
de ordem cultural são de nível 3, ou seja, prioritárias,
segundo o PDDU. Nota-se então, a partir da análise do
Plano Diretor, que o poder público municipal não apresenta propostas ou projetos definitivos para que aconteça a relocação do espaço da festa. Além da questão
da relocação, a polêmica das Espadas não apresentou
sucesso no que tange ao projeto “Discutindo a Guerra
de Espadas” do Plano diretor, pois o fabrico e a queima
do artefato foram definitivamente proibidos.
Contribuir para fomentar e fortalecer a história
e as manifestações culturais locais, sobretudo
em relação aos Festejos Juninos, e na sua difusão enquanto valor social. (PDDU, 2008, p. 65).
A garantia do sucesso de projetos como este, se
dá entre outros fatores, pela consolidação de uma política de infraestrutura urbana adequada, com a participação coletiva e equilibrada nos benefícios. Tal projeto foi
votado em audiência na categoria 3, de acordo com seu
grau de importância em relação aos demais. Assim sendo, as categorias 1, 2 e 3 seriam respectivamente
importantes, urgentes e prioritários.
Este projeto deve agregar ainda, ações de fiscalização da utilização das espadas nos festejos juninos, além de medidas educativas com
vistas a um exercício mais consciente e responsável da “guerra de espadas”, com a realização de seminários e produção de cartilha
que trate de temas como os cuidados a serem
adotados pelos espadeiros, locais desaconselháveis para a ocorrência das “guerras de espada”, respeito ao patrimônio público e à segurança dos moradores da cidade etc. (PDDU, 2008,
p.31).
Com a partir da proibição da prática, ficou claro
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
35
Reinaldo dos Santos Silva; Jânio Roque Barros de Castro
que não se obteve êxito no que se refere à educação
dos espadeiros e da padronização e determinação de
locais adequados proporcionando, portanto danos
ambientais e ao espaço público.
Importante salientar que as espadas se constituíam em um atributo cultural muito importante, no que
tange a divulgação do ponto de vista midiática do São
João. Portanto, diante de polêmicas como essas, vê-se
a necessidade de uma nova revisão do Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano de Cruz das Almas.
A PERCEPÇÃO DA FESTA PELA POPULAÇÃO
A festa de são João de Cruz, com certeza é uma
das mais importantes do ponto de vista do fluxo de
foliões da Bahia e do Nordeste brasileiro. Dentre os
entrevistados todos afirmaram participar diretamente
ou indiretamente do evento nos diversos espaços. A
Praça Multiuso, por exemplo, é frequentada principalmente por pessoas idosas ou pais com crianças, sendo
que o local oferece, segundo os entrevistados, uma
opção de lazer mais tranquila com bandas locais.
A Praça do Sumaúma consiste numa opção de
diversão mais radical no que tange a maior concentração de pessoas e pelas apresentações de artistas de
nível regional e nacional. Assim sendo, é notória uma
distribuição espacial hierarquizada da festa, percebida
pela importância desse espaço. Conforme a Figura 04
as atrações musicais se constitui como fator de atração
de foliões para o espetáculo.
Figura 04 - Fatores de Atração do Visitante
As Atrações
Musicais 30%
A Batalha de
Espadas 50%
Planejamento da
Festa 20%
Fonte: Reinaldo Silva. Saída de Campo, Janeiro de 2012.
A partir da leitura da Figura 04, fica claro que as
atrações musicais não estão sozinhas em relação à atração de foliões. Pode-se ainda observar que a Batalha
de Espadas era até então o principal elemento “magnético” que instigava a visita e participação dos turistas no
espetáculo, graças a sua beleza pirotécnica revestida
pelo perigo. Levando em consideração a opinião pública, a questão das Espadas gerou e ainda gera muitas
polêmicas entre os moradores, devido a sua importância cultural.
36
Em terceiro lugar e não menos importante se
observa o planejamento da festa pelo poder público
municipal. Porém, segundo o gráfico, o planejamento
como fator de atração não ocupa posição de destaque,
tendo em vista que apenas 20% das pessoas manifestou sua opinião nesse sentido, sendo que os elementos
que compõe o espetáculo tem mais poder.
O gráfico abaixo representa o planejamento e
organização no âmbito das Festas Juninas do ponto de
vista da sua avaliação.
Com base nas informações do gráfico 45% das
pessoas classificaram a organização da festa como
“boa”, justificando que o poder público municipal oferece toda infraestrutura necessária para os tipos de
foliões. Cerca de um terço afirmaram que o planejamento pode ser considerado como regular, na medida
em há a necessidade de se pensar nos problemas socioambientais que envolvem o evento.
Parte da amostra avaliou o planejamento da
festa como ruim, justificando que o espaço para a festa
(a Praça do Sumaúma) não comporta a quantidade de
foliões que prestigiam o espetáculo, pois para a sua
dimensão atual torna-se necessária uma relocação.
Figura 04 - Avaliação do Planejamento da Festa
Bom 45%
Regular 32,5%
Ruim 22,5%
Fonte: Reinaldo Silva. Saída de Campo, Janeiro de 2012.
É percebido que as opiniões são variadas no que
toca à questão organizacional e estrutural da festa
como todo. Em relação às consequências da promoção
do São João, os moradores apontaram como positivo o
fluxo de turistas que fomenta o comércio e consequentemente aumento dos postos de trabalhos temporários,
principalmente em hotéis, lanchonetes e restaurantes
da cidade.
Além do papel econômico, a questão da interação cultural e entretenimento foram apontados como
fator positivo, contribuindo dessa forma para divulgação da cidade para o país. Considera-se que é importante refletir em que medida às questões apresentadas
acima podem ser consideradas como positivas.
Como aspectos negativos, foi dada uma atenção
especial para a questão da poluição sonora e ambiental, levando em conta o fluxo de foliões no espaço urba-
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
Festas juninas em Cruz das Almas/BA: suas implicações urbanas e o papel da municipalidade frente às políticas de planejamento
no, principalmente na Praça Senador Temístocles Passos e no Sumaúma. A falta de estrutura suficiente provoca engarrafamentos constantes, comprometendo a
dinâmica funcional da cidade.
Em entrevista com Secretário Municipal de
Esporte, Cultura, Turismo e Lazer, foi colocada a questão da proposta de relocação, com o intuito de minimizar os distúrbios causados pela concentração de foliões
no espaço principal. Segundo o secretário:
“Eu acho que na minha opinião de secretario e
cruz-almense, não tem como relocar porque se
sair da praça do sumaúma, vai pra qual lugar? A
nossa cidade não tem áreas amplas abertas
desocupadas e a gente vê que tem essa preocupação, pois alguns terrenos que utilizamos
são alugados e anos após ano são construídos
novas casas e há uma preocupação para que
não haja uma concentração muito grande de
foliões na praça do sumaúma.” (Mário do Jornal, Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer).
Percebe-se a partir daí, que existe uma dificuldade para a relocação da festa devido à falta de espaços
amplos e disponíveis. Assim sendo, a alternativa para o
secretário seria então, promover um equilíbrio entre as
duas principais praças, ou seja, a descentralização da
festa.
“... e a alternativa no momento é colocar bandas de peso tanto na Praça do Sumaúma quanto da Praça Multiuso, sendo uma forma de dividir o público, vamos supor, no mesmo horário
você tiver Flávio José na Praça do Sumaúma
você tem Adelmário Coelho na Praça Multiuso... nem todos gostam de Flávio José ou Adelmário Coelho, então uma parte vai ficar numa
praça e um parte vai ficar na outra e então o que
poderia fazer em relação a esse problema é
essa investida. Então seria equilibrar com
novos espaços... vai aumentar o custo vai.”.”
(Mário do Jornal, Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer).
Para o secretário, a melhor alternativa seria a descentralização da festa, colocando bandas de peso,
tanto no Parque Sumaúma, quanto na Praça Multiuso.
Essa proposta é baseada no exemplo do carnaval de
Salvador, que por sua vez, foi descentralizada com
obtenção de sucesso.
Uma das reflexões mais pertinentes dos moradores consiste no direcionamento da renda proporcionada
pela festa. Será que os benefícios econômicos atendem realmente a toda a população ou apenas a uma
minoria estabelecida em seus pontos comerciais, restaurantes ou hotéis? Será que as propostas do PDDU são
suficientes para atender as demandas dos festejos?
Voltando a indagação inicial desse trabalho, no
tocante à força das festas populares para resistirem aos
impactos da modernização capitalista, conclui-se que,
as mesmas não são capazes de se manter sem a
influência dos modelos e padrões de natureza capitalista, entendendo que tais influências interferem não só
nas estruturas espaciais projetadas, mas também na
mentalidade dos espectadores, consequentemente na
demanda da sociedade como todo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sistema capitalista de produção do espaço faz
parte dos fatores que influenciam os padrões da sociedade, alterando de modo cada vez mais frequente, as
demandas, anseios e necessidades. Assim, uma manifestação cultural, que por sua vez remete a concretização das práticas de um povo, sofre demasiadamente,
adaptações de acordo com esses padrões. A concepção de espetáculo é aplicável para os festejos juninos
de Cruz das Almas – BA.
Com base na pesquisa, pode-se constatar que a
cidade referida possui uma dinâmica festiva muito
intensa, do ponto de vista do grande público e de sua
projeção imagética, com repercussão nacional, onde se
apresentam de peso midiático considerável. Assim sendo, os impactos são notáveis, a exemplo da superlotação do espaço, considerado insuficiente para comportar o grande público. Nesse sentido, pensar numa festa
junina organizada remete a necessidade de melhorar o
seu planejamento a partir das ferramentas legais a
exemplo do PDDU.
Numa perspectiva propositiva, entende-se a relevância de revisão do Plano diretor, no tocante às prioridades e demandas para as manifestações populares
da cidade, mais especificamente, o São João como principal festa. Ainda nessa perspectiva, vê-se a necessidade do poder público repensar na população como o
todo, não apenas no que se refere à infraestrutura, mas
sim, converter as potencialidades turísticas em desenvolvimento.
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Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 31-38, jan./jun., 2013.
O TREM E A COMUNIDADE QUILOMBOLA NA CIDADE DE CRUZ DAS ALMAS-BA
Nilton Antonio Souza Santos*
O presente artigo apresenta como objeto de estudo a formação Comunidade Quilombola na cidade de Cruz das
Almas. O objetivo norteador foi compreender a relação do trem com a comunidade da linha, a pesquisa está
concentrada entre os anos de 1938 a 1950, a escolha desse recorte se deu aproximadamente no ano de 1938,
quando surge à comunidade com a chegada dos primeiros moradores, e na década de cinquenta começava a
construção da linha nova, que tinha como intuito de facilitar o transporte da estação velha para o centro da cidade. A
partir das memórias e narrativas dos moradores da cidade, das experiências e vivências deles, possibilitou
entender as várias maneiras que o trem contribuía para o desenvolvimento e crescimento da cidade assim como da
comunidade, associando ao surgimento e formação da mesma. O trem proporcionou sociabilidades e práticas no
cotidiano da cidade contribuindo na mudança do espaço e trazendo uma nova dinâmica nas relações entre o trem e
as pessoas. A partir de tal analise, o estudo foi desenvolvido no contexto. O estudo utilizou-se, como fonte
privilegiada, os depoimentos de ferroviários aposentados, moradores e ex-moradores da comunidade e da cidade.
Além das fontes orais, foram analisadas fontes escritas como jornais e fontes imagéticas como fotografias.
Palavras- chave: Comunidade Quilombola. Trem. Cruz das Almas.
This paper presents an object of study the formation Quilombo Community in the city of Cruz das Almas. The guiding
objective was to understand the relationship with the community of the train line. The research is concentrated
between the years 1938 to 1950. The choice of this cut was in the year 1938 when the community comes up with the
arrival of the first inhabitants, and 1950 is the year that will begin construction of new line, which had as its objective to
facilitate transport to the old station the city center. From the memories and narratives of the city's residents, their
experiences and the experiences made it possible to understand the various ways that the train contributed to the
development and growth of the city and the community, linking the emergence and formation of the same. The train
provided sociability and practices in the life of the city contributing to the change of space and bringing a new dynamic
in relations between the train and people. From this analysis, the study was developed in the context. The study was
used as a singular source, the testimony of railroad retirees, residents and former residents of the community and the
city. Apart from oral sources, written sources were analyzed as newspapers and photographs as source imagery.
Keywords: Quilombo Community. Train. Cruz das Almas/BA.
INTRODUÇÃO
No inicio do século XX a produção brasileira se
locomovia em lombos de animais, e costas de homens,
o aumento das produções fez com que houvesse a
necessidade de transporte que escoasse a economia
em maior quantidade por um custo bem menor. Devido
a essa necessidade é inaugurada a primeira Estrada de
Ferro Central do Brasil (EFCB), por sua vez, construiu
no ano de 1886 uma ligação entre as cidades do Rio de
Janeiro e São Paulo. Essa nova estrada de ferro diminui
o tempo nas viagens, que dependendo do percurso levaria até semanas, quando feita por animais ou a pé.
O transporte ferroviário fez parte da ascensão da
economia brasileira em meados do século XIX, e teve
grande importância no desenvolvimento das cidades no
Brasil, na maioria delas construídas com fins comerciais, com o objetivo de transportar mercadorias como:
café, açúcar, farinha, fumo e outros produtos de peso. E
em seguida usada para transportar pessoas, passando
a ser um dos mais importantes meios de transporte
mais usados da época.
Alguns documentos analisados afirmam que os
primeiros trilhos da Estrada de Ferro chegam a Salvador com seus primeiros metros, saindo do centro da
cidade, passando pelo porto até Mapele, esse seria os
primeiros 21Km da Estrada de Ferro por volta de 1860.
(SALVADOR, Rede Ferroviária Federal S/A, p. 4).
Aliado a esse estudo sobre o Trem na Cidade de
Cruz das Almas, torna-se viável perceber uma possível
relação, baseando-se na perspectiva de estudos centrados nas comunidades remanescentes de quilombos.
Esse projeto está centrado na linha de estudos Afrobrasileiros, com o objetivo de compreender a relação do
trem e a Comunidade Quilombola, uma vez que, existe
toda uma interdependência, pois essa comunidade é
*Especialista em História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena (Faculdade Maria Milza/BA); E-mail: [email protected].
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
Nilton Antonio Souza Santos
composta em sua maioria por negros, conhecida como
“Comunidade da Linha”, por conta da linha do trem no
devido espaço.
A metodologia desempenhada nesse estudo foi
composta por alguns documentos, projetos referentes
ao tema, bibliografias que discutem a temática aqui
exposta, entrevista com moradores e ex-moradores da
comunidade quilombola, a fim de entender como se
dava a relação entre o trem e a comunidade. A realização desse trabalho consiste em contribuir para a pesquisa no âmbito histórico e acadêmico, visando identificar o conhecimento da existência dessa comunidade.
Segundo alguns relatos, o trem tinha uma importância fundamental no cotidiano das pessoas, sendo o
principal agente responsável para formação dessa
comunidade. Contudo, analisar essas experiências de
vida formada por uma comunidade negra de gente simples, num Recôncavo diversificado socialmente e culturalmente, reflete a relevância do valor social que possui
esta pesquisa, dando valores a esses sujeitos antes
relegados pela historiografia.
Nessa expectativa o presente artigo está organizado na seguinte divisão: o trem na cidade e a comunidade. Assim o presente estudo terá um grande significado para historiografia baiana, já que existem poucos
trabalhos na região sobre esses grupos.
É preciso ainda considerar que estimular a discussão sobre estudos centrados na área Afrobrasileira, viabiliza toda uma produção histórica que por
muitos é relegado, sem o menor valor e atenção a qual
merece. Um estudo também pautado no social em seu
âmbito local torna-se imprescindível, o que permite também deixar viva a história dos remanescentes de quilombo no Brasil, podendo ainda colaborar para colocar
no cenário historiográfico regional/local todo um levantamento de fontes históricas sobre o trem e a comunidade quilombola no presente município.
O TREM NA CIDADE
A estação de Cruz das Almas está ligada á Estrada de Ferro Central da Bahia, linha Sul, que liga-se ao
trecho que prossegue fazendo junção com a Estrada de
Ferro do Brasil em Minas Gerais. “Até as duas primeiras
décadas do século XX, a maioria das viagens da Bahia
para o Centro- Sul do país era basicamente a pé, ou em
lombos de animais” (ESTRELA, Educ, 2003).
A chegada do trem vai conectar os Estados, as
pessoas, e resolver problemas e interesse das elites da
época. Um dos inventos que vai surgir nesse momento
é a primeira locomotiva no início do século XIX com
alguns quilômetros e com velocidade abaixo de
20Km/h, pelo Engenheiro Inglês George Stephenson,
dando inicio a Era das Ferrovias.
40
Figura 1 - Estação Velha de Cruz das Almas,
em Ruínas. (11/08/2009)
Fonte: Arquivo Pessoal Nilton Antonio Souza
Antes da chegada da Estrada de Ferro ao Brasil,
a produção brasileira se locomovia nas estradas de
terra as margens do rio, por lombo de animais, carro de
bois, costa dos homens além do Transporte Flúvio –
Marítimo; produtos como café, cana de açúcar, algodão
entre outros produtos agrícolas. O aumento nas produções de mercadorias fez com que houvesse uma
necessidade de um transporte que escoasse em maior
quantidade, pois havia muitas dificuldades para transportar as mercadorias de uma região para outra, já que,
os meios de transporte existentes eram muitos escassos e lentos. Além de transportar em maior contingente
as mercadorias, o transporte ferroviário surgia como
moderno e rápido para aquela época. Segundo Estrela:
O deslocamento para o Centro- Sul era penoso, difícil, dispendioso, exigindo das pessoas
enorme desgaste físico e emocional. As condições das chamadas estradas reais eram péssimas colocando em risco a vida de viajantes que
se aventuravam a percorrê-las.
(ESTRELA,2003, p.78)
Para melhoria e dinamismo, o governo incentivou algumas empresas nacionais e internacionais,
garantindo algumas isenções para que elas incentivassem a vinda da Estrada de Ferro para o país.
No inicio da instalação da Estrada de Ferro Central da Bahia (EFCB), quem era Prefeito na cidade de
Cruz das Almas era o Major Alberto, filho do Senador
Temístocles. A abertura da linha naquela época estabeleceu um traçado e dependia das pessoas que morava
nos terrenos para autorizarem a abertura. Para a Rede
Ferroviária dá procedimento á instalações dos trilhos
principalmente no Recôncavo Baiano foram precisas
algumas negociações entre o poder público e privado
em Cruz das Almas. Os políticos que estavam no poder
tinham forte influência nas decisões políticas, econômicas e no direcionamento da cidade. O trem iria passar
por onde hoje é chamada Rua Rio Branco.
De acordo com a memória coletiva, várias ver-
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
O trem e a comunidade Quilombola na cidade de Cruz das Almas-BA
sões explicariam o motivo para o Trem não ter passado
no Centro de Cruz das Almas, segundo Maria de Lurdes, “existiu um canavial na rua: Rio Branco que proibido pelo seu proprietário, impediu que a Estrada de
Ferro passasse pelo centro da cidade” (Maria Lurdes,
28.10.2009). Já o senhor Alino Mata Santana em seu
depoimento conta que:
Quando Temístocles soube que o Trem iria passar por ali, ele foi ao Rio de Janeiro na Companhia, anunciar a proibição da linha no centro da
cidade, alegando que deixaria de fazer suas
“sestas” depois do almoço por causa do barulho do trem, incomodaria no seu descanso.
(04.10.2009).
As elites políticas de Cruz das Almas exerciam
uma relação significativa com as elites políticas nacionais, o poder desse homem teve forte influência na geografia da cidade. Segundo relato de Alino Mato Santana:
Cruz das Almas ainda era muito pequena, uma
vilazinha com pouco mais de mil habitantes,
havia poucas casas na praça. As que ficavam
em mais destaque era a do Senador Temísthocles e do filho dele Major Alberto que ficou
conhecido como o mais poderoso político local.
A cidade era praticamente a praça, tinha um
pedaçinho onde hoje é a rua da vitoria, um pedacinho da rua dos poções o resto era tudo mata,tinha um caminho que ia da cidade para Estação do Pombal, as ruas iniciais que partia da
praça para Estação passou a ser chamadas,
Rua da Estação, estrada que levaria a Estação
do trem e rua Rio Branco ou estrada de ferro
como é conhecida, onde iria passar o Trem.
Como a Estação do Pombal ficou muito longe
do centro da cidade, as pessoas pra chegar á
Estação normalmente iam caminhando ou de
animal. (04.10.2009).
Aproximadamente seis quilômetros separam a
centro da cidade de Cruz das Almas para Estação Ferroviária, para as pessoas embarcarem, quando disponível fretavam os escassos transportes até a Estação,
ou partiam a pé caso optasse. Segundo a moradora de
Cruz das Almas D. Maria de Lurdes conta que “O trem
foi o transporte mais utilizado pelos moradores, viajantes e comerciantes de Cruz das Almas, atendia as
necessidades da população, o trem era o único meio de
transporte que existia”. Em sua entrevista D. Maria de
Lurdes diz que:
do casamento foi de trem, esse meio de transporte proporcionou para a vida do casal, de alguma forma, sensações e emoções indelegáveis na memória dos primeiros dias da vida conjugal. Por outro lado percebe-se na
entrevista de D. Maria, que foi também um momento de
dificuldade quando a mesma chegou na cidade ás dez
horas da noite, momento em que a cidade já “adormecia”,carregando muitos de seus utensílios e foi na estação que ela conseguiu abrigo para guardar seus pertences, pois a dificuldade em ter um transporte para o centro da cidade era muita. Desta forma observa-se que a
Estação de Cruz das Almas se configurava como um
lugar multifuncional. Milton Santos escreve que “os
meios de transportes existentes na época eram apenas
o carro de boi, o lombo dos animais e as costas do
homem, além de transporte flúvio- Marítimo por intermédio de barcaças” (SANTOS, 1998, P. 71).
De acordo com os relatos acredita-se que havia
muita dificuldade para sair da região por outros meios
de transportes, as estradas eram irregulares, muitos
buracos, e os transportes eram poucos, então para se
locomover de um município para outro, o trem era o
mais confiável, mesmo com atrasos que não deixavam
de ocorrer, existia o horário.
A Estação do Pombal foi aberta pela E. F. Central
da Bahia na sua linha principal, em 1881. Com trecho de
São Feliz a Machado Portela nessa época Cruz das
Almas ainda não era município, emancipando-se nos
anos de 1889, dezesseis anos após a inauguração da E.
F. C da Bahia, o prédio que hoje está em ruínas foi
reconstruído em meados dos anos 40, pelo Engenheiro
Eurico Macedo. (SÁ, 2007). Nesse momento a Estação
do Pombal passou a ser chamada de Estação de Cruz
das Almas, alguns anos depois quando constrói o Ramal
no centro da cidade, a Estação velha passa a ser chamada de Estação Eurico Macedo e o Ramal que seria a
Estação Nova, fica com o nome de Cruz das Almas.
Figura 2 - Estação de Cruz das Almas, área de
embarcação de pessoal (11/08/2009)
Quando eu casei, vim morar em Cruz das
Almas de trem, cheguei aqui as dez horas da
noite, não tinha como trazer as coisas todas,
pegou o de mais necessário o resto ficou no galpão da estação pra pegar no outro dia, e toda
vez que eu queria viajar para Castro Alves ou
outro lugar era de trem, não tinha outro transporte. (LURDES, 28.09.2009)
A primeira viagem de D. Maria de Lurdes depois
Fonte: Arquivo Pessoal Nilton Antonio Souza
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
41
Nilton Antonio Souza Santos
O trem era um dos meios privilegiados de transporte no município de Cruz das Almas que ligava uma
região a outra, que fazia a interlocução, a troca de cultura, adentrava fazendas, matas e plantio. Serviu para
transportar muitas pessoas para as varias regiões do
Brasil por onde passou os trilhos da Leste Brasileiro. O
transporte ferroviário tinha várias funções em Cruz das
Almas, tanto para atender a população da cidade como
no Recôncavo em geral, além de trazer muitas matérias
prima, o trem era muito utilizado para mover a economia
de Cruz das Almas.
O trem fez parte da ascensão da economia brasileira em meados do século XIX, e não foi diferente na
região onde hoje está localizada a cidade de Cruz das
Almas, teve grande importância para sua construção e
desenvolvimento.
A Estação de Cruz das Almas já foi por décadas
lugar de sociabilidade, hoje encontra abandonada, e
apesar do desprezo, ainda funciona como transporte de
cargas seguindo a linha Sul, de Salvador a Minas Gerais, seguindo para São Paulo ao longo do tempo. A estrada em seu percurso passou por diversas cidades e localidades entre elas: São Felix, Muritiba, Cruz das Almas,
Castro Alves, Iaçu, Queimadinhas, Bandeira de Melo,
Itaité, Machado Portela, Iramaia,Contendas, Brumado,
Caculé, Urandir, Espinosa, Mamonas, Monte Azul no
Estado de Minas Gerais. Sendo incorporada em 1957,
com todos os seus bens ao Patrimônio da Rede Ferroviária Federal S/A.
Com bases nessas informações e percebendo a
importância que teve o trem para a cidade de Cruz das
Almas, criou um olhar atento e curioso para a comunidade da linha, atual comunidade quilombola, um estudo
centrado na investigação sobre a relação que teve o
trem com a formação da comunidade.
A COMUNIDADE DA LINHA EM CRUZ DAS ALMAS
A comunidade negra rural da linha, que localizase a quatro quilômetros do atual centro da cidade de
Cruz das Almas é composta por famílias que se instalaram nas proximidades da linha do trem e por ventura
foram construindo suas casas, e ali foram feitas as
roças para o abastecimentos das famílias que naquele
espaço se formaram. Inicialmente só havia casas de
taipa e casas de palhas, e assim foi desenvolvendo-se a
comunidade no espaço próximo a linha férrea.
Assim nesse contexto conceitua-se o termo remanescente de Quilombo que recaí a idéia de que há uma
existência/sobrevivência da comunidade que por certas
vias depende da historização do seu passado. Segundo
Reis e Gomes:
No Brasil essa memória não é absolutamente
apagada, se consideradas as comunidades
chamadas de remanescentes de quilombos
42
que realmente podem traçar seu passado até
agrupamentos constituídos antes da abolição,
em 1888. (REIS E GOMES, p.10 1996).
Tendo como fonte metodológica a memória oral,
percebe-se a importância desses relatos, onde moradores que ali vivem ou viveram resgatam a historicidade
desses sujeitos para a formação que compõe a comunidade.
Para melhor aprofundamento desse estudo tornou-se imprescindível, conceituar algumas palavras
chaves que são pertinentes ao desenvolvimento da
mesma. Para iniciar coloca-se em face á semântica da
palavra/termo quilombo, como escreve a autora Gloria
Moura:
Quilombo tem etimologia no idioma africano
quimbundo (...) derivaria de Kilombo, sociedade iniciática de jovens guerreiros mbundu adotada pelos invasores jaga ou imbangala, estes
formados por gente de grupos étnicos desenraizada de suas comunidades. (MOURA,1996,
p.328)
(...) quilombo contemporâneos no Brasil, comunidades integradas á humanidade, cuja diversidade cultural precisa ser respeitada e reconhecida. Para o imaginário brasileiro, quilombo
foram agrupamentos de africanos escravisados fugidos de engenho, fazendas e minas que
tentaram reproduzir vida comunitária á semelhança da África, terra de origem, para fugir dos
maus-tratos infligidos pelo senhorio branco
europeu. Cabe tratar de quilombo contemporâneo comunidades remanescente, terras de preto, mocambos, terras de santo ou santíssimo
ou terras de herança sem formal de partilha que
o movimento social fez sinônimas, aplicando o
artigo 68 da Constituição. Desvela parte da história do negro no Brasil atual. (MOURA, 1996,
p. 327/328,)
Conforme o conceito do termo Quilombo, extraídos do autor acima podemos re-significar a importância
e transparecer um pouco da historização da então
comunidade quilombola, que tem como início da sua formação aproximadamente no ano de 1938. (D. Constância, 22.09.2011)
D. Constança uma das moradoras mais antigas
da comunidade conta que veio de uma família de origem muito humilde e morava no terreno da atual escola
de Agronomia, aos dezessete anos já trabalhava como
arrendeira na fábrica de fumo, nessa época, o Governo
Federal praticamente expulsou os moradores e fazendeiros do terreno que ali residiam. A mesma afirma que
alguns moradores não receberam nem se quer aviso
que seriam expulsos, esses moradores e fazendeiros
foram obrigados a deixar suas casas, sendo que os
fazendeiros receberam uma pequena gratificação do
governo como forma de pagamento da sua retirada do
local, relembra que alguns desses fazendeiros “morreram de paixão” (desgosto), devido ao fato ocorrido. Os
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
O trem e a comunidade Quilombola na cidade de Cruz das Almas-BA
demais moradores de condições desfavoráveis como o
caso da família de D. Constança nada receberam, restando-lhe apenas procurar um local para morar.
Continuando, D. Constança conta que sua mãe
preocupada em ter uma moradia diante da situação,
resolve ir ao encontro do mestre de linha responsável
pela estrada de ferro (E. F. C.B) que passa pela da atual
comunidade, onde solicitou que pudessem construir
naquele local, o pedido foi aceito, porém houve uma condição a qual teria que ser construída a quinze metros
antes ou depois da linha para melhor segurança. Ao
chegar nessa nova localidade conhecida como Fazenda grande Beira do Rio (atual comunidade quilombola),
havia uma única moradora que se chamava Maria São
Pedro de Jesus, e também alguns trabalhadores da
pedreira (D. Constância, 22.09.2011). A partir de então
foram chegando outros moradores com particularidades distintas, uns com autorização do chefe de linha
outros sem, e assim foi formando a comunidade próxima à linha. Sobre o conceito de comunidade negra rural
Gloria Moura esclarece:
Comunidade negra rural habitada por descendentes de africanos escravizados, com laços
de parentesco. A maioria vive de culturas de
subsistência, em terra doada, comprada ou
secularmente ocupada. Valoriza tradições culturais de antepassados (religiosas ou não) e as
recria no presente. Possui história comum, normas de pertencimentos explícitas, consciência
étnica. (MOURA, 1996, P. 330).
Fomos capazes de mostrar que se trata de
grupo social com identidade muito definida,
constituindo uma comunidade exclusivamente
de negros, distintas radicalmente dos demais
grupos circunvizinhos e que ocupa a área de
forma contínua (...), fundamental é a capacidade do grupo de constituir um território autônomo e demarcá-lo simbólica e geograficamente.
(MOURA, 1996, p.333)
E sobre tais características foram modelando e
estruturando - se a formação da comunidade. Por outra
vias surgiam os problemas que permeavam a todos que
viviam naquela localidade, a falta de água, energia, trabalho, transporte, credibilidade de emprego para os
moradores, pois tinham ainda que lidar com o preconceito dificultando muito a sobrevivência no espaço.
Algumas mulheres da comunidade sofriam vários tipos de descriminação, homens que residiam na
atual escola de agronomia de melhores condições
financeira iam até a comunidade para beber e fazer farras, incomodando assim a comunidade local, insatisfeitos com a reação dos moradores, apelidava-os de “baixa da égua”. (D. Constância, 22.09.2011)
Durante a década de cinquenta devido ás dificuldades dos viajantes e comerciantes em transportar as
cargas para o centro da cidade, para melhor facilidade
em deslocar minérios e outros produtos para o recônca-
vo e para o exterior, principalmente pelo porto de Maragojipe, foi criado um Ramal da linha velha para o centro
da cidade, essa nova linha passaria dentro da comunidade estabelecendo facilidade para população cruzalmense.
Muitos dos moradores viram no trem um meio de
socialização com pessoas que não estavam inseridas
no contexto da comunidade, já que próximo era o lugar
onde trem descarregava e carregava produtos, como
também embarques e desembarques de pessoas que
viajavam para diversa localidade. Surgindo assim
expectativas por dias melhores. D. Maria de Lurdes
conta que:
Depois que o povo migrou igual a “bando” de
borboleta, gente de não chegar até seu destino,
porque caía nos trilhos, à classe não comportava aquele povo todo, não tinha onde se mover,
era menino chorando, às vezes urinava ali mesmo, era o povo do Norte. (LURDES,
27.10.2009).
Pois, naquela época o trem era o meio de transporte mais utilizado pelos cruzalmenses, muito normal
que as viagens fossem difíceis e perigosas devido o
excesso de passageiros.
No depoimento do Sr. Simão também morador
da comunidade, afirma que nasceu e cresceu dentro da
comunidade vivenciando o crescimento e o desenvolvimento da mesma, ele conta às dificuldades que a comunidade passou, afirma que sempre houve descasos das
autoridades políticas locais com referencia aos direitos
básicos da sociedade. Devido a essa dificuldade, aos
catorze anos Sr. Simão saiu para trabalhar em busca de
novas oportunidades, hoje com sessenta e dois anos e
morador dessa comunidade vivência grandes mudanças e grandes conquistas.
Hoje Sr. Simão é um dos membros da associação dos moradores da comunidade da linha, ver em
meados do século XX pela primeira vez água encanada
vinda de uma fonte revertida de cimento, esta água só
se tornou possível com ajuda do Sr. Catarino Pereira
dos Santos morador dessa comunidade, juntamente
com o Sr. Carlos Valter dono de um estabelecimento
comercial no Centro da cidade de Cruz das Almas.
A fonte de água abasteceu por mais de oito anos
todas as casas da comunidade da linda, só veio a diminuir seu abastecimento por volta de 2008, quando ali
chegou água encanada. Hoje ainda se encontra em funcionamento abastecendo aproximadamente dez casas,
por motivos financeiros.
Podemos entender a comunidade quilombola da
linha como um lugar de resistência, pois desde seu inicio houve dificuldade com esses moradores que residiam na localidade seja nas condições financeiras ou nas
adversidades que sempre esse povo de coragem e
resistência lutou e batalhou para encontrar e chegar ao
reconhecimento. Esse traço marcante como expressão
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
43
Nilton Antonio Souza Santos
de resistência torna-se a história da comunidade negra
da baixa da linha semelhantes a centenas de outras
comunidades negras espalhadas pelo Brasil que fizeram do silêncio uma arma poderosa de demarcação de
sua alteridade frente aos grupos circundantes.
Portanto, em face às esses questionamentos,
conclui-se que a história da comunidade quilombola por
sua vez está enquadrada com a própria história da linha
ferroviária na região estudada.
Figura 4 - Fonte de água da comunidade (13.08.2011)
Fonte: Arquivo Pessoal Nilton Antonio Souza
Figura 3 - Associação e Igreja da comunidade
atualmente (13.08.2011)
formação ainda há uma visão preconceituosa por parte
de algumas pessoas sobre os moradores dessa localidade, apontando-os como marginais e desqualificados,
uma visão sem fundamento, que não confere ao comportamento desses moradores. Alguns sim apresentam
situações que requerem uma atenção maior, são famílias de baixa renda com necessidades de incentivos de
políticas publicas sociais. Por outro lado ocorreram
transformações em que alguns moradores passaram a
ter um trabalho fixo, possuindo salários e carteiras assinadas mantendo desta forma o sustento familiar, muito
deles trabalham no centro da cidade, tendo condições
favoráveis em adquirir bens materiais, educação para
os filhos e outros recursos necessários. Portanto tratase de uma comunidade inserida nos movimentos culturais e sociais da cidade de Cruz das Almas.
Um forte avanço bastante significativo para a
comunidade foi o reconhecimento enquanto comunidade quilombola. Inicialmente foi uma proposta da Prefeitura e da Secretária de Políticas Especiais de Cruz das
Almas, formulou-se o projeto com a realização de um
estudo que iria ocorrer com as comunidades rurais da
cidade, na área de abrangência municipal com o objetivo de obter dados etnográficos para um possível relatório descritivo das comunidades rurais:
As pesquisas de campo iniciaram na Comunidade da Baixa da Linha tiveram inicio no mês
de Agosto de 2009. O objetivo, nesse caso, era
perceber a dinâmica própria da comunidade e
sua possível identificação enquanto remanescente de quilombo. Este relatório, portanto,
visa atender a esta solicitação (...) com os anseios da comunidade local, viabilizando assim, a
garantia dos direitos constitucionais aos quais
as Comunidades Negras quando identificadas
Remanescentes de quilombos, têm assegurado pela Constituição Federal. (Projeto Levantamento de Quilombos, p.2)
Por anos esse povo viveu sob ameaça em perder
suas casas e terras, hoje a comunidade é reconhecida
como remanescente de quilombo o que trouxe conforto
e segurança para a comunidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fonte: Arquivo Pessoal Nilton Antonio Souza
Depois de algumas reivindicações e listas assinadas pela população da comunidade visando sempre
à melhoria e o bem estar dos moradores, que viveram
aproximadamente um século sem água encanada e
sem luz elétrica, conquistados apenas no século XX.
Atualmente essa comunidade tem tido muitos resultados favoráveis, luz elétrica, água encanada, telefone
(orelhão).
A comunidade apresenta modificações bastante
relevantes em seu contexto geográfico e social. Na sua
44
A comunidade da linha, atualmente reconhecida
como comunidade quilombola, demonstra-se na sua
contextualização histórica, um espaço de significação e
re-significação na vida dos sujeitos que teve e tem nela
suas vidas inseridas, mesmo com as dificuldades e contratempos que não deixaram de ocorrer, trouxe para a
comunidade cruzalmenses em geral outra visão ao destacar as especificidades particularmente concentradas
naquela região, sob a iniciativa de instituições políticas
da cidade e também alguns colaboradores envolvidos
em levantar dados qualitativos com relação ao estudo
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
O trem e a comunidade Quilombola na cidade de Cruz das Almas-BA
concentrado na formação da comunidade, influenciando no desenvolvimento da mesma.
Assim foi possível contextualizar a relação do
trem com a comunidade, traçando as especificidades.
Ao analisar a relação do trem com o município de Cruz
das Almas foi relevante traçar/identificar um panorama
geral sobre o trem, realizado através do levantamento
de fontes orais, bibliográficas que permeavam desde a
criação da Rede Ferroviária no Brasil, evidenciando o
período de surgimento da rede ferroviária, o ramal que
estava inserido na cidade de Cruz das Almas, para
quais finalidades, onde localizava, qual era o intuito,
sendo esses alguns questionamentos esclarecidos
durante o andamento do estudo, pois a necessidade
maior do aproveitamento do trem era que houvesse um
transporte que escoasse a economia em escala por um
custo menor, sendo inaugurada a primeira Estrada de
Ferro Central do Brasil.
Durante o andamento dessa pesquisa também
foi observado toda a dinâmica de funcionamento do
trem, mostrando todo o contexto histórico da chegada
da Estrada de Ferro no Brasil, na Bahia e em alguns trechos do Recôncavo, citando como se davam as várias
formas de instalação das estradas e ramais dos respectivos lugares, além de caracterizar toda influência na
modernização e crescimento do país, como também a
chegada dos primeiros trilhos na Bahia e seus tantos
ramais que se estalaram por todo o Recôncavo. Enfatizando a importância da Estação Ferroviária de Cruz
das Almas e o Novo Ramal que se estalou na mesma.
Identificando ainda a relação/contribuição do trem para
com a comunidade.
Sobre a comunidade constatou-se que é uma
comunidade rural negra, que teve sua origem através
de pessoas com contextos distintos. De acordo com trechos do projeto Levantamentos de quilombos, diz que
atualmente a comunidade consta cerca de cento e sete
casas, além de dose casas abandonadas, num total de
cento e dezenove casas aproximadamente.
Foi notória a contribuição do trem para a existência da comunidade quilombola, ao tempo que contemplou questões que permeavam sob sua formação,
desenvolvimento e por fim afirmação como remanescentes de quilombo. Assim evidenciou inicialmente a
representatividade do trem e a comunidade de forte atuação ao nome estabelecido antes conferido a atual
comunidade quilombola.
Ficou claro nas entrevistas concedidas pelos
moradores e ex-moradores que o trem estabeleceu um
papel importante para a sobrevivência de muitos familiares, onde contemplava formas empregatícias mesmo
sendo estas temporárias, ou por período.
Ao analisar as relações do trem com as pessoas,
através dos relatos, fica evidente que a população de
Cruz das Almas dependia do trem para resolver as
necessidades do seu dia a dia. Além de ser o transporte
mais usado pelos Cruzalmense no auge da Ferrovia.
Para o município de Cruz das Almas, é possível
afirmar que o trem representou para a população em
geral incluindo a comunidade quilombola um forte significado na memória das pessoas que utilizavam desse
transporte, no cenário cultural, social e econômico, ajudando para a modernização e o crescimento da cidade.
O município ganhou uma nova dinâmica com a existência do trem, uma vez que, a sociedade foi se modificando com as novas praticas costumes e lazer em decorrência da função social do trem.
A custo ficou para a memória daqueles que apreciavam e os que viajavam a lembrança deste tão importante meio de transporte, que representou em muitos
momentos da vida dos moradores, uma importante
forma de viver, crescer e sonhar.
REFERÊNCIAS
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136p. – (leitura, escrita e oralidade)
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Corrêa Barbosa, Schuma Schumaher, Caces.- Brasília:
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REIS, Letícia Vidor de Souza (Org.) .Negras Imagens:
ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo: Estaçao Ciência,
1996.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
45
Nilton Antonio Souza Santos
SANTOS, Milton. A rede urbana do Recôncavo. Salvador: Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais - Universidade Federal da Bahia, Imprensa Oficial,
1959.
SANTOS, Catarino Pereira, 71 anos, morador da comunidade
NASCIMENTO, Simão do, 62 anos. morador da comunidade
Resumo de Históricos dos Imóveis a Serem Inseridos nas Minutas de Escrituras. Salvador, Rede Ferroviária Federal S/A.
SANTOS, Maria Constança, 90 anos, moradora da
comunidade
Sá, Manoelito Roque Actas e Atos, resumo histórico
da câmara Municipal de Cruz das Almas: gráfica e
Editora Nova Civilização, Ltda., 2007.
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Fotos : Todas de arquivo particular (Nilton Antonio
Souza Santos)
Lowenthal, David. Como conhecemos o passado.
Projeto História. (17) São Paulo:
EDUC, 1998.
Jornal: Jornal Informativo RN- Janeiro de 1972 nº14
Correio da Bahia - 06 de agosto - 2000 nº16
FONTES ORAIS
Documentos escritos: Resumo de Históricos dos Imóveis, Rede Ferroviária Federal S.A. RFFSA.
SANTANA, Alino Mata Santana, 60 anos, Memorialista
da cidade de Cruz das Almas.
Projeto Levantamento de Quilombos: Prefeitura
Municipal de Cruz das Almas (Secretaria Municipal de
Políticas Especiais.
LURDES, Maria de, 86 anos, moradora da cidade de
Cruz das Almas
46
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 39-46, jan./jun., 2013.
REVISÃO DE LITERATURA SOBRE O MECANISMO DE AÇÃO DA ARTEMISININA E DOS
ENDOPERÓXIDOS ANTIMALÁRICOS– PARTE II
Laís Cardoso Almeida*
Elisângela Santos *
Carine Sampaio *
Alex G. Taranto **
Franco Henrique Andrade Leite ***
Artemisinina é uma lactona sesquiterpênica com um grupamento endoperóxido, a qual vem sendo usada contra
cepas de Plasmodium falciparum resistentes ao tratamento com cloroquina. Os compostos endoperóxidos agem
supostamente no grupo heme levando a redução da ligação peróxido e produção de radicais que podem matar o
parasito. Estudos recentes mostraram que a artemisinina pode inibir a enzima ATPase cálcio-dependente (PfATP6)
localizada no retículo sarco/endoplamático, ou seja, fora do vacúolo do parasito Plasmodium falciparum. Atualmente, a malária mata mais do que a AIDS e o pressuposto da crescente resistência adquirida pelo parasito aos fármacos atuais endossa a necessidade pela busca de novas alternativas terapêuticas. Para a realização do estudo foi
feito um levantamento bibliográfico nos principais livros e periódicos indexados no portal CAPES. A artemisinina e
os endoperóxidos são representantes de uma nova classe de fármacos antimaláricos. Devido à resistência adquirida pelo parasito aos derivados quinolínicos, a artemisinina e seus derivados estão sendo empregados como terapia
de escolha para o tratamento de malária. O mecanismo de ação destas substâncias, embora ainda não totalmente
esclarecido, é completamente diferente dos antimaláricos convencionais, sendo, portanto uma nova esperança
para o tratamento da malária. Este artigo é a segunda parte de uma revisão sobre este os endoperóxidos antimaláricos, o qual o mecanismo de ação destes compostos é discutido detalhadamente.
Palavras-chave: Mecanismo de ação. Artemisinina. Endoperóxidos. Antimaláricos.
Artemisinin (QHS) is a sesquiterpene lactone with an endoperoxide function being currently used against strains of
Plasmodium falciparum. Endoperoxides are supposed to act on heme leading to reduction of the peroxide bond and
production of radicals that can kill the parasite. In addition, recent studies show that artemisinin can inhibit the
sarco/endoplasmic reticulum Ca2+-ATPase (SERCA) orthologue (PfATP6) of P. falciparum in Xenopus oocytes.
Nowadays, malaria kills more than AIDS and the assumption of increasing parasite resistance to current drugs
endorse the search for new therapies. To conduct the study was done in a literature major books and journals
indexed by the CAPES. Artemisinin and endoperoxide are a new class of antimalarial drugs. Because acquired
resistance by the parasite to quinoline derivatives, artemisinin and its derivatives are being used as therapy of choice
for treating malaria with the current problem of resistance to antimalarial drugs. The mechanism of action of these
drugs, though in debate by literature, is completely different from conventional antimalarial which introduce a new
hope for the malarial treatment. This paper is a second part of a review which the mechanism of action of these
compounds is showed with more details.
Keywords: Mechanism of action. Artemisinin. Endoperoxide. Antimalarial drugs.
*Acadêmicas do Curso de Farmácia da Faculdade Maria Milza (FAMAM) E-mail: [email protected];
**Professor Adjunto, Universidade São João Del Rey - UFSJ, Campus Centro-Oeste Dona Lindu, Minas Gerais. E-mail: [email protected];
***Doutorando em Biotecnologia (Universidade Estadual de Feira de Santana); Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA; Email: [email protected]
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
Laís Cardoso Almeida; Elisângela Santos; Carine Sampaio; Alex G. Taranto; Franco Henrique Andrade Leite
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento de novos fármacos antimaláricos torna-se extremamente importante, considerando-se que a resistência adquirida pelo parasita às drogas quinolínicas utilizadas para combater a malária tem
ocasionado a altas taxas de mortalidade, principalmente em crianças.
Existem quatro espécies do gênero Plasmodium
que infectam os seres humanos. Estes parasitos são
transmitidos para o homem através da picada de fêmeas Anopheles. O parasita responsável pela maioria das
infecções fatais da malária, Plamodium falciparum
pode matar os pacientes em questão de horas. A maioria das cepas de P. falciparum tem criado resistência a
cloroquina e outros antimaláricos tradicionais sendo
este a principal razão para o desenvolvimento de novos
fármacos.
Cerca de 1,5 a 2 milhões de pessoas morrem de
malária, sendo que 3 mil crianças morrem por dia na África. Os países mais comprometidos são Índia, Brasil
(cerca de 300 mil casos/ano), Afeganistão e outros países asiáticos, incluindo a China. Especula-se que 50%
da mortalidade entre a população indígena no Brasil
deve-se à malária causada por Plasmodium falciparum
(CAMARGO, 2003).
MECANISMO DE AÇÃO DA ARTEMISININA
Meshnick e colaboradores (1996) propuseram
que o mecanismo de ação dos endoperóxidos antimaláricos deve ocorrer em duas etapas. Na primeira etapa, a
artemisinina é ativada pelo heme ou pelo íon ferro(II)
livre, produzindo radicais livres e espécies citotóxicas.
Na segunda etapa, estas espécies reagiriam com uma
proteína específica associada à membrana do parasita
levando-o à morte (figura 1) (MESHNICK et al, 1996).
Pandey e colaboradores (1999) propuseram um possível mecanismo em três etapas, para explicar os efeitos
dos endoperóxidos sobre o parasita. Estas etapas
incluiriam inibição da degradação da hemoglobina, inibição da polimerização do heme e interação da artemisinina com a hemozoína, o que resultaria na quebra do
pigmento malárico e formação de um complexo com as
unidades de heme. Estas sugestões explicam a formação rápida de heme livre e a conseqüente geração de
uma fonte transitória de heme, responsável pela ação
da artemisinina e dos demais endoperóxidos antimaláricos. Isto explicaria a ação rápida destes fármacos
quando comparados com os antimaláricos quinolínicos
(PANDEY et al, 1999). Eckstein-Ludwing e colaboradores (2003) apresentaram um novo alvo molecular para a
artemisinina. Neste trabalho (RIDLEY 2003), foi
demonstrado que além da formação de radicais livres
que alquilam várias proteínas, a artemisinina atua inibindo irreversivelmente a enzima ATPase cálciodependente (PfATP6) localizada no retículo endoplamático, ou seja, fora do vacúolo do parasita.
O mecanismo da reação entre a artemisinina e
compostos contendo o íon ferro(II) foi estudado inicialmente por Posner e colaboradores (1994). Em um trabalho inicial, ele empregou um derivado 1,2,4 trioxano
marcado isotopicamente e o reagiu com FeBr2 em presença de THF, levando à formação de três produtos: dioxolona, aldeído e hidroxidioxolona, todos produtos de
metabolismo (figura 2). Em todos os casos ocorre inicialmente a quebra da ligação peróxido após transferência de um elétron do ferro(II) para a ligação O-O, seguida de deoxigenação, conforme mecanismo de ação dos
endoperóxidos descrito anteriormente (POSNER,
1992).
Em trabalhos subseqüentes, ele avançou na
interpretação do mecanismo propondo que este se passava através de migração de hidrogênio do tipo 1,5
(POSNER, 1994), levando à formação de um radical
secundário em C4 (Figura 3).
Esta conclusão estava relacionada à atividade
de compostos substituídos na posição C4, os quais
apresentam baixa atividade biológica (Figura 4).
Figura 1 - Representação da ação da artemisinina proposto por Meshnick.
Ativação
Alquilação
Fe ou heme
Espécies citotóxicas
48
Proteína Alvo
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
Revisão de literatura sobre o mecanismo de ação da artemisinina e dos endoperóxidos antimaláricos - Parte II
Figura 2 - Mecanismo inicial proposto por Posner. A rota A leva à formação da dioxolona. Na rota B forma-se o
aldeído, enquanto na rota C ocorre a formação do derivado hidrodioxolona.
O
H
-
.
-
O
O*
.
O
H
H
H
O
FeO
O
O
*O
OTs
.
FeO
O
OTs
OTs
O
O*
H
Aldeído
OMe
OMe
O
OMe
H
O
*
O
H
OTs
OTs
OTs
.
OH
*O
OMe
Dioxolona
O*
O
O
- MeO
H
H
FeO
H
.
OTs
HO
H
H
HO
O
O
*
O
*
O
O*
OMe
OMe
OMe
OTs
OTs
Hidroxidioxolona
OTs
Figura 3 - Mecanismo proposto por Posner passando pela migração 1,5 do H. Na rota A tem-se a saída direta
de Fe(II) levando à formação do derivado epóxi e pela rota B forma-se o alceno correspondente que por
oxidação origina a espécie epóxi.
H
O
O
H
O
O
H
H
O
Fe(II)
O
H
.
Fe(III)O
O
O
Fe(III)O
O
H
H
O
Migração
1,5-H
.
O
HO
H
O
O
O
H
O
O
B
A
HO
H
H
H
O
O
O
O
Fe(IV)=O
HO
H
O
H
-Fe(II)
HO
H
O
O
O
O
O
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
O
49
Laís Cardoso Almeida; Elisângela Santos; Carine Sampaio; Alex G. Taranto; Franco Henrique Andrade Leite
Posner sugeriu que, além da formação de um
radical secundário, a atividade antimalárica da artemisinina poderia originar-se na formação de um intermediário eletrofílico do tipo epóxi (POSNER, 1995), sendo
este um potente agente alquilante, ou na formação de
uma espécie ferro-oxo de alta valência.
A presença desta última espécie foi mostrada em
reações de captura com hexametilbenzeno de Dewar,
que rearranja para hexametil benzeno, com sulfeto de
metilfenila, que sofre oxidação para o sulfóxido correspondente, e com tetralina, que é oxidada para hidroxitetralina (Figura 5).
Outra observação importante está baseada no
fato de que derivados da artemisinina que apresentam
um bom grupo de saída na posição C4 não formariam o
intermediário ferro-oxo e, conseqüentemente, seriam
compostos inativos (Figura 6).
Finalmente, Posner propôs que além dos fatos
citados acima, ocorreria também a formação de um radical primário, oriundo da quebra homolítica da ligação
C3-C4, com formação de dicetona e de formiato de metila (Figura 7), os quais também apresentam atividade
antimalárica quando gerados in situ (CUMMING et al,
1998).
Figura 4 - Importância da substituição em C4. Compostos com R1 = Me , substituição em C4, possuem muito
menor atividade do que compostos equivalentes com R1 = H.
R2
Substituinte
H
R1
R1
O
O
IC 50 (ng/ml)
R2
W2
Indochina
O
OMe
H
Me
Me
Me
4,5
3,5
H
>500
>500
Me
>500
>500
8
8
Artemisinina
OH
D6
Africana
Figura 5: Evidências da formação do intermediário ferro-oxo.
Tetralina
OH
O
S
IV
Fe=O
Me
Ph
S
Me
Ph
Sulfeto de metilfenila
III
Fe-O
.
Hexametilbenzeno de Dewar
50
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
Revisão de literatura sobre o mecanismo de ação da artemisinina e dos endoperóxidos antimaláricos - Parte II
Figura 6 - Mecanismo de eliminação de grupos de saída na posição C4.
X
.
+3
Fe O
O
H
H
HO
-X
.
+3
Fe O
HO
O
OMe
OMe
X = Me3Sn
Figura 7 - Mecanismo proposto por Posner explicando a formação de um radical primário, de uma dicetona, de
formiato de metila e o derivado epóxido.
H
Fe
+2
O
O
.
Fe
OMe
H
+2
O
H
+3
O
FeO
?
+3
Fe O
H
.
O
O
O
OMe
OMe
O
+ HCOMe
.
O
H
Formiato
de metila
O
Dicetona
+3
FeO
Radical
secundário
AcO
+3
FeO
.
O
H
HO
OMe
OMe
Radical primário
- Fe+2
H
- Fe
O
H
H
O
O
AcO
+2
- Fe+2
HO
O
Fe
+3
HO
Fe
OMe
OMe
HO
Derivado
epoxidado
.
O
OMe
+4
O
H
O
O
OMe
No entanto, Posner foi duramente criticado por
Jefford, 1996 e por Avery, 1996 tanto quanto à formação
das espécies radicalares quanto à formação do produto
intermediário do tipo epóxi. Jefford, 1996, além de propor que a atividade antimalárica da artemisinina seria
devido à interrupção do processo de desintoxicação do
heme por transfêrencia de um dos oxigênios do grupamento peróxido para o heme, levando à formação de
um derivado oxiheme (Figura 8)(JEFFORD et al, 1995).
Propôs ainda, que a transferência de H4 não poderia ocorrer devido à grande distância entre o hidrogênio
de C4 e o oxigênio O2, acima de 2,1 Å, não havendo portanto a formação do radical secundário em C4 (Figura
9).
Além disso, o agente redutor no meio reacional
de Posner seria o íon Br- e não o Fe+2 (figura 10)
(JEFFORD, 1996).
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
51
Laís Cardoso Almeida; Elisângela Santos; Carine Sampaio; Alex G. Taranto; Franco Henrique Andrade Leite
Figura 8 - Formação do derivado oxiheme de por transferência de oxigênio da artemisinina para o heme.
QHS
N
DeoxiQHS
N
O
N
Fe
Fe
N
-
O
N
N
N
O
-
O
-
O
O
N
O
-
O
O
Figura 9 - Mecanismo proposto por Jefford onde não há evidências da migração 1,5 H.
A
.
+3
Fe O
H
QHS
.
B
+
Fe+2
H
.
O
O
Fe
+3
O
Quebra
3,4
O
H
O
H
O
Fe
H
H
+3
+2
O
- Fe
O
AcO
O
H
H
O
O
O
O
O
O
O
O
.
_
H
Fe
HO
H
+3
O
O
H
HO
O
1,3 H
.
1,5 H
O
O
H
O
O
+2
- Fe
O
Não evidenciado
HO
H
O
O
H
O
O
Figura 10 - Mecanismo de rearranjo da artemisinina através da redução com Br-/THF.
-
Br
QHS
O
.
.
O
Br
O
H
Br
H
H
_
_
O
..
O
HO
H
H
O
O
O
O
H
O
H
O
O
O
.
HO
O
O
O
O
-
Br
H
O
O
H
O
O
52
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
Revisão de literatura sobre o mecanismo de ação da artemisinina e dos endoperóxidos antimaláricos - Parte II
Cálculos de orbitais moleculares usando metodologias ab initio ou semi-empíricos (TARANTO et al,
2002) mostraram que os anéis contendo o grupamento
peróxido podem assumir uma conformação do tipo
bote, com baixa energia de ativação, resultando em
fácil migração do hidrogênio em C4 para o radical em O2.
Porém deve-se observar que os mesmos cálculos mostraram que a quebra homolítica da ligação C3-C4 pode
ser competitiva com a migração 1,5 de hidrogênio.
Por sua vez, Avery, 1996, tentou isolar o epóxido
através da síntese de um análogo mais estável, onde o
O13 foi substituído por um grupo CH2. Contudo, não
houve evidências de que o epóxido havia sido formado
durante o processo de rearranjo. Adicionalmente, um
epóxido sintético semelhante à artemisinina apresentou-se completamente sem atividade antimalárica (figura 11).
Semelhante a Posner, e colaboradores (1994)
propuseram um mecanismo via espécies radicalares e
por carbocátions os quais explicariam a formação dos
produtos encontrados. Estes compostos seriam fontes
de hidroperóxidos, os quais fornecem espécies eletrofílicas, radicais hidróxidos ou radicais alcóxidos, que seriam capazes de hidroxilar biomoléculas ou abstrair átomos de hidrogênio delas, levando conseqüentemente à
morte do parasita (figura 12) (HAYNES; PAI;
VOERSTE, 1999; OLLIARO et al, 2001).
Figura 11 - Derivado epóxido destituído de atividade biológica.
O
HO
H
H
O
Figura 12 - Mecanismo proposto por Haynes, no qual ocorre a abertura do anel peróxido gerando hidroperóxidos.
H
H
O
O
O
H
O
+
O
H
O
O
H
H
H
H
+
O
O
H
O
O
+
H
O
O
H
O
O
O
H
O
H
O
O
+
O
O
- H
+
O
O
H
O
H
O
Hidroxilação e oxidação
de biomoléculas
O
2+
H
Fe
H
O
O
H
O
H
O
O
O
O
H
O
O
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
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Laís Cardoso Almeida; Elisângela Santos; Carine Sampaio; Alex G. Taranto; Franco Henrique Andrade Leite
Algumas observações podem ser feitas a respeito dessa hipótese. (i) Se a reação de abertura do anel
endoperóxido for rápida o suficiente para competir com
a reação de geração do radical livre, não haveria pequenas concentrações de ROOH e portanto não poderia
exercer um efeito fatal sobre o parasita. (ii) Ainda não foi
caracterizada a biomolécula que sofreria a ação dos
radicais gerados. (iii) Em princípio o parasita seria
capaz de eliminar esses radicais através de enzimas
contra o estresse oxidativo (WU, 2002).
Finalmente, Wu et al, 1998, propuseram um
mecanismo para a reação entre a artemisinina e o heme
que contempla os demais mecanismos descritos na lite-
ratura, além de explicar a formação de outros produtos
identificados por eles. Estes autores estudaram o mecanismo de decomposição da artemisinina fazendo-a reagir com sulfato ferroso em acetonitrila, obtendo assim
os produtos mostrados na figura 13.
Similar ao mecanismo proposto por outros autores, a degradação da artemisinina começa com a transferência de elétrons do Fe(II) para a ligação endoperóxido, quebrando-a e levando à formação de dois ânions
radicais (radical em O1 ou radical em O2), os quais
podem ser interconvertidos. Estes por sua vez, através
de rotas isoladas, levam aos produtos finais conforma
mostra a figura 14.
Figura 13 - Produtos isolados por Wu e colaboradores, como resultado da reação de decomposição da
artemisinina na presença de FeSO4.
HO
H
H
O
HO
O
O
O
O
H
O
H
O
O
H
O
O
H
O
O
O
Figura 14 - Mecanismo proposto por Wu e colaboradores.
54
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
Revisão de literatura sobre o mecanismo de ação da artemisinina e dos endoperóxidos antimaláricos - Parte II
Cabe ressaltar que durante o processo de redução com Fe2SO4 não foi obtida a deoxiartemisinina,
embora este composto seja predominante na reação
com outros agentes redutores (POSNER; OH 1992,
POSNER et al, 1994, 1995, CUMMING et al, 1998). Contudo, a sua formação foi proposta. Outro fato importante
foi o isolamento do intermediário do tipo epóxido, obtido
inicialmente por Posner (POSNER; OH 1992, POSNER
et al, 1994, 1995, CUMMING et al, 1998) e criticado por
outros autores (AVERY et al, 1996). Entretanto o próprio
Wu, 1998, descreve que este apresentou rendimento
muito baixo (1 a 2%) e que foi isolado juntamente com
outros produtos de alta polaridade e baixo ponto de
fusão, sendo necessário uma reação de acetilação para
que eles pudessem ser completamente isolados.
Atualmente, o mecanismo mais aceito para a
ação da artemisinina envolve a formação do complexo
de transição, por intermédio dos átomos de ferro do
heme e O1 do endoperóxido. A posição relativa da artemisinina com respeito ao heme é determinada por interações estereoeletrônicas entre ambos, as quais afetam o rearranjo do complexo até o rompimento da ligação Fe-O. Portanto, a investigação em maiores detalhes de tais interações no complexo é importante do
ponto de vista do reconhecimento molecular do heme
com respeito à artemisinina. (COSTA; KIRALJ;
FERREIRA; 2007).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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of the Antimalarial Agent Artemisinin.Total Synthesis
of (+)-13-Carbaartemisinin and related Tetra- and
Tricyclic Structures. J. Med. Chem., v. 39, p. 1885-1897,
1996.
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2003.
COSTA, M. S.; KIRALJ, R.; FERREIRA, M. M.
C.;Estudo teórico da interação existente entre a
artemisinina e o heme. Quím. Nova v.30 n.1 São
Paulo jan./fev., 2007.
CUMMING, J. N, et al, Design, Synthesis,
Derivatization, and Structure-Activity Relationships
of Simplified, Tricyclic, 1,2,4-Trioxane Alcohol Analogues of the Antimalarial Artemisinin. J. Med.
Chem., v. 41, p. 952-964, 1998.
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SERCA of Plasmodium falciparum. Nature, 2003, 424,
957–61.
HAYNES, R. K.; PAI, H. H. O.; VOERSTE, A.; Ring
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Dihydroartemisinin and Interception of the Open
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Chemical Model for Antimalarial. Mode of Action. Tetrahedron Lett., v. 40, p. 4715-4718, 1999.
JEFFORD, C. H. et al, The Decomposition of cisFused Cyclopenteno-1,2,4-trioxanes induced by
Ferrous Salts and Some Oxophilic Reagents. Helv.
Chim. Acta, v. 78, p. 452-458, 1995.
A literatura apresenta duas principais propostas
para ação dos endoperóxidos, uma defendida por Haynes e a outra por Posner. Estas são divergentes entre si
(OLLIARO et al, 2001). No entanto, a teoria apresentada por Posner, a qual foi defendida dos argumentos
apresentados por Olliaro, é a mais aceita pela comunidade científica (POSNER; MESHNICK, 2001).
De qualquer forma, melhor compreensão do
mecanismo de ação é etapa fundamental para que se
possa desenvolver fármacos mais eficazes, muito
embora, esse avanço seja mais impedido por questões
econômicas e políticas do que por questões científicas
(MESHNICK et al, 1996).
MESHNICK, S. R. et al, Second-generation
Antimalarial Endoperoxides. Parasitol. Today, v. 12,
p.79-82, 1996.
AGRADECIMENTOS
OLLIARO, P. L. et al, Possible modes of action of the
artemisinin-type compounds. Trends Parasitol, v.
17, n. 3, p. 122-126, 2001.
Os autores agradecem ao Suporte financeiro e
físico da FAMAM- Faculdade Maria Milza, ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro, a
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB – PPP-2006).
JEFFORD, C. H. et al, The Deoxygenation and
Isomerization of Artemisinin and Artemether and
Their Relevance to Antimalarial Action. Helv. Chim.
Acta, v. 79, p. 1475-1487, 1996.
MESHNICK, S. R. et al, Second-generation
Antimalarial Endoperoxides. Parasitol. Today, v. 12,
p.79-82, 1996.
PANDEY, A. V. et al, Artemisinin, an Endoperoxide
Antimalarial, Disrupts the Hemoglobin Catabolism
and Heme Detoxification Systems in Malarial Parasite, J. Biol. Chem., v. 274, p. 19383-19388, 1999.
POSNER, G. H. et al, Evidence for Fe(IV)=O in the
Molecular Mechanism of Action of the Trioxane
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POSNER, G. H.; OH, C. H. A Regiospecifically Oxygen-18 Labeled 1,2,4-Trioxane: A Simple Chemical
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Antimalarial Activity of Artemisinin (Qinghaosu). J.
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1998.
WU, Y. How Might Qinghaosu (Artemisinin) and
Related Compounds Kill the Intraerythrocytic
Malaria Parasite? A Chemist's View. Accounts Chem.
Res., v. 35, n. 5, p. 255-259, 2002.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 47-56, jan./jun., 2013.
PREVALÊNCIA DE HIPERTENSÃO ARTERIAL SISTÊMICA E INDICADORES
ANTROPOMÉTRICOS ASSOCIADOS EM ESCOLARES NA CIDADE DE MURITIBA - BA
Fabrício Sousa Simões*
Adriano Batista Souza*
Jorge Luiz Santos de Jesus**
Tarcísio Dias da Silva**
Dados epidemiológicos brasileiros relatam prevalência de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) em crianças e
adolescentes entre 6 a 8%, e estudos americanos apresentam valores entre 2 e 10%, com faixas equivalentes de
resultados. Neste contexto, o objetivo do presente estudo é estimar a prevalência da HAS em escolares e sua
associação com indicadores antropométricos de risco para a população infanto-juvenil. Pesquisa quantitativa, de
base populacional, delineamento transversal. A seleção dos participantes atendeu critérios de inclusão: idade entre
10 e 17 anos, ambos os sexos, e matriculados na escola pesquisada. Os dados foram coletados através do
questionário internacional de atividade física (IPAQ 8.0) na versão curta, estimando o nível de atividade física. Os
estudantes foram submetidos à coleta de dados antropométricos (peso corporal, altura e circunferências: cintura e
abdômen) e verificação da pressão arterial. A prevalência da HAS encontrada mostrou-se parecida com dados
brasileiros e americanos mais recentes. Características epidemiológicas observadas em adultos também foram
encontradas, onde a prevalência é maior no sexo masculino. Relações positivas da PA com o IMC também foram
encontradas. Existe para a amostra estudada uma relação negativa entre o nível de atividade física e os níveis
pressóricos, demonstrando a necessidade da prevenção dos fatores de risco através de mudanças nos hábitos de
vida dessa população estudada e o desenvolvimento de programas específicos dentro das escolas, que enfatizem
a prática da atividade física e bons hábitos alimentares, minimizando a prevalência da HAS precoce.
Palavras - chave: Hipertensão arterial. Fatores de risco. Escolares.
Brazilian epidemiological data reported the prevalence of systemic arterial hypertension (SAH) in children and
adolescents to be between 6 to 8%. Similarly, American studies show a similar range of results between 2 and 10%.
The objective of this study is to estimate the prevalence of SAH in the school population and to assess
anthropometric indicators of risk to the juvenile population. This study utilizes population-based quantitative
research and cross-sectional design. The selection of participants included both genders, were between 10 and 17
years old, and were enrolled in the studied school. Data was collected using the short version of the International
Physical Activity Questionnaire (IPAQ 8.0). Anthropometric data was collected including blood pressure, weight,
height, and the circumferences of their waist and abdomen. The prevalence of SAH found in the students proved to
be similar to the recent Brazilian and American data. Epidemiological characteristics were observed in adults where
the prevalence of SAH is higher in males. Positive relationships between BP and BMI were also found. In the
sample, there is a negative relationship between physical activity and blood pressure levels. This demonstrates the
necessity of risk factor prevention through changes in lifestyle and the development of specific programs within
schools that emphasize physical activity and good eating habits to help reduce the early prevalence of hypertension.
Keywords: Hypertension. Risk Factors. School Population.
*Coordenador do Núcleo de Estudos em Educação Física e Saúde – NEEFS (FAMAM); Mestrando em Ciências da Motricidade Humana
(Universidade Pedro de Valdívia- Chile); Professor do Curso de Licenciatura em Educação Física - E-mail: [email protected].
**Pesquisadores do Núcleo de Estudos em Educação Física e Saúde – NEEFS (FAMAM0. Professores de Educação Física.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 57-61, jan./jun., 2013.
Fabrício Sousa Simões; Adriano Batista Souza; Jorge Luiz Santos de Jesus; Tarcísio Dias da Silva
INTRODUÇÃO
A HAS, uma entidade clínica multifatorial, conceituada como uma síndrome caracterizada pela presença
de níveis tensionais elevados da pressão arterial, associados a alterações metabólicas e hormonais e a fenômenos tróficos (hipertrofias cardíacas e vasculares),
deve ser entendida não apenas como uma situação
patológica de cifras tensionais permanentemente elevadas, mas um conjunto de fatores denominado de Síndrome Hipertensiva.
A prevalência da hipertensão arterial é elevada,
estima-se que cerca de 15% a 20% da população brasileira adulta é hipertensa. Embora predomine na fase
adulta, sua prevalência em crianças e adolescentes
não é desprezível e varia entre 2% a 13%, em diferentes
regiões do mundo, sendo responsável pelo desenvolvimento de doenças cardiovasculares como: cardiopatia
isquêmica, acidente vascular encefálico, insuficiência
cardíaca e nefropatias crônicas.
Sua prevalência na população juvenil no Rio de
Janeiro – RJ, está em torno de 7%, em Belo Horizonte MG e Florianópolis - SC são de 12% (GUS et al., 2004).
Em Salvador - BA, 4% das crianças e adolescentes têm
hipertensão arterial (MATOS; LADEIA 2003).
A taxa de incidência da HAS é de 30% na população brasileira, chegando a mais de 50% na terceira idade, e está presente em 5% dos 70 milhões de crianças e
adolescentes no Brasil. São 3,5 milhões de crianças e
adolescentes que precisam de tratamento (ROSA;
RIBEIRO, 1999).
As correlações positivas entre as variáveis: idade, peso e altura das crianças e dos adolescentes com
os valores da pressão arterial são observados em populações jovens, onde o peso e o índice de massa corporal (IMC) são as variáveis que apresentam maior correlação com a pressão arterial devido ao determinismo
dos níveis pressóricos pelo desenvolvimento físico
(GARCIA et al., 2004). E, o peso e a altura em ambos os
sexos têm uma relação linear com a pressão arterial sistólica (PAS) e a pressão arterial diastólica (PAD) independente da idade.
A reconhecida influência na diminuição dos níveis pressóricos da atividade física e a relação inversa
entre quantidade total de atividade física e incidência de
hipertensão arterial é fator de influência, considerando
que crianças e adolescentes tendem a ficar obesos
quando sedentários e a própria obesidade contribui
para torná-los ainda mais sedentários.
Entre os diversos indicadores de risco que contribuem para o desenvolvimento da hipertensão arterial
em crianças e adolescentes, destacam-se: os níveis iniciais elevados de pressão arterial, a história familiar, a
obesidade e o sedentarismo. A identificação precoce
desses indicadores na prevenção de eventos cardiovasculares constitui importante contribuição na preven58
ção das morbidades e na efetividade do tratamento
anti-hipertensivo, como colocado pela Organização
Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização
Mundial de Saúde (OMS).
Tendo em vista o acometimento de alterações da
pressão arterial, a relação de indicadores antropométricos com os valores da pressão arterial, e, principalmente a correta caracterização desses indicadores para a
prevenção de danos.
Estudos devem ser efetuados, para auxiliar na
prevenção primária de uma série de complicações cardiovasculares e neurológicas, de forma simples e principalmente eficaz. Diminuindo a morbi-mortalidade e o
ônus representado para o sistema da saúde.
MATERIAIS E MÉTODOS
Pesquisa quantitativa, de base populacional, delineamento transversal realizada numa escola estadual
de Ensino Fundamental e Médio, localizada na cidade
de Muritiba/Bahia, utilizando a coleta de dados para
identificar as variáveis antropométricas e o nível de atividade física, e, assim estabelecer quais são os fatores
de risco na população estudada.
A seleção dos participantes atendeu os seguintes critérios de inclusão: ter idade entre 10 e 17 anos,
ambos os sexos, estar matriculado na escola onde foi
realizado o estudo, e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), pelos pais e/ou responsáveis, confirmando a participação e entendimento
do propósito da pesquisa e, de seu desligamento a qualquer momento quando assim desejarem.
Os dados foram coletados através da aplicação
do questionário internacional de atividade física (IPAQ)
na sua versão curta, proposta pela organização mundial
de saúde (CRAIG, 2005) para estimativa do nível de atividade física, avaliação antropométrica (peso, altura, circunferências de: cintura e abdômen), índice de massa
corporal (IMC), circunferência de cintura (CC) e índice
de conicidade (IC), seguindo as recomendações para
ponto de corte dos respectivos indicadores para obesidade e risco coronariano. Os estudantes foram submetidos à verificação da pressão arterial respeitando todos
os procedimentos na aferição da pressão arterial.
Para calcular o tamanho da amostra, foi utilizada
a proposta de Luiz e Magnanini (2002) para estudos epidemiológicos, com intervalo de confiança de 95%, erro
tolerável de 5% e uma prevalência estimada de HAS de
5%, considerando resultados apresentados em outro
estudo (ROSA; RIBEIRO, 1999), e como estimativa
segura por corresponder ao maior tamanho de amostra
que pode ser calculado. Sendo a amostra selecionada
de forma aleatória, utilizando-se a tabela de números
aleatórios (THOMAS; NELSON, 2002). Garantindo
assim a representatividade da população em estudo e
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 57-61, jan./jun., 2013.
Prevalência de hipertensão arterial sistêmica e indicadores antropométricos associados em escolares na cidade de Muritiba-BA
igual probabilidade de participação na amostra.
Os dirigentes e professores da escola foram informados sobre os objetivos e procedimentos para autorização e liberação do estudo, e para posterior abordagem dos participantes da pesquisa, que ocorreu em sala
de aula com explicação pelos próprios pesquisadores.
Na avaliação do nível de atividade física, os
voluntários responderam o IPAQ (versão curta), onde
classifica três níveis:
Mínimo (categoria 1), onde os indivíduos que
não satisfazem os critérios para as categorias 2 ou 3
são considerados inativos;
Moderada (categoria 2), os indivíduos que atingem um dos três requisitos: três ou mais dias de atividade vigorosa de pelo menos vinte minutos por dia ou,
cinco ou mais dias de atividade de intensidade moderada ou caminhada de pelo menos 30 minutos por dia, ou,
cinco ou mais dias de qualquer combinação de intensidade moderada ou vigorosa;
Elevada (categoria 3) quando atinge qualquer
um dos seguintes critérios: atividade de intensidade
vigorosa em pelo menos 3 dias e acumulando pelo
menos 1500 MET-minuto ou sete dias de qualquer combinação de intensidade moderada ou vigorosa atingindo um mínimo de pelo menos 3000 MET-minutos.
A avaliação antropométrica seguiu normas
padronizadas (LOHMAN; ROCHE; MARTORELL,
1988), e foram: peso corporal (kg), aferição realizada
através de uma balança eletrônica Filizola (Indústrias
Filizola SA, São Paulo – SP, Brasil), da linha Personal
Line 2000, tipo plataforma. A estatura (m) aferida com
estadiômetro caprice Sanny® (American Medical do Brasil, Brasil) com medida máxima de 2,10 m, estando o
escolar sem sapato, com roupas leves e encostado na
parede. Sendo utilizada para análise a média de três
mensurações tanto para peso corporal como para altura. Para medida das circunferências da cintura e abdômen foi utilizada fita métrica metálica com trava, marca
Sanny® (American Medical do Brasil, Brasil), estando à
criança em pé, após expiração completa, com definição
de medida de 0,1 cm.
Para o Índice de Massa Corporal (IMC) utilizada
a equação IMC = peso (kg)/altura (m2), sendo considerado normal IMC entre 18,5 a 24,9, sobrepeso IMC
entre 25 a 29,9, obeso IMC entre 30 a 34,9, extremamente obeso IMC entre 35 a 39,9 e obesidade mórbida
IMC maior ou igual a 40. O IMC é utilizado largamente
na avaliação do estado nutricional devido a sua alta correlação com a massa corporal e indicadores de composição corporal, sua capacidade de predizer riscos de
patologias e a não necessidade de se usar dados de
referência antropométricos no diagnóstico do estado
nutricional (COLE, 2000). No presente trabalho, percentis selecionados de IMC foram calculados, por sexo
e faixa etária. Os percentis selecionados foram os tradicionalmente utilizados em estudos de distribuição de
valores antropométricos populacionais em crianças e
adolescentes.
O Índice de Conicidade (IC) também avaliado
nesse estudo tem por objetivo identificar a distribuição
de gordura e o risco de doenças (VALDEZ, 1993). Este
índice baseia-se na idéia de que o corpo humano muda
do formato de um cilindro para o de um cone duplo com
o acúmulo de gordura ao redor da cintura (PITANGA;
LESSA, 2002). A faixa teórica vai de 1 a 1,73 e é calculada através da seguinte equação: CC/0,109√(PC/AL
onde: CC = circunferência da cintura(m); PC = peso corporal (kg); AL=altura (m). Valdez (1993), descreve como
um índice simples e prático para determinação da gordura abdominal e um forte preditor de morte prematura
e doenças cardiovasculares, podendo ser usado como
índice do nível de adiposidade, mas não independentemente das concentrações de colesterol e da pressão
sanguínea.
A aferição da PA ocorreu por meio do método auscultatório utilizando-se de esfigmanômetro aneróide da
marca Missouri Indústria e Comércio Ltda., com braçadeiras e estetoscópio (rappaport techline), adequados a
amostra pesquisada, seguindo as recomendações da V
Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial (MION JR
et al., 2006).
Após a devolução do TCLE o IPAQ foi aplicado
em sala, nas aulas da disciplina Educação Física (antes
do início das aulas), no turno vespertino, com permissão do docente responsável, e explicação de seu preenchimento. Constou na folha do questionário espaço
para a identificação do aluno e o número correspondente à lista de chamada, contudo, esta identificação foi de
livre escolha, sendo informado que mesmo se identificando não seria exposto seu nome na pesquisa. E a
coleta das medidas antropométricas, em método de circuito, exceto a aferição da pressão arterial que foi realizada individualmente em uma sala reservada. Respeitando-se a seguinte ordem:
Primeiro - Aplicação do questionário (IPAQ- versão curta);
Segundo – Aferição das medidas antropométricas e calculo do IMC e IC;
Terceiro – Aferição da pressão arterial.
A PA foi mensurada no braço direito posicionado
à altura do coração, com o aluno relaxado na posição
sentada. Após cinco minutos de descanso prévio, mensuraram-se duas medidas com intervalo de repouso de
cinco minutos, registrando-se a menor medida. A PA sistólica (PAS) foi determinada no aparecimento dos ruídos (fase I de Korotkoff) e a PA diastólica (PAD) no desaparecimento dos ruídos (fase V de Korotkoff). Utilizando-se os valores previstos nas V Diretrizes Brasileiras
de Hipertensão Arterial, (MION JR et al., 2006), para
classificação da HAS. A análise estatística dos dados foi
realizada através do programa SPSS 17.0 para Windows. Para as variáveis, foi realizada a comparação de
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 57-61, jan./jun., 2013.
59
Fabrício Sousa Simões; Adriano Batista Souza; Jorge Luiz Santos de Jesus; Tarcísio Dias da Silva
médias entre sexos utilizando-se o teste t de Student
(distribuição simétrica).
Sendo a pesquisa analisada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Faculdade Maria Milza (FAMAM),
sob protocolo nº1483/2010.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após a coleta dos dados e sua análise descritiva,
os resultados obtidos apresentaram: a média da idade
foi de 15,78±2,21 anos, onde 68% eram do sexo feminino e 32% masculino. A média encontrada para o IMC respeitando os percentis para a população foi de
19,20±3,02 kg/m2, onde 6% dos pesquisados encontravam-se na faixa de 25 a 30 Kg/m2, 48% com valores de
IMC entre 20 kg/m2 e 24,99 kg/m2 e 52% da amostra com
IMC < 20 kg/m2 (tabela 1), caracterizando mais da metade da amostra com níveis saudáveis de gordura corporal, segundo classificação do IMC para faixa etária.
A PA sistólica elevada (≥140 mmHg) foi verificada
em 6% e a PA diastólica elevada (≥90 mmHg) em 10%,
nenhum dos pesquisados tinham PA sistólica e diastólica elevadas concomitantemente, e 2% com valores limítrofes de acordo com os percentis de estatura para
ambos os sexos e idade.
A HAS foi mais prevalente nos alunos do sexo
masculino (8%) que nas do sexo feminino (6%). Encontramos correlação positiva entre PA sistólica e IMC
(r=0,3411, p<0,0001), bem como entre PA diastólica e
IMC (r=0,3133, p<0,0001). Quanto à atividade física
24% dos alunos foram classificados como ativos, 48%
como moderadamente ativos e 28% como sedentários.
Entre os sexos, os do sexo masculino mostraram-se
mais ativos (82%) que as do sexo feminino (64%).
Apesar da prevalência da HAS encontrada nesse
estudo, uma relação positiva com o excesso de peso
corporal, não pode ser identificada, diferente dos resultados obtidos por Borges et al. (2008), em estudo onde
analisavam a associação entre hipertensão, excesso
de peso e nível de atividade física, ressaltando que o
excesso de peso pode influenciar no aumento da hipertensão arterial,
Sabe-se que a atividade física pode ajudar no tratamento da HAS por meio do controle do peso e pela promoção da saúde. Portanto, a atividade física deve ser
incentivada como forma de controle de peso e prevenção de doenças. Silva e Lopes (2008) observaram que
estudantes que se deslocavam até a escola caminhando ou de bicicleta, tinham menor prevalência de excesso de peso e gordura corporal do que aqueles que se
deslocavam passivamente. Os autores constataram
que o simples estímulo de atividade física no deslocamento à escola é capaz de prevenir o excesso de peso,
evitando também o aumento da pressão arterial.
Portanto, adotar hábitos alimentares saudáveis e
atividade física regular deve ser uma estratégia prioritária, a fim de prevenir a HAS em indivíduos jovens.
O excesso de peso corporal tem forte correlação
com o aumento da pressão arterial, sendo um fator predisponente para a hipertensão (BORGES et al., 2008).
Todos os hipertensos com excesso de peso, incluindo
crianças, devem ser incluídos em programas de redução de peso de modo a alcançar IMC inferior a 25 kg/m².
E, segundo Carneiro (2003) que apresentam percentil
maior que 95 para estimativa do IMC.
A prevalência da HAS encontrada mostrou-se
parecida com dados brasileiros e americanos mais
recentes, e características epidemiológicas observadas em adultos também foram encontradas. Considerando que evidências sugerem que a HAS começa na
infância ou mesmo ainda durante a vida intra-uterina e
que crianças que apresentam persistência de valores
de pressão arterial elevados têm um risco aumentado
de tornarem-se adultos hipertensos (ARAÚJO, 2007).
E, em um estudo longitudinal Franklin et al. (2005)
demonstraram que o desenvolvimento de hipertensão
na idade adulta pode ter começado em uma fase mais
precoce da vida.
TABELA 1 - Média e desvio padrão por sexo das variáveis da amostra estudada.
VARIÁVEIS
MASCULINO
IDADE (anos)
16,65 ± 2,55
15,42 ± 1,27
PESO (kg)
58,71 ± 9,79
59,38 ± 10,99
ALTURA (m)
1,62 ± 0,11
1,68 ± 0,08
IMC (kg/m²)
19,93 ± 2,22
21,08 ± 3,39
IC
1,16 ± 0,06
1,22 ± 0,13
PAS
110,6 ± 14,1
106,8 ± 10,6
PAD
75,5 ± 9,1
Fonte: Pesquisa desenvolvida em Muritiba/BA (2011).
60
FEMININO
73,7 ± 12,0
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 57-61, jan./jun., 2013.
Prevalência de hipertensão arterial sistêmica e indicadores antropométricos associados em escolares na cidade de Muritiba-BA
Relações positivas da PA com o IMC também
foram encontradas. Existindo para a amostra estudada
uma correlação negativa entre o nível de atividade física e os níveis pressóricos, considerando que a atividade física diminui o risco de obesidade, atuando na regulação do balanço energético, influenciando a distribuição do peso corporal, preservando ou mantendo a
massa magra, além de contribuir na perda de peso e de
ser eficaz, isoladamente, para prevenir a hipertensão
arterial (JUZWIAK et al., 2000).
As V Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial (MION JR et al., 2006) enfatizam que na maioria dos
casos, o tratamento não-medicamentoso é suficiente
para normalizar a pressão arterial. Ele inclui a adoção
de hábitos saudáveis, como a prática regular de exercícios físicos, dieta equilibrada e diminuição do peso além
de seu correto diagnóstico.
CONCLUSÃO
Este trabalho tem como conclusões que a prevalência de pressão arterial elevada foi de 9,4% para
ambos os sexos, existindo diferenças estatisticamente
significantes entre as prevalências de pressão arterial
elevada entre os gêneros, sendo maior no sexo masculino. O sobrepeso e a obesidade estiveram associados
com níveis mais elevados de pressão arterial sistólica.
E o índice de conicidade não demonstrou associação
como preditor da HAS no grupo estudado.
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Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 57-61, jan./jun., 2013.
61
DESCENTRALIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE SUA INTERFERÊNCIA NOS SERVIÇOS DE
SAÚDE NO BRASIL
Laudiceia Garcia Neves*
Norma Irene Soza Pineda**
A descentralização das ações e serviços de saúde representa um dos principais componentes do processo de
implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, visa facilitar à população um maior acesso aos serviços de
saúde, contrapondo-se ao modelo centralizador anterior. Este estudo teve por objetivo analisar o processo de
descentralização no SUS, descrevendo a sua interferência nos serviços de saúde nos últimos anos. Realizou-se
revisão de literatura, a partir das bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde - Bireme e da Scientific Electronic
Library Online - Scielo; por meio de uma abordagem qualitativa são discutidos artigos científicos publicados entre os
anos de 2000 a 2011 sobre descentralização dos serviços de saúde. Foi possível constatar que o processo de
descentralização é reconhecido como importante estratégia do SUS para favorecer o princípio do acesso a saúde a
população, sendo que contribui para a expansão de determinados segmentos do setor saúde, favorecendo também
a regionalização dos serviços de saúde. Entretanto, existem ainda algumas lacunas a serem preenchidas na gestão
em saúde como: interferência político-partidária, melhor administração de verbas públicas destinadas ao setor
saúde e investimento na contratação e profissionalização de gestores capacitados a assumir cargos de gerencia;
estes são critérios fundamentais para que a descentralização ocorra de forma fidedigna aos propósitos traçados.
Palavras-chave: Serviços de saúde. Descentralização. SUS. Políticas de saúde.
The decentralization of the actions and health services represents one of the main components of the process of
implementation of the Single Health System (SHS) in Brazil, which enables the population to have greater access to
health services, going against the centralizing model previously established. The objective of the present study was
to analyze the decentralization process of the SHS describing its interference in health services in the last years. A
literature review was carried out from the Virtual Health Library - Bireme and Scientific Electronic Library Online Scielo databases by applying a qualitative approach whereas articles published between 2000 and 2011 regarding
the decentralization of health services are discussed. It was found that the decentralization process is recognized as
an important strategy of SHS to promote the principle of access to health care to the population, contributing to the
expansion of certain segments of the health sector, encouraging also the regionalization of health services.
However, there are still some gaps to be filled in health management such as:political-partisan interference, better
administration of public funds intended for the health sector and investment in hiring and professionalization of
managers able to assume positions of manages; These are fundamental criteria so that decentralization may occur
in reliable fashion as to the purposes established.
Key-words: Health services. Decentralization. SHS. Health politics.
*Enfermeira FAMAM/Especialista em Gestão em Saúde - UNEB (Universidade do Estado da Bahia, Colegiado do Curso EAD em Gestão em
Saúde) e-mail [email protected];
**Professora Orientadora do curso de Especialização em Gestão em Saúde pela Universidade do Estado da Bahia, e-mail:
[email protected]
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 63-70, jan./jun., 2013.
Laudiceia Garcia Neves; Norma Irene Soza Pineda
INTRODUÇÃO
O processo de descentralização do sistema
público de saúde no Brasil visa melhorar a eficiência
com a finalidade de proporcionar à população acesso
aos serviços de saúde que venha suprir às necessidades referentes ao processo saúde\doença. Entende-se
por descentralização a transferência de poder administrativo e técnico do âmbito federal ao municipal através
da habilitação na gestão plena do sistema pela NOB96. (VIEIRA et al., 2007)
O Ministério da Saúde do Brasil passou por um
processo de redefinição político-institucional nos anos
90, e um dos movimentos que caracterizou este período
foi a descentralização político administrativa, que fortaleceu autoridades sanitárias, como exemplo têm-se gestores estaduais e municipais da saúde, por meio de um
processo que envolveu diversas fases de negociação o
que resultou na repartição de poderes. (VIANAMACHADO, 2009)
A organização do Sistema Único de Saúde (SUS)
pode ser vista como uma lei fundadora de uma nova
ordem social na saúde, baseada nos princípios de universalidade e igualdade, e organizado sob as diretrizes
da descentralização (acesso e universalidade dos serviços de saúde), participação da comunidade e atendimento integral (MENICUCCI, 2009). Assim a descentralização foi iniciada dentro do processo de redemocratização, isso porque os regimes autoritários tinham
como características aspectos como exclusão e centralização, e intervenções sociais fragmentadas
(MENDES 2001).
Segundo Viana e Machado (2009) na implantação do SUS, houve mudanças referentes a conflitos
intergovernamentais em saúde, como redistribuição
das responsabilidades das esferas de governo. Entretanto, ainda continua a necessidade da existência de
uma coordenação federativa, que ofereça subsídios
necessários para que as esferas estaduais e municipais
possam cumprir as ações propostas a fim de aprimorar
os serviços de saúde públicos favorecendo de uma
forma mais intensa o alcance dos objetivos da política
de saúde de combate as desigualdades, possibilitando
a existência de políticas de acordo com realidades territoriais e sociais distintas.
Durante a década dos anos 80, a descentralização propiciou a ampliação da oferta de serviços e da participação popular. Nos últimos anos têm sido identificados como benefícios da descentralização a ampliação
da rede assistencial, a diversificação da oferta de serviços em atenção primária e dos serviços de alta e media
complexidade; e algumas medidas relativas à reorganização do modelo de atenção. (VIEIRA et al., 2007)
Assim, a descentralização dentro do SUS parte
da necessidade de oferecer serviços de saúde justos à
população em contradição aos serviços centralizados e
64
excludentes, chegando a ser um processo fundamental
por estar baseado em princípios democráticos. Entretanto, precisa ser melhor compreendida juntamente
com os aspectos político, social e econômico que a
envolve.
Diante deste contexto surgiu a seguinte indagação: como o processo de descentralização vem ocorrendo e qual a sua interferência no sistema de saúde no
Brasil na última década? Este estudo tem como objetivo
analisar o processo de descentralização dos serviços
de saúde, discorrendo sobre seu percurso, identificando a sua interferência no processo saúde tanto nos
aspectos positivos como nos negativos. Os resultados
do estudo são fundamentais para maior compreensão
do processo de descentralização, sua interferência e
contribuições na assistência a saúde no Brasil.
SAÚDE NO BRASIL E DESCENTRALIZAÇÃO:
BREVE HISTÓRICO
A trajetória histórica de saúde no Brasil envolveu
vários fatos marcantes, entre eles a mudança de um
modelo curativo para um modelo de atenção integral,
assim é importante conhecer o percurso da Saúde no
Brasil pra que se tenha uma concepção maior do contexto que envolve o processo saúde/doença nos dias
atuais.
Carvalho e Barbosa (2010, p.18) comentam que
entre as décadas de 1960 à 1980 a população não previdenciária, sofria com a discriminação, pois apenas
aqueles trabalhadores ligados a Previdência Social
podiam usufruir dos atendimentos de saúde. Felizmente esse sistema teve características negativas, como
por exemplo, a baixa capacidade de controle sobre os
prestadores de serviços contratados o que levou a
explosão de altos custos para o sistema público, já que
o setor público tinha dificuldades de controle sobre os
prestadores de serviços contratados e também tinha
suas prioridades voltadas à medicina curativa o que
resultava em maiores gastos.
Na década de oitenta com a crise financeira aconteceu a transição para a Seguridade Social o marco inicial desse período foi a criação do Conselho Consultivo
de Administração de Saúde Previdenciária (CONASP).
Carvalho e Barbosa (2010) comentam que “os programas mais relevantes do CONASP foram à implantação
do Sistema de Atenção Médico-Hospitalar da Previdência Social (SAMPHPS) e o de implementação das
Ações Integradas de Saúde (AIS)”. Esse último programa, as AIS, consistiu no principal instrumento de
mudança do sistema, pois a partir dele o sistema de
saúde percorreu uma progressiva trajetória para a universalização e para a descentralização dos serviços e
ações em saúde.
Assim, Santos (2009) comenta sobre a Reforma
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 63-70, jan./jun., 2013.
Descentralização: um estudo sobre sua interferência nos serviços de Saúde no Brasil
Sanitária como um movimento que se destacou na luta
pela universalização dos serviços de saúde. Para Santos (2009) a Reforma Sanitária organizada no final da
década de setenta foi um movimento ilustre, pois logrou
escrever o direito a saúde como dever do Estado, “bem
como garantir a montagem de um sistema assistencial
público, integrado e universal” na Constituição de 1988.
Melo e Santos (2007) inferem que o movimento
da reforma sanitária ocorrido nas décadas de 70 e 80 foi
o ponto auge para ocorrência da luta por um sistema
descentralizado, dessa forma no Brasil a descentralização das ações de saúde permitiria maior equidade na
solução dos problemas de saúde, pois as regiões brasileiras possuem demandas especificas agravadas por
diferenças sócio-econômicas.
Para Paim e Teixeira (2007) a Reforma Sanitária
Brasileira (RSB) ressaltava um conjunto de mudanças
no Estado, na sociedade e na cultura, objetivando a
melhoria da situação de saúde, por isso enfocava critérios como a totalidade de mudanças, defendendo o princípio de que a saúde é direito de todos e dever do estado. Nesse percurso se chegou à proposta da implementação e operacionalização do Sistema Único de Saúde,
o qual viria a ter como característica serviços de saúde
democráticos e descentralizados, com participação das
três esferas de governo definindo suas responsabilidades.
Ainda sobre a Reforma Sanitária, Silva et al.
(2007, p.355) comenta que a descentralização tem sido
um dos principais componentes da Reforma Sanitária,
as diretrizes foram consentidas na 8ª Conferência Nacional de Saúde em 86, sendo que a descentralização
dos serviços de saúde tem destaque na década de
oitenta com as Ações Integradas de Saúde e o Sistema
Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS),
ganhando assim maior abrangência e estabilidade na
aprovação de suas bases descritas em Lei.
Corroborando com este pensamento o Ministério
da Saúde (2004) infere que com a conquista da democracia a sociedade teve uma participação ativa na construção de proposições políticas para a saúde durante a
8ª Conferência Nacional de Saúde. A implementação do
sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS)
foi essencial para a implantação do SUS que tem como
princípios e diretrizes a integralidade, equidade e maior
acesso aos serviços de saúde pela população.
Menicucci (2009) evidencia que na década de
90, foram elaborados instrumentos para a gestão pública descentralizada de estabelecimentos de saúde, realizando o acompanhamento de serviços e tornando
mecanismos de pagamento homogêneo, buscando a
partir daí a organização da assistência que foi o foco da
atuação setorial desde o início da implantação do SUS;
tendo como desafio substituir o modelo hospitalocêntrico a fim de realçar os princípios de universalidade
e integralidade, dando enfoque às ações de promoção
e prevenção da saúde.
O Ministério da Saúde (2004, p.77) complementa
que na década de 90, a política de saúde foi marcada
pela “construção do SUS, descentralização das ações,
dos serviços e da gestão; melhorias na gerencia e na
capacidade de regulação; redução das desigualdades
na distribuição de tetos financeiros da assistência à
saúde para as regiões, entre outros serviços. Carvalho
(2010) infere que nesta mesma década o SUS encara o
teste da realidade e a implantação da sua concepção.
As Normas Operacionais Básicas consistiram
num importante instrumento para a implantação e operacionalização do SUS, principalmente no que se refere
à descentralização; por representar instrumentos reguladores específicos do processo de descentralização
do SUS devido aos mecanismos financeiros a elas ligados. (Ministério da Saúde, 2004, p.49)
Corroborando com este pensamento Teixeira
(2002) comenta sobre o percurso histórico da descentralização em saúde discorrendo que a elaboração e
implementação das Normas Operacionais Básicas
foram fundamentais no processo de reorientação da
gestão do SUS, construído ao longo de anos e descrito
como um movimento pendular de descentralização/centralização. Focaliza o inicio da descentralização
exatamente com a implementação das NOB de 1993 e
especialmente a de 1996 que levaram a redefinição de
competências e ações das esferas de governo no que
tange a gestão, organização e prestação de serviços de
saúde, através da transferência de recursos do nível
federal e estadual para o nível municipal.
Spedo, Tanaka e Pinto (2009) complementam
que a descentralização do sistema e serviços de saúde
implementada no Brasil contribuiu para importantes
avanços no sentido da construção do Sistema Único de
Saúde. Ressaltam que a descentralização foi impulsionada pelo Ministério da Saúde por conseqüência de
sucessivos instrumentos normativos como as Normas
Operacionais Básicas do SUS (NOB), que foi caracterizado como um “certo jeito NOB de fazer o SUS”. Porém,
a rigidez normativa e o detalhamento excessivo desses
instrumentos representaram limitações à operacionalização da descentralização por conseqüência de uma
pactuação que levasse em consideração a realidade
locorregional e a assimetria dos municípios brasileiros.
O Ministério da Saúde (2006 p. 72) no documento do pacto pela Vida, em defesa do SUS e Gestão, descreve a regionalização como eixo estrutural da dimensão de gestão, ou seja, a regionalização deve orientar o
processo de descentralização das ações e serviços de
saúde e os processos de negociação e pactuação entre
os gestores.
Diante desse contexto, vê-se o percurso histórico
da descentralização da saúde no Brasil e os processos,
normas e fatos históricos que influenciaram e impulsionaram a sua concepção, fatos importantes para a com-
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 63-70, jan./jun., 2013.
65
Laudiceia Garcia Neves; Norma Irene Soza Pineda
preensão das características e interferências da descentralização no processo de gestão em saúde atual no
país.
DESCENTRALIZAÇÃO PARA GESTÃO PÚBLICA
O processo de descentralização dos serviços de
saúde iniciou desde a década de 90 como proposta
para impulsionar a universalização dos serviços oferecidos pelo SUS, e desde então o desenvolvimento do
processo e seu impacto na saúde merece atenção
devendo ser estudado e avaliado para o reconhecimento das contribuições do mesmo no quadro de saúde da
esfera municipal.
O processo de descentralização predominante
no Brasil é do tipo político- administrativo, envolvendo
não apenas a transferência de serviços, mas também a
transferência de poder, responsabilidade e recursos,
antes concentrados no nível federal, para estados e,
principalmente para os municípios. A década de 90 testemunha a passagem de um sistema extremamente
centralizado para um cenário em que centenas de gestores – municipais e estaduais – tornam-se atores fundamentais no campo da saúde.
Corroborando com este pensamento, Juliano e
Assis (2004) discorrem que em seu aspecto geral o Brasil esta consolidado em três níveis políticos administrativos, sendo eles: União, Estados e Municípios. Dividido
em 27 Estados e possuindo respectivamente 5.561
municípios, o que explica a adoção do processo de descentralização como viabilizador das políticas públicas,
já que as diferentes regiões divergem nos seus aspectos socioeconômicos, culturais, demográficos, sanitários, dentre outros.
Paim e Teixeira (2007) inferem que a institucionalização da gestão do SUS possui características do processo de descentralização dirigido pelo objetivo da
implantação do pacto federativo acrescentado na constituição de 1988, sendo que este processo tem sido citado nos últimos anos pela implementação de políticas e
estratégias que se originaram na missão de repartições
gestoras em cada esfera de governo.
Assim, Menicucci (2009) refere que nas duas últimas décadas vem acontecendo a ampliação da rede
pública que ressalta o esforço em relação ao aprofundamento do processo de descentralização, gerando pressão sobre os governos locais e também esforço em relação a universalização da assistência a partir da garantia
de acesso a atenção primária e de reversão do modelo
assistencial centrado no atendimento hospitalar.
Seta (2010, p. 65-73) comenta que a descentralização assume em seu conceito diversos significados,
porém, independentemente de ser uma descentralização política, administrativa ou desconcentração, a
mesma tem como característica duas faces: a realiza66
ção descentralizada de ações e a transferência de
recursos financeiros das esferas mais externas de
governo para as mais internas.
Desta forma Sampaio et al. (2011) salientam que
critérios como a promoção de processos de planejamento estratégico, torna possível maior descentralização do poder decisório, favorecendo que cada nível
organizacional seja responsável por problemas referentes ao seu poder resolutivo, evidenciando-se desta
forma a relevância da descentralização de responsabilidades e a adequação das competências aos diferentes
níveis organizacionais para a resolução de problemas.
Viana e Machado (2009) comentam que a descentralização esta ligada diretamente à democratização e às mudanças na gestão pública em uma versão
federativa, assim a intensidade da descentralização em
saúde no Brasil perpassa em dimensões representadas
pela transferência de serviços e servidores públicos;
responsabilidades e atribuições; recursos financeiros e
poder para a política de saúde.
Spedo, Tanaka e Pinto (2009) salientam que a
Reforma Sanitária promulgava por a descentralização
dentro do marco de redemocratização do país, sendo
uma estratégia para aproximar os serviços de saúde às
necessidades dos cidadãos, de forma a ampliar espaços democráticos, promovendo a participação social e
o poder local. Por outra parte, o projeto de reforma do
estado defendia a descentralização como ponto estratégico de modernização da administração pública, dividindo responsabilidades com a sociedade e com o mercado e restringindo desta forma o papel do Estado.
Desta forma Varquez (2011) explicita que apesar
da trajetória irregular, houve um aumento real nos
repasses federais, que poderia ter sido maior se não
fosse que o PIB não teve seu percentual elevado,
porém ocorreu forte expansão dos recursos estaduais e
principalmente municipais destinados à saúde, elevando a participação de uma forma ou de outra de cada
esfera no financiamento da política em saúde.
Para Melo e Santos (2007) a esfera municipal
ganhou destaque com o processo de descentralização,
pois o âmbito municipal foi o que mais ganhou com este
processo por motivo de o município ser a esfera de
governo que mais se beneficiou da partilha dos recursos financeiros e de poder. Porém a descentralização
também aumentou as responsabilidades na gestão e
oferta de serviços e ações de saúde na esfera municipal; favoreceu a partilha de poder e responsabilidades
na implantação e implementação das políticas públicas
de saúde.
Diante desse contexto Barreto e Silva (2004) afirmam que a descentralização objetivou aproximar o gestor político do cidadão e elaborar mecanismos para o
controle público e social, buscando definir as prioridades locais; qualificar a fiscalização e controle da aplicação dos recursos municipais, assim como também a
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 63-70, jan./jun., 2013.
Descentralização: um estudo sobre sua interferência nos serviços de Saúde no Brasil
melhor utilização daqueles recebidos mediante transferências intergovernamentais voltados a aplicação na
saúde.
Segundo Machado (2002, apud Ministério da
Saúde, 2004, p. 49) os eixos como a normatização e os
mecanismos financeiros constroem a base da regulação da descentralização da gestão do sistema pelo gestor federal. Através desta base se relacionam formas de
regulação da política nacional de saúde pelo gestor
federal do SUS, como exemplo: apoio e capacitação técnico dos gestores estaduais e municipais, capacitação
de recursos humanos pelo SUS, controle e avaliação de
sistemas, financiamento de pesquisas, implementação
de novas estruturas de regulação da rede de serviços.
Para Barreto e Silva (2004) a descentralização
favorece a aproximação do gestor político ao cidadão
através da municipalização da política e maior controle
público com a criação dos conselhos municipais de saúde; aos prestadores de serviços e trabalhadores da
saúde dentre outros. O gestor estadual foi o que sofreu
maior impacto no processo de descentralização ao ter
suas funções originais substituídas por uma função de
coordenação, apoio e regulamentação do sistema estadual de saúde.
Em resumo, é possível afirmar que a implementação do processo de descentralização interferiu e modificou a gestão pública na saúde, dando novos resignificados as obrigações do gestor público estadual e municipal, tornando consideravelmente maior as atribuições
municipais em relação às políticas de saúde.
Juliano e Assis (2004) ainda citam que dentre as
atribuições do SUS seis estão relacionadas ao campo
da Vigilância Sanitária e que as ações desta integram
as ações de promoção da saúde, proteção, recuperação e reabilitação. A Vigilância Sanitária denota amplitude e magnitude das suas ações na consolidação da
descentralização dentro do SUS, contribuindo desta
forma para o maior aumento de acesso a saúde pela
população.
AS VERTENTES DA DESCENTRALIZAÇÃO
A descentralização dos serviços de saúde trouxe
avanços para o setor, principalmente quando se leva
em consideração o acesso dos serviços de saúde pela
população. Entretanto, o processo tem seus aspectos
negativos, não pela descentralização em si, mas por os
que regem o processo de gestão do sistema descentralizatório. Cabe aqui contextualizar contraposições na
visão de literários sobre as faces que permeiam o processo de descentralização nos últimos anos.
Juliano e Assis (2004) comentam que o processo
de descentralização do SUS, com suas normas específicas, possibilitou a implementação de medidas que
intensificaram a gestão municipal, como por exemplo, a
Programação Pactuada e Integrada (PPI) que foi estabelecida através da NOB-SUS/96. A PPI busca permitir
uma distribuição territorial mais justa e equitativa de
recursos, objetivando organizar os serviços e práticas
dos sistemas e serviços de atenção à saúde no nível
local e regional.
Para Dourado e Elias (2011) a descentralização
através do seu enfoque municipalista trouxe avanços
para o SUS, principalmente no que diz respeito á ampliação da capacidade de gestão dos municípios. O processo possibilitou também a instituição de componentes essenciais para o SUS, tendo como destaque a
implementação dos Conselhos de Saúde nas três esferas de governo; a mudança nos critérios de financiamento, e a consolidação dos colegiados intergovernamentais, sendo elas, a Comissão Intergestores Triparte
e as Comissões Intergestores Bipartite (CIBs).
Em contraposição Paim e Teixeira (2007; p.
1820) inferem que no financiamento público para o SUS
ainda persistem características como insuficiência e instabilidade que influenciam diretamente os problemas
da gestão, principalmente no que diz respeito aos estabelecimentos de saúde como hospitais e serviços de
atenção básica. A falta de profissionalização de gestores e a interferência político-partidária comprometem o
funcionamento do SUS.
Vasquez (2011) reforça que segundo um estudo
realizado observou-se que os incentivos financeiros estimulam a descentralização dos serviços, porém não
cobrem integralmente os custos de oferta dos programas, isso faz com que existam contrapartidas municipais de recursos próprios. Após a adesão dos municípios,
foi verificado que os valores que orientam as transferências da União não foram corrigidos de forma correta, o
que levou ao aporte de maiores recursos municipais.
Tem sido citado que a descentralização pode ser
considerada como "destrutiva", argumentando que, se
delega aos municípios as competências de políticas
sociais sem os recursos correspondentes e/ou necessários. Essas políticas vêm gerando um profundo desequilíbrio na federação brasileira, retirando dos estados
as possibilidades financeiras, técnicas e políticas de planejar e coordenar programas sociais de forma regional
e mais equitativa. A delegação de autoridade ao poder
local, via descentralização com participação da sociedade, só se efetivaria de fato por meio de esforços ao
combate do "coronelismo" e "caciquismo", ou seja, o
combate aos esquemas tradicionais de poder das elites
locais. (JULIANO E ASSIS, 2004)
Percebe-se que existem diversos fatores que
vem a contribuir para o déficit na gestão e operacionalização do SUS, estes fatores citados anteriormente, consequentemente também interferem no processo de descentralização dos serviços de saúde, principalmente
pela interferência da monopolização política que visa
interesses próprios.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 63-70, jan./jun., 2013.
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Laudiceia Garcia Neves; Norma Irene Soza Pineda
INTERFERÊNCIAS DA DESCENTRALIZAÇÃO NO
PROCESSO DA SAÚDE
Discutir a interferência da descentralização no
processo saúde ao longo dos últimos anos é fundamental para que se tenha uma maior noção de como o processo vem sendo gerido e como tem interferido no sistema de saúde. Ao longo dessa trajetória da descentralização novas discussões surgem, sobretudo referente
às suas vertentes.
Menicuccci (2009) infere que a predominância do
SUS juntamente com a adoção de propostas como a
descentralização dos serviços de saúde faz com que
exista maior número de estabelecimentos públicos de
saúde, o que tem um impacto significativo sobre a
saúde da população. O sistema público de saúde é responsável pela maior parte dos procedimentos e pela
cobertura de três quartos da população, é no SUS também que a população encontra cobertura para procedimentos inerentes à saúde coletiva.
O Ministério da Saúde (2004 apud Arret p. 54) salienta que a transferência de responsabilidades e recursos da esfera Federal para os demais níveis de governo
não é suficiente para o fortalecimento do caráter democrático do processo decisório na formulação de política,
ou seja, o empoderamento institucional das esferas de
governo ultrapassa as questões voltadas à política setorial, assim cabe realçar que a descentralização apenas
não colabora necessariamente para a concretização do
SUS, mais também para outros aspectos relevantes
entre eles o adequado uso de recursos financeiros e a
permeabilidade das instituições do setor saúde aos valores democráticos.
Complementando Silva; (2007, p. 355-370) refere que as instituições públicas têm seu poder local e sua
capacidade de gestão fortalecidos quando a descentralização acontece em correta articulação entre os componentes de governo (projeto de governo, governabilidade e capacidade de governo); a integração desses
componentes pode resultar em melhor organização dos
serviços de saúde possibilitando maior cobertura e acesso além de otimização do uso dos recursos públicos
visando assegurar maior integralidade e efetividade.
Assim Meniccuci (2009) comenta sobre os avanços do SUS evidenciando que com a criação de estratégias para a gestão pública descentralizada foram alcançados resultados significativos como o crescimento da
produção ambulatorial; sendo que atendimentos básicos cresceram 424%, ao passo que os não básicos apenas 39%. Investimentos na atenção básica resultaram
na ampliação do acesso a serviços, na redução da proporção de óbitos por diarréia, tendo passado de 18,1%
em 1990 para 10,3% em 2009; e a cobertura do PSF
aumentou, alcançando em 2007 a porcentagem de
68
95% dos municípios; embora enfrentando problemas
com a qualidade, a resolutividade e a fixação de recursos humanos. Outro aspecto importante se refere aos
avanços em relação à cobertura da saúde bucal, com a
implementação do programa Brasil Sorridente.
Viacava (2010) salienta que uma análise dos últimos dez anos mostrou grandes variações no acesso e
no uso dos serviços de saúde decorrentes de mudanças no quadro socioeconômico e na política de atenção
à saúde. O acesso vem crescendo de forma importante,
sobretudo para a população de regiões mais carentes.
Entretanto refere-se que ainda persistem grandes desigualdades geográficas e sociais, principalmente no que
tange aos serviços de mamografia e odontologia.
De acordo com o contexto exposto acima, problemas de acessibilidade não serão resolvidos de imediato, porém se houver articulação entre municípios
através de uma boa gestão, o processo de regionalização minimizaria os problemas de acesso aos serviços
de saúde, a exemplo os serviços de mamografia.
Corroborando com este pensamento Guerreiro e
Branco (2011) referem que a composição de novos acordos entre gestores favoreceu o estimulo à regionalização e hierarquização no setor saúde nos estados; e contribuiu para o fortalecimento da Comissão Intergestora
Bipartite (CIB). Sendo que estes critérios foram impulsionados pela Programação Pactuada e Integrada (PPI)
que favoreceu a construção de espaços de discussão,
afirmação e decisão de compromissos intergestores,
objetivando também o acesso da população a ações e
serviços de saúde no âmbito municipal próprio ou em
outros municípios, através da oferta de atendimento por
encaminhamento pactuado.
A descentralização dos serviços de saúde deve
ser acompanhada por gestores compromissados para
que os princípios de universalização e integralidade possam ser cumpridos. É necessário que as esferas de
governo e seus gestores adquiram o compromisso de
gerir o processo de descentralização de forma que o
mesmo funcione com eficiência e eficácia. Tendo a concepção de que é coerente que a descentralização e a
regionalização sejam trabalhadas conjuntamente em
prol de favorecer um melhor acesso aos serviços de saúde.
Ainda torna-se necessário salientar sobre a existência de um bom planejamento regional para um bom
processo de descentralização, pois apenas aumentando o poder dos municípios sobre as ações de saúde não
é suficiente, ou seja, não se pode esperar que um município de poucos habitantes ofereça à sua população os
mesmos serviços que um município maior, de maior
número de habitantes e com maiores recursos pode oferecer.
Textura, Governador Mangabeira-BA, v. 6, n. 11, p. 63-70, jan./jun., 2013.
Descentralização: um estudo sobre sua interferência nos serviços de Saúde no Brasil
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A descentralização dos serviços de saúde tem
sido um processo fundamental para alcançar o cumprimento dos princípios do Sistema Único de Saúde
(SUS). Durante o processo de descentralização tem
sido promovido: a existência de um maior número de
estabelecimentos públicos de saúde, o uso adequado
de recursos financeiros, o crescimento da produção
ambulatorial, a ampliação do acesso aos serviços, uma
maior cobertura do PSF, avanços na cobertura de
saúde bucal, maior participação e controle social, a regionalização das ações e os serviços, e a democratização do sistema público de saúde.
As mudanças nas responsabilidades das esferas
de governo (Federal, Estadual, Municipal) com relação
às ações de saúde, tem levado a maior poder no âmbito
Municipal quando comparado ao âmbito Estadual.
Outro aspecto importante é o desenvolvimento de
importantes instrumentos para o SUS, como exemplos
citam-se os Conselhos de Saúde e principalmente algumas mudanças no financiamento do setor.
Por outro lado ainda evidencia-se uma infraestrutura deficitária seja por recursos humanos, seja
por recursos materiais, ou ambos, mascarando um
maior número de serviços de saúde para a população;
também pode se observar o monopólio político partidário, e desigualdade na distribuição de verbas para os
municípios que apesar do processo ter contribuído para
o aumento do acesso aos serviços de saúde no país,
ainda persistem desigualdades entre regiões.
É necessário que o processo de descentralização dos serviços de saúde aconteça através de métodos de planejamento, organização e articulação entre
os diversos níveis de governo, serviços de saúde e equipes intermunicipais, para uma adequada articulação
das ações do processo de regionalização dos serviços
a fim de aprimorar e favorecer o cumprimento dos princípios do SUS.
São necessários também gestores capacitados
e compromissados a fazer com que a operacionalização dos serviços de saúde e suas ações funcionem com
eficiência e eficácia, trabalhando em prol de interesses
coletivos, se contrapondo à realização de interesses
pessoais ou partidários utilizando verbas destinadas a
interesses coletivos.
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