TRÊS ATOS DE QUASE AMOR
Esta história acontece em três atos. O primeiro, mais prosaico, dá-se nas
exterioridades e chama-se O Rosto:
Buzinas de carros impacientes poluíam a avenida na tarde comum. Automóveis
aglomeravam-se no tumultuado trânsito da cidade naquela hora em que os ônibus vão
cheios, conduzindo passageiros de volta para casa. Semáforos quebrados acabavam por
tornar o confuso espaço ainda mais caótico e buzinas histéricas formavam uma espécie
de coro em sinal de protesto. Os ônibus iam cheios e quase parados. Os carros
pequenos, com seu número limitado de pessoas, iam quase parados. Em meio aos
veículos, vendedores ambulantes ofereciam produtos aos gritos.
Elisa pediu à amiga que desligasse o ar-condicionado e abaixou o vidro ao
tempo em que se justificava:
- Não suporto engarrafamento. Fico tensa! Preciso fumar!
- Acho que você devia parar, amiga. Vai estragar a voz. Você, que vive da
música...
Elisa fez uma breve associação entre ser cantora, seu sonho infantil, e sua atual
realidade. Cantar – o que antes fazia com extensão de prazer – tornara-se monótono,
pois a obrigação sobrepujou-se à arte. Era preciso sustentar-se, pagar contas, comprar
cigarros. O som que fazia de sexta a domingo em famoso bar concedia-lhe o dinheiro; ia
perdendo, no entanto, a magia. Sentia-se quase obrigada a cantar e nenhuma arte se
consagra pela obrigação, considerava. Também havia aquele vazio que nem a música
nem os amigos ultimamente preenchiam. Saudade de alguma coisa que se distanciava.
Mas não há filósofo que diz que a saudade antes seja presença? É por estar na gente que
dói. Assim, a falta não pode ser distância, posto que seja aproximação.
A amiga fazia comentários que Elisa não processava. Ensimesmada, alimentava
pensamentos que não se completavam, interrompidos pela sucessão de novos
pensamentos que acabavam novamente fragmentados pela falta de coesão. O aluguel
venceria no dia seguinte e não havia saldo na conta corrente. Quando adolescente eram
outras perspectivas. O patrão pediu que renovasse o repertório. O último namorado a
abandonara por outra. Antagonismos. Soprava a fumaça e gostava do cheiro.
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O trânsito continuava lento e Elisa reparou no ônibus que se posicionou na faixa
da direita. Pessoas espremidas suportavam seus rostos cansados, gente que dependia do
transporte coletivo. Transporte coletivo que conduzia passageiros muito além do
permitido. Em meio à fadiga do tumultuado, um rosto se destacou. Um rosto que
também se suportava e cujo olhar escondia em seu cofre uma esperança. Um rosto de
rapaz. Rosto comum, rosto bom. Esse rosto ia estreitado com seu cansaço; mas os olhos,
que fisgam a liberdade da amplidão, são capazes de flagrar pontos interessantes. Elisa
tinha o olhar concentrado naquele rosto. Acendeu um segundo cigarro e manteve o
pescoço inclinado que era para não perdê-lo de vista. Já o rapaz, olhando para baixo,
também ateve-se à moça. Esta, ofertando-lhe um sorriso, bateu a ponta do dedo no
cigarro, livrando-se das cinzas. O rapaz ia apertado, grudado a outros calores, mas
também conectado às insinuações do olhar que vinha de baixo, benzido com fumava e
oferecimento. Audacioso, devolveu o sorriso e,em seguida, notou que pessoas
indiscretas já percebiam a correspondência.
Elisa logo tratou de encurtar aquela distância. Ofertava a si ocasionalmente o
quepudesse ser um destino. Quem sabe trabalhassem juntos e juntos pagassem o
aluguel, juntos fizessem o almoço, juntos cuidassem dos filhos, juntos conhecessem o
Egito. Pobre rapaz! – passageiro excedente do transporte coletivo. Fez sinal para que ele
descesse e fosse estar com ela no carro. O jovem sorriu mas não reagiu; ela não sabia se
porque não acreditava nela, se porque não compreendera, se porque a julgara insana ou
se pela impossibilidade de conseguir passagem em meio ao emaranhado de gente. A
reticência do moço não suscitou inércia em Elisa, que pediu desculpas à amiga e desceu
do carro. Misturou-se aos veículos, solicitou ao motorista que abrisse a porta do ônibus
e foi ser mais uma excedente do transporte coletivo.
O segundo ato vem das introspecções e intitula-se Cinzas. Se o anterior
conservou algum humor por conta da atitude impetuosa da personagem feminina, neste
a fotografia é menos colorida e está sujeita às rubricas e aos monólogos.
Ali está Elisa. No tapete da sala e por entre almofadas, copo de bebida junto ao
cinzeiro repleto de cinzas e de pontas de cigarro. Os cabelos presos à cabeça por uma
caneta e uma camisa longa feito vestido. Os olhos foram desamparados pelo brilho
ostensivo que possuem aqueles que amam e são presenteados pelo mesmo brilho.
2
Fagulha apagada, debatia-se Elisa na madrugada, tendo o rapaz, cujo nome agora já
sabia – Emanoel –, deixado seu apartamento há algumas semanas. Deixara seu
apartamento há algumas semanas e levara consigo a centelha de vida. Consolavam-na o
álcool e a fumaça.
Foi de quase amor. Quando atravessara o torniquete e enfrentara a falta de
espaço, idealizava senão o puro amor pelo menos um relacionamento progressivo. Seus
trinta e sete anos não se amedrontaram diante da incipiente experiência de quem possuía
vinte e dois. Como convém a namorados principiantes, o estudante de engenharia
dedicou-lhe horas a falar-lhe de suas dificuldades financeiras para cumprir os estudos,
de sua família, de momentos inesquecíveis da infância, de seus sonhos. Elisa fez-se
ouvinte atenta, amiga interessada em suas histórias, mulher entregue. Para confortá-lo,
os seios fartos, os beijos repetidos. Passadas três semanas, o rapaz, viciado, sempre
regressava. Um, dois, três meses. Emanoel tinha fome, Elisa preparava-lhe molhos para
o macarrão engolido com felicidade. Depois dos beijos, a sede e então a lenitiva água.
Se estava exaurido, Elisa tomava do violão e a bossa devolvia o repouso à virilidade que
se alquebrava. Emanoel grávido de confidenciar, a cantora deleitava-se em ouvir-lhe a
meiguice da voz, o jeito carente de quem necessitava de frequentescarinhos. Envolvida
pelos verbos e afetos, Elisa principiou a fazer planos de uma vida conjugal. De início,
nas suas reservas, foi tecendo-os individualmente, segura que não estava de que podia
revelá-los. E quando os revelou para os acréscimos que possivelmente o companheiro
faria, avistou apenas o desmoronar lento e irreversível da frágil muralha que haviam
edificado. Ruía o concreto impalpável amor.
Amor?
O quase amor. Porque extraído o sangue das horas as horas já não pulsavam com
o fervor dos áureos dias e Emanoel foi espaçando os encontros com a cantora, que agora
já mendigava a presença que se fazia escassa. Ouvia promessas de que no dia seguinte
ele apareceria, mas no dia seguinte Emanoel precisava preparar um trabalho ou então
acontecia uma emergência com algum familiar e solicitavam a ajuda dele. Para surpresa
de Elisa, às vezes ele aparecia sem avisar; depois passou a aparecer raramente; até que
deixou totalmente de aparecer na mesmaocasião em que seu celular anunciava apenas
um desligado ou fora de área.
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Violão no colo, a cantora cantava saudades.Em sua frente, a parede branca. Em
sua frente, a parede branca que era como o corpo branco de Emanoel. Em sua frente, a
parede branca em que Emanoel rabiscara o mesmo desenho da tatuagem que ele possuía
no braço. O desenho da tatuagem que ele possuía no braço e que para se completar
carecia de outro corpo que permitisse a outra metade do desenho. Elisa faria. Mas a
intenção sofreu a fratura do tempo. Emanoel se foi e levou o desenho no braço. Ficou o
rabisco na parede e o braço dela sem o traço, a incompletude.
No consumo desenfreado daquele amor, não concebera seu precoce fim. Não
sabendo onde ele morava, não podia ir ser patética. Ainda que soubesse, fosse e ele a
aceitasse, de que adiantaria render-se à mediocridade da volta se ações e palavras não
abalariam uma consciência já livre da afetividade? Alcançava assim a tola sabedoria de
que o amor é um começo e um fim. E quando, depois da madrugada, a manhã trouxe o
dia, Elisa entregou-se esgotada ao conforto da inconsciência.
O terceiro ato nomeia-se Ciclo e começa no instante em que Elisa acorda no
meio da tarde.
Corpo pesado, cabeça pesada, olhos abertos e parados fitam o teto parado. O que
é o tempo? O Tempo só confirma os ciclos. Se o Tempo é transitório, ele não suporta o
vazio. Deseja estar prenhe de renovada composição.Certeza de que o Tempo é contínuo
e de que ele refaz as coisas. Certeza de que as coisas de repente se sabem
frequentemente novas porque o Tempo é irmão da Busca e esta não cessa de,
juntamente com o Tempo, edificar novo começo.
Naquela noite cantaria feliz porque triste. A falta que sentia era presença forte: a
ausência não é aproximação? Animaria a garganta seca para chorar música. O canto
seria um pedido ao Tempo. Ergueu, enfim, o corpo pesado da cama que insistia em tê-lo
e, ligando o rádio, sintonizou em uma das estações. Tomar banho, disfarçar as olheiras,
maquiar-se, encarar o dia, trabalhar. Enquanto se banhava, acompanhou com sua voz a
canção que tocava na rádio. O locutor anunciou que em alguns pontos da cidade havia
retenção no trânsito.
Chamou um táxi e, em vez de pedir ao motorista que evitasse o trajeto que
segundo a estação de rádio estaria congestionado, pediu-lhe justamente o contrário, que
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fosse naquela direção. As cinco horas da tarde já se aproximavam e logo ônibus e
automóveis deixariam as ruas tumultuadas. Pessoas cansadas estariam espremidas por
trás de vidros opacos de sujeira. A fotografia diária. Quem sabe um rosto comum
compreendido por ela como incomum se tornasse necessário. Quem sabe algum
estudante carente e cheio de problemas. Quem sabe um adolescente afoito ou um viúvo
na ânsia de permitir-se outra vez à vida. Quem sabe alguém que quisesse deixar na
parede branca da sala o desenho de uma tatuagem. Quem sabe fosse ela a chave de
alguma alegria.
- Pelo visto, moça, esse engarrafamento não vai ser pra hoje... – sentenciou o
taxista enquanto Elisa concentrava-se cáustica no objetivo pretendido.
Pediu permissão para o cigarro, no que foi atendida e acendeu um. Os olhos
atentos.
- E o pior é que ninguém consegue resolver esse problema!
- É verdade, o senhor tem razão, concordava Elisa em tom distante porque seus
olhos farejavam os olhos dos passageiros do ônibus que se posicionou ao lado.Excesso
de gente na compressão diária. Certamente um rosto comum – ou raro de tão incomum,
vai saber! – desejasse, em meio ao trânsito parado, à escassez de espaço e à rotina, ser
cobiçado por uma mulher de trinta e sete anos que subitamente lhe oferecesse, dentro de
uma bandeja, a felicidade.
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Três Atos de Quase Amor_ Márcio Oliveira Rabelo