UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM Albéris Eron Flávio de Oliveira A LETRA ESCARLATE COMO ROMANCE HISTÓRICO: UMA HISTÓRIA DE FRAGILIDADE HUMANA E TRISTEZA. Natal 2013 1 ALBÉRIS ERON FLÁVIO DE OLIVEIRA A LETRA ESCARLATE COMO ROMANCE HISTÓRICO: UMA HISTÓRIA DE FRAGILIDADE HUMANA E TRISTEZA. Dissertação apresentada como exigência para obtenção do título de Mestre em Literatura Comparada pelo programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL – do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo Natal 2013 2 ALBÉRIS ERON FLÁVIO DE OLIVEIRA A LETRA ESCARLATE COMO ROMANCE HISTÓRICO: UMA HISTÓRIA DE FRAGILIDADE HUMANA E TRISTEZA. Dissertação submetida ao corpo docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes / Departamento de Letras / PPgEL), como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre. Defendida em 07 de maio de 2013. Banca Examinadora __________________________________________________________ Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo (Orientadora - PPgEL - UFRN) _________________________________________________________ Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira (UFRN) _________________________________________________________ Prof. Dr. Rainer Câmara Patriota (UFOP) Natal 2013 3 Ao meu Pai, Alderedo, que me tomou pela mão – literalmente – e me levou para aprender a Língua Inglesa quando eu ainda nem sabia do que se tratava. (...) A Ian, a quem devo tomar pela mão... 4 AGRADECIMENTOS A Deus, em primeiro lugar. À minha mãe Ione, exemplo de amor incondicional para comigo. A Alci, Deni e Alri, por quem meu sentimento de amor aumenta a cada dia. A Joanna Angélica, esposa e companheira de todos os momentos, pelas boas conversas e ensinamentos, ao seu irmão, Silvanney e aos seus pais, Silvério e Magnólia, pela atenção e pelo cuidado conosco em todo o tempo. À professora Dra. Rosanne Bezerra de Araújo, pelas aulas, pela paciência, pelo incentivo constante e pela sabedoria com a qual me ajudou a tornar possível a conclusão desta dissertação. Aos professores doutores Andrey Pereira de Oliveira e a Rainer Câmara Patriota, pela contribuição que deram com seus amplos conhecimentos. Ao professor Doutor Derivaldo dos Santos, por sua inteligência e pela recepção no Programa de Estudos em Linguagem desta Universidade. A professora Maria Beatriz Piccoli Dias e Souza, exemplo de professora e de ser humano, que primeiro me recebeu nesta Universidade, em nome de quem, a todos os professores do departamento de Letras da UFRN, eu agradeço. Aos amigos e colegas de sala, pelo incentivo e pelo apoio. À coordenação do PPgEL, na pessoa de Bete, pela sempre disposição em seus preciosos serviços. E a Ively, pelas orientações para a formatação deste trabalho. Eu agradeço. 5 RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar a obra do escritor americano Nathaniel Hawthorne (1804 – 1864), A Letra Escarlate (1850), à luz das contribuições da Literatura e da História do povo americano no contexto da Nova Inglaterra – dos primeiros séculos de sua existência até o período em que viveu o seu autor. Nesse sentido, buscaremos evidenciar aspectos que justificam a inserção da obra como um romance histórico, especialmente a partir da leitura de O Romance Histórico (1936-37) de Georg Lukács. A diversidade das vozes sociais e os interrelacionamentos que se depreenderam dos personagens principais do enredo do romance, assim como as suas construções contextuais, se constituíram como elementos importantes para a compreensão do romance como sendo de valor Histórico. Durante o nosso estudo, verificamos que é nos enredos dos romances que as personagens refletem, ao mesmo tempo, as condições específicas de suas singularidades, as tendências gerais do processo histórico e as condições sociais das quais eles surgem. Pudemos verificar também que é em suas singularidades que se concentram tendências próprias do ser humano. Para fundamentar este estudo buscamos referências em teóricos da literatura mundial como Howard (1964), Bakhtin (1998), Eagleton (2006), Todorov (2009), em historiadores como Zabel (1947), Sellers (1985) e Cunlife (1986), bem como nas repercussões da obra no Brasil, notadamente a partir de leituras realizadas por Candido (1993) e Schwarz (1981). PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Romance Histórico. Nova Inglaterra. 6 ABSTRACT The objective of this paper is to analyze the work of the American writer Nathaniel Hawthorne (1804 - 1864), The Scarlet Letter (1850), in the light of the contributions of Literature and History of the American people in the context of New England. Accordingly, we highlight aspects that justify the inclusion of the work as a historical novel, especially based on the reading of The Historical Novel (1936-37) written by Georg Lukács. The diversity of voices and social interrelationships that come out of the main characters of the plot of the novel, as well as their contextual buildings, constituted as important traces to understanding the novel as being of historical value. During our study, we found out that it is in the plots of the novels that the characters reflect, at the same time, the specific conditions of their singularities, the general trends of the historical process and the social conditions from which they arise. We also could see that it is in their singularities that lie special tendencies of human beings. Our references to this study came from scholars as Howard (1964), Bakhtin (1998), Eagleton (2006), Todorov (2009), Zabel (1947), Sellers (1985), Cunlife (1986), Candido (1993) and Schwarz (1981). KEYWORDS: Literature. Historical Romance. New England. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 8 2 TRADIÇÃO PURITANA NA LITERATURA DA NOVA INGLATERRA 15 2.1 NATHANIEL HAWTHORNE: RESPLENDOR CREPUSCULAR NA LITERATURA AMERICANA DO SÉCULO XVII 20 3 O ROMANCE COMO A GRANDE FORMA DE NARRATIVA 28 3.1 ENTRE O POETA E O HISTORIADOR 33 3.2 LUKÁCS E O ROMANCE HISTÓRICO 41 3.3 O SURGIMENTO DO ROMANCE HISTÓRICO SEGUNDO LUKÁCS 45 4 A LETRA ESCARLATE: UM ROMANCE HISTÓRICO 50 4.1 O EDIFÍCIO DA ALFÂNDEGA: MARCAS DE UMA HISTÓRIA 51 4.2 CARACTERÍSTICAS DO ROMANCE HISTÓRICO EM A LETRA ESCARLATE 58 4.3 A COMUNIDADE DOS SALEMITAS 67 4.4 AS PERSONAGENS DO ROMANCE HISTÓRICO EM A LETRA ESCARLATE 76 4.5 O DESTINO DE ESTER, DIMMESDALE, CHILLINGWORTH E PÉROLA 78 4.6 ESTER: A HEROÍNA DO ROMANCE 80 4.7 O REVERENDO ARTHUR DIMMESDALE 93 4.8 ROGÉRIO CHILLINGWORTH, O MÉDICO TRAÍDO 99 4.9 PÉROLA: UMA FUTURA GERAÇÃO 104 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 112 REFERÊNCIAS 118 8 1 INTRODUÇÃO Por sua natureza, a literatura como arte, é um fato da civilização condicionado por seu meio. Ao mesmo tempo em que ela é influenciada pelo seu meio, ela exerce também influência sobre as pessoas e sobre a sociedade à qual é dirigida ou com a qual dialoga. Há uma interação dialética de influências, portanto. A literatura, então, não nos separa do mundo, mas, ao contrário, pode colocar-nos numa relação mais direta com ele. A literatura ajuda a compreender melhor o homem e o mundo e ainda pode-se tirar uma beleza que pode enriquecer a sua existência. Ela abre uma serena e luminosa região de verdade, onde todos podem se encontrar e caminhar juntos, acima da fumaça e das tensões, do barulho e da vida inferior do homem (EAGLETON, 2006, p.37). Para Todorov (2009, p.22), ―a literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles, numerosas características‖. Não é por acaso que, segundo ele, ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes. Compartilhando com Eagleton (2006, p.297) o fato de que ―quanto mais nos afastamos da rica interioridade da vida pessoal da qual a literatura é o exemplo supremo, mais descolorida, mecânica e impessoal se torna a nossa existência‖, é que nós buscamos realizar este trabalho. A literatura dos Estados Unidos da América, segundo Zabel (1947), assemelha-se à literatura de outras nações, em certos sentidos óbvios. É o registro das origens e do crescimento de um povo; de sua passagem dos primeiros passos culturais, coloniais e comparativamente primitivos, e de um lento desenvolvimento para a maturidade e independência, próprias de suas ambições, esperanças e propósitos como civilização. Mas a literatura norte-americana difere de outras em vários pontos que lhe dão marcas definitivas e que emprestam conteúdo e interesse especiais. Ela traz, por exemplo, em seu bojo, traços de culturas europeias ancestrais, e apresenta, até certo ponto, uma continuação de suas tradições, valores e crenças. É uma literatura moderna, pois se situa inteiramente dentro do período da pós-renascença da cultura ocidental, e que dentro de um curto espaço de tempo, de três séculos precisamente, precisa saldar suas dívidas e compromissos com as literaturas das quais nasceu, a fim de poder adquirir personalidade e mérito próprios. O estudante de literatura norte-americana encontra, assim, logo de saída, dois princípios ou motivos de que imediatamente se apossa, como meio de traçar e compreender a história literária dos Estados Unidos. O primeiro deles são suas 9 fontes plantadas na tradição europeia e sua madura compreensão do que significam essa descendência e dependência. O segundo é a resistência a essa tradição, num esforço para descobrir um caráter e uma base moral própria. A tensão e o entrechoque desses dois motivos, na literatura dos Estados Unidos, transparecem através de toda a sua história (ZABEL, 1947, p.14). Essa reflexão se faz visível se pensarmos em Emerson, Hawthorne e Whitman, no século XIX, ou em Franklin, Jefferson e a Revolução no século XVIII, ou ainda, se formos um pouco mais para o início do século XVI, com a chegada dos colonizadores religiosos de Massachusetts, quando estes tentaram, pela primeira vez, lançar as bases de uma nova sociedade na América do Norte. Conforme penetramos nas análises desses aspectos impregnados na formação do povo norte-americano e em sua história cultural, podemos descrever o drama que eles passaram, de alguma maneira como um conflito entre tradição e o novo mundo, entre autoridade histórica e democracia, entre ortodoxia e heresia, ou entre, se quisermos ir mais longe, um abstrato ideal de unidade histórica e um determinismo econômico. O fato é que a literatura norte-americana apresenta o drama que estes problemas inspiraram, descritos nos livros de autores que buscaram retratar o desejo de independência, o senso de fidelidade moral às tradições e à concepção própria de seu papel enquanto povo na história da humanidade. As primeiras formas de narrativas ligadas à literatura norte-americana, no século XVII, tomaram a forma de narrativas de viagens ao Novo Mundo. Narrativas repletas de descrições do país que fora descoberto do outro lado do Atlântico, de relatos de exploração, de conquista e de colonização, todos enviados à Europa como ‗Notícias da América‘ (ZABEL, 1947, p.15). É importante dizer que ―os americanos nunca perderam inteiramente o sentimento da obrigação de descrever, justificar e defender seu grande empreendimento da aventura e independência, no hemisfério ocidental. Os europeus nunca deixaram de solicitar esses relatos e explanações‖ (ZABEL, 1947, p.14). Talvez nenhuma outra nação se viu mais forçada a explicar e justificar seus propósitos como sociedade, a encontrar uma expressão para seus ideais e suas ambições, a formular uma convincente filosofia de sua experiência e a exibir ao mundo o fruto de sua cultura própria: o ‗homem do novo mundo‘. Este ‗homem do novo mundo‘ se converte, à proporção que conhecemos a literatura norte-americana, em um ideal dos desígnios norte-americanos. Diante do que foi exposto, destacamos, nessa nova identidade que surge do seio do puritanismo religioso, o romance A Letra Escarlate (1850), de Nathaniel Hawthorne (1804 – 10 1864). A sua vida, assim como quase todos os seus escritos, estão impregnados da atmosfera característica da capital do império da Nova Inglaterra, Salem, na Baía de Massachusetts, onde preconceitos e superstições caracterizavam o lugar como uma fortaleza do calvinismo colonial. Como um homem arisco e desconfiado, Nathaniel Hawthorne deu à literatura norteamericana e universal, um conjunto de obras como The House of the Seven Gables, Young Goodman Brown e The Marble Faun [A casa das Sete Torres, O Jovem Amo Brown e O Fauno de Mármore] , entre várias outras. Vivendo e escrevendo sobre os fantasmas criados pelo absolutismo religioso –, quando nasceu a cidade já não era a mesma de seus antepassados, imersa em uma ortodoxia puritana –, Hawthorne cresceu em uma cidade que então surgia como um importante centro de comércio marítimo e que começava a apagar lentamente os rastros do seu passado obscuro e sombrio. De um espírito formado, notadamente, pelos resíduos da tradição de seus próprios ancestrais – o seu avô John Hawthorne1 era considerado intolerante e feroz, inflexível e implacável em suas convicções e em sua maneira de entender as convicções alheias –, seu mundo imaginário era o mundo rodeado por feitiçarias e religiosidade. Tendo perdido seu pai quando tinha apenas quatro anos de idade, Hawthorne foi criado por um tio e foi morar no Maine, onde viveu com poucos recursos. Em 1825, quando concluiu os estudos, retornou a Salem onde se confinou voluntariamente com sua família – a mãe e as irmãs mais velhas. Foi nesse contexto de reclusão que Hawthorne começou a escrever os seus primeiros contos. Na ânsia de encontrar a expressão máxima e precisa de sua tez literária, ele submeteu-se a um duro regime de aprendizagem, escrevendo e reescrevendo contos, destruindo-os e escrevendo-os de novo. Convidado por um editor amigo, ele publicou em 1837, uma coletânea de narrativas a que deu o título de Twice-Told Tales [Contos Recontados]. Era a sua primeira publicação. Pelo fato de, como ele próprio disse2, ter se afastado voluntariamente da sociedade tornando-se cativo de si mesmo, o que ele passou a ganhar com suas publicações não cobria as suas despesas. Hawthorne estudou com Longfellow e Franklin Pierce, que depois se tornaria presidente dos Estados Unidos da América, e a necessidade forçou o escritor a aceitar 1 Segundo Hawthorne (1993), ele herdara o espírito perseguidor, tornando-se tão fanático no martírio das feiticeiras, que com razão pode-se dizer que o sangue delas os deixou manchado. 2 ―Segreguei-me da sociedade; jamais pensara em tal, no entanto, nem sequer havia sonhado que espécie de vida levaria. Tornei-me cativo de mim mesmo, aprisionei-me e agora não posso encontrar a chave que me deixará sair.‖ (Ibid., p.10). 11 um emprego na alfândega de Boston3. Hawthorne casou-se em 1842 e foi viver em uma velha mansão – Old Manse – em Concord, uma pequena cidade que depois se tornou local de residência de Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Louise M. Alcott. Na alfândega tornou-se inspetor. Nesse período, ele aproveitou o tempo para escrever o texto que lhe rendera maior fama e respeito: A Letra Escarlate, cuja repercussão lhe deu estímulo para preparar The House of the Seven Gables (1851). Em 1853, como cônsul em Liverpool, encontrou subsídios para escrever The Marble Faun, somente publicado em 1860. Consagrado como um dos grandes escritores da literatura norte-americana de seu tempo, Nathaniel Hawthorne se empenhou em desenvolver sua aptidão intelectual como se fosse um principiante. No prefácio de The Marble Faun,, ele escreveu sobre as dificuldades que encontrou quando da construção de seus textos: autor algum pode conceber como é difícil escrever um romance em uma terra em que não há sombras, nem antiguidades, nem mistério, nem nada de pitoresco ou sombrio – em que não há nada, a não ser uma vulgar prosperidade, como é, bem à luz do sol, felizmente, o caso da minha cara terra natal. Passar-se-á muito tempo, creio eu, antes que o romancista encontre temas congênitos e de fácil tratamento, quer nos anais de nossa valente república quer em qualquer das características de nossa vida individual. Romance e poesia, hera e líquen, e trepadeiras precisam de ruínas para poder viver (HAWTHORNE, 1966, p.11). O último livro publicado por Nathaniel Hawthorne foi Our Old Home [Nossa Velha Mansão], em 1863. Em 1864, o autor morreu em sua casa, em Plymouth, New Hampshire, tendo deixado um romance inacabado cujo título era The Grimshaw´s Secret [O Segredo de Grinshaw], em que focalizaria a descoberta de um elixir da longa vida. O que desenvolveremos nas próximas páginas é, em parte, fruto de reflexões e, em uma maior dimensão, da pesquisa bibliográfica que nos trouxe teóricos da literatura, historiadores e críticos que nos acenderam as luzes para o encaminhamento deste estudo. Consideramos, diante do exposto, como objetivo geral de nossa Dissertação, analisar a obra do escritor americano Nathaniel Hawthorne, A Letra Escarlate (1850), à luz das contribuições da Literatura e da História do povo americano no contexto da Nova Inglaterra, dos primeiros séculos de sua existência, até o período em que viveu o seu autor – a segunda metade do século XIX – bem como de O Romance Histórico, escrito por Georg Lukács, entre os anos de 36 e 37 do século XX. 3 Na introdução de A Letra Escarlate o autor comenta sobre os seus dias como trabalhador do ‗Edifício da alfândega‘ em Boston - cargo que foi dado a ele por Franklin Pierce, então presidente dos Estados Unidos e amigo pessoal de Hawthorne . 12 Com relação aos objetivos específicos, buscamos: (1) caracterizar o contexto puritano em que A Letra Escarlate foi escrita, a partir, principalmente, da leitura da História da Literatura dos Estados Unidos de Marcus Cunlife e A Literatura dos Estados Unidos, de Morton Dauwen Zabel; (2) identificar, em A Letra Escarlate, aspectos que justificam a inserção da obra, enquanto romance histórico, a partir da leitura de O Romance Histórico (1936-37) de Georg Lukács; (3) traçar o perfil do comportamento da personagem Ester Prynne como heroína do romance além da importância das personagens Dimmesdale e Chillingworth, na medida em que contribuem para acentuar aspectos de historicidade no romance. Levaremos em consideração as posturas que fizeram delas, perfis adequados para integrar nesse gênero de romance – histórico –, uma vez que em seus entornos convive uma comunidade puritana alimentada por dogmas estritamente religiosos que demarcam os seus limites históricos e sociais. Para fundamentar este estudo buscamos referências em teóricos da literatura mundial como Terry Eagleton, Tzevetan Todorov, Leon Howard, Fredric Jameson e Georg Lukács, em historiadores como Charles Sellers, Henry May e Cunlife, bem como nas repercussões da obra de Nathaniel Hawthorne aqui no Brasil, notadamente a partir de leituras realizadas por Antonio Candido e Roberto Schwarz. A fim de alcançarmos nossos objetivos, faremos, num primeiro momento, uma breve explanação da tradição puritana na literatura da Nova Inglaterra, considerando, como bem registrou Candido (1993), que sempre houve na formação histórica dos Estados Unidos uma presença constritora da lei – religiosa e civil –, chegando a plasmar grupos e indivíduos, delimitando comportamentos graça à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior do pecado. Nesse ponto, traremos a figura de Nathaniel Hawthorne como uma espécie de leitor direto da consciência puritana de seus antepassados, habitantes da colônia de Massachusetts. Num segundo momento, destacaremos aspectos relevantes encontrados em O Romance Histórico, de Georg Lukács – escrito nos anos de 36 e 37 do século XX, durante o seu exílio em Moscou –, que contribuem para pôr em evidência a condição humana às voltas com fatores históricos e sociais que exercem grande influência sobre o desenvolvimento dos seres humanos. Chegaremos a esse ponto, mas não sem antes apresentarmos o romance como uma grande forma de narrativa e demarcarmos os limites entre o historiador e o poeta, como o fez Aristóteles em sua Poética. Achamos prudente trazer essa questão uma vez que o romance histórico exige do escritor uma dupla qualidade, segundo Fernando Cunha (1972). Para ele, o autor de um romance histórico precisa ter, ao mesmo tempo, um pouco de ficcionista e um 13 pouco de historiador – harmoniosamente dosados –, uma vez que o primeiro sem a autoridade do pesquisador não dará a seu trabalho o valor documental que ele precisa, e o segundo não pode fazê-lo sem a sutileza do efabulador. Num terceiro momento, apresentaremos A Letra Escarlate como um Romance Histórico, propriamente dito, a partir do capítulo que introduz o romance, denominado ―O edifício da Alfândega‖. Para nós, esse momento ganha lugar de destaque, pois, o mesmo apresenta três anos de serviços prestados por Nathaniel Hawthorne à cidade de Salem – na Alfândega –, tempo em que ele registra o modo como lhe surgiram os rascunhos históricos que serviram de ideia central e o fizeram escrever A Letra Escarlate no ano de 1850. A diversidade das vozes sociais e os inter-relacionamentos que se depreenderam dos personagens principais do enredo do romance, bem como as suas construções contextuais, se constituíram como elementos importantes para a compreensão do romance como histórico. Nesse sentido, tanto os moradores mais comuns de Salem quanto Ester, Dimmesdale e Chillingworth, por exemplo, serviram como referências para a justicativa do romance A Letra Escarlate como histórico. A resistência desses a uma realidade que a eles se fecha revela um mundo sombrio recheado de dogmas puritanos que trazem à tona questões a respeito das forças e dos pensamentos que formam aquela sociedade de origem inglesa. O destino de Ester, Dimmesdale e do próprio Chillingworth provaram uma verdade comum e histórica relacionada aos tempos dos primeiros moradores da Nova Inglaterra – que também fora descrita em outra obra de outro renomado autor americano – Arthur Miller em As Bruxas de Salem. Finalmente, concluiremos a nossa dissertação apresentando as nossas considerações finais, com as quais esperamos confirmar A Letra Escarlate como um romance histórico e de grande importância para a memória dos norte-americanos. Assim, acreditamos que seu conteúdo tem relevância histórica, fazendo parte, portanto, do acervo da memória de uma época vivida pelo povo americano, da mesma forma que, por exemplo, a trajetória dos seus personagens está associada diretamente ao destino político de toda a comunidade de Salem – local em que se passa a história. O romance justificar-se-á, também, como sendo de fragilidade humana e tristeza, pois apresenta em seu pano de fundo histórico a cruel rigidez e o autero nível de soberba do Puritanismo da Nova Inglaterra e sua incapacidade de compreender as idiossincrasias dos seres humanos através de uma ótica que não seja a deles – dos puritanos. É importante registrar que, ao desenvolvermos tal estudo, levamos sempre em consideração a importância da literatura para a formação humana, como espaço de integração 14 e discussão de saberes. Como relata Todorov (2009): ―a literatura abre ao infinito a possibilidade de interação com os outros, e, por isso, nos enriquece infinitamente‖ (p.23-24). Nesse sentido, Nathaniel Hawthorne nos oferece um mundo repleto de valores que não nos são, de todo, estranhos. O conjunto de reflexões que o seu texto proporciona traz o berço da literatura norte-americana para perto de nós, ampliando nosso universo, incitando-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. O título deste trabalho surge de uma passagem do início do primeiro capítulo de A Letra Escarlate. É uma frase dita pelo narrador do texto, alertando o leitor para o que adviria naquelas linhas que seguiriam. Dizia a voz daquele narrador criado por Nathaniel Hawthorne que aquele seria ―um romance de fragilidade humana e tristeza‖ (HAWTHORNE, 1993, p.52). Por esse motivo, escolhemos como título desta dissertação: A Letra Escarlate como Romance Histórico: uma história de fragilidade humana e tristeza. Salientemos que todas as referências citadas em português oriundas de títulos em inglês, referendados na bibliografia ao final deste trabalho, são de nossa inteira responsabilidade, uma vez que não os encontramos traduzidos para a nossa língua. 15 2 TRADIÇÃO PURITANA NA LITERATURA DA NOVA INGLATERRA Na formação histórica dos Estados Unidos houve desde cedo uma presença constritora da lei, religiosa e civil, que plasmou os grupos e os indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado. Daí uma sociedade moral, que encontra no romance expressões como A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, e dá lugar a dramas como o das feiticeiras de Salem. (CANDIDO, 1993, p.50) As narrativas de Nathaniel Hawthorne estão inseridas no contexto da Nova Inglaterra dos séculos XVII e XVIII especialmente, nos quais é forte a presença do puritanismo na região. ―Os puritanos chegaram ao novo mundo com a intenção de formar uma sociedade com valores cristãos rígidos‖ (HIGH, 1986, p.6) e ―a atividade literária de Hawthorne estava muito bem marcada pela sua própria vida em Salem‖, Massachusetts, lugar onde ele nasceu em 1804 (McMICHAEL, 1966, p.525). Esse movimento religioso, o Puritanismo, defende a eliminação de todo o catolicismo romano da liturgia eclesial e é formado por uma grande rigidez de valores morais. Segundo McMichael, o Puritanismo também se destaca principalmente pelo rigor e pela falta de escrúpulos no modo e na forma de agir de seus representantes. Um exemplo desses representantes é John Hawthorne4, parente distante de Nathaniel Hawthorne e perseguidor dos quacres, que se destaca como o ―principal inquisidor dos episódios da caça às bruxas de Salem de 1692‖ (McMICHAEL, 1966, p.525). Os puritanos são uma manifestação da Igreja Congregacional – oriunda da igreja Anglicana europeia – e fruto da Reforma. De acordo com Howard (1964, p.21) ―a Inglaterra reconhecia o sistema congregacionalista da Nova Inglaterra representado, agora, pelos puritanos‖. Também, segundo Sellers (1985, p.24), ―as colônias da Nova Inglaterra constituíam consequências diretas do recrudescimento do conflito religioso da Inglaterra‖. Os puritanos perceberam que faziam parte de um grupo que, entendendo que a Igreja europeia não havia se separado em seus rituais e dogmas da Igreja católica de Roma, foi forçado a migrar para um novo mundo por causa das restrições e perseguições que passaram a sofrer. Eles se consideravam ―agentes de Deus, enviados sob a sua milagrosa providência para construírem casas para os eleitos e para converterem ou aniquilarem os índios‖ (CUNLIFE, 1986, p.36). O pano de fundo era completamente calvinista, principal fonte da 4 Hawthorne afirmou que era assombrado pela memória de seus ancestrais puritanos e ele descobriu a figura de seu tataravô, John Hawthorne, que teria sido um dos juízes durante o tribunal das bruxas de Salem de 1692. In HAWTHORNE, Nathaniel.The Blithedale Romance. New York: Dell Publishing Co., Inc., 1960, p.7. 16 doutrina religiosa daquela região. Eles defendiam como valores absolutos a soberania de Deus, em bondade, poder e conhecimento; a pecabilidade do homem a partir da queda de Adão, consequentemente, a sua separação do criador; a doutrina da predestinação, a crença de que Deus escolheu certas pessoas antes mesmo da criação para a salvação eterna e outras para a condenação. Era esse o motor que agia sob o ir e o vir da práxis daquela sociedade. Mas a ―coragem, seriedade, sentido de propósito, energia intelectual, robustez e até jovialidade‖, segundo nos revela Cunlife (1986, p.35), também os acompanhavam em seus cotidianos. ―A Nova Inglaterra tinha uma moral distintiva e uma ordem social cuja influência se espalhou por quase todos os Estados Unidos‖ (CUNLIFE, 1986, p.35). Os puritanos não eram exilados miseráveis e sem condições, nem criminosos ou escravos. Como moradores da Baía de Massachusetts, eles eram colonos simples, conscientes de sua nacionalidade, que tinham uma grande devoção por seus valores e em busca de uma vida diferente da que lhes era oferecida na Europa. Eles queriam liberdade e liberdade à sua maneira. Ao chegarem à Nova Inglaterra – a grande migração puritana para a baía de Massachusetts aconteceu entre os anos de 1628 e 1643 (McMICHAEL, 1966) – passaram a dominá-la e a impor um estilo de vida dogmático e cheio de regras. Em consequência disso, aqueles que não se enquadravam em seu novo modo de vida, passavam a sofrer perseguições e punições. A igreja e o estado na Nova Inglaterra pareciam ser uma só instituição. Segundo High (1986) a sociedade puritana era uma teocracia: as leis da sociedade e as leis da religião eram as mesmas. Para se firmarem, eles exerceram um controle constante sobre imigrantes involuntários – negros africanos que ali chegaram através do tráfico – e uma suplantação dos nativos indígenas, dos quais eles se tornaram os maiores inimigos. Vida plena e abundante, trabalho duro e, em geral, submissão às regras sociais, sem espaço para questionamentos eram a rotina naquela nova terra. Conhecer o Deus cristão, obedecê-lo e reverenciá-lo, fazia parte do imaginário que pairava sobre todos que moravam em Salem. Segundo Coles Notes (1989), o nome da cidade – Salem, o lugar onde se desenrola a narrativa – é uma referência ao antigo nome da mesma cidade que aparece na Bíblia. Não é difícil perceber que a literatura nesse tempo é intrinsecamente ligada à ideologia local. ―A literatura, no sentido que herdamos da palavra, é uma ideologia. Ela guarda as relações mais estreitas com questões de poder social‖ (EAGLETON, 2006, p.33). A forma ideológica de controle social naquele contexto era estritamente religiosa. A vinda dos puritanos para a nova terra trouxe, com muita força, também a ideia de pecado – um valor 17 depositado nas suas regras de fé e prática que separa muito mais do que agrega. A noção de pecado entre eles exibia a forma de controle do poder social. ―Em 1628 uma primeira companhia, sobre a jurisdição de John Edincott, recebeu a patente dada pelo governo para se estabelecer no lugar. Era a ―Dorchester Company‖, o primeiro grupo a chegar com intenções de ficar na região, definitivamente‖ (COLES NOTES, 1989, p.11). A partir de então outros grupos foram chegando à colônia de Massachusetts durante os governos que se sucederam. Anos mais tarde, segundo McMichael (1966), com a chegada de John Winthrop5, eleito governador da colônia da Baía da Massachusetts em 1630 e citado pelo narrador de A Letra Escarlate, o governo dos puritanos ganhou sede em Boston naquela mesma colônia. Com ele a comunidade de Salem assumiu o caráter religioso, bem parecido com o que é descrito no romance de Hawthorne. No ano de 1629 era estabelecida a primeira igreja congregacionalista na América que tinha como pastor o reverendo Roger Williams, amigo pessoal de John Edincott, e que foi perseguido pelos puritanos juntamente com Ana Hutchinson por buscarem mais liberdade religiosa (McMICHAEL,1966, p.526). Como registra Cunlife (1986), os puritanos fundaram Harvard em 1636 e outras universidades como a de Yale em New Haven naquele mesmo período, com o objetivo de treinar novos ministros. Eles também fizeram funcionar a primeira máquina de imprensa em solo norte-americano em 1638 e publicaram o primeiro Jornal. Em 1692 a cidade de Salem foi alvo de rumores por causa de denúncias a respeito da presença de bruxas e de magia negra (CUNLIFE, 1986). As notícias levaram o governo da cidade a fazer uma verdadeira caça às bruxas, na qual muitas pessoas foram presas e condenadas ao enforcamento. Para eles, a história se desenvolvia somente de acordo com os ―planos de Deus‖. Dentre os escritos que se tem registro dessa época, Cunlife destaca: ‗Maravilhosa Providência‘ (1684) de Increase Mather (1639-1723) que conta o ambiente psicológico do período da caça às bruxas em Salem, ‗O Anjo de Betesda‘ (1723) que trata da importância da relação do homem com Deus, escrito por Cotton Mather (1666-1728) e os poemas com temas religiosos de Ana Bradstreet (16121672), intitulado ‗o brotar da última musa na América‘, além de textos descrevendo as paisagens da Nova Inglaterra (1986, p.6). 5 Segundo Aptheker (1967), John Winthrop nasceu na Inglaterra em 1588 e veio para a Nova Inglaterra assumir a governadoria da Colônia de Massachusetts em 1630. Foi eleito governador da mesma província várias vezes antes de morrer. Publicou um Jornal, em 1790, de grande valor histórico para a sua região. Seu filho John fundou a cidade de ‗New London‘ em 1646. 18 O espírito local da Nova Inglaterra vai gerar na nova terra uma cultura literária baseada em fatores coloniais e provincianos, mas ―aos olhos dos europeus os nativos americanos se apresentavam apenas como selvagens rudes‖ (CUNLIFE, 1986, p.25), e os seus expoentes coloniais serão julgados como instigadores de um fanatismo nocivo e anti-humano e cujos malefícios se prolongam e perduram até os dias atuais. A fortaleza, a simplicidade e a coragem dos peregrinos de Plymouth enrijeceram-se no inflexível dogmatismo dos puritanos de Salem e Boston. Esse dogmatismo não era simples assunto para sermões, clérigos e igrejas: foi imposto em toda comunidade como norma e estrutura social. Em seus mais consistentes ensinamentos e obras, encontramo-lo nos escritos dos Mathers e Jonathan Edwards (ZABEL, 1947, p.57). Com o dever de cultivar o novo lugar, os puritanos passaram a cuidar da terra e a transformá-la em um campo comercial, lugar de onde eles tirariam sua sobrevivência, implementariam e consolidariam suas leis e regras de convivência6. Citando Edgar Allan Poe, comentando a respeito da literatura da Nova Inglaterra, no contexto da obra de Hawthorne, Cunlife (1986, p.119-120), registra: A literatura da Nova Inglaterra direcionava-se para a seriedade. O extremismo puritano desaparecera. [...] Mas a ‗heresia didática‘ pairava ainda no ar. A cultura da Nova Inglaterra não deixara de ser religiosa. Os homens de letras eram, em certo sentido, homens de Deus. Carl Bode, Leon Howard e Louis B. Wright trazem registros a respeito dos Estados Unidos, especialmente nos dois séculos que antecedem a sua independência. No que tange à formação da literatura no contexto puritano e com relação à Nathaniel Hawthorne, eles afirmam: De alguma maneira Nathaniel Hawthorne pode ser considerado, juntamente com Poe, como um autor cujo trabalho representa o Romantismo decadente. Hawthorne partiu do impulso romântico da primeira metade do século XIX, desenvolveu sua arte a partir da tradição gótica de contar histórias e criou para ele mesmo uma personalidade literária. [...] O mito que cerca a sua personalidade é de um homem gentil e não de um selvagem, de um puritano e não de um homem amoral (1966, p.108). Mais adiante, esses mesmos autores dirão ainda sobre Nathaniel Hawthorne: 6 As colônias da Nova Inglaterra puderam se desenvolver como colônias de povoamento porque suas atividades econômicas atendiam aos interesses dos próprios colonos e não se subordinaram às diretrizes da política mercantilista metropolitana. (AQUINO; LEMOS; LOPES, 1990). 19 Hawthorne alcançou a maturidade a partir da crença de que os prazeres da imaginação poderiam ser aprofundados e enriquecidos a partir da atividade da moral. [...] Os elementos morais em suas histórias parecem ter sido introduzidos com o propósito de criar um efeito literário que vai além daquele do simples puritanismo (1966, p.109). O universo original em que surge a obra de Nathaniel Hawthorne é, portanto, parte do berço e da memória do povo americano, como descrito no livro Nathaniel Hawthorne: a critical essay on the man and his times [Nathaniel Hawthorne: um ensaio crítico sobre o homem e seu tempo], de 1879 de Henry James. Ele traz reflexões a respeito dos traços e do estilo de vida dos primeiros moradores da Baía de Massachusetts, nos apontando padrões da civilização moderna, avançada, existentes em outros países – especialmente a Europa – nos séculos XVII e XVIII, que estavam ausentes da vida dos moradores da Nova Inglaterra. Na compreensão de Henry James, o maior legado deixado pelos puritanos à nova nação foram os seus dogmas e os seus valores, puramente cristãos. Mas, naqueles primeiros séculos, havia ausência de referências locais importantes: Nem estado, no sentido europeu da palavra, apenas um nome especificamente nacional. Nem soberania, nem corte, nem lealdade pessoal, nem aristocracia, nem igreja, nem clero, nem exército, nem serviço diplomático, nem senhores rurais, nem palácios, nem castelos, nem mansões, nem grande literatura, nem novelas, nem museu, nem quadros, nem sociedade política, nem classe desportiva (CUNLIFE, 1986, p. 16). James refere-se aqui à América de 1840, e não parece acreditar em prodígios de mudança para as próximas gerações. De fato, enquanto na Europa, o ―Velho Mundo‖ estava socialmente equipado com todos os espaços acima citados, a América dos puritanos ainda precisava crescer e se desenvolver para alcançá-los7. Era possível enumerar elementos da civilização avançada, existentes noutros países, e que estavam ausentes na vida cotidiana dos colonos da Nova Inglaterra. Henry James menciona pontos dessa nova nação, ainda em formação, que estão sendo moldados em seus vários aspectos sociais, inclusive com relação à literatura. Por exemplo, para ele, ―à sombra de qualquer texto que fosse escrito, estava a já consagrada e reconhecida Literatura Inglesa‖ (CUNLIFE, 1986, p.16), uma literatura forte e de mesma língua, que há muito tempo havia apresentado ao mundo nomes consagrados como William Shakespeare, Geoffrey Chaucer, John Milton, entre outros. Isso se constituía um problema. Destacadamente o que 7 Um dos argumentos utilizados por Henry James a respeito da grandiosidade e importância de Hawthorne para a literatura americana é o de ter despertado entre os autores americanos a necessidade de uma escritura genuinamente oriunda da própria terra. (EDEL, 1960). 20 encontramos na Nova Inglaterra dos puritanos são obras como The Pilgrim´s Progress [O Peregrino] (1678) de John Bunyan e o The sincere Convert [O sincero convertido] (1641) de Thomas Shepard, além de Of Plymouth Plantation [A plantação de Plymouth], jornal escrito por William Bradford entre os anos de 1620 e 1647, e The Journal of John Winthrop [O jornal de John Winthrop] escrito entre os anos de 1630 e 1649, além de outros escritos, com forte apelo ideológico. Nesse meio, aparecem enredos e textos cobertos de tópicos sobre a moralidade e exposições de conceitos ligados ao pano de fundo da época sempre mais ligado à ideologia religiosa. Esses traços são encontrados em todos os escritos de Nathaniel Hawthorne. Mas, ao que nos parece, Hawthorne os expõe apenas como alguém que era observador e estudioso do regime de seus antepassados. Segundo High (1986), os textos de Hawthorne geralmente apresentam um forte sentimento do passado puritano da Nova Inglaterra do século XVII. Segundo a nota introdutória escrita por David Levin, professor de inglês da Universidade de Stanford, em edição do The Blithdale Romance [A novela Blithdale] de 1960, Hawthorne concentrou mais atenção nos efeitos do pecado do que em suas causas (HAWTHORNE, 1960). É importante dizer que dentro do puritanismo – como pudemos perceber –, são o conservadorismo e o dogmatismo aspectos que se transformaram em rifão e objeto de desprezo nos tempos modernos. É fato que ao alcançarmos a época de Benjamin Franklin e de Thomas Jefferson, ou de Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Walt Whitman, por exemplo, o próprio nome ‗puritanismo‘ passa a ser considerado como um termo que chega traduzir-se em opróbrio e em abuso. É somente com a chegada da independência em 1776 que aquele povo se tornará, num sentido mais preciso, cidadão de uma nação cuja soberania começará a ser internacionalmente reconhecida. 2.1 NATHANIEL HAWTHORNE: RESPLENDOR CREPUSCULAR NA LITERATURA AMERICANA DO SÉCULO XVII Em suas repercussões humanas e morais encontramo-lo melhor preservado – o puritanismo –, talvez, nos escritos daquele homem extraordinário que viveu na Nova Inglaterra duzentos anos mais tarde e que era, a despeito de sua emancipação espiritual e faculdades imaginativas, herdeiro direto da consciência puritana de seus antepassados da colônia de Massachusetts – Nathaniel Hawthorne, no século XIX, fora denominado por Lewis Munford ‗o resplendor crepuscular do século dezessete. Com ele sobreveio o ocaso do Puritanismo como força espiritual‘ (ZABEL, 1947, p.57. Grifo nosso). 21 Nathaniel Hawthorne carrega consigo o estigma, embotado pelos estudiosos da literatura norte-americana citados nesse trabalho, de o último grande laureado e crítico do puritanismo. Essa interpretação se dá devido os seus contos e os seus romances exibirem toda a capacidade perceptiva de seu talento em relação à sociedade americana dos primeiros séculos. Neles, percebe-se claramente a Salem dos puritanos com um completo organismo de lei religiosa cuja própria organização social e jurídica é transformada em um cosmos moral em miniatura, dentro de cujos rígidos limites o drama do protesto, da rebelião, do conflito e da personalidade humana lança suas reivindicações. Ao atingir a literatura norte-americana, pela primeira vez o pleno reflorescimento entre os anos de 1840 e 1860 – o chamado ―Golden Day‖ –, o posto de chefe espiritual e moral foi logo assumido por Ralph Waldo Emerson. Naquela época Emerson desempenhou um papel de ‗Profeta‘ ou ‗Messias‘. Segundo Zabel (1947), Emerson deu aos seus compatriotas uma carta de liberdade e de iniciativa, numa fase nova da história do mundo, inovando o espírito da natureza como guia e emancipador da humanidade democrática8. Queria Emerson que os americanos criassem um mundo diferente, no qual eles pudessem, qual Adão no paraíso, dar novos nomes a todos os animais do campo e do céu. Segundo ele, ele deveria convidar os homens mergulhados no ―Tempo‖ a se recobrarem e saírem do tempo, saboreando seu imortal ar nativo. Emerson criou um herói para os seus contemporâneos: não um homem de ação, conquistas ou trabalho, mas um ‗homem pensante‘, o homem liberto a quem a capacidade de pensar permitiu unir-se a uma divindade superior do universo, a ―suprema inteligência‖, com toda a verdade. Para servir a seus semelhantes ofereceu o evangelho do ―confia em ti mesmo‖, uma espécie de ética prática da realização pessoal e da independência espiritual9. Dentre os primeiros a assimilarem a política de Emerson, destacamos Henry David Thoreau. Não foi apenas em seus dois anos de comunhão solitária com a natureza na floresta de Walden, em Massachusetts, que Thoreau deu exemplo de sua crença na unidade do homem com a natureza. Ele exemplificou-a no caráter, na conduta e no pensamento de toda a sua 8 ‗Por que não gozamos nós de uma relação própria com o universo?‘ perguntou ele. ‗Por que não temos uma poesia e uma filosofia de observação própria e não de tradição? [...] Por que andamos as apalpadelas com as cinzas do passado? Há novas terras, novos homens, novos pensamentos. Busquemos nossas próprias obras, leis e culto‘ (ZABEL, 1947, p.149). 9 ‗A sociedade, por toda a parte, conspira contra a personalidade de cada um de seus membros. Aquele que quiser ser homem, deverá ser um não-conformista‘ (JAMES, 1966). 22 vida10. Ele foi considerado um herói da natureza, transformado no ideal emersoniano de completa integridade pessoal. Era contra a lei moral do puritanismo que se posicionavam Emerson e Thoreau. Leis que se achavam firmemente plantadas na consciência do povo norteamericano, desde a chegada dos europeus. Mas, nem Emerson nem Thoreau foram artistas fundamentalmente criadores. Eles foram profetas de um ideal. Emerson ocupou-se de uma visão e de uma revelação. Thoreau viveu dentro do universo de sua necessidade pessoal, uma espécie de santidade, de integridade como indivíduo. ―Cada um deles baseou suas ideias em premissas de uma inspiração arbitrária, num mandato de idealismo pessoal‖ (ZABEL, 1947, p.151). Mas, tanto as sociedades quanto os indivíduos exibem em seu desenvolvimento duas tendências divergentes, segundo Zabel. É possível dizer que as sociedades crescem para cima, sob o impulso da esperança, da aspiração, do desejo e da expressão. No entanto, podem crescer para baixo também, movidas pelo princípio da gravidade, da estabilidade, da unidade orgânica e da solidariedade. Buscam a independência de sua personalidade e expressão na liberdade da atmosfera superior; mas podem encontrar também seus alicerces no solo e na rocha do tempo, da história e da experiência. É certo que quando o ‗Golden Day‘ da maturidade espiritual sobreveio na cultura norte-americana, encontrou seus profetas e visionários em Emerson e Thoreau. Mas, encontrou também sua consciência moral, seus expoentes da realidade complexa legada ao homem norte-americano pela história, a plena complexidade de sua existência moral e espiritual. Nesse período, segundo nos afirma Zabel, o princípio da visão contrabalançava o principio da consciência. E foi este último que encontrou expressão na obra de grandes artistas da imaginação, à época de Emerson e Thoreau: Nathaniel Hawthorne, Herman Melville e, posteriormente, Emily Dickinson e Henry James. Neles a literatura norteamericana atingiu pela primeira vez completa maioridade e triunfo na arte da ficção. Saltamos, pela substância específica de suas obras como arte, os gênios visionários de Emerson e Thoreau, para buscarmos a verdade, não do ponto de vista de idealismos – como eles pensavam –, mas, de um realismo, que cada vez mais tende a se afastar, em sua prática, dos ensinamentos e da herança da formação puritana. Emerson não conseguia ler os livros de Hawthorne; nem Hawthorne conseguia ler os livros de Emerson. Emerson era idealista e otimista, amante de coisas e teorias 10 ―À proporção que um homem simplifica a sua vida, as leis do universo parecerão menos complexas, a solidão não será solidão, nem a pobreza, pobreza, nem a fraqueza, fraqueza. Se constituístes castelos no ar, vosso trabalho não terá sido em vão; que eles estão onde deviam estar. Agora, ponde alicerces sob eles‖ (ZABEL, 147, 150). 23 novas. Hawthorne o considerava o ‗místico‘, estendendo as mãos duma região nebulosa, buscando em vão, alguma coisa real. Emerson é um grande pesquisador de fatos; mas parece que estes se desfazem e se tornam insubstanciais quando os quer prender; Emerson é o ‗eterno repudiador‘ de tudo o quanto existe e investigador de algo que nem ele mesmo conhece. Para Emerson, a Noite ou o Dia, o Amor ou o Crime conduzem todas as almas ao bem. [...] Para Hawthorne, sob o mais puro caráter e a mais inatacável reputação podem discernir-se pecados ocultos ou, pelo menos, impulsos secretos para o Mal11. Os dois, vivendo nas mesmas décadas da história norte-americana, divergiam, seguindo caminhos opostos. Nessa divergência podemos apreciar as correntes em que se divide o povo norte-americano. São filhos da esperança e da culpa; da liberdade e da consciência, do Bem e do Mal. Como todos os povos, herdaram não só o futuro, mas também o passado. Quando Nathaniel Hawthorne nasceu, Salem de muito havia perdido seu antigo rigor como baluarte da ortodoxia puritana. Ela era a rica e próspera capital do comércio marítimo com a Índia e a China. Ela detinha o ruidoso porto de mar onde o comércio da Nova Inglaterra armazenava os fartos despojos de terras e mares estrangeiros. Hawthorne não parece ter herdado riqueza da ulterior prosperidade marítima de Salem. O seu olhar estava mais voltado para a herança espiritual de seus ancestrais puritanos. Salem continuava a ser, para ele, a velha fortaleza do calvinismo colonial. Tendo tentado viver com Emerson e Thoreau na famosa Brook Farm 12 – como um transcendentalista – Hawthorne não conseguiu êxito. Era realista demais para viver em um mundo que representava, segundo ele, uma abstração impossível. Ainda que em seu caráter fechado, ele não podia conceber-se ignorando as condições fundamentais da existência humana presentes no cotidiano das pessoas. O núcleo central da realização de Hawthorne pode ser considerado a tentativa de fundir forma e substância, isto é, o contexto histórico no qual ele estava inserido e a situação dramática na qual as pessoas se encontravam, como relatado em suas obras. Ele trata da existência humana e de seus dramas. Seus temas nos convidam a pensar a vida e no modo como ela nos foi herdada. É a realidade que ele busca, e não as circunstâncias, ele expõe o 11 Austin Warren, comentando segundo ZABEL (1947, p.152), a respeito do realismo exposto nas obras de Hawthorne. 12 Em 1841 ele se reuniu, por um breve período, à Comunidade Brook Farm. Essa comunidade fundada por Emerson e Thoreau também era conhecida como a cidade comunal dos filósofos de Concord. Eles criam que um estado ideal podia ser alcançado pelo homem, em sua tentativa de atingir a divindade de sua personalidade. Era uma modalidade de idealismo, cujas principais convicções se baseavam na supremacia da intuição e da consciência (HAWTHORNE, 1960). Para Otto Maria Carpeaux (1987), era uma colônia comunitária de anarquistas pacíficos e poetas sonhadores, quase messianistas que andavam profetizando um futuro utópico para a América. Eles desprezavam as autoridades do puritanismo e zombavam do dogma da predestinação, chegando a negar a verdadeira existência do Mal no mundo. 24 caráter e o destino de suas personagens numa tentativa de descobrir o que há de mais escondido no coração do homem e dos moradores de região de Salem. Segundo Henry James (1966), Hawthorne não era um moralista, nem simplesmente um poeta. Os moralistas são, em certos sentidos, mais pesados, mais densos e mais ricos; os poetas são mais puramente inconsequentes e irresponsáveis. Mas, a escrita de Hawthorne alia, em elevado grau, a espontaneidade da imaginação à constante preocupação com os problemas morais. A consciência do homem era seu tema, porém o encarava à luz de uma fantasia criadora a que acrescentava, de sua própria substância, um interesse. Hawthorne revelou um aspecto muito diferente do espírito norte-americano encarnado em Ralph Waldo Emerson: ele nos apresentou ―não às faculdades proféticas e visionárias do espírito americano, mas a seus nervos, sua sensibilidade e sua história e ao destino, seus escrúpulos, e seu inflexível realismo em face da lei‖ (ZABEL, 1947, p.167). O mundo de suas histórias é bem pequeno. É o mundo do modo de pensar, da mentalidade, da Nova Inglaterra. Para Zabel, Hawthorne condensou de tal forma sua compreensão daquela mentalidade, que dela fez um microcosmo dos elementos universais da natureza do homem, que estão além do tempo e do espaço. Ele alcançou, em suas obras, aspectos do localismo e das singularidades da Nova Inglaterra que se refletem no universalismo de toda sociedade. De suas obras podemos tirar vários exemplos de uma dialética de localismos e universalismos, como em seu conto Young Goodman Brown (1835) [O Jovem Amo Brown]. Nela ele deixa claro um questionamento sobre se devemos aceitar a aparência em primeiro lugar ou não. Essa preocupação parecia dominar alguns moradores da Nova Inglaterra puritana. Ele traz esse registro e quer de alguma maneira chamar atenção para isso. Como autor um pouco mais amadurecido, podemos ver em o The minister´s black veil (1836) [O Véu Negro do Ministro] que ele deixa claro, bem no centro de sua trama, que se deve olhar por trás do aparente para se encontrar a verdade e descobrir como as pessoas se vestem de uma falsa moral. Quando Hawthorne finalmente admite a teoria de que o exterior geralmente esconde o desejo secreto do coração humano em vez de revelá-lo, ele chega ao mesmo ponto de vista de Herman Melville (CUNLIFE, 1986). Melville também escreve suas mais profundas histórias a partir dessa ótica. 25 Diferentemente dos transcendentalistas13, Hawthorne posiciona-se como um leitor da realidade. O seu ponto de vista é simplesmente baseado em comportamentos aparentes de pessoas a quem, as personagens de suas obras, podem servir como espelho. Ele demonstra, dessa maneira, o moralismo decadente da sociedade pelo caminho da mera observação, do descompasso entre o interior e o exterior de cada uma de suas criações. Ao lermos Rapaccini´s Daughter (1844) [A Filha de Rapaccini], mais um de seus contos, percebemos que há nele uma ilustração que contrasta a aparência e a realidade como também uma advertência da trágica potencialidade de tudo o que pode acontecer contra a natureza. Nesse texto, é fácil perceber ―a representação ambígua dos motivos do ciumento Baglioni que tão simplesmente expõe suas boas intenções enquanto que, ao mesmo tempo, oferece um pequeno vaso de prata que contem destruição‖ (GUERIN; LABOR, 1966, p.110). Nessa mesma direção, ao escrever A Letra Escarlate, percebe-se claramente que Hawthorne não estava querendo escrever algo convencional. Ele não estava interessado em um triângulo amoroso que culminasse com a fuga do casal de amantes para um paraíso onde eles pudessem viver felizes para sempre. A preocupação de Hawthorne é a respeito daquilo que pode acontecer quando um pecado ou falta secreta começa a roer por dentro de uma personagem – como é o caso do hipócrita reverendo Dimmesdale – ou do desejo de vingança do outro – do rancoroso Chillingworth. No caso de Ester, a personagem central da trama e vértice no qual se encontram esses dois outros, o segredo de seu pecado vai se diluindo e desaparece dentro de um processo natural. Ele denuncia a falsa moral de uma sociedade envolta em hipocrisia, mas que não lhes apresenta chance de conserto ou de, com ela, reconciliar-se. O autor utiliza um método intelectualmente realístico e psicológico em que a conclusão que pode ser tirada de sua narrativa é que o segredo pode ser mais destrutivo do que o próprio pecado. Nathaniel Hawthorne traz em sua obra registros de um moralismo decadente – de um falso moralismo norte-americano – até o período em que viveu. Tendo nascido dentro do impulso romântico do século XIX e desenvolvido os seus textos a partir da tradição gótica do modo de contar histórias, ele criou, assim, o seu próprio estilo literário. Quando adentramos no corpus de sua obra, encontramos o sobrenatural, presente em boa parte de suas histórias. Histórias cujos enredos se caracterizam por habitações assombradas e misteriosas, por personagens com traços diabólicos e por muito suspense. 13 Segundo Henry James citado em Trilling (1965), ele nos afirma que havia realismo demais em Hawthorne para permitir que ele tivesse fé nos reformadores transcendentalistas. Hawthorne era realista demais para transformar as maneiras em credos. 26 É possível interpretar sua obra na medida em que o tempo passa, com uma forte tendência em abandonar suas experiências com alegorias e cultivar apenas o método de instrução moral que deu coerência e certa profundidade aos seus escritos. Hawthorne não era uma figura dogmática, nem um moralista convencional, ele era apenas um grande observador social daquela época, da falsa moral impregnada na vida de seus compatriotas de Massachusetts. Sobre esse assunto nos conta Cunlife: os elementos moralizantes em suas histórias parecem ter sido introduzidos tanto para o propósito de criar um efeito literário quanto para expressar um puritanismo latente que já estava impregnado em seu imaginário. [...] Ele não tinha qualquer simpatia pelo dogmatismo de seus pais puritanos. Sua aproximação aos problemas morais era oriunda de uma razão indutiva baseada apenas em suas observações e as conclusões que ele lentamente tirava eram, algumas vezes, radicais (1986, pp.108-109). Para assentarmos ainda mais o nosso trabalho, é preciso dizer que o enredo de A Letra Escarlate descreve a história de um amor proibido que se passa em Salem, cidade de Massachusetts, no final do século XVII. Uma relação amorosa entre um reverendo cristão puritano de nome Artur Dimmesdale e uma senhora recentemente casada, chamada de Ester Prynne, cujo marido estava em viagem à Europa, é o fio que amarra toda a trama. A falta cometida por esses dois afronta os dogmas defendidos na região dominada por valores morais rígidos e o tratamento que eles recebem é punitivo e estigmatizante. Durante todo o texto, essas principais personagens nos são expostas e os seus comportamentos serão objetos de nossa reflexão. Ester, a mulher acometida de adultério, terá que usar uma marca de seu pecado no corpo, pelo resto de sua vida enquanto que o reverendo Artur Dimmesdale, o outro ‗adúltero‘, a terá escondida dentro de si durante a maior parte do romance, até vir a se revelar. A repressão que eles passam a sofrer pelas leis da sociedade justificará a tristeza, a fragilidade humana e a falsa moral em que se encontra aquele povo, uma vez que estão embebidos no seio social de uma cidade marcada pela dura doutrina dos cânones puritanos. É importante registrar que, ao final do romance, sabemos que o reverendo Dimmesdale, após ter alcançado dias de glória e de triunfo na Nova Inglaterra – como nenhum outro colega de profissão – morrerá, sete anos depois do fatídico dia em que ‗conheceu14‘ Ester. Chillingworth, o marido traído, sucumbirá à sua própria sorte, envolvido em seu anseio por vingança. Ester continuará vivendo na Nova Inglaterra e Pérola, sua filha, começará uma nova vida na Europa. 14 Teve relações com ela e concebeu Pérola, sua filha. 27 Se Hawthorne traçou um caminho dentro do puritanismo em suas obras, ao explorar o fato de que as pessoas nem sempre são tão boas quanto parecem ser, ele acabou traçando também um caminho inverso, através de uma atmosfera antipuritana, pela forma com que ele chegou às suas conclusões – ele claramente denuncia a forma desumana de os puritanos lidarem com as questões sociais. Os seus três principais pecadores representam o secreto, o contrito e o imperdoável, dentro da categoria puritana de ver o pecador, por exemplo. A diferença entre eles ilustra exatamente o conflito entre a cabeça e o coração, a razão e a natureza, que também está presente na maioria dos romances de sua época. Os três pecadores são isolados dos outros, mas cada um à sua maneira atravessa itinerários específicos diante das normas encontradas na sociedade de Salem que não lhes oferece saídas viáveis para um retorno tranquilo à normalidade da vida. Escritores como Herman Melville e Allan Poe, contemporâneos de Nathaniel Hawthorne, dialogam entre si nessa perspectiva, uma vez que compartilham diretamente com a noção da falsa moral presente na literatura americana desse mesmo período. Portanto, é sob esse pano de fundo, extremamente dogmático, cheio de convenções e de uma forte ideologia religiosa que o autor de A Letra Escarlate escreve. 28 3 O ROMANCE COMO A GRANDE FORMA NARRATIVA No romance a intenção, a ética, é visível na configuração de cada detalhe e constitui, portanto, em seu conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria composição literária. O romance, em contraposição à existência em repouso dos demais gêneros, aparece como algo em devir, como um processo. (LUKÁCS, 2000, p.72) De acordo com Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1997), na evolução das formas literárias nos três últimos séculos, aparece como fenômeno de grande magnitude o desenvolvimento e a crescente importância do romance. Ampliando o universo de sua temática, interagindo e interessando-se pelos conflitos sociais, pela política e pela psicologia, ensaiando novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance transformou-se na mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. De uma mera narrativa de entretenimento o romance verte-se em espaço para estudo da alma humana e de suas relações sociais, para reflexão filosófica e até para testemunho de fatos. Segundo Silva, até mesmo o romancista, de autor pouco considerado na república das letras, passa, pouco a pouco, a ser um escritor prestigiado ao extremo, dispondo de um público vastíssimo e exercendo influência nos seus leitores. A origem da palavra ―romance‖ remonta a um significado que designa determinadas composições redigidas em língua vulgar e não na língua latina, própria dos clérigos (SILVA, 1997). Apesar de suas flutuações semânticas, a palavra ‗romance‘ passou a denominar, sobretudo, composições literárias de cunho narrativo. Na idade antiga, essas composições aconteceram primeiramente em verso – Eneida, de Virgílio, a Ilíada e a Odisseia, de Homero, foram escritas em forma de grandes poemas, próprios para serem recitados e lidos – e a sua forma em prosa é um pouco mais tardia. Em geral, ―os romances apresentavam as aventuras de uma personagem, uma criatura de ficção, através do vário e misterioso mundo, apresentando um caráter descritivo-narrativo‖ (SILVA, 1997, p.673). Na idade Média apareceram nas literaturas europeias extensas composições romanescas, espelhando o mundo cortês e idealisticamente guerreiro, cuja intriga acontecia, em geral, às voltas de dois temas fundamentais: o amor e a aventura. Eram os romances de cavalaria15 e sentimental16. Um modelo de narrativa, presente também na Idade Média, é a 15 Os heróis dos romances de cavalaria eram de grande popularidade na Idade Média. Dotados de poderes excepcionais, capazes de vencer monstros, de transpor paisagens inacessíveis, de enfrentar encantamentos e de confundir ou convencer qualquer adversário, em nome da ‗verdade‘ e da ‗justiça‘, esses heróis serviram de modelos para muitas gerações (GIGANTES DA LITERATURA UNIVERSAL, 1972). 16 Esse tipo de romance pode apresentar um cunho mais marcadamente erótico, ou mais acentuadamente sentimental, conforme a sua intriga decorra em um ambiente burguês ou num ambiente aristocrático, mas 29 novela. A novela17 é uma narrativa curta, sem estrutura complicada e avessa a longas descrições. Nela a sensação de um acontecimento ou incidente nos parece mais importante do que as suas personagens. Outra forma de narrativa bastante interessante acontece no que se pode chamar de romance pastoril, no qual a prosa se mescla com o verso, e sua escrita é bastante culta. Nesse romance os pastores se movimentam numa natureza que é idealizada e aparecem apenas nominalmente ligados à vida do campo, revelando-se como personagens de requintada sensibilidade e cultura. Temas como o amor, analisado platonicamente, e a hipocrisia da vida social, historicamente concreta – ante a qual a vida pastoril se ergue como um sonho de harmonia e tranquilidade –, são recorrentes nesse tipo de narrativa. Mas é a partir do século XVII que o romance – da forma como existe nos dias hoje – conhece uma proliferação extraordinária. Nesse período ele ―se caracteriza pela imaginação exuberante, pela abundância de situações e aventuras excepcionais e inverossímeis‖ (SILVA, 1997, p.676). Envolto em enredos de duelos, naufrágios – aparições de monstros e gigantes – e aventuras sentimentais, suas narrativas são longas e complicadas. É o que se pode chamar de romance barroco. Nesse tempo, o público consumia avidamente esta literatura romanesca e a tal interesse pelas narrativas de aventura heróico-galantes explica a gigantesca extensão de alguns romances desta época – em 1637, o romance Polexandre de Gomberville vendia-se em cinco grossos volumes com o total de 4.409 páginas – bem como o espetacular êxito editorial de certo romances – Le gare dei disperati, de Marino, alcançou dez edições em breves anos! (SILVA, 1997, p.676). Na Espanha, Dom Quixote de La Mancha (1605), do espanhol Cervantes, ocupou sem reservas lugar de grande destaque entre as obras romanescas desse período, sobretudo pela crítica de sua narrativa em relação aos romances de cavalaria. Ele representa a sátira do mundo romanesco, quimérico, caracterizado pela época barroca. O romance picaresco, cuja origem remonta à Vida de Lazarillo de Tormes (1554), de autor desconhecido, abre o caminho para uma aproximação mais realista do romance com a sociedade e com os costumes do mundo contemporâneo. O pícaro, espécie de anti-herói desse tipo de romance, pela sua natureza e origem, pelo seu comportamento e através de sua rebeldia, se distancia dos heróis caracteriza-se sempre por uma sutil análise do sentimento amoroso. Ele difere do romance de cavalaria pois aquele está muito centrado em aventuras. Geralmente o romance sentimental apresenta um final trágico, diferentemente do romance de cavalaria (SILVA, 1997). 17 O grande modelo desse tipo de narrativa foi o Decameron, de Boccaccio, no século XIV, que influenciou no destino do próprio romance. 30 épicos e dos mitos de narrativas anteriores, anunciando assim, uma nova época e uma nova mentalidade, segundo os valores do mundo moderno. Através de sua rebeldia, do seu conflito radical com a sociedade, o pícaro afirma-se como um indivíduo que tem consciência da legitimidade de sua oposição ao mundo e que ousa considerar, em desafio aos cânones dominantes, a sua vida mesquinha e reles como digna de ser narrada (SILVA, 1997, p.677). O romance moderno será, portanto, oriundo desse perfil de narrativa, que dissolve completamente o ‗ópio romanesco‘, segundo Silva (1997, p.677). Ele tenderá a ser uma observação, uma confissão ou uma análise do homem e suas relações na sociedade. O romance não terá regras ou caminhos a obedecer nem modelos a imitar18. Assim, ―as poéticas quinhentistas e seiscentistas, fundadas em Aristóteles e em Horácio, não lhe concedem a reverenciosa atenção prestada à tragédia, à epopeia, ou mesmo à comédia e aos gêneros líricos menores‖ (SILVA, 1997, p.678). Logo, quando o sistema de valores da estética clássica começa a perder a homogeneidade e sua rigidez; quando, no século XVIII um novo público leitor começa a afirmar-se com novos gostos artísticos e novas exigências espirituais, exigindo das obras narrativas mais verossimilhança e mais realismo, o romance, antes um gênero literário de ascendência obscura e desprezado por teóricos, conhece uma metamorfose e um desenvolvimento profundos. Segundo Silva (1997), com o romantismo a narrativa romanesca afirma-se definitivamente como uma grande forma literária, apta a exprimir os multiformes aspectos do homem no mundo: quer no romance psicológico – confissão e análise de almas –, quer no romance histórico – na ressurreição e interpretação de épocas pretéritas –, quer no romance poético e simbólico, quer como romance de análise e crítica da realidade social contemporânea, no caso de Balzac e Dickens. Para o crítico Ian Watt (1996), o romance sempre trata de algo relativo ao ser humano. Conforme o estudioso, o grande berço do romance é o próprio iluminismo, a idade da razão, exatamente no século XVIII. O realismo19 é o que interessa ao mundo e não mais a fantasia. O que se quer então é mergulhar no cotidiano da vida, nos detalhes das pessoas comuns, nas particularidades e nas singularidades dos heróis modernos, dos indivíduos. A ascensão do 18 Como por exemplo, nos romances medieval, renascentista e barroco, que dirigem-se fundamentalmente a um público feminino, ao qual oferecem motivos de entretenimento e evasão (SILVA, 1997, 678). 19 Do mesmo modo, para Lukács (2011), o realismo não corresponde a uma escola literária, mas a uma forma literária que constitui o homem em sua totalidade, tanto em sua interioridade como em suas relações sóciohistóricas. 31 romance é, portanto, a ascensão do individualismo. As narrativas não tratam mais do rei, da família e da igreja, é o individualismo do sujeito que está exposto, do ser humano comum, imerso no cotidiano de sua existência. Os enredos da epopeia clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na História ou na fábula e avaliavam-se os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de decoro derivada dos modelos aceitos do gênero. O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única e, portanto, nova (WATT, 1996, p.15). De acordo com Watt (1996), na ausência de convenções formais no romance, dado o foco no individual, começa-se a substituir a tradição coletiva pela experiência pessoal como árbitro decisivo da realidade. Essa transição constituiu uma parte importante no panorama cultural em que surgiu o romance. Quando começaram a escrever ficção, autores como Daniel Defoe e Samuel Richardson não deram grande atenção à teoria crítica predominante de sua época, a qual ainda se inclinava para os enredos tradicionais; ao contrário, eles deixaram a narrativa fluir espontaneamente a partir de sua própria concepção de uma conduta plausível das personagens. Inauguraram uma nova tendência na ficção: a total subordinação do enredo ao modelo da memória autobiográfica, afirmando a primazia da experiência individual no romance da mesma forma que o cogito ergo sum de Descartes20 na filosofia (WATT, 1996). De acordo com Bakhtin (1998), os gêneros – com exceção do romance –, são como autênticos moldes rígidos para a fusão da prática artística, e podem ser conhecidos por nós em seus aspectos acabados. A epopeia, por exemplo, encontra-se não somente como algo criado há muito tempo, mas também como um gênero já profundamente envelhecido. Segundo a compreensão de Bakhtin, cada gênero tem seu cânone que age, em literatura, com uma força histórica real. Mas, em relação ao romance, ele comenta: o romance não é simplesmente mais um gênero ao lado dos outros. Trata-se do único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos. Ele é o único nascido e alimentado pela era moderna da 20 ―A grandeza de Descartes reside, sobretudo, no método, na firme determinação de não aceitar nada passivamente, e seu Discurso sobre o método (1637) e suas Meditações contribuíram muito para a concepção moderna da busca da verdade como uma questão inteiramente individual, logicamente independente da tradição do pensamento e que tem maior probabilidade de êxito rompendo com essa tradição. O romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora‖ (WATT, 1990, p.14). Rosenfeld (1996), também comenta sobre a influência de Descartes no mundo das letras quando ele supõe que única certeza inabalável é a do ‗eu‘ existente, ente pelo qual o mundo pode ser refeito e compreendido – reconstruído. 32 história mundial e, por isso, profundamente aparentado a ela, enquanto que os grandes gêneros são recebidos, por ela, como um legado, dentro de uma forma pronta, e só fazem se adaptar às suas novas condições de existências. Em comparação a eles o romance apresenta-se como uma entidade de outra natureza (1998, p.398). Ele continua, Em certas épocas – no período clássico dos gregos, no século de ouro da literatura romana, na época do classicismo – na grande literatura (ou seja, na literatura dos grupos sociais preponderantes), todos os gêneros, em medida significativa, completavam-se uns aos outros de modo harmonioso, e toda a literatura, enquanto totalidade de gêneros, se apresentava em larga medida como uma entidade orgânica de ordem superior. Porém, é característico: o romance não entrava nunca nesta entidade, ele não participava da harmonia dos gêneros. Naquela época o romance levava uma vida não oficial, fora do limiar da grande literatura (1998, p.398). Como uma unidade de sentido ―o romance apresenta-se direta e conscientemente como gênero crítico e autocrítico, como algo que deve renovar os próprios elementos da literaturidade e da poeticidade dominantes‖ (WATT, 1996, p.403). Neles, os temas são renovados e exploram-se novos domínios do indivíduo e da sociedade, modificam-se profundamente as técnicas de narrar, de construir a intriga e de apresentar as personagens. Segundo alguns estudiosos, o romance permanece a forma literária mais importante do nosso tempo, pelas possibilidades expressivas que oferece ao autor e pela difusão e influência que alcança entre o público. Bakhtin insiste: ―a ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e ainda não podemos prever todas as suas possibilidades plásticas‖ (1996, p.397). Há um potencial inerente ao romance: segundo Bakhtin, o romance terá uma função importantíssima como espaço de integração de gêneros e de formas de escrever. Para ele, ―o romance parodia os outros gêneros [...] integra outros em sua construção particular, reinterpretando-lhes e dando-lhes outro tom‖ (1996, p.398). Nesse sentido, ele antecipa a futura evolução da literatura, pois ele ainda está por se constituir. Dessa forma, segundo Silva: o romance assimilara sincreticamente diversos gêneros literários, desde o ensaio e as memórias até à crônica de viagens; incorporara múltiplos registros literários, revelando-se apto quer para a representação da vida quotidiana, quer para a criação de uma atmosfera poética, quer para a análise de uma ideologia (1997, p.682). Podemos dizer que o romance é: o único gênero em formação, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria 33 realidade. Somente o que evolui pode compreender a evolução. O romance [...] expressa as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo é semelhante a ele [...] O romance antecipou muito, e ainda antecipa, a futura evolução de toda literatura (BAKHTIN, 1998, p.400). O processo de evolução do romance não está concluído, continua o teórico russo. Nossa época se caracteriza pela sua complexidade e pela expansão incomum de nosso mundo, pelo extraordinário crescimento das exigências e pelo espírito crítico. Esses traços determinam e acompanham igualmente, para Bakhtin, aspectos do desenvolvimento do romance. Assegurada a importância e o papel da forma romanesca para a literatura, adentremos nas condições que permitiram que a matéria de extração histórica também ganhasse lugar no romance de maneira destacada, especialmente no início do século XIX. Antes, porém, demarcaremos os limites de atuação do poeta e do historiador os quais consideramos importantes para a compreensão da natureza do romance considerado ‗histórico‘. 3.1 ENTRE O POETA E O HISTORIADOR - Assim é – redarguiu Sansão -, mas uma coisa é escrever como poeta e outra como historiador; o poeta pode contar ou cantar as coisas, não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deviam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade mínima coisa (CERVANTES, 1960, p.537). Foi Aristóteles, no capítulo IX de sua Poética, o primeiro a demarcar limites entre o historiador e o poeta. Aristóteles afirmou que não é em metrificar ou não que difere o poeta do historiador. Para ele a obra de Heródoto poderia ser metrificada e ainda assim seria história. Aristóteles preferiu enfatizar o princípio da verossimilhança: a diferença está em que um – o historiador – narra acontecimentos e o outro – o poeta – narra fatos que poderiam acontecer. A compreensão do teórico é favorável ao poeta, que assim se aproxima do filósofo, por tratar do universal, enquanto o historiador dele se afasta, por limitar-se ao particular. Desse modo a poesia encerra mais filosofia e elevação do que história porque a filosofia encerra verdades gerais e a história relata fatos particulares. Essa valorização do poeta frente ao historiador, tendo como ponto terminal de excelência o filósofo, constitui clara refutação da tese platônica de não ser o poeta mais que um imitador de simulacros, que por isso mesmo 34 está muito distante da verdade. Aristóteles deixa claro que há, por parte do poeta, uma intencionalidade seletiva. Homero, por exemplo, quando narrou a Odisseia, não narrou tudo quanto aconteceu ao herói, mas compôs a Odisseia em torno de uma ação única, como a entendemos, e assim o fez também com a Ilíada. A distinção entre o poeta e o historiador tem sido retomada ao longo do tempo por inúmeros estudiosos e teóricos da literatura. Segundo os irmãos Edmond e Jules Goncourt (1972), enfatizando a função documental, realista do romance, ele seria equivalente à da história21, e afirmaram que: o romance depois de Balzac não tem mais nada em comum com aquilo que nossos pais entendiam como tal. O romance atual se faz com documentos narrados, ou extraídos da natureza, como a história se faz com documentos escritos. Historiadores são narradores do passado; os romancistas, narradores do presente (p.552). Segundo essa interpretação, a história é um romance que foi e o romance é a história que poderia ter sido. Nesse sentido o historiador é preso aos documentos escritos e o romancista aos documentos narrados ou extraídos da natureza. Os irmãos Goncourt enfatizavam o contraste ‗passado versus presente‘, o que, de algum modo, parecia inviabilizar a fatura do romance histórico, já que este, por definição, estaria interessado no relato de acontecimentos pretéritos, campo reservado ao historiador. Para Balzac, a história é, ou deveria ser, o que foi, ao passo que o romance deve ser (para) o mundo melhor. Quando compõe quadros da sociedade francesa nos quais as ações irrepreensíveis, as faltas, os crimes, dos mais leves aos mais graves, nele se encontra sempre o castigo divino ou humano. Daí lhe parecer que ―a história não tem por lei, como o romance, propender para o belo ideal‖ (BALZAC, 1955, p.18). É preciso registrar que o historiador, necessariamente, nem sempre consegue a exata reconstituição do que foi. Balzac queria distinguir-se claramente dos historiadores, não só na atenção dedicada a um aspecto da vida por eles negligenciado: a história dos costumes. Podese perceber isso, claramente no prefácio Comédia Humana, de 1842. Ele afirma: ―atribuo aos fatos constantes, cotidianos, secretos ou patentes, aos atos da vida individual, às suas causas e aos seus princípios, a mesma importância que até agora os historiadores atribuíram aos acontecimentos da vida pública das nações‖ (BALZAC, 1955, p.19). Balzac queria se destacar dentre historiadores, especialmente com a prerrogativa que assumia que era a de ‗corrigir‘ a própria história. 21 Os irmãos Goncourt concebiam o romance como uma das formas de história. Para eles ‗os romances forneceriam verdades que contribuiriam com a história moral do século XIX‘. 1972, p.552. 35 Para Sandra Guardini Vasconcelos (2002), antes de Balzac, ainda no século XVIII, romancistas e teóricos já apontavam a superioridade moral do romance em contraposição ao valor edificante da história. Segundo ela, ―o romancista pode até cometer erros quanto aos detalhes factuais, mas pinta as pessoas como verdadeiramente são, ao passo que os historiadores, obrigados a aderir aos fatos, acabam discordando em matéria de interpretação, o que torna suas obras ficção‖ (p.93). Segundo Luiz da Costa Lima (1984), por sua forma narrativa, pelos conflitos personalizados de suas personagens, o romance está junto, não só da prosa diária, quanto da forma narrativa privilegiada desde fins do século XVIII: a forma da História. Por isso, ainda quando não pudesse disfarçar seu germe da fábula, o romance procura esquecer sua mancha originária, fazendo-se semelhante à história (p.111). De fato, Baculard d´Arnaud, em seu discurso sobre o romance de 1745, a história era mais romanesca que o realista moderno, pois tratava de acontecimentos incomuns e não tinha, como este, utilidade moral. Evidente que a palavra romanesca é empregada para apontar o caráter espantoso dos acontecimentos, por oposição à natureza trivial dos fatos relatados no romance realista moderno. Na citação que abre este capítulo podemos perceber a sutileza na distinção gradual entre ‗cantar‘ e ‗contar‘, ambos atribuições possíveis do poeta, que dispõe de ampla liberdade no trato da matéria sobre a qual discursa. Ele pode escolher entre manter-se ligado à verdade dos fatos – contar – ou afastar-se dela quando lhe convém – cantar –, somam-se também a essa dicotomia os aspectos de ‗como foram‘ e ‗como deveriam ter sido‘. Quando continuamos a ler a passagem acima não é difícil ver que ‗Dom Quixote‘ é tolerante com a omissão de alguns fatos verdadeiros de sua história redundem em menosprezo do protagonista – no caso ele mesmo – desde que não mude nem altere o fundo verdadeiro da história. No mesmo trecho, encontramos ‗Sancho‘ representando a vertente defensora da rigorosa fidelidade aos fatos, independentemente de tratar-se de um poeta ou de um historiador. O Bacharel, que também aparece na passagem acima, revela-se, dos três, o que tem a consciência mais viva dos limites entre as duas práticas discursivas. É de se destacar também que tudo se passa no âmbito da ‗diegese‘, como opinião externada das personagens, criaturas de ficção, e não pelo narrador propriamente dito. Amado Alonso (1942), sem afastar-se inteiramente dessa dicotomia – cantar e contar – vai mais longe a respeito da distinção entre o poeta e o historiador. Ele não julga impossível ―obter uma genial visualização de um material estritamente histórico em um romance‖ (p.11). 36 Para isso, ele deixa claro que o romancista histórico deve relacionar a reconstituição do passado, no que ele tem de arqueologia22 à história23 propriamente dita, ou seja, o movimento vivo que permite a apreensão de um sentido, de modo a tornar esta última a matéria-prima de que se valerá o poeta, no caso, o romancista. Enfatiza-se também, nesse ponto, a natureza dialética, no sentido de superação, do processo de ficcionalização da matéria de extração histórica. É importante observar que a matéria do historiador são os acontecimentos passados, recolhidos e documentados pela erudição, aos quais ele dá uma forma, ―ao estruturá-los com um sentido‖ (Alonso, 1942, p.17), enquanto a matéria da poesia é já a história, a qual o poeta imprime uma forma peculiar, pondo nela um profundo sentido novo, para além do particular histórico alcançando – portanto, a universalidade de que falava Aristóteles. Assim, podemos entender que há também uma possível distinção que consiste na perspectiva externa do historiador, que deseja explicar os acontecimentos ―observando-os criticamente de fora e costurando-os com um fio de compreensão intelectual, contrariamente ao poeta que deseja vivê-los por dentro‖ (Alonso, 1942, p.18). Tal compreensão também se apoia no entendimento de E. M. Foster (1969). Segundo Foster, a oposição exterioridade versus interioridade realça a perspectiva do romancista – ficcionista ou poeta – de ser capaz de captar a interioridade das personagens, mesmo daquelas, de procedência histórica. Segundo Foster, o historiador trata das ações e do caráter dos homens apenas até onde lhe é possível deduzi-lo de suas ações. Isso porque só pode saber da sua existência quando ele se mostra à superfície. Para Foster a vida oculta é por definição velada e, quando se mostrar através de sinais exteriores, já não é mais oculta, já entra no domínio da ação. A função do romancista é revelar essa vida oculta em sua fonte: contar-nos mais sobre a Rainha Vitória do que se poderia saber e, desse modo, compor uma personagem que não é a Rainha Vitória da História. Foster segue dizendo que expressar esse lado da natureza humana é uma das principais funções do romance e acrescenta postulando que a ênfase posta pela história nas causas externas faz com ela seja dominada pela noção de fatalidade. Estamos diante da dicotomia Aristotélica, portanto. Foster entende que todas essas considerações correspondem ao fato de caber ao historiador ―registrar‖ enquanto que ao romancista ―criar‖. Não é difícil entender, portanto, que há diferenças entre as pessoas na vida 22 Quer dizer, documental. Sucessão e ações que em seu encadeamento formam uma figura móvel com unidade de sentido (ALONSO, 1942, p.12). 23 37 cotidiana e as pessoas nos livros, dado que no romance justamente por ser possível penetrar na interioridade das pessoas temos delas um conhecimento mais completo e menos restrito. Esse conhecimento pleno da personagem, além de ser marca da superioridade do romancista sobre o historiador, é também condição para sua realidade. Não podemos deixar de registrar também que, nem sempre a diferença entre o poeta e o historiador é favorável ao poeta – como, por exemplo, defende Aristóteles. Para esses é preciso entender que a liberdade de invenção para o escritor romancista, entretanto, deve ser condicionada a um limite intransponível que é o da verdade histórica. O poeta pode e deve suprir as lacunas da história, mas nunca deve se afastar dela a ponto de tornar irreconhecíveis os fatos registrados e tidos consensualmente como sendo verdadeiros. Segundo eles, a função do romancista histórico é, assim, complementar a do historiador, não somente em termos cronológicos, mas também na tarefa de construir uma imagem verdadeira do passado. A. Pereira Ribeiro (1976), adota uma posição conservadora e entende o romancista histórico como: um doublé de historiador e literato, que toma por tema de seu livro, um trecho da história de sua pátria, representando os fatos, não com a monotonia dos textos frios, como acontece com os livros didáticos, cheios de nomes e datas, mas, ao representar o fato histórico, coloca pitadas de sonho, condimentos de fantasia, traz um pouco de ficção para juntá-la a realidade fria dos fatos (p.20). Para Ribeiro, por exemplo, todo esse acréscimo à monotonia dos textos frios deve ser feito sem, contudo, fugir à verdade histórica. Ele continua dizendo que as pitadas de sonho, os condimentos de fantasia e as palavras bonitas são a contribuição do romancista na feitura do prato digestível que deve ser o romance histórico. Ribeiro defende que o direito de o romancista suprir as falhas documentais, com o produto de sua fantasia, aconteça somente na falta de documentação idônea, porque, para ele, o romancista histórico enfeita o passado sem, contudo, negá-lo, pois a verdade histórica deve ser sempre a sua bússola e a sua diretriz. Fernando Cunha (1972) registra que o romance histórico exige do escritor uma dupla qualidade: a de ficcionista e a do historiador, harmoniosamente dosadas, pois o primeiro sem a autoridade do pesquisador não dará a seu trabalho o indefectível valor documental e o segundo sem a sutileza do efabulador, sem a prática do manuseio das almas e de suas reações, pouco realizará de esteticamente válido. Mas, ―o romancista não pode violentar fatos historicamente básicos, nem deturpá-los para melhor atender a ação do romance ou a uma preferência pessoal, a não ser que sólidos motivos o tenham persuadido a restabelecer a verdade violada‖ (CUNHA, 1972, p.45). 38 Pelo que podemos ver, não se trata de contrapor o poeta ou ficcionista ao historiador. O que não se deve fazer é ressaltar no mesmo escritor ou na mesma obra, quando ele é romancista e quando ele é historiador. O que não pode faltar ao romance histórico é um dos seus efeitos principais que é o de nos dar uma representação verdadeira da história e se a verdade tiver sido violada, entretanto, o instrumental imaginativo do romancista deve ser acionado, mas somente para restaurá-la. E como será possível crer na veracidade da reconstituição histórica se ela não se distingue, facilmente, da parte inventada? O que podemos dizer é que há, definitivamente, por parte do romancista histórico, essa intenção, uma vez que acende a curiosidade do leitor para o acontecimento histórico. Essa postura o fará querer conhecer mais tal acontecimento, mas não lhe fornece o instrumental necessário à correta discriminação do que deve ou não ser aceito como verdade. Em um romance, por exemplo, não se pode fazer distinção entre personagens que provem da história e personagens que são inventadas, de modo que não é necessário qualquer esforço do romancista histórico para não estabelecer distinção entre personagens verdadeiras, no sentido de procederem da história, e inventadas, porque de certa forma, isso cabe unicamente ao leitor. O problema da diferenciação entre o poeta e o historiador, levantado por Aristóteles, permanece não resolvido. Na verdade, poucos sustentariam uma distinção tão nítida quanto a que foi por ele estabelecida entre uma e outra prática discursiva. Não apenas pelo elemento comum, a ‗narrativa‘24, que autorizou Aristóteles a propor a comparação, pois tanto o historiador quanto o poeta narram fatos e pela constatação de que ficção e história permutam entre si diversos processos discursivos e também pelas alterações qualitativas processadas no interior de cada uma delas25. Destacamos também Linda Hutcheon (1991) quando ela registra que ―as leituras críticas atuais sobre o tema das relações da história com a literatura tem-se concentrado muito mais naquilo que as duas formas de escrita tem em comum do que em suas diferenças‖ (p.141). É importante registrar que todo o problema da diferenciação entre o poeta e o historiador decorre justamente dessa proximidade, de modo que a oscilação entre os polos da 24 Ricoeur declara que toda a história escrita, necessariamente, assume algum tipo de forma narrativa (1997). No âmbito da história, por exemplo, a relativização do conceito de verdade histórica, nascida, sobretudo, da consciência cada vez maior de ser a escrita histórica uma construção cultural, contaminada, dependente do peso a ser atribuído às fontes, quase sempre interessada em uma versão em detrimento de outras. O outro ponto a se destacar é o alargamento desse conceito, qual seja, não mais apenas o fato político-econômico, mas o social, o cultural e até o mental. Veja a importância nos dias atuais da chamada ‗história oral‘, dos registros audiovisuais e da chegada da internet, por exemplo. 25 39 semelhança e da dessemelhança entre história e literatura denuncia, portanto, a complexidade da questão. É importante dizer que a diferenciação proposta por Aristóteles tomava como representativa da atividade do poeta a epopeia e não o romance, inexistente na época – e menos ainda o romance ―histórico‖. A epopeia, conjugando matéria de extração histórica – terreno do real – e matéria de extração mítica – terreno do maravilhoso –, impunha ao protagonista, o herói, a tarefa de ultrapassar os limites do humano para merecer o reconhecimento de sua condição. Aconteceu, porém, que as transformações processadas no modelo épico ocidental26 em suas diversas faces resultaram em que o elemento histórico foi, progressivamente, sobrepujando o componente mítico. Para tanto, isso contribuiu acentuadamente para a proximidade temporal entre o poeta e a matéria narrada27. Essa espécie de veto parcial ao mítico decorria da crescente familiaridade dos contemporâneos com a substância histórica da matéria narrada. A recorrência à sobrenaturalidade mítica ficava submetida às conveniências de um mínimo de rigor histórico e de adequação à censura religiosa quanto aos valores pagãos 28. Desse contexto nasceriam as ‗canções de gesta‘ – em versos – e as ‗novelas de cavalaria‘ – em prosa. Tais modalidades de narrativas, de base predominantemente cristã, viriam a ser consideradas como precursoras – sucessoras das epopeias – do romance, tal como surge em fins do século XVIII e consolidamse no decorrer do século XIX. Encontramos no romance, portanto, uma riqueza e uma grande variedade de interesses, de situações, de personagens, de condições de vida e descrições épicas de acontecimentos. Contudo, o romance careceria da poesia do mundo primitivo que é a fonte da epopeia uma vez que ele, no sentido moderno da palavra, pressupõe, em geral, uma realidade prosaica29. Romance e epopeia são, ambos, objetivações da literatura. Mesmo o condicionamento externo – os dados histórico-filosóficos – que se impõem à criação do escritor não apagam a admissão de uma procedência comum aos dois. Entretanto, por uma determinação histórica – 26 Epopeia latina, renascentista, neoclássica. É o caso, na épica de Língua Portuguesa, de Camões e Os Lusíadas (1572) e, mais tarde, no Brasil, das tentativas épicas de Bento Teixeira (Prosopopeia,1601) e Basílio da Gama (O Uraguai, 1769). Nos casos aqui apontados, o poeta épico continuava a cantar feitos gloriosos do passado nacional de um povo, mas já não tão remotos nem deitados sobre as lendas que aceitassem, sem controvérsia, a excessiva mitificação das epopeias de Homero, por exemplo. Em Homero, o herói era afastado de sua condição humana e era aproximado dos deuses, e admitia sem incredulidade, a intervenção ostensiva dos próprios deuses nos conflitos dos homens. 28 Desse modo, à proximidade temporal do poeta em relação à matéria narrada somou-se o poderoso ingrediente das restrições impostas pelo pensamento católico: o poeta cristão não deveria recorrer ao maravilhoso pagão. 29 Contrariamente à epopeia, que se liga a uma realidade poética, no sentido em que o tempo a que alude corresponde a uma época em que um povo se põe a acreditar e criar um mundo que lhe seja próprio, o romance supõe uma visão total do mundo e da vida, cuja matéria e conteúdo de aspectos diversos, se manifestam por ocasião de um acontecimento individual, que forma o centro do conjunto. 27 40 o romance surge em tempos de afirmação da sociedade burguesa30, quando o mundo de que falava o poeta da epopeia não mais pode existir. Como entendemos aqui, é como se o que foi a epopeia para os antigos, especialmente para os gregos, tem sido o romance para a sociedade burguesa. Com Lukács, o romance é uma epopeia burguesa31, mas desprovida da antiga grandeza, uma vez que o poeta não pode mais ser o cantor de uma comunidade, já que a sociedade em que vive está dividida em classes que se antagonizam a partir de interesses divergentes. Diferentemente do herói da epopeia que nunca é propriamente um individuo, pois sempre foi característica essencial da epopeia o fato de o seu objetivo não ser um destino pessoal, mas o de toda uma comunidade, a trajetória do protagonista do romance não legitima as aspirações coletivas. Pelo contrário, a elas frequentemente se opõe, já que se trata de um indivíduo problemático, exemplar de um tipo de herói que está sempre em busca de sua plena realização individual. Se é verdade estabelecida que tanto a epopeia quanto o romance pertencem ao gênero épico, uma diferença fundamental entre eles deve ser, porém, estabelecida: em princípio, do romance, na acepção moderna do termo, está banido o mito e, por extensão, o maravilhoso. A sua matéria narrada é restrita ao universo da experiência humana. Daí, tal demarcação contribuir para o aproveitamento da matéria de extração histórica já que esta é, em contraposição à matéria de extração mítica, o espaço específico de atuação do homem moderno. Entretanto, o romance considerado histórico, por assim dizer, está fadado ao hibridismo, pois, como o romance é uma ficção, isto é, a matéria narrada resulta da livre invenção do escritor que delega a um narrador, normalmente em terceira pessoa, a responsabilidade pela mimese do real humano; como histórico escapa aos limites da ficcionalidade pura e se pretende documento – nele o leitor pode encontrar elementos verídicos como datas, nomes, eventos, lugares –, tomado de empréstimo à história. O conflito entre o que é histórico e o que é inventado é que tem tomado – e vai continuar tomando – conta de grandes discussões a respeito desse tipo de narrativa. Entretanto, Georg Lukács tem uma posição clara a respeito do romance histórico e a matéria que preenche o seu conteúdo. Adentremos a seguir nos argumentos que fizeram dele 30 Muito embora ele tenha surgido como uma forma de resistência à sociedade burguesa em curso de seu desenvolvimento. 31 Segundo Lukács (1979), a luta contra as sobrevivências burguesas na consciência dos operários, contra o emburguesamento das consciências destes, também constitui a linha fundamental da crítica literária de Marx e Engels. É importante dizer que essa ideia já surge, anteriormente a Lukács, nos escritos de Hegel. 41 um grande teórico do Romance e que o fez escrever nos anos de 1936 e 1937, durante o seu exílio na União Soviética, O Romance Histórico, sua obra considerada por muitos como sendo o mais significativo dentre os seus escritos e de caráter visivelmente marxista32. 3.2 LUKÁCS E O ROMANCE HISTÓRICO O Romance Histórico representa a primeira grande obra escrita por Georg Lukács depois que suas concepções estéticas marxistas tomaram forma. Ele trabalhou essa obra durante todo o inverno de 1936-1937, em Moscou, onde teve de exilar-se por ter sido, na qualidade de antifascista, expulso de Berlim com o advento do poder hitlerista (TERTULIAN, 2008, p.166). Para compreender o esquema dinâmico de O Romance Histórico, o modelo ideológico e estético em que se apoiam constantemente os raciocínios de Lukács, é preciso parar um pouco no estágio atingido por seu pensamento quando redigia o seu livro. A vida de Lukács é inseparável do drama da geração de intelectuais da qual fez parte na primeira metade do século XX: todos passaram pela revolução russa de 1917, pelo fascismo e por duas grandes guerras mundiais33. As primeiras obras de Lukács, A Alma e as Formas (1911), A Teoria do Romance (1920) sofreram influência de uma sociologia da literatura ainda idealista. Mas, esse esteticismo da juventude foi transformado com sua adesão ao marxismo. Novas categorias então passam a entrar em voga a partir daí: as ideias das lutas de classes, a reificação e a dialética materialista passam a fazer parte dos caminhos trilhados pelo estudioso húngaro. O livro História e Consciência de Classe (1923) permanece sendo um dos maiores testemunhos do marxismo até os dias de hoje. Nele, Lukács queria entender como fazer para que as massas nos países ocidentais passassem da situação de meros reivindicadores de suas condições econômicas à busca de inversão do sistema. Eis, portanto, um dos motivos que levou Georg Lukács a escrever O Romance Histórico. De qualquer forma, foi preciso que Lukács se libertasse do messianismo utópico e do sectarismo político que tinham marcado os seus primeiros anos de aprendizagem para que ele adentrasse em algo concreto. O programa estético de Lukács não podia estar separado do conjunto de suas convicções políticas e ideológicas. 32 Originalmente publicado em russo, em 1937, foi prontamente acolhido como obra prima por críticos satisfeitos em descobrir um marxista que tinha realmente lido toda a literatura do século XIX burguês (LICHTEIM, 1970). 33 Konder (1980) dividiu a trajetória da Lukács em três períodos: o primeiro de 1918 a 1928, o segundo de 1929 a 1955 e o terceiro de 1956 a 1971. 42 O eixo fundamental de argumentação de Lukács é a ideia de totalidade, transposta diretamente da filosofia hegeliana para a teoria social marxista34. Contrariamente à filosofia positivista – segundo a qual os dados se explicam por si mesmos sem a necessidade de referirse à interligação que os mantém unidos –, a herança hegeliana afirmava o caráter integrado dos dados que só ganham sentido quando referidos ao todo (FREDERICO, 1997). A preocupação comum que atravessa as principais investidas de Lukács no campo filosófico é a relação entre a vida social e os seus reflexos no plano ideológico. Para ele, o advento do capitalismo não se fez acompanhar de uma ruptura com a ordem feudal, mas de acomodação com a antiga ordem e seus mecanismos de dominação antidemocráticos (FREDERICO, 1997). Concentrando-se na defesa apaixonada do Realismo – entendido como o único método apropriado para se obter uma representação artística correta – Lukács estuda o fenômeno artístico na ótica da teoria marxista do conhecimento35. Para Lukács o dado visível é produto da atividade humana, tendo sido, portanto, produzido e carecendo, então, de explicação. Apenas a descrição do dado é ineficaz para compreendê-lo. É preciso negar a sua imediatez, ultrapassar a sua aparência, indo além de sua evidência empírica em direção às determinações de sua totalidade. Assim, na vida cotidiana os objetos à nossa volta despontam em sua insuspeitada evidência – em sua indiscutível imediatez – e por isso são tomados como se fossem, diretamente, a realidade. Segundo a compreensão marxista da realidade, essa é a forma invertida através da qual os fenômenos se manifestam à nossa consciência. Não se podem ocultar os vestígios humanos na sociedade, permitindo a ilusão fantasmagórica dos fatos sociais como verdadeiros. Aquilo que vemos aparentemente na vida cotidiana, portanto, é representação caótica da realidade. Nesse sentido, o homem comum olha para essa realidade invertida e captura o seu funcionamento aparente, preso a um sistema fechado, no qual as ‗mercadorias‘ – como diria 34 Para Marx e Engels (1999), a literatura não pode ter pretensões a um desenvolvimento autônomo. De acordo com A ideologia Alemã, a constatação de que a ciência da História é Una tem para Marx e Engels uma consequência necessária: a Literatura deve ser tratada dentro de um vasto contexto histórico-metodológico único – em oposição ao entendimento da arte autônoma. Para eles, a arte não estava acima das lutas sociais e políticas. 35 Para se compreender essa ótica, é necessário entender o modo de pensar que se tornou senso-comum dos homens criadores da sociedade capitalista: o positivismo. Segundo esse pensamento, a realidade se confunde com a imediatez, com a ‗positividade‘ do mundo, tal como se reflete na consciência, ou seja, a realidade se confunde com a sua manifestação imediata. Mas, a aparente positividade dos fatos serve apenas como ponto de partida para a compreensão do Realismo. A dialética exige que se parta além da imediatez para, assim, poder descobrir sua razão de ‗ser-assim-como parece‘. Para o positivismo um dado empírico é uma ‗positividade‘, uma imediatez, mas por trás desse corpo visível, exposto à nossa senso-percepção, há uma espécie de alma, um ‗nãoser‘ que não se apresenta claramente. Esse tal é o valor que revela o processo pelo qual aquele realismo é como se parece. É o que pode se chamar de caráter social do dado empírico. A observação distante, aparente, não dá conta da interpretação adequada de um fato. O fato não pode ser explicado por si mesmo, mas somente se explica pela passagem do dado visível – a positividade – para o valor – o processo que levou para chegar tal como ele é (FREDERICO, 1997). 43 Marx36 – despontam como elementos de primeiro plano ativo da realidade social e, na qual, o homem é um simples apêndice. Relegado ao segundo plano, os indivíduos relacionam-se uns com os outros como portadores dessas mercadorias, contados como personificação de categorias econômicas. É nesse contexto desumanizado que a arte37 defronta-se com o desafio de refletir a realidade social, o mundo dos homens como uma totalidade viva, formada pela unidade contraditória de essência e aparência (LUKÁCS, 1979). Esse desafio deve levar o verdadeiro artista a desmascarar a impressão fantasmagórica da realidade e revelar a aparência como aparência, como dissimulação do essencial. Desse modo, a arte entra em contradição com o capitalismo e este é, portanto, o aspecto marxista da arte: quando ela se apresenta com um caráter humanizador das relações sociais38. É por isso que, ao refletir de forma sensível a trajetória dos homens, o romancista – ou o romance – põe em evidência a condição humana às voltas com os fatores históricos e sociais que podem bloquear as possibilidades do pleno desenvolvimento humano. Os autores de romances históricos adotam uma firme postura realista para poder alcançar esse objetivo. Para Lukács, o romance com teor histórico pode oferecer uma forma de revelação do mundo a partir de uma tomada de posição perante a realidade. Segundo ele, o realismo é um método, um caminho para se chegar à verdade e um critério atemporal para se julgar a produção artística. Toda forma de produção artística, para Lukács, que quebra a unidade entre essência e aparência oferece uma reprodução falseada da realidade e, portanto, se distancia do verdadeiro papel da obra de arte39. A partir desse realismo40, o romance vence uma realidade mecânica e nos apresenta numa totalidade complexa, o livre curso do desenvolvimento dos destinos humanos: o romance, como gênero literário, portanto, é a expressão artística mais acabada do mundo 36 Para Marx a defesa da totalidade sobre as partes surge como uma necessidade contra o esfacelamento do mundo, provocado pela presença do capitalismo. A sociedade capitalista não pode ser compreendida pelas visões parciais e relativas de um economista, por exemplo, ou de um historiador. É preciso pensar na sociedade como uma totalidade viva e articulada (JAMESON, 1985). 37 Todo verdadeiro artista e todo verdadeiro escritor é um adversário instintivo de qualquer alteração do principio do humanismo, independente do grau em que seja alcançada a consciência disso. Daí que, para Lukács (1964), toda boa arte e toda boa literatura devem ser humanistas, não só ao estudarem apaixonadamente o homem e a verdadeira essência de sua natureza humana, mas, também, por defenderem apaixonadamente a integridade humana contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram. 38 Para Marx e Engels, os diferentes domínios ideológicos não poderiam ser independentes. Marx e Engels reconheceram constantemente o efeito extraordinariamente e profundo e vasto da literatura sobre a consciência dos homens. Eles nunca subestimaram a importância de orientações em matéria de literatura (LUKÁCS, 1979). 39 No domínio da teoria literária desde o início que as lutas de Marx e Engels observamos efeitos do posicionamento burguês sobre a consciência da classe operária. Marx e Engels reconheceram o efeito extraordinariamente profundo e vasto da literatura sobre a consciência dos homens (LUKÁCS, 1964). 40 Segundo Lichteim (1970), para Lukács tudo acaba conduzindo para uma única verdade central: o realismo em arte deve retratar o mundo, no sentido de que habilita os homens a perceberem sua própria natureza real. 44 burguês (LUKÁCS, 1965). É nele em que os dramas e os conflitos do processo histórico podem ser refletidos artisticamente, já que se encontram concentrados em personagens típicos, isto é, indivíduos que refletem, ao mesmo tempo, as condições específicas de sua singularidade e as tendências gerais do processo histórico como um todo. No curso de seu desenvolvimento, o romance considerado clássico chegou a ser a expressão do caráter revolucionário da burguesia – classe voltada para a mudança social e profundamente interessada em conhecer a realidade. Mas, o ano de 1848 marca o final desse período heroico. A burguesia enfrenta um novo adversário: o proletariado. Perante os novos desafios, a burguesia torna-se uma classe conservadora, interessada apenas em manter a ordem estabelecida. A sociedade não é mais o palco da história social, dos conflitos e da busca do conhecimento da verdade. O racionalismo torna-se uma técnica positiva de controle social e o ideal emancipatório é abandonado. O romance, entendido como um resgate da totalidade perdida entra em crise: ele passa a ser a expressão da decadência ideológica da burguesia. Nesse sentido, Lukács somente pode entender o romance a partir de uma compreensão ontológica: a consciência das personagens do romance deve ser uma expressão necessária das condições sociais e históricas nas quais eles aparecem. Nestes termos, o realismo implica na fiel reprodução de personagens típicos em situações típicas. De acordo com o pensamento dialético materialista, o conceito de ‗tipicidade‘ não deve partir de uma construção intelectual apriorística e abstrata, feita a revelia da realidade como quer Weber, nem uma construção estatística que abstrai a riqueza e a diversidade presentes na realidade como defende Durkheim. O conceito de tipicidade revelado nos atores sociais, como compartilha Marx, aproxima-se da compreensão que Lukács leva para a literatura. Ele critica escritores que trabalham somente com personagens médios41 ou comuns. É que, para Lukács, esse tipo de personagem não reflete piamente toda a riqueza da vida dos 41 De acordo com Frederico (1997), dentro do conceito de ‗tipicidade‘, pode-se dizer que para Lukács, a concepção das personagens do romance não deve seguir caracteres medianos, como apresentados pela sociologia compreensiva, defendida por Max Weber (ele entende a realidade como caótica e, portanto, impossível de oferecer dados adequados. Ele, então, cria uma realidade ideal para efeito de compreensão do mundo. Dessa realidade abstrata e ideal ele cria o ‗tipo ideal‘. A partir de uma racionalização utópica: a partir desse ponto o leitor/observador pode constatar até que ponto a realidade aproxima-se ou não do tipo ideal) ou pela sociologia positiva de Durkheim (ao contrário de Weber, Durkheim rejeita noções prévias – construções abstratas. Ele acha que a busca desse ‗tipo‘, valor dado aos personagens, deve partir da própria realidade. Através de uma estatística ele faz uma abstração de todos os casos individuais e chega a uma concentração de caracteres do tipo médio). Essa compreensão não é a que interessa a Lukács. Para ele, assim como para Marx, o gênero humano não ser contado como um mero ‗dado‘. Deve-se considerar o longo processo no qual o sujeito e a realidade exterior compõem uma totalidade. Não se pode medir o ‗tipo‘ de personagem a priori ou por uma medida abstrata. Ele deve ser um ser que exprime com a máxima clareza a verdade de sua espécie, de modo que ele é um ser específico e ao mesmo tempo concentra as tendências mais essenciais da espécie universal em questão. 45 homens, os seus prazeres, os seus problemas e as suas paixões. O bom romance produz personagens típicos, isto é, indivíduos bem definidos e demarcados em suas personalidades individuais inconfundíveis – como veremos no caso das personagens de A Letra Escarlate, no capitulo que fecha este estudo. Daí que, personagens típicos, segundo Lukács, além de suas inelimináveis singularidades, concentram também certas tendências universais próprias do ser humano, postas num determinado momento histórico. Lukács recorre à dialética para definir típico como uma junção do singular com o universal. Esse entrecruzamento entre os destinos individuais e as possibilidades concretas postas pelo desenvolvimento social é a chave do romance como forma de representação do mundo. De certa maneira é a luta contra sobrevivências burguesas na consciência das pessoas42 – a luta contra o ‗emburguesamento‘ de suas consciências, portanto – que constitui a linha fundamental do romance que se definirá como sendo de cunho histórico e, porque não dizer, marxista. Desse pensamento, caberá ao romance histórico um papel fundamental na exposição de questões político-sociais que abalaram a Europa, especialmente a partir do século XVIII, mais precisamente, a partir da Revolução Francesa. 3.3 O SURGIMENTO DO ROMANCE HISTÓRICO ...o desfecho dos grandes movimentos históricos não pode ser o efeito da única luta entre a razão e instinto, entre tolerância e crueldade ou brutalidade, mas que depende, em última instância, da relação entre a ação das personalidades históricas eminentes e as aspirações das massas populares mais amplas (TERTULIAN, 2008, p.171). Lukács (2011) situa o surgimento do romance histórico em pelo menos dois momentos. O primeiro a partir do surgimento do romance social do século XVIII com Henry Fielding, Jonathan Swift e William Tackeray, e, em seguida, na nova percepção da história a partir do início do século XIX, quando Waverley, de Walter Scott, apareceu logo depois da queda de Napoleão, em 1814. Segundo ele, após a experiência francesa das guerras revolucionárias, da ascensão e da queda de Napoleão, num período entre 1789 e 1814, foi possível ao homem compreender a sua própria existência como historicamente condicionada e ver na história alguma coisa que 42 Ou dos operários, no dizer de Marx. 46 afetava profundamente sua vida cotidiana – e que lhe dizia respeito de modo direto. Para ele, é desse contexto que nascem as condições concretas para que os homens concebam suas existências como algo fundado historicamente e vejam, na história, uma influência profunda sobre o seu cotidiano. A consciência histórica da ‗historicidade da vida concreta‘ dos homens soma-se à consciência, simultaneamente nacionalista e internacionalista, de que a história de cada nação liga-se a de outras nações de modo a discriminar o que é local e típico, em contraposição às outras localidades e tipicidades. O fundamento desses caracteres distintivos deve ser trazido do passado. É a Europa, portanto, o lugar do solo social e ideológico que faz surgir o Romance Histórico43. É essa convulsão do ser e da consciência dos homens que vivem na Europa que formam as bases ideológicas e econômicas para o surgimento do Romance Histórico de acordo com o que podemos ler em O Romance Histórico, de Lukács. Nessa compreensão, é Walter Scott, segundo Lukács, a grande referência entre os criadores do Romance Histórico. Dentre os traços estéticos que o seu romance introduziu na literatura épica, por exemplo, podemos citar o amplo retrato dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos; o caráter dramático da ação; e o novo e importante papel do diálogo nas narrativas. Em uma época em que toda a Europa é dominada por uma ideologia pósrevolucionária, esses traços mostram-se na Inglaterra – o grande modelo de desenvolvimento do continente44 – de modo muito especial. Não foi por acaso que esse novo tipo de romance surgiu exatamente naquele país45. A relativa estabilidade do desenvolvimento inglês nessa época conturbada, em comparação com o continente, possibilitou que o sentimento recém-despertado pudesse se condensar em uma forma grandiosa, objetiva e épica. Essa objetividade é ainda intensificada pelo conservadorismo de Walter Scott. Com sua nova visão de mundo, ele permanece fortemente ligado às camadas da sociedade arruinadas pela Revolução Industrial, pelo rápido desenvolvimento do capitalismo (LUKÁCS, 2011, p.48). 43 É o próprio Lukács (2011) quem dá essa resposta a respeito de uma forma clássica do romance histórico. Segundo Hauser (1972), no século XVIII, o comando das atividades intelectuais passa da França para uma Inglaterra econômica, social e politicamente mais progressiva. O grande movimento romântico aí se inicia em meados desse século, mas o Iluminismo recebe também deste país o seu impulso definitivo. São as instituições inglesas a referência para o progresso. 45 Os importantes traços realistas do romance inglês dessa época são consequências necessárias do caráter pósrevolucionário do desenvolvimento da Inglaterra. O fato de a Inglaterra ter travado sua revolução burguesa no século XVII, e desde então, ter passado por um período de desenvolvimento duradouro, pacífico e progressista sobre as bases das conquistas da revolução burguesa mostraram que a Inglaterra era um exemplo prático para o novo estilo de concepção histórica (Ibid.). 44 47 Para Lukács, os contextos do iluminismo e da revolução francesa foram, em linhas gerais, momentos especiais para o nascimento e a consolidação do Romance Histórico clássico46, portanto. A construção da História, que por vezes revela fatos novos e grandiosos, serve para provar a necessidade de revolucionar a sociedade a fim de extrair, das experiências da história, princípios com os quais pode se criar e fazer nascer uma sociedade pensante. A França foi o país que mais se destacou intelectualmente no período do iluminismo militante, por exemplo. Como consequência, a ascensão consciente da importância do historicismo apresenta suas raízes na discrepância entre o atraso econômico e político das nações – das sociedades de uma maneira geral. A Revolução Francesa, as guerras revolucionárias, a ascensão e queda de Napoleão fizeram da história uma experiência de massas em uma escala continental. Entre 1789 e 1814, as nações europeias viveram mais revoluções que em séculos anteriores. Segundo Lukács, a celeridade das mudanças confere a essas revoluções um caráter qualitativamente especial, apaga nas massas a impressão de acontecimento natural, torna o caráter histórico das revoluções muito mais visível do que costuma ocorrer em casos isolados. Se a essa experiência vem unir-se o reconhecimento de que tais revoluções ocorrem no mundo inteiro, fortalece-se extraordinariamente o sentimento de que existe uma história, de que essa história é um processo ininterrupto de mudanças e, por fim, de que ela interfere diretamente na vida de cada indivíduo (2011, p.38). Na França ocorreu a necessidade de compartilhar o conteúdo e a finalidade do conflito com as massas populares (LUKÁCS, 2011). A revelação do conteúdo social, pressupostos históricos e circunstâncias da luta, estabeleceram a necessidade de uma conexão da guerra com a vida47 em sua totalidade e com as possibilidades de desenvolvimento do ponto de vista da nação. Na luta contra a coalizão das monarquias absolutistas48, a República da França foi forçada a criar exércitos de massa, de massa qualitativa, pois dizia respeito exatamente aos interesses de todos. A reivindicação da autonomia está ligada a um novo despertar da história nacional, com recordações do passado, da glória passada e também dos momentos de derrota. Lukács deseja implantar, portanto, o debate estético em uma ampla interpretação da história. A sua repulsa a toda forma de subjetivação da história resulta da própria convicção 46 Lukács considera que sempre houve romances de temática histórica, desde adaptações de histórias e mitos antigos da Idade Média até narrativas encontradas na Índia e na China. Para ele, os chamados romances históricos do século XVII (Scudéry, por exemplo) são históricos apenas por sua roupagem. 47 Assim, criam-se possibilidades concretas para que os homens apreendam sua própria existência, como algo historicamente condicionado, e vejam, na história, algo que determina profundamente sua existência cotidiana. 48 As guerras napoleônicas provocaram por toda parte uma onda de sentimento nacional e revolta contra conquista com esse perfil, gerando em todos um sentimento de autonomia nacional. 48 profunda de que o destino dos movimentos históricos repousa em uma multidão de fatores objetivos e subjetivos – e são os primeiros que desempenham o papel decisivo, ainda que a importância dos fatores subjetivos não seja menor. Nesse sentido, Lukács demonstra simpatia por escritores que correspondem à sua sede de autenticidade histórica, ou seja, os que sabem dar uma imagem multiforme dos acontecimentos históricos, observando a justa proporção entre os fatos e os gestos das personalidades, bem como às correntes populares da ocasião. Não se deve esquecer outra condição fundamental para escrever um bom romance histórico: a aptidão para evocar os acontecimentos passados não com a curiosidade distanciada de um arquivista ou museólogo, mas considerando-os como precursores orgânicos, ainda que através de múltiplas mediações do presente. Deve-se considerar também o fluir da comunicação entre o passado e o presente, o sentimento do passado com pré-história do presente. Tais aspectos constituem sinais que distinguem verdadeiros êxitos do gênero histórico (TERTULIAN, 2008, p. 172).. Segundo podemos entender em O Romance Histórico, o grau de profundidade, de densidade e de pregnância artística das obras não está desvinculado de sua inserção específica na dinâmica do progresso histórico do contexto no qual ela foi produzida. A relação entre os períodos em que as obras foram escritas e o nível de consciência histórica dos escritores se mostram tão estreitos que seus julgamentos estéticos – sobre o que ocorreu na história – chegam a ser, até mesmo, mais temerários. A solidez do ponto de vista de Lukács com relação à qualidade do romance histórico se prende ao fato que a perspectiva histórica dos escritores deve ser analisada no nível da imanência49 artística das obras, bem como no nível de suas convicções explicitas. Nesse sentido, a glorificação de Walter Scott se dá, muito mais, às razões históricas que o seu romance evoca do que a razões estritamente estéticas. Para Lukács, é a partir de Walter Scott que o aspecto da historicidade revelada nos destinos e nas paixões humanas expressas pelas personagens em seus romances que marcam esse gênero na literatura. Dentre os argumentos que levam Lukács a considerar um romance denominado de ‗histórico‘ está aquele em que a ação gira em torno de grandes crises históricas, da encenação de meios sociais muito variados e de estratificação complexa bem como da presença de personagens de envergadura média, que não apagam o foco das principais forças políticosociais antagônicas envolvidas e reveladas no enredo do romance. De uma maneira muito 49 A ―imanência‖ está diretamente ligada à finalidade do romance ou resultado de seu efeito. O termo aplicado na passagem acima apresenta o romance como um espaço que compartilha os limites da experiência possível – contrapondo-se, portanto, aos princípios "transcendentes" que ultrapassam esses limites. 49 clara, na infraestrutura de um romance histórico, a relevância dada à dimensão sócio-histórica das ações e dos caracteres humanos é plenamente valorizada50. A importância dada à caracterização sócio-histórica das personagens, para Lukács, constitui um progresso estético em relação à sua fase anterior51, especialmente pelo fato de que ele estabelece uma relação entre a autenticidade épica do romance histórico e o respeito pelas justas proporções entre as ações das grandes personagens históricas e o modo de vida cotidiano da época; entre as escalas de valores do ‗alto‘ da sociedade e as correntes que atravessam o ‗baixo‘, vindas das profundezas da vida popular (TERTULIAN, 2008). A luta desses dois planos – o alto e o baixo – no romance histórico deve aparecer com a confrontação de dois sistemas de valores e, ao mesmo tempo, deixar claro que tal conflito se traduz como visões possíveis e diferentes do desenvolvimento de uma sociedade. Logo, as considerações estéticas de Lukács estão permeadas por um feixe de hipóteses a propósito do condicionamento histórico social da vida humana em geral e das paixões em particular. Mas, não se trata de fazer da vida psíquica o reflexo mecânico das condições histórico-sociais preexistentes. Pelo contrário, as paixões humanas não se desenvolvem num espaço vazio, elas se chocam necessariamente com as normas e os hábitos existentes, e sofrem um trabalho de acabamento em função das circunstâncias sócio-históricas nas quais elas estão inseridas. Como exemplo, se o caso entre Ester e o reverendo Dimmesdale se apresenta sem a relação sócio-histórica da época evocada – Salem dos puritanos do século XVII com todos os seus dogmas e leis –, estamos diante de um problema estético que não contempla o entendimento de Lukács para o romance histórico, pois haveria então, uma transgressão na lei do realismo do qual o enredo faz parte. Para ele, a lei estética do romance não é arbitrária, mas deve refletir exatamente as relações e as proporções dos fenômenos sociais reais. A presença da perspectiva comandada pelos valores morais populares lhes parece indispensável e sendo a única capaz de conferir-lhe as dimensões estéticas de profundidade e de densidade necessárias à compreensão da realidade. É importante ressaltar que Lukács (2011) considera que a gênese e o desenvolvimento, o apogeu e o declínio do romance histórico resultam, inevitavelmente, das grandes transformações sociais dos tempos modernos, de modo que seus diversos problemas de forma, nada mais são que reflexos dessas transformações sócio-históricas. 50 A Letra Escarlate traz, em seu enredo, uma interpretação dos processos históricos e sociais que ganharam vida nos primeiros anos da formação da sociedade norte-americana. 51 De Lukács, do período em que escreveu A Teoria do Romance (1915-1916). 50 4 A LETRA ESCARLATE: UM ROMANCE HISTÓRICO A Letra Escarlate é mais uma leitura da condição e da existência humana, em um momento histórico particular: o do contexto puritano da Nova Inglaterra52 do século XVII e XVIII. Tanto para Lukács quanto para Hawthorne ―o romance revela mais uma etapa do interminável itinerário espiritual do ser humano, no qual se perfilam os seus dilemas e as suas antinomias que o cercam‖ (LUKÁCS, 2000, p.28). Em The Cliffs Notes on The Scarlet Letter (1946, p.7), Susan Van Kirk, compartilhando a temática acerca de Salem, acrescenta: a névoa de imaginação que cai sobre Salem, Massachusetts, na descrição de Hawthorne é a mesma aura que permeia o cenário de seu romance. Quando procuramos pela Boston de 1640 em livros de história, não conseguimos encontrar os elementos mágicos e góticos que transbordam da história de Hawthorne. A mente de Hawhtorne criou uma Boston que está envolta por escuridão e mistério e cercada por uma floresta de sol e sombra. Segundo Margaret Drabble, em The Oxford Companion to English Literature (1998), ―Hawthorne é, há muito reconhecido, um dos maiores escritores americanos […] preocupado com o mistério do pecado, o paradoxo de seu poder regenerativo e a compensação pelo sofrimento e crime não merecidos‖ (p.44). Hawthorne não fez uso do cenário contextualizado de Salem por mero acaso. Podemos ver que ele lança mão dos acontecimentos anteriores à publicação de sua obra para ali localizar, por exemplo, Ester Prynne, mulher fora de seu tempo. De acordo com Oscar Pilagallo53, no artigo Nathaniel Hawthorne, o criador de um passado (2007), trata-se, na realidade, de uma crítica aos valores da época: Ester é uma mulher forte que se recusa a revelar o nome do amante, um religioso de prestígio na comunidade. É importante lembrar também que, segundo Hutcheon (1991), a história – em um romance – pode ser entendida como um movimento que contesta os princípios da ideologia dominante, dependendo do ponto de vista de quem a conta, propondo sempre uma nova perspectiva e interpretação dos fatos. Desse modo, fica evidente a mensagem de que a história não apenas pode deixar claro o discurso dominante, mas permeia todos os outros discursos 52 Segundo Cowley (1965), um dos temas mais importantes em Hawthorne é o esforço consciente que ele adota a fim de no levar para o centro da Nova Inglaterra, exatamente como Walter Scott o fez com sua terra Natal. 53 In: Caderno Entrelivros 3: Panorama da Literatura Americana (2007, p. 21) 51 marginais a ele, como que determinando sua existência e estabelecendo paralelos para sua possível compreensão. O romance histórico é um desses discursos54. 4.1 O EDIFÍCIO DA ALFÂNDEGA: MARCAS DE UMA HISTÓRIA Ensaísta e romancista americano, Nathaniel Hawthorne é, sem dúvida, o escritor mais universal de sua geração. Ligado ao movimento transcendentalista, ele é sobretudo, um romântico, cuja obra faz reviver, através de suas lembranças pessoais e das tradições da terra natal, o passado da Nova Inglaterra. A este respeito, ele é uma espécie de Walter Scott americano (KRÄHENBUHL, 1987, QUARTA CAPA). A introdução de A Letra Escarlate – intitulada ―O Edifício da Alfândega‖ – nos apresenta três anos de serviços prestados por Nathaniel Hawthorne como inspetor daquele prédio. ―Apanho o público a queima-roupa e lhe venho contar o resultado de minha experiência durante três anos numa alfândega‖ (HAWTHORNE, 1993, p.17) [I again seize the public by the button, and talk of my three years‘ experience in a Custom House (HAWTHORNE, 1999, p.1)]. . Nesse importante ensaio sobre a vida em um importante prédio público de Salem, Hawthorne registra o modo como lhe surgiram os rascunhos históricos para o seu mais famoso enredo. Tendo sido exonerado de seu cargo por forças políticas – um novo presidente chegara ao governo americano –, ele teve que voltar para casa e, no ambiente de seu quarto, encontrou tempo mais que suficiente para escrever A Letra Escarlate. Hawthorne começa a sua nota introdutória, de preparação para leitura de seu romance, descrevendo aquele importante prédio de Salem: Em minha cidade natal de Salem, na extremidade da qual, meio século atrás, nos tempos do velho King Derby, se estendia um cais muito movimentado – mas que hoje está pejado apenas de armazéns de mercadorias, de madeira carunchosa, e pouco, ou nenhum sintoma apresenta de vida comercial; excetuando acaso alguma barcaça ou brigue descarregando peles a meio de sua melancólica extensão (...) aqui ergue-se um espaçoso edifício de tijolos, desde as janelas fronteiras do qual a vista se desdobra por este não muito encantador panorama, e para além dele, pelas águas do porto‘ (HAWTHORNE, 1993, p.18). 54 Hutcheon utiliza o termo ‗metaficção historiográfica‘ para fazer referência à análise da narrativa em romances – ainda que romances modernos, do final do século XX – de teor auto-reflexivo e, ao mesmo tempo, que se aproximam de acontecimentos históricos, o que também pode se aplicar à obra de Hawthorne: ―[...] a metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios – literatura, história, teoria –, ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas [...] passa a ser a base para seu repensar e para sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado‖ (p. 22). A metaficção, portanto, se aproveita de verdades e mentiras do registro histórico e a verdadeira questão está em como faz uso de tais dados, privilegiando múltiplos pontos de vista ou narradores declaradamente onipotentes. Pode ser considerada como uma forma de problematização de registros historicamente postulados como corretos. 52 [In my native town of Salem, at the head of what, half a century ago, in the days of old King Derby, was a bustling wharf—but which is now burdened with decayed wooden warehouses, and exhibits few or no symptoms of commercial life; except, perhaps, a bark or brig, half-way down its melancholy length (…) here, with a view from its front windows adown this not very enlivening prospect, and thence across the harbour, stands a spacious edifice of brick]. O comércio marítimo estava diminuindo em meados do século XVIII e havia muitas razões para justificar a falta de movimento em seu lugar de trabalho. A tranquilidade exibida pelo narrador ao escrever seu texto se confunde com ambiente tranquilo daquele prédio que já dava sinais de desgaste pelo tempo. A afetividade que Hawthorne sentia por aquele lugar é descrita em longas passagens, apesar de ter passado um bom período de tempo de sua existência longe dele. Esta velha cidade de Salem – minha terra natal, apesar de eu ter vivido muito tempo longe dela, tanto na minha juventude como na minha idade madura – possui um cantinho de minha afeição, intensidade da qual nunca me foi possível manifestar durante os períodos em que nela residi. (...) pelo que respeita seu aspecto físico, com sua superfície plana, monótona, revestidas principalmente de casas de madeira (...) há dentro de mim um sentimento pela velha Salem (...) devo contentar-me em denominar afeto. (HAWTHORNE, 1993, p.21). [This old town of Salem—my native place, though I have dwelt much away from it both in boyhood and maturer years—possesses, or did possess, a hold on my affection, the force of which I have never realized during my seasons of actual residence here (…) so far as its physical aspect is concerned, with its flat, unvaried surface, covered chiefly with wooden houses (…)there is within me a feeling for Old Salem, which, in lack of a better phrase, I must be content to call affection (HAWTHORNE, 1999, p. 5)]. Hawthorne passa grande parte da introdução de A letra Escarlate discutindo a respeito da postura de companheiros, trabalhadores daquela repartição55. Na verdade, o que ele realmente faz é nos levar para uma viagem no tempo e na história de Salem. Embora aqueles homens pareçam ainda existir, o mundo em que eles vivem é o mundo do passado, o mundo da memória de Hawthorne. Ele lembra o compartilhar de histórias de tempos mais antigos e dos jantares que ofereceu, além de conversas sobre baionetas e sobre o forte Erie. Ao lermos ―O edifício da Alfândega‖ acompanhamos, com clareza, aspectos da vida real da Salem de Hawthorne e de seus ancestrais. Entretanto, no dizer do próprio autor, há uma invenção por ele articulada na história, a fim de alindar alguns fatos – que é próprio de romancistas. Hawthorne é cuidadoso em dizer o método que ele utilizou na construção do romance em questão: 55 Ele nos introduz a alguns dos veneráveis senhores que ali trabalhavam e que estavam sob seu comando. 53 não se pense que, na confecção da novela e na ideação dos motivos e expressões de paixão por que se deixaram influir as personagens que nela figuram, me contive dentro dos limites da meia dúzia de folhas de papel almaço do velho superintendente. Pelo contrário, em muitos pontos tomei a liberdade de alindar os fatos, como se estes fossem produto de minha invenção. Uma coisa garanto apenas: a autenticidade das linhas gerais (HAWTHORNE, 1993, p.41). [I must not be understood affirming that, in the dressing up of the tale, and imagining the motives and modes of passion that influenced the characters who figure in it, I have invariably confined myself within the limits of the old Surveyor‘s half-a-dozen sheets of foolscap. On the contrary, I have allowed myself, as to such points, nearly, or altogether, as much license as if the facts had been entirely of my own invention. What I contend for is the authenticity of the outline (HAWTHORNE, 1999, p. 28)]. Hawthorne, como ficcionista56, garante a autenticidade dos fatos. Ele toma como ponto de partida a ideia de que o passado histórico de Salem não pode ser deixado de lado. Entretanto, para que se possa tratar de episódios que dizem respeito ao período e à temática por ele abordados, ele se permite para um melhor entendimento dos fatos por ele retratados, acrescentar uma porção de ornamentos, como se dentro de uma moldura interna – os fatos da Nova Inglaterra da era colonial, descritos pelos historiadores – houvesse uma moldura externa – a sua imaginação –, na qual ele retrata as suas verdades, conforme a liberdade de sua pena. Salem era a sua cidade natal e, como ele mesmo diz, ele havia estado fora algumas vezes antes de ser apontado como uma espécie de agrimensor da receita (1846 – 1849). Hawthorne ocupou esse cargo até 1848 quando foi substituído, por ordem do presidente eleito Zachary Taylor, em 1848. Esse trabalho na alfândega foi importante e necessário, pois aconteceu logo após o seu período de experiência na ―Brook Farm‖, no início daquela mesma década. Foi principalmente este estranho, indolente e enfadonho apego a meu torrão natal que, depois de minha saída do velho presbitério, me levou a ocupar um lugar no edifício de tijolos do Tio Sam (...) assim, certa manhã, subi o lance de degraus de granito, levando no bolso o documento de minha nomeação assinado pelo presidente da república, e fui apresentado à turma e cavalheiros que deviam ajudar-me a suportar o peso da responsabilidade, como diretor dos serviços executivos da alfândega (HAWHTORNE, 1993, p.24). 56 Apesar de todas as citações de Nathaniel Hawthorne – alistadas neste capítulo em relação ao material por ele achado no edifício da alfândega –, não podemos tomar como verídicas tais assertivas. Pelo que entendemos, tal fato não é importante para concebermos a ideia do romance como sendo histórico. Para nós, ainda que ele tivesse partido de um ponto verídico, no sentido factual do termo, se a sua concepção de mundo – de sociedade juntamente como suas tendências históricas – não estivesse adequada ao momento retratado, A Letra Escarlate jamais seria um romance histórico. É necessário dizer que há romances que tem toda caracterização, desde a vestimenta das personagens à configuração espacial em relação ao passado, mas que é simplesmente uma projeção do presente do romancista no passado. Desse modo, da mesma forma que essa aparência não é suficiente, a remissão de dados factuais também não o é. Queremos dizer que mesmo que o romancista tivesse encontrado os documentos históricos reais, esses não representariam as chaves para afirmar um romance como sendo histórico, na medida em que o entendendemos e no modo como o exporemos nos capítulos seguintes. 54 [On emerging from the Old Manse, it was chiefly this strange, indolent, unjoyous attachment for my native town that brought me to fill a place in Uncle Sam‘s brick edifice (…) So, one fine morning I ascended the flight of granite steps, with the President‘s commission in my pocket, and was introduced to the corps of gentlemen who were to aid me in my weighty responsibility as chief executive officer of the Custom-House (HAWTHORNE, 1999, p. 9)]. Embora não seja dito pelo narrador, as suas referências em relação à Salem vão até os seus pioneiros – fundadores daquela cidade –, dentre os quais estão William e John Hawthorne, parentes próximos e líderes em Salem. William, bisavô de Hawthorne, foi soldado, chegou a ser legislador e juiz, pisou naquele lugar pela primeira vez em 1630. John, avô de Nathaniel Hawthorne, herdou o espírito de perseguição de seu pai, William, e foi o juiz no famoso tribunal que caçou às famosas bruxas de Salem em 1692. Desse peso, Hawthorne quer se ver livre e registra que a escritura de seu livro é uma espécie de expiação de culpa que pode lhe estar imputada como se por alguma espécie de maldição: Não sei se esses meus antepassados cogitaram algum dia se arrepender e pedir perdão ao céu das muitas crueldades que praticaram, ou se ainda estarão gemendo sob as pesadas consequências das mesmas numa outra vida. Seja como for, eu, o presente escritor, como representante deles, tenho vergonha de mim mesmo pelos bárbaros feitos por eles praticados, e peço para que todas as maldições em que tenham incorrido sejam de mim afastadas agora e sempre – pois sempre ouvi dizer que elas passam de geração em geração (HAWTHORNE, 1993, p.22). [I know not whether these ancestors of mine bethought themselves to repent, and ask pardon of Heaven for their cruelties; or whether they are now groaning under the heavy consequences of them in another state of being. At all events, I, the present writer, as their representative, hereby take shame upon myself for their sakes, and pray that any curse incurred by them—as I have heard, and as the dreary and unprosperous condition of the race, for many a long year back, would argue to exist—may be now and henceforth removed (HAWTHORNE, 1999, p. 7)]. Quando Hawthorne conta, no final deste capítulo introdutório, que ele havia descoberto por acidente uma letra ―A‖, desbotada, e alguns documentos contando a história de uma tal Ester Prynne, nós estávamos sendo preparados para algo que Nathaniel nos reportaria como sendo verdadeiro, real. Pelo que podemos entender, a partir desse ponto, queria Hawthorne que todos estivessem prontos para entender aquela letra escarlate e toda a história que a envolve. Mas o objeto que mais me chamou atenção, no misterioso embrulho, foi um pedaço de pano vermelho, poído e desbotado. Havia em volta dele vestígios de bordados de ouro, muito gastos e deteriorado, de sorte que, do primitivo brilho, pouco ou nada se restava. Era fácil de perceber que fora trabalhado com notável perícia; e o ponto dava mostras de uma arte agora esquecida [...] Este farrapo de tecido escarlate – pois 55 o tempo e o uso e a sacrílega traça o reduziram a pouco mais que farrapo – a um exame atento, assumia a forma de uma letra: a letra maiúscula A [...] era o motivo de ornamentação do vestuário (HAWHTORNE, 1993, p.39). [But the object that most drew my attention to the mysterious package was a certain affair of fine red cloth, much worn and faded. There were traces about it of gold embroidery, which, however, was greatly frayed and defaced, so that none, or very little, of the glitter was left. It had been wrought, as was easy to perceive, with wonderful skill of needlework; and the stitch gives evidence of a now forgotten art (…) This rag of scarlet cloth—for time, and wear, and a sacrilegious moth had reduced it to little other than a rag—on careful examination, assumed the shape of a letter. It was the capital letter A. (…) There could be no doubt, as an ornamental article of dress (HAWTHORNE, 1999, p. 7)]. A declaração acima ilustra como Hawthorne consegue facilmente transformar em arte algo que parece simples. Ele nos leva para um mundo imaginário e acende a nossa curiosidade. Ele insiste em que não duvidemos dele, pois o que ele descobriu é tão velho quanto a sua antiga Salem. A série de qualificações, um recurso por ele muito utilizado, permite ao narrador caminhar do fatalmente provável para o imaginável. Para reforçar a ilusão da descoberta, ele acrescenta que os ―documentos‖ estavam na mão de um superintendente chamado Pue57, um homem que ajudou a conservar o seu cargo naquele lugar. É desses documentos que sai o eixo intrigante do seu romance. Eram documentos não oficiais, mas de caráter privado ou, quando menos, escritos em sua privada capacidade e por sua própria mão, segundo as aparências. A única explicação viável para explicar a existência do manuscrito no montão de velha papelada da Alfândega afigurou-se-me ter sido a morte imprevista do Sr. Pue. Os papéis, naturalmente guardados em sua escrivaninha, nunca devem ter chegado ao conhecimento dos herdeiros, ou então supõe-se estariam relacionados com os assuntos da renda. Quando os arquivos foram transferidos para Halifax, este embrulho, provando-se não conter matéria de interesse público, foi posto de lado e, desde então ninguém mais lhe pôs os olhos em cima (HAWTHORNE, 1993, p.39). [They were documents, in short, not official, but of a private nature, or, at least, written in his private capacity, and apparently with his own hand. I could account for their being included in the heap of Custom-House lumber only by the fact that Mr. Pine‘s death had happened suddenly, and that these papers, which he probably kept in his official desk, had never come to the knowledge of his heirs, or were supposed to relate to the business of the revenue. On the transfer of the archives to Halifax, this package, proving to be of no public concern, was left behind, and had remained ever since unopened (HAWTHORNE, 1999, p. 26)]. O que o senhor Pue não relata, Hawthorne complementa criando dados às possíveis circunstâncias. Quando ele deixa aquele cargo que a cada dia se tornava mais e mais embrutecedor, ele se vê livre para relatar o que teria sido o encontro dele com o fantasma do 57 O superintendente Pue é citado no capitulo que encerra o romance, em que o narrador explica que ele havia feito investigações sobre a vida de Ester e as consequências de seu ‗pecado‘ (HAWTHORNE, 1993, p.220). 56 velho Pue em algum lugar empoeirado e escuro daquele lugar. Segundo o autor de A Letra Escarlate, O antigo superintendente parece ter dedicado algumas muitas horas de lazer a investigações de interesse local, como um antiquário, e a outras pesquisas de caráter idêntico. Estas forneceram elementos para insignificante atividade a um espírito que, de outra maneira, teria sido corroído pela ferrugem. Muitos desses materiais, diga-se entre parênteses, prestaram-me relevantes serviços na confecção da narrativa (HAWTHORNE, 1993, p.39). [The ancient Surveyor — being little molested, suppose, at that early day with business pertaining to his office — seems to have devoted some of his many leisure hours to researches as a local antiquarian, and other inquisitions of a similar nature. These supplied material for petty activity to a mind that would otherwise have been eaten up with rust (HAWTHORNE, 1999, p. 26)]. Hawthorne, narrando mais como se fosse um contador de histórias, e não como um descendente dos perseguidores das bruxas de Salem, menciona que a sua preocupação literária não tinha importância para ele, uma vez que ele estava imerso naquele momento em um papel especial: o de cidadão comum daquela comunidade, exercendo a sua cidadania. Ao misturar possíveis fatos à ficção em seu texto, ele quer insinuar que o que ele escreve é pertinente a história de Salem, na Nova Inglaterra. Mas, como já expusemos em nota anterior, tal insistência de Hawthorne não pode justificar o seu romance como histórico. Absorvido na contemplação da letra escarlate, deixara de examinar um pequeno rolo de papel escuro, a que ela servia de invólucro. Abri-o e tive o prazer de encontrar uma explicação razoavelmente completa do assunto, redigida pelo velho superintendente, numas quantas folhas de papel almaço recheadas de pormenores sobre a vida de uma certa Ester Prynne, que parece ter sido personagem digna de nota na opinião de nossos antepassados (HAWTHORNE, 1993, p.40). [In the absorbing contemplation of the scarlet letter, I had hitherto neglected to examine a small roll of dingy paper, around which it had been twisted. This I now opened, and had the satisfaction to find recorded by the old Surveyor‘s pen, a reasonably complete explanation of the whole affair. There were several foolscap sheets, containing many particulars respecting the life and conversation of one Hester Prynne, who appeared to have been rather a noteworthy personage in the view of our ancestors (HAWTHORNE, 1999, p. 2 7)]. Agora a sala de estar da casa de Hawthorne tornar-se-á o território neutro no qual o mundo real e o mundo da imaginação se encontrarão e cada um deles se valerá e misturará com a natureza do outro. Do material que ele diz ter encontrado, ele traz a chave de seu romance. Segundo ele, havia sido escrito sobre uma ―real‖ Ester Prynne naquele material por ele colhido, 57 viveu ela no período que medeia entre os primeiros tempos de Massachusetts e o final do século XVII. Pessoas idosos, contemporâneas ainda do senhor superintendente Pue, e de cujo depoimento oral ele extraiu os elementos da narrativa, lembravam-se de a ter conhecido, quando jovens, como uma mulher de muita idade, mas não decrépita, de porte altivo e solene. Era seu hábito, desde tempos quase imemoriais, percorrer a região como uma espécie de enfermeira voluntária e de praticar todo o bem que podia, indiscriminadamente; assumindo igualmente a missão de conselheira em toda a espécie de assuntos, especialmente nos do coração, tornando-se, desse modo, alvo de respeito e respeito por parte de muita gente (HAWTHORNE, 1993, p.40). [She had flourished during the period between the early days of Massachusetts and the close of the seventeenth century. Aged persons, alive in the time of Mr. Surveyor Pue, and from whose oral testimony he had made up his narrative, remembered her, in their youth, as a very old, but not decrepit woman, of a stately and solemn aspect. It had been her habit, from an almost immemorial date, to go about the country as a kind of voluntary nurse, and doing whatever miscellaneous good she might; taking upon herself, likewise, to give advice in all matters, especially those of the heart, by which means—]as a person of such propensities inevitably mus t— she gained from many people the reverence due to an angel (HAWTHORNE, 1999, p. 28)]. Enquanto esse preâmbulo parece cobrir boa parte dos diferentes aspectos da vida de Hawthorne – especialmente o real e o imaginário – ele unifica-se quase que completamente na pessoa do narrador. Pode-se ver, claramente, que Hawthorne é um autor que se vale em suas histórias de referências a eventos e a lugares reais deste mundo real – como o fazem muitos escritores em todas as épocas. De alguma maneira esse caminho traz o aspecto de verossimilhança à obra e dá ao artista uma grande possibilidade de criação que facilmente se passa como histórico e, portanto, verdadeiro. Então, quando Hawthorne diz que escreverá uma história baseado nos documentos de um homem do século passado – ainda que seja impossível de provar tal argumento – que, por sua vez, havia perscrutado todo aquele século, os eventos não são apenas reforçados pela letra escarlate, mas ao leitor é dado um ponto de partida. Nesse passo, Hawthorne registra que a boa parte do que está ali escrito é parte de sua imaginação, mas garante que o caso amoroso, o marido ―demoníaco‖, a morte do amante e a letra escarlate no peito de Ester são eventos puramente verdadeiros – querendo nos provar que o assunto por ele trazido no romance, portanto, se trata de uma matéria de extração histórica. Para reforçar ainda mais o caráter imaginativo do autor, ele relata ter tido, como se fosse, um encontro com o espectro do velho superintendente. O fantasma imaginário de Pue, que pede para que a história seja escrita, exige além de relatos casuais, que ele se lembre de seus antecessores puritanos: ―apenas te recomendo, no que se refere à velha matrona Ester Prynne, atribui às memórias de teu predecessor o crédito a que ele tem jus!‖ (HAWTHORNE, 1993, p.41). [But I charge you, in this matter of Old Mstress Prynne, give to your 58 predecessor´s memory the credit which will be rightfully its due (HAWTHORNE, 1999, p.29)]! Para muitos, ―O edifício da Alfândega‖ parece sem importância. Mas, a Salem antiga – com suas supostas bruxas, a Alfândega, a Bíblia e a espada da moralidade com seus habitantes –, parece realmente sombria. De qualquer maneira, os relatos encontrados em ―O edifício da Alfândega‖ podem atestar tais fatos. É por esses motivos que, segundo James (1966): Hawthorne tem a importância de ser a mais bela e mais eminente figura representativa da literatura da Nova Inglaterra. A importância dessa literatura pode ser questionada, mas, no campo das Letras, ele é o mais valioso exemplo do gênio americano (p.15). Seguiremos apresentando as razões que fizeram – e fazem – de A Letra Escarlate um romance genuinamente histórico. 4.2 CARACTERÍSICAS DE ROMANCE HISTÓRICO EM A LETRA ESCARLATE Dentre as características em A Letra Escarlate que apontam para o caráter histórico de suas linhas, arrolamos algumas delas a fim de justificar as nossas pressuposições, a partir do que Lukács expõe em O Romance Historico. Entre as muitas que encontramos, podemos citar, por exemplo, a presença do caráter popular das personagens no enredo do romance, juntamente com o fato de elas estarem diretamente ligadas à vida do povo. Quando lemos o texto, percebemos que claramente tanto Ester quanto Dimmesdale faziam parte da vida social de Salem. Um com o dever de propagar a mensagem do evangelho puritano entre as comunidades, por exemplo, e o outro em ser participante, juntamente com os demais moradores, das reuniões que eram ministradas diariamente nas igrejas da região. Com relação ao jovem teólogo, podemos apresentar o fato de que, segundo os moradores de Salem, o reverendo Mestre Dimmesdale havia ficado horrorizado, ao constar-lhe que em meio de sua congregação tivesse surgido tamanho escândalo (HAWTHORNE, 1993, p.54) [‗People say‘. Saind another, ‗that the Reverend Master Dimmesdale, her Godly pastor, takes it very grievously to heart that such a scandal should have come upon his congregation (HAWTHORNE, 1999, p.45)]. Isso demonstra o conhecimento que tinham a seu respeito e o grau de sua popularidade entre os seus concidadãos. Quanto a Ester, os que antes a conheciam 59 e esperavam contemplá-la velada, entenebrecida por uma nuvem desdita, mas quedaram-se admirados, e estremeceram ao reparar na fulgurância de sua formosura (HAWTHORNE, 1993, p.56) [The Young woman was tal, with a figure of perfect elegance on a large scale (HAWTHORNE, 1999, p.46)]. Da parte de Chillingworth, o traço popular no seu caráter se dava pelo fato de ele ser médico e de prestar sagrado serviço para todos em Salem. Conheciam-no agora como homem de saber [...] ouviam-no falar de Kenelm Digby, e de outros homens famosos – cujas descobertas científicas eram reputadas por pouco menos que sobrenaturais –, como de seus companheiros ou associados. Mas se tão elevada era sua categoria no mundo da ciência, como viera ali parar? Que podia ele, homem de vastas relações nas grandes cidades, andar esquadrinhando na selva? Em reposta a esta pergunta, formou-se o boato – apesar de absurdo, espalhado por muita gente – de que o céu operara um milagre, transportando um eminente doutor em medicina, desde uma universidade alemã, pelo ar, em corpo e alma, e o colocara à porta do gabinete de estudo de Dimmesdale! (HAWTHORNE, 1993, p.107). [He was now known to be a man of skill (…) He was heard to speak of Sir Kenelm Digby and other famous men — whose scientific attainments were esteemed hardly less than supernatural—as having been his correspondents or associates. Why, with such rank in the learned world, had he come hither? What, could he, whose sphere was in great cities, be seeking in the wilderness? In answer to this query, a rumour gained ground—and however absurd, was entertained by some very sensible people—that Heaven had wrought an absolute miracle, by transporting an eminent Doctor of Physic from a German university bodily through the air and setting him down at the door of Mr. Dimmesdale‘s study! (HAWTHORNE, 1999, p. 107)]. Pode-se ver que o mundo apresentado no romance é consequência das interações entre homens e a unidade do ser social, que, certamente, é o princípio dominante em A Letra Escarlate. É bom perceber que o modo como A letra Escarlate é composta também acende uma poderosa luz em relação ao romance considerado como histórico quando, em seu enredo, as grandes personagens históricas ali presentes – representações políticas e os líderes religiosos da época em especial – são, do ponto de vista da trama naquele contexto, apenas figuras coadjuvantes. Os seus papeis, entretanto, são por demais importantes pois eles posicionam o romance em um quadro historicamente nítido e cristalino. Tais personagens – também consideradas no romance histórico como secundárias – na concepção de Lukács (2011), ganham destaque exatamente porque não seguimos suas vidas passo a passo, porque vemos delas apenas os momentos em que elas são importantes. Em A Letra Escarlate eles representam os poderes na sociedade de Salem – como o reverendo Wilson58, o governador Bellingham59 e John Winthrop, por exemplo – que ganham destaque 58 Segundo Aptheker (1967), John Wilson (1591 – 1667) foi um ministro congregacional que veio para a colônia de Massachusetts em 1630. A descrição que lhes é dada no capitulo III de A letra Escarlate é interpretativa, 60 porque o olhar do leitor deve seguir os eventos que formam a teia narrativa da obra, a história, isto é, nesse sentido eles fazem com que a prioridade seja dada às tendências sociais do desenvolvimento do lugar em meio à crise histórica local a qual o romance expõe (LUKÁCS, 2011). Senão vejamos a força da presença deles na cena em que Ester é exposta ao público: mesmo que se tivesse manifestado uma disposição para levar o caso [...] ela teria sido reprimida e sufocada pela solene presença de homens não menos qualificados que o gevernador e muitos de seus conselheiros, um juiz, um general e os ministros do culto da cidade; todos eles se encontravam sentados ou de pé, numa sacada do templo, por cima da plataforma. Quando tais personagens podiam fazer parte de um espetáculo, sem arriscarem a dignidade ou o respeito do cargo e da posição social, isso significava, sem sombra de dúvida, que a imposição de uma sentença legal se revestia de um significado muito sério e de graves consequências (HAWTHORNE, 1993, p.58-59). [Even had there been a disposition to turn the matter into ridicule, it must have been repressed and overpowered by the solemn presence of men no less dignified than the governor, and several of his counsellors, a judge, a general, and the ministers of the town, all of whom sat or stood in a balcony of the meeting-house, looking down upon the platform. When such personages could constitute a part of the spectacle, without risking the majesty, or reverence of rank and office, it was safely to be inferred that the infliction of a legal sentence would have an earnest and effectual meaning (HAWTHORNE, 1999, p. 50)]. A presença delas é sempre suficiente no enredo do romance e elas agem de modo historicamente grandioso – o que se deve à profundidade de entendimento de Hawthorne a cerca do período histórico em que viveu e do mundo dos seus antepassados. Outro ponto importante a se considerar em A Letra Escarlate é o de que também não há pedestais românticos60 para os seus personagens. Elas são retratadas como pessoas dotadas de virtudes, mas de fraquezas também, de boas e más qualidades. Ester é apresentada no começo do romance como uma ignomínia para todos em Salem por causa de seu erro. Mas, é bem verdade que na medida em que o enredo avança, percebe-se claramente que o caráter de Ester entretanto, a descrição ali encontrada confere com comentários feitos com Cotton Mather em sua famosa Magnalia Christie daquele mesmo período. 59 Inglês, nascido em Londres, veio para Boston em 1634 e se tornou governador da colônia (Ibid.). 60 Assim como aparece em um quadro de Delacroix (1798 – 1863) – uma mulher, carregando a bandeira tricolor da Revolução francesa em uma mão e um mosquete com baioneta na outra – representando a Liberdade e guiando o povo por cima de corpos de derrotados. A pintura é talvez a obra mais conhecida de artista, em comemoração à revolução de Julho de 1830, com a queda de Carlos X. No momento em que Delacroix pintou o quadro, ele já era o líder reconhecido na escola pintura francesa. Delacroix, que nasceu no período do Iluminismo, foi dando lugar às ideias e estilo do romantismo em suas pinturas. No quadro ele retratou a Liberdade, tanto como figura alegórica de uma deusa como uma mulher do povo. O monte de cadáveres atua como uma espécie de pedestal de onde a Liberdade passa descalça e com os seios nus, aos olhos dos espectadores – que são representações das várias classes sociais que haviam se formado na França. Ester seria uma espécie de representante dessa liberdade na América, no sentido em que ela desafia seus concidadãos a, de forma explícita, ter uma postura de enfrentamento em relação aos poderes instituídos em Salem. 61 é de uma força incomum entre aqueles que moram em Salem e eles começam a reconhecer esse fato, ainda que após anos de enfrentamento. Ester Prynne não ocupava agora precisamente a mesma posição em que a vimos durante os primeiros anos de sua ignomínia. O tempo seguiu seu curso [...] com a letra escarlate sobre o peito, reluzindo em sua fantasiosa dobradura, tornara-se familiar aos habitantes da cidade (HAWTHORNE, 1993, p.137). [Hester Prynne did not now occupy precisely the same position in which we beheld her during the earlier periods of her ignominy. Years had come and gone. Pearl was now seven years old. Her mother, with the scarlet letter on her breast, glittering in its fantastic embroidery, had long been a familiar object to the townspeople (HAWTHORNE, 1999, p. 143-144)]. As personagens em A Letra Escarlate vivem plenamente a vida como seres humanos, expostos a ação de todas as suas qualidades, tanto as grandiosas quanto as mesquinhas. A expressão de suas personalidades pode atingir um desdobramento pleno, mas apenas na medida em que essa personalidade está ligada aos grandes eventos da história. No caso pudemos comprovar que Chillingworth sofreu com os indígenas, Pérola sempre viveu afastada de outras crianças – que não queriam com ela conviver – e Dimmesdale, apesar de ser um cidadão tomado por grandes ensinamentos, sofre com sua atitude inesperada. As principais personagens em um romance histórico, segundo Lukács (2011), também são vistas como partidos, como representantes de uma das muitas classes e camadas em conflito. Nesse ponto, Artur Dimmesdale pode, tranquilamente representar o lado dos puritanos, da religião, da fé, enquanto que Rogério Chillingworth, pode representar a ciência, o lado cético ameaçador do puritanismo. Ester é uma figura do povo e Pérola seria uma personagem que representaria o possível futuro de Salem (HAWTHORNE, 1963). Desse modo, além de cumprir sua função de destaque e coroamento do mundo ficcional, elas também tornam direta ou indiretamente visíveis os traços gerais – progressistas ou não – de toda a sociedade da época. Elas são, de alguma maneira, figuras representativas da universalidade dos personagens no romance. Hawthorne deixa que as grandes qualidades humanas, assim como os vícios e as limitações de seus heróis, brotem do solo histórico de Salem, claramente configurados nos seus papeis. Os heróis nos familiarizam com as peculiaridades históricas da vida psicológica de sua época, mas não por meio da análise ou da explicação psicológica de seus conteúdos mentais e sim pela ampla figuração de seu ser, historicamente situados e pela demonstração de como as suas ideias, seus sentimentos e seus modos de agir crescem a partir da ideologia local – do seio social de Salem. 62 O maciço de verdura que se estende diante do cárcere, numa certa manhã de verão, dois séculos atrás pelo menos, era ocupado por um razoável número de habitantes de Boston, todos de olhos cravados na pesada porta de carvalho guarnecida de ferragens. Entre qualquer outra população, ou num período mais recente da história da Nova Inglaterra, a soturna rigidez que petrificava as barbudas fisionomias daquela boa gente auguraria que algum temeroso acontecimento estava presete a rebentar (HAWTHORNE, 1993, p.53). [The grass-plot before the jail, in Prison Lane, on a certain summer morning, not less than two centuries ago, was occupied by a pretty large number of the inhabitants of Boston, all with their eyes intently fastened on the ironclamped oaken door. Amongst any other population, or at a later period in the history of New England, the grim rigidity that petrified the bearded physiognomies of these good people would have augured some awful business in hand (HAWTHORNE, 1999, p. 43)]. No romance A Letra Escarlate, Hawthorne apresenta a história de Salem através de um momento de crise. Na revivificação do passado como pré-história do presente, na vivificação ficcional daquelas forças históricas – impostas pelo puritanismo –, sociais e humanas que, no longo desenvolvimento da vida, conformaram-na e tornaram-na aquilo que ela é, aquilo que viveram. O grande objetivo ficcional de Hawthorne, ao figurar a crise histórica pela qual Salem passou é, portanto, o de mostrar a grandeza humana que se desnuda em seus representantes significativos a partir da comoção de toda a vida da comunidade, ao mesmo tempo em que expõe as consequências causadas pelos dogmas dos colonizadores daquela região. Uma das grandes contribuições de Hawthorne surge da forma de como ele não dispensa a grandiosa implacabilidade de Salem para com filhos. O que fica claro é uma interação complexa de circunstâncias históricas em seu processo de formação, em sua interação com homens concretos, que crescem nessas circunstâncias e são influenciados por elas de formas muito diferentes, e que atuam individualmente, de acordo com suas paixões pessoais. Em Salem, as matronas seguem a passos rápidos em direção ao pelourinho a fim de testemunhar tamanho ato de desumano agravo contra uma senhora, por exemplo (HAWTHORNE, 1993). A avidez com que elas se comportam revelam prontamente o incômodo produzido pelas leis em Salem. A pena aplicada em Ester é uma demonstração clara de que a história na Nova Inglaterra estava sendo marcada por equívocos de envergaduras e de repercussões sociais. A intensidade em que vivem prova a tensão existente no cotidiano de seus moradores. Pelo que podemos constatar há em Salem uma espécie de ―crise controlada‖. É bom registrar que os destinos dos personagens no romance estudado jamais são figurados de modo independente, isolados, mas sempre no contexto de uma crise geral da vida 63 em comunidade. E o que eles passam, de alguma maneira, deve afetar diretamente toda a comunidade. Pelo que fique claro que, com respeito ao reconhecimento da historicidade de um elemento ficcionalmente representado, torna-se indispensável que o acontecimento – como no caso do adultério na referida obra em estudo – somente seja considerado verdadeiramente histórico quando o mesmo reverbera para além da trajetória individual e familiar da personagem principal – nesse caso, a de Ester. Daí haver um postulado de que deve haver intima ligação entre o destino do protagonista e o da comunidade de que ele faz parte, com todas as amplificações e ramificações possíveis (BASTOS, 2007). A passagem abaixo, por exemplo, pode comprovar tranquilamente a amplificação do fato em toda a comunidade de Salem, nos apresentada logo nas primeiras páginas do romance. Circunstância digna de nota, na manhã estival em que tem início as nossa história, é que as mulheres, de que havia um número respeitável naquela mó humana, parecia estarem peculiarmente interessadas na pena que se esperava ia ser aplicada, fosse ela qual fosse. As condições sócias da época não se mostravam ainda requintadas ao ponto de se estranhar que dignas matronas, portadoras de saias de balão e ancas postiças, deixando o santuário de suas residências, se aventurassem a passear pelas vias públicas toda a imponência de suas importantes pessoas e furar caminho por entre a compacta multidão, a fim de estacionarem bem perto da plataforma patibular onde teria lugar a execução (HAWTHORNE, 1993, p.54). [It was a circumstance to be noted on the summer morning when our story begins its course, that the women, of whom there were several in the crowd, appeared to take a peculiar interest in whatever penal infliction might be expected to ensue. The age had not so much refinement, that any sense of impropriety restrained the wearers of petticoat and farthingale from stepping forth into the public ways, and wedging their not unsubstantial persons, if occasion were, into the throng nearest to the scaffold at an execution (HAWTHORNE, 1999, p.44)]. Esse mesmo sentido é reforçado na passagem abaixo: multidão de homens Barbados, trajando vestes de cor sombria, a cabeça coberta por chapéus cinzentos em forma de canudo, à mistura com mulheres, da quais usavam toucas e outras de cabelos ao léu, se comprimia diante de um edifício de madeira, a porta do qual era feita de pesadas tábuas de carvalho, guarnecidas de pontas de ferro. (HAWTHORNE, 1993, p.51). [A throng of bearded men, in sad-coloured garments and grey steeple-crowned hats, inter-mixed with women, some wearing hoods, and others bareheaded, was assembled in front of a wooden edifice, the door of which was heavily timbered with oak, and studded with iron spikes HAWTHORNE, 1999, p.41)]. Portanto, o modo como Hawthorne compõe a sua narrativa não significa, de modo algum, que as personagens do contexto histórico, em que ele escreve, sejam simples representantes de correntes e de ideias históricas – e de modo isolado. Como escritor ele 64 também destaca suas personagens de maneira que traços determinados, peculiares de seus caracteres, são postos em relação muito complexa e viva com o tempo em que eles vivem. Hawthorne os apresenta sempre com a necessidade histórica que liga a sua individualidade particular ao ambiente em que vivem e não descarta o papel que cada um desempenha na história. As relações complicadas, porém unívocas, entre os representantes das diferentes classes, entre o ‗alto‘ e o ‗baixo‘ da sociedade, criam uma atmosfera histórica incomparavelmente autêntica,[...] uma atmosfera com que ele dá vida a determinada época não apenas em seu conteúdo histórico e social, mas também em seus aspectos humanos e emocionais, com aroma e marca especial. (LUKÁCS, 2011, p.67). Em Hawthorne é fácil notar que a necessidade histórica é sempre um resultado, não um pressuposto. A história por ele repassada é, de modo figurado, a atmosfera trágica do período, e não apenas um objeto das reflexões pessoais de um escritor. O que temos dito é que, isso não significa que as personagens do enredo do romance não reflitam sobre os seus papéis, objetivos e tarefas. Mas, tais reflexões são de homens ativos, em circunstâncias concretas. A atmosfera da necessidade histórica surge, precisamente dessa dialética muito sutil entre a potência e a impotência de discernimento que surge em circunstâncias históricas concretas. Para fazer com que tempos, há muito desaparecidos, possam ser revividos, Hawthorne teve de retratar de maneira mais ampla possível a correlação entre o homem e seu ambiente social. A inclusão do elemento dramático no romance, a concentração dos acontecimentos, a grande importância dos diálogos – do conflito imediato entre concepções opostas que se manifestam na conversação –, tem íntima conexão com o empenho em figurar a realidade histórica tal como de fato ocorreu de um modo que seja humanamente autêntico e a torne passível de ser vivenciada pelo leitor de uma época posterior. As passagens abaixo podem ilustrar claramente o que queremos dizer: A seguir, batendo no ombro de um habitante da cidade que estava perto, dirigiu-selheem termos cortes e formais. - Por favor, caro senhor, quem é aquela mulher? E por que motivo está exposta alí, à pública ignomínia? - Amigo, deve forçosamente ser estranho nesta região – respondeu o interpelado, fitando curiosamente o seu interlocutor e o selvagem que o acompanhava – de outro modo já teria ouvido falar da Senhora Ester Prynne e de sua má conduta. Não imagina o escândalo que ela provocou na igreja do piedoso Mestre Dimmesdale. - Você fala a verdade – replicou o outro – sou estrangeiro e tenho andado viajando bem contra minha vontade. Dolorosas desventuras tem sobrevindo por mar e terra e, durante longo tempo, estive a ferros entre os pagãos, lá para as banda do sul; e agora 65 fui aqui trazido por este índio, para me resgatar do cativeiro (HAWTHORNE, 1993, p.62). [Then touching the shoulder of a townsman who stood near to him, he addressed him in a formal and courteousmanner: ‗I pray you, good Sir,‘ said he, ‗who is this woman? — and wherefore is she here set up to public shame?‘ ‗You must needs be a stranger in this region, friend,‘ answered the townsman, looking curiously at the questioner and his savage companion, ‗else you would surely have heard of Mistress Hester Prynne and her evil doings. She hath raised a great scandal, I promise you, in godly Master Dimmesdale‘s church. ‗You say truly,‘ replied the other; ‗I am a stranger, and have been a wanderer, sorely against my will. I have met with grievous mishaps by sea and land, and have been long held in bonds among the heathen-folk to the southward; and am now brought hither by this Indian to be redeemed out of my captivity.HAWTHORNE, 1999, p.41)]. E os diálogos continuam, enfatizando o aspecto de dramaticidade do texto. - Tu sabes – disse Ester –, pois, apesar de abatida, não pode suportar essa derradeira punhalada a frio no sinal de sua ignomínia – sabes que fui franca contigo. Não sentia amor nem fingi senti-lo. - É verdade – contraveio ele. – Foi a minha insensatez. Já o disse. Mas, até essa época de minha vida, levara uma existência banal. O mundo apresentava-se-me destituído de encantos! Meu coração era uma vasta quadra demais para conter hóspedes, quantos se quisesse, mas solitária e fria; faltava-lhe o fogo de uma lareira. [...] – Fui muito injusta contigo – murmurou Ester. - Fomos injustos um para o outro – volveu ele – Meu foi o primeiro agravo, quando atraiçoei tua juventude, arrastando-a a uma falsa e inatural relação com a minha decadência. Por isso, como homem que não pensa nem filosofa em vão, não procuro vingar-me, não medito nda contra ti. Entre nós o fiel da balança permanece em equilíbrio. Mas, Ester, o homem que nos afrontou a ambos, vive. Onde está ele? - Não me perguntes – replicou Ester Prynne, encarando-o com firmeza. – Isso nunca saberás! (HAWTHORNE, 1993, p.72). [‗Thou knowest,‘ said Hester—for, depressed as she was, she could not endure this last quiet stab at the token of her shame—‗thou knowest that I was frank with thee. I felt no love, nor feigned any.‘ ‗True,‘ replied he. ‗It was my folly! I have said it. But, up to that epoch of my life, I had lived in vain. The world had been so cheerless! My heart was a habitation large enough for many guests, but lonely and chill, and without a household fire (…) ‗I have greatly wronged thee,‘ murmured Hester. ‗We have wronged each other,‘ answered he. ‗Mine was the first wrong, when I betrayed thy budding youth into a false and unnatural relation with my decay. Therefore, as a man who has not thought and philosophised in vain, I seek no vengeance, plot no evil against thee. Between thee and me, the scale hangs fairly balanced. But, Hester, the man lives who has wronged us both! Who is he?‘ ‗Ask me not?‘ replied Hester Prynne, looking firmly into his face. ‗That thou shalt never know!‘ (HAWTHORNE, 1999, p.65-66)]. Segundo Lukács (2011), um autor de um romance histórico se esforça para figurar as lutas e as oposições da história por meio de homens que, em sua psicologia e em seu destino permanecem sempre como potências históricas. Lukács estende esse modo de conceber o 66 romance aos processos de marginalização e registra que devem sempre ser considerados em sentido social e não individualmente61. A tentação de reproduzir inteiramente a totalidade das coisas em um romance histórico é imensa. Sempre o risco muito próximo em acreditar que a fidelidade histórica só pode ser atingida por meio da totalidade. Em A Letra Escarlate pode-se perceber que não se trata do relatar contínuo de grandes acontecimentos históricos, mas de um despertar ficcional de homens que os protagonizaram. Trata-se de figurar de modo vivo as motivações sociais e humanas a partir das quais aquela comunidade pensava, sentia e agia de maneira precisa, relatando o que ocorreu na realidade histórica em exposição. A posição dos clérigos em Salem – apresentada nos episódios em que se encontram com Ester, por exemplo – denunciam a força relegiosa que controla toda a sociedade. - Mulher, não ultrapasse o limite da compaixão do céu! – bradou o reverendo Wilson, em tom mais áspero que antes. – Esse criancinha foi dotada de voz, para secundar e confirmar o conselho que teus ouvidos escutaram. Profere o nome! Isso, e o teu arrependimento, podem valer-te que a letra escarlate seja arrancada de teu peito. - Nunca! Replicou Ester Prynne, fitando não o reverendo Wilson, mas os olhos profundos e perturbados do jovem clérigo. – É um estigma que penetrou fundo em meu ser. Não lograrei arrancá-lo. Pudesse eu suportar a angústia dele, como suporto a minha! - Fala mulher, disse outra vez a voz, fria e austera, saída dentre a multidão que circundava o patíbulo. – Fala; dá um pai a tua filha! - Não falarei! – Volveu Ester, tornando-se pálida como a morte, em resposta àquela voz, que ela seguramente reconheceu. – Minha filha deve procurar um pai no ceu, pois na terra nunca o encontrará! - Ela não falará! – murmurou Dimmesdale, que, debruçado da sacada, com a mão sobre o coração, aguardava o resultado de seu apelo. Recuando, respirou fundo. – Admirável fortaleza e generosidade de um coração feminino! Ela não falará! (HAWTHORNE, 1993, p.67). [‗Woman, transgress not beyond the limits of Heaven‘s mercy!‘ cried the Reverend Mr. Wilson, more harshly than before. ‗That little babe hath been gifted with a voice, to second and confirm the counsel which thou hast heard. Speak out the name! That, and thy repentance, may avail to take the scarlet letter off thy breast. ‗Never,‘ replied Hester Prynne, looking, not at Mr. Wilson, but into the deep and troubled eyes of the younger clergyman. ‗It is too deeply branded. Ye cannot take it off. And would that I might endure his agony as well as mine!‘ ‗Speak, woman!‘ said another voice, coldly and sternly, proceeding from the crowd about the scaffold, ‗Speak; and give your child a father!‘ ‗I will not speak!‘ answered Hester, turning pale as death, but responding to this voice, which she too surely recognised. ‗And my child must seek a heavenly father; she shall never know an earthly one!‘ ‗She will not speak!‘ murmured Mr. Dimmesdale, who, leaning over the balcony, with his hand upon his heart, had awaited the result of his appeal. He now drew back with a long respiration. ‗Wondrous strength arid generosity of a woman‘s heart! She will not speak!‘ (HAWTHORNE, 1999, p.60-61)]. 61 É por isso que esse tipo de romance apresenta em seus enredos grandes crises da vida histórica. Em geral, entram em choque potências sociais inimigas que visam extirpar uma a outra (LUKÁCS, 2011). 67 Segundo Lukács (2011) o que importa para o romance histórico é evidenciar, por meios ficcionais, a existência, ‗o ser-precisamente-assim‘ das circunstâncias e das personagens históricas que figuram no enredo. Uma das tarefas de Hawthorne como romancista histórico é, portanto, figurar de maneira mais rica possível a interação entre a espontaneidade e a capacidade de generalização distanciada do ambiente de vida imediata – que corresponde às circunstâncias históricas da época representada. Como vimos na passagem acima, ao lemos A Letra Escarlate, os detalhes são apenas meios para se atingir a fidelidade histórica, para evidenciar de maneira concreta a necessidade histórica de ações que se realizaram concretamente62. Em A Letra Escarlate as reações contrárias e contraditórias a certos acontecimentos movem-se sempre dentro do quadro da dialética objetiva da tal crise por qual passa Salem – e as suas personagens, presas à atmosfera de sua época. O que fica claro é que as personagens centrais em A letra Escarlate provocam a necessidade de compreensão da sociedade por meio da crise que elas geram. A vida cotidiana prossegue mesmo em meio a grande crise apresentada pelo sistema. No romance histórico, como em A Letra Escarlate, os heróis representam esse lado da vida do povo, dentro do desenvolvimento histórico, portanto. As paixões pessoais e seus objetivos pessoais coincidem com grande parte do desejo da população, porque eles reúnem em si mesmos, traços e características que contemplam os interesses da maioria dos que fazem parte da sociedade. Eles são as mais nítidas das expressões, as mais luminosas das aspirações populares, tanto para o bem quanto para o mal, dentro dos limites que todo ser humano carrega. 4.3 A COMUNIDADE DOS SALEMITAS De acordo com Maria Campos (2011) a diversidade das vozes sociais e os interrelacionamentos que se depreendem de suas interações contextuais constituem-se nos elementos importantes para a compreensão de um romance. Bakhtin, citado por Campos (2011), deixa claro que o romance é fenômeno multiforme, sendo a sua linguagem a 62 É, exatamente, na concepção humana e moral de seus personagens que Hawthorne conserva a fidelidade histórica. 68 codificação ordenada de suas vozes63. Assim, o romance é basicamente polifônico, podendo ser definido como uma diversidade de falas sociais e uma diversidade de vozes individuais, artisticamente organizadas. Em Salem, uma dessas vozes pode ser ouvida diretamente de seus moradores. A personagens em A Letra Escarlate encontram-se em meio ao mundo regido por ensinamentos puritanos, mas ainda que elas tendam a se separar deles, elas parecem não ter o direito de importunar seu equilíbrio. A fronteira criada pelos valores que cercam os seus contornos existe em benefício da estabilidade do sistema puritano. Essas fronteiras cercam um mundo aparentemente perfeito e acabado, embora poderes ameaçadores e incompreensíveis se façam sentir além do círculo que os separam. Isso porque, segundo Candido, Um dos maiores esforços das sociedades, através de sua organização e das ideologias que a justificam, é estabelecer a existência objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita política e assim por diante (1993, p.47). A liberdade em Salem é cerceada por todos os lados na comunidade retratada por Hawthorne. A coerção rege a comunidade em detrimento da consciência natural, a que se devem valer todos os que nela vivem. Em Salem a totalidade é falsamente homogênea em conteúdo, embora sua forma não o seja. ―Quanto mais rígida a sociedade, mais definido cada termo e mais apertada cada opção. Por isso mesmo desenvolvem-se acomodações do tipo casuístico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilização‖ (CANDIDO, 1993, p.48). É somente através de uma conscientização a respeito dessa verdade – ou do próprio impulso animal do homem que o impele a não reprimir os seus desejos e vontades –, que o instituído pode ser ameaçado, trazendo à tona tudo quanto dormita do seu interior, tornando aquela sociedade menos falsa. É nesse espaço histórico-social que Hawthorne nos desafia a compreender o modo de operação e funcionamento daquela comunidade, suas forças do alto e de baixo, refletidas nos valores e nos princípios que estão, ali, cristalizados. Os motivos que levaram Nathaniel Hawthorne a escrever A Letra Escarlate parecem muitos. Há quem diga que ele estaria pagando uma dívida de seus antepassados puritanos, uma vez que participaram ativamente do famoso episódio da caça às feiticeiras no final do século XVII. Para R. P. Blackmur, da Princeton University, quando escreveu um posfácio 63 ―Os elementos constitutivos que compõe o texto polifônico e dialógico apresentam-se de maneira determinada, clara e específica. Destacam-se, fundamentalmente, entre esses elementos, o fechamento da obra, as personagens, os narradores, os leitores, os contextos sociais em que se situam, e a caracterização de consciências independentes que povoam o universo ficcional‖ (CAMPOS, 2011, p.93). 69 para uma coletânia sobre Nathaniel Hawthorne, quando lemos um texto de Hawthorne, de fato estamos dando vida a alguns de seus ancestrais, trazendo-os não como fantasmas ou criatura assombrosas, mas como agentes ativos de nossa percepção das coisas e do modo como lidamos com o mundo. Também há quem diga que ele escreveu o romance num momento de sua vida em que estava por demais ocioso e, não tendo algo de mais importante para fazer, decidiu escrever sobre um fato que havia acontecido em Salem, há alguns anos atrás. Porém, de uma forma ou de outra, o romance de Hawthorne expõe dados de uma civilização que se construiu dentro de princípios e valores que são, pelo menos, passíveis de questionamentos. Como já sabemos, trata-se de uma história que nada tem de extraordinário: é a história de um adultério. Mas, o que impressiona é o sentido que ele encerra: os dramas de consciência e a luta íntima das personagens que vivem entre os limites do bem e do mal, temas que perseguiram Hawthorne por toda a sua vida, os quais podemos encontrar em todos os seus escritos. A teoria puritana em evidência na Salem da Nova Inglaterra assemelhava-se a teoria congregacionalista, que também almejava um governo da igreja, baseando-se em ideias de acordo com os seus pactos. Segundo a visão puritana, a igreja era um grupo de eleitos visíveis que haviam feito um acordo ou pacto sagrado com Deus e entre si para obedecer a vontade divina e criar uma igreja para pregar sua palavra. Os seus membros escolhiam seus ministros e representantes, pessoas que fossem bem qualificadas em caráter e educação para interpretar e aplicar a vontade divina na comunidade. Nesse contexto as mulheres não eram elegíveis e não podiam participar do clero. A teoria puritana, com base na congregação, traz alguns elementos de democracia, no sentido de que todos os membros participavam do pacto sagrado, da escolha do pastor e da admissão de novos membros. Após eleitos pela comunidade, o ministro, pastor, por exemplo, devia ter sua autoridade respeitada devido às qualificações especiais que tinha para interpretar a vontade de Deus. Mas, também havia, nesse sentido, pelo menos um elemento da monarquia, pois que a vontade de Deus era soberana e, de certo modo, inquestionável. A comunidade puritana tomou sua forma baseando-se na carta régia da fundação de Massachusetts Bay Company64. Já no primeiro capítulo, seguinte à introdução ―O edifício da Alfândega‖, embora com apenas três parágrafos, nos coloca o conflito que se desenrolará para o resto da história. Segundo o narrador de Hawthorne, o pecado e os rigores da lei parecem ser tão velhos quanto 64 Os cidadãos de uma companhia reuniam-se anualmente sob a forma de ‗Corte Geral e Soberana‘, a fim de deliberar sobre políticas e eleger seus servidores executivos, um governador e uma junta de assistentes, ou magistrados (McMICHAEL, 1966). 70 ao próprio tempo e tão poderosos quanto à porta que é feita de pesadas tábuas de carvalho, guarnecida de pontas de ferro e marcada pelas manchas e sinais do tempo. A ferrugem das enormes pontas de ferro do portão de carvalho davam a impressão de serem mais antigas que qualquer outra coisa no novo mundo. Como tudo quanto pertence ao crime, a prisão parece nunca ter conhecido a quadra da juventude. (HAWTHORNE, 1993, p. 51) [The rust on the ponderous iron-work of its oaken door looked more antique than anything else in the New World. Like all that pertains to crime, it seemed never to have known a youthful era. (HAWTHORNE, 1999, p.41)]. Os puritanos acreditavam que a sua comunidade sagrada fundamentava-se em um pacto implícito com Deus e entre si, e que os magistrados civis derivavam sua autoridade das qualificações especiais que possuíam para interpretar a vontade de Deus para a sociedade. A roseira que brotara ao lado do portão, coberta de delicados botões, e a citação de Ana Hutchinson65 (1590-1643), logo no inicio do capítulo, não nos deixam dúvidas de que a leitura que nós propomos fazer redundará em questionamentos a respeito do comportamento dos habitantes da região de Salem em relação às ordens sociais ali impostas. Mas, há um lado do portão, quase rente da soleira, crescia uma roseira brava, coberta, neste mês de junho, de dedicados botões que, dir-se-ia, ofereciam seu aroma e frágil beleza ao prisioneiro, quando entrava, e ao criminoso, quando saía para cumprir a sentença em sinal da profunda compaixão que a Natureza sentia por esses infelizes (HAWTHORNE, 1993, p. 51). [But on one side of the portal, and rooted almost at the threshold, was a wild rosebush, covered, in this month of June, with its delicate gems, which might be imagined to offer their fragrance and fragile beauty to the prisoner as he went in, and to the condemned criminal as he came forth to his doom, in token that the deep heart of Nature could pity and be kind to him.. (HAWTHORNE, 1999, p.42)]. O lugar onde se passa toda a narrativa nos remete a Boston, a capital de uma província da Nova Inglaterra, e que, parece-nos, estar acostumada a sentenças condenatórias proferidas pelo tribunal citadino composto especialmente por líderes religiosos puritanos. Trata-se de uma vila em que a ordem deve ser seguida – de acordo com os dogmas do cristianismo que dominam aquele lugar. 65 A senhora Ana Hutchinson foi acusada de antinomianismo – ou de negar a força da lei moral da Bíblia – e exilada para Connecticut. O reverendo Roger Williams, que se tornou ´pregador‘ – ou ministro de doutrina – da igreja de Salem em 1631, também foi logo removido para Plymouth, banido da Baía de Massachusetts em 1635, pela mesma razão. In HOWARD, Leon. A Literatura Norte-Americana. São Paulo: Editora Cultrix, 1964. p.19. Segundo High (1986), Ana Hutchinson foi perseguida por desejar um ambiente religioso mais leve e mais livre. 71 Em qualquer hipótese, os espectadores teriam dado mostra da mesma solenidade de atitude; solenidade que convinha a um povo para o qual religião e lei eram quase idênticas e, em cuja maneira de ser, ambas as coisas se mesclavam tão intimamente, que os atos da pública disciplina, os mais brandos como os mais austeros eram, por igual, objeto de respeito e de temor (HAWTHORNE, 1993, p. 53). [In either case, there was very much the same solemnity of demeanour on the part of the spectators, as befitted a people among whom religion and law were almost identical, and in whose character both were so thoroughly interfused, that the mildest and severest acts of public discipline were alike made venerable and awful. (HAWTHORNE, 1999, p.43)]. As forças estabelecidas no início do romance recebem um reforço quando da referência àquela mesma comunidade dois séculos atrás: uma penalidade que poderia representar tão somente uma irrisória infâmia ou escândalo poderia revestir-se de uma seriedade digna de pena de morte naquele contexto. Mas, o narrador de Hawthorne nos apresenta a frieza e a aprovação dos moradores da Salem em relação à falta cometida por Ester – tudo parece já pertencer ao imaginário da maioria dos que fazem parte daquela comunidade. Dos expectadores, os ‗condenados‘ não podiam esperar qualquer sentimento de compaixão. ―Escassa e fria era a compaixão que um transgressor poderia esperar de tais expectadores sobre o patíbulo‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 53) [Meagre, indeed, and cold, was the sympathy that a transgressor might look for such bystanders at the scaffold (HAWTHORNE, 1999, p.43-44)]. Para Schwarz, Cristalizando a experiência sensível à volta de categorias fundamentais da sociedade puritana, Hawthorne atinge uma representação muito rica da percepção. Por serem contraditórias as categorias, as contradições aparecem no cerne mesmo da percepção, tornada ambígua em seu fundamento (1981, p.140). A comunidade puritana era teocrática no sentido em que a vontade de Deus constituía a lei local. O poder real do clero derivava de sua autoridade como intérprete da vontade de Deus, mas no tocante as questões civis, essa função era, em geral, reconhecidamente exercida pelos magistrados que, quando discordavam entre si, apelavam à poderosa autoridade dos pastores e reverendos. Todos acreditavam ser dever do estado apoiar a igreja – e vice-versa – e cobrar o comparecimento aos cultos, de membros e não-membros, por igual, e tudo mais fazer para que aumentasse as possibilidades de salvação de todos os membros da comunidade. Por isso, a falta cometida por Ester chamava tanto a atenção de todos. A postura de algumas mulheres evidencia o modo de pensar o ir e o vir de cidadãos que pertenciam àquela sociedade historicamente situada. Valores e princípios que estavam 72 enraizados no coração de seus moradores se expressavam conforme podemos ver na passagem a seguir: - senhoras, - principiou uma dama de má catadura, já entrada na casa dos cinquenta, - vou dizer-lhes um pouco do que penso. Seria muito vantajoso para o público, se nós mulheres, de idade madura e membros da igreja, que gozamos de boa reputação, tornássemos à nossa conta o julgamento de uma malfeitora como essa Ester Prynne. Que pensam as comadres? Se a rapariga comparecesse em juízo perante nós cinco, que estamos aqui reunidas, a fé do que sou, teria de ouvir uma sentença bem diferente da que as dignas autoridades promulgaram (HAWTHORNE, 1993, p. 54). [‗Goodwives,‘ said a hard-featured dame of fifty, ‗I‘ll tell ye a piece of my mind. It would be greatly for the public behoof if we women, being of mature age and churchmembers in good repute, should have the handling of such malefactresses as this Hester Prynne. What think ye, gossips? If the hussy stood up for judgment before us five, that are now here in a knot together, would she come off with such a sentence as the worshipful magistrates have awarded? (HAWTHORNE, 1999, p.4445)]. Ao que parece, de acordo com imaginário da coletividade de Salem, os magistrados eram homens tementes a Deus, mas ―compassivos em demasia, disso não há duvidar, acrescentou uma terceira matrona outonal -, quando menos, deviam ter marcado a ferro em brasa a testa de Ester Prynne‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 55) [At the very least, they should have put the brando f a hot iro non Hester Prynne´s forehead (HAWTHORNE, 1999, p. 45)]. A presença de Ester é literalmente provocativa diante da postura conservadora das mulheres de Salem. Na sua apresentação ela traz em um de seus braços uma criança a quem ela deu à luz ainda na prisão. Além de sua beleza, incomum a um ser humano aprisionado há algum tempo, um adorno fantasticamente tecido enfeita suas vestes. Ela chamava atenção de todos, mais agora pela sua beleza que pelo erro que cometera. Mas o ponto que atraía todos os olhares e que, por assim dizer operava nela uma transformação, de sorte que todos quantos conheciam na intimidade Ester Prynne experimentava agora a impressão de verem pela primeira vez era aquela grande letra escarlate, tão fantasticamente entretecida e iluminada sobre seu seio (HAWTHORNE, 1993, p.56). [But the point which drew all eyes, and, as it were, transfigured the wearer—so that both men and women who had been familiarly acquainted with Hester Prynne were now impressed as if they beheld her for the first time—was that SCARLET LETTER, so fantastically embroidered and illuminated upon her bosom. (HAWTHORNE, 1999, p.47)]. A reação defensiva de Ester Prynne, pela frieza com que a condenaram e a austeridade com que todos a olhavam implacavelmente concentrados em seu seio, culmina com uma volta ao passado onde ela encontra motivos para se manter viva. De cima do patíbulo e olhando 73 para aquela multidão abaixo que não lhe tira os olhos ela parece delirar ao ser tomada por imagens de sua terra natal e de seus pais na Inglaterra onde ela passara seus dias de infância. De pé, naquele estado de ignomínia, ela reviu a aldeia natal, na velha Inglaterra, e a casa paterna, uma casa desmantelada de pedra cinzenta, respirando pobreza, mas atentando por cima da porta um brasão de armas meio obliterado, em sinal de nobreza antiga. Viu o rosto do pai de fronte alta, despido de cabelo, enquadrado na alvura de uma barba respeitável, assente sobre a gola de tufos, segundo os cânones da moda Elizabethana; viu também o rosto de sua genitora, de olhar atento e amoroso, aquele olhar que nunca se apagará no espírito (HAWTHORNE, 1993, p.60). [Standing on that miserable eminence, she saw again her native village, in Old England, and her paternal home: a decayed house of grey stone, with a povertystricken aspect, but retaining a half obliterated shield of arms over the portal, in token of antique gentility. She saw her father‘s face, with its bold brow, and reverend white beard that flowed over the old-fashioned Elizabethan ruff; her mother‘s, too, with the look of heedful and anxious love which it always wore in her remembrance, and which, even since her death, had so often laid the impediment of a gentle remonstrance in her daughter‘s pathway. (HAWTHORNE, 1999, p.51)]. Isso lhe acudiu o espírito e a fazia fugir por um momento de toda aquela pressão que sofria. A viagem que ela faz ao passado se traduz em um excelente recurso que Hawthorne – enquanto narrador da história – usa, nos oferecendo as biografias de seus personagens. Pelo que nos é descrito, já sabemos que Ester Prynne nascera na Inglaterra e ali passara seus principais dias de infância e, até mesmo, sua adolescência. Também em meio aos devaneios de Ester Prynne, o narrador nos apresenta um outro de seus personagens principais trazendo o leitor para o centro da trama de sua história, fazendo-o conhecer os motivos que levaram aquela mulher a estar ali. Dessa vez a descrição é de um homem já de uma certa idade, de rosto pálido e de olhos escuros como de alguém que gastou muitas horas nos livros que aparece no meio da multidão. O reconhecimento de Éster é instantâneo e logo será descoberto que aquele é o seu marido. O narrador descreve o motivo da punição de Ester descrevendo o marido dela. Caro Senhor, aquela mulher estava casada com um certo homem ilustrado, inglês de nascimento, mas que viveu em Amsterdã durante um tempo. Daí, já lá vai alguns bons pares de anos, cuidou de atravessar o Atlântico e de fixar residência entre nós, em Massachusetts. Com esse intuito, mandou à frente a esposa enquanto ele ficou na Europa a fim de regular uns negócios. Durante dois anos, pouco mais ou menos que esta mulher residia aqui, em Boston, não chegaram notícias de Mestre Prynne, que assim se chamava o erudito cavalheiro; e sua esposa, como vê, ficou entregue a seus extravios (HAWTHORNE, 1993, p.62). [Yonder woman, Sir, you must know, was the wife of a certain learned man, English by birth, but who had long ago dwelt in Amsterdam, whence some good time agone he was minded to cross over and cast in his lot with us of the Massachusetts. To this 74 purpose he sent his wife before him, remaining himself to look after some necessary affairs. Marry, good Sir, in some two years, or less, that the woman has been a dweller here in Boston, no tidings have come of this learned gentleman, Master Prynne; and his young wife, look you, being left to her own misguidance—‗ (HAWTHORNE, 1999, p.55)]. Todos em Salem sabem o que está acontecendo e como e porque aquela mulher chegou até ao patíbulo da praça. Mas, nessa mesma cena, outra personagem expectadora, apresentando um comportamento ainda mais desumano, reforça: esta mulher envergonhou a nós, todas, e devia morrer. Não existe uma lei para isso? Existe sim, tanto nas Escrituras como no código. Depois os magistrados, que passaram por cima dela, agradeçam a si mesmos, si suas mulheres e filhos se desencaminharem! (HAWTHORNE, 1993, p.55). [‗This woman has brought shame upon us all, and ought to die; Is there not law for it? Truly there is, both in the Scripture and the statutebook. Then let the magistrates, who have made it of no effect, thank themselves if their own wives and daughters go astray" ‗ (HAWTHORNE, 1999, p.45)]. Não é difícil concordar com Roberto Schwarz a respeito do que ele comenta em relação à postura das matronas na Salem de Nathaniel Hawthorne: a formulação é extrema. Parece que em Salem sem a pena capital as mulheres perdem-se todas. A função da lei é claramente repressiva. É da natureza das mulheres em Salem perderem a virtude, não fosse o medo de segurá-las. O padrão é mais ou menos o seguinte: a natureza – a carne – é culpada (SCHWARZ, 1981, p.141). A posição do narrador vai se delineando e o seu objetivo em nos deixar a par do que se trata o seu texto, revela a habilidade de Hawthorne em lidar com a história e os valores existentes em Salem. O seu romance posiciona-se no centro das questões que tomaram conta das vidas de seus antepassados. Na medida em que lemos somos informados de que Ester, a principal personagem, surge como sujeito que põe toda a cidade em crise, porque ela havia desobedecido a uma das leis em Salem e cometido adultério. O narrador de A Letra Escarlate deixa claro que o mundo hierarquizado na aparência se revela, essencialmente, subvertido quando nos traz também a figura de um reverendo, cidadão que representa a lei e a ordem puritanas em maior potencial, marchar na direção oposta ao que apregoa. O principal reverendo em ascensão era a outra parte no pecado que cometera com Ester. Na verdade a vida para as personagens de A letra Escarlate começa a ser contraditória – assim como contraditória é Salem. Tanto Ester quanto Dimmesdale falham: 75 um em esconder a sua falta, e outro em desobedecer às leis que regulam a comunidade. Subordinados ao sistema, eles serão punidos, porque assim querem os magistrados puritanos. É importante dizer que Hawthorne dá ao esquema de seu romance unidade e força quando, em uma mesma cena, posiciona estrategicamente todas as suas principais personagens. Por exemplo, na cena de abertura – no capitulo 1 –, Ester aparece no patíbulo com Pérola, ainda bebê, em seu colo e Dimmesdale posicionado acima deles, juntamente com os chefes-magistrados da cidade. No mesmo espaço Chillingworth olha do meio da multidão. Na mesma cena os magistrados se posicionam para professar as suas crenças. A habilildade de Hawthorne parece não ter precedentes: ele prepara o leitor para o que seria a trama do romance colocando todos logo na primeira cena. Isso atrai definitivamente a atenção do leitor para o que haverá de acontecer no romance. Em outra cena, na noite em que Dimmesdale vai até o patíbulo para se confessar – no capítulo XII -, ―arrastado pelo impulso do remorso que por toda parte o perseguia e cuja irmã inseparável era a covardia, que invariavelmente o fazia recuar‖ (HAWTHORNE, 1993, p.127) [He had been driven hither by the impulse of that Remorse, which dogged him everywhere, and whose own sister ans closely linked companion was that Cowardice, whcih invariably Drew him back (HAWTHORNE, 1999, p.132-133)], pode-se ver a presença completa de uma família: o pai, a mãe e a criança juntos, revelados à luz de um, pouco natural, relâmpago. Ester e Pérola vinham do leito do Governador Winthrop que jazia moribundo. Ester havia o visitado a fim de tirar medidas ―para a confecção de uma mortalha‖ (HAWTHORNE, 1993, p.131) [and have taken his measure for a robe (HAWTHORNE, 1999, p.137)]. Na mesma cena Chillingworth observa tudo, como único espectador, do meio da escuridão do seu quarto, completando o cerne da trama. Ao escolher o patíbulo da praça para a cena final – no capitulo XXIII, assim como o fez para a cena inicial – com a presença dos principais personagens do romance naquele momento, justifica a força da engenharia tecida por Hawthorne. A sua capacidade de dar visibilidade a cena é tanta que ele traz as autoridades e o povo para participar do último momento de sua história de uma maneira tal que chega a demonstrar que as personagens não necessitam de uma amplificação verbal para se ligarem uns aos outros e a tudo o que se passa ao redor. Para Hawthorne, nesses momentos, tudo tem que estar presente para reforçar a angústia que os principais personagens da história tem passado. Até mesmo o povo também está presente, como o papel de testemunhar e, se necessitar, dar testemunho de tudo que se passa. 76 Com o objetivo de confirmar o papel final de cada personagem, Hawthorne não deixa de reforçar a característica que cada um desprendeu na estória. É esse ponto que também nos propusemos a estudar e que assentará, tanto a importância das personagens para consolidação do romance quanto para identificação da historicidade no mesmo. 4.4 AS PERSONAGENS DO ROMANCE HISTÓRICO EM A LETRA ESCARLATE Como já sabemos, em A Letra Escarlate Ester é a vítima que sofre publicamente as punições de Salem uma vez que trazia consigo uma falta visível junto ao seu corpo, não alcançando o perdão diante de tamanho sofrimento de seus concidadãos e dos magistrados. O doutor Chillingworth, consorte a sua postura de vingador, aparece como o médico que apenas quisera realizar os seus intentos e que, de certa forma, gostaria de ter ‗envenenado‘ mais ainda o ministro que, àquela altura já está prestes a perecer. É possível pensar que a covardia e a hipocrisia de Dimmesdale mostra-se banhada por uma espécie de ―masoquismo‖ – o querer sofrer constante – com o qual ele parece ter querido extirpar o pecado da culpa que carregara durante todos os sete anos que durou a sua falta – no momento da cena final, ele abre o peito a fim de que todos possam, ao que parece, lhe impor mais punição e ainda revelar-lhe o mesmo pessimismo com que ele se alimentara durante toda a história. Dimmesdale é incapaz de confortar Ester naquela hora de profundo desconforto. É como se ele quisesse aliviar somente o peso de seu pecado através daquela sua agonia triunfante. Para Ester, talvez, com a morte de Dimmesdale, sobrará mais culpa por ter sido ela recipiente maior do erro, quando verteu sobre o ministro todo aquele sentimento de culpa, ainda que tenha sido essencialmente fora de sua vontade. De acordo com Rainer C. Patriota, estudioso que escreve juntamente com Ester Vaisman a apresentação do livro de Nicolas Tertulian (2008), alistado em nossa bibliografia, o que fica claro é que, segundo Lukács, toda obra literária revela ―uma experiência viva‖, um determinado modo de ―espírito vital‖. Segundo o estudioso, para Lukács, o romance enquanto gênero significa, antes de mais nada, a possibilidade da resolução ideal do divórcio entre a exterioridade empírica e a interioridade essencial, presente em toda a história. A tensão constante presente no romance é, de certa forma, uma busca em encontrar solução para o problema. O desenvolvimento do enredo e das personagens de Nathaniel Hawthorne, encontrados em A Letra Escarlate, consolidam o papel desejado por Lukács em uma obra de 77 arte, portanto. Eles oferecem a condição necessária ao procedimento da consciência diante da realidade histórica ao capturar todas as possíveis determinações essenciais do objeto bem como sua adaptação perpétua ao seu próprio devir que acompanha e contribui para todo o desenvolvimento da História. É de se notar que as observações de Hawthorne destacam-se em pontos fundamentais, dos quais vamos identificando na medida em que lemos os seus livros. É sempre bom perceber, por exemplo, que suas observações são geralmente a propósito do homem e de sua relação com a sociedade – nunca com a natureza. Em geral, nos seus escritos, encontramos em um lado um individuo afastado e do outro lado desse afastamento uma multidão. Os textos de Hawthorne formulam perguntas, e raramente encontramos as respostas ao final, quando acabamos de lê-los. Temas como orgulho, inveja e remorso importunam as suas personagens. Nos seus escritos, um único pecado não é perdoável: perder a estima do restante da comunidade. A leitura atenta da obra de Hawthorne nos induz à conclusão de que nele o amor à arte vinculava-se de maneira indissolúvel às preocupações morais, e também de que a sua filosofia de vida derivava da ideia fundamental da existência de Deus. Mas, o seu Deus diferia radicalmente do deus de seus antepassados, os calvinistas, pois é um Deus de amor, de perdão, de tolerância. Embora Hawthorne não partilhasse do idealismo otimista, do ingênuo perfeccionismo que em absoluta reação ao determinismo calvinista se espalhou pelo vasto território dos Estados Unidos, ele firmou-se em uma posição de ferrenho antagonismo à crença predileta dos seus avós: a da depravação natural. Neste ponto, o da fé entusiasta na regeneração, Hawthorne uniu-se aos seus contemporâneos românticos. Mas, enquanto esses salientavam principalmente sociedade, como a maior culpada nas calamidades humanas, Hawthorne, mais agudo, apontava também para o coração do homem, a causa mais forte para a dissipação do mal. A base religiosa em Hawthorne também pode se tornar quase imperceptível, mas se somente as considerações éticas tomarem conta dos desfechos. Em tudo isso, fica por demais nítido que o pecado máximo, segundo Hawthorne, é a falta de amor. E é bom lembrar que essa tal falta de amor deriva sempre de leis rígidas impostas por regimes rígidos ou de orgulho intelectual – no caso de Chillingworth. As personagens de Hawthorne se apresentam como indivíduos que resistem consciente e energicamente a uma realidade que a eles se fecha e, nessa luta, nessa oposição, eles se tornam representações de personagens de romance histórico, pois, ao se revelarem, revelam o mundo sombrio recheado de dogmas em que vivem – o mesmo mundo puritano da Nova 78 Inglaterra do século XVII e XVII. É de dentro de suas singularidades, que eles trazem à tona questões a respeito das forças e dos pensamentos que formam aquela sociedade de origem inglesa. Sobre a relativização da existência humana na sociedade moderna e a despersonalização da vida – já presentes na Nova Inglaterra –, Tertulian (2008) registra que: Lukács se apiedava da perda da autonomia e da soberania do sujeito, decorrente da totalidade das condições objetivas. A vida moderna teria destruído o antigo equilíbrio entre subjetividade e objetividade, deixando ao indivíduo apenas um papel de simples acessório, de peão subalterno entre as forças impessoais que o envolveriam e o ultrapassariam (p.69). Portanto, em A Letra Escarlate, assim como no gênero Romance em geral, resta seguir com o papel importante de buscar e recompor o tal equilíbrio entre o interior do homem e o mundo exterior, oferecendo à alma do ser humano uma imagem de mundo menos ilusória do que é e que lhe seja mais honesta enquanto realidade, como nos afirma Lukács. Para Trilling, ―espíritos ávidos [...] podem propor remodelar o mundo de acordo com seus sonhos; mas o mal permanece e, enquanto ele se esconder nas regiões secretas do coração, a utopia será apenas a sombra de um sonho‖ (1965, p.23). No romance de Hawthorne as vozes se destacam à medida que as contradições que abraçam nos revelam aspectos relevantes da comunidade colonial da Salem dos primeiros anos do descobrimento da América do Norte. 4.5 O DESTINO DE ESTER, DIMMESDALE, CHILLINGWORTH E PÉROLA Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida em que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha de seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente (CANDIDO, 2005, p.53). É na personagem que reside a possibilidade de adesão afetiva e emocional do leitor. A personagem é o que parece mais vivo no romance. ―A leitura do romance depende basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor‖ (CANDIDO, 2005, p.54). Pode-se dizer que a personagem ―é o elemento mais atuante e mais comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e começo do século XX‖ (CANDIDO, 2005, p.54). 79 A personagem constitui um elemento estrutural indispensável na narrativa romanesca. Sem personagem, ou pelo menos sem agente, como observa Roland Barthes, não existe verdadeiramente a narrativa, pois a função e o significado das ações ocorrentes em uma narrativa dependem primordialmente da atribuição ou da referência dessas ações a uma personagem. (SILVA, 1997, p.687) Segundo Candido (2005), enredo e personagens exprimem os intuitos do romance. Em A Letra Escarlate, Ester surge como sujeito que põe o sistema político-social em crise. Ela havia desobedecido a uma das leis em Salem juntamente com Artur Dimmesdale, o reverendo puritano em ascensão na comunidade. A vida para ambos começa a ser contraditória porque tanto Ester quanto Dimmesdale cometeram uma falha: eles adulteraram. Subordinados ao sistema, eles devem ser punidos. Chillingworth, o marido que fora traído, e Pérola, o fruto desse ―pecado‖, também tomarão os seus lugares – não menos importantes – no enredo. O peso sobre os seus ombros justificará os seus papéis de personagens do romance histórico, sintetizando toda a tentativa de alcançar o desejável de suas existências, diante do mundo no qual eles todos foram inseridos: o mundo puritano da Nova Inglaterra em pleno século XVII. O desenvolvimento do enredo e das personagens de Nathaniel Hawthorne, encontrados em A Letra Escarlate, consolidam o papel desejado por Lukács em uma obra de arte, portanto. Eles oferecem a condição necessária ao procedimento da consciência diante da realidade ao capturar todas as possíveis determinações essenciais do objeto bem como sua adaptação perpétua ao seu próprio devir que acompanha e contribui para todo o desenvolvimento da História. Para Lukács, o significado da personagem de um romance histórico ganha destaque dentro de um contexto, destacando a sua construção estrutural como a responsável maior pela sua força. Sendo a personagem um ser fictício, ela alimenta um paradoxo no qual repousa a força da criação literária: a verossimilhança66. Em um romance é esse sentimento de verdade que faz com que a criação de fantasia comunique a impressão da mais limpa verdade existencial possível – que, no romance histórico, se transforma em um documento de extração histórica67. É a personagem a concretização da possível relação entre o ser vivo e o ser fictício, sugerido no romance. 66 ‗Na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido‘ (CANDIDO, 2005, p.18). 67 Pelo que fique claro que, com respeito ao reconhecimento da historicidade de um elemento ficcionalmente representado, torna-se indispensável que o acontecimento – como no caso do adultério na referida obra em estudo – somente seja considerado verdadeiramente histórico quando reverbera para além da trajetória individual e/ou familiar da personagem. Daí haver um postulado de que deve haver intima solidariedade entre o destino do protagonista e o da comunidade de que ele faz parte, com todas as amplificações e ramificações possíveis (BASTOS, 2007). 80 É exatamente isso que faz A Letra Escarlate: a força de sua narrativa registra fatos e aspectos da Nova Inglaterra a partir da ação de suas personagens e suas relações diretas com o contexto histórico. O estímulo causado pelas situações e pelas personagens desperta interpretações que circulam dentro de planos de ordem e de desordem da sociedade. As normas rígidas de Salem em A Letra Escarlate, e impecavelmente formuladas, criam a aparência e a ilusão de uma ordem regular que não existe e que, por isso mesmo, se constitui um alvo ideal para o erro. A narrativa, definitivamente, nos sugere que, assim como a ortodoxia – aquilo que é instituído naquela comunidade como reto e direito impetrado pelos seus representantes da ordem –, a crença na ‗antiortodoxia‘ também existe, estando no mesmo lugar, a ponto de ser revelada a qualquer momento. Para Silva, em dados contextos socioculturais, o escritor cria os seus heróis na aceitação perfeita daqueles códigos: o herói espelha os ideais de uma comunidade ou de uma classe social, encarnando os padrões morais e ideológicos que essa comunidade ou essa classe valorizam. [...] Noutros contextos históricos e sociológicos, pelo contrário, [...] o herói em vez de se conformar com os paradigmas aceites e exaltados pela maioria da comunidade, aparece como um indivíduo em ruptura e conflito com tais paradigmas. (1997, p.700). 4.6 ESTER, A HEROÍNA DO ROMANCE A postura do herói de um romance considerado histórico deve servir para justificar o quão histórico a verdade narrada no enredo pode ser. O herói do romance histórico é o vetor de uma situação tal, que expõe aspectos importantes de uma sociedade. Essa tendência fundamental se expressa de imediato no modo como a trama é criada bem como o seu posicionamento. Muitas vezes ele surge a partir de um perfil simples, por vezes, até mesmo medíocre. Em A letra Escarlate a heroína aparece no segundo capítulo. Ester é apresentada ao povo como parte da punição que recebeu devido à falta que cometera – um adultério. A cena é forte e apresenta Ester completamente, como uma figura ignominiosa e ímpia, um exemplo negativo para a sociedade. Revelando a situação na qual Ester se encontra, o narrador de Hawthorne apresenta claramente o modo de pensar e de agir comum a todos, os que administram aquela comunidade e que convivem naquele sistema. O portão do cárcere escancarou-se de par em par. Surgiu, à frente, como sombra emergindo à clara luz solar, a horrorosa e inflexível figura de um beleguim municipal, com uma espada à tiracolo, segurando na mão o bastão do cargo. Esta 81 personagem prefigurava e representava em seu aspecto toda a cruel severidade do código puritano, que lhe competia, por dever de cargo, fazer cumprir e aplicar, em suas rígidas minudências, contra os transgressores. Estendendo para frente o bastão oficial com a mão esquerda, assentou a direita no ombro de uma mulher ainda nova, fazendo-a avançar; até que, sobre a soleira da porta, ela o repeliu com um gesto de natural dignidade e força de caráter, e adiantou-se para o ar livre, como se fizera por livre vontade. (HAWTHORNE, 1993, p. 55). [The door of the jail being flung open from within there appeared, in the first place, like a black shadow emerging into sunshine, the grim and gristly presence of the town-beadle, with a sword by his side, and his staff of office in his hand. This personage prefigured and represented in his aspect the whole dismal severity of the Puritanic code of law, which it was his business to administer in its final and closest application to the offender. Stretching forth the official staff in his left hand, he laid his right upon the shoulder of a young woman, whom he thus drew forward, until, on the threshold of the prison-door, she repelled him, by an action marked with natural dignity and force of character, and stepped into the open air as if by her own free will (HAWTHORNE, 1999, p.45-46)]. Hawthorne não deixa de descrever a força da lei puritana representada por uma personagem que aparece ao lado de Ester, carregando uma espada a tiracolo, trazendo em seu aspecto toda a cruel simbologia da severidade puritana e cumprindo com suas rígidas decisões aplicadas a transgressores. A condenação de Ester deve servir de exemplo para toda a comunidade, pois a disciplina era parte da ordem puritana. Competia aos magistrados fazer cumprir e, por dever do cargo que defendiam, aplicar as penas em conformidade com a lei local. Para os puritanos a família era a unidade básica e era nela, na mulher, em que a educação deveria começar. A sujeição das mulheres aos seus maridos fosse condição sinequa non para sustentação da família, elas exerciam autoridade decisiva no lar. Assuntos domésticos e educação diária das crianças constituíam responsabilidades das mulheres68. Ester, como todas as mulheres, não podia desobedecer os conceitos puritanos para a família. Em situações como a de Ester, competia aos magistrados fazer cumprir e, por dever do cargo que defendiam, aplicar as penas em conformidade com a lei local. Ao ver revelado o sofrimento de Ester e sua exposição pública, o leitor ficará sabendo sobre o modo de tratamento liberado pelos magistrados puritanos em Salem. Ester, como personagem principal, apresenta-se completamente pronta, com todas as idiossincrasias prementes em um ser humano, inserido em um contexto histórico social específico. A demonstração de firmeza e de honestidade de Ester, a levam ao ponto de sacrificar-se. É o sistema em Salem que é sacrificador, portanto. 68 Aos homens cabia a responsabilidade de provimento e de ensino de um ofício aos filhos homens. Os homens eram também responsáveis pela educação moral e religiosa bem como o comportamento moral de sua família, de uma maneira geral (APTHEKER, 1967). 82 O narrador de Hawthorne tem o cuidado de nos apresentar Ester a partir de uma detalhada preparação que vai além de uma descrição pessoal. Ele visa uma certa objetividade necessária que nos dá as chaves que abrem as portas de um quadro sócio-histórico que começa a ser revelado. Pode-se ver que Ester é a expressão da excentricidade e das mais autênticas aptidões humanas. Ela passa a ser o centro em torno do qual os acontecimentos se desdobram – no enredo – e no qual ela se deixa descrever por traços simplesmente naturais. Quando a jovem mulher – mãe daquela criança – surgiu perante a multidão, seu primeiro impulso parece ter sido o de apertar a filhinha de encontro ao coração, não tanto por um extremo amor materno, quanto para desse amor ocultar um certo sinal que lhe haviam feito ou cosido sobre o seu vestido. Contudo, refletindo por um instante, e sensatamente, que um sinal de sua ignomínia só imperfeitamente serviria para cobrir o outro, tomou a criança no braço, e com um rubor de fogo nas faces, mas com um sorriso de altivez e um fulgor nos olhos de quem não se sentia envergonhada, contemplou em volta a multidão da cidade e dos arredores. Sobre o peito de seu vestido, apareceu, de fino tecido vermelho, cercada de engenhosos bordados e de fantasiosos floreados de fio de outro, a letra A. Estava trabalhada com tanta arte e exuberância de fantasia que dava a impressão de ser o último adorno no traje que Ester usava; e ostentava um esplendor inteiramente de acordo com o gosto da época, mas que ia muito além do que era permitido pelos regulamentos sumptuários da colônia. (HAWTHORNE, 1993, p.55-6). [When the young woman — the mother of this child — stood fully revealed before the crowd, it seemed to be her first impulse to clasp the infant closely to her bosom; not so much by an impulse of motherly affection, as that she might thereby conceal a certain token, which was wrought or fastened into her dress. In a moment, however, wisely judging that one token of her shame would but poorly serve to hide another, she took the baby on her arm, and with a burning blush, and yet a haughty smile, and a glance that would not be abashed, looked around at her townspeople and neighbours. On the breast of her gown, in fine red cloth, surrounded with an elaborate embroidery and fantastic flourishes of gold thread, appeared the letter A. It was so artistically done, and with so much fertility and gorgeous luxuriance of fancy, that it had all the effect of a last and fitting decoration to the apparel which she wore, and which was of a splendour in accordance with the taste of the age, but greatly beyond what was allowed by the sumptuary regulations of the colony. (HAWTHORNE, 1999, p.46)]. A presença de Ester em um local de exposição no centro da cidade – trazendo no seu colo um bebê, recém-nascido – convida o leitor a interagir com o narrador do texto, na busca de entender os motivos e as razões pelas quais ela recebera tamanha punição. A implantação da cena – ela exposta em um patíbulo em uma praça –naquela realidade histórica é a condição primordial para se buscar as razões e decifrar exatamente as tendências do passado em Salem. Somente a reconstituição fiel do passado pode dar sentido à vida presente. - Abram caminho em nome do rei, abram caminho! – bradou. – Deem passagem que a senhora Prynne vai ser exposta onde homens, onde homens, mulheres e crianças possam admirar sua elegante indumentária desde este momento até a uma hora depois do meio dia. Desçam as bênçãos de Deus sobre a virtuosa Colônia de 83 Massachusetts, onde a iniquidade é tirada de seu esconderijo e apresentada à luz clara do sol (HAWTHORNE, 1993, p.57). [‗Make way, good people—make way, in the King‘s name!‘ cried he. ‗Open a passage; and I promise ye, Mistress Prynne shall be set where man, woman, and child may have a fair sight of her brave apparel from this time till an hour past meridian. A blessing on the righteous colony of the Massachusetts, where iniquity is dragged out into the sunshine! (HAWTHORNE, 1999, p.48)]. Apresentando Ester como sendo a personagem que carrega um problema, Hawthorne também expõe a sociedade puritana e nos faz querer entender aspectos da continuidade histórica considerando os diferentes estágios de desenvolvimento social que, até chegar naquele ponto, formaram um itinerário. A jovem mulher, de elevada estatura, era um modelo de requintada elegância. Cabelo escuro e farto, lustroso ao ponto de refletir a luz solar; o rosto, belo pela regularidade dos traços e riqueza de colorido, impressionava pela proeminência da fronte e pela cor negra dos olhos. Nada lhe faltava para ser uma perfeita dama, de acordo com as normas de gentileza feminina daqueles dias, caracterizada por um certo porte e dignidade, mais que pela delicada, evanescente e indiscutível graça, que para nós, hoje, é o mais sublime predicado da mulher (HAWTHORNE, 1993, p. 56). [The young woman was tall, with a figure of perfect elegance on a large scale. She had dark and abundant hair, so glossy that it threw off the sunshine with a gleam; and a face which, besides being beautiful from regularity of feature and richness of complexion, had the impressiveness belonging to a marked brow and deep black eyes. She was ladylike, too, after the manner of the feminine gentility of those days; characterised by a certain state and dignity, rather than by the delicate, evanescent, and indescribable grace which is now recognised as its indication. (HAWTHORNE, 1999, p.46)]. Mas, nunca Ester se mostrara mais bela e senhoril, no melhor significado do termo, do que quando saiu da prisão, como nos conta o narrador do romance. Os que antes a conheciam e esperavam contemplá-la, velada e coberta por uma nuvem de decepção, ficaram admirados ao reparar tamanha formosura, mesmo depois daqueles dias dentro da cadeia municipal. Ester carregava, ainda, em um de seus braços, uma criança a quem ela deu à luz ainda na prisão. Além de sua beleza, incomum a um ser humano aprisionado, um adorno fantasticamente tecido enfeita suas vestes. Ela chamava atenção de todos, mais agora, paradoxalmente, pela sua beleza do que pelo erro que cometera. A presença da criança reforça ainda mais a curiosidade dos que estão à sua volta e a razão pela qual ela chegou àquele ponto. Ironicamente, o narrador destaca a beleza de Ester, incomum a um ser humano aprisionado. Ester chamava atenção de todos, mais agora, paradoxalmente, pela sua beleza do 84 que pelo erro que cometera. Mas, um destaque especial é dado a um adorno fantasticamente tecido que enfeitava suas vestes. Pelo adultério cometido, Ester deve usar uma letra escarlate sobre o peito com as iniciais do pecado cometido – a letra ‗A‘ para Adultério – bem no patíbulo da praça da feira e por tempo suficiente para que todos as pudessem ver. O descompasso entre a interioridade de cada personagem do romance e a realidade exterior em que vivem denunciará as suas relações problemáticas na história. A fragilidade nas relações entre os homens que moram em Salem começa na própria comunidade. Nela nasce todo o conflito que vai compor o resto da história. Homens e mulheres se aglomerando à porta da prisão para ver passar uma mulher acusada de adultério. A comunidade exige das autoridades uma punição digna do tamanho do erro cometido. o ponto que atraía todos os olhares e que, por assim dizer, operava nela uma transformação, de sorte que todos quantos conheciam na intimidade, Ester Prynne experimentava agora a impressão de verem pela primeira vez era aquela grande letra escarlate, tão fantasticamente entretecida e iluminada sobre seu seio. Era como que um feitiço a transpusesse para um plano relegado das relações ordinárias com a humanidade e a encerrasse numa esfera isoladas de tudo e de todos 69 (HAWTHORNE, 1993, p. 56). [But the point which drew all eyes, and, as it were, transfigured the wearer—so that both men and women who had been familiarly acquainted with Hester Prynne were now impressed as if they beheld her for the first time—was that SCARLET LETTER, so fantastically embroidered and illuminated upon her bosom. It had the effect of a spell, taking her out of the ordinary relations with humanity, and enclosing her in a sphere by herself. (HAWTHORNE, 1999, p.47)]. Os moradores em Salem encontra-se em meio a um mundo conflituoso e, ainda que ela tenda a se separar dele, não tem o direito de importunar seu equilíbrio. A fronteira criada pelos valores que cercam os seus contornos na comunidade puritana, existe em benefício da estabilidade do sistema. Tais fronteiras cercam um mundo aparentemente perfeito e acabado, embora poderes ameaçadores e incompreensíveis se façam sentir além do círculo que os separam. Como principal personagem, Ester cumpre a tarefa de expor e mediar extremos cuja luta ocupa o romance e pela qual expressa os grandes problemas da sociedade. É por meio da trama – que tem esse herói como ponto central –, que se procura e encontra-se um espaço 69 Ester carrega o estigma do pecado em seu peito. Em seu vestido ela deveria usar uma letra escarlate com a inicial do pecado por ela cometido – a letra ‗A‘ para Adultério – bem no patíbulo da praça da feira e por tempo suficiente para que todos a pudessem ver (HAWTHORNE, 1993). 85 neutro sobre o qual forças sociais opostas estabelecem relações entre si70. Hawhtorne escolhe as personagens de A Letra Escarlate que, por seus carácteres e destinos, se põem em contato em ambos os lados do conflito. O destino de Ester é bastante apropriado para resultar em uma trama cujo desenrolar não apenas apresenta a luta de dois modelos de pensar e ver a sociedade, mas também nos aproxima humanamente dos representantes mais importantes de ambos os lados – o sistema puritano e a população. Nathaniel Hawthorne se mostra como alguém que vê o homem a partir de uma lente bastante intrigante, frágil e na maioria das vezes pessimista. Nessa direção encontramos sempre na leitura de A Letra Escarlate justificativas para apresentar a natureza frágil e limitada do homem diante da força da realidade exterior que, por ele é criada e que, ainda assim, o subjuga. O homem de Salem que cria essa mesma realidade, nela vive e nela morrerá em plena decadência, pois não pode aguentar o peso de suas próprias ordenanças. A reação defensiva de Ester Prynne, pela frieza com que a condenaram e a austeridade com que todos a olhavam implacavelmente concentrados em seu seio, culmina com uma volta ao passado onde ela encontra motivos para se manter viva. De cima do patíbulo onde ela estava e olhando para aquela multidão abaixo que não lhe tira os olhos, ela parece delirar ao ser tomada por imagens de sua terra natal e de seus pais na Inglaterra onde ela havia passado seus dias de infância. De pé, naquele estado de ignomínia, ela reviu a aldeia natal, na velha Inglaterra, e a casa paterna, uma casa desmantelada de pedra cinzenta, respirando pobreza, mas atentando por cima da porta um brasão de armas meio obliterado, em sinal de nobreza antiga. Viu o rosto do pai de fronte alta, despido de cabelo, enquadrado na alvura de uma barba respeitável, assente sobre a gola de tufos, segundo os cânones da moda Elizabethana; viu também o rosto de sua genitora, de olhar atento e amoroso, aquele olhar que nunca se apagará no espírito (HAWTHORNE, 1993, p. 60). [Standing on that miserable eminence, she saw again her native village, in Old England, and her paternal home: a decayed house of grey stone, with a povertystricken aspect, but retaining a half obliterated shield of arms over the portal, in token of antique gentility. She saw her father‘s face, with its bold brow, and reverend white beard that flowed over the old-fashioned Elizabethan ruff; her mother‘s, too, with the look of heedful and anxious love which it always wore in her remembrance (HAWTHORNE, 1999, p.51)]. Em meio ao seu devaneio descrito pelo narrador, introduz-se na mente de Ester a imagem de um homem de certa idade, rosto pálido de olhos escuros, com características de 70 O destino que cabe ao herói fornece, do ponto de vista da composição, esse tal elo que traz à exposição o conflito. 86 alguém que gastara muitas horas com os livros, a estudar. Ester percebe que não é somente uma imagem. Ele está realmente no meio da multidão. O reconhecimento de Ester é instantâneo e logo será descoberto que aquele é o seu marido. O narrador descreve o motivo da punição de Ester nos apresentando o seu marido que havia antes, desaparecido. Caro Senhor, aquela mulher estava casada com um certo homem ilustrado, inglês de nascimento, mas que viveu em Amsterdã durante um tempo. Daí, já lá vai alguns bons pares de anos, ele cuidou de atravessar o Atlântico e de fixar residência entre nós, em Massachusetts. Com esse intuito, mandou à frente a esposa enquanto ele ficou na Europa a fim de regular uns negócios. Durante dois anos, pouco mais ou menos que esta mulher residia aqui, em Boston, não chegaram notícias de Mestre Prynne, que assim se chamava o erudito cavalheiro; e sua esposa, como vê, ficou entregue a seus extravios (HAWTHORNE, 1993, p. 62). [Yonder woman, Sir, you must know, was the wife of a certain learned man, English by birth, but who had long ago dwelt in Amsterdam, whence some good time agone he was minded to cross over and cast in his lot with us of the Massachusetts. To this purpose he sent his wife before him, remaining himself to look after some necessary affairs. Marry, good Sir, in some two years, or less, that the woman has been a dweller here in Boston, no tidings have come of this learned gentleman, Master Prynne; and his young wife, look you, being left to her own misguidance—‗ (HAWTHORNE, 1999, p.55)]. A presença desse homem denuncia o adultério ao qual Ester é o ponto comum onde se encontram duas outras vidas – conheceremos a outra logo abaixo – de histórias diferentes. Todos em Salem sabem o que está acontecendo e como e porque aquela mulher chegou até ao patíbulo da praça. A comunidade reclama envolta numa nuvem de ira e de revolta. Ester havia quebrado um mandamento. Como parte de toda aquela punição, Ester haveria de ser interrogada na buscar de fazê-la entregar o responsável pela sua queda. Então, ela ficaria exposta para que toda a comunidade a pudesse ver. Agora, meu caro senhor, os nossos magistrados de Massachusetts, tendo em conta que a mulher é nova e distinta, e que sem dúvida tem sido fortemente tentada a dar o mau passo que deu – e que, além disso, segundo todas as probabilidades, o marido se encontra no fundo do mar –, não se atreveram a usar contra ela o maximo rigor prescrito em nossa lei muito justa, qual seria a pena de morte. Movidos por grande dó e ternura de coração, condenaram a sra. Prynne a permanecer durante três horas sobre a plataforma do pelourinho e, em seguida, a trazer sobre o peito, durante o resto da vida, um sinal de sua infâmia (HAWTHORNE, 1993, p.63) [‗Now, good Sir, our Massachusetts magistracy, bethinking themselves that this woman is youthful and fair, and doubtless was strongly tempted to her fall, and that, moreover, as is most likely, her husband may be at the bottom of the sea, they have not been bold to put in force the extremity of our righteous law against her. The penalty thereof is death. But in their great mercy and tenderness of heart they have doomed Mistress Prynne to stand only a space of three hours on the platform of the 87 pillory, and then and thereafter, for the remainder of her natural life to wear a mark of shame upon her bosom. ‗ (HAWTHORNE, 1999, p.55)]. Era ali que ―pecados‖ eram estirpados, desde a fundação da colônia. De fato, este patíbulo fazia parte de uma máquina penal, que para nós, volvidas duas ou três gerações, tem apenas valor histórico ou tradicional, mas que, nos velhos tempos, era um estupendo agente, na promoção da boa cidadania, como outrora a guilhotina para tempos franceses. Era, em suma, a plataforma do pelourinho, sobre a qual se erguia a armação daquele instrumento de disciplina, tão adaptado a estreitar a cabeça humana dentro de seu apertado anel, e assim expô-las aos olhares do mundo (HAWTHORNE, 1993, p.57-58) [In fact, this scaffold constituted a portion of a penal machine, which now, for two or three generations past, has been merely historical and traditionary among us, but was held, in the old time, to be as effectual an agent, in the promotion of good citizenship, as ever was the guillotine among the terrorists of France. It was, in short, the platform of the pillory; and above it rose the framework of that instrument of discipline, so fashioned as to confine the human head in its tight grasp, and thus hold it up to the public gaze. ‗ (HAWTHORNE, 1999, p.48-49)]. Mas, várias tentativas foram feitas pelo reverendo Wilson e sem obter qualquer sucesso. Em uma das ocasiões, ironicamente, respondendo quanto a quem seria o pai de sua filha, Ester respondeu que ela não precisaria do Pai terreno uma vez que a criança haveria de ter um pai no Céu. ―Não falarei! - volveu Ester, tornando-se pálida como a morte, em resposta aquela voz, que ela seguramente reconheceu. - Minha filha deve procurar um pai no céu, pois na terra nunca o encontrará‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 67). [‗I will not speak!‘ answered Hester, turning pale as death, but responding to this voice, which she too surely recognised. ‗And my child must seek a heavenly father; she shall never know an earthly one!‘‖ (HAWTHORNE, 1999, p.60)]. O modo como Ester defende a sua posição – e o seu amante – mostra a tamanha força e a generosidade em proteger o pai de sua filha. Nem mesmo todo o poder do discurso religioso com ênfase no pecado e com referência à letra escarlate sobre o seu peito, despertando terrores à imaginação de todos que o ouviam, seria capaz de arrancar dela qualquer pista do pai daquela criança. Inutilmente, Ester fora trazida de volta para a prisão, sumindo-se aos olhares do público com ela decepcionado diante de todas as tentativas frustradas de lhe arrancarem o nome do pai da criança. Em termos puramente humanos, o caráter de Ester parece ter sido afetado provocandolhe mudanças. Agora as evidências mostravam que ela era uma mulher forte e de uma moral considerada falsa, do ponto de vista de todos os moradores daquela vila puritana da Nova 88 Inglaterra. A desobediência de Ester faz dela escória de toda aquela comunidade, pois ela ultrapassara os limites para aquela sociedade. Após o confinamento na prisão e paga parte de sua sentença, Ester pode sair e retornar a sua vida na comunidade de Salem. Mas, o porvir se apresentava demasiadamente incerto. Não seria fácil encontrar estímulos que a fizessem sair daquela dolorosa situação em que ela se encontrava. Sabia que: ―dia a dia, ano a ano, a pesada carga iria engrossando sobre a montanha de sua vergonha‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 75). [for the accumulating days and added years would pile up their misery upon the heap of shame (HAWTHORNE, 1999, p.70)]. O estigma de pecadora, reforçado pela letra escarlate tecida em seu peito, seria prova de sua fraqueza e derrota, tornando-a sempre um símbolo de imoralidade na boca dos pregadores. O isolamento de Ester a impele a buscar o seu sustento a partir do bordado que ela tão bem sabia fazer. Ela havia confeccionado a sua própria letra 'A'. Com toda a sua perícia na arte de bordar e costurar, ela aprofundara sua habilidade uma vez que nada tinha para fazer a não se buscar seu sustento. Com o passar do tempo, aquela sua habilidade oferecerá à comunidade de Salem lindos bordados. Ela tornar-se-á destacada e útil, tornando-se conhecida por essa arte. Sua habilidade passa a contradizer todo o costume de Salem. Seu trabalho, com o tempo, decora festas e cerimônias públicas, inaugurações oficiais. Ela faz luvas, golas e todas as extravagâncias para os ricos que contratam os seus serviços. Após o seu período de exposição pública, Ester fora levada a morar em um pequeno chalé abandonado, que fora construído por um antigo colono mas que fora abandonado por que o solo em sua volta não servia para o cultivo (HAWTHORNE, 1993). Isolada da sociedade, Ester havia de encontrar sustento para se manter juntamente com sua filhinha. Ester, apesar de assim isolada, e sem pessoa amiga na terra que se atrevesse a mostrar-se, não incorria, entanto, nenhum risco de penúria. Era perita numa arte que, mesmo numa região onde topasse escassas oportunidades de a exercer, bastaria para obter sustento para si a e para sua filhinha. Era a arte de costurar, então, como agora, quase a única de que uma mulher pode lançar mão. Ela ostentava no peito, na letra engenhosamente bordada, um espécime de sua delicada e imaginosa habilidade, da qual as damas de uma corte poderiam aproveitar-se com o fim de enriquecerem seus artefatos de seda e ouro com mais rico e espiritual adorno de humana inventiva. Também aqui, apesar da rude simplicidade características das modas puritanas de vestuário, não faltariam oportunidades em que se recorresse a sua perícia nesta espécie de trabalho manual (...) Cerimônias públicas, tais como inaugurações oficiais, instação de magistrados, e tudo quanto pudesse conferir aos majestade às formas porque um novo governo se manifestava ao povo. (HAWTHORNE, 1993, p.77-78) [Lonely as was Hester‘s situation, and without a friend on earth who dared to show himself, she, however, incurred no risk of want. She possessed an art that sufficed, 89 even in a land that afforded comparatively little scope for its exercise, to supply food for her thriving infant and herself. It was the art, then, as now, almost the only one within a woman‘s grasp—of needle-work. She bore on her breast, in the curiously embroidered letter, a specimen of her delicate and imaginative skill, of which the dames of a court might gladly have availed themselves, to add the richer and more spiritual adornment of human ingenuity to their fabrics of silk and gold. Here, indeed, in the sable simplicity that generally characterised the Puritanic modes of dress, there might be an infrequent call for the finer productions of her handiwork (…) Public ceremonies, such as ordinations, the installation of magistrates, and all that could give majesty to the forms in which a new government manifested itself to the people (HAWTHORNE, 1999, p.72-73)]. A hipocrisia em Salem é revelada cada vez mais, na medida em que lemos o romance. Não é difícil perceber que a cada dia que passava o sofrimento que imputaram em Ester teria sido duro demais e, até certo ponto, desnecessário. Ester tinha agora a sua parcela de contribuição na sociedade. Ainda assim, com a parte do dinheiro que ganhava dos trabalhos que fazia, Ester dedicava-se a caridade. ―Com exceção destes reduzidos gastos com o adereço da filhinha, Ester dispensava o supérfluo em obras de caridade‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 79). [Except for that small expenditure in the decoration of her infant, Hester bestowed all her superfluos means in charity (HAWTHORNE, 1999, p. 74)]. E mais, ―boa porção do tempo que poderia aplicar ao exercício de sua arte, o empregava em confeccionar roupas para os pobres‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 79). [Much of the time which she might readily have applied to the better efforts of her art, she employed in making coarse garments for the poor (HAWTHORNE, 1993, p. 74)]. O aparecimento dessa nova Ester, com os seus atos de caridade, lhe trará um valor quase que angelical. Seu trabalho é bom para os proscritos de Salem. Mas, ainda assim, Ester vivia à parte dos interesses morais de Salem. Até mesmo os mais pobres, a quem ela socorria, a ultrajavam, por vezes. A dura realidade de Salem revela as bases do berço histórico da sociedade americana, portanto. Nathaniel Hawthorne denuncia os valores desumanos incutidos na história da Nova Inglaterra, apresentando suas formas de regulamento – do ir e do vir - de seus personagens. A mudança de Ester é fenomenal. Após sete anos de dedicação aos pobres indigentes daquela comunidade, a sua letra ―A‖ - que carrega no peito como marca de Adultério ganhava outros significados: agora era o ―A‖ de ―Apóstola‖, pela abnegação com que se dedicava àquela gente. ―Muita gente se recusava a interpretar a letra escarlate no seu primitivo significado. Diziam que significava apóstola, tal a fortaleza de ânimo, de que Ester se mostrava revestida‖ (HAWTHORNE, 1993, p.138-139). [Many people refused to interpret the scarlet letter ―A‖ by its original significance. They said that it meant ―Able‖, so strong 90 was Hester Prynne, with a woman´s strength‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 145)]. A quem diga que nesse ponto o ―A‖ poderia apontar para ―Anjo‖ também. Por espontânea determinação se constituíra irmã de caridade; ou podemos antes afirmar, as mãos do mundo lhe conferiram essa investidura, quando nem o mundo nem ela contavam com esse resultado. A letra era o símbolo de sua vocação. Encontravam-na sempre disposta a auxiliar, a dar aos que não tinham, a compadecer-se com os que sofriam (HAWTHORNE, 1993, p.138). [She was self-ordained a Sister of Mercy; or, we may rather say, the world´s heavy hand had so ordained her, when neither the world nor she looked forward to this result. The letter was the symbol of her calling. Such helpfulness was found in her – so much power to do and power to sympathize (HAWTHORNE, 1999, p.145)]. Em outra passagem, As autoridades e os homens sábios e letrados da comunidade, há muito que reconheciam a influência das boas qualidades de Ester, incomparavelmente mais do que o povo. Os preconceitos que compartilhavam com esse último, um férreo raciocínio os fortificara e enraizaram em seus ânimos, dificultando a tarefa de os extirparMas, dia a dia, os vincos de rigidez e amargor iam-se delindo, dando lugar a uma expressão que quase se podia interpretar como sendo de benevolência. (...) Simultaneamente os particulares se foram esquecendo também da falta de Ester Prynne; e a letra escarlate começou a ser considerada como um sinal, não de um pecado, pelo qual ela suportara tão longa e árdua penitência, mas de suas muitas boas ações praticadas durante esses anos. (HAWTHORNE, 1993, p.139) [The rulers, and the wise and learned men of the community, were longer in acknowledging the influenceof Hester‘s good qualities than the people. The prejudices which they shared in common with the latter were fortified in themselves by an iron frame-work of reasoning, that made it a far tougher labour to expel them. Day by day, nevertheless, their sour and rigid wrinkles were relaxing into something which, in the due course of years, might grow to be an expression of almost Benevolence (...)Individuals in private life, meanwhile, had quite forgiven Hester Prynne for her frailty; nay, more, they had begun to look upon the scarlet letter as the token, not of that one sin for which she had borne so long and dreary a penance, but of her many good deeds since. (HAWTHORNE, 1999, p.146)]. Da mesma forma como Ester crescera, aos olhos dos outros, nas relações que defendia em sua comunidade, ela crescera também interiormente. As circunstâncias em que se encontrara por todos aqueles anos contribuíram para o desenvolvimento ainda mais apurado de seu caráter que parecia ainda mais novo e resistente. Não acreditava nas leis daqueles homens e sempre estava pronta para resisti-los, à sua maneira. E se não questionava alguma coisa abertamente era por amor a sua filha, Pérola. Ester conhecia bem o potencial dos líderes daquela comunidade e temia o que poderiam fazer. 91 A atmosfera opressiva e as marcas que a estigmatizaram reprimem-na, mas também lhe oferece outro sentido: o sentido do ―mal‖ que impuseram em Ester fez com que ela o compreendesse muito bem. Ester entende que agora ela pode ver o pecado escondido em outras pessoas, especialmente o pecado da hipocrisia. Ester sente a presença do pecado nos magistrados do mesmo modo que ela o sente em certas mulheres, que se dizem ter boa reputação. Em consequência de tamanhas tribulações, sua imaginação encontrava-se um tanto ressentida, e muito mais se teria deixado afetar pela estranha e solitária agonia de sua vida, não fosse a solidez de sua fibra moral e intelectual (...) sentia ou imaginava sentir que a letra escarlate a enriquecera com um novo sentido. Custava-lhe a acreditar, mas não podia deixar de o acreditar que ela lhe comunicara um conhecimento compreensivo dos pecados ocultos nos outros corações. E sentia-se estrangulada pelo terror, perante as revelações que assim lhes eram feitas (HAWTHORNE, 1993, p.81). [Her imagination was somewhat affected, and, had she been of a softer moral and intellectual fibre would have been still more so, by the strange and solitary anguish of her life (…) then appeared to Hester—if altogether fancy, it was nevertheless too potent to be resisted—she felt or fancied, then, that the scarlet letter had endowed her with a new sense. She shuddered to believe, yet could not help believing, that it gave her a sympathetic knowledge of the hidden sin in other hearts. She was terrorstricken by the revelations that were thus made. (HAWTHORNE, 1999, p.76)]. A partir dessa habilidade desenvolvida por Ester, o narrador de A Letra Escarlate vai denunciando o modo como a falsa moral e a hipocrisia do sistema de relações humanas em Salem é evidente, portanto. Pouco a pouco vamos percebendo que há um enorme caos dentro daquele cosmos que se mostra, só aparentemente, organizado. Talvez o grande defeito de Ester seja o excesso de paixão que, naquele meio, é considerado pecado. Mas, na medida em que lemos o livro, podemos dizer que esse excesso vai desaparecendo. Logo percebemos que Ester é mais forte do que Chillingworth e Dimmesdale. Apesar de tudo, ela consegue – embora estando mais isolada da comunidade – manter um relacionamento mais próximo às pessoas do que os dois que, mesmo estando inseridos no seio da sociedade, não o fazem. Ela é do povo e renasce do duro solo de Salem, ao resistir a tantos obstáculos. De acordo com Campos (2011), é a força do seu silêncio71 que se traduz como arma eficaz de comunicação e de afirmação de posicionamento individual. Durante todo o enredo 71 O silêncio no texto exprime uma multiplicidade de significações, sendo como a palavra, um signo mutável e adaptável. Constitui uma forma eloquente de comunicação, importante para a leitura, elemento forte na caracterização de personagens. Assim, o calar-se de Ester é plurissignificante; é estratégia de expressão. Conhecedora do ambiente social que a cerca, Ester sabe que a privação da fala é um forma de luta, de manipulação. Sua atitude silenciosa reflete a rejeição aos ditames sociais de sua época, desafiando o status quo e abalando-o, por meio de estratégias inteligentes (CAMPOS, 2011). 92 do romance Ester procura o silêncio para proteger sua individualidade e, ao mesmo tempo, lutar pela sua independência. Ester age silenciosamente, seguindo seus próprios princípios, fazendo prevalecer seu mundo interior, refletido em uma conduta equilibrada. É o seu silêncio um desafio constante à sociedade puritana72e uma crítica aberta ao comportamento social, político e religioso da época. O protesto liderado por Ester em A Letra Escarlate contra as leis vigentes em Salem é uma negação da uniformidade, e uma rejeição da conformidade. Ester aponta para a necessidade de transformação e abre possibilidades de se discutir a liberdade – a liberdade feminina. Hawthorne vê o homem, condicionado pelo meio, sem possibilidades de se tornar livre. Tal situação impede que a força depositada em sua personagem principal se sobreponha aos padrões dominantes na época. Ao final de nossa leitura do romance perceberemos que Hawthorne usará Ester para fazer valer a mesma verdade que ele declarou em A Casa das Sete Torres (1848). Dizia ele uma um trecho daquele outro romance: ―Nenhum erro, em nossa esfera mortal, jamais será consertado‖ (HAWTHORNE, 1960, p.13). Ester não pode sair de Salem, mesmo que queira, pelos laços que lá existem: em primeiro lugar porque ela sabe quem é o pai da criança e, em segundo lugar porque o pecado e a ignomínia eram as raízes que a prendiam ao solo daquela comunidade. Eles a sacrificaram como a um bode expiatório a fim de manter vivo o contrato social daquela cidade de Boston. De certa forma, eles a transformaram em uma espécie de mártir. Mas, apesar de todo o sofrimento de Ester – e da ignorância descrita nas ações do povo –, Pérola, a sua filha, é a prova de que uma nova e diferente geração pode estar por vir. Ester prova que pode sobreviver sob condições que se mostram incomuns para as sociedades modernas. Pérola também pode ser a prova de que a esperança de que algo de bom no futuro venha a acontecer é possível. Os movimentos e os deslocamentos, as tensões e as crises, nas profundidades da vida histórica de Salem, cristalizam-se, essencialmente, de modo mais ou menos perceptível, no nível da vida cotidiana das principais forças sociais. Ester é a heroína do romance de Nathaniel, mas ela não está só. Ao seu lado, aparece Artur Dimmesdale, um jovem promissor, líder puritano, que com ela compartilha a culpa de ter cometido o adultério. 4.7 O REVERENDO ARTHUR DIMMESDALE 72 É, sobretudo, um recurso estilístico de Hawthorne (Ibid.). 93 A frente das principais cenas, de acordo com Lukács, deve ser ocupada pelas interações dos tipos representativos dos diferentes grupos sociais, interações que se produzem no nível da vida corrente, lugar onde germinam e tomam forma as mudanças históricas. Certamente que o papel do reverendo no romance expõe a hipocrisia de um regime que quer desconsiderar as potencias e os instintos humanos em sua concepção mais natural. O jovem teólogo, cuja fama de estudante ainda perdura em Oxford, era considerado, por seus mais ferventes admiradores, como pouco menos que um apóstolo ordenado pelo céu, para, enquanto tivesse vida e saúde, realizar por seu trabalho tão sublimes feitos na igreja da Nova Inglaterra, de recente criação, como os antigos Santos Padres, havia realizado na infância da Igreja Cristã (HAWTHORNE, 1993, p.106). [The young divine, whose scholar-like renown still lived in Oxford, was considered by his more fervent admirers as little less than a heavenly ordained apostle, destined, should he live and labor for the ordinary term of life, to do as great deeds, for the now feeble New England Church, as the early Fathers had achieved for the infancy of the Christian faith (HAWTHORNE, 1999, p.107)]. A figura do reverendo Artur Dimmesdale – jovem autoridade entre os magistrados, reconhecido como um homem coerente com o que ensinava, pastor eloquente e fervoroso, uma das principais autoridades locais –, evoca a força do modo de vida religioso que domina os moradores de Salem. Ele representa o recipiente maior dos princípios e dos valores massificados pelo ensinamento dos puritanos da Nova Inglaterra de Hawthorne. Na cena de apresentação em que Ester é apresentada ao público de maneira ignominiosa, Dimmesdale aparece como expectador de toda a cena e como piedoso pastor da infeliz mulher. Mas, a um olhar mais atento, ele já aparece bem diferente das demais pessoas ali presentes, pois há em seus olhos um tom de melancolia bem como um ar de apreensão e timidez. O discurso por ele proferido, naquele patíbulo da praça, a pedido do reverendo Wilson73 – principal autoridade religiosa local – foi seguido pelo olhar atento de Ester. A intenção da prédica era de que ela confessasse quem era o pai da criança que ela carregava sobre o seu colo. É desse ponto que surge todo o engenho narrativo que Hawthorne 73 No romance histórico, as personagens históricas de primeiro plano, os indivíduos que ocupam lugares historicamente reconhecidos em determinados contextos, só podem ser personagens secundários, ficando a cena central ocupada pelos representantes da vida normal, cotidiana (LUKÁCS, 2011). Na cena descrita, a presença do reverendo Wilson, um dos magistrados e administradores da colônia de Massachusetts, aparece para destacar o pano de fundo no qual a obra está inscrita. 94 desenvolve, expondo questões de vida e sobrevivência na sociedade puritana de seus antepassados. As reações de Dimmesdale, ao que ele próprio diz e a recusa de Ester, sem dar sinais de respostas, são tanto uma tentativa de denunciar sua própria culpa quanto uma revelação de seu medo de ser descoberto. Dimmesdale se contradiz: ele manda obedecer à lei e é transgressor dela. O seu discurso é demarcado pela eloquência religiosa a ponto de tentar convencer Ester a denunciar seu amante. A sua postura como reverendo é oralmente válida, mas a sua prática diária, agora, desvia-se de suas palavras. Ester Prynne – disse, debruçando-se sobre a sacada e fitando firme, os olhos dela –, ouves o que este santo homem diz e vês a responsabilidade que pesa sobre seus ombros. Se sentes que daí te vem paz à alma, e que tua punição terrestre contribuirá mais por esse meio para a tua salvação, exorto-te a que reveles o nome do teu companheiro de pecado e de sofrimento! Não guardes silêncio, movido de qualquer sentimento de falsa compaixão e ternura para com ele; pois acredita em mim Ester, embora ele devesse baixar de um alto posto e estar ai ao teu lado nesse pedestal de ignomínia, isso seria preferível a encobrir, pela vida fora, um coração ignominioso (HAWTHORNE, 1993, p.66). [‗Hester Prynne,‘ said he, leaning over the balcony and looking down steadfastly into her eyes, ‗thou hearest what this good man says, and seest the accountability under which I labor. If thou feelest it to be for thy soul‘s peace, and that thy earthly punishment will thereby be made more effectual to salvation, I charge thee to speak out the name of thy fellow-sinner and fellow-sufferer! Be not silent from any mistaken pity and tenderness for him; for, believe me, Hester, though he were to step down from a high place, and stand there beside thee, on thy pedestal of shame, yet better were it so than to hide a guilty heart through life lamp? What can thy silence do for him, except it tempt him—yea, compel him, as it were—to add hypocrisy to sin (HAWTHORNE, 1999, p.59)]? A ambivalência de suas palavras projeta culpa, medo e hipocrisia de uma consciência que sofre e que acompanhará a sua personalidade – dupla personalidade, pois ele é o pai não assumido daquela criança que Ester traz no colo diante do povo. Ao final da cerimônia, outro sermão sobre o pecado, em todas as suas manifestações e com referências contínuas à letra escarlate sobre o peito de Ester, foi conferida aos ouvintes. Ester suporta tudo aquilo em silêncio e convida o leitor a pensar no fim que terá aquela tal história. A posição de Ester agrava ainda mais a de Dimmesdale. O drama de Dimmesdale cresce cada vez mais a cada dia que passa. Aspectos de uma covardia e de uma falsa moral, que não podem ser dignos de um homem em busca da verdade, revelam o medo que o pastor tem da própria sociedade da qual ele faz parte. Mas, assim era Salem. A postura de Dimmesdale durante o romance denuncia o alto preço que se paga por 95 um comportamento que não se enquadra diante das leis sociais. Por exemplo, ao defender que Pérola deve ficar com a mãe, ele se esquiva em assumir que é o seu pai. O que Ester diz é verdade, como verdadeiro é o sentimento que a inspira! Deus deulhe a criança, e deu-lhe, igualmente, um conhecimentos instintivo da natureza e exigência da mesma criança, como nenhum outro mortal pode possuir. Além disso, não existe porventura uma secreta sacralidade nas relações entre a mãe e esta filha? (...) Porque, se pensamos de modo diferente, não deveremos dizer, para ser coerentes, que o Pai Celestial, o Criador de toda a carne, sancionou ligeiramente uma ação pecaminosa, e nem tomou em consideração a distinção entre um prazer ilícito e um amor sagrado? Esta filha de uma falta de seu pai e da ignomínia de sua mãe veio das mãos de Deus, para de muitas maneiras agir sobre o coração dela, que neste momento advoga com tanta insistência e amargura de ânimo o direito de a reter. Considerou-a uma benção, uma benção em sua vida! Considerou-a, igualmente, como há pouco disse, um castigo; uma tortura de todos os instantes; uma angústia, um estigma, uma agonia permanente, em meio de uma alegria enevoada (HAWTHORNE, 1993, p.101) [Truth in what Hester says, and in the feeling which inspires her! God gave her the child, and gave her, too, an instinctive knowledge of its nature and requirements— both seemingly so peculiar—which no other mortal being can possess. And, moreover, is there not a quality of awful sacredness in the relation between this mother and this child? (…) For, if we deem it otherwise, do we not hereby say that the Heavenly Father, the creator of all flesh, hath lightly recognized a deed of sin, and made of no account the distinction between unhallowed lust and holy love? This child of its father‘s guilt and its mother‘s shame has come from the hand of God, to work in many ways upon her heart, who pleads so earnestly and with such bitterness of spirit the right to keep her. It was meant for a blessing— for the one blessing of her life! It was meant, doubtless, the mother herself hath told us, for a retribution, too; a torture to be felt at many an unthought-of moment; a pang, a sting, an everrecurring agony, in the midst of a troubled joy! (HAWTHORNE, 1999, p.101)]. O peso de tentar salvar a sua fé parece ser grande demais para um ser humano. Dimmesdale percebe como é incapaz de cumprir tamanhas ordenanças que desde cedo lhes são embutidas na mente. Dimmesdale segue perdendo completamente a fé em si mesmo, dando lugar para o mal, deixando-se dominar pela força da lei que é opressora. O desânimo e a desilusão o seguem, chegando a ponto de torná-lo cínico diante de todas aquelas circunstâncias. Fraco e sozinho, ele tende a cair de uma vez, não tendo mais otimismo e forças para se refazer. O seu caráter decadente justifica-se diante do fosso perante a sua interioridade e a exterioridade do legalismo existente em Salem. O jovem ministro, quando acabou de falar, afastou-se uns passos do grupo, e permaneceu com o rosto parcialmente velado pelas pesadas dobras do reposteiro da janela, enquanto sua silhueta, projetada no assoalho pela luz solar, tremia em consequência do ardor com que falara (HAWTHORNE, 1993, p.102). [The young minister, on ceasing to speak had withdrawn a few steps from the group, and stood with his face partially concealed in the heavy folds of the window curtain; 96 while the shadow of his figure, which the sunlight cast upon the floor, was tremulous with the vehemence of his appeal (HAWTHORNE, 1999, p.103)]. Há muita crítica a ser feita em relação à natureza espiritual e psicológica de Dimmesdale. O romance traz uma reflexão bastante dura a respeito da postura do jovem reverendo durante toda a história. O narrador em alguns momentos menciona que algumas jovens senhoras da comunidade tem uma espécie de afetividade, tanto espiritual quanto romântica para com Dimmesdale. O fato é que, de alguma forma, ele mostra-se como um modelo para todos na comunidade74. A mudança no caráter de Dimmesdale impressiona, pois praticamente não sobra mais nada do seu caráter para contestar sua culpa até o final do romance. Dimmesdale perdera completamente a fé em si mesmo, dando lugar para o mal, deixando-se dominar pela força da lei. Ele se torna desiludido e desanimado, chegando a ponto de ficar cínico diante de todas aquelas circunstâncias. Fraco e sozinho, ele tende a cair de uma vez e não tendo mais otimismo e forças para se refazer, declinará de uma vez, justificando o seu caráter decadente diante do legalismo existente em Salem. Para aqueles que estavam mais familiarizados com seus hábitos, a palidez do rosto do jovem ministro era interpretada como resultado de excessiva aplicação ao estudo e de escrupuloso cumprimento dos deveres paroquiais e, mas que tudo, aos jejuns e vigílias em que se consumia, com fim de evitar que a rude crosta e seu arcabouço corpóreo obstruíssem ou obscurecesse a luz da lâmpada que lhe iluminava o espírito (...) dia a dia o organismo ia definhando; a voz, embora continuasse bem timbrada e melíflua, trazia um certo tom melancólico e profético de dacaimento; frequentemente, ao mais leve alarme ou súbito incidente, levava a mão ao peito, ao mesmo tempo em que seu rosto, primeiro, corava e, logo a seguir, se cobria de uma palor, indicativo de sofrimento (HAWTHORNE, 1993, p.106-107). [By those best acquainted with his habits, the paleness of the young minister‘s cheek was accounted for by his too earnest devotion to study, his scrupulous fulfillment of parochial duty, and more than all, to the fasts and vigils of which he made a frequent practice, in order to keep the grossness of this earthly state from clogging and obscuring his spiritual lamp (…) His form grew emaciated; his voice, though still rich and sweet, had a certain melancholy prophecy of decay in it; he was often observed, on any slight alarm or other sudden accident, to put his hand over his heart with first a flush and then a paleness, indicative of pain (HAWTHORNE, 1999, p.107)]. 74 Esse ponto é de grande valor no desenrolar da história. Mas, o que alguém pode julgar como sendo uma espécie de respeito pela boa reputação do pastor pode ser também compreendido como uma atração física e emocional para com ele. Embora nunca esteja literalmente explicado no texto, o envolvimento de Ester com Dimmesdale pode ter sido oriundo dessa primeira atração. Pode-se considerar que realmente existe uma espécie de masculinidade e paixão destacáveis no jovem reverendo. A paixão que tomara Ester certamente também deve ter tomado conta de algumas jovens de sua comunidade. 97 A queda no semblante de Dimmesdale e as mudanças que ele vem apresentando é fruto de uma dedicação cada vez maior a oração e ao trabalho pastoral, segundo os moradores de Salem. Chega-se a comentar, na comunidade, que o chão que ele agora pisa se tornara santificado75. Mas, por outro lado, o pastor questiona a possibilidade de nascer grama sobre o seu túmulo quando ele morrer, tão sôfrego está o seu estado. Entre todas as suposições que pudessem existir a respeito do estado do reverendo, havia aquela de que entendia que a chegada do dr. Chillingworth havia sido providenciada por Deus, a fim de ajudar ao reverendo Dimmesdale. ―Firmou-se um boato apesar de absurdo, espalhado por muita gente, de que o céu operara um milagre, transportando o iminente doutor em medicina, desde uma universidade Alemã, pelo ar, em corpo e alma, e o colocara a porta do gabinete de estudo de Dimmesdale‖ (HAWTHORNE, 1993, p.107). [a rumour gained ground—and however absurd, was entertained by some very sensible people—that Heaven had wrought an absolute miracle, by transporting an eminent Doctor of Physic from a German university bodily through the air and setting him down at the door of Mr. Dimmesdale‘s study! (HAWTHORNE, 1999, p.108)]. Ciente de seu pecado, Dimmesdale afirmava não precisar de medicina: ―– Não preciso de medicina!‖ ele dizia (HAWTHORNE, 1993, p.108). [I need no medicine, said he (HAWTHORNE, 1999, p.108)]. Os sinais no corpo de Dimmesdale denunciavam descontrole entre o racional e o emocional. O mal estar que perseguia o pastor estaria entre estes dois pontos, nitidamente. Apenas com o tempo, as especulações dos habitantes de Salem também passam a desconfiar do caráter maléfico do doutor Chillingworth. Aquele médico que era capaz de salvar muitas pessoas da morte poderia ser a causa das dores do jovem pastor. A sua convivência entre os índios e a aprendizagem de alquimia - a manipulação de ervas e raízes podiam ter feito dele uma espécie de bruxo. Dois ou três indivíduos insinuavam que o homem da ciência, durante o cativeiro entre os índios, alargara seus conhecimentos médicos, acrescentando-lhes os feitiços dos sacerdotes selvagens, universalmente conhecidos como potentes encantadores e que muitas vezes executava curas aparentemente milagrosas, por meio de suas artes mágicas (HAWTHORNE, 1993, p.112). 75 A população de Salem não consegue detectar a falha que tomou conta do reverendo. A hipocrisia de Dimmesdale, a máscara que ele utiliza, na tentativa de manter uma aparência, entretanto, leva a população, como é de se esperar, à ingenuidade e ao desconhecimento. Os moradores de Salem pensam que a mudança que o reverendo passa a apresentar visivelmente no corpo é resultado de sua dedicação eclesiástica – pastoral – àquela comunidade. 98 [Two or three individuals hinted that the man of skill, during his Indian captivity, had enlarged his medical attainments by joining in the incantations of the savage priests, who were universally acknowledged to be powerful enchanters, often performing seemingly miraculous cures by their skill in the black art. (HAWTHORNE, 1999, p.113)]. Naquele contexto, alguns viam no semblante do médico marcas diabólicas, também: muitas pessoas, - entre as quais algumas de senso prático, cujas opiniões costumavam ser acatadas noutros domínios, - afirmavam que o aspecto de Rogério Chillingworth sofrera notável mudança desde que se encontrava instalado na cidade, e principalmente desde que morava com Dimmesdale. A princípio, sua expressão era calma, meditava, como a de um estudioso. Agora havia em sua face algo de horroroso e demoníaco, que eles não tinham previamente notado, e que mais se tornava notório, quanto mais o observavam (HAWTHORNE, 1993, p.112). [A large number—and many of these were persons of such sober sense and practical observation that their opinions would have been valuable in other matters—affirmed that Roger Chillingworth‘s aspect had undergone a remarkable change while he had dwelt in town, and especially since his abode with Mr. Dimmesdale. At first, his expression had been calm, meditative, scholar-like. Now there was something ugly and evil in his face, which they had not previously noticed, and which grew still the more obvious to sight the oftener they looked upon him. (HAWTHORNE, 1999, p.112)]. Para a comunidade, cujo discernimento é pouco apurado, era como se Chillingworth fosse então, um agente diabólico, permitido por Deus para tramar contra a alma do jovem pastor, como se o quisesse testar. Para nós, entretanto, resta-nos perceber que Dimmesdale se destrói a cada página do romance, uma vez que ele alimenta sua própria culpa. Mais importante do que o seu erro naquela comunidade puritana altamente moralista é a falsidade que ele desenvolve para com ele mesmo e para com seus concidadãos – ele nega, por exemplo, a sua ligação fundamental, natural e humana com Ester e sua filha. Quanto mais a sua fama e veneração pública crescem, mais ele percebe que suas ações violam os princípios básicos, não somente de humanidade, mas também de sua vocação: ele era um sacerdote puritano. Sua maior punição é saber que havia se transformado em um egoísta para quem toda a realidade em sua volta era altamente ilusória e mentirosa. A sua ultima afirmação pública diante de todos vai lhe revelar apenas desonra e humilhação. Há quem possa interpretar que, de alguma maneira, houve uma vitória moral no final do romance. Hawthorne deixou registrado em suas anotações que uma luz pura brilha no centro da escura caverna do coração, e A Letra Escarlate se concentra na terrível escuridão que circunda toda essa luz. A mais importante região de luta do ser humano era, na concepção de Hawthorne, o coração (HAWTHORNE, 1960, p.13). 99 Importa-nos, enquanto leitores, reconhecer as forças que impelem o pobre pastor a agir em direção à solução do problema que o absorve por inteiro, chegando a levá-lo às últimas consequências. A tentativa final de Dimmesdale em consertar o seu erro trará consequências trágicas irreparáveis para sua própria vida. 4.8 ROGÉRIO CHILLINGWORTH, O MÉDICO TRAÍDO A degeneração de Dimmesdale revela o ponto a que pode levar o entendimento de uma sociedade que vivia a partir do código puritano. O que se via e ouvia, aos olhos da sociedade, era uma grande batalha travada entre o reverendo Dimmesdale e o médico Chillingworth. A dificuldade estava no fato de que, o sofrimento revelado nos olhos do ministro não dava certeza de que ele venceria. A doença dele o faz cada vez mais alimentar o desejo de levar o seu segredo à sepultura. Entretanto Chillingworth, o então marido de Ester e intelectual reconhecido, é parte importante da história, pois interessa-lhe saber quem é o pai da criança que sua ―esposa‖ traz consigo – e ele o fará a qualquer custo. Chillingworth representava uma aquisição ímpar. Cedo, manifestou ele sua familiaridade com a poderosa e imponente maquinaria da antiga medicina, na qual cada remédio continha uma legião de ingredientes muito rebuscados e heterogêneos, de cujas escrupulosas combinações parece dever resultar o elixir da vida (HAWTHORNE, 1993, p.106). [Roger Chillingworth was a brilliant acquisition. He soon manifested his familiarity with the ponderous and imposing machinery of antique physic; in which every remedy contained a multitude of far-fetched and heterogeneous ingredients, as elaborately compounded as if the proposed result had been the Elixir of Life. (HAWTHORNE, 1999, p.106)]. Aceito na comunidade como médico e conhecedor dos segredos alquímicos – conhecimentos médicos que lhe tinham sido comunicados em seu tempo de estudos na Europa –, Chillingworth se tornara a principal referência da medicina naquela comunidade de Salem. 100 A sua primeira aparição no romance acontece durante toda aquela exposição76, toda aquela repressão a que foram endereçadas, tanto Ester quanto a criança que ela carregava no colo. As duas sofrem consequências físicas oriundas daquele momento desumano a ponto de ser-lhes necessária uma presença médica. Tanto Ester quanto Pérola voltam para a prisão, debilitadas Após ter regressado à prisão, Ester Prynne encontrava-se num estado de excitação nervosa tal, que se tornou necessário vigia-la constantemente com receio de que perpetrasse alguma violência sobre si ou sobre a criança. [...] Não tanto Ester precisava de assistência profissional, quanto e completamente a filhinha, a qual, tirando seu sustento do seio materno, parecia ter bebido juntamente com o leite toda a perturbação, angústia e desespero de que o organismo da mãe se sentia possuído (HAWTHORNE, 1993, p. 69). [After her return to the prison, Hester Prynne was found to be in a state of nervous excitement, that demanded constant watchfulness, lest she should perpetrate violence on herself, or do some half-frenzied mischief to the poor babe (…) there was much need of professional assistance, not merely for Hester herself, but still more urgently for the child—who, drawing its sustenance from the maternal bosom, seemed to have drank in with it all the turmoil, the anguish and despair, which pervaded the mother‘s system. It (HAWTHORNE, 1999, p.62)]. Ao lermos A Letra Escarlate podemos perceber que para imaginação de Hawthorne o fato de Ester e Dimmesdale terem tido um caso extraconjugal parece ser de menor interesse. O que o atrai, na verdade, é a idéia da situação moral que eles passam a enfrentar a partir de então, nos longos anos que se seguirão. Pensando dessa maneira, a história de Ester, na verdade, está em um grau secundário77, ainda que, todos sabemos, é a partir dela que o desenrolar do enredo começa a ser construído. A construção do texto Nathaniel Hawthorne colocará, pela primeira vez, Ester e o seu ex-marido, Senhor Prynne, frente a frente. Ele é o médico que as atende no retorno à prisão. Durante a sua vinda à Nova Inglaterra o doutor Prynne fora detido pelos índios e entre eles permaneceu por algum tempo, tornando-se também um vasto conhecedor dos segredos da natureza. Meus antigos estudos de alquimia, - observou, - e minha estadia, durante mais de um ano, entre gentes entendidas nas propriedades salutíferas das plantas, fizeram de mim um médico mais competente do que muitos que cursaram as bancadas das universidades (HAWTHORNE, 1993, p. 70). 76 Chillingworth aparece no momento em que Ester está sendo apresentada para o público, no patíbulo da praça. Ele surge em trajes indígenas, no terceiro capítulo (HAWTHORNE, 1993). 77 Mas é apartir dela, todos sabemos, 101 [‗My old studies in alchemy,‘ observed he, ‗and my sojourn, for above a year past, among a people well versed in the kindly properties of simples, have made a better physician of me than many that claim the medical degree‘ (HAWTHORNE, 1999, p.63)]. Tendo ouvido tudo sobre a trajetória de Ester e enfrentando o escândalo de vê-la ser sujeito de iniquidade e de falha, o senhor Prynne tem sua alma atingida em cheio. Doía-lhe, ainda mais, saber que sua mulher carregava uma criança que não era sua. Na medida em que os dois conversam, Ester reconhece que aquele que se diz médico é o seu ex-marido que estava desaparecido, Senhor Prynne, com quem ela havia casada há alguns anos atrás. Ele se apresenta com outro nome, Rogério Chilligworth, e continua sua consulta, observando também que a criança precisava de sua a ajuda. O caráter duro de Ester não custou a acreditar que aquele homem certamente poderia se vingar. Aquela criança que chorava não era sua quando deveria ter sido e ela temia que ele a fizesse algum mal. Mas, Ester acabada consentindo o tratamento à sua filha. Ester decide não rejeita a ajuda de Chillinworth, uma vez que a criança necessitada de cuidados e ele era o único médio ali. Ao curar também Ester, Chillingworth lamenta ter se iludido e casado com uma mulher tão bela e jovem na fantasia de se considerar sábio suficiente para tanto. ―Se os sábios fossem sempre sábios em seu proveito, eu deveria ter previsto tudo que aconteceu‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 72). [If sages were ever wise in their own behoof, I might have foreseen all this (HAWTHORNE, 1999, p. 65). Ao término da conversa com Ester, o médico pede que ela não revele a sua verdadeira identidade. ―Uma coisa há, porque foste minha mulher, que eu quereria ordenar-te – continuou o homem da ciência –. Guardaste o segredo do nome do teu amante. Guarda também o meu! Ninguém nesta terra deve saber quem eu sou.‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 73) [‗One thing, thou that wast my wife, I would enjoin upon thee,‘ continued the scholar. ‗Thou hast kept the secret of thy paramour. Keep, likewise, mine! There are none in this land that know me (HAWTHORNE, 1999, p.67)]. O consentimento de Ester em admitir o pedido de Chillingworth para não revelar-lhe sua verdadeira identidade não nos oferece uma justificativa muito razoável. Talvez ela tenha pensado que se o denunciasse ela seria penalizada com a morte e sua filha lhe seria tomada. Uma mulher de brio forte não poderia ter permitido isso acontecer, talvez. Pode haver quem considere que, fazendo assim, ela está se alinhando com a vingança que Chillingworth em sua mente, já engendrara. Isso poderia até mesmo configurar-se como uma falha no caráter de Ester. 102 Para Chillingworth, entretanto, havia sido uma surpresa grande demais pelo fato de que, ao ser libertado do cativeiro indígena, ele encontrar sua esposa como uma adúltera e com uma criança. A sua decepção e tristeza, bem como o corte que fora proferido contra a sua alma, atingindo a sua moral de sábio, o conduzirão até a sua vingança, levando-o a uma busca incessante pelo nome do pai da criança que sua mulher carrega, uma vez que ela não o quis revelar. Não queres revelar-me o seu nome? Nem por isso ele será menos meu, - resumiu, com olhar de confiança, como se o destino estivesse colaborando com ele. - Esse homem não traz nenhuma letra inflamante sobre o traje, como tu; mas eu hei de lê-la em seu coração (HAWTHORNE, 1993, p. 73). [‗Thou wilt not reveal his name? Not the less he is mine,‘ resumed he, with a look of confidence, as if destiny were at one with him. ‗He bears no letter of infamy wrought into his garment, as thou dost, but I shall read it on his heart . (HAWTHORNE, 1999, p.67)]. No enredo da história, Chillingworth se revela como principal opositor de Ester e, consequentemente, do reverendo Arthur Dimmesdale. A decisão de se vingar assumida por Chilingworth não deixa de ser tão inválida do ponto de vista dele mesmo: ele tentara amar Ester com toda a sua força, contudo era um tanto mais velho do que ela e muito dado aos livros, enquanto ela contava com as primeiras primaveras de sua juventude. A fúria de Chillingworth é aumentada ainda mais ao vê-la com uma criança que ele mesmo não pode lhe dar. A ênfase no caráter diabólico de Rogério pelo narrador nos faz esquecer as razões naturais para suas atitudes. Chillingworth tem o caráter abalado e transformar-se-á, obcecadamente por sua busca de vingança, no principal antagonista da história. Eu, - um intelectual – um rato de grandes bibliotecas – um homem já a caminho da decadência, que aplicara o melhor dos meus anos a alimentar o sonho faminto de saber, que poderia esperar de uma juventude e beleza como a tua? Fisicamente disforme desde o nascimento, como poderia iludir-me com a idéia de que os dotes intelectuais seriam bastante para velar a deformidade física na fantasia de uma jovem? Dizem que sou sábio. Se os sábios fossem sempre sábios em seu proveito, eu deveria ter previsto tudo quanto aconteceu. Poderia ter sabido que, ao abandonar a vasta e sombria flores e penetrar nesta povoação de cristãos, o primeiro objetos dos meus olhos serias tu mesma, Ester Prynne, de pé, como estátua de ignomínia, diante do povo. Sim! Desde o momento em que descemos, juntos, os degraus do velho templo, unidos pelos laços do matrimônio, eu podia ter avistado a fogueira desta letra escarlate ardendo na outra extremidade de nosso caminho. (HAWTHORNE, 1993, p. 71). [I—a man of thought—the book-worm of great libraries—a man already in decay, having given my best years to feed the hungry dream of knowledge—what had I to 103 do with youth and beauty like thine own? Misshapen from my birth-hour, how could I delude myself with the idea that intellectual gifts might veil physical deformity in a young girl‘s fantasy? Men call me wise. If sages were ever wise in their own behoof, I might have foreseen all this. I might have known that, as I came out of the vast and dismal forest, and entered this settlement of Christian men, the very first object to meet my eyes would be thyself, Hester Prynne, standing up, a statue of ignominy, before the people. Nay, from the moment when we came down the old church-steps together, a married pair, I might have beheld the bale-fire of that scarlet letter blazing at the end of our path!‘ (HAWTHORNE, 1999, p.65)]. Para Chillingworth, entretanto, sua satisfação já era parcial. Ester já estava pagando pela sua falta. Faltava-lhe o outro traidor. Chillingworth estava decidido a cumprir o desejo do seu coração: ele empenharia todos os seus esforços para descobrir quem era o parceiro de Ester naquela traição. A sua aparência de vingança cresce a cada página da história. Na medida em que o tempo passa, sua outrora aparência de homem intelectual, calmo e estudioso se esvai, dando lugar para outra cada vez mais agressiva e feroz, tomada pelo desejo de vingança. Uma personalidade diabólica passa a se destacar em Chillingworth. Por ter sido preterido na relação com sua esposa, não é difícil perceber que qualquer coisa que passa a ser dita pelo ‗estrangeiro‘ Chillingworth será maculada como que por um sentimento infernal, como na passagem abaixo destacada. Para ele o amante de Ester – o reverendo Dimmesdale – tem que ser descoberto, ainda que não seja para fins morais: sábia sentença! – obtemperou o estrangeiro, Rogério Chillingworth, abanando a cabeça. – Desse modo, ela será uma prédica viva contra o pecado, até que a letra ignominiosa seja inscrita sobre a pedra de seu túmulo. Aborrece-me, no entanto, que o parceiro de sua ingenuidade não esteja ao menos, ao lado dela sobre o patíbulo. Mas saber-se-á quem foi! Mas saber-se-á quem foi! Mas saber-se-á quem foi! (HAWTHORNE, 1993, p. 63). [‗A wise sentence,‘ remarked the stranger, gravely, bowing his head. ‗Thus she will be a living sermon against sin, until the ignominious letter be engraved upon her tombstone. It irks me, nevertheless, that the partner of her iniquity should not at least, stand on the scaffold by her side. But he will be known—he will be known!— he will be known!‘‘ (HAWTHORNE, 1999, p.56)]. A proposição de repetição na sentença final prova o quanto ele está decidido a encontrar o outro transgressor. Rogério Chillingworth buscará dia e noite o causador de tamanha traição. Esse é o traço claro e presente que perseguirá Chillingworth. A sua força passa a afetar a relação entre os principais personagens da história. O seu papel no romance ganha ênfase e se justifica. Alimentado pela traição que sofrera por parte de sua mulher, Chillingworth já está decidido a e vingar, custe o que custar, como por uma questão de honra. 104 Por ironia do destino, minuciosamente tecido pelo narrador de Hawthorne, encontraremos o dr. Chillingworth ao lado do reverendo Dimmesdale durante grande parte da história. Chillingworth o havia escolhido como conselheiro espiritual. Tal apego ao pastor também lhe conferirá uma religiosidade destacável entre os moradores de Salem. Chillingworth e Dimmesdale se tornarão, então, grandes amigos e isso será, num primeiro momento, positivo aos olhos de todos os cidadãos de Salem. Como podemos ver, diferentemente de Dimmesdale, Chillingworth voluntariamente se isola da comunidade desde o começo da história ao renunciar a sua identidade para evitar a vergonha de ter sido passado para trás e para, ao mesmo tempo, buscar sua vingança. Ele desiste de toda e qualquer ética médica ou humana como possível tentativa de solucionar o problema. Os seus anseios agora são outros. Ele buscará uma revanche perfeita assumindo o papel de pior inimigo travestido com a pele de um solícito e bondoso amigo. A sua única maneira de expurgar a sua derrota será encontrando e destruindo aquele que, nele, a imputou: o reverendo Dimmesdale. Essa é a sua razão de existir. Ao escrever o seu romance Hawthorne estava consciente do paradoxo que habitava naquela comunidade: a moralidade social é requerida pelos membros da comunidade religiosa enquanto que a própria religião assume, como dogma, a natureza pecaminosa do homem. No pecado de Adão todos pecaram. Nathaniel Hawthorne revela as pretensões de racionalidade e de sabedoria estando submetidas a conceitos cristalizados pelos cristãos puritanos que vão, pouco a pouco, se transformando em ‗preconceitos‘. Ao lermos o romance, vemos que a busca de integridade humana estará longe e será sempre frustrada. A fragilidade e a tristeza entre os puritanos se evidenciarão pelo fato de que, na Salem observada por Nathaniel Hawhtorne, o que existe de humano, caminha para a deteriorização. 4.9 PÉROLA: UMA FUTURA GERAÇÃO Ao lermos A Letra Escarlate vemos que o narrador não deixa de demonstrar em Pérola o modo como os inocentes pagam pelas tristezas e decepções de adultos. A situação enfrentada por ela no enredo da história e as transformações que ela sofre, denunciam o modo desumano pelo qual aquela comunidade puritana tem gerado seus filhos. Por um momento, Pérola esteve presa às amarras da sociedade, juntamente com sua mãe. Mas, na medida em que ela cresce, ela vai ganhando a sua liberdade, relacionando-se cada vez mais com o mundo e percebendo, portanto, os limites que lhes foram impostos. Por 105 ser fruto do adultério entre Ester e o reverendo Dimmesdale, Pérola encontrará dificuldades em sua convivência em Salem. Isolada pela maléfica sociedade em que vive, sua mãe a um custo muito alto, desenvolverá um caráter independente durante o transcorrer da história. Pérola acompanha tudo bem de perto. A leitura do enredo nos leva a pensar que ela parece ser mais filha de Ester do que de Dimmesdale uma vez que Pérola não convive com o pai: ―todo aquele rancor e paixão, Pérola os herdara, por direito inalienável, do coração de sua mãe, Ester. Mãe e filhas encontravam-se associadas dentro do mesmo círculo de afastamento da sociedade humana.‖ (HAWTHORNE, 1993, p.87) [All this enmity and passion had Pearl inherited, by inalienable right, out of Hester‘s heart. Mother and daughter stood together in the same circle of seclusion from human society; (HAWTHORNE, 1999, p.84)].. É bem verdade que Ester chega, por vezes, a duvidar da identidade da filha devido à tamanha vivacidade e capacidade imaginativa da criança. ―Pai celestial - se ainda és meu pai - que ser é esse que joguei no mundo?‖ (HAWTHORNE, 1993, p.88) [‗O Father in Heaven— if Thou art still my Father—what is this being which I have brought into the world?‘ (HAWTHORNE, 1999, p.85)]. Mas, se fizermos uma análise psicológica da obra poderemos até dizer que é Pérola quem salva Ester das consequências danosas que sofrera no seio daquela cidade cheia de dogmas e regras. Pérola representa Ester, como se através de uma espécie de espelho da época em que um dia ela – Ester – fora feliz, antes de cometer o ―erro‖. Um dia Ester fora feliz e alegre como Pérola. O narrador de Hawthorne não perdeu a oportunidade para apresentar Pérola como uma personagem que durante todo o tempo reage hostilmente ante ao procedimento castrador e repressor dos moradores de Salem. Como criança, ela não tem a ideia do código de leis que existe naquela cidade e suas reações vão de encontro, na maioria das vezes, ao que pregam os seus juízes. Seus impulsos, de vida e de morte, alegria e tristeza, estão evidentes e impregnados, naturalmente, na sua natureza humana. Pérola é vigiada todos os dias por Ester, sua mãe super protetora, ainda que lhe permita, muitas vezes, agir em favor de seus próprios impulsos infantis em vez de fazer uso de uma austera disciplina. Muitas vezes Pérola se revela como alguém que aceita a sua solidão – as outras crianças não brincam com ela. Considerada como um pequeno espírito e, até mesmo demônio ou espécie de amuleto usado por um mestre do mal, entre outras referências, Pérola, costumeiramente, espanta as criancinhas com seus gritos e age friamente diante dos magistrados, que querem lhe tirar de sua mãe. O contraste entre Ester e Pérola é notório: uma criança não pode ser sujeita às regras como sua mãe. Mas para os líderes puritanos Pérola cresce como enxerto do mal, fruto do 106 pecado e emblema e produto do erro, não sendo bem vista e não tendo o mesmo direito que as demais crianças. O caráter irreverente – de criança – põe em jogo toda a muralha dogmática da puritana. Os magistrados querem conferir-lhe a alcunha de ter sido criada à imagem e à semelhança do diabo, entretanto. O contexto no qual Ester está inserida e diante das circunstâncias em que ela se encontra, levam-na a fazer mil questionamentos e buscar sinais que a ajudem a melhorar sua compreensão a respeito de Pérola. A disposição de Pérola revelada por sua mente fantasiosa e por sua privação da companhia de outras crianças fazia com que ela desenvolvesse ainda mais sua imaginação. Não por acaso Pérola presta muita atenção à letra escarlate cravada no peito de sua mãe, enquanto ouve sua mãe lhe dizer que foi Deus quem a enviou. Pérola também percebe o modo reservado com que o ministro Dimmesdale se comporta ao mesmo tempo em que ela desconfia do modo carinhoso de como sua mãe se refere ao ministro Dimmesdale, quando conversam na floresta. O crescimento de Pérola traz consigo questionamentos a respeito do seu futuro. A história nos mostra que ela está sendo criada por uma mulher pecadora e, portanto – segundo traduz o narrador do texto a respeito dos pareceres dos magistrados de Salem -, incapaz de oferecer-lhe uma educação sob os princípios religiosos da comunidade. Na suposição de Pérola, como já insinuamos, fosse de ascendência demoníaca aquela boa gente argumentava, não sem motivo, que o zelo cristão, que sentiam pela alma da mãe, exigia deles que se afastasse do caminho da infeliz mulher aquele tropeço. Se, por outro lado, a criança fosse realmente capaz de se deixar educar moral e religiosamente e de vir finalmente a poder salvar-se, então, sem dúvida, para a melhor via desfrutar de todas essas vantagens, só lucraria em ser transferida a uma guarda mais sabia e virtuosa do que a de Ester Prynne. (HAWTHORNE, 1993, p.91). [On the supposition that Pearl, as already hinted, was of demon origin, these good people not unreasonably argued that a Christian interest in the mother‘s soul required them to remove such a stumblingblock from her path. If the child, on the other hand, were really capable of moral and religious growth, and possessed the elements of ultimate salvation, then, surely, it would enjoy all the fairer prospect of these advantages by being transferred to wiser and better guardianship than Hester Prynne‘s. (HAWTHORNE, 1999, p.89)]. O risco que essa possibilidade trazia para Ester fez com que ela, na ocasião em que fora ao palácio do governador da colônia para fazer a entrega de umas luvas que a haviam encomendado, buscasse falar com alguma autoridade a respeito do caso. Consciente do seu direito de mãe ela conseguira uma audiência com o governador e, ante a tamanha ostentação 107 da residência daquele, ela tem o seu sentimento de culpa e de derrota abalados. O jogo de espelhos, os reflexos que elas veem nas armaduras e enfeites do salão do governador se encarregam de reforçar isso. Ester olhou com condescendência para com a filha e notou que devido ao particular efeito desse espelho convexo, a letra escarlate aparecia em proporções exageradas e gigantescas, dando a impressão de ser o traço mais proeminente de sua figura. [....] Pérola apontou igualmente para cima, para um quadro idêntico no capacete e sorriu para a mãe com aquela inteligente expressão de travessura que lhe era peculiar. Também, este olhar de maliciosa satisfação se refletiu no espelho, com tal intensidade de efeito, que Ester julgou não ser a imagem da filha, mas sim, de algum diabrete que se tivesse introduzido na roupagem de Pérola (HAWTHORNE, 1993, p.95). [Hester looked by way of humouring the child; and she saw that, owing to the peculiar effect of this convex mirror, the scarlet letter was represented in exaggerated and gigantic proportions, so as to be greatly the most prominent feature of her appearance. In truth, she seemed absolutely hidden behind it. Pearl pointed upwards also, at a similar picture in the head-piece; smiling at her mother, with the elfish intelligence that was so familiar an expression on her small physiognomy. That look of naughty merriment was likewise reflected in the mirror, with so much breadth and intensity of effect, that it made Hester Prynne feel as if it could not be the image of her own child, but of an imp who was seeking to mould itself into Pearl‘s shape. (HAWTHORNE, 1999, p.94-95)]. Ester é tomada de uma insegurança cerceada por sua pobre influência moral que chega a temer a guarda da criança. Apesar de ser a imagem do seu pecado de adultério, a menina é a única coisa boa que aparentemente ela traz consigo após o fastidioso dia de sua punição. A grande opulência encontrada na casa do governador reforça ainda mais o caráter de uma falsa e visível moral existente na Nova Inglaterra. O velho clérigo, criado no rico seio da igreja inglesa, tinha desde há muito um gosto apurado de todas as coisas boas e confortáveis. [...] Contudo é erro supor que nossos severos avoengos - embora habituados a falar e pensar da existência humana como de um estado de pura provação e luta, e embora sinceramente dispostos a sacrificar bens e vida pelo dever - sentiam escrúpulos de rejeitar tais meios de conforto, ou mesmo de luxo, quando os tinham ao seu alcance (HAWTHORNE, 1993, p.97). [The old clergyman, nurtured at the rich bosom of the English Church, had a long established and legitimate taste for all good and comfortable things (…) But it is an error to suppose that our great forefathers — though accustomed to speak and think of human existence as a state merely of trial and warfare, and though unfeignedly prepared to sacrifice goods and life at the behest of duty — made it a matter of conscience to reject such means of comfort, or even luxury, as lay fairly within their grasp (HAWTHORNE, 1999, p.96)]. 108 Em meio a essa atmosfera de ostentação, as preocupações a respeito do futuro da jovem criança, fazem com que os magistrados iniciem uma arguição a Ester a respeito da criação de Pérola. É o efeito dramático como é relatada a conversa entre o governador, os magistrados e Ester que deixa clara a habilidade do narrador em estar sob controle de toda a cena. O leitor acompanha tudo, consciente da presença de todos os personagens durante o momento de interrogatório. O governador Bellingham, o reverendo Wilson, o pastor Dimmesdale e Chillingworth representam as classes mais altas de Salem: a política, a igreja e a ciência. Eles discutem o que há de melhor para o bem estar social de Pérola. O governador entende que Ester não é digna de continuar com a filha uma vez que é uma mulher que não defende boa reputação em Salem. Ester Prynne, - disse, cravando seu olhar naturalmente severo na portadora da letra escarlate, - muito se tem discutido nesses últimos tempos a teu respeito, a saber, se nós, pessoas de autoridade e influência, procederemos bem, descarregando nossas consciências em uma alma imortal, como a de tua filha, a alguém que praticou um desatino e se deixou captar nas armadilhas deste mundo. (HAWTHORNE, 1993, p.98-99) [‗Hester Prynne,‘ said he, fixing his naturally stern regard on the wearer of the scarlet letter, ‗there hath been much question concerning thee of late. The point hath been weightily discussed, whether we, that are of authority and influence, do well discharge our consciences by trusting an immortal soul, such as there is in yonder child, to the guidance of one who hath stumbled and fallen amid the pitfalls of this world‘ (HAWTHORNE, 1999, p.98)]. Encontrando resistência nos argumentos de Ester quanto ao direito natural de criar sua filha e ante a tamanha disposição que ela tinha em não ceder, o governador pediu ajuda da igreja. Convidou o reverendo Wilson para assumir aquele momento de persuasão. ―Bom mestre Wilson, rogo-lhe que examine essa Pérola - já que este é seu nome - e verifique se conhece a doutrina crista, como convém a uma criança de sua idade‖ (HAWTHORNE, 1993, p. 99) [Good Master Wilson, I pray you, examine this Pearl — since that is her name—and see whether she hath had such Christian nurture as befits a child of her age‘ (HAWTHORNE, 1999, p.98)]. O reverendo Wilson não encontrando favor diante dos olhos de Pérola que ironicamente não quis dirigir-lhe a voz, entendeu que aquela postura de Pérola era suficiente para confirmar que a menina precisaria de outros cuidados a fim de crescer na fé que eles pregavam. ―Pobre mulher! - exclamou, em tom de brandura, o velho ministro - a criança será bem tratada! - muito melhor do que tu podes fazer!‖ (HAWTHORNE, 1993, p.100) [‗My poor woman,‘ said the not unkind old minister, ‗the child shall be well cared for—far better 109 than thou canst do for it.‘ (HAWTHORNE, 1999, p.100)]. Mas Ester, não aguentando a pressão, foi tomada subitamente por impulso a pedir ao jovem Dimmesdale que a defendesse, uma vez que ele era o seu pastor. Ester, em tom mais profundo do que os demais podem entender, denuncia em alto e bom som que Dimmesdale conhece o que se passa em seu coração mais do que qualquer outra pessoa. Ele é o parceiro dela neste erro. Ele será forçado a deixar sua normal postura silenciosa e falar. Ele tem que a defender. ―Fale por mim! - gritou. É meu pastor, tem minha alma a seu cargo, conhece-me melhor que estes homens‖ (HAWTHORNE, 1993, p.101) [‗Speak thou for me!‘ cried she. ‗Thou wast my pastor, and hadst charge of my soul, and knowest me better than these men can . (HAWTHORNE, 1999, p.100)]. A esse momento os demais se encontravam em silêncio absoluto a não ser Rogério que sussurra em silêncio algumas palavras no ouvido dos magistrados. A postura enfraquecida e pálida de Dimmesdale com a sua mão no coração denunciava-lhe a hipocrisia em que vivia - ele era o próprio pai da criança. Aquele que pregava contra o adultério e toda a forma de pecado esqueceu de assumir o seu próprio erro. Apenas ele e Ester sabiam da verdade. Caso os magistrados soubessem do que se passava no interior de Dimmesdale, empregariam-lhe a pena capital. Assim em seu mundo de sofrimento ele defende a causa daquela pobre mãe e os convence de que aquela filha deveria pertencer à mãe em todo o tempo. Era uma necessidade da natureza. ―O que Ester diz é verdade, como verdadeiro é o sentimento que a inspira! Deus deu-lhe a criança, e deu-lhe, igualmente, um conhecimento instintivo da natureza e exigências da mesma criança, como nenhum outro mortal pode possuir‖ (HAWTHORNE, 1993, p.101) [‗truth in what Hester says, and in the feeling which inspires her! God gave her the child, and gave her, too, an instinctive knowledge of its nature and requirements — both seemingly so peculiar—which no other mortal being can possess. (HAWTHORNE, 1999, p.102)]. A defesa fez com que Rogério Chillingworth ressaltasse, como se soubesse que Dimmesdale era o pai da criança, o modo sério demais com que Dimmesdale protegia Ester. Nas palavras de Rogério o leitor encontra o seu caráter vingativo. Ele era o marido que fora traído por Ester e ninguém mais o sabia. ―Mas, com que estranha seriedade falas, amigo!‖ – disse o velho Rogério Chilingworth com um sorriso (HAWTHORNE, 1993, p.102) [‗‗You speak, my friend, with a strange earnestness,‘ said old Roger Chillingworth, smiling at him (HAWTHORNE, 1999, p.102)]. Mas, a covardia de Dimmesdale acentua-se ao percebermos que ele, mesmo sabendo quem é o pai - ele mesmo - ainda cita a dificuldade na qual deve viver o pai da criança, longe 110 do caminho e do afeto dela. ―Neste ponto a mãe pecadora é mais feliz que o pai pecador‖ (HAWTHORNE, 1993, p.102) [‗Herein is the sinful mother happier than the sinful father‘ (HAWTHORNE, 1999, p.102)]. Ao terminar aquela cena, Pérola dirige-se ao pai com se ela fosse orientada espiritualmente para tal e, com bastante carinho, afaga-lhe a mão, como nunca antes acontecera. O momento foi seguido de um ósculo e de uma alegria tremenda por parte de Pérola. O reverendo Wilson achou por bem fazer com que todos devessem demonstrar ternura fraternal para com a criança e entregasse a solução daquele questionamento à providência. Respondendo a Chillingworth, ele diz: Seria pecaminoso numa questão como esta, guiar-se apenas pelo fio condutor da filosofia profana, - obtemperou o reverendo Wilson. - E preferível jejuar e orar com esse fim; preferível, talvez, deixar o mistério tal como o encontramos, até que apraza à Providência desvendá-lo (HAWTHORNE, 1993, p.103). [‗…it would be sinful, in such a question, to follow the clue of profane philosophy,‘ said Mr. Wilson. ‗Better to fast and pray upon it; and still better, it may be, to leave the mystery as we find it, unless Providence reveal it of its own accord (HAWTHORNE, 1999, p.103)]. Embora para os puritanos de Salem Pérola tipifique os pecados de adultério e orgulho de Ester, eles esquecem que ela também pode representar a misericórdia de Deus naquele contexto – já que são cristãos religiosos. Pérola pode funcionar para Ester como meio da graça de Deus, desse modo. É ela quem parece dar sentido à vida de sua mãe e também reflete a luta travada por Ester em seu coração. Pérola contrasta-se ao pessimismo que domina aquela comunidade e sua personalidade chega a tocar a triste monotonia da vida em que está inserida na forma de esperança: ela não se deixa levar pelo sentimento de inferioridade e da baixa autoestima que dominam as pessoas daquele lugar. Ela apresenta o lado otimista do mundo e do homem, diante da vida que o oprime. Seria Pérola a representação de uma nova geração de cidadãos daquela sociedade, dessa vez livres dos dogmas e das regras que hipocritamente controlavam aquele povo? O narrador deixa claro que Pérola é preciosa porque foi gerada a um grande preço e, a um alto custo. Isolada pela sociedade em que vive, Pérola consegue demonstrar afeto e carinho para com Dimmesdale e Ester, sua mãe. Ela parece estar pronta para amar e ser amada, diferentemente dos demais personagens do romance. A presença de Pérola pode sugerir que ela é o resultado da morte da primeira Ester, daquela que fora condenada no patíbulo da praça. Os cuidados de Ester para com Pérola - o 111 modo de vesti-la com roupas e bordados multicores - indicam uma espécie de desejo de viver, além de qualquer circunstância, de modo puro, livre, afetivo e natural. Pérola não somente reflete a transgressão moral de Ester – como querem os moradores de Salem – como também representa toda a força que Ester tem para lutar. Pérola é uma espécie de armadura que Ester usa em seu favor na sociedade. Ladeada pela sua mãe, até que se torne adulta, Pérola buscará o seu próprio caminho, desta vez longe dos muros de Salem, ainda que levando consigo todas as mazelas psicológicas que herdara do mundo puritano. No final do romance percebemos que Pérola, até os dias de sua maioridade, nunca teria pertencido àquela cidade de Salem. Ela estaria naquele contexto, acima do Bem e do Mal. Quanto ao amor e ao cuidado que Ester demonstra para com Pérola, observamos que são esses exatos sentimentos que a protegem de se perder dentro do vasto labirinto de sua mente, onde as marcas do seu erro habitam de dia e de noite. Ester torna-se impensável sem a sua companheira, Pérola. Ela é a razão pela qual Ester vive. 112 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, na evolução das formas literárias o romance aparece como fenômeno de grande magnitude e de crescente importância. Ampliando o universo de sua temática, interagindo e interessando-se pelos conflitos sociais, pela política e pela psicologia, ensaiando novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance transformou-se em uma das mais importantes – senão a mais importante – e mais complexas forma de expressão literária dos tempos modernos. De uma mera narrativa de entretenimento, percebemos que o romance verteu-se em espaço para estudo da alma humana e de suas relações sociais; de lugar para reflexão filosófica e até para testemunho de fatos; pelo mundo cortês e idealisticamente guerreiro, por Dom Quixote de La Mancha, finalmente, o romance abriu o caminho para uma aproximação mais realista com a sociedade – com os costumes do mundo contemporâneo. Surgindo a partir das narrativas romanescas, o romance se distanciou dos heróis épicos e dos mitos das narrativas do mundo antigo para, no século XIX, surgir como um espaço de observação, de confissão ou de análise do homem e de suas relações na sociedade. Como pudemos perceber, o romance na idade moderna conhece uma metamorfose e um desenvolvimento profundos e passa a apresentar em suas narrativas mais verossimilhança e mais realismo. Com o advento do romantismo, a narrativa romanesca afirmou-se definitivamente como uma grande forma literária, apta a exprimir os multiformes aspectos do homem no mundo. Dentre desses aspectos aparece o romance do tipo histórico, explorando e fazendo ressurgir novas interpretações de fatos pretéritos. Nesse universo surge A Letra Escarlate. É, especialmente no início do século XIX, portanto, que a matéria de extração histórica ganha lugar de destaque dentro do romance, forçando o seu autor a fazer as vezes de poeta e de historiador, ao mesmo tempo em que provoca interpretações que certamente contribuem para a reflexão sobre acontecimentos especialmente importantes de anos passados. Não é sem grande razão que o Romance Histórico surge – como pudemos constatar em Lukács –, em tempos de afirmação da sociedade burguesa – isso porque, segundo Lukács, os dramas e os conflitos do processo histórico podem ser permitidos e refletidos artisticamente dentro do romance. É nos enredos dos romances históricos que as personagens refletem, ao mesmo tempo, as condições específicas de suas singularidades, as tendências gerais do processo histórico, bem como as condições sociais das quais eles surgem – e em suas singularidades concentram-se tendências próprias do ser humano. 113 É, pois, como pudemos atestar em Lukács (2011), no entrecruzamento entre os destinos individuais e as possibilidades concretas postas pelo desenvolvimento social que se desenha a chave do romance histórico. A experiência francesa das guerras revolucionárias, da ascensão e da queda de Napoleão, contribuiu para que o homem compreendesse a sua própria existência como sendo historicamente condicionada e visse que alguma coisa – na história – afetava profundamente sua vida cotidiana. Segundo Lukács, é desse contexto que nascem as condições concretas para que os homens concebam suas existências como algo fundado historicamente e vejam, na história, uma influência profunda sobre o seu cotidiano. Com esses argumentos, pudemos comprovar que a Europa é, portanto, o lugar do solo social e ideológico que faz surgir o Romance Histórico. E é Walter Scott, segundo Lukács, a grande referência entre os criadores do Romance Histórico, pois em suas obras é possível encontrar o amplo retrato dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos ligados às camadas da sociedade arruinadas pela Revolução Industrial – na Inglaterra – e pelo rápido desenvolvimento do capitalismo – o início da revolução industrial. Segundo Lukács, a glorificação de Walter Scott se dá, muito mais, às razões históricas que o seu romance evoca. Para Lukács, é a partir dele, de Walter Scott, que o aspecto da historicidade revelada nos destinos e nas paixões humanas expressas pelas personagens que marcam esse gênero na literatura. Assim, do mesmo modo como Walter Scott existe em relação à Escócia, Nathaniel Hawthorne também evoca, ao escrever A Letra Escarlate, os acontecimentos passados na Nova Inglaterra. A densidade artística em A Letra Escarlate não está desvinculada de sua inserção na dinâmica do progresso histórico do contexto no qual ela foi produzida. Há, explicitamente, uma crise histórica no seio de Salem, na colônia de Massachusetts. A cidade, antes referência portuária para embarcações que atracavam na costa leste norte-americana, parece, nos tempos em que Hawthorne escreve, um lugar quase sem vida. A esse respeito o professor David Levin chega a comentar que, ao escrever a introdução de A Letra Escarlate, Nathaniel Hawthorne apresenta a cidade de Salem com descrições pormenorizadas da alfândega, como uma ruína que revela que o comércio perdeu sua vitalidade e o governo perdeu a sua dignidade e o seu prestígio social (apud HAWTHORNE, 1960, p.7). Como pudemos ver, para Lukács, a lei estética do romance não é arbitrária, mas deve refletir exatamente as relações e as proporções dos fenômenos sociais reais. O caso entre Ester e o reverendo Dimmesdale em A Letra Escarlate não pode ser apresentado sem a relação 114 sócio-histórica da época evocada. Essa é uma condição sine qua non para que o entendimento a respeito da relevância histórica do romance se concretize. É bom lembrar que, como lemos, a presença da perspectiva comandada pelos valores morais populares é indispensável para Lukács porque, segundo ele, as paixões humanas não se desenvolvem num espaço vazio, elas se chocam necessariamente com as normas e os hábitos dominantes, e sofrem um trabalho de acabamento em função das próprias circunstâncias sócio-históricas nas quais elas estão inseridas. É entre as escalas de valores do ‗alto‘ da sociedade e as correntes que atravessam o plano ‗baixo‘, vindas das profundezas da vida popular que se faz aparecer o confronto dialético intermitente que existe entre dois sistemas. Hawthorne deixa claro que esse tal conflito se traduz como visões possíveis e diferentes em relação ao desenvolvimento de uma sociedade. Assim, a participação de Ester, de Dimmesdale e de Chillingworth como principais personagens do romance acendem o foco das principais forças político-sociais antagônicas envolvidas e reveladas no enredo do romance. Até mesmo toda a caracterização sóciohistórica das personagens – vestidas em trajes lúgubres e de aparências taciturnas –, revela o progresso estético e estabelece uma relação necessária entre a autenticidade épica do romance histórico e o respeito pelas justas proporções entre as ações de suas personagens dentro do cotidiano da época. Por isso, quando nos debruçamos sobre um romance histórico, como A Letra Escarlate, percebemos que fica explícita a relação de cumplicidade entre autor e narrador, como bem pontua Alcmeno Bastos (2007). É bem verdade que há uma prevalência da vontade do primeiro, pois, ao seu cargo, fica sempre a responsabilidade de todo o efeito mimético. Não é sem razão que, logo no inicio do romance Nathaniel Hawthorne deixa claro que emprestou para o narrador de seu texto a autenticidade histórica de suas linhas gerais – ele havia achado, na alfândega onde trabalhava, envolto em um rolo de papel escuro, a explicação razoavelmente completa do assunto, numas quantas folhas de papel almaço, recheadas de pormenores sobre a vida e a conduta de uma tal Ester Prynne (HAWTHORNE, 1993, p.40). Era um caso de amor entre uma dona, recém-chegada da Europa, e um reverendo puritano local, fato esse que ficou conhecido como um adultério e que, depois que chegou nas mãos do narrador, ele tratou apenas de alindar os fatos. Salientemos nesse ponto que a matéria básica – central – encontrada em A Letra Escarlate é primordialmente de extração histórica, entendida como objeto documental, tendo sido recuperada pelo seu autor conforme citado. A matéria abordada faz parte de acervo de 115 memória da comunidade e Salem, de modo a permitir o reconhecimento de componentes que são familiares ao leitor estudioso. Como pudemos verificar, Salem era uma cidade mergulhada em um contexto políticoreligioso no qual a igreja e o estado pareciam ser uma só instituição. A trajetória das personagens de sua trama – em A letra Escarlate – está associada de modo inextricável ao destino político da comunidade. É bom dizer que os seus líderes, ao mesmo tempo em que governam a cidade também lideram a igreja. Na passagem abaixo fica explícita essa relação de cumplicidade: Em qualquer hipótese, os espectadores teriam dado mostras da mesma solenidade de atitude; solenidade que convinha a um povo para o qual a religião e a lei eram quase idênticas e, em cuja maneira de ser, ambas as coisas se mesclavam tão intimamente, que os atos da pública disciplina, os mais brando como os mais austeros, eram, por igual, objetos de respeito e de temor (HAWTHORNE, 1993, p.53). [In either case, there was very much the same solemnity of demeanour on the part of the spectators, as befitted a people among whom religion and law were almost identical, and in whose character both were so thoroughly interfused, that the mildest and severest acts of public discipline were alike made venerable and awful (HAWTHORNE, 1999, p.43)]. Cabe aqui, ainda, deixar registrado que, segundo Alcmeno Bastos (2007), não é possível pensar em um romance histórico sem a presença de marcas registradas, isto é, nomes próprios, figuras políticas, topônimos. Em A Letra Escarlate encontramos alguns desses – como ―John Winthrop‖, ―Coroa Inglesa‖, ―Boston‖ e ―Salem‖. Tais nomes, pelo poder alusivo acentuado que detem – em relação às marcas oriundas de processos não-históricos – funcionam como acionadores do processo de reconstituição de um campo de referências indispensável à historicidade da matéria narrada. Para Aclmeno Bastos, de igual modo, a matéria narrada de um romance considerado histórico deve ser remota e já completamente consumada, reforçada pelo tom fechado do relato. O tom conclusivo, de modo a não deixar pendências quanto ao destino das personagens e ao desdobramento das ações narradas, fecham a caracterização desse tipo de romance, como podemos ver a seguir: Assim, falava Ester Prynne e baixava seus tristes olhos para a letra escarlate. Decorreram muitos, muitos anos. Nova sepultura foi cavada, ao lado de outra antiga, muito antiga, no cemitério, no cemitério junto ao qual mais tarde foi construída uma Capela Real. As duas sepultaras quase se tocavam; mediava entre elas um espaço, como se o pó dos cadáveres que nelas repousavam, não tivesse o direito de se misturar. Contudo, uma só pedra tumular as cobria, a ambas. Em volta elevava-se monumentos com brasões de armas gravados; sobre esta singela ardósia – como o investigador curioso pode ainda discernir, e cogitar sobre o seu significado – via-se 116 algo que semelhava um escudo de armas cinzelado. Tinha uma inscrição, uma legenda heráldica, que pode servir de epígrafe e de sumário da história lendária que fica descrita; inscrição obscura, sombria, alegrada apenas por um ponto luminoso, mesmo assim mais triste do que a sombra: ‗num campo, sable, a letra a, goles‘ (HAWTHORNE, 1993, p.221). [So said Hester Prynne, and glanced her sad eyes downward at the scarlet letter. And, after many, many years, a new grave was delved, near an old and sunken one, in that burial-ground beside which King‘s Chapel has since been built. It was near that old and sunken grave, yet with a space between, as if the dust of the two sleepers had no right to mingle. Yet one tomb-stone served for both. All around, there were monuments carved with armorial bearings; and on this simple slab of slate—as the curious investigator may still discern, and perplex himself with the purport—there appeared the semblance of an engraved escutcheon. It bore a device, a herald‘s wording of which may serve for a motto and brief description of our now concluded legend; so sombre is it, and relieved only by one ever-glowing point of light gloomier than the shadow: — ‗ON A FIELD, SABLE, THE LETTER A, GULES" (HAWTHORNE, 1999, p.240)]. Percebemos, pois, que, em Salem, tanto Ester quanto Dimmesdale existiram como instrumentos que deslocaram o modo de ser e pensar de um certo centro, a priori instituído. De Acordo com Blackmur78, no meio da confusão aparente do mundo, há indivíduos que são tão bem ajustados a um sistema – e os sistemas tão bem ajustados uns aos outros – que, ao cometerem algum tipo de erro em um determinado momento, eles correm o risco de perder o seu lugar para sempre na sociedade. Em A Letra Escarlate – assim como na maioria dos textos de Hawthorne –, pode-se ver que as personagens estão sempre pisando fora dos limites, mas, com a mesma força, não é difícil perceber que há sempre algo que tenta os conduzir de volta para o seio da comunidade. Os personagens em Hawthorne estão sempre cronicamente doentes, sejam eles por causa de pecado, de tristeza, ou meramente por uma dor quase intolerável que parece nunca se acabar. Blackmur continua dizendo que, para alguns, Hawthorne era um grande estudioso do mal, mas ele mesmo achava que, em vez disso, o autor americano estudava como evitar e ignorar o mal, ao interpor situações entre o mal e a experiência de suas personagens nos enredos de suas histórias. Para o professor David Levin, quando escreve a sua introdução a uma das obras de Hawthorne79, grande parte da obra do escritor americano é centrada na ‗História‘ do puritanismo da Nova Inglaterra dos primeiros séculos norte-americanos – no passado, portanto. Das primeiras gerações dos puritanos de Boston, bem descritos em A Letra Escarlate até a rica, mas decadente Roma descrita em O Fauno de Mármore, todos os seus 78 In: HAWTHORNE, Nathaniel. The Celestial Railroad and other stories.New York: The New American Library, 1963. p.289. 79 HAWTHORNE, Nathaniel. The Blithedale Romance. New York: Dell Publishing Co., Inc., 1960. 117 principais romances – de Hawthorne – apelam para os leitores contemporâneos acompanharem a conduta humana em relação ao passado escuro e sombrio da história da Nova Inglaterra. Para ele (Apud HAWTHORNE, 1960, p.11), os ―seus três principais pecadores em A Letra Escarlate – Ester, Dimmesdale e Chillingworth – representam o secreto, o contrito e o imperdoável‖, dentro da categoria puritana de ver o homem como ‗pecador‘, por exemplo. A diferença entre eles ilustra exatamente o conflito entre a natureza individual e o universo social, o coletivo. Assim, Hawthorne expõe a decadente moral religiosa da vida puritana e os seus substratos na sociedade americana, entre os séculos XVII e XIX: os três pecadores vivem isolados entre si. O que não se pode negar é que ele conhecia e admirava a convicção dos seus ancestrais puritanos, sem deixar de considerá-los como participantes de uma espécie de drama cósmico, existencial, no qual todas as pessoas, em um nível ou noutro, são também coparticipantes. Hawthorne nos convida para ler a sua obra sem se esquecer do pano de fundo histórico, portanto, e da conduta de cada ser humano naquele respectivo universo. A cruel rigidez e o austero nível de soberba do puritanismo da Nova Inglaterra são explicitamente reconhecidos no enredo de A Letra Escarlate. Seu intenso trabalho combina uma boa recriação do passado puritano com temas centrais do romantismo do século XIX. Pode-se ver que, nos seus escritos, o imaginário e o real se encontram e cada um se apropria da natureza do outro. Ao escrever o seu romance Hawthorne estava consciente do paradoxo que habitava naquela comunidade: a moralidade social é requerida pelos membros da comunidade religiosa enquanto que a própria religião assume, como dogma, a natureza pecaminosa do homem. No pecado de Adão todos pecaram. O autor revela revela as pretensões de racionalidade e de sabedoria estando submetidas a conceitos cristalizados pelos cristãos puritanos que vão, pouco a pouco, se transformando em ‗preconceitos‘. Ao lermos o romance A Letra Escarlate, vemos que a busca pela integridade humana está longe e, ao que parece, será sempre frustrada. A fragilidade e a tristeza entre os puritanos se evidenciam pelo fato de que, na Salem observada por Nathaniel Hawthorne, o que existe de humano, caminha para a deteriorização. Como diria Quentin Anderson (Apud Henry James, 1993), A Letra Escarlate é o vaso que recolheu as últimas gotas preciosas do velho puritanismo que existiu em Salem. 118 A modernidade tem retomado o interesse pela extração histórica, mas agora, histórico não é somente o fato muito distante no tempo, já consagrado nos registros oficiais. Histórico também é o fato contemporâneo e não apenas as batalhas sangrentas, os lances diplomáticos de grandes destaques, as calamidades dizimadoras, mas também a jornada cinzenta e cotidiana do homem comum. O ficcionista nos dias de hoje, já não somente se debruça nostálgico sobre os tempos remotos, necessariamente, mas acompanha o nervoso pulsar da vida contemporânea. 119 REFERÊNCIAS ALONSO, Amado. Ensayo sobre la Novela histórica – El modernismo em La Gloria de Don Ramiro. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras de La Universidade de Buenos Aires, 1942. APTHEKER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos: A era colonial. Trad. Mauricio Pereira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. AQUINO, R.S. L.; LEMOS, N. J. F.; LOPES, O. G. P. C. História das Sociedades Americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. ARISTÓTELES. ―Arte Poética‖. In HORÁCIO e LONGINO. A Poética Clássica. Trad. Jayme Bruna. São Paulo: Cultrix, 1981. BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance). In: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. BALZAC, Honoré de. ―Prefácio à comédia humana‖. A Comédia Humana. Trad. Vidal de Oliveira. 4.ed. Rio de Janeiro: Globo, 1955, v.1, pp. 3-22. BASTOS, Alcmeno. Introdução ao Romance Histórico. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2007. BLACKMUR, R. P. Afterword. In: HAWTHORNE, Nathaniel. The Celestial Railroad and other stories. New York: The New American Library, 1963. p.289 CAMPOS, Maria C. P. A Heteroglossia do Silêncio: o perpassar das vozes emThe Scarlat Letter e The French Lieutenants´s Woman. Viçosa: Arka, 2011. CANDIDO, Antonio et al. A Personagem de Ficção. 11ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: CANDIDO, A. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. ______. Crítica e sociologia. In: Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. CARL, B.; HOWARD, L; WRIGHT, L.B. American Literature: the first part of the 19th Century, v.2, New York: Washington Square Press Inc., 1966. CARPEAUX, O. MARIA. História da Literatura Ocidental. 3a. ed. V.5. Rio de Janeiro: Alhambra, 1987. CERVANTES, Miguel de. O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha. Trad. Viscondes de Castilho e Azevedo. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960. COLES NOTES. Hawthorne: The Scarlet Letter. Toronto: Coles Publishing Company, 1989. 120 CONTOS DE NATHANIEL HAWTHORNE. Seleção e tradução Olivia Krähenbühl. 2ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1987. COWLEY, Malcolm. Editor´s Note. In: The Portable Hawthorne: a comprehensive cross section of the writings of a great American master. New York: The Viking Portable Library, 1965. CUNHA, Fernando Whitaker da. ―Do romance histórico‖. Ficção e Ideologia: ensaio e crítica. Rio de Janeiro: Pongetti, 1972, pp. 43-49. CUNLIFE, Marcus. História da Literatura dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Biblioteca Universitária, 1986. DOREN, M. V. Hawthorne. Trad. Lígia Junqueira. São Paulo: Martins, 1967. DRABBLE, Margaret. The Oxford Companion to English Literature. New York: Oxford University Press, 1998. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. EDEL, Leon. Pamphlets on American Writers: Henry James. Minneapolis: Universityof Minnesota, 1960. FOSTER, E.M. “As Pessoas”. Aspectos do Romance. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre: Globo, 1969, parte 3, PP. 33-49. FREDERICO, Celso. Lukács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997. GIGANTES DA LITERATURA UNIVERSAL: Cervantes. Lisboa: Verbo, 1972. GONCOURT, Edmond e GONCOURT, Jules. In ADAM, Antoine; LERMINIER, Georges; e Mort-SIR, Edouard (orgs.). Literatura Francesa. Rio de Janeiro: Larousse do Brasil, 1972, v.2. GUERIN, W. L; LABOR, E. G. Abordagens Críticas à Literatura. Kansas: Lidador, 1966. HAUSER, A. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou, 1972. HAWTHORNE, Nathaniel. A Letra Escarlate. São Paulo: Ediouro, 1993. ______. A Letra Escarlate. Trad. Sodré Viana. São Paulo: Martin Claret, 2006. ______. O Fauno de Mármore. Trad. Constantino Paleólogo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966. ______. The Blithedale Romance. New York: Dell Publishing, 1960. 121 ______. The Celestial Railroad and Other Stories. New York: The New American Library, 1963. ______. The Scarlet Letter. Montreal: Reader´s Digest Association Inc., 1984. ______. The Scarlet Letter: with an introduction by Brenda Wineapple. London: Signet Classics, 1999. HIGH, P. B. An Outline of American Literature. London and New York: Longman, 1986. HOWARD, Leon. A Literatura Norte-americana. São Paulo: Editora Cultrix, 1964. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. JAMES, Henry. Hawthorne: a critical essay on the man and his times. New York: Collier Books: 1966. JAMESON, Fredric. Marxismo e Forma: teorias dialéticas da literatura do século XX. Tradução de Iumna Maria Simon. São Paulo: Hucitec, 1985. KRÄHENBUHL, Olívia. Contos de Nathaniel Hawthorne. São Paulo: Cultrix, 1987. KONDER, Leandro. Lukács. Porto Alegre: LP&M, 1980. LICHTEIM, George. As ideias de Lukács. São Paulo: Cultrix, 1970. LIMA, Luiz da Costa. O Controle do Imaginário: razão e imaginação no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984. LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. ______. Ensaios sobre Literatura. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1964. ______. Marx e Engels como Historiadores da Literatura. Porto: Nova Crítica, 1979. ______. O romance como epopeia burguesa. In: Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. ______. O Romance Histórico. São Paulo: Boitempo, 2011. MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (I – Feuerbach). 11ªed. São Paulo: Editora Hucitec, 1999. McMICHAEL, George. Concise Anthology of American Literature. New York: Collier Macmillan Publishers, 1966. 122 PILAGALLO, Oscar. Nathaniel Hawthorne: o criador de um passado. Entrelivros 3: Panorama da Literatura Americana (2007, p. 21). Caderno RIBEIRO, José A. Pereira. O Romance Histórico na Literatura Brasileira. São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia/Conselho Estadual de Cultura, 1976. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. (tomo III). Campinas, SP: Papirus, 1997. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996. SCHWARZ, Roberto. A Sereia e o Desconfiado: ensaios críticos. 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil R. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos: da colônia a potência imperial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. O romance: História e sistema de um gênero literário. In: Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. TERTULIAN, Nicolas. George Lukács: etapas de seu pensamento estético. São Paulo: Editora Unesp, 2008. TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. TRILLING, Lionel. Literatura e Sociedade: ensaios sobre o significado da arte e da ideia literária. Rio de Janeiro: Lidador, 1965. VAN KIRK, Susan. Cliffsnotes on Hawthorne’s The Scarlet Letter. New York: IDG Books, 1946. VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez Lições sobre o Romance Inglês do Século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002. WATT, Ian. O realismo e a forma do romance. O público leitor e o surgimento do romance. In: A Ascensão do Romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das letras, 1996. ZABEL, Morton D. A Literatura dos Estados Unidos: suas tradições, mestres e problemas. Rio de Janeiro: Agir, 1947.