direito de propriedade
autorES: GUSTAVO KLOH MULLER NEVES e Antônio José Maristrello Porto
4ª edição
ROTEIRO De CURSO
2008.2
Sumário
Direito de Propriedade
INTRODUÇÃO...................................................................................................................................................................................3
BLOCO DE AULAS 1 : PROPRIEDADE E POSSE.......................................................................................................................................4
Aula 1: O que é ser dono................................................................................................................ 5
Aula 2: Função social da propriedade: o dono pode fazer tudo?..................................................... 12
Aula 3: A propriedade e a posse: eu estou aqui.............................................................................. 16
Aula 4: A função social da posse e o critério da melhor posse........................................................ 19
Aula 5: Na justiça: a tutela jurídica da posse. Tutela possessória e petitória.................................... 27
Aula 6: Propriedade e moradia...................................................................................................... 30
Aula 7: Só é dono quem registra.................................................................................................... 35
Aulas 8, 9 e 10: Usucapião............................................................................................................ 43
Aula 11: Soluções para a ausência de registro................................................................................. 52
Aula 12: Estatuto da cidade........................................................................................................... 57
Aula 13: Direito de vizinhança...................................................................................................... 66
Aula 14: Direito de construir........................................................................................................ 72
BLOCO 2: NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS E DEMAIS DIREITOS REAIS..........................................................................................................76
Aula 15: Incorporações imobiliárias.............................................................................................. 77
Aulas 16 e 17: Condomínio.......................................................................................................... 83
Aula 18: Demais direitos reais....................................................................................................... 86
Aula 19: Financiamento imobiliário.............................................................................................. 90
Aula 20: Alienação fiduciária......................................................................................................... 91
Aula 21: Hipoteca e penhor.......................................................................................................... 93
Aulas 22 e 23: Superfície............................................................................................................... 95
Aula 24: Usufruto e servidão....................................................................................................... 100
BLOCO 3: Análise econômica do direito.....................................................................................................................................76
Aula 25: Introdução a Análise Econômica do Direito – AED...................................................... 103
Aula 26: Teoria Econômica dos Direitos de Propriedade, Como os Direitos de Propriedade
são Protegidos?..................................................................................................................... 114
Aula 27: Quais os Remédios Legais Para as Violações dos Direitos de Propriedade?..................... 123
direito de propriedade
INTRODUÇÃO
Apresentação dos objetivos do curso
Você mora em um imóvel. Estuda em um imóvel. Conversa, compra, anda e se
diverte em um imóvel. E, justamente por essa razão, os imóveis sempre foram alvo
de especial atenção na sociedade. Quem adquire direitos sobre eles acessa necessariamente uma riqueza perene e de valor único. Como conseqüência, a determinação
dos critérios sobre quem assume a titularidade é crucial para que se entenda de que
maneira o poder e as posições são distribuídas em sociedade.
A propriedade, o direito que se impõe ao mesmo tempo sobre as coisas e sobre os
outros direitos quanto às coisas, é o índice para que se determine o resultado dessa
pergunta. Seu estudo, em várias facetas, será nosso objeto.
Além de enfrentar as questões relativas aos imóveis, tocaremos questões relevantes à compreensão da própria vida do homem nas cidades. Porque, quanto maior o
mundo, menor a capacidade de reduzi-lo a uma dimensão puramente individual. O
direito de um será, portanto, cotejado com o direito dos outros.
Busca-se, desse modo, a compreensão do individual e do coletivo na propriedade
e de que modo essa ligação intrínseca se dá.
Metodologia e avaliação
A metodologia adotada é a amparada em casos, como nas demais disciplinas do
curso. Sobreleva o papel da realidade concreta na determinação do conteúdo dos
casos, pois estão todos os alunos vivenciados na experiência de convívio na realidade
urbana e imobiliária. Dessa sorte, as experiências dos alunos serão especialmente
valorizadas, com a condução do professor.
A avaliação consistirá de dois exames escritos, a serem realizados no horário de
aula. Na composição da nota do primeiro exame, será tomado em consideração
desempenho em atividade de pesquisa, a ser realizada sob orientação do professor.
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direito de propriedade
BLOCO DE AULAS: PROPRIEDADE E POSSE
OBJETIVO DO BLOCO DE AULAS
Nesse bloco de aulas, o objetivo da turma reside em compreender a relevância
das situações proprietárias, de que maneira essas situações se delineiam na realidade
contemporânea, as relações entre posse e propriedade e o papel da função social na
análise do conteúdo e efeitos da relação proprietária.
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AULA 1: O QUE É SER DONO
Ementário de temas
A tutela das titularidades. Conceito de propriedade: propriedade e propriedades.
Sentidos e objetivos da proteção proprietária. Titularidade de direitos intelectuais
e de ações.
Leitura obrigatória
LORENZETTI, Ricardo. Fundamentos de direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998. pp. 85-115 (cap. 2: o direito privado como garantia de
acesso a bens).
Leitura complementar
LEAL, Rogério Gesta. Função social da propriedade e da cidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1998. pp. 29-60.
PIPES, Richard Pipes. Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. pp.
331-342.
Roteiro de aula
A propriedade em sua visão tradicional
Desde o direito romano, a questão da propriedade se põe diante dos estudiosos
do direito como das mais tormentosas, sem que se possa desde logo definir lineamentos imutáveis ou axiomas quaisquer.
Em primeiro lugar, vale referir que não apenas no direito, como também na
economia, na ciência política e na sociologia, as discussões em torno da função e
do conceito de propriedade sempre tiveram maior vulto, havendo mesmo quem
desejasse explicar a evolução histórico-econômica da sociedade humana como se
fora uma história da propriedade sobre os bens de capital.
Ao largo desta circunstância passaremos, pois não é objetivo deste comentário
descortinar maiores indagações sobre questões desta profundidade. Vamos nos deter sobre o que é exarado do dispositivo acima.
Na consolidação de Teixeira de Freitas, já se lia no art. 884: “Consiste o dominio
na livre faculdade de usar, e dispor, das cousas, e de as demandar por acções reaes”.
Ou seja, a fórmula do artigo acima apenas consagra a conjugação de poderes já
prevista nas Ordenações, que se mantém até hoje. Ocorre que este desfiar sintético
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direito de propriedade
de poderes, conquanto verdade, não encerra a compreensão jurídica da propriedade
nos dias atuais.
Inicialmente, podemos afirmar que a propriedade consiste no mais extenso direito real que determinado ordenamento jurídico confere a um titular.1 Gostamos
desta definição não porque ela é em especial boa, mas porque reconhece como toda
e qualquer uma há de ser ruim, ou seja, é impossível formular um conceito uno e
a-histórico de propriedade. De qualquer sorte, todo direito subjetivo que consistir,
em uma dada ordem, no direito mais amplo que se dá a um titular sobre uma coisa
será esta a propriedade, pois é tal a função que ocupa, a de ser meio de exercício de
poder econômico e de atribuição de titularidades.
Consideramos também importante referir um outro aspecto: o titular da propriedade possui, em relação à coisa, um poder interno e outro interno; interfere no
destino da coisa e impede que terceiros o façam, ou só o façam de acordo com seus
desígnios.2 Portanto, a distribuição das titularidades e da riqueza efetivamente passa
pela normativização da propriedade na sociedade.
Poderes proprietários
O art. 1228 do Código Civil encerra os chamados poderes proprietários: usar,
gozar, dispor e reivindicar, que permanecem com estrutura semelhante desde as Institutas de Justiniano. É esse o primeiro artigo do capítulo de propriedade do Código
Civil de 2002, com a seguinte redação:
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”
Essas características, todavia, não devem ser tomadas isoladamente, e sim consideradas dentro de um quadro no qual a propriedade comporta-se de modo diferenciado, de acordo com as respectivas situações. Deve-se destacar o papel ocupado
pela propriedade de direitos imateriais, como cotas, ações, marcas, patentes, etc.,
como pedra de toque dessa revisão.
A propriedade na sociedade: riqueza, acúmulo e acesso
Se ser proprietário é ter esses poderes e ser considerado o principal interessado
em relação a uma coisa, a propriedade é sempre uma situação “modelo”, a ser buscada e seguida, ou seria possível associar certas funções à propriedade e qualificá-la
de acordo com essas funções?
WOLFF, Martin. Derecho das
cosas, v. 1. 3. ed. Barcelona:
Bosch, 1971. p. 326.
1
BEVILACQUA. Código Civil dos
EUB, v. III. 11. ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1958. p. 45.
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TEXTO
Comprar ou alugar? Eis a questão (06.10.2004)3
Kênio de Souza Pereira4
Decidir-se por pagar aluguel ou por adquirir um imóvel é uma das maiores dúvidas que enfrentamos quando passamos a ter independência financeira. Quando
possuímos recursos suficientes para comprar, à vista, o que desejamos não há problema, pois certamente ter casa própria é fator de cidadania e segurança, especialmente para a família.
Mas, geralmente, a aquisição só é possível através de financiamento ou de parcelamento em longo prazo. Nesse momento são cometidos erros que podem levar
a prejuízos expressivos, especialmente se ignorarmos que toda compra e venda de
imóvel é complexa, seja pelo mercado, pela negociação, pela elaboração do contrato
ou da documentação.
Cultuamos a idéia de que pagar aluguel é um péssimo negócio por ser dinheiro
jogado fora. Tal afirmação não é verdadeira. É preferível, às vezes, pagar aluguel,
especialmente quando o inquilino trabalha por conta própria e precisa do dinheiro
para capital de giro. Às vezes, descapitalizar a empresa pode comprometer a sua sobrevivência. O custo do aluguel mensal, em torno de 0,7% em relação ao valor do
imóvel, é muito baixo, especialmente se comparado com o custo para uma empresa
buscar dinheiro financiado nos bancos.
Esquecemos, muitas vezes, que é saudável e necessário investirmos em nosso
bem-estar, em morar ou trabalharmos num local que atenda às nossas necessidades
ou expectativas para que possamos nos realizar como pessoas ou profissionais, e,
em grande parte das vezes, a única solução é alugar, dada a necessidade imediata de
morar ou trabalhar em determinado tipo de imóvel.
Ao optar pela compra de um imóvel, o bem mais caro do mundo, é comum essa
decisão vir acompanhada de grande carga emocional, o que atrapalha o raciocínio
lógico. Primeiramente, devemos procurar constituir uma poupança prévia, num
percentual mínimo de 50% do valor do imóvel que pretendemos adquirir. Para
isso, é preciso pesquisar o que realmente desejamos e qual o valor da dívida que
poderemos assumir.
É, ainda, aconselhável saber que, quanto maior o valor da entrada, menor será
o risco de inadimplência, mas que o contrário também é verdade, pois a idéia de
financiar de 70% a 100% do imóvel é arriscada, já que são poucos os brasileiros
certos de que manterão a capacidade de pagamento das parcelas por dez ou vinte
anos. Vemos com certa freqüência pessoas honestas tornando-se réus em ações de
cobrança, execução ou até perdendo o imóvel em decorrência do leilão do imóvel
financiado. O sonho da casa própria é tão intenso que as pessoas insistem em ignorar que ninguém está isento de ficar doente, de perder o emprego ou passar por uma
crise financeira em seu negócio, especialmente durante o longo prazo do financiamento e num país em que a política econômica é instável e sujeita a planos e pacotes
mirabolantes. A maioria não busca assessoria para entender os reflexos jurídicos das
Em http://www.creci-sc.org.
b r / d o c u m e nto. j s p ? cd _
pasta=62&cd_documento=61
3
O autor é Diretor da Caixa
Imobiliária, advogado especializado em direito imobiliário
– Tel. (31) 3225-5599, e-mail:
keniopereira@caixa imobiliaria.
com.br.
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direito de propriedade
cláusulas do contrato, consistindo em ingenuidade e amadorismo a idéia de que a
compra de um imóvel é simples.
Para aqueles que têm a ilusão de que os agentes financeiros vendem casa própria,
é bom saberem que a coisa não é bem assim... Ocorre que o dinheiro no Brasil é
uma mercadoria cara, que o custo financeiro (TR mais juros de 12% a 16%) faz a
dívida do financiamento subir em torno de 18% ao ano, sem contar o custo mensal
do seguro de vida e os danos físicos do imóvel. Portanto, o banco não vende imóvel,
mas empresta dinheiro, sendo o imóvel mera garantia hipotecária ou fiduciária. Por
isso, os agentes financeiros, dentre eles a Caixa Econômica Federal, não aceitam o
imóvel como pagamento da dívida quando o mutuário não consegue quitar pontualmente as prestações. O comprador acaba sofrendo uma ação de execução, ficando
com o nome “sujo” e perdendo crédito na praça e, finalmente, perde também o
imóvel através do leilão decorrente da hipoteca.
O pior é que o comprador geralmente se vê forçado a sair do imóvel, sem nada
receber, perdendo ainda as benfeitorias (reformas, armários, etc.) instaladas, o sinal
e tudo que pagou durante anos. Portanto, cabe à pessoa que deseja comprar um
imóvel financiado atentar para os riscos e compreender por que tantos mutuários
reclamam e se surpreendem ao constatarem que continuam a dever R$ 100 mil,
ou seja, quase o dobro do que vale o imóvel avaliado em R$ 50 mil, após ter pago
a entrada e, durante anos, as prestações. O fato é que o governo induziu milhares
de mutuários a financiarem imóveis sob a propaganda enganosa do PES (Plano de
Equivalência Salarial) ou do PCR (Plano de Comprometimento de Renda), que
prometiam que os valores das prestações acompanhariam a evolução salarial ou que
a mesma não ultrapassaria o percentual de 25% ou 30% do rendimento do mutuário, levando-o a acreditar que quitaria toda a dívida ao final do prazo. Ocorre que
ninguém explicou para o mutuário que quanto menor a sua prestação, que ficava
sem aumentar, maior se tornava a sua dívida, ou seja, o seu saldo devedor disparava em função do mesmo subir de forma capitalizada, em torno de 18% ao ano,
sem qualquer ligação com a evolução do seu salário ou com a variação do valor do
imóvel.
Portanto, para muitos seria melhor terem continuado a pagar aluguel, sem correr o risco do prejuízo da entrada e dezenas de prestações de um financiamento
impagável, e ainda perder o crédito na praça e os valores investidos no imóvel com
benfeitorias.
Obtendo recursos para dar entrada num imóvel, caso opte pela compra diretamente com a construtora, o risco será menor, pois o Código de Defesa do Consumidor proíbe que o comprador perca todas as parcelas que tiver quitado, caso se torne inadimplente. Neste caso, o comprador não perde tudo, como ocorre na rescisão
do contrato com o agente financeiro. Ocorrendo a rescisão na compra e venda feita
diretamente com a construtora, o comprador receberá de volta parte do que pagou,
cabendo a ele ficar atento para as complexas condições do contrato de promessa de
compra e venda, de forma a lhe propiciar maior segurança.
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CASO GERADOR
Sistema de tempo compartilhado em meios de hospedagem e turismo: o desenvolvimento do time sharing no Brasil
História
O time sharing surgiu logo após a 2ª Grande Guerra Mundial, como uma solução para o turismo na Europa do pós-guerra, tanto para os proprietários de hotéis
e agências de viagem, quanto para as famílias, que já não podiam comprar uma
propriedade de férias. Reuniam-se então os grupos familiares e juntos adquiriam e
compartilhavam um imóvel de férias; ao mesmo tempo em que os hotéis turísticos
também promoviam o compartilhamento de seus apartamentos, dividindo os períodos de utilização em três a quatro meses, conforme o aporte de cada família.
Os norte-americanos adotaram e aprimoraram esta filosofia, estabelecendo a divisão dos períodos em semanas, mais fáceis de se comercializar e de se utilizar; o
sistema foi se desenvolvendo até 1976, com o surgimento da Interval International,
que criou o serviço de intercâmbio, permitindo ao proprietário trocar a sua semana
de férias em um determinado hotel por outra semana em outro hotel em qualquer
parte do mundo. Os hotéis afiliados passaram a ser sempre resorts estruturados para
lazer, em destinos potencialmente turísticos, e as novas regras abrangiam adequações
de projetos, como apartamentos grandes com estrutura de cozinha, procedimentos
específicos quanto a reservas de intercâmbios, etc.
Determinados destinos turísticos foram viabilizados, em grande parte, pelas vendas de time sharing, como Cancún – México, e outros em que este sistema é intensamente desenvolvido, como em Miami, Orlando e Disney World, na Flórida – EUA;
além das principais atrações turísticas em todos os continentes.
Há no mundo duas grandes operadoras de intercâmbio de time sharing: a própria
Interval International e a RCI, ambas com escritórios e cerca de 120 resorts afiliados
no Brasil.
A RCI pertence a HFS – Hospitality Franchise Sistems, conglomerado americano que reúne 13 companhias, em sua maioria cadeias de hotéis como Days Inn e
Howard Johnson e tem entre os resorts afiliados redes como Ramada, Knights Inn,
Wingate Inn, etc., totalizando 2,3 milhões de famílias associadas.
A Interval International pertence a uma holding composta por algumas redes
de hotéis, como Marriott, Hyatt, Disney e Carlson, e conta com cerca de 1.600
empreendimentos em mais de 60 países, envolvendo as maiores cadeias hoteleiras
mundiais, como Sheraton, Hilton, Holiday Inn, Ramada, Meliá, além das inicialmente citadas e 1 milhão de famílias são proprietárias de semanas de “tempo compartilhado”, movimentando cerca de US$ 4,3 bilhões por ano.
Time Sharing para brasileiros
O Ministério da Indústria e Comércio, através da Embratur – Instituto Brasileiro
de Turismo, na sua Deliberação Normativa nº 378, de 12/08/97, regulamentou o Sistema de Tempo Compartilhado em Meios de Hospedagem e Turismo, estabelecendo
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os direitos e obrigações aos agentes intervenientes do sistema: empreendedor, comercializador, operador, administrador do intercâmbio e consumidor.
Esta regulamentação transmitiu a credibilidade necessária aos brasileiros, que
não confiavam no sistema, devido à pouca clareza na cobrança de taxas extras ou à
falta de vagas nos hotéis localizados nos destinos preferidos por brasileiros; hoje se
comprova que 99% das solicitações de reservas para intercâmbio são atendidas.
Há, na Flórida, uma demanda muito grande para venda de semanas de time
sharing para brasileiros, a ponto de alguns resorts em Orlando e Disney montarem
estruturas de venda específicas para brasileiros, onde o idioma corrente é o português; estima-se que cerca de 50 brasileiros/dia comprem semanas de time sharing
nos EUA e México, pagando em média US$ 15.000 por 20 anos de direito de uso
de 1 semana/ano; os valores praticados pelos resorts brasileiros são inferiores e o
comprador pode usufruir de todos os hotéis afiliados em sua rede de intercâmbio,
pagando somente as taxas de afiliação (uma vez por ano) e de intercâmbio (a cada
troca de semana efetuada).
As tabelas de vendas praticadas pelos resorts têm como parâmetros de diferenciação de preços o número de hóspedes/apartamento e o período do ano, dividido
em 52 semanas. No litoral paulista, entre alguns empreendimentos, o Dana Inn
Pousada Tabatinga, no Condomínio Costa Verde, entre Caraguatatuba e Ubatuba,
de frente ao mar em uma praia belíssima, está vendendo a R$ 4.000 o apartamento
para quatro hóspedes em semanas de média temporada – entre março e outubro;
sua tabela dispõe de preços ainda de apartamentos para 6 e 8 pessoas e para alta temporada. A grande vantagem de se comprar semanas no período de média temporada
é a de se conseguir um intercâmbio de alta temporada na Europa e EUA, pagando
um preço baixo, neste caso específico.
Alguns bancos brasileiros já anunciaram que estão estudando alternativas de
financiamento tanto para construção e reforma de resorts afiliados ao Sistema de
Tempo Compartilhado como para o consumidor final; o atual impeditivo são as
altas taxas de juros, que tendem a cair.
Tendências
O time sharing é o segmento do turismo que mais cresce no mundo, oferecendo
hospedagens em resorts de 4 e 5 estrelas a valores baixos. Com a chegada de marcas
internacionalmente reconhecidas, aliada à nova tendência, que é a adoção do sistema de pontos, substituindo a semana e permitindo maior flexibilidade de escolha:
ao invés de ser obrigado a usufruir das mesmas férias nas mesmas semanas todos os
anos, o comprador de time sharing será proprietário de um determinado número de
pontos, que poderão ser usados em qualquer resort afiliado, da forma que entender,
e será beneficiado com propostas de finais de semana mais baratos, vôos e pacotes
executivos nos resorts afiliados.
Este fato será o responsável pela criação de uma ampla e leal base de clientes: ao
mesmo tempo em que a medida da adoção do sistema de pontos, aliada à entrada
de redes internacionais no sistema, concede a credibilidade e permite a flexibilidade
de escolha ao comprador, elevar o padrão e a sofisticação do time sharing ficará por
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direito de propriedade
conta do ingresso de redes hoteleiras, principalmente européias, ofertando hotéis de
luxo nos principais destinos turísticos do continente, vários servidos por campos de
golfe e spa. O proprietário de time sharing de um resort brasileiro poderá usufruir
destes hotéis charmosos, onde as semanas são vendidas até por US$ 28.000, pagando, somente, as taxas da Interval, o transporte e alimentação.
A tendência da indústria hoteleira internacional passa obrigatoriamente pela
evolução do sistema de time sharing, passando para os centros urbanos, criação de
clubes de viagens, convênios; enfim, esta será a base da estrutura turística dos novos
tempos.5
Você consideraria, em quais casos, a compra de um imóvel nas circunstâncias
acima? Ou seria melhor alugar?
Em http://www.calfat j a c o b - n a v a r r o. c o m . b r /
time%20sharing.htm.
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direito de propriedade
AULA 2: FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: O DONO PODE FAZER TUDO?
Ementário de temas
Função social. Função social da propriedade.
Leitura obrigatória
TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In:
Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. pp. 267-293,
Leitura complementar
VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna. Rio de Janeiro, Renovar, 2005. p. 219-234.
Roteiro de aula
Função social
O que é dar função social? A propriedade, como a estamos concebendo, é um direito. Entretanto, um direito tão importante não pode ser exercitado sem que sejam
delineados limites internos ao seu exercício. Daí a transição dos poderes proprietários para deveres-poderes proprietários6, que deverão ser exercidos em consonância
com os interesses sociais. Tal questão não escapou ao constituinte.
Função social da propriedade
Este viés não escapou ao constituinte que definiu a priori um conteúdo constitucional para a propriedade, que orienta todo o conjunto de normas atinentes ao
referido direito. Trata-se da função social (art. 5º, XXIII, CRFB).
Função porque a propriedade passa, a partir deste momento, a não ser mais
um direito vazio, mas uma situação patrimonial apenas passível de proteção na
medida em que exercer um dado papel no ordenamento. Este papel é tomando
em conta não individual, mas socialmente, daí a menção ao termo “social”. A
propriedade de cada um está em termos de titularidade associada a cada um não
por conta da utilidade que cada um aufere da coisa (que não é relegada nem desimportante, mas que não serve de parâmetro central para esta regulação), mas
tendo em vista a utilidade que a sociedade obtém de benefício a cada titularidade
associada.
TEIZEN, Augusto. A função social no Código Civil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p.
132.
6
FGV DIREITO RIO 12
direito de propriedade
Qual seria a natureza da função social? Para alguns, é princípio da ordem econômica.7 Gustavo Tepedino, todavia, entende que este princípio permeia todo o
direito privado, porquanto diante das colocações acima não se possa conceber propriedade sem que haja atendimento a uma série de interesses não-proprietários,
que em muitos casos não se ampararão na micro-constituição econômica, mas em
outros paradigmas perfilados pela Constituição da República (em especial, situações
subjetivas existenciais: intimidade, liberdade, integridade, dignidade...).
Sendo princípio, ou seja, norma jurídica de redação sintética e de aplicação e
cogência variáveis, poderá a função social da propriedade admitir inúmeras concreções, cada uma com sua característica distintiva. O próprio Código Civil, no art.
1.228, § 1º, traz-nos algumas idéias que especificam o conteúdo da função social:
meio ambiente, proteção do patrimônio histórico, etc., além das previstas no próprio texto constitucional (art. 182, § 2º, sobre o atendimento ao plano diretor; art.
170, sobre os princípios da ordem econômica; art. 186, sobre a propriedade rural,
aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam
as relações de trabalho, exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e
dos trabalhadores). A função social comporta-se, portanto, como conceito jurídico
indeterminado, a ser preenchido pelo intérprete.
Além disso, a própria jurisprudência incumbe-se de delinear outras hipóteses nas
quais se atenderá à função social. É ver o RESP 27039, DJ 7.02.94, julgado pelo STJ:
“Direito de internar e assistir seus pacientes. Cód. de ética médica aprovado pela
resolução CFM n. 1.246/88, art. 25. Direito de propriedade. Cód. Civil, art. 524.
Decisão que reconheceu o direito do médico, consubstanciado na resolução, de ‘internar e assistir seus pacientes em hospitais privados com ou sem caráter filantrópico,
ainda que não faça parte do seu corpo clinico, respeitadas as normas técnicas da
instituição’, não ofendeu o direito de propriedade, estabelecido no art. 524 do Cód.
Civil. Função social da propriedade, ou direito do proprietário sujeito a limitações.
Constituição, art. 5, XXIII. 2. É livre o exercício de tal trabalho. A saúde é direito de
todos. Constituição, arts. 5, XXIII, e 196. 3. Recurso especial não conhecido.”
Ou ainda, confirmando o caráter de cláusula geral:
TJ-RJ, 2006.001.44440 – APELAÇÃO CÍVEL
DES. AZEVEDO PINTO – Julgamento: 13/12/2006
Apelação. Ordinária. Concessão real de uso de bem público. Municipalidade que
não deu função social à propriedade dominical sua e pretende desalijar família de baixa renda, que ocupou imóvel abandonado. Sentença de improcedência. Apelação do
Município argüindo preliminares de apreciação de agravo retido e de inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 2.220/2001. No mérito, requer a reforma da sentença alegando que: 1 – não cumpriu a apelada os pressupostos da MP 2.220/2001;
2 – inexiste direito de retenção por benfeitorias; 3 – a recorrida é devedora de perdas
e danos, na qualidade de lucros cessantes, tendo em vista que habitou bem público
MORAIS, José Diniz de. A função social da propriedade na
Constituição Federal de 1988.
São Paulo: Malheiros, 1999.
p. 64.
7
FGV DIREITO RIO 13
direito de propriedade
por anos, sem qualquer pagamento. Desprovimento do agravo retido e do recurso
principal. Correta a concessão de tutela antecipatória, uma vez que a decisão não é
teratológica, contrária à lei ou à prova dos autos, aplicação do verbete sumular nº 59
deste Tribunal. Não merece acolhida a argüição de inconstitucionalidade da Medida
Provisória 2.220/2001, tendo em vista que o Poder Executivo Federal nada mais fez
do que disciplinar matéria constitucional e legalmente prevista, através do ato administrativo normativo. Vale observar que não seria necessária Medida Provisória para
se fazer respeitar o princípio constitucional da função social da propriedade (art. 5º,
XXIII, e 170, III, da CRFB/88), que, na hipótese, se materializa pelo abandono do
bem pela municipalidade e pela comprovação de sua utilização pela apelada e sua
família, de acordo com o que se extrai do acervo probatório colacionado aos autos.
No mérito, vê-se que há prova suficiente de que a apelada é possuidora do imóvel há
mais de vinte anos, realizando, portanto, o comando insculpido no artigo 1º da MP
nº 2.220/2001. Ausente a finalidade pública bem delimitada, é viável a permanência
da apelada e sua família no imóvel, uma vez que, mantida a situação fática existente,
se estaria, sem dúvida, cumprindo com a função social do imóvel. Como dito alhures, desnecessária a edição de medida provisória com o fito de disciplinar a função
social da propriedade, tendo em vista que esta goza de assento constitucional (arts.
5º, XXIII, e 170, III, CRFB/88), e, repita-se, não dando a municipalidade função
social ao bem, este caracterizado como dominical, faz-se mister a chamada concessão
de uso especial. Observando-se, contudo, que não se está conferindo o domínio,
mas sim a posse do imóvel para o fim específico de moradia, estando o possuidor,
que deu função social ao imóvel, sujeito à cassação da concessão do benefício, na
hipótese de descumprimento dos requisitos e fins determinados. Recurso conhecido
e desprovido.
CASO GERADOR
MS 2046/DF; MANDADO DE SEGURANÇA
Relator Ministro HÉLIO MOSIMANN, DJ 30.08.1993, p. 17258.
MANDADO DE SEGURANÇA – ÁREA INDÍGENA – DECLARAÇÃO
DE POSSE E DEFINIÇÃO DE LIMITES PARA DEMARCAÇÃO ADMINISTRATIVA – PORTARIA MINISTERIAL DECORRENTE DE PROPOSIÇÃO
DA FUNAI – INTERDIÇÃO DA ÁREA – TÍTULO DOMINIAL PRIVADO
– CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 231 – ADCT, ART. 67 – LEI N. 6001/73
– DECRETO FEDERAL N. 11/91 – DECRETO FEDERAL N. 22/91.
1. O direito privado de propriedade, seguindo-se a dogmática tradicional (Código
Civil, arts. 524 e 527), à luz da Constituição Federal (art. 5., XXII), dentro das modernas relações jurídicas, políticas, sociais e econômicas, com limitações de uso e gozo, deve
ser reconhecido com sujeição à disciplina e exigência da sua função social (arts. 170, II
e III, 182, 183, 185 e 186, CF). É a passagem do estado – proprietário para o estado
– solidário, transportando-se do “monossistema” para o “polissistema” do uso do solo
(arts. 5º, XXIV, 22, II, 24, VI, 30, VIII, 182, parágrafos 3º e 4º, 184 e 185, CF).
FGV DIREITO RIO 14
direito de propriedade
2. Na “área indígena” estabelecida o dominialidade (art. 20, XI, e 231, CF),
a União é nula – proprietária e os índios, situam-se como usufrutuários, ficando
excepcionado o direito adquirido do particular (art. 231, parágrafos 6º e 7º, CF),
porém, com a inafastável necessidade de ser verificada a habitação de ocupação tradicional dos índios, seguindo-se a demarcatória no prazo de cinco anos (art. 67,
ADCT). (...).”
Na situação acima, entendeu o STJ que, se os não-indígenas cumprem a função
social da propriedade, devem ser deixados dentro de terra demarcada como reserva
indígena. Você concorda com a decisão?
FGV DIREITO RIO 15
direito de propriedade
AULA 3: A PROPRIEDADE E A POSSE: EU ESTOU AQUI
Ementário de temas
A propriedade e a posse: relação. Conceito de posse
Leitura obrigatória
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. Posse e propriedade. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006. p. 295-317.
LEITURA COMPLEMENTAR
Rudolf von Ihering, Posse e Interditos Possessórios, Salvador, Progresso, 1959, pp.
155-172.
ROTEIRO DE AULA
O que é a posse?
Como vimos, a propriedade consiste, na visão civilista tradicional, no exercício
de poderes significativos em relação a uma coisa. E o que ocorre se esses poderes são
exercidos de fato, independentemente de uma situação juridicamente consolidada
a ampará-los? Temos, nesse caso, a posse, que é a exteriorização do exercício desses
poderes. Há, por exemplo, uma diferença evidente entre ter o direito de usar um
carro e efetivamente usá-lo. A exteriorização material constitui posse. O direito
pode ser de qualquer natureza, inclusive a propriedade.
Fundamentos da tutela possessória no direito romano
Origens possíveis da palavra posse em latim:
Pedes ponere – pôr os pés.
Sedibus – deter algo. Ex: cargo, patrimônio...
Origens da posse no direito romano8
Savigny – campos comunais (ager publicus) e seus ocupantes, que necessitavam
de tutela jurídica;
Ihering – inicialmente, defesa dos ocupantes que não eram o pater, na ausência
dele ou mesmo contra ele (rendeiro agricultor, que muitas vezes era o filho-família);
Cf. REZENDE, Astolpho. A posse
e a sua proteção. 2. ed. São Paulo: Lejus, 2000. p. 1-26.
8
FGV DIREITO RIO 16
direito de propriedade
depois, ocupante de propriedade, que não tinha registro adequado, mas poderia ser
o dono; em terceiro lugar, a proteção da posse de bens móveis.
Disso derivam muitas das noções sobre posse e as divergências entre ambos. A
visão de Savignyc é marcadamente mais social e voltada para aquele que almeja a
condição de proprietário, e a de Ihering, mais preocupada em justificar a proteção
jurídica do provável proprietário.
Requisitos para a configuração da posse
Os requisitos para a configuração da situação possessória são descritos no art.
1.996 do Código Civil:
“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício,
pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”
Esse dispositivo legal pode ser desmembrado, de maneira que se extraiam os
seguintes requisitos para a configuração da situação possessória.
POSSE = CORPUS + AFFECTIO TENENDI + ANIMUS
No entanto, a determinação do conteúdo desses requisitos varia de acordo com
a teoria adotada:
Savigny: o possuidor é aquele que se comporta como proprietário e deseja ser
dono.
Posse: corpus (poder sobre a coisa) + affectio tenendi (consciência do poder sobre
a coisa) + animus domini (vontade de ser dono). O locatário, o depositário, e outras
figuras assemelhadas, portanto, não teriam posse.
Ihering: Posse como proteção do possível proprietário, e não como proteção do
aspirante a proprietário.
Posse: corpus (com animus; basta querer ter poder sobre a coisa) + affectio tenendi.
Detenção
O detentor é aquele que, embora exerça de fato os poderes inerentes ao domínio,
não tem tutela jurídica que o ampare.
Situações de detenção:
1. Fâmulo da posse (art. 1198, CC);
2. Atos de mera tolerância (art. 1208, CC);
3. A situação de quem adquire a posse com violência ou clandestinidade, enquanto essas não cessam (art. 1208).
FGV DIREITO RIO 17
direito de propriedade
A relação da posse com a propriedade
A posse, como situação de fato correlacionada, surge como a aparência dos poderes proprietários, ou se amparando na intenção de ser dono, ou na provável propriedade. No entanto, tem-se constatado cada vez mais que a visão iheringuiana
não foi capaz de antever atritos entre o proprietário não-possuidor e o possuidor
não-proprietário, a quem Ihering imaginava falecer proteção jurídica. Na nossa sociedade, todavia, não é possível ignorar essa perspectiva.
CASO GERADOR 1
Um possuidor tem o seu imóvel desocupado à força, pois alegadamente estaria
ocupando área de propriedade do poder público. Processa o poder público, que
alega ser legítimo possuidor do bem, buscando voltar a possuir o bem. Ao ser questionado pelo magistrado, o representante de Administração admite que, conquanto
seja proprietário, não sabe ao certo qual área possui, nem de qual modo são exercidos os poderes sobre a coisa. A administração tem posse?
CASO GERADOR 2
Transitado em julgado o acórdão que determina o despejo de locatário, o mesmo
não é efetivado pelo locador, que deixa o processo parado. O despejado tampouco
reinicia o pagamento do aluguel. Tem posse o sucumbente da ação?
FGV DIREITO RIO 18
direito de propriedade
AULA 4: A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E O CRITÉRIO DA MELHOR POSSE
Ementário de temas
Melhor posse e tipologia da posse. Efeitos da posse. A função social da posse.
Conflitos entre critérios.
Leitura obrigatória
ZAVASKI, Teori. Tutela da posse na CRFB e no Novo Código Civil, PDF.
Leitura complementar
CASTRO, Tupinambá. Posse e propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003. p. 9-98.
ROTEIRO DE AULA
Melhor posse e tipologia da posse
O Código Civil, em boa parte do título dedicado à posse, cuida de determinar
quais são os diferentes tipos de posse. Em alguns casos, fá-lo com o objetivo de
imputar efeitos a determinados tipos de posse, como, por exemplo, nos art. 1214
e seguintes. Em muitos casos, contudo, a delineação da tipologia da posse é feita
sem que se determinem conseqüências específicas para a adoção desse ou daquele
regime jurídico.
A justificativa da ausência desses efeitos encontra-se no art. 507 do Código Civil
de 1916, que assim dispunha:
“Art. 507. Na posse de menos de ano e dia, nenhum possuidor será mantido, ou
reintegrado judicialmente, senão contra os que não tiverem melhor posse.
Parágrafo único. Entende-se melhor a posse que se fundar em justo título; na
falta de título, ou sendo os títulos iguais, a mais antiga; se da mesma data, a posse
atual. Mas, se todas forem duvidosas, será seqüestrada a coisa, enquanto se não apurar a quem toque.”
Do dispositivo acima, extraiu-se a interpretação de que aquele que, de acordo
com os critérios de classificação da posse, tiver a melhor posse, deverá ter a sua
posse juridicamente tutelada. Dá-se a essa situação o nome de critério da melhor
posse.
FGV DIREITO RIO 19
direito de propriedade
Para que se determine qual a melhor posse, é necessário que sejam conhecidos
os critérios de classificação da posse, bem como de que maneira ela é adquirida ou
perdida.
Classificação da posse
Posse derivada
Transmitida por outrem, com ou sem mediação – e ninguém transmite mais
direitos do que possui.
Posse originária
Criada pelo surgimento espontâneo de uma relação com a coisa.
Posse direta ou imediata
Inferência sobre a coisa exercida pelo não-proprietário;
Posse indireta ou mediata
Pode ser ainda resguardada pelo proprietário, que não perde todo o controle
sobre a coisa.
Requisito
A existência de uma relação jurídica que justifique a mediação na posse. Opõe-se
a mediação da posse à idéia de posse plena, a única ad usucapionem.
Posse justa e injusta
Art. 1200. nec vi, nec clam, nec precário. A posse é justa toda vez que não é injusta.
Posse injusta – violenta
Tomada por um ato de força.
Posse injusta – clandestina
Ato de ocultamento.
Posse injusta – precária
Daquele que, recebendo a coisa com a obrigação de restituir, não a devolve,
arrogando-se a qualidade de possuidor.
A posse injusta não se converte em justa por ato unilateral do possuidor. Mas
circunstâncias outras podem legitimar a posse (como, por exemplo, uma aquisição
do bem). Vejamos as decisões abaixo:
STJ REsp 154733 / DF, Relator Ministro CESAR ASFOR ROCHA
DJ 19.03.2001 p. 111
FGV DIREITO RIO 20
direito de propriedade
“CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS. MUTAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA POSSE ORIGINÁRIA. POSSIBILIDADE.
O usucapião extraordinário – art. 55, CC – reclama, tão-somente: a) posse
mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de vinte anos; c) presunção juris et de jure de boa-fé e justo título, ‘que não só
dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua
inexistência’. E, segundo o ensinamento da melhor doutrina, ‘nada impede que o
caráter originário da posse se modifique’, motivo pelo qual o fato de ter havido no
início da posse da autora um vínculo locatício não é embaraço ao reconhecimento
de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de natureza
e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono
e, por isso mesmo, com força ad usucapionem. Precedentes. Ação de usucapião
procedente. Recurso especial conhecido, com base na letra ‘c’ do permissivo constitucional, e provido.”
TJ-RJ, 2005.001.30269 – APELAÇÃO CÍVEL, DES. RICARDO RODRIGUES
CARDOZO – Julgamento: 30/11/2005.
“USUCAPIÃO. AUSÊNCIA DE REQUISITO INDISPENSÁVEL. RELAÇÃO LOCATÍCIA. DESCABIMENTO. ARTS. 492 (CÓD. CIVIL 1916) E
1.203 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. 1 – Tanto o antigo como o novo Código
Civil Brasileiro assentam que ‘salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida’. 2 – O fato do locatário ter deixado
de pagar o aluguel desde 1972, sem que o locador tenha adotado qualquer providência imediata, não transmuda a natureza da posse. 3 – In casu, não se operou
o fenômeno da interversão do título, pois não basta a vontade unilateral de uma
das partes para alterar a natureza da posse. Necessário um ato de exteriorização
a indicar uma nova relação jurídica que difere da original ex locato. Manutenção
da sentença de 1º grau. 4 – Recurso desprovido nos termos do voto do Desembargador Relator.”
TJ-RJ, 2004.001.13881 – APELAÇÃO CÍVEL, DES. ELISABETE FILIZZOLA – Julgamento: 14/07/2004.
“USUCAPIAO. POSSE. NATUREZA JURÍDICA. ALTERAÇÃO. RECONHECIMENTO DA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. AÇÃO DE USUCAPIÃO. MODIFICAÇÃO DO CARÁTER DA POSSE. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 493 DO CC 16 c/c ART. 1.203 DO CC 2002. Segundo o
ensinamento de melhor doutrina, nada impede que o caráter originário da posse se
modifique, motivo pelo qual o fato de ter havido no início de posse dos autores em
vínculo de detenção não é embaraçoso ao reconhecimento de que, a partir de em
determinado momento, essa mesma mude de natureza e assuma a feição de posse em
nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad
usucapionem. No caso, os Autores trabalhavam como caseiros para os proprietários
do imóvel desde 1960 e, com o falecimento da antiga proprietária ocorrido, no dia
FGV DIREITO RIO 21
direito de propriedade
24/8/1972, ocuparam o imóvel, de forma mansa, pacífica e ininterrupta, como animus domini, razão pela qual se reconhece o seu direito a aquisição do imóvel. RECURSO PROVIDO.”
As decisões do TJ-RJ e do STJ são contraditórias?
Posse de boa-fé e de má-fé (art. 1201).
Quem tem ma-fé é aquele que tem consciência da ilegitimidade de seu ato.
Pode haver posse justa de má-fé; por exemplo: alguém se apresenta como outra
pessoa e recebe um bem.
Pode haver posse injusta de boa-fé: alguém pode não ter consciência do vício
que inquina a sua posse. Por exemplo, o possuidor precário que entende não ter de
devolver um bem, por motivo de justiça pessoal.
Justo título
Causa em tese hábil para justificar a transferência da posse, e não da propriedade.
Presunção iuris tantum de que quem possui justo título possui de boa-fé. (CC, art.
1.201, parágrafo único).
Objetivando a mudança desse paradigma, o enunciado das Primeiras Jornadas
do Conselho de Justiça Federal:
“86 - Art. 1.242: A expressão ‘justo título’, contida nos arts. 1.242 e 1.260 do
CC, abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade,
independentemente de registro.”
Há alguma diferença entre os critérios justiça e injustiça da posse, e a fé na
posse?
Art. 1.203: preservação do caráter da posse.
Art. 1.199: composse – é exercitada na totalidade por todos os co-possuidores.
Aquisição e perda da posse
Art. 1.205: aquisição – acontece através de um ato jurídico. Toda vez que houver
conduta e objeto, corpus e animus, haverá a aquisição da posse. Lembrar a tolerância
e o fâmulo da posse.
Art. 1.206: sujeitos da aquisição.
A aquisição derivada e originária
Originária: a apreensão da coisa e exercício do direito.
Derivada: plena: tradição, sucessão na posse; mediada: - sucessão.
FGV DIREITO RIO 22
direito de propriedade
Tradição ficta genérica (entrega de chaves: transmite a posse direta sobre o
bem).
Tradição longa manu: proprietário transmite a posse para o novo proprietário,
sem que este toque e ocupe a coisa (que pode estar com o locatário).
Tradição brevi manu: alguém que é possuidor direto consolida em suas mãos todos os poderes do possuidor, adquirindo a propriedade. Ex.: locatário que compra.
Constituto possessório: aliena-se a propriedade, mas se constitui a posse a non
domine, através da mediação. Ex.: o dono que vende e conserva-se no imóvel por
mais de 30 dias, como usufrutário ou como locatário. É forma derivada de aquisição da posse, porque a posse é toda alienada ao novo dono, que empossa o alienante
como possuidor imediato.
Sucessão na posse: a título universal; a título singular: e cessão da posse.
Acessão na posse: a possibilidade de unir uma posse a outra. A acessão é uma
faculdade, já que a boa-fé do adquirente da posse não retroage para limpar a má-fé
do alienante. O adquirente de má-fé, por outro lado, não pode invocar a boa-fé de
seu antecessor.
Extensão da posse: presunção relativa. Exemplo: se os bens do vizinho encontram-se caídos no meu quintal, e eu não pratico ato algum, não adquiro a posse.
Efeitos da posse
a)
b)
c)
d)
Usucapião.
Presunção de propriedade.
Direito aos frutos percebidos.
Indenização de benfeitorias: ler arts. 1.122 a 1.219 (necessárias: indeniza-se
sempre; úteis: só ao de boa-fé; voluptuárias: jus tolendi apenas aos possuidores de boa-fé).
e) Desforço possessório: art. 1.210, parágrafo único.
f ) Indenização dos danos causados.
A função social da posse
A função social da posse pode ser doutrinariamente identificada com a obra de
Hernandez Gil9, que pela primeira vez aventou a possibilidade de a posse desempenhar uma função social. Na doutrina brasileira, é facilmente identificável uma
visão da função social da posse como sendo a materialização do interesse do nãoproprietário, ou seja, do interesse juridicamente qualificado como atendedor da
função social da propriedade. Assim, temos a figura da posse qualificada, que é a
posse que atende à função social da propriedade.
Conflitos entre critérios
Não se pode ignorar que o Código Civil de 2002 não reproduz o art. 507. Qual
critério utilizar?
La Funcion Social de la Possessión.
9
FGV DIREITO RIO 23
Não se pode ignorar que o Código Civil de 2002 não reproduz o art. 507. Qual critério
utilizar?
direito de propriedade
CASO GERADOR
CASO GERADOR
Vejamos as imagens abaixo, retiradas do site do Movimento dos Sem-Teto do Centro
Vejamos as imagens abaixo, retiradas do site do Movimento dos Sem-Teto do
(www.mstc.org.br).
Centro (www.mstc.org.br).
9
La Funcion Social de la Possessión.
[inserir figuras 01 e 02]
E ainda o texto à página seguinte:
E ainda o texto abaixo:
FGV DIREITO RIO 24
“Manifesto dos Movimentos de Moradia
(julho, 2003)
direito de propriedade
Manifesto dos Movimentos de Moradia
AUTORIDADES!
Federal, Estadual e Municipal
Executivo, Legislativo e Judiciário
Não agüentamos esperar!
Se pagar o aluguel, não come. Se comer, não paga o aluguel. É este o nosso dilema.
Somos trabalhadores sem-teto desta magnífica cidade. Somos empurrados para
as favelas, cortiços, pensões e para o relento das ruas. Sofremos com o despejo do
senhorio. Nossas crianças, devido às nossas condições precárias de vida, penam para
se conservarem crianças. Somos tocados de um lado para outro. Não encontramos
espaço, para nossas famílias, em nosso próprio território. Nossa cidade, que construímos e mantemos com nosso trabalho, afugenta-nos para fora, para o nada.
Dizem que os trabalhadores são a peça mais importante da sociedade. Entretanto,
estamos sendo triturados por esta engrenagem econômica perversa – mecanismo que
destrói os trabalhadores em vida e conserva no luxo uns poucos privilegiados. Uma
minoria que mantém centenas de imóveis vazios, abandonados, por vários anos.
Imóveis que não cumprem sua função social. Enquanto somos empurrados para as
periferias sem infra-estrutura urbana, em favelas, áreas de risco ou de mananciais.
Não podemos aceitar esta situação. Não podemos esperar. Nossas famílias e nossas vidas estão em perigo. Queremos que a Lei entre em vigor: dê função social a
esses imóveis vazios e abandonados. Vamos eliminar esse desperdício criminoso.
Para tanto, pleiteamos:
1. O atendimento de 2.000 famílias de sem-teto no centro expandido da cidade,
até o final do ano;
2. Atendimento de emergência de 500 famílias de sem-teto. Este atendimento
pode vir por meio de carta de crédito, locação social e outras formas de financiamento;
3. Declarar de interesse social todos os prédios vazios que estão abandonados por
mais de 2 (dois) anos. E disponibilizá-los para moradia popular;
4. Disponibilizar todas as terras, prédios do governo federal, de autarquias ou
imóveis penhorados pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal para moradia
popular, em São Paulo;
5. Enquanto não houver atendimento definitivo, queremos morar nos imóveis
que ocupamos.
São Paulo, 20 de julho de 2003
Associação Comunitária Direito da Cidadania Bem Viver
Associação de Moradores Jardim São Judas Tadeu
Associação dos Trabalhadores Sem Terra de Francisco Morato
Associação Morar e Preservar Chácara do Conde
Associação Oeste de Moradia Diadema
FGV DIREITO RIO 25
direito de propriedade
Movimento de Luta por Moradia Campo Forte
M. L. M . P - Movimento de Luta por Moradia Própria
M. S. T. C. - Movimento Sem Teto do Centro
M. S. T. R. C. - Movimento Sem Teto da Região Central
Movimento Sem Teto de Heliópolis - Unas
Movimento Moradia Jardim Nova Vitória
Projeto Casarão Celso Garcia”10
Considerando-se o que foi aprendido sobre os critérios de qualificação da posse,
a invasão é juridicamente aceitável?
Manifesto divulgado pelos
movimentos de moradia por
ocasião da ocupação de vários
prédios em São Paulo, retirado
de http://www.mstc.org.br/
textos/manifesto-julho2003.
php.
10
FGV DIREITO RIO 26
direito de propriedade
AULA 5: NA JUSTIÇA: A TUTELA JURÍDICA DA POSSE. TUTELA POSSESSÓRIA
E PETITÓRIA.
Ementário de temas
Jus possessionis e jus possidendi. Reintegração, manutenção e interdito proibitório.
Imissão na posse. Separação dos juízos possessório e petitório. Cumulação de ações.
Procedimento da ação possessória. Liminar. Posse nova e posse velha.
Leitura obrigatória
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A posse e a propriedade. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 404-430.
Leitura complementar
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 103120.
TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A posse e a propriedade. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 345-403.
ROTEIRO DE AULA
Jus possessionis e jus possidendi
A posse, como situação de fato, origina distintos tipos de tutela. Dependendo
da situação na qual se encontra o possuidor, o direito estende tutela mais ampla ou
menos ampla e leva a um procedimento ou a outro.
Daí a diferenciação entre dois tipos de posse, de acordo com a tutela jurídica
obtida: jus possessionis e jus possidendi.
Natureza
Tutelas obtidas
Requisitos
Jus possessionis
Direito ao não-esbulho e à nãoturbação
Reintegração, manutenção, interdito
Estado fático da posse
Jus possidendi
Direito à posse
Reintegração, manutenção,
interdito, imissão
Estado fático da posse + título
Ações possessórias
São aquelas cuja causa de pedir é a posse.
FGV DIREITO RIO 27
direito de propriedade
Pretensões possessórias clássicas:
– Reintegração;
– Manutenção;
– Interdito proibitório.
Na ação possessória só se discute posse, conforme se vê do art. 921 do Código
de Processo Civil:
“Art. 921. É lícito ao autor cumular ao pedido possessório o de:
I – condenação em perdas e danos;
Il – cominação de pena para caso de nova turbação ou esbulho;
III – desfazimento de construção ou plantação feita em detrimento de sua
posse.”
Todavia, previa o regime do CC de 1916, pelo seu art. 505:
“Art. 505. Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse em
favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”
O dispositivo veiculava uma visão da posse como aparência de propriedade, e
não com a autonomia necessária, que passou a se impor após o reconhecimento
dos conflitos entre situações tituladas e não tituladas. Logo, na possessória não se
discutiria apenas posse, e ela seria decidida com base na propriedade, se fosse por
alguma das partes alegada.11
A redação do dispositivo foi alterada, no art. 1.210, § 2º, do CC de 2002:
“Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação,
restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de
ser molestado.
§ 1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por
sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não
podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
§ 2º Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.”
Desse modo, três conclusões se impuseram, muito bem resumidas pelos enunciados das primeiras Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal:
“78 – Art. 1.210: Tendo em vista a não-recepção pelo novo Código Civil da
exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente para
embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente no ius possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual
alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso.
Súmula 487, Supremo Tribunal Federal.
11
FGV DIREITO RIO 28
direito de propriedade
79 – Art. 1.210: A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta
separação entre os juízos possessório e petitório.
80 – Art. 1.212: É inadmissível o direcionamento de demanda possessória ou ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte passiva ilegítima diante
do disposto no art. 1.212 do novo Código Civil. Contra o terceiro de boa-fé, cabe
tão-somente a propositura de demanda de natureza real.
Se na ação possessória só se discute posse, quais os critérios possíveis para a sua
decisão? O da melhor posse e o da função social da posse.
Para os que contam com título válido, a tutela dominial, em ação no procedimento comum ordinário, é a melhor opção. Mas o que ocorreria se ajuizassem ação
possessória? Poderiam ajuizar a petitória e se arrependerem?
Na constância da possessória, não é possível ajuizar ação de imissão (CPC, art.
923), resultando seu ajuizamento em extinção sem apreciação do mérito. O contrário, no entanto, é possível.
Características do procedimento especial das ações possessórias
–
–
–
–
Conteúdo mandamental
Fungibilidade: art. 920, CPC.
Caráter dúplice: art. 922, CPC.
Liminar: art. 928, CPC. Critérios: apenas fumus e periculum. Natureza da
liminar: satisfativa.
Ainda reside interesse na distinção entre posse nova e posse velha. A posse velha
é aquela obtida ou perdida há mais de um ano e um dia. A nova, há menos de um
ano e um dia. O CC de 1916 estabelecia que, se a posse fosse velha, na ação possessória não poderia haver concessão de liminar.12 Entretanto, o art. 924 do Código de
Processo Civil ainda diferencia posse nova de posse velha.
CASO GERADOR
Se um imóvel de propriedade da prefeitura de São Paulo, nas condições precárias
vistas nas fotos do caso da aula 4, fosse invadido pelo MSTC e se instaurasse um
conflito entre eles e a municipalidade, qual ou quais as ações a serem ajuizadas pelo
Município para reaver o imóvel? E pelo MSTC para se manter lá? Como obter tutela jurídica, em um caso ou em outro, o mais rápido possível?
Art. 508: “Se a posse for de
mais de ano e dia, o possuidor
será mantido sumariamente,
até ser convencido pelos meios
ordinários.”
12
FGV DIREITO RIO 29
direito de propriedade
AULA 6: PROPRIEDADE E MORADIA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Insuficiência da proteção possessória. Titulação. Moradia e dignidade da pessoa
humana.
LEITURA OBRIGATÓRIA
SOTO, Hernando de. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record. p. 187218.
LEITURA RECOMENDADA
FACHIN, Luis Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 33-65.
ROTEIRO DE AULA
Posse e proteção da moradia
Os anseios de ampliação da proteção possessória correlacionam-se, sem sombra
de dúvida, com as necessidades de moradia. Alçada a direito social no art. 6º da
Constituição Federal, não se pode imaginar a possibilidade de vida digna sem que
haja acesso à moradia. Por outro lado, outros interesses sociais podem e serão postos em cotejo com a necessidade de prover moradia, como se pode ver da decisão a
seguir.
2006.002.17927 – AGRAVO DE INSTRUMENTO
DES. JOSE DE SAMUEL MARQUES – Julgamento: 08/11/2006
“Agravo de Instrumento. Ação de Despejo por Falta de Pagamento. Recurso de
Apelação recebido em duplo efeito. Decisão contrária ao disposto no art. 58, V, da
Lei 8.245/91. Embora seja notório o grave problema de moradia existente em nosso
país, não cabe ao Judiciário, em interpretação contrária à lei, suprir a deficiência do
Poder Público, fazendo cortesia com o patrimônio do particular, que já é por demais
onerado por tributos que, infelizmente, não são destinados aos seus fins. RECURSO
PROVIDO.”
Como resultado, o direito à moradia será ponderado com outros direitos, de
modo que se determine qual o interesse prevalente.
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direito de propriedade
Posse e titulação
Há, contudo, uma insuficiência estrutural na concepção de um direito não-titulado, que não permite o exercício pleno de suas faculdades por parte do titular. O
texto a seguir ilustra bem essa problemática.
“¿Qué sucede si no puede demostrar que tenía una casa?
Por Hernando de Soto
La importancia de un adecuado sistema de propiedad legal
Dos desastres naturales recientes nos han conmovido: el peor tsunami de la historia, que asoló 11 países en las costas del Océano Indico, y el huracán llamado
Katrina, que inundó la ciudad de Nueva Orleans. Las imágenes llegadas de ambas
regiones fueron trágicamente similares: edificios derruidos, cadáveres flotando, sobrevivientes estupefactos, y agua, agua por todas partes.
Había una profunda diferencia. En Nueva Orleans, lo primero que hicieron las
autoridades para garantizar la paz y asegurar la reconstrucción fue salvar los registros
de propiedad legal de la ciudad, los cuales rápido determinaron quién es dueño de
qué y dónde, quién debe qué y cuánto, quién puede ser reubicado rápido, quién es
sujeto de crédito para financiar una reconstrucción, qué propiedad está tan dañada
que va a necesitar ayuda, y cómo dar energía y agua limpia a los pobres.
En el sudeste asiático no había esos registros legales disponibles que encontrar, pues
la mayoría de las víctimas del tsunami había vivido y trabajado por fuera de la ley.
Con las aguas de la inundación aún altas Stephen Bruno, el custodio de los
registros notariales de Nueva Orleans, corrió hacia el sótano del juzgado donde se
almacenaban los registros de propiedad de la ciudad, los sacó a rastras del agua, los
acomodó en camiones refrigerantes que los transportaron a Chicago, donde fueron
secados por expertos.
Los documentos restaurados fueron rápidamente devueltos a Nueva Orleans:
60.000 volúmenes ahora archivados bajo guardia armada, en el recientemente despejado centro de convenciones. ‘Abstractores’ moviéndose entre cajas hasta la altura
del muslo revisan meticulosamente documentos que producirán las herramientas
legales para diseñar y financiar la recuperación de la ciudad, permitiendo que banqueros, aseguradores y corredores de inmuebles identifiquen propietarios, activen
garantías colaterales, consigan financiamiento, accedan a mercados secundarios,
realicen acuerdos, cierren contratos, y a la vez hagan rentable que las empresas de
servicios bombeen energía y agua a los vecindarios. Toda la infraestructura legal de
cuya necesaria existencia para mantener una economía moderna en movimiento
gran parte de los estadounidenses no es consciente.
Una escena así fue imposible luego de que el tsunami de diciembre del 2004
lanzó a gran velocidad agua y olas del tamaño de edificios sobre las propiedades que
daban a la playa, desde Indonesia y Tailandia hasta Sri Lanka y las Maldivas, matando a más de 270.000 personas (168.000 solo en Indonesia).
En Bandah Aceh, Indonesia, el agua se llevó 200.000 casas; la mayoría de ellas
sin títulos de propiedad.
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direito de propriedade
Cuando el agua se retiró de Nam Khem, Tailandia, un magnate bien conectado se lanzó a apropiarse de la valiosa primera fila de terrenos frente de playa. Los
sobrevivientes de las 50 familias que durante una década habían ocupado la orilla
protestaron, pero no tenían derechos de propiedad legalmente documentados que
respaldaran sus reclamos.
Ese es el caso de la mayoría de la gente en los países en desarrollo y en los que
formaban parte del mundo soviético, donde los sistemas legales son inaccesibles a la
mayoría de los pobres. La vida en el mundo ‘extralegal’ está en constante riesgo.
Un terremoto sacudió Pakistán el mes pasado, dejando un estimado de 73.000
muertos. Cuando un sismo de similar intensidad remeció Los Ángeles en 1994,
murieron 60 personas. ¿Por qué la diferencia? Como les gusta decir a los sismólogos:
“Los terremotos no matan a la gente, las casas sí”. Viviendas construidas inadecuadamente, fuera de la ley, ignorando los códigos de construcción.
¿Pero qué propietario pobre --para no hablar del promotor, del banco, de la oficina de crédito o del organismo gubernamental – tiene algún incentivo para invertir
en vivienda más segura y en concreto reforzado sin la evidencia de una propiedad
garantizada y legal y la posibilidad de conseguir crédito?
Los gobiernos no tienen cómo hacer cumplir los códigos legales cuando la mayoría de las personas opera al margen de ellos.
En los países en desarrollo los desastres naturales no solo dejan a las ciudades en
ruinas, sino que arrasan con economías enteras. El tsunami del 2004 liquidó el 62%
del PBI de Las Maldivas; mientras que el costo del Katrina, según la Oficina de Presupuesto del Congreso, será entre 0,5% y 1% del PBI de EE.UU.
Por lo general los gobiernos promueven el valor de la propiedad privada para
incrementar los impuestos sobre ella. En la economía extralegal, las personas pueden
pagar sobornos, pero nadie paga impuestos. ¿De dónde vendrá el dinero para la
reconstrucción?
La propiedad privada en EE.UU. suele estar cubierta por seguros. Valorados en
unos US$ 30.000 millones para el Katrina. En Sri Lanka, sin embargo, solo el 1%
de las 93.000 víctimas del tsunami estaba cubierto.
En el mundo en desarrollo pocas personas tienen un documento de identidad
legal ligado a un domicilio oficial, no importa el tipo de título legal de sus activos
exigido por los aseguradores.
Sin una prueba de identidad o domicilio legal a partir del cual crear una lista de
suscripción, ninguna compañía de servicios públicos va a suministrar electricidad o
cualquier otro servicio.
Ni siquiera los gobiernos están seguros de quiénes son los que han muerto, puesto que la mayor parte de las víctimas nunca tuvo identidad legal.
En Perú, el debate sobre si los muertos dejados por la guerra que inició el terrorismo de Sendero Luminoso fueron 25.000 o 75.000, aún continúa.
Las autoridades de Nueva Orleans estudian la posibilidad de recurrir a leyes de
usufructo. Cuando los pobres no pueden afrontar los gastos de reparación, estas leyes
permiten al municipio reconstruir las viviendas, alquilarlas a los albañiles, aportando
el necesario alojamiento, y ahorrar el escaso pequeño capital de los pobres, quienes
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direito de propriedade
eventualmente recuperan sus casas o tienen la posibilidad de venderlas al municipio
a precio de mercado.
En el mundo en desarrollo ni el capital ni el crédito se aventuran allí donde los
derechos de propiedad no son claros.
La diferencia entre un tsunami y un huracán termina siendo mucho más que
el oleaje. Por eso es que en los países en desarrollo, que no cuentan con un sistema
adecuado de legislación sobre propiedad, hasta la paz está en juego; como era el caso
en Estados Unidos antes de que una buena – y ampliamente accesible – legislación
sobre el derecho a la propiedad convirtiera a los violentos invasores en nobles pioneros.
Antes de aquello, los invasores habían amenazado con quemar las fincas del presidente George Washington si no se les entregaba títulos. Y Abraham Lincoln recordó
cierta vez en un discurso que no haber podido ver la puesta del sol por la cantidad
de cadáveres colgados de los árboles, víctimas de linchamientos a raíz de crímenes
contra la propiedad. Así están hoy los países en desarrollo. Se puede detener el derramamiento de sangre.
Los medios de vida y los negocios podrían regenerarse en el mundo en desarrollo,
pero primero los pobres tienen que ser legalmente empoderados. Damos a la ley por
sentado; pero sin documentación legal la gente no existe en el mercado. Si la propiedad, los negocios y las transacciones no se documentan legalmente, están destinados
a ser obviados. La sociedad no podrá funcionar como un todo.
Los huracanes no pueden destruir la infraestructura oculta del dominio de la
ley, que mantiene la paz y empodera al pobre. Los títulos avalados por la ley y los
certificados de acciones generan inversión; los títulos de propiedad al día garantizan
el crédito; los documentos permiten a la gente identificarse y recibir ayuda, los estatutos de una compañía pueden acopiar fondos para la reconstrucción; las hipotecas
reúnen dinero, los contratos afirman los compromisos.
Cuatro mil millones de personas de los seis mil millones que hay en todo el
mundo carecen de la habilidad de generar prosperidad y recuperarse de los desastres;
su constante tragedia es vivir sin el beneficio de alguna ley. Ninguna suma de ayuda
internacional o caridad puede compensar eso.
Solo si los pobres son empoderados legalmente van a poder ellos mismos estar en
situación de convertir el siguiente tsunami en una simple tormenta más.”13
Desse modo, o dilema se propõe: a tutela judicial da moradia já é assaz tênue, e
em muitas decisões judiciais outros interesses são atendidos em prejuízo da moradia; além disso, mesmo que em todas as decisões judiciais fosse amparada a posse do
habitante, isso seria insuficiente.
A moradia é valor imprescindível para a promoção imediata da dignidade humana, mas a longo prazo a titulação é estritamente necessária.
Em http://www.elcomercioperu.com.pe/edicionimpresa/
html/2006-01-22/imppolitica0442713.html
13
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direito de propriedade
CASO GERADOR
RE 407688 / SP - SÃO PAULO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CEZAR PELUSO
Julgamento: 08/02/2006
“EMENTA: FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel
residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de
moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei
nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de
locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com
a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República.”
Voto do Min. Gilmar Mendes, no RE 407.688:
08/02/2006 TRIBUNAL PLENO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 407.688-8 SÃO PAULO
VOTO DO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Senhor Presidente,
ouvi com atenção os votos proferidos pelos Ministros Cezar Peluso, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Carlos Britto. De fato, o texto constitucional consagra expressamente o direito de moradia. Do que depreendi do debate, não me parece que qualquer
dos contendores tenha defendido aqui a idéia de norma de caráter programático.
Cuida-se, sim, de se indagar sobre o modus faciendi, a forma de execução desse chamado direito de moradia. E estamos diante de uma garantia que assume contornos
de uma garantia de perfil institucional, admitindo, por isso, múltiplas possibilidades
de execução. Sem negar que eventuais execuções que venham a ser realizadas pelo
legislador possam traduzir eventuais contrariedades ao texto constitucional, no caso
não parece, tal como já apontado pelo Ministro Cezar Peluso, que isso se verifique.
Não me parece que do sistema desenhado pelo texto constitucional decorra a obrigatoriedade de levar-se a impenhorabilidade a tal ponto. Já o Ministro Joaquim Barbosa destacou que aqui se enfrentam princípios eventualmente em linha de colisão. E
não podemos deixar de destacar e ressaltar um princípio que, de tão elementar, nem
aparece no texto constitucional: o princípio da autonomia privada, da autodeterminação das pessoas – é um princípio que integra a própria idéia ou direito de personalidade. Portanto, embora reconheça, no art. 6º, o direito de moradia, a criação ou a
possibilidade de imposição de deveres estatais na Constituição de modos de proteção
a essa faculdade desenhada no texto constitucional, não consigo vislumbrar, na concretização que lhe deu a Lei, a violação apontada. Nesses termos, acompanho o voto
do Ministro Cezar Peluso, desprovendo o recurso extraordinário.”
Como de delineia a ponderação feita pelo Supremo Tribunal Federal? A moradia
é valor meramente programático ou pode gerar eficácia direta?
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direito de propriedade
AULA 7: SÓ É DONO QUEM REGISTRA
Ementário de temas
O dogma do modo de aquisição. Princípios registrais. A situação registral brasileira.
Leitura obrigatória
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas, p. 303-318.
ROTEIRO DE AULA
A aquisição pelo registro do título
A forma mais comum de aquisição derivada da propriedade ocorre em razão do registro do título translatício. O registro de imóveis é, in fine, o meio mais adequado para
suprir as demandas de segurança jurídica envolvendo os negócios imobiliários. No entanto, o sistema de registro de imóveis no Brasil, que consiste em atividade administrativa autorizada14, encontra-se imerso em grave crise e necessita de urgente intervenção.
Se tudo der certo, o registro de imóveis opera produzindo efeitos reais sobre bens
imóveis sempre que houver a anotação do fato.
Serpa Lopes define registro público como “a menção de certos atos ou fatos exarada em registros especiais, por um oficial público, quer à vista da apresentação de
títulos comuns que lhe são apresentados,quer em face de declarações escritas ou verbais das partes interessadas”.15 Os registros públicos são regulados atualmente pelas
Leis nº 6.015-73 (registro civil) e nº 8.934-94 (registro de comércio). Sua serventia
vem anunciada no próprio caput do art. 1º da Lei 6.015-73: os registros promovem
a “a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.
O registro público existe em nosso direito em quatro modalidades (art. 1º, Lei
6.015-73), das quais nos interessará no momento apenas uma: o registro de imóveis,
que tem o objetivo legal de permitir que, mediante negócio jurídico, seja transferida
a propriedade de algum bem imóvel.
No direito brasileiro, vige aquilo que se chama de princípio da abstração, determinando que não haja a produção de efeitos reais decorrentes da prática de negócio
jurídico, via de regra. Para a produção destes referidos, é necessário um ato jurídico
strictu sensu. No caso de imóveis, este ato é precipuamente o registro. Vejamos o art.
1.245 do Código Civil:
“Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título
translativo no Registro de Imóveis.
A atividade registral no Brasil
é delegada pelo poder público
a particulares (CRFB, art. 236),
com base nos critérios fixados
na Lei n° 8.935-94 (Lei dos
Cartórios).
14
Tratado de registros públicos,
v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1955. p. 2.
15
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direito de propriedade
§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser
havido como dono do imóvel.
§ 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido
como dono do imóvel.”
O § 1º consagra o princípio da presunção de veracidade do registro; segundo o
informado, será determinado o titular. No § 2º, temos a presunção de legalidade.
Assim, até que algo diferente resulte, o registro de qualquer imóvel atribui ao titular
matriculado o direito real correspondente, só podendo ser modificado por outro ato
registral ou por decisão judicial.
Em outro turno, se o registro não exprimir a verdade, deverá ser corrigido:
“Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado
reclamar que se retifique ou anule.
Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.”
O interessante no dispositivo é o que dispõe o parágrafo único. Conquanto a
propriedade seja firmada pelo registro, é possível que este não exprima a verdade,
em especial diante da ocorrência de usucapião. Nesse caso, mesmo sem o documento do registro (que não é, portanto, documento essencial à propositura da demanda
– v. art. 183, CPC), será possível ajuizar ação e provar a propriedade por outros
meios. No caso de desconstituição do registro, para que seja firmado outro, este
pedido pode ser combinado (cumulação sucessiva) com a reivindicação do bem. A
vindicatio, contudo, não tem como exigência o acertamento registral.
O parágrafo único dispõe que o registro será corrigido, independentemente da
boa-fé do terceiro adquirente. Num código que prima pelo respeito à boa-fé objetiva e que textualmente afirma a proteção ao adquirente em caso de pagamento indevido, não se pode dar, em primeira vista, interpretação tão paralisante ao art. 1.247.
Na verdade, o dispositivo não prevê que o registro seja sempre cancelado, mas que,
se for cancelado pela via judicial, haverá extensão dos efeitos da coisa julgada para
com o terceiro de boa-fé, que terá ressalvados apenas os direitos de possuidor. Mas
isso é um posterius, não sendo impossível ao magistrado reconhecer o direito de
terceiro adquirente de boa-fé.
Por conseguinte, o registro cria segurança a todo custo, desconsiderando valores
caros ao texto constitucional. Ou seria mais adequado um sistema de registro de
imóveis rígido, que gerasse segurança?
O sistema brasileiro pressupõe a necessidade da transcrição para haver a aquisição
da propriedade (e para que se operem as formas negociais de criação, transferência
e extinção de direitos reais). “Só é dono quem registra” é o mote dos oficiais registradores. O negócio jurídico não tem eficácia translativa, gerando apenas efeitos
obrigacionais. Para que se obtenha o efeito desejado, deve-se atender ao requisito
formal de publicidade: o registro. É o que determina o art. 676 do Código Civil.
FGV DIREITO RIO 36
direito de propriedade
PROPRIEDADE = ESCRITURA + REGISTRO
No sistema alemão, o negócio de índole contratual (negócio causal) também não
origina a transferência de propriedade. É necessário que se celebre um negócio registral, abstrato, no qual se emite declaração receptícia de vontade, a ser completada
pelo onerado, e declara que deseja realizar o registro em benefício do adquirente.16
Uma vez efetuado o negócio registral, se houver direitos de terceiros em jogo, só
este poderá ser atacado caso haja nulidade nele próprio (e não no negócio causal).17
Trata-se da abstração registral, presente no direito alemão. No sistema francês, o
registro não é translativo de propriedade, tendo efeitos meramente declaratórios
entre as partes. Entretanto, para que terceiros estejam vinculados, é necessário haver
o registro. Por conseguinte, o registro é declaratório, mas a oponibilidade perante
terceiros (que só pode ser exigida se houver publicidade) depende do acertamento
do imóvel.
Seriam melhores esses sistemas?
O que não está no registro
Conquanto seja válido e interessante polemizar sobre o que não está no registro,
mais relevante é lembrar-se de tudo aquilo que deveria estar lá certificado e não está.
Vejamos no texto abaixo algumas das graves conseqüências da desordem fundiária.
Exclusão Social, Habitat e Violência18
Por Erminia Maricato19
Se na década de 40, quando 31% da população brasileira era urbana, as cidades
eram vistas como avanço e modernidade em relação ao campo, que representava o
Brasil atrasado ou arcaico, no início de 2001, quando 80% da população é urbana,
sua imagem passa a ser associada a violência, poluição, favela, criança desamparada,
epidemias, tráfego caótico, entre outros inúmeros males.
O processo de industrialização / urbanização, parecia representar um caminho
para a independência de séculos de dominação da produção agrária e de mando
coronelista, ligado diretamente à relação colonial. A evolução dos acontecimentos
mostrou que, ao lado de intenso crescimento econômico (7% em média entre 1940
e 1980), o processo de urbanização com crescimento da desigualdade resultou numa
gigantesca concentração espacial da pobreza.
Nem todas as conseqüências do processo de urbanização são negativas como
mostram a queda da mortalidade infantil, da taxa de natalidade e o aumento da
esperança de vida ao nascer, nos últimos 50 anos. A década de 80 foi portadora de
algumas novidades, confirmadas pelo Censo do IBGE de 2000, como a diminuição
da taxa geométrica de crescimento anual das metrópoles (cujo crescimento se concentra agora apenas nos municípios periféricos) e a aceleração do crescimento das
cidades de porte médio. As doze metrópoles brasileiras, entretanto, que concentram
perto de 33% de toda a população, revelam de modo mais evidente as conseqüências
dramáticas desse processo de crescimento com exclusão social.
WOLFF, Martin. Op. cit., pp.
187 e ss.
16
Isabel Mendes, O Registro Predial e a Segurança Jurídica nos
Negócios Imobiliários, Coimbra,
Almeidina, 1992, p. 29.
17
Em http://www.usp.br/fau/
depprojeto/labhab/04textos/
exclusao.doc.
18
Arquiteta, e urbanista, Coordenadora do Curso de Pós
Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP,
Coordenadora do Laboratório
de Habitação e Assentamentos
Humanos, ex- Secretária de
Habitação e Desenvolvimento
Urbano da prefeitura de São
Paulo (1989-1992).
19
FGV DIREITO RIO 37
direito de propriedade
Durante os anos 80 e 90, sob as novas relações internacionais, a desigualdade
se aprofunda: aumenta a informalidade nas relações de trabalho, aumenta o crescimento das favelas, aumenta o número de crianças abandonadas. Levantamentos
científicos comprovam o que nossos olhos constatam cotidianamente. Entre essas
características, que são históricas em uma sociedade na qual o desemprego e a desigualdade são estruturais, talvez a maior novidade das duas últimas décadas esteja na
explosão da violência urbana.
Falar de violência no Brasil, último país escravista do hemisfério ocidental e que
ainda hoje mantém resquícios de trabalho escravo, requer alguma precisão. A violência urbana que cresce fortemente nas cidades brasileiras se diferencia da tradicional
violência que sempre marcou a relação de trabalho. Trata-se daquela que é expressa
pelo número de homicídios e que, como a primeira, faz da população pobre sua
principal vítima. O que nos interessa explorar aqui é a relação entre habitat e violência.
A segregação urbana é uma das faces mais importantes da exclusão social. Ela não
é um simples reflexo, mas também motor indutor da desigualdade. À dificuldade de
acesso aos serviços e infra-estrutura urbanos (transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento, difícil acesso aos serviços
de saúde, educação e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e desmoronamentos, etc.) somam-se menores oportunidades de emprego (particularmente
do emprego formal), menores oportunidades de profissionalização, maior exposição
à violência (marginal ou policial), discriminação racial, discriminação de gênero e
idade, difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer. A lista é interminável.
Ilegalidade na Ocupação do Solo e Segregação Urbana
A ilegalidade em relação à propriedade da terra tem sido o principal agente da
segregação ambiental, no campo ou na cidade. A ilegalidade fundiária participa de
uma situação de ilegalidade generalizada: na relação de trabalho, na resolução de
conflitos, na ação da polícia...
No meio urbano, a relação legislação/mercado – fundiário/exclusão está no centro da segregação territorial. É nas áreas desprezadas pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas que a população trabalhadora pobre vai se instalar: beira de córregos, encostas dos morros, terrenos sujeitos
a enchentes ou outros tipos de riscos, regiões poluídas, ou [...] áreas de proteção
ambiental (onde a vigência de legislação de proteção e ausência de controle do uso
do solo definem a desvalorização e o desinteresse do mercado imobiliário).
Apenas para dar alguns exemplos, em São Paulo, uma cidade que tem o PIB
maior que o do Chile, aproximadamente 20% de seus 10 milhões de habitantes
moram em favelas. Destas, 49,3% têm alguma parte localizada em beira de córrego,
32,2% estão sujeitas a enchentes, 29,3% localizam-se em terrenos com declividade
acentuada, 24,2% estão em terrenos que apresentam erosão acentuada e 0,9% estão
em terrenos de depósitos de lixo ou aterro sanitário.
Na periferia sem urbanização, a precariedade dos transportes e o alto preço são
fatores que influem na baixa mobilidade dos moradores, freqüentemente exilados
FGV DIREITO RIO 38
direito de propriedade
em seus bairros precários. Não é de se estranhar que em tais situações de segregação
territorial pode ocorrer o desenvolvimento de normas, comportamentos, mecanismos, procedimentos extra legais que são impostos à comunidade pela violência ou
que são aceitos espontaneamente e até desejados.”
CASO GERADOR
Vejamos a notícia do Correio Braziliense, de 01.4.2005:
“Multiplicação de lotes no Lago
Ana D’Angelo
Compradores do Pousada das Andorinhas travam batalha contra empreendedora
acusada de vender terrenos irregularmente. Grupo chegou a formar associação de
interessados que teriam sido lesados
O cobiçado Condomínio Pousada das Andorinhas, na QI 31 do Lago Sul, não
foi regularizado, mas já está deixando um rastro de prejuízos, de denúncias de estelionato na polícia e de processos criminais. No centro da polêmica está a empreendedora do local, Rosa Lia Fenelon Assis, de 67 anos. Enquanto a regularização não
vem, ela e a filha – Angela Beatriz de Assis, de 39 anos – são acusadas por dezenas
de pessoas de se beneficiar com o comércio de terrenos que alegam lhes pertencer,
vendendo o mesmo lote para mais de uma pessoa. O total de prejudicados já é superior a 400 compradores, de acordo com Enock Goulart de Carvalho, síndico do
condomínio desde março de 2004.
O grupo de compradores é tão grande que eles se juntaram e criaram, em dezembro passado, a Associação dos Lesados pela Empreendedora do Condomínio
Pousada das Andorinhas (Alecpa). Já tem 126 associados. Eles pretendem representar contra a empreendedora por estelionato. Funcionária pública aposentada, Rosa
Lia Assis tem uma procuração passada em 1989 pela filha Angela Beatriz, dando-lhe
plenos poderes para negociar 60,5 hectares em nome da filha. Desde então, já teriam
sido vendidos cerca de 1.700 lotes. O problema é que só existem 1.002. Ou seja, tem
gente comprando terreno que já pertenceria, em tese, a outro.
Ao Correio, Rosa Lia Assis admitiu que pode ter vendido o mesmo lote para mais
de uma pessoa, mas alegou ‘desorganização’ dos dados e não má-fé. Embora os 60,5
hectares negociados estejam em seu nome, Angela Beatriz se eximiu de responsabilidade. ‘Estão usando o meu nome para criar tumulto. Nunca assinei documentos,
nem vendi terra nenhuma. A minha mãe é a dona legítima da terra’, alegou Angela
Beatriz.
Em local privilegiado, à beira do asfalto e próximo à Ponte JK, o Condomínio
Pousada das Andorinhas está dentro da antiga fazenda Paranoá, de 527 hectares, originalmente pertencente ao espólio de Balbino de Souza Vasconcelos. Repartida entre
herdeiros, foi vendida em pedaços a várias pessoas. Angela Beatriz de Assis teria comprado 60,5 hectares. Mas somente 24 hectares estão registrados no 2º Ofício de Registro de Imóveis. Os outros 36,5 hectares são garantidos apenas por três escrituras.
FGV DIREITO RIO 39
direito de propriedade
Para completar o imbróglio, a Terracap (Companhia Imobiliária de Brasília)
também reivindica a posse de parte da área do condomínio. Há liminar da Justiça
suspendendo qualquer alteração na matrícula dos 20 hectares que estão registrados
em nome de Angela Beatriz de Assis no cartório de imóveis. Também está proibida
qualquer edificação no local até que a situação seja regularizada. No local, existe uma
portaria indicando a existência do ‘futuro’ condomínio.
Auditoria feita pela atual administração constatou a existência de 1.746 lotes
vendidos até outubro de 2004, dos quais 1.295 teriam sido adquiridos diretamente
de Rosa Lia Assis, conforme declararam os compradores. Outros 373 lotes foram
comprados por meio de três pessoas, sendo 181 em duplicidade. Duas delas – Paulo
Goulart e Hélio Ribeiro – foram autorizadas a transferir determinados lotes por
procuração recebida de Rosa Lia Assis, que substabeleceu o mandato da filha. A terceira, Eliane Pereira da Mota, alega ter contrato com a empreendedora para vender
parte deles. Rosa Lia Assis negou conhecê-la. Há ainda 78 unidades vendidas sem
documentos no condomínio.
De acordo com a auditoria, 567 lotes foram negociados em duplicidade. A maioria, 386, seria de responsabilidade direta da empreendedora. Os preços de venda
variaram entre R$ 1,5 mil e R$ 40 mil. De acordo com o síndico, somente de 2001
para cá, Rosa Lia teria embolsado mais de R$ 6 milhões. Mas os compradores têm
dificuldades de localizar bens em seu nome e da filha. As duas moram em casa alugada no Lago Sul.
Rosa Lia Assis afirmou ao Correio que, das 1.002 unidades, vendeu em torno de
600 e que ainda tem cerca de 380 disponíveis – 165 estariam em nome da cozinheira, da babá e de uma ex-faxineira. O síndico Enoch de Carvalho contesta. Diz que
ela tem apenas sete, em nome de empregados, porque os compradores dos demais
já se apresentaram.
O processo para regularização do condomínio Parque das Andorinhas está na
Terracap desde agosto de 2004. Mas existem três ações judiciais em tramitação na
Vara de Registros Públicos do DF questionando a titularidade da área e a escritura
de constituição do condomínio. A empreendedora apresentou o projeto urbanístico
e topográfico, mas ainda não foram aprovados pela Terracap.
A empreendedora Rosa Lia Assis admitiu ao Correio a venda do mesmo lote a
mais de uma pessoa ‘por desorganização’ dos seus cadastros, mas promete devolver
o dinheiro corrigido, conforme está no contrato, a todos os compradores que quiserem desfazer o negócio. ‘Estou disposta a devolver o dinheiro para todo mundo que
queira desistir dos lotes’, garante. Ela alega que não pode tomar nenhuma atitude ou
prestar esclarecimentos sem conhecer as listagem de lotes vendidos em duplicidade
que a atual administração dispõe.
Rosa Lia conta que pediu essa lista ao atual síndico, mas que ele exigiu o
pagamento de R$ 6.609,40 para fornecer os documentos, o que achou abusivo.
‘Como posso tomar qualquer atitude, sem saber a listagem que o condomínio
tem e quem emitiu os documentos?’ A empreendedora questionou também a
auditoria, por não ter havido a participação de integrantes das administrações
anteriores.
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direito de propriedade
O síndico Enock de Carvalho afirma que o preço cobrado, que poderia ser pago
em duas parcelas, é para cobrir o custo das fotocópias (13.968 folhas) e de serviço de
terceiros (R$ 2.500). Exigiu ainda que a empreendedora explicasse a finalidade que
pretende dar aos documentos. Segundo Carvalho, o condomínio teve custos para
fazer a auditoria e catalogar todos os contratos dos compradores.
Rosa Lia Assis nega o uso de ‘laranjas’. Diz que foi ‘obrigada’ a colocar os lotes
em nome de empregadas para facilitar a aprovação do condomínio junto aos órgãos
públicos, porque não podem estar em nome do empreendedor. Segundo ela, para
regularizar a área, é preciso ter o parcelamento efetuado e todas as frações vendidas.
Afirma que deu um lote para cada uma para colocar os terrenos em nome delas.
Sobre as procurações em nome de Paulo Goulart e Hélio Ribeiro, explica que
apenas deu lotes a eles como forma de pagamento de parte das terras que comprou e
que pertenciam aos dois. ‘Nunca mandei vender em meu nome. Eles são donos dos
lotes’, garante. A empreendedora nega conhecer Eliana Pereira, que apresentou à administração do condomínio contrato com Rosa Lia para vender os terrenos. ‘Nunca
dei lote para corretor vender’, assegura.
A empreendedora afirma que os projetos urbanístico e topográfico apresentados
por ela não foram aprovados pela Terracap porque o condomínio não cumpriu suas
obrigações, como apresentação dos projetos de infra-estrutura básicos (água, esgoto,
luz). A empreendedora acusa ainda o síndico de tentar comprar lotes já vendidos por
valor baixo, dizendo que o condomínio não será regularizado. Enock de Carvalho
retruca que tem interesse em comprar lotes, mas em nome do condomínio. Segundo ele, não há espaço suficiente para acomodar o projeto da empreendedora, cujas
projeções comerciais invadiram até área pública. Afirma que existem apenas 10% de
área livre. Por isso, em assembléia no sábado passado, os condôminos autorizaram as
aquisições, em nome do condomínio.
Rosa Lia Assis acusa ainda a atual administração de ter gastos excessivos para
manutenção do condomínio. O síndico rebate dizendo que ela não é condômina e
que os lotes que alega ter estão em nome de terceiros, inadimplentes. Segundo ele,
a convenção prevê acesso dos condôminos aos balancetes e que as contas do ano
passado foram aprovadas em assembléia realizada em março com a presença de 136
condôminos.
Carvalho afirmou que os gastos são de R$ 189 mil por mês com a segurança
do condomínio. ‘Ela mantém um segurança num dos acessos do condomínio para
permitir que ela entre e mostre o terreno para clientes. Vamos fechar todos o acessos
para impedir sua entrada’, avisa.
A confusão no Parque das Andorinhas vem desde o final dos anos 80, quando
a empreendedora Rosa Lia Fenelon Assis dividiu os 60,5 hectares que teriam sido
comprados pela filha em módulos, com cerca de 500 lotes de 800 metros quadrados aproximados. Foi criada então a associação dos condôminos, tendo ela como
empreendedora. Segundo o atual síndico, nessa época, já teriam sido vendidos
mais lotes do que havia de fato. Em 1991, a empreendedora reformulou o projeto
dos 60,5 hectares e transformou os módulos em conjuntos, reduzindo o tamanho
dos lotes – viraram 1.002 com 501 metros quadrados. Ela negou a venda de lotes
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direito de propriedade
a mais. Segundo ela, o projeto foi redimensionado porque o original não contemplava os 35% de área livre exigidos pela legislação.
Novamente, apareceram no condomínio compradores de lotes que já tinham
dono. Em julho de 2002, a nova administração do condomínio chegou a acordo com
a empreendedora e foi assinado um contrato particular em que ela se comprometia a
relacionar os reais titulares dos 1.002 terrenos. Para surpresa dos condôminos, foram
listados como donos de pouco mais de cem lotes três empregadas da empreendedora
– a cozinheira, a faxineira e a babá da neta da empreendedora. Logo depois, começaram a aparecer vários compradores de lotes já vendidos com certificados de imissão
de posse, que teriam sido emitidos pela empreendedora.
O fato fez com que a atual administração do condomínio representasse contra
Rosa Lia Assis junto ao Ministério Público do Distrito Federal, denunciando-a por
estelionato e falsificação de certificados. Ela nega a acusação. Afirmou ao Correio
que a assinatura abreviada do seu nome nos certificados, com carimbo de reconhecimento de firma do cartório Maurício de Lemos, não é dela. O cartório informou
ao Correio que ela tem duas assinaturas (firmas) registradas no ofício, incluindo a
forma abreviada.
Alguns compradores descobriram também que ficaram com menos lotes do que
tinham adquirido inicialmente. É o que aconteceu com a advogada Linda Jacinto
Xavier. Ela afirma ter adquirido dois lotes terrenos diretamente de Rosa Lia de Assis
no dia 31 de agosto de 2000 por R$ 9 mil cada um. No contrato de cessão de direitos, no entanto, a data é de 10 de dezembro de 1997, por imposição da vendedora.
Mas a advogada recebeu apenas o certificado de imissão de posse de apenas um
deles ‘depois de muita insistência’ junto à empreendedora. ‘Ela não quis mais me
receber’, afirma Linda Xavier, que chegou a ter nas mãos quatro mapas do condomínio. ‘Já não sabia mais quais eram os meus lotes.’
Como proteger os adquirentes de boa-fé, se é que eles devem ser protegidos?
FGV DIREITO RIO 42
direito de propriedade
AULAS 8, 9 e 10: USUCAPIÃO
Ementário de temas
Usucapião: fundamentos e funcionamento. Justificativa constitucional. Modalidades. Usucapião tabular. Aquisição por interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º,
Código Civil).
Leitura obrigatória (para as duas aulas)
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas, p. 247-303.
Leitura complementar
SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 6. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais. p. 47-144.
ROTEIRO DE AULA
Natureza da usucapião20
A usucapião é uma forma de aquisição de direito real decorrente da conjugação
de dois fatores: posse e tempo. A usucapião serve de forma de atribuição de um direito real, assim como forma de extinção de um outro direito real. Por isso, durante
muito tempo o tratamento dado ao instituto do usucapião foi o mesmo dado ao
instituto da prescrição extintiva. Hoje se entende, praticamente de modo unânime
no direito brasileiro, que existe uma distinção de fundamento que impossibilita o
tratamento conjunto da prescrição aquisitiva e do usucapião, amparada no fundamento dos referidos institutos. Durante muito tempo existiram normas separadas
para disciplinar a usucapião e a prescrição extintiva, mas havia quem entendesse
que o fundamento era igual nesses dois institutos (e ainda assim é hoje, por exemplo, no direito espanhol). Sabe-se, atualmente, que o fundamento é distinto, por
uma questão bastante simples: a usucapião funda-se na concreção da idéia de função social da propriedade e a prescrição extintiva na segurança jurídica. Isso não
quer dizer que a usucapião também não tenha por objetivo criar segurança. É claro
que, se alguém possui um bem durante muitos e muitos anos, cria-se na sociedade
uma expectativa que aquele bem tenha a titularidade alterada, mesmo que isto
não seja regra imutável, já que para haver a contagem de tempo para a usucapião
é fundamental que a posse seja plena. Então, não é apenas a mera segurança que
justifica a usucapião.
Os dicionaristas registram
as duas formas como corretas:
o usucapião e a usucapião. O
CC 2002 utiliza a palavra no
feminino.
20
FGV DIREITO RIO 43
direito de propriedade
No âmbito da ordenação urbana e rural, para haver uma melhor utilização da
propriedade, deve existir a figura do usucapião como meio de permitir a consolidação da propriedade nas mãos daquele que trabalha e dá ao bem a sua destinação
constitucional, atendendo à função social. O instituto, portanto, foi elevado à normatividade constitucional, que a ele se refere expressamente em dois momentos:
nos arts. 183 e 191.
O primeiro requisito para haver aquisição do direito real através da figura da
usucapião é a existência da posse. A posse ad usucapionem tem de ser plena, ou seja,
não derivada de uma outra posse, através de um processo conhecido como mediação na posse (v. art. 1.197). Aquele que possui plenamente possui o bem como se
ele fora seu, independentemente da posse de outrem (que restará extinta). Como
exemplo de possuidor pleno que não é proprietário, temos aquele que adquiriu um
bem a non domino, ou ainda o próprio sujeito ativo do esbulho possessório.
Além de ter a posse plena do bem, existe um outro requisito fundamental para
todas as formas de usucapião: o decurso do tempo, que pode variar de três até vinte
anos, dependendo da modalidade de usucapião. O termo inicial desse prazo de
aquisição da propriedade é o momento em que passa a ser exercida a posse plena
do bem. O termo final coincide com o momento no qual se esgota a previsão legal
e tem-se por consumada a usucapião. Durante o decurso desse prazo, pode haver
tanto suspensão quanto interrupção.
A aquisição da propriedade por usucapião é originária, e esse entendimento é
quase unânime na doutrina brasileira. A voz dissonante é a do professor Caio Mário da Silva Pereira, que entende que a aquisição da propriedade por usucapião é
derivada.21 Esposamos a tese majoritária, porque em relação àquele bem todo e
qualquer gravame anteriormente constituído é destruído e a propriedade é recriada.
Caio Mário entende que essa aquisição é derivada, por conta da distinção existente no direito alemão, que diz respeito às formas de aquisição da propriedade, que
não prescindem da prática de um negócio jurídico registral. O registro, no direito
brasileiro, não tem na sua realização a preponderância da vontade; trata-se de um
ato jurídico strictu sensu. Por conta disso, aqui são consagradas formas de usucapião
que não estão presentes no direito alemão. No direito alemão, não existe usucapião
extraordinário, ou seja, é obrigatório que a posse seja de boa-fé e haja justo título
(WOLFF, op. cit). Esta distinção desde logo impossibilita a comparação dos regimes
legais e das conclusões doutrinárias de ambos os países.
Não é possível, no direito pátrio, a usucapião de bem público (CC, art. 102,
e CRFB, art. 181, § 3º, e art. 191, parágrafo único), nem a usucapião de bens de
incapaz (art. 1.244). Por causa dessas duas ressalvas da lei brasileira, Caio Mário da
Silva Pereira entende que não é possível considerar a usucapião como forma originária de aquisição da propriedade, porque leva em conta efetivamente quem era o
proprietário anterior. Também nesse particular, vejamos o REsp 13663, julgado em
22/09/92 e relatado pelo ministro Gusmão Carneiro:
“AÇÃO REIVINDICATÓRIA. ALEGAÇÃO EM DEFESA DE USUCAPIÃO
EXTRAORDINÁRIO. IMÓVEL COM CLÁUSULA DE FIDEICOMISSO E
21
Caio Mário, v. IV, p. 138.
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direito de propriedade
DE INALIENABILIDADE. A aquisição por usucapião é aquisição originária. Com
relação ao usucapiente, importa a posse pelo prazo de 20 anos, pacífica e ininterrupta com ânimo de dono. Nenhuma relação ou sucessão existe entre o perdente
do direito de propriedade e o que a adquire pelo usucapião. Com o usucapião, simplesmente extingue-se o domínio do anterior proprietário, bem como os direitos
reais que tiverem constituído e sem embargos de quaisquer limitações a seu dispor.
Ou seja, com essa ementa afirma-se de forma cabal que qualquer gravame de ordem
privada é desconstituído pelo decurso do tempo e pela configuração do usucapião.
No caso dessa ementa, o gravame era o fideicomisso.”
A posse ad usucapionem tem de ser plena. Isso não quer dizer que uma posse que
comece mediata não possa se tornar plena. Isso é chamado de fenômeno da interversão da posse, e é a partir dela que começa a contar o prazo para a usucapião.
O curso do prazo tem de ser ininterrupto, excetuando-se as hipóteses de suspensão (v. art. 1.244). Também poderá ocorrer na usucapião a acessão na posse. Ela
é possível por conta do art. 1.243 do CC. Este dispositivo faz referência a norma
genérica de acessão na posse prevista no art. 1.207 do CC, que estabelece que, para
aquele que sucede a título universal, ou seja, para aquele que é herdeiro, a soma é
obrigatória, não se podendo deixar de contar prazo (e posse) anteriormente transcorridos. Agora, aquele que sucede a título singular, ou seja, que não recebe um
patrimônio, mas um bem, pode escolher valer-se desta prerrogativa.
Vedações à usucapião
– bens de incapazes;
– bens públicos (CF, art. 183, § 3º, e art. 191, par. único), ao contrário do
disposto no art. 4º da Lei 6.969-80.22 Não se pode, contudo, ignorar que até
que, se declare a vacância (e não-jacência) de um bem, é possível que se dê
a sua aquisição por usucapião.23
Qualquer ato inequívoco, mesmo que extrajudicial, do proprietário que indique reivindicação pode ser invocado como motivo para a interrupção (STJ, Resp
21222-BA). Não há mais distinção na contagem de prazo entre presentes e ausentes, como ocorre também na prescrição.
Modalidades: Imóveis
Extraordinário (art. 1.238): presume-se, absolutamente, a boa-fé e o justo título. E quanto à injustiça? Deve cessar, na forma do art. 1.208. Critério objetivo
para a redução do prazo: parágrafo único do art. 1.238. Natureza da sentença: declaratória. Ação de usucapião: sentença capaz de ser transcrita. Usucapião alegado
em defesa: é reconhecido como questão prejudicial (STF, Súmula 237), mas não
pode originar a transcrição. Exceção: Lei 6.969/81, art. 7º, e Estatuto da Cidade,
art. 13.
22
Ver Súmula 340, STF.
23
STJ, Resp 36959-SP.
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direito de propriedade
Ordinário (art. 1.242): com boa-fé e justo título. O conceito de justo título deve
ser sempre o mesmo?
Quadro comparativo:
U. extarodinária
Requisitos
Posse + Tempo
Prazo
15 anos
U. Ordinária
Posse + Tempo + Justo
Título
10 anos
Alteração pela
destinação específica
Para 10, se houver
atendimento da
função social do bem
Para 5, se houver
atendimento da função
social do bem
U. Especial
Posse + Tempo +
Destinação
5 anos
—
Especial (Lei 6.969 e CF/88; NCC, art. 1.239, 1.240):
Usucapião especial constitucional urbana: art. 183, CF, 1240, CC. Requisitos
específicos: cumprir metragem, não ser proprietário, utilização específica para moradia, e não descumprimento do § 2º do art. 183, CF.
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01, art. 9 e seguintes): regulação da usucapião
constitucional urbana. Art. 10: usucapião coletiva.
Usucapião especial constitucional rural (art. 191, CF, art. 1.239, CC). requisitos: utilização específica (produção rural como cultivador direto), metragem e não
ser proprietário. Integração com o regime da Lei 6.969.
Usucapião de bens móveis
Ordinária (art. 1.260): Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e
incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a
propriedade.
Extraordinária (art. 1.261): Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco
anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.
Usucapião tabular
Art. 214, § 5º, da Lei 6.015/73: verdadeira modalidade de usucapião?
CASO GERADOR 1
Extrato de reportagem do “Jornal do Brasil”, de 14.01.2001:
Brasileiro disputa terras da Barra com libanês e chinês.
Área de 10 milhões de metros quadrados, na Barra da Tijuca, tem um terceiro
pretendente, Wilson Figueiredo, 64 anos, munido de certidão da 11ª Vara de Órfãos e Sucessões, disputa com o chinês Tjong Hiong Oei e com o libanês Mohamad
Ismail El Samad terras equivalentes a 1.000 campos do Maracanã.
FGV DIREITO RIO 46
direito de propriedade
Além desse processo, o Sr. Tjong é autor de mais de vinte ações questionando a
titularidade de extensas áreas na Barra da Tijuca-RJ. Se ele tiver razão, poderiam os
moradores dessas áreas se socorrer de alguma modalidade de usucapião?
CASO GERADOR 2
“COMARCA DE OLINDA, VARA DA FAZENDA PÚBLICA
Processo nº 2003.008384-4
A ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA VILA MANCHETE, pessoa jurídica de direito privado, conforme Certidão de Personalidade Jurídica de fls. 14,
instituição civil sem fins lucrativos, nesta Comarca sediada, por seu Presidente (Ata
de Fundação, Eleição e Posse de fls. 16 a 21), no exercício de suas atribuições estatutárias e através dos advogados bastantes constituídos, com fulcro no art. 10 c/c o art.
12, III, da Lei nº 10.257/2001, ingressou neste juízo com a presente Ação de Usucapião Especial Coletivo de uma Gleba Urbana com área de 92.738,00 m² (noventa e
dois mil, setecentos e trinta e oito metros quadrados), localizada no Bairro de Ouro
Preto, Olinda/PE, inscrita no Registro de Imóveis em nome da empresa Novolinda/Construtora e Incorporadora SA, CGC/MF nº 11.223.781/0001-08, e de uma
área de 15.574 m² (quinze mil, quinhentos e setenta e quatro metros quadrados),
localizada no Bairro de Jardim Brasil II, de propriedade desconhecida, conforme os
limites e confrontações que especifica às fls. 04 a 08, na totalidade constituída de um
assentamento subnormal com construções residenciais edificadas sem planejamento,
se prestando, especificadamente, a moradias para pessoas de baixa renda.
Aduz que a Vila Manchete, como é conhecida a área há muito edificada, não se
distingue por qualquer obra de infra-estrutura e não é dotada de qualquer equipamento urbano, linhas regulares de coletivos, postos de concessionárias do serviço
público, correios, delegacias ou postos de segurança comunitária. Assevera que a população da Vila Manchete, a qual representa, ocupa as irregulares artérias há mais de
quinze anos, iniciada que foi – a ocupação – nos idos dos anos 80, de forma pacífica
e sem oposição de ninguém, não possuindo os moradores ora REPRESENTADOS
– CONFORME Relação Cadastro de Moradores Associados de fls. 36 a 64 qualquer outro bem imóvel, preenchendo, assim, os requisitos do Usucapião Especial.
Diz da existência do Programa Habitar-Brasil-BID, que contempla comunidades
carentes, e dos esforços dos Poderes Executivos Federal, do Estado de Pernambuco e
do Município de Olinda no sentido de aquinhoar a comunidade com instrumentos
de infra-estrutura para proporcionar aos moradores condições dignas de vida, o que
reclama, para a obtenção dos benefícios dos recursos financeiros, a titularidade dos
imóveis pelos ocupantes da área contemplada, razão da presente demanda judicial.
Juntando os documentos e plantas de fls. 14 e 66, notadamente o Cadastro de
Moradores de fls. 36 a 64, pugnou pela criação da empresa requerida e dos interessados incertos e desconhecidos, pela notificação das Fazendas Federal, Estadual
e Municipal, pela intervenção do Ministério público, pela produção das provas e,
a final, pela procedência do pedido, determinando-se, por Carta de Sentença, ao
FGV DIREITO RIO 47
direito de propriedade
Ofício do Regimento de Imóveis que proceda ao assentamento, em áreas iguais de
80.00 m² (oitenta metros quadrados), a favor dos seus associados nominados no
Cadastro referido.
Como sabemos, a popular Vila Manchete, verdadeiro aglomerado ao derredor da
torre de transmissão da Rede Manchete de Televisão lá instalada, é constituída quase
que absolutamente de construções disformes, irregulares e às vezes sobrepostas, servidas por estreitas ruelas becos muito estreitos, que se entrelaçam em seus fugidios e
sinuosos traçados, sendo extremamente difícil descrever-se em memorial o casebre e
suas limitações e vinculá-lo ao seu possuidor, tudo a reclamar intervenção do poder
público para que se dê aos seus moradores, todos de baixíssima renda, condições
mais dignas de vivência, notadamente o remanejamento dos paupérrimos para residências novas e a disponibilização de creche e centro comunitário e desportivo,
tudo sob comando da sociedade condominial que se instalará e sob os auspícios do
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Os nomes das ruelas e a numeração das
moradias – quase inúteis, pois não há serviços dos correios – foram escolhidos ao alvedrio dos ocupantes, sem ostentar nem mesmo uma ordenação lógica, embora haja
fornecimento de energia elétrica e extensões de bicos de fornecimento de água, além
de uma escola, no bairro vizinho, conhecida como ‘Centro Embrião’.
Os imóveis não se acham gravados de hipoteca nem sob financiamento público,
conforme deixou claro a Caixa Econômica Federal, que encampou o Sistema Financeiro de Habitação, o que faz desmoronar a tese da impossibilidade de deferimento
pela ocorrência de crime de esbulho possessório nos termos do Art. 9º da Lei nº
5.741 71.
Os associados nominados às fls. 36 a 64 e que constam da Certidão de fls. 161 a
170, demonstram quantum satis, quer pela prova documental quer pela testemunhal,
que exerceram e exercem a posse sobre a gleba e área individualizadas na inicial, nelas
residindo com suas famílias, de forma contínua e pacífica, por todos aqueles anos,
não bastassem os precários títulos que alguns exibem, e que não são proprietários de
um imóvel, positivando o atendimento de todos os requisitos da usucapião especial
constitucional. De outro lado, a alegação da ré de que a posse dos moradores da Vila
Manchete é ilegítima, ou que provém de atos de raposia, não encontra qualquer respaldo nos autos, sendo pública e notória a existência daquela comunidade naquelas
terras desde o ano de 1980, consolidada a Vila, com a precária infra-estrutura que
exibe, pela inércia ou aquiescência dos proprietários das glebas.
A inexistência de contrariedade de eventuais interessados, dita contumácia, tem
efeitos reforçados no vigente sistema do Código Adjetivo Civil, pois ‘se o réu não
contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor’. A Fazenda
Pública Municipal, devidamente alertada, demonstrou seu interesse no feito, na qualidade de senhorio direto das terras, não pondo óbice à aquisição do domínio útil,
invocando a Carta Foral de 1.537 – o texto faz parte do acervo histórico do nosso
município – aquela que o então Governador Duarte Coelho, donatário da Capitania
de Pernambuco ou Nova Lusitânia, deu e doou a esta sua Vila de Olinda, para o seu
serviço e de todo o seu povo, moradores e povoadores, ‘as cousas’ que elenca – os
montes e seus assentos, a ribeira do mar, todas as fontes, todos os mangues, os varaFGV DIREITO RIO 48
direito de propriedade
douros – e vai por ele assinada em 12 de março de 1.537, devidamente ‘confirmada
por Provisão Régia de sua Majestade de 14 de julho de 1678’, cujo registro consta no
Cartório de Imóveis de Olinda, no Livro de Tombo do Mosteiro de São Bento e à fls.
161 a 169 do Cartório do Primeiro Registro Geral de Imóveis de Olinda PE, datado
de 27 de outubro de 1919. Questionada, obteve a Carta Foral referida incontáveis
decisões favoráveis à sua pertinência e legalidade, já que o direito real que consubstancia foi ‘originário de uma doação válida do nobre Duarte Coelho, chancelada
pelo Rei - de quem emanava, à época, a lei’ (Dr. Artur Barbosa Maciel-Juiz Federal
da 1ª Vara Pernambuco Processo Tombo 167 70). Em suma como asseverou a ilustre
Promotoria de Justiça em seu judicioso Parecer: ‘Consolidada esta a compreensão de
que a propriedade sem função social não tem o status que antes lhe atribuía, criando
o Estado meios de retirar-lhe do meio social quando não cumpra o seu essencial caráter, destinando-a a um fim de utilidade social, criando mecanismos que permitam
a inserção da propriedade como utilidade à comunidade. Dentro destes meios é que vem
se inserir a presente ação de usucapião coletivo’.
Foram as Fazenda Públicas notificadas (fls. 74 a 76, 81, 82 e 85). A Fazenda
Federal manifestou seu desinteresse no feito (fls. 95/96). A Fazenda Estadual manteve-se silente (fls. 176). A Fazenda Municipal asseverou ser a área a usucapir gravada
de enfiteuse ao Município de Olinda/PE, em razão da Carta Foral do ano de 1.537,
nada opondo ao deferimento parcial do pedido, conferindo-se aos associados da
autora apenas o usucapião do domínio útil (fls. 90/91).
Citados, os interessados incertos e desconhecidos não ofereceram resposta (fls.
78 e 176). Citada, a empresa Novolinda Construtora e Incorporadora SA ofereceu
Contestação (fls. 100 a 102 e 104 a 110), argüindo, em preliminar, a nulidade de citação, que foi devidamente rechaçada (fls. 113). No mérito, asseverou ser impossível
o pedido, por estar a área gravada de hipoteca ‘em favor de instituição vinculada ao
Sistema Financeiro de Habitação’, caracterizando-se crime o seu esbulho possessório;
que o dispositivo legal invocado no exórdio só pode ser aplicado quando impossível
identificar os terrenos ocupados por cada possuidor; que os ‘invasores’ não fizeram
prova de não possuírem outro imóvel; e que a posse dos ‘invasores’ nunca foi de boafé. Por tal, pugnou pela improcedência do pedido. [...]
Somente as pessoas capazes de alienar e adquirir podem usucapir a propriedade
ou outro direito real, sejam elas físicas ou jurídicas. A pessoa jurídica associativa regularmente criada reside em juízo, em representação de todos os seus afiliados, por
quem o respectivo estatuto designar ou por seus diretores (art. 17, do Código Civil),
cujos atos dizem respeito ao agrupamento de associados, primando-se pela solidariedade que os une em busca de um objetivo comum, desde que ‘determinado, lícito e
possível’. Neste sentido, nos termos do art. 12, III, da Lei nº 10.257/01, é que vem a
Associação dos Moradores da Vila Manchete, na qualidade de substituto processual,
por seu presidente, perseguir em juízo o usucapião coletivo das áreas descritas na
exordial e delimitadas nas Plantas de fls. 34 e 35.
O usucapião é forma originária de aquisição da propriedade, ou de direitos reais
susceptíveis de apropriação material, através da posse continuada, durante certo espaço de tempo, com a observância dos requisitos em lei estabelecidos. Em razão do
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direito de propriedade
decurso do prazo, que gera um direito em favor daquele que tem a posse da coisa e
extingue o direito de ação do até então titular para reavê-la, é que se diz ter ocorrido,
em relação àquele, a prescrição aquisitiva e, em relação a este, a prescrição extintiva.
Os demais direitos reais susceptíveis de ser adquiridos por usucapião são o usufruto,
o uso, a habitação, as servidões e a enfiteuse, este último – ainda no regime do revogado Código Civil de 1.916 – quando, por ato entre vivo ou disposição de última
vontade, o proprietário atribuía a outrem o domínio útil do imóvel, pagando o enfiteuta, a partir de então, uma pensão anual, dito foro, ao titular do domínio direto,
o senhorio. A propósito, cito:
‘Usucapião. Imóvel foreiro. Possibilidade de se usucapir o domínio útil. A existência da enfiteuse ou do aforamento não constituiria obstáculo ao usucapião, como
bem sustentou a douta Procuradoria Geral de Justiça, desde que o domínio útil,
sendo alienável, também poderia ser objeto de usucapião em razão de posse contínua
e incontestada pelo prazo fixado na lei substantiva’. (TJSP – 1ª CC, Ac. Unân. Ap.
87.598-1, Rel. Des. Moretzsohn de Castro).
Atualmente, com a vigência da atual Constituição Republicana, tem-se destacado
mais o cunho social do instituto do usucapião, através do qual – como se lhe colhe
em inúmeras decisões judiciais – pode-se atingir o bem comum, pois à coletividade
interessa que se dê à coisa usucapienda o uso a ela mais adequado, seja mediante o
cultivo da terra ou sua utilização como morada, cumprindo a propriedade imóvel,
assim, aquela função social a que se reporta o texto constitucional (art. 170, III, e
5º, XXIII).
Neste diapasão, visando fixar o pequeno lavrador no campo, bem como atenuar os graves problemas habitacionais enfrentados pelas pessoas de poucos recursos
dentro dos grandes centros urbanos, instituiu o legislador constitucional (Art. 183,
caput), literes: ‘Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja
proprietário de outro imóvel urbano ou rural’. Tal dispositivo foi regulamentado
pelo Art. 9º da Lei nº 10.257/2001, que estabeleceu diretrizes de política urbana,
repetindo aquele dispositivo da lei maior.
Portanto são requisitos indispensáveis à consumação do usucapião nestes autos
postulado, além da posse mansa e pacífica, exercida após simples ocupação, por mais
de cinco anos, que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel rural ou
urbano, que toda a área usucapienda ultrapasse os 250m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados) e que os ocupantes e/ou sua famílias, todos de baixa renda, tenham
no imóvel fixado residência.
Da exegese dos textos regulamentadores exsurge clara a intenção do legislador de
estabelecer, na hipótese do art. 10 e seus parágrafos, um condomínio especial indivisível, administrado pela maioria dos votos dos condôminos aquinhoados, pela decisão judicial, com uma fração ideal de todo o terreno usucapido, uma vez impossível
a identificação e particularização dos espaços ocupados por cada possuidor, como
acontece nas aglomerações de casebres e comunidades carentes outras, que crescem
desordenadamente tanto no sentido horizontal como no vertical.
FGV DIREITO RIO 50
direito de propriedade
Com estes fundamentos de fato e de direito, julgo procedente em parte o pedido nestes autos formulado pela ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA VILA
MANCHETE, para declarar apenas o domínio útil dos seus associados, aqueles
elencados no Cadastro de fls. 36 a 64 e concomitantemente na Certidão de fls. 161
a 170v, sobre a gleba e área descritas na exordial e delimitada conforme as plantas de
fls. 34 e 35, atribuindo a cada um deles, como requerido, a fração ideal de 80,00 m²
(oitenta metros quadrados), destinando o remanescente das áreas aos logradouros
públicos, praças, postos de saúde e de segurança, escola, creche, centro comunitário
e desportivo e demais obras de infra-estrutura, servindo esta Sentença de título hábil
para a transcrição no Registro Geral de Imóveis e para a constituição do Condomínio Especial, acompanhada dos competentes Mandados, como também para se
firmar Termo de Aforamento perante a Prefeitura Municipal de Olinda/PE. [...]
Olinda, PE, 31 de maio de 2005
Elson Zopollaro Machado
Juiz de Direito.”
Há inconvenientes e vantagens no regime da usucapião coletiva do Estatuto da
Cidade?
FGV DIREITO RIO 51
direito de propriedade
Aula 11: Soluções para a ausência de registro
EMENTÁRIO DE TEMAS
Regularização fundiária. Moradia, propriedade e ordenação urbana. Acesso à
moradia e direito à cidade.
LEITURA OBRIGATÓRIA
SAULE JR., Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. cap. 2.
Ed. Sérgio Antônio Fabris.
LEITURA COMPLEMENTAR
RAMOS, Maria Helena de (Org.). Metamorfoses sociais e políticas urbanas. textos
6, 7 e 8.
LEAL, Rogério Gesta. Função social da propriedade e da cidade. cap. 2.
ROTEIRO DE AULA
Moradia e direito à cidade
A proteção constitucional do direito à moradia, incorporada no art. 6º da Constituição em razão da EC nº 26/2000, tem ainda os efeitos, do ponto de vista da eficácia direta,
altamente discutíveis. Uma questão já vista diz respeito ao julgamento, pelo STF, da proteção do bem de família do fiador. Outra questão, mais candente e de constatação mais
simples, refere-se à utilização da proteção constitucional à moradia como fundamento
para a implementação de políticas urbanas, em especial a regularização fundiária.
Regularização fundiária
Cientes dos problemas registrais enfrentados no Brasil, a par da proposição de
novos modelos, é necessário conhecer os programas de regularização já implantados, de modo que se compreendam as possibilidades imediatas de solução de problemas já tentadas.
Modalidades de soluções
– Concessão de direito real de uso (o estatuto da cidade e seus instrumentos,
MP 2.220, MP 292).
– Concessão especial para fins de moradia
FGV DIREITO RIO 52
direito de propriedade
– Superfície
– Usucapião coletivo
– Cessão de aforamento gratuito
Procedimentos judiciais
–
–
–
–
Ações possessórias
Ações dominiais
Ação de usucapião
Ação publiciana
CASO GERADOR
“ESTADO DE SANTA CATARINA. PODER JUDICIÁRIO
Autos n°
“A decadência de uma sociedade começa quando o homem pergunta a si próprio: ‘o que irá acontecer?’ em vez de inquirir: ‘o que posso fazer?’” (Denis de Rougemont, escritor suíço – arguto defensor da unidade européia e estudioso da ocidentalidade).
VISTOS, ETC.
Trata-se de pedido de declaração de domínio com fulcro no art. 5º, XXII e XXIII
da Constituição Federal, e artigo 10 do Provimento 37/99 da Corregedoria Geral
da Justiça, formulado por MAIS DE 60 OCUPANTES, domiciliados no Bairro
Vila Rica, cidade de Chapecó-SC. Em síntese, esclarecem que são possuidores de
uma área de terras com 146.209,57 m2 há mais de 20 anos sem interrupção nem
oposição, sita no Bairro Vila Rica, com as confrontações noticiadas à fl. 06. Que
dita área não se encontra transcrita no Ofício Imobiliário, porém é certo que tem
origem em uma área de cerca de 224.520 m2 que pertencia ao casal Adelina Correia de Jesus e Estevão Machado de Jesus e registrada sob nº 1809, sendo que com
o falecimento de Adelina ocorrido em 16/09/1930 realizou-se inventário julgado
em 22/10/1931, com o que o viúvo meeiro Estevão passou a deter 50% da área
(122.260) que foi registrada no Ofício Imobiliário sob nº 4.837, e os outros 50%
couberam aos filhos do casal que, porém, não registraram e sequer a cadastraram no
INCRA, sendo que não se têm mais notícias de seus paradeiros. Que cada herdeiro
passou a vender seu quinhão hereditário de forma desordenada através de contratos particulares, com o que se originou o Loteamento Vila Rica, onde atualmente
residem cerca de 140 famílias em condição irregular há décadas, com posse de mais
de 20 anos, em situação consolidada e irreversível. Que desde a povoação do Vila
Rica o poder público municipal vem desenvolvendo programas sócio-educativos e
no ano de 1997 iniciou o programa de regularização fundiária (posto que sequer
no mapa da cidade era localizada a Vila Rica, não haviam ruas, nem infra-estrutura
básica nem registro da área), com o que foi contratado serviço de agrimensura,
abertas ruas, implementada a infra-estrutura necessária e aprovado o projeto de
FGV DIREITO RIO 53
direito de propriedade
Loteamento pela Câmara de Vereadores. Faltou, porém, a declaração de domínio.
O Município de Chapecó ingressou perante este Juízo com pedido de registro de
Loteamento, julgado nos autos 018.00.003393-3, no qual determinou-se o registro
junto ao CRI sob nº 59.593. O que se busca, aqui, é a declaração de domínio a cada
um dos proprietários de cada lote do Vila Rica, ou seja, a titulação para o pleno e
adequado exercício da posse.
Pedem a gratuidade da Justiça.
Juntam documentos às fls. 22/992.
Recebida a inicial (fl. 994), sobreveio a manifestação do
Ministério Público às fls. 995/996.
DECIDO.
Merece imediata apreciação o pedido, vez que a matéria ventilada nos autos
(seu objeto) é estritamente de direito, descabendo dilação probatória. Muito embora a manifestação contrária do digno e diligente Promotor de Justiça, Dr. Rafael de Moraes Lima, exarada às fls. 995/996, tenho mereça deferimento o pedido.
Convém destacar que o “Loteamento Vila Rica” somente surgiu “de direito” após
aprovada pela Câmara Municipal de Vereadores de Chapecó a Lei nº 4.026/99 e
Lei Complementar nº 86/99, com base na qual (e considerando todo o histórico
daquela comunidade) este Juízo houve por bem deferir o pedido de registro do
dito Loteamento, pedido formulado pelo próprio Município de Chapecó nos autos 018.00.003393-3. Eis que assim nasceu o “Vila Rica” (muito embora, de fato,
exista há várias décadas). Importa ressaltar também que no processo antes referido
o Município de Chapecó esclarece que o Loteamento constituiu-se pelos próprios
cidadãos que ocupam a área há mais de 30 anos, e que tão-somente investiu na
melhoria das condições sanitárias e ambientais gerais da população que lá reside em
condições precaríssimas e onde se registrava o maior índice se mortalidade infantil
do município. Lá esclareceu o Município que para tanto “foram gastos com serviços de agrimensura, implantação de infra-estrutura básica, construção de 78 kits
sanitários, estação de tratamento de efluentes e construção de 14 casas para relocar
famílias de áreas de risco, cerca de R$ 170.000,00 provenientes de recursos próprios e do Orçamento Geral da União, sendo que os projetos passaram pela aprovação e fiscalização dos órgãos municipais, estaduais e federais competentes”. Que
a questão ambiental tem sido tratada com seriedade pela equipe de regularização
fundiária, inclusive abrangendo educação ambiental em projetos articulados entre o
Município, escola e comunidade. O direito à propriedade é garantia constitucional,
consoante dita o artigo 5º, XXII com a ressalva do inciso XXIII: “A propriedade
atenderá a sua função social”. Nesta perspectiva, nosso Tribunal de Justiça, através
da Corregedoria-Geral, em visão humanista extraordinária editou o Provimento
nº 37/99 que “Institui o Projeto ‘Lar Legal’, objetivando a regularização do parcelamento (loteamento e desmembramento) do solo urbano”, que, em seus vários
e irrespondíveis considerandos, dispõe: a inviolabilidade do direito à propriedade
merece ser dimensionada em harmonia com o princípio de sua função social; a função
do Direito não se restringe à solução de conflitos de interesse e busca de segurança
jurídica, mas em criar condições para a valorização da cidadania e promover a
FGV DIREITO RIO 54
direito de propriedade
justiça social; as leis visam a proteção dos adquirentes de imóveis; a Constituição
Federal não garante apenas o acesso à posse, mas a decorrente e imprescindível
titulação; que os fracionamentos, mesmo quando não planejados ou autorizados
administrativamente, geram em muitas hipóteses fatos consolidados e irreversíveis;
o art. 18, § 4º, da Lei 6.766/79 dispensa o título de propriedade para efeito de registro do parcelamento, que pode inclusive ser posteriormente justificado em juízo;
que eventual irregularidade no registro pode ser alvo de ação própria para fins de
anulação, em processo contencioso (art. 216 da Lei 6.015/73); que os municípios
necessitam regularizar a ocupação das áreas situadas em seu perímetro urbano ou
periferia, preservando o meio ambiente, e permitindo a realização de obras de infraestrutura compatíveis com as exigências da dignidade humana. Este provimento regulou o procedimento a ser adotado, de forma simplificada, permitindo o registro,
especialmente em situações consolidadas, estas que define como “aquelas em que o
prazo de ocupação da área, a natureza das edificações existentes, a localização das
vias de circulação ou comunicação, os equipamentos públicos disponíveis, urbanos
ou comunitárias, dentre outras situações peculiares, indique a irreversibilidade da
posse titulada que induza ao domínio” (§ 1º do art. 3º, do Provimento). Para estabelecer no § 2º que “Na aferição da situação jurídica consolidada, valorizar-se-ão
quaisquer documentos provenientes do Poder Público, em especial o Município”.
Encontra-se nos autos a prova do registro do Loteamento, com suas descrições e
características (fls. 39/47; matrícula 59.593), onde se constata inclusive a reserva de
área de ruas (27.944,55) e de área institucional (6.546,01). Vide, a propósito, fl. 39.
[...] Neste momento, o Judiciário não pode abrir mão do dever que emana de seu
poder, atuando com desassombro, em intervenção consciente (como menciona Mario Sergio Cortella, filósofo, professor PUC/SP) sem o sorrateiro entorpecimento
que acomete a muitos e que aniquila pouco a pouco a capacidade de reagir e apontar como fora de lugar muitas coisas que parecem encaixar-se, sem arestas, na vida
cotidiana e que precisam ser fortemente rejeitadas, de modo que esta não dê lugar
ao abatimento que apenas aguarda, em vez de buscar provocar resultados. Lembro
aqui de Fernando Pessoa, para o qual “na véspera de não partir nunca, ao menos não
há que arrumar malas”. Tratemos o Direito com esperança, porém como insistia
o inesquecível Paulo Freire, não se pode confundir esperança do verbo esperançar
com esperança do verbo esperar. Aliás, uma das coisas mais perniciosas que temos
neste momento é o apodrecimento da esperança; em várias situações, as pessoas
acham que não há mais jeito, que não há alternativa, que a vida é assim mesmo...
violência? O que posso fazer? Espero que termine... Desemprego? O que posso
fazer? Espero que resolvam... Fome? O que posso fazer? Espero que impeçam...
Corrupção? O que posso fazer? Espero que liquidem... Isso não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar
é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para
fazer de outro modo. E, se há algo que Paulo Freire fez o tempo todo, foi incendiar
a nossa urgência de esperanças. A propósito: “A simples consciência do alcance da
atividade jurisdicional como que habilita o magistrado a promover mudanças, de
modo a ensejar o avanço social necessário a que o País mude de fisionomia. O juiz
FGV DIREITO RIO 55
direito de propriedade
há de ser um verdadeiro alquimista, atualizando, ao aplicar a lei, os textos normativos, sem no entanto, colocá-los em segundo plano. Costumo ressaltar que, sendo as
leis elaboradas para proporcionar o bem comum, o magistrado, diante de um conflito de interesses, deve idealizar, em primeiro lugar, a solução mais justa e somente
após ir à dogmática para buscar o respaldo indispensável a torná-la prevalecente. Ao
adotar essa postura, realiza a almejada justiça e, aí, atende aos anseios sociais” (Ministro MARCO AURÉLIO MELLO, Presidente do Supremo Tribunal Federal – in
“Jornal do Magistrado”, Julho/Agosto/2001, nº 65, p. 10). Dito isto, e fulcrado na
lição de cidadania trazida ao mundo jurídico pelo Provimento 37/99 e nos incisos
XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, DEFIRO O PEDIDO INICIAL, para que se extraia em favor dos requerentes Carta
de Sentença que lhes permita a transcrição imobiliária nos exatos termos de fls.
08/17, devendo o Ofício Imobiliário promover a abertura de matrícula individualizada para cada um dos lotes em questão, evitando assim condomínio indesejado.
A teor do que dispõe o artigo 14 do Provimento 37/99, ressalvo que o máximo dos
emolumentos a ser cobrado pela abertura da matrícula e o primeiro registro será
de R$ 20,00 (vinte reais), e que na forma do artigo 15 do mesmo Provimento fica
dispensado o recolhimento de valor ao Fundo de Reaparelhamento da Justiça.
Sem custas, porquanto defiro a gratuidade.
Oficie-se, para conhecimento, à secretaria de habitação do município, inclusive
para que promova as anotações necessárias junto ao setor de cadastro de imóveis do
município (com o ofício, cópia desta sentença e de fls. 08/17).
P.R.I.
Chapecó, 15 de Novembro de 2001.
Selso de Oliveira
Juiz de Direito”
Pode ser reconhecido judicialmente o pedido de regularização sem que haja suporte legislativo para tanto? E as normas aplicáveis à usucapião coletiva?
FGV DIREITO RIO 56
direito de propriedade
Aula 12: Estatuto da cidade
EMENTÁRIO DE TEMAS
Estatuto da cidade. Instrumentos de intervenção urbanística. Limitações à propriedade e à ordenação urbana. Questões da ordenação urbana do Rio de Janeiro.
LUPOS. Plano Diretor.
LEITURA OBRIGATÓRIA
SAULE, N. Eficácia dos planos diretores. In: SILVA, Cátia Antonia da (Org.).
Metrópole: governo, sociedade e território. cap. 7.
LEITURA COMPLEMENTAR
CARDOSO, Adauto Lúcio. Reforma urbana e planos diretores: avaliação da experiência recente.
ROTEIRO DE AULA
Estatuto da cidade
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, traça políticas gerais para a ordenação do espaço urbano, dando cumprimento ao mandamento contido no art. 182
da Constituição. Todavia, a aplicação dos instrumentos de intervenção urbanística24
vem se mostrando pouco subsistente, por razões políticas e jurídicas.
Texto: “Competências constitucionais dos entes federativos sobre a política urbana”
O Estatuto da Cidade dispõe, no seu artigo 3°, as competências da União sobre
a política urbana com base na repartição das competências constitucionais sobre essa
política atribuída aos entes federativos. A Federação Brasileira tem como característica fundamental a definição das funções e dos deveres das entidades federadas,
direcionados para assegurar os direitos e garantias fundamentais das pessoas, por meio
da implementação de políticas públicas que atendam os objetivos fundamentais de
promover a justiça social, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, tornar
plena a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A Constituição tornou exigência
a formação do sistema de normas de direito urbanístico, que deve ser composto pelas
normas constitucionais referentes à política urbana, lei federal de desenvolvimento
urbano, o conjunto de normas sobre a política urbana estabelecidas nas Constituições dos Estados, lei estadual de política urbana e a legislação estadual urbanística, e
24
Art. 4º do Estatuto da Cidade.
FGV DIREITO RIO 57
direito de propriedade
o conjunto de normas municipais referentes à política urbana estabelecidas nas Leis
Orgânicas dos Municípios, no Plano Diretor e na legislação municipal urbanística.
A União, de acordo com o artigo 21, inciso XX, tem a competência para estabelecer
as diretrizes para a habitação, saneamento básico e transportes urbanos. Com base
no artigo 24, inciso I, a União, no âmbito da competência concorrente sobre direito
urbanístico, tem como atribuição estabelecer as normas gerais de direito urbanístico
por meio da lei federal de desenvolvimento urbano. Essa lei deve conter as diretrizes
de desenvolvimento urbano, os objetivos da política urbana nacional, a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição e instituir os instrumentos urbanísticos e o
sistema de gestão desta política. A União tem ainda a competência privativa de acordo
com o artigo 21, inciso IX da Constituição, para elaborar e executar planos nacionais
e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social. De
acordo com o § 4° do art. 182, a lei federal de desenvolvimento urbano é necessária
para a regulamentação dos instrumentos urbanísticos do parcelamento ou edificação
compulsórios, do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbanos progressivo no tempo, e a desapropriação para fins de reforma urbana; que devem ser aplicados
pelo Município para garantir o cumprimento da função social da propriedade urbana
com base no Plano Diretor. O Estatuto da Cidade é a lei federal de desenvolvimento
urbano exigida constitucionalmente, que regulamenta os instrumentos de política
urbana que devem ser aplicados pela União, Estados e especialmente pelos Municípios. Os Estados, com base na competência concorrente com a União, podem editar
uma lei estadual de política urbana na ausência de lei federal. O Estado pode editar
normas gerais de direito urbanístico, na ausência da lei federal visando a capacitar os
Municípios para a execução da política urbana municipal. Essas normas gerais terão
sua eficácia suspensa se ficarem em desacordo com as normas gerais estabelecidas pela
União por meio da lei federal de desenvolvimento urbano, com base no artigo 24,
parágrafo 4º da Constituição. Os Estados podem editar uma lei estadual de política
urbana, de modo a aplicar essas políticas de forma integrada com seus Municípios.
Aos Estados cabe instituir um sistema de política urbana metropolitana com organismos e instrumentos próprios, cuja política deve ser destinada em especial para as áreas
metropolitanas. Com relação ao Município, a Constituição atribui a competência
privativa para legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, e de promover, no que couber, adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e da ocupação do
solo urbano, de acordo com o artigo 30, incisos I,II, e VIII. O Município, com base
no artigo 182 e no princípio da preponderância do interesse, é o principal ente federativo responsável em promover a política urbana de modo a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, de garantir o bem-estar de seus habitantes
e de garantir que a propriedade urbana cumpra sua função social, de acordo com os
critérios e instrumentos estabelecidos no Plano Diretor, definido constitucionalmente
como o instrumento básico da política urbana.25
Como se pode imaginar, há uma série de conflitos administrativos decorrentes
dessa superposição de competências.
Retirado do Guia do Estatuto
da Cidade, em http://www.
cidades.gov.br//index.php?op
tion=content&task=category
&id=590.
25
FGV DIREITO RIO 58
direito de propriedade
Possíveis instrumentos de intervenção urbanística
“Art. 4º. Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;
II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;
III – planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;
f ) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
h) planos de desenvolvimento econômico e social;
IV – institutos tributários e financeiros:
a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU;
b) contribuição de melhoria;
c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;
V – institutos jurídicos e políticos:
a) desapropriação;
b) servidão administrativa;
c) limitações administrativas;
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;
e) instituição de unidades de conservação;
f ) instituição de zonas especiais de interesse social;
g) concessão de direito real de uso;
h) concessão de uso especial para fins de moradia;
i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;
j) usucapião especial de imóvel urbano;
l) direito de superfície;
m) direito de preempção;
n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;
o) transferência do direito de construir;
p) operações urbanas consorciadas;
q) regularização fundiária;
r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais
menos favorecidos;
s) referendo popular e plebiscito;
VI – estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de
vizinhança (EIV).”
Os instrumentos acima, determinadas a conveniência e a oportunidade da atua­
ção da administração pública, podem ser utilizados separadamente ou combinados.
FGV DIREITO RIO 59
direito de propriedade
O plano diretor dos municípios
A política urbana deverá seguir as diretrizes determinadas pelo Plano Diretor, o
qual é obrigatório para municípios com mais de 20.000 habitantes e tem natureza
de Lei. Ele traçará os objetivos gerais para o desenvolvimento municipal em médio
prazo, geralmente dez anos, estando sujeito a reavaliações periódicas.
No Rio de Janeiro, o Plano Diretor consiste na Lei nº 16/92, encontrando-se em
processo de revisão desde 2005.26
A Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano (LUPOS)
A LUPOS existe, em geral, nas cidades que não possuem plano diretor, ou por
ausência de obrigatoriedade ou por descumprimento do mandamus constitucional.
As áreas de proteção ambiental e do ambiente cultural (APAs E APACs)
As APAs são áreas com restrições urbanísticas especiais, para fins de preservação
ambiental, instituídas por Lei. Nas APACs, o que se busca é a proteção de um entorno cultural. Não são exclusividade do Rio de Janeiro, mas é este o município que
tem se notabilizado pela sua implementação.
Texto: “Memória e qualidade de vida”
A Prefeitura do Rio vem trabalhando para aperfeiçoar as Áreas de Proteção do
Ambiente Cultural (APACs) como forma de contribuir para a formação da memória
de uma cidade moderna.
A sigla APAC – que o uso constante em discussões e notícias na mídia já transformou, na prática, em substantivo – significa que o olhar do Patrimônio Cultural
não está focado apenas nos prédios e monumentos notáveis de nossa história (ver
bens tombados) mas também na preservação de conjuntos urbanos representativos
das diversas fases de ocupação de nossa cidade.
Na formação da identidade cultural urbana entra uma complexa série de
ingredientes que tornam cada bairro único e familiar aos seus moradores e freqüentadores. Preservar esse ambiente, sua paisagem e fisionomia aproxima o
Patrimônio do cotidiano da cidade e da vida de seus habitantes. E representa a
parceria do poder público com a comunidade – que em diversas ocasiões inicia
o processo de discussão e reivindica proteção da memória edificada de seu bairro
– para a manutenção da qualidade de vida e à participação no planejamento da
cidade.
APAC, a preservação ganha valor em conjunto
Numa APAC, independente do valor individual deste ou daquele imóvel, o que
importa é o valor de conjunto. A proposta de proteção de uma área é precedida de
um estudo da evolução urbana do lugar, mapeando sua forma de ocupação e seu
Secretaria Municipal de Urbanismo, Coordenadoria de
Planejamento Local, Grupo de
Trabalho, instituído pelo Decreto nº 25.247/2005.
26
FGV DIREITO RIO 60
direito de propriedade
patrimônio edificado, bem como as relações que os imóveis, logradouros e atividades
ali desenvolvidas estabelecem entre si.
A partir daí, os elementos de composição são inventariados, cadastrados e classificados como tombados, preservados ou tutelados.os bens de valor excepcional são
tombados; os que são caracterizadores do conjunto são preservados; e os demais são
tutelados.
A APAC protege conjuntos arquitetônicos que, por suas características, conferem
qualidades urbanas à região,sem, contudo, impedir o seu desenvolvimento.
As APACs podem variar em tamanho, desde a preservação de um conjunto de
imóveis situados em uma única rua, até áreas que compreendem um ou mais bairros.
Atualmente, o DGPC detém a tutela de 36 áreas urbanas protegidas, entre APACs
e áreas de proteção de entorno de bens tombados, localizadas nas Zonas Norte, Sul,
Oeste e Central da Cidade e que incluem cerca de 30 mil imóveis, entre bens tombados, preservados e tutelados.27
Pólos gastronômicos
São áreas de utilização especial, nas quais se fomenta o terceiro setor, facilitandose estacionamento, ampliando-se a possibilidade de funcionamento de estabelecimento dessa natureza, etc.
CASO GERADOR 1
Por que a APAC do Leblon?
Nireu Oliveira Cavalcanti
“À cerimônia de posse do novo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, além dos 16 membros titulares e suplentes,
estiveram presentes seu presidente, o jurista Marcelo Cerqueira, o Secretário das
Culturas, senador Arthur da Távola (responsável pela constituição do Conselho)
e o diretor do Departamento Geral do Patrimônio Cultural, Cláudio Murilo.
Dirigindo-se aos conselheiros, o Prefeito César Maia solicitou um Conselho dinâmico, operativo, responsável e, sobretudo, propositivo, voltado à cidade como
um todo.
Por sua vez, o senador Arthur da Távola expressou sua visão reconhecedora da
riqueza da diversidade cultural existente na cidade do Rio, rebatida na singularidade
de cada um de seus bairros, característica a ser impressa, com ênfase, no trabalho
produzido pelo Conselho.
As balizas conceituais para atuação estavam sugeridas, assim como a disposição
do Secretário e do Prefeito de reforçar os quadros técnicos dos núcleos de apoio ao
trabalho do Conselho. A necessidade de novas instalações e de equipamentos também foi reconhecida. A ida para a Casa Afonso Arinos constitui o primeiro sinal
desse investimento.
http://www.rio.rj.gov.
br/culturas/site/apacs.
php?tipo=APACS.
27
FGV DIREITO RIO 61
direito de propriedade
Motivados, os conselheiros viram-se, logo de início, frente a uma imensa pilha
de processos legada pelo Conselho anterior. Chamou a atenção de todos os mais de
20 processos referentes a pedidos de demolição de prédios no Leblon, evidenciando
a ação especulativa imobiliária que estava por se instalar naquele tradicional bairro
da Zona Sul da cidade. A análise detalhada de cada um deles sedimentou a proposta
de intervenção imediata do Conselho no sentido de elaboração de uma APAC para
a área, por ser o instrumento mais ágil e eficaz de que se dispunha.
Não só o Leblon estava sob a ameaça de perda de parte significativa de seu patrimônio ambiental e cultural. A presença da hidra destruidora movia-se, insaciável, na
direção de outros bairros, de modo a exigir da administração pública urgente adoção
de políticas de preservação da urbe carioca; de políticas culturais coadunadas com as
recomendações da Declaração de Amsterdã (Congresso do patrimônio arquitetônico
europeu, 1975) que aconselha ao planejamento das áreas urbanas e ao planejamento
físico-territorial acolherem as exigências da conservação do patrimônio arquitetônico e não considerá-las de uma maneira parcial, ou como um “elemento secundário”,
atitude bastante comum que estampa a ausência total de diálogo entre “os conservadores e os planejadores”.
Trata-se de uma visão nova que busca afinar as ações da administração pública,
no sentido de tomar os espaços da cidade não como equivalentes, mas como coisas
peculiares que encerram características que lhes são próprias. Com esse olhar o Conselho debruçou-se sobre o Leblon com o fito de aí identificar, conforme recomendações da Conferência Geral da UNESCO (Nairóbi, 26.11.1976) que considera
como conjunto histórico ou tradicional digno de ser protegido “todo grupamento
de construções e de espaços, inclusive os sítios arqueológicos e palenteológicos, que
constituam um assentamento humano, tanto no meio urbano quanto no rural e cuja
coesão e valor são reconhecidos do ponto de vista arqueológico, arquitetônico,
pré-histórico, histórico, estético ou sócio-cultural”, imóveis ou trechos do bairro a
serem preservados.
Estão de acordo os mesmos conselheiros com as “medidas de salvaguarda” propostas por essa mesma Conferência da UNESCO de que convém “revisar as leis
relativas ao planejamento físico-territorial, ao urbanismo e à política habitacional, de
modo a coordenar e harmonizar suas disposições com as das leis relativas à salvaguarda do patrimônio arquitetônico” dos diversos bairros do Rio de Janeiro.
É público que muitas cidades vêm sofrendo a pressão de grupos econômicos voltados à construção imobiliária que, sob pretexto “de expansão ou de modernização”,
ignoram os valores culturais dos conjuntos arquitetônicos históricos ou tradicionais,
os destroem, acarretando perdas imensas à qualidade de vida e à identidade das comunidades que neles residem.
Com a APAC do Leblon, a Prefeitura do Rio deu um basta à gana demolidora
que iria se instalar no bairro. Agiu o Conselho estribado nos princípios estabelecidos
no “Documento do Mercosul” (Mar Del Plata, junho de 1997), segundo o qual a
pluralidade de culturas de cada região da cidade é fator “positivo e enriquecedor da
nossa visão de mundo e do próprio desenvolvimento da personalidade humana”.28
http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/arquivos/100_
fundamentos%20da%20apac
%20leblon.PDF.
28
FGV DIREITO RIO 62
direito de propriedade
Existem razões ambientais e culturais que justifiquem a preservação sociocultural
do imobiliário urbano do bairro do Leblon?
AnEXO
D.O. nº 93 – Segunda-feira. 30 de julho de 2001
DECRETO N.º 20300 DE 27 DE JULHO DE 2001
CRIA A ÁREA DE PROTEÇÃO DO AMBIENTE CULTURAL DO BAIRRO DO LEBLON VI RA. E ESTABELECE CRITÉRIOS PARA SUA PROTEÇÃO. DETERMINA O TOMBAMENTO DOS BENS QUE MENCIONA,
LOCALIZADOS NO BAIRRO DO LEBLON
– O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições e;
CONSIDERANDO o desenho urbano, o tipo de ocupação e a qualidade de
vida que compõem a tradicional paisagem do bairro do Leblon; CONSIDERANDO o valor dos bens aqui mencionados e sua relevância histórica e cultural; CONSIDERANDO que o Decreto nº 6. 115, de 11 de setembro de 1986, que instituiu
o Projeto de Estruturação Urbana (PEU) do Leblon e estabeleceu condições de uso
e ocupação do solo, não é suficiente para salvaguardar o bairro de ações que prejudiquem sua identidade e ambiência; CONSIDERANDO o aperfeiçoamento dos
estudos elaborados pelo Departamento Geral de Patrimônio Cultural da Secretaria
Municipal das Culturas, que indicaram a necessidade de adoção de forma mais
efetiva, de proteção do patrimônio cultural do bairro; CONSIDERANDO o que
consta no processo nº 12/002.378/2001; CONSIDERANDO o pronunciamento
favorável do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de
Janeiro; DECRETA
Art. 1º – Fica criada a Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do bairro
do Leblon, conforme a delimitação constante no Anexo I, ficando sob a tutela do
órgão executivo de proteção do patrimônio cultural do Município.
Art. 2º – Para efeito de proteção, ficam preservados os bens de relevante interesse
para o patrimônio cultural do Rio de Janeiro, localizados na Área de Proteção do
Ambiente Cultural (APAC) do bairro do Leblon, listados no Anexo II, e tutelados
os demais, em obediência ao artigo 131 da Lei Complementar nº 16 , de 04 de
junho de 1992 (Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro).
Art. 3º – Ficam tombados definitivamente, nos termos do artigo 4º da Lei 166,
de 27 de maio de 1980, os seguintes bens localizados no bairro do Leblon – VI RA.:
– Escadaria no final da Rua General Urquiza que dá acesso para a Rua Capitão César de Andrade; – Jardim de Alah, inclusive as praças Almirante Saldanha da Gama,
Grécia e Poeta Gibran; – Praça Atahualpa e as pontes sobre o canal da Avenida
Visconde de Albuquerque.
Art. 4º – Ficam tombados provisoriamente, nos termos do artigo 5º da Lei 166,
de 27 de maio de 1980, os seguintes bens localizados no bairro do Leblon – VI
RA.: – Avenida Ataulfo de Paiva, 391/397 e Rua Carlos Góes, 64 (Cinema Leblon);
FGV DIREITO RIO 63
direito de propriedade
– Avenida Borges de Medeiros, 701 (Clube Monte Líbano); – Avenida Niemeyer,
2 (fachada do Hotel Leblon); – Praça Belfort Vieira, 6; – Praça Baden Powell, 862;
– Rua Almirante Guilhem, 421 (Prédio da CEG).
Art. 5º – Quaisquer obras ou intervenções a serem executadas nos referidos bens
devem ser previamente aprovadas pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro.
Art. 6º – Ficam incluídos no tombamento dos referidos bens: a volumetria, a
cobertura, os elementos arquitetônicos e decorativos originais da tipologia estilística da(s) fachada(s), os materiais de acabamento, os vãos, as esquadrias, além dos
demais aspectos físicos relevantes para sua integridade.
Art. 7º – Os bens preservados não podem ser demolidos, podendo sofrer pequenas intervenções para adaptação ou reciclagem, respeitando a volumetria básica, a
linguagem estilística e os elementos construtivos originais , sempre com orientação
do órgão de tutela.
Parágrafo único – É permitido modificar o interior das edificações preservadas,
desde que seja garantida a integridade físico-funcional da(s) fachada(s).
Art. 8º – Quaisquer obras ou intervenções a serem realizadas nos limites da Área
de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do bairro do Leblon, inclusive nos espaços públicos, devem ser previamente aprovadas pelo órgão de tutela.
Parágrafo Único – Para o licenciamento de pintura ou quaisquer outros reparos
em bens tombados ou preservados para os quais não é exigida a apresentação de
projeto, é obrigatória a apresentação de fotografia do imóvel no tamanho mínimo
de 9 cm (nove centímetros) por 12 cm (doze centímetros) e o esquema com as intervenções a serem feitas .
Art. 9º – Os bens tutelados podem ser modificados ou demolidos, desde que as
alterações ou as novas construções sejam compatíveis com o conjunto urbanístico
preservado e previamente aprovadas pelo órgão de tutela.
Art. 10 – Em caso de sinistro, demolição não autorizada ou obras que resultem
em descaracterizações do bem tombado ou preservado, o órgão de tutela pode estabelecer a obrigatoriedade de reconstrução ou recomposição do bem, reproduzindo
suas características originais, conforme o previsto no artigo 133 da Lei Complementar nº 16 de 4 de junho de 1992 (Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro).
Parágrafo Único – As novas construções e os acréscimos em edificações tuteladas situadas dentro dos limites da Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do bairro
do Leblon terão altura máxima compatível com as edificações tombadas e preservadas e
em nenhuma hipótese ultrapassarão as alturas previstas no Decreto nº 6. 115/86.
Art. 11 – A colocação de letreiros, anúncios, engenhos de publicidade ou toldos,
nos bens situados na Área de proteção do Ambiente Cultural (APAC) do bairro
do Leblon, assim como qualquer intervenção urbanística, colocação de mobiliário
urbano ou monumentos nos limites da mesma deverão ser previamente aprovadas
pelo órgão de tutela.
Art. 12 – Para obtenção dos benefícios previstos no Decreto nº 6.403/86 para
bens tombados e preservados, será considerada a edificação inteira, inclusive quando for constituída por mais de uma unidade com numerações diferentes.
FGV DIREITO RIO 64
direito de propriedade
Art. 13 – Observada a legislação reguladora da espécie, poderá ser admissível a
transferência do direito correspondente ao complemento não utilizado da capacidade construtiva prevista no Decreto nº 6.115, de 11 de setembro de 1986, vinculada
aos bens tombados e preservados por este decreto, a ser exercido nos limites do
bairro do Leblon.
Art. 14 – Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.”
CASO GERADOR 2
Mapa de Santa Teresa: projeção em Powerpoint.
FGV DIREITO RIO 65
direito de propriedade
Aula 13: Direito de vizinhança
EMENTÁRIO DE TEMAS
Direito de vizinhança. Cláusula geral de proteção da vizinhança. Situações tipicamente listadas no Código Civil. Ações para a proteção da incolumidade da
vizinhança.
LEITURA OBRIGATÓRIA
DANTAS JR., Aldemiro Rezende. O direito de vizinhança, p. 52-80.
LEITURA COMPLEMENTAR
DANTAS, Aldemiro Rezende, cap. 7.
ROTEIRO DE AULA
Direito de vizinhança
São as regras relativas às propriedades imóveis contíguas, que buscam a composição de interesses entre o exercício de poderes proprietários e a preservação do
conteúdo da propriedade vizinha. Fundam-se na vedação ao abuso de direito e na
função social da propriedade.
Uso nocivo da propriedade: cláusula geral
Arts. 1277 a 1281 do Código Civil
Critérios de aplicação das normas dos artigos citados: anterioridade, utilização
do bem e configuração do abuso de direito.
Regulação in concretu
–
–
–
–
–
Árvores limítrofes
Passagem forçada
Limites
Direito de construir
Tapagem
FGV DIREITO RIO 66
direito de propriedade
Situações não reguladas pelas normas típicas
–
–
–
–
–
Poluição visual
Poluição sonora
Animais
Odores
Etc.
Ações envolvendo direito de vizinhança
– Ação de dano infecto
– Ação de nunciação de obra nova
– Tutela específica das obrigações de não fazer e tutela inibitória
Texto: “Problemas de vizinhos”
Direito de propriedade vigora sob ótica da função social
por Gisele Leite
Os direitos de vizinhança são previsões legais que têm por objeto regulamentar
a relação social e jurídica que existe entre os titulares de direito real sobre imóveis,
tendo em vista a proximidade geográfica entre os prédios ou entre apartamentos
num condomínio de edifícios.
Os prédios não precisam necessariamente ser contíguos ou vicinais, porém a atividade exercida possa de alguma forma repercutir em outro prédio. Para efeitos legais, quem sofrer a repercussão nociva será reputado vizinho, independentemente de
confrontar com o prédio ou não.
Os direitos de vizinhança são criados por lei e não visam aumentar a utilidade do
prédio, mas sim reputados necessários para a coexistência pacífica entre os vizinhos.
Estas duas características distinguem o direito de vizinhança do direito real sobre
coisa alheia denominado de servidão predial, cuja regulamentação se encontra nos
artigos 1.378 até 1.389 do Código Civil de 2002.
O direito de preservação da pessoa contra a utilização da posse ou da propriedade
alheia de modo a não causar dano à segurança ou sossego ou a saúde é exercido ainda
em caráter de reciprocidade.
É sabido que o uso regular de um direito reconhecido não constitui ato ilícito,
conforme se verifica da análise do artigo 188, I do C.C.
Desta forma, o exercício irregular de um direito enseja o ato ilícito denominado
tecnicamente de abuso de direito. Alguns doutrinadores apontam que o abuso de
direito, a priori não se revela como ilícito, mas com o tempo e, por infringir a esfera
jurídica de outrem, passa a se configurara como ato ilícito.
Abusa do direito de propriedade de imóvel quem a utiliza nocivamente, pondo
em risco ou afetando a segurança, o sossego e a saúde dos donos dos prédios vizinhos. Portanto, define-se o uso da propriedade conforme prevê o artigo 1.228 do
CC privilegiando sua função social com efetivo interesse dói proprietário ou a sua
FGV DIREITO RIO 67
direito de propriedade
comodidade e, nunca sendo utilizada como instrumento de vingança, capricho ou
com o fito de perturbar ou causar dano a outrem.
É abuso de direito, por exemplo, construir muro altíssimo apenas para fazer
sombra sobre o prédio vizinho ou para atrapalhar a navegação aérea; ou construir
um poço profundo para suprimir as águas dos demais adquirentes do lote, ou não
permitir a passagem forçada para o proprietário que necessite escoar sua produção
agrícola, encontrando-se a estrada pública em péssimas condições, entre outros comportamentos igualmente reprováveis.
Todavia, há casos que se tem que tolerar as interferências à propriedade em razão
do interesse público (artigo 1.1278 CC) podendo requerer a qualquer tempo a redução ou a própria cessação da atividade considerada como nociva, basta que se prove
que tal fato não traria prejuízo à atividade em prol do interesse público.
O direito de vizinhança é uma restrição ou limitação ao direito de propriedade
em benefício do direito privado. San Tiago Dantas preleciona: “para que haja conflito de vizinhança é sempre necessário que um ato praticado pelo possuidor de um
prédio, ou o estado de coisas por ele mantido, vá exercer seus efeitos sobre o imóvel
vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incômodos ao seu morador”.
O fundamento da responsabilidade nessa seara não se esteia na culpa e assenta-se
efetivamente na responsabilidade objetiva. Assim, se o ato praticado no imóvel vizinho repercute de modo prejudicial e danoso ao outro, impõe-se o dever de remover
o mal causado ou indenizar o dano experimentado, a exemplo da construção de um
imóvel em terreno contíguo, cujo sistema de estaqueamento cause trincas, fissuras,
rachaduras no imóvel vizinho.
Atenção. Imóveis vizinhos não são apenas os confinantes, mas também os que se
localizam nas proximidades desde que o ato praticado por alguém em determinado
prédio vá repercutir diretamente sobre o outro, causando incômodo ou prejuízo ao
seu ocupante.
Compreende o direito de vizinhança: o uso anormal da propriedade; as árvores
limítrofes; a passagem de cabos e tubulações, as águas, os limites entre prédios, o direito de tapagem e o direito de construir (artigos 1.277 ao 1.313 do CC de 2002).
Procura a lei coibir o uso anormal da propriedade lançando mão por vezes da
chamada tutela inibitória que impõe ao réu (proprietário-infrator) condenado uma
obrigação de não-fazer, ou ainda, uma multa cominatória (astreinte).
Aponta a doutrina alguns critérios seguros para efeito de composição dos conflitos. São eles: a pré-ocupação, a natureza da utilização, a localização do prédio, as
normas relativas às edificações e os limites de tolerância dos moradores vizinhos. É
óbvio que entre um mero detentor e um proprietário, esse último goza de maiores
prerrogativas legais para impor o respeito ao direito de vizinhança.
A pré-ocupação ou precedência significa que ao analisar o conflito, o juiz verificando qual dos vizinhos se instalou antes no local. Analisará, ipso facto, se houve
inclusive a intenção danosa.
Com isso, se alguém fixa residência nas imediações de uma fábrica em zona industrial, e sabidamente reconhece de antemão tais condições, não lídimo reclamar
das condições ambientais do local. Assim, havendo conflito de vizinhança, o juiz não
FGV DIREITO RIO 68
direito de propriedade
se limitará a analisar apenas a pré-ocupação, mas igualmente outros elementos para
melhor formar seu convencimento.
O barulho é sem dúvida um dos motivos corriqueiros de atritos entre vizinhos e
há até engenheiros e ambientalistas que fornecem uma tabela contendo os níveis de
ruídos em decibéis, e só a guisa de curiosidade, uma banda de rock em geral produz
110 dB enquanto que a decolagem de um jato a 100 metros de distância produz 125
dB; (nesse sentido o TJ-RS, 18ª Câmara Cível, relator André Luiz Planella Villarinho, decidiu no processo 70.003.573.029 que os ensaios da banda de rock estão
proibidos em uma residência de Pelotas, por incomodar os vizinhos).
O critério basilar a ser adotado para a composição do conflito é o de uso normal
em confronto com o uso anormal. Mas a questão é complexa e subjetiva, pois não
há marco divisório nítido entre a normalidade e anormalidade. E devem ser levados
a termo, o fator objetivo que é o ato causador do conflito e, o outro fato subjetivo,
concernente à pessoa que se vê prejudicada.
É certo que, para se viver em sociedade, é mesmo preciso reconhecer limites e
tolerar e o ponto de equilíbrio nem sempre é fácil de se alcançar. A jurisprudência
tem procurado fixar remos capazes de aferir a normalidade no uso da propriedade:
“A utilização indevida de apartamento em edifício estritamente residencial como
escritório de empresa ou mesmo de atividade profissional pelo locatário importa em
uso nocivo da propriedade por prejudicar a segurança e, sobretudo, o sossego de
moradores dos demais apartamentos” (RT 708:159).
“A responsabilidade civil pelos danos de vizinhança é objetiva, conduzindo a obrigação de indenizar independentemente da existência de culpa, se da atuação nociva do
agente resultar dano efetivo. É necessária a comprovação de nexo causal entre a ação do
vizinho e o dano sofrido pelo outro como pressuposto essencial para caracterização do
dever de indenizar recaindo o ônus da prova, tratando-se se de ação de indenização ao
autor” (TA/MG, Ap. Civ. 259 054-3, relatora Desa. Jurema Brasil, DJ 1.7.98).
Recentemente, a cantora Simone recebeu do STJ a confirmação das decisões de
primeira e segunda instâncias que obrigaram sua vizinha, a ambientalista Fernanda
Colagrossi, a retirar de seu apartamento os 25 cães que lá mantinha. Pela mesma
decisão, Fernanda poderia manter apenas três cães no imóvel, é a decisão tomada
unanimemente pela 3ª Turma do STJ e põe fim a lide que vinha sido debatida na
Justiça desde 1998.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do processo acima, afirmou que a ambientalista, apesar de não ser proprietária do imóvel, é parte legítima, uma vez que a
obrigação de não causar interferência prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde
surge da qualidade de vizinho e, não de proprietário”. (Resp 622.303).
Vamos mormente definir mais amiúde alguns relevantes conceitos para o tema,
como por exemplo, segurança que tem haver com solidez, estabilidade material do
prédio e a incolumidade pessoal de seus moradores. Deve ser afastado qualquer perigo pessoal ou patrimonial, como a instalação de indústria de inflamáveis e explosivos, ou uma de produtos químicos nocivos à saúde.
Sossego é bem jurídico inestimável, componente dos direitos da personalidade, intrinsecamente ligado ao direito à privacidade. Não é a ausência completa
FGV DIREITO RIO 69
direito de propriedade
de ruídos, mas a possibilidade de afastar ruídos excessivos que comprometam a
incolumidade da pessoa.
É direito dos moradores a uma relativa tranqüilidade na qual bailes, festas, algazarras, animais e vibrações intensas provenientes de vizinhos acarretem enormes
desgastes a paz do ser humano.
A violação do sossego agride o equipamento psíquico do homem e deve ser encarado como ofensa ao direito à integridade moral do homem, conceito muito próximo ao direito à intimidade, à imagem e a incolumidade mental.
Afora os danos extrapatrimoniais, os ruídos impedem o repouso, acabando por
comprometer a saúde e a própria segurança do indivíduo.
O artigo 1.277 do Código Civil possui rol taxativo (numerus clausus) e não admite interpretação extensiva. Desta forma, se as interferências prejudiciais causadas
não repercutirem sob o trinômio (saúde-segurança-sossego) a questão extrapolará do
conflito de vizinhança.
Ressalte-se que a segurança, sossego e saúde são direitos da personalidade inerentes a qualquer ser humano e não apenas aos vizinhos. E o mau uso da propriedade
dá-se pela prática de atos ilegais, abusivos ou excessivos (não raros classificados na
esfera criminal como contravenções ou crimes, o mais comum o crime de dano).
Atos excessivos são aqueles praticados com finalidades legítimas, porém, ainda
assim gerando danos anormais e injustos passíveis de indenização em sede de responsabilidade objetiva.
Assim é sábia a popular parêmia: “é vedado exercer nossos direitos com sacrifícios dos
direitos alheios” ou ainda “o direito de um acaba quando começa o direito do outro”.
O limite do uso normal ou anormal da propriedade não pode ser teorizado, o
artigo 1.277 do CC disciplina a questão justamente pelas exceções. Temos também
como uso anormal, o não-uso ou a subtilização da propriedade de forma a causar
conflitos de vizinhança. É o caso de imóvel usado com desídia ou legado ao abandono. Onde os vizinhos podem sofrer, dentre outras coisas, ameaças de ruína do
prédio.
Da mesma maneira, a postura passiva ou permissiva do titular do prédio acarreta
o seu uso por terceiros para atividades prejudiciais a todos e mesmo ilícitas (como
drogas, prostituição, depósito de entulhos, lixo tóxico, matagal, etc.) gerando insegurança e danos à saúde e tranqüilidade de todos os vizinhos.
O não-uso também fere o direito urbanístico (artigo 182, parágrafo 4º, da CF)
por ser ofensivo à função social da propriedade no município. Tem também a questão relativa à proteção aos prédios tombados.
Destarte, a tutela a saúde e da segurança é resguardada pelos artigos 30 e 38 do
Decreto-Lei 3.668/41 que cuida do perigo de desabamento e da emissão de fumaça,
vapores ou gases.
Há um julgado (JTACSP-RT 117:43) que teve a oportunidade de apreciar a
poluição sonora produzida por uma araponga (ave canora) cujo canto é anormal,
excessivamente alto, irritante, estridente e ensurdecedor, e o fato de seu dono suportar não faz com que os demais vizinhos devam ter o mesmo comportamento
compassivo.
FGV DIREITO RIO 70
direito de propriedade
Abre exceção em prol do interesse público o artigo 1.278 do CC. Porém, não
isenta ao causador dos danos de responder por sua respectiva indenização.
A questão quanto à ruína de prédio vizinho é disciplinada pelo artigo 1.280 CC,
e dá direito tanto ao proprietário como ao possuidor de exigir do dono do imóvel
vizinho a demolição ou a reparação do prédio que ameace a ruir, bem como exigir
que se preste caução por dano iminente.
Admite que se exija caução por meio da chamada ação por dano infecto pela qual
se constitui uma garantia para indenização do dano futuro e eventual. Porém, se o
dano já ocorreu, sendo consumado, o ressarcimento deverá ser requerido por meio
de uma ação indenizatória.
Caberá, por outro lado, se a obra estiver em andamento, a ação de nunciação
de obra nova. O artigo 1281 CC prevê a possibilidade de se exigir garantia contra
eventual dano, que se perfaz na forma do artigo 827 do CPC.
Sobre as árvores limítrofes há a previsão nos artigos 1.282 a 1.284 do CC e envolve aquelas que se localizam na linha divisória ou bem próxima a esta.
Quando a árvore tiver seu tronco na linha divisória, há a presunção iuris tantum
de pertencer em partes iguais, aos dois vizinhos, em condomínio necessário.
Sendo que nenhum dos proprietários poderá cortá-la sem anuência do outro
(artigo 1.282 CC). A propriedade comum prevalecerá mesmo se a maior parte da
árvore se encontrar no terreno de um dos confiantes, pois avulta apenas saber se esta
está na linha divisória.
Quando os frutos naturalmente caírem sobre o terreno vizinho, em local próximo a linha divisória, pertencerão estes, ao dono do local da queda, evitando-se assim
as invasões em terrenos alheios e, posterior, contenda entre vizinhos (artigo 1.284
CC).
Pontes de Miranda ensina que essa inspiração é de origem germânica e se prende
à idéia de que quem arca com ônus deve desfrutar o bônus. O fundamento deflui
do brocardo “wer den bosen tropfen geniesst, geniesse auch den guten” – quem traga as
gotas más que traga as boas.
Revista Consultor Jurídico, 29 de janeiro de 2007.”29
CASOS GERADORES
1) Uma pessoa gosta de aparecer nua na janela. Outra se mostra incomodada
com o fato, pois mora em apartamento de mesmo andar, só que de frente, do outro
lado da rua. É possível a caracterização de algum tipo de proteção, amparada no
direito de vizinhança?
2) A convenção de condomínio permite a presença de animais no prédio, nomeadamente cães. Seria possível criar um mastim napolitano, nomeadamente a raça
com maior relação peso x altura, ou seja, o maior cão? E um casal de mastins?
http://conjur.estadao.com.
br/static/text/52290,1.
29
FGV DIREITO RIO 71
direito de propriedade
Aula 14: Direito de construir
EMENTÁRIO DE TEMAS
Acessões. Direito de construir. Limitações privadas ao direito de construir. Limitações públicas ao direito de construir.
LEITURA OBRIGATÓRIA
FIGUEIREDO, Lucia Valle Figueiredo. Disciplina urbanística da propriedade, p.
114-144.
LEITURA COMPLEMENTAR
CARLOS, Ana Alessandra (Org.). Dilemas urbanos. p. 167-180: Acessões e regularização fundiária. Outras modalidades de acessão.
ROTEIRO DE AULA
Direito de construir
O direito de construir representa uma das faculdades essenciais do proprietário.
Contudo, não pode, à evidência, ser exercido sem que se respeite uma série de limitações previstas na legislação. Algumas já são conhecidas, como a vizinhança e as
limitações urbanísticas. Cumpre entender o que ocorre quando se constrói e de que
modo atuam as limitações.
Acessão
Acessão é a união de um bem a um imóvel.
Acessões naturais: aluvião; avulsão; formação de ilhas; formação de álveo.
Acessões artificiais: construções; plantações.
Princípio da acessão
Determina o princípio da acessão que tudo aquilo que se incorpora a um terreno
é de propriedade do dono do terreno.
Exceções: acessão invertida (figura dos art. 1258 e 1259 do Código Civil).
FGV DIREITO RIO 72
direito de propriedade
Limites entre prédios previstos no Código Civil
Limite para abertura de janela: 1,5 m e 0,75 m, não se distinguindo a visão direta
da oblíqua30, como determina o art. 1301 do Código Civil, desde que não se trate
de parede de tijolos translúcidos, não caracterizada como janela.31
Limites para a colocação de fornos e chaminés.
Limites para a utilização de parede-meia.
Fundamentos para os direitos de luz e vista
Limitações públicas ao direito de construir: zoneamento, gabarito, recuo, etc.
Podem as limitações frear a especulação imobiliária?
CASO GERADOR
Espaço urbano e Estado
Como o Estado se comporta diante dessas transformações territoriais comandadas pela classe dominante e pelo seu sistema de mercado imobiliário?
O Estado, em primeiro lugar, faz nas regiões onde se concentram as camadas de
mais alta renda enormes investimentos em infra-estrutura urbana, especialmente
no sistema viário, ao mesmo tempo em que abre frentes pioneiras para o capital
imobiliário, como o Centro Administrativo de Salvador, a Avenida Rio Branco ou
a esplanada do Castelo, no Rio, ou a Avenida Faria Lima, em São Paulo. Assim, o
sistema viário naquelas regiões é muito melhor que no restante da cidade, não só
para atender ao maior número de automóveis, mas também para abrir frentes de
expansão para o capital imobiliário.
São inúmeras as obras públicas para melhorar a região central da cidade, onde se
instala a burguesia, inclusive na face do centro da cidade para ela voltada. A abertura
das Avenidas Central e Beira-Mar no Rio de Janeiro foi uma obra custosíssima proporcionalmente aos recursos e ao tamanho da cidade na época. Obras igualmente
enormes e custosas foram os desmontes dos morros. É significativo que os morros
arrasados tenham sido exatamente aqueles que se encontravam na extremidade sul do
centro. Para abrir espaço para a renovação e modernização do centro do Rio foram
removidos os morros do Castelo, do Senado e de Santo Antônio, enquanto os morros
da extremidade norte – o morro de São Bento e o da Conceição – permanecem lá até
hoje. A seqüência de obras gigantescas no eixo sul do Rio de Janeiro é impressionante.
As Avenidas Mem de Sá, Henrique Valadares e outras ocuparam a área do morro do
Senado. Vastas áreas, todas na extremidade sul do centro, foram oferecidas ao capital
imobiliário para as maiores obras de remodelação urbana já realizadas no País: as valorizadíssimas terras centrais obtidas com o desmonte dos morros do Castelo e, depois,
o de Santo Antônio. A essas obras deve ser acrescentada uma grande quantidade de
aterros da orla marítima, do aeroporto Santos Dumont a Botafogo, os gigantescos
30
Súmula 414, STF.
31
Súmula 120, STF.
FGV DIREITO RIO 73
direito de propriedade
aterros do Flamengo e de Copacabana, e ainda o elevado do Joá e inúmeros túneis.
Note-se que tais obras atendem exclusivamente à Zona Sul, ou seja, são obras que
nem parcialmente atendem aos interesses de outras regiões da cidade. O contrário se
deu na Zona Norte. As obras de vulto da região, corno a Avenida Presidente Vargas,
a Avenida Brasil ou os elevados associados à Ponte Rio-Niterói, destinam-se também
a atender o escoamento do tráfego rodoviário extra-urbano e, portanto, não são obras
destinadas a atender exclusivamente aos interesses da Zona Norte. O mesmo deu-se
com as ferrovias e rodovias. Essas obras foram construídas para atender a interesses
regionais extra-urbanos, e a população da Zona Norte apenas tirou partido delas.
Mesmo assim, as ferrovias sofreram um violento processo de deterioração, dado o
abandono a que foram relegados os seus serviços suburbanos de passageiros.
O que fez o governo baiano ao construir o Centro Administrativo de Salvador
numa região quase virgem, porém estrategicamente localizada na direção da cidade
para onde a média e alta burguesia vêm se deslocando há décadas? Não só colocou
o aparelho do Estado bem mais acessível a essas classes (e mais longe das classes subalternas) e melhorou o acesso a elas através de novas e rápidas avenidas expressas,
mas também desbravou inúmeras novas fronteiras e oportunidades fabulosas para a
especulação imobiliária. Além disso – em que pese alegar o contrário –, colocou o
aparelho do Estado muito afastado (em termos de distância, mas especialmente em
termos de tempo e oportunidades de viagem) das classes subalternas.
Em São Paulo não foi menor a ação do Estado para preparar a expansão das
chamadas “zonas nobres” da cidade e ainda abrir novas fronteiras para a especulação
imobiliária. Através de um de seus mais conhecidos prefeitos, Prestes Maia, renovou
toda a região do centro da cidade voltada para o quadrante sudoeste e sobre a qual
incidia o interesse da burguesia. A maioria das grandes avenidas que abriu localizase nessa região. Não só a mais famosa e importante delas, a Avenida Ipiranga, mas
também a Avenida Vieira de Carvalho e o novo Largo do Arouche, a Avenida Duque
de Caxias, a Avenida Rio Branco, Rua São Luís e a nova Rua da Consolação. Porém,
bem antes disso, o Estado já vinha preparando a cidade para os interesses da burguesia. A construção do Viaduto do Chá, obra arrojada e da mais avançada tecnologia
da época (estrutura de ferro), custosíssima para uma pequenina cidade de algumas
dezenas de milhares de habitantes, não representava outra coisa senão a oferta de
acesso mais direto entre o centro e a região que as elites queriam ocupar, ou seja, as
encostas de Santa Cecília, Vila Buarque, Avenida Paulista e depois seu próprio espigão. Antes, a ligação entre o centro e essa região era pelo Acú, atual ponto de onde
a Avenida São João cruza o Vale do Anhangabaú e representava um percurso longo.
O Viaduto do Chá veio representar uma significativa melhoria daquela ligação. O
alargamento da Rua Libero Badaró e da Rua São João e a urbanização do Vale do
Anhangabaú (todas no quadrante sudoeste) são outros exemplos de melhoramentos
que beneficiaram a faceta sudoeste do centro.
Em segundo lugar, o Estado transfere suas próprias instalações para a mesma direção de crescimento da classe dominante, mostrando claramente, através do espaço
urbano, seu grau de captura por essa classe. O já citado exemplo de Salvador não é
único. O Palácio do Governo do Estado de São Paulo era inicialmente no Pátio do
FGV DIREITO RIO 74
direito de propriedade
Colégio, no coração da cidade. Transferiu-se daí para o Palácio dos Campos Elíseos
e, depois, para o Morumbi. A Assembléia Legislativa saiu do Parque D. Pedro I e foi
para o Ibirapuera. O Gabinete do Prefeito saiu do Anhangabaú e foi para o Ibirapuera, e a absoluta maioria das repartições e empresas públicas transferiu-se para a
região da Paulista e Faria Lima.
No Rio, tanto o Senado como a Câmara Municipal eram no Campo de Santana e
transferiram-se para a nova “zona nobre” do centro, que passou a ser sua extremidade
sul, a Praça Floriano Peixoto. Também o Executivo, assim que foi proclamada a República, instalou-se na direção norte, no Palácio do ltamarati, e depois se transferiu
para o Catete. Processos idênticos ocorreram em maior ou menor escala em muitas
cidades brasileiras até mesmo entre as pequenas.32
Você concorda com o afirmado no texto? As alterações de zoneamento podem
estimular a especulação imobiliária? Ou é melhor abrir a trilha do “progresso”?
VILLAÇA, Flávio. O que todo
cidadão precisa saber sobre
habitação. São Paulo: Global,
1986. p. 98-101.
32
FGV DIREITO RIO 75
direito de propriedade
BLOCO 2: NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS E DEMAIS DIREITOS REAIS
OBJETIVO DO BLOCO DE AULAS
Obtido o conhecimento básico dos institutos da posse e da propriedade e das
questões envolvendo a função social da propriedade e a ordenação urbana, passamos agora a conhecer questões mais atreladas à realidade dos negócios imobiliários
e, também, utilizações dos demais direitos reais em uma perspectiva negocial.
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direito de propriedade
AULA 15: INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS
EMENTÁRIO DE TEMAS
Incorporações imobiliárias. Modalidades de contratação. Patrimônio de afetação
nas incorporações imobiliárias.
LEITURA OBRIGATÓRIA
CHALHOUB, Melhim. Da incorporação imobiliária, p. 9-34.
LEITURA COMPLEMENTAR
CHALHOUB, Melhim. Da incorporação imobiliária, cap. 3.
ROTEIRO DE AULA
Incorporações imobiliárias
– Natureza das incorporações imobiliárias
– Negócios de incorporação imobiliária
– Escritura de incorporação imobiliária
Patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias
– Legislação: Lei 10.931/04
– Instituição do patrimônio de afetação
– Problemas práticos e tributários
Texto: “O que muda com o patrimônio de afetação”
O patrimônio da afetação é um instrumento sistematizado no início do mês
de agosto de 2004, quando o Presidente da República sancionou um conjunto
de medidas intituladas “pacote da construção”, cujo objetivo é o incentivo ao
mercado imobiliário, sendo estimado um crescimento da ordem de 4% a 8% no
próximo ano.
Dentre as medidas anunciadas, destacam-se aquelas que sinalizam boas perspectivas às empresas, através de linhas de créditos mais acessíveis e redução da carga
tributária, e ao adquirente das unidades, que passará a contar com maiores garantias
de recebimento de seu imóvel.
FGV DIREITO RIO 77
direito de propriedade
Dentre estas garantias está o patrimônio de afetação, que consiste na adoção de
um patrimônio próprio para cada empreendimento, que passará a ter a sua própria
contabilidade, separada das operações da incorporada/construtora, o que confere
segurança aos adquirentes quanto à destinação dos recursos aplicados na obra.
Esta medida se torna relevante para evitar o que o mercado apelidou de “efeito
bicicleta” ou “pedalada”, que significa a situação das empresas em dificuldade econômica que desviam recursos de um novo empreendimento para um anterior e assim
sucessivamente, formando um ciclo vicioso que tantos prejuízos já causou no passado, ainda vivos na memória recente do país.
Com a nova regra, todas as dívidas, de natureza tributária, trabalhista e junto a
instituições financeiras, ficam restritas ao empreendimento em construção, não tendo qualquer relação com outros compromissos e dívidas assumidas pela empresa.
Dessa forma, na hipótese de ocorrer falência da empresa construtora/incorporadora, os compradores poderão dar continuidade à obra, contratando outra empresa
no lugar da falida, configurando o objetivo de garantir ao consumidor a entrega de
imóvel comprado na planta.
Em decorrência dos casos notórios que macularam o mercado no passado, cogitou-se na criação de empresas específicas para alguns empreendimentos, denominadas SPE, ou Sociedade de Propósito Específico, o que não se constitui na melhor
opção, uma vez não haver garantir de um possível desvio de recursos.
No caso da figura do patrimônio de afetação, que é de uso facultativo, existem
maiores garantias aos mutuários, pois prevê a existência de uma comissão de representantes desde o início da obra, o que dificultará a ocorrência de desvios, mesmo
porque o patrimônio do incorporador irá responder pelo empreendimento objeto
da afetação.
Na verdade, o que a Lei 10.931/94 fez não foi instituir o patrimônio de afetação,
mas regulamentá-lo, pois sua previsão veio com a Medida Provisória 2.221, de setembro de 2004, embora de forma imprecisa, que não surtiu os efeitos desejados.
O que se espera, de mais importante como efeito prático, e que virá a repercutir
positivamente na economia, é que este instrumento, ao gerar maior segurança aos
contratos, resultará na diminuição dos juros, pois estes são diretamente ligados ao
risco da transação, que irá reduzir.”33
CASO GERADOR
Histórico do processo xxxx, movido pelo escritório yyy contra a Encol Incorporadora:
HISTÓRICO DO PROCESSO ENCOL
O terreno
Na data de 07 de junho de 1993, CLÁUDIO MACÁRIO CONSTRUTORA
LTDA. e a ENCOL S/A ENGENHARIA, COMÉRCIO E INDÚSTRIA celebraram
http://www.precisao.eng.br/
fmnresp/afeta.htm.
33
FGV DIREITO RIO 78
direito de propriedade
três escrituras públicas de promessa de compra e venda dos imóveis constituídos por
3 frações de 1/7 do lote 04 do PA 27.233, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, onde,
construir-se-iam os projetos arquitetônicos previamente aprovados de prédios residenciais multifamiliares, cabendo à empresa permutante dos terrenos 68 (sessenta e oito)
do total das 264 unidades previstas para cada um dos prédios, n’um total de 204 apartamentos, dos 792 (setecentos e noventa e dois) que integram os três prédios a serem
construídos – SAN FILIPO e VILLA BORGHESE (BLOCO I Ed. SAN MARCO e
BLOCO II Ed. SAN MICHEL).
PROMESSAS DE VENDA NÃO REGISTRADAS
Como praxe da empresa, em todos os seus empreendimentos, a ENCOL não
registrava memoriais de incorporação embora protocolasse no cartório pedido a ele
referente, isso fazendo no intuito de conseguir prometer diferentes datas de entrega
e até prometer vender mais apartamentos do que efetivamente existentes, esquema
denunciado pelos jornais, que funcionava como overbooking para desistências e
retomadas de unidades no curso da obra, podendo assim operar sucessivas transferências de titularidade em prejuízo dos cofres públicos.
SONHO DESFEITO
Com a paralisação das obras, contados os cobres e feitas as contas, os compradores tinham entregue à Encol 27 milhões e os engenheiros da própria diziam que
a construção continha pouco mais do que a metade desse valor.
CAUTELA DOS ADQUIRENTES
Mais de uma centena de adquirentes lesados requereram a averbação do contrato particular de promessa de compra e venda da sua unidade perante o cartório
do Registro de Imóveis, com o intuito de conferir direito real oponível a terceiros,
nos termos do Art. 35, § 4º da Lei de Condomínio e Incorporações nº 4591/64.
O prazo avençado com o permutante do terreno para que a ENCOL – promissária
compradora – alcançasse o adim-plemento de sua obrigação de fazer foi o de 50
(cinqüenta) meses, contados daquela data (07/06/93). ou seja, até 07 de agosto de
1997, quando já estavam há muito abandonadas as obras.
PERMUTANTE RETOMA POSSE
Vencido o prazo sem que a ENCOL lograsse cumprir com a sua obrigação
de fazer, entregando para a permutante, prontas e acabadas com seus respectivos
“habite-se”, as unidades representativas do preço, e em meio ao notório quadro de
insolvência da empresa, estando as construções totalmente paralisadas, inclusive
com o abandono dos canteiros de obras, cuidou a permutante de obter o socorro
da tutela jurisdicional, ingressando na via judiciária com ação de procedimento
ordinário pleiteando a rescisão dos negócios jurídicos celebrados com a ENCOL
e reintegração na posse dos imóveis, além das perdas e danos decorrentes do descumprimento das obrigações assumidas pela ENCOL.
FGV DIREITO RIO 79
direito de propriedade
JUIZ RESGUARDA ADQUIRENTES
A mencionada ação de procedimento ordinário foi distribuída para a 34ª
Vara Cível da Capital do Rio de Janeiro, processo registrado sob o número
97.001.116940-8, tendo a sua autora CLÁUDIO MACÁRIO CONSTRUTORA LTDA, na data de 17 de outu-bro de 1997, obtido daquele MM. Juízo Tutela
Antecipada, no sentido de ver-se reintegrada na posse do imóvel compromissado
à ENCOL S/A ENGENHARIA, COMÉRCIO E INDÚSTRIA, além de rescisão
provisória do contratado.
ENCOL EVITA CITAÇÃO E PEDE CONCORDATA
A partir de então, respeitando o teor da referida decisão de Tutela Antecipada
que ressalvou expressamente o respeito aos direitos dos adquirentes das demais unidades comercializadas pela ENCOL, foram estabelecidas diversas, longas e exaustivas tratativas entre todos os envolvidos, com o objetivo de virem a encontrar uma
solução para o impasse que fosse conveniente aos interesses em conflito.
Das tão extensas tratativas, restou a impossibilidade de virem os adquirentes e a
permutante conciliar as suas respectivas vontades e interesses com a ENCOL S/A
ENGENHARIA, COMÉRCIO E INDÚSTRIA, entendendo aqueles serem completamente descabidas as exigências desta, feitas por quem recusava receber citação.
JUIZ CONDENA MÁ-FÉ
Aconteceu então, que o MM Juízo da 34ª Vara Cível da Capital do Rio de Janeiro, na data de 14 de maio de 1998, proferiu sentença de mérito, publicada na
imprensa oficial do dia 19 de maio de 1998, dando por rescindidas as três promessas de compra e venda celebradas, consolidando a reintegração de posse antecipada
à permutante e condenando a ré a compor em favor daquela as perdas e danos
decorrentes da sua inadimplência.
TRIBUNAL CONFIRMA SENTENÇA
A ENCOL apresentou apelação (nº 98.001.07409), vendo então confirmada
a sentença pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em acórdão que teve como
Relatora a Des. Maria Henriqueta Lobo, da Décima Quarta Câmara Cível.
ENCOL INSISTE COM RECURSO ESPECIAL
Não satisfeita, a Encol, concordatária e na iminência do pagamento da 1ª parcela, apresentou recurso especial, no único e exclusivo intuito de evitar o trânsito em
julgado da decisão e amarrar a si o negócio já desfeito, e que não mais a legitima
a figurar como incorporadora dos terrenos em que se assentam os prédios que não
completou.
ADQUIRENTES ORGANIZAM COMISSÃO, CONTRATAM RECUPERAÇÃO E CONTINUAÇÃO DA CONSTRUÇÃO
Levando em consideração que, com o passar do tempo, maior será o agravamento dos prejuízos impostos pela ENCOL à permutante do terreno e ao conjunto dos
FGV DIREITO RIO 80
direito de propriedade
adquirentes das diversas unidades de apartamentos a serem construídos, notadamente face aos fatos, entre outros, de haverem sido as incorporações promovidas
de forma ilícita, sem observância das imperativas disposições da Lei específica, sem
a prévia averbação do Memorial de Incorporação nem a outorga dos competentes
contratos relativos às comercializadas frações de terreno, sem se falar que os impostos incidentes sobre os imóveis não foram pagos, tampouco as contas de água
e luz foram honradas, fato que determinou cortes e desligamentos, e considerando
que as benfeitorias realizadas estão relegadas ao abandono e sujeitas às intempéries,
RESOLVERAM adquirentes e a permutante do terreno, no objetivo de melhor
ajustar os seus recíprocos direitos e interesses, além dos da coletividade, em razão
do intenso interesse social em jogo, primeiro transacionar, para, na forma do artigo
1025 e seguintes do Código Civil Brasileiro, prevenir qualquer litígio que entre eles
pudesse se estabelecer e contratar promessa de compra e venda, onde a permutante
dos terrenos respeita e mantém o objeto e a posição que cada um dos adquirentes
deteria para com a ENCOL, caso esta houvesse concluído os prédios e entregue,
prontas e acabadas com os respectivos “habite-se”, as unidades habitacionais que
com cada um deles foi compromissada.
Tal ajuste, entretanto, só se aperfeiçoará com o trânsito em julgado da decisão
que restitui à permutante a titularidade dos imóveis, condição suspensiva, posto
que a eficácia do negócio subordina-se à definitiva confirmação pelas instâncias superiores, da sentença proferida em primeira instância pelo MM. Juízo da 34ª Vara
Cível da Capital do Rio de Janeiro, na já mencionada lide de rescisão do contrato
de permuta.
ADQUIRENTES CONSEGUEM ASSISTÊNCIA
Exibindo as escrituras, o 3º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, deferiu assistência litisconsorcial para ingresso dos adquirentes no processo movido pela permutante para rescisão dos contratos com a Encol, aceitando-se nos autos as suas
razões, que ressaltaram a inutilidade do recurso apresentado pela concordatária,
cuja má-fé fora proclamada pela sentença e confirmada pelo Tribunal.
ENCOL VAI À FALÊNCIA
Ocorrendo a decretação da falência antes de decidida a admissibilidade do recurso pelo 3º Vice-Presidente do Tribunal, expediu-se carta precatória à comarca
de Goiânia-GO, para que o síndico seja intimado à regularização da representação
da massa falida nos autos, a fim de que seja dado prosseguimento ao feito, como
de direito.
CONTAGEM REGRESSIVA
Com o fim do recesso do Tribunal de Justiça, começa a contagem regressiva
para a solução final do processo que libertará os três prédios das garras da ENCOL.
Lembro a todos que, no momento, o processo está aos cuidados do Dr. Samy
Glanz, 3º Vice-Presidente do Tribunal de Justiça, a quem caberá dizer se o recurso
da ENCOL tem ou não condições de prosseguir a exame do Superior Tribunal
FGV DIREITO RIO 81
direito de propriedade
de Justiça – STJ, em Brasília. Por óbvio, não trabalhamos única e exclusivamente
com uma decisão favorável, que acabe logo com esse absurdo protelar do desfecho,
mas é bom esclarecer que, se o Sr. Desembargador concluir pelo preenchimento
de todas as formalidades legais, NÃO HÁ AGRAVO CONTRA O DESPACHO
QUE ADMITIR O RECURSO ESPECIAL DA ENCOL! Em outras palavras, se
o recurso tiver seu seguimento negado, a ENCOL pode ainda levar o caso ao STJ,
mas, se o recurso for admitido, não há como impedir que siga seu curso, passando
a questão diretamente ao Relator sorteado no STJ. Pensando nisso, resolvemos estudar a possibilidade de mais uma vez denunciar os abusos cometidos pelos comissários da concordata e síndicos na administração da massa falida, pois é evidente
a manha de quem sabe que não vai construir nada, mas insiste em se amarrar ao
negócio frustrado por sua própria culpa, na tentativa de auferir lucros, quando
deve amargar indenização pelos danos causados às suas dezenas de milhares de vítimas em todo o país. O derrame é tão grande e envolve tantas e tão altas esferas de
governo que a questão balança a soberania nacional, não se podendo admitir que
os assaltantes fujam pela porta dos fundos de Brasília. Não importa quantos anos
o Sr. Pedro Paulo vai ficar na cadeia, mas onde é que foi parar tanto dinheiro, num
mundo inteiramente informatizado em transações financeiras desse porte. Se foi
possível rastrear o PC, por que não o Pedro Paulo? Reconheçam-se as dificuldades
que o MP Federal teve para reunir informações necessárias ao recente ajuizamento,
em Brasília, da ação criminal que finalmente quebrará o sigilo bancário de todos
os envolvidos no escândalo. Também no começo de agosto, com o fim do recesso
parlamentar, está marcado para acontecer uma série de depoimentos sobre o caso
ENCOL, ainda não confirmados, mas que incluem juiz, síndico, comissário, advogados, ANCE, etc. Aguardem!
De que modo podem os dispositivos da Lei 10.931/04 auxiliar os adquirentes?
Para as instituições financeiras, o novo regime legal é vantajoso?
FGV DIREITO RIO 82
direito de propriedade
AULAs 16 e 17: CONDOMÍNIO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Condomínio edilício. Administração dos conflitos condominiais. Órgãos condominiais.
LEITURA OBRIGATÓRIA
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. 4, cap. 53.
LEITURA COMPLEMENTAR
AVVAD, Pedro. Condomínio e incorporações no Novo Código Civil: conclusões e
questões polêmicas (em anexo, ao final do livro).
ROTEIRO DE AULA
Condomínio comum ou voluntário
Conceito: Exercício, por mais de uma pessoa, em frações inicialmente ideais,
dos direitos inerentes à propriedade.
Origem: pode ser incidente ou convencional, ordinário ou forçado.
Direitos dos condôminos
– Cada um pode usar a coisa, de modo a não incompatibilizar a indivisão.
– Cada um pode alhear a sua parte, ou gravá-la, respeitada a preferência.
– Reivindicar a coisa de terceiro.
Deveres dos condôminos
– Responder pelos frutos auferidos.
– Não modificar a coisa.
– Não poder dar uso e gozo da coisa para estranho sem o consentimento dos
demais.
– Responder pelos custos e dívidas comuns, presumivelmente de acordo com
sua cota parte.
– Pode-se optar por escolha de administrador para o condomínio.
FGV DIREITO RIO 83
direito de propriedade
Condomínio decorrente da separação dos bens: art. 1327: há condomínio
quanto aos muros, cercas...
Extinção do condomínio comum
– Art. 1320. O destino natural de qualquer bem é a divisão.
– Art. 1322. Extinção pela alheação.
Condomínio edilício
Condomínio do CC e da Lei nº 4.591/64 (edilício, art. 1). Revogação desta lei
pelo CC?
–
–
–
–
Áreas de uso exclusivo e áreas de uso comum.
Síndico e convenção condominial.
Cota condominial.
Deveres dos condôminos.
Aplicação imediata dos dispositivos do Código Civil, a despeito do disposto na
convenção de condomínio.
Administração de garagem e cobertura.
Cobertura: área comum ou exclusiva?
Regimes jurídicos para a garagem:
a) área comum indivisa;
b) área comum indivisa com ocupação determinada na convenção;
c) vaga na escritura, acessória da unidade;
d) vaga autônoma.
CASO GERADOR
Vejamos o exemplo dado por Américo Isidoro Angélico:34
“Imaginemos a hipótese de um condômino dado ao exacerbado alcoolismo, freqüentemente é encontrado nas escadas do condomínio em desalinho, bem como
desfalecido nos elevadores, expelindo vômito e dejetos. Ante tal fato, o condomínio,
através de seu síndico, convoca uma Assembléia Geral Extraordinária (artigo 1.354,
do NCC), em cuja pauta convocativa destina a aplicação do constrangimento de até
dez vezes a taxa condominial ao proprietário da ‘unidade 150’, ante reiterado comportamento anti-social, gerando incompatibilidade de convivência com a sociedade
condominial já desgastada em decorrência de tal comportamento.
http://www.intelligentiajuridica.com.br/v3/artigo_visualizar.php?id=617.
34
FGV DIREITO RIO 84
direito de propriedade
A assembléia por 3/4 (três quartos) de seus condôminos restantes (artigo 1.337
do NCC), excluindo assim o condômino do ‘apartamento 150’, que convocado e
presente à assembléia defendeu-se alegando que haveria de mudar o seu comportamento, aplicou no ato assemblear a multa com fundamento no artigo 1.337, parágrafo único, de dez vezes o quantum da contribuição condominial (smj., o quorum
exigido na Nova Lei Civil, nas hipóteses: reiteradamente inadimplente, infrator e
anti-social é simples, restando entender pela aplicação das multas com muita facilidade pelo condomínio).
Posteriormente, foi paga a multa, contudo, o condômino prosseguiu em seu exacerbado alcoolismo, e até mesmo agudou este comportamento anti-social (codificação – direito de vizinhança, artigos 1.277 e 1.279, do NCC). O condomínio ingressa
com pedido de tutela jurisdicional antecipada, colimando a exclusão do condômino
do condomínio, trazendo inequívoca prova dos fatos ocorridos, demonstrando a
verossimilhança das alegações e preenchendo todos os demais pressupostos legais
exigidos (artigo 273, do CPC), requerendo a exclusão do condômino daquele condomínio.”
Art. 1337: a punição após ulterior deliberação da assembléia: possibilidade de
expulsão do condômino? Como interpretar o dispositivo? É mesmo possível expulsar condômino anti-social?
FGV DIREITO RIO 85
direito de propriedade
AULA 18: DEMAIS DIREITOS REAIS
EMENTÁRIO DE TEMAS
Demais direitos reais. Teoria do fracionamento e crítica. Tipicidade dos Direitos Reais. Multipropriedade. Direitos reais extintos: enfiteuse e renda. A profusão
das enfiteuses na vida prática e a regra de transição do art. 2038.
LEITURA OBRIGATÓRIA
MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios de direito civil contemporâneo: O
princípio da tipicidade dos direitos reais.
ROTEIRO DE AULA
Características dos direitos reais.
Polêmica Realismo vs. Personalismo:
Direito real – caráter externo – significa um poder exercido sobre uma coisa.
Esta conclusão é identificada com o trabalho dos glosadores medievais.
Crítica personalista – burguesia européia – o direito real não pode ser uma relação entre pessoa e coisa, pois só existem relações entre pessoas. Principal figura:
Planiol.
O personalismo e a idéia de obrigação passiva universal justificam a apropriação
dos direitos reais pelos burgueses. A relação entre a pessoa e a coisa pode trazer inferências religiosas; se a propriedade e demais direitos reais forem como o crédito,
o burguês poderá ter acesso a estes direitos. Lembrar que privilégios reais (talha,
corvéia, etc.) eram direitos reais.
Crítica ao realismo: impossibilidade de relação entre pessoa e coisa; há direitos
reais onde a inferência da pessoa sobre a cisa é mínima, como no caso das rendas.
Crítica ao personalismo: a obrigação passiva universal nada mais é que o neminem laedere e vale também para qualquer tipo de direito. Carvalho de Mendonça
diz que a obrigação passiva universal não é obrigação, pois não é patrimonial, não
podendo ser lançada no passivo.
Diferença para os direitos obrigacionais: métodos de explicação
M. I. Carvalho de Mendonça: poder sobre a coisa x poder sobre a pessoa.
Oliveira Ascensão: o direito real é absoluto, por prescindir de uma relação jurídica prévia; ele prevalece por si só.
Relevância econômica das coisas e dos negócios (art. 170, CF).
FGV DIREITO RIO 86
direito de propriedade
Figuras intermédias: Ônus reais: rendas...
Obrigação propter rem: lembrar polêmica Santiago Dantas e C. Mário sobre a
natureza da obrigação.
Execução específica e tutela específica da obrigação: ius ad rem, segundo Venosa, como a adjudicação compulsória e a imissão na posse.
Proteção erga omnes de obrigações: preferência na Lei 8.245.
Penhor de créditos: art. 789 e seguintes do CC.
Olympio Costa Jr. e Diez-Picazo: Propriedade como situação jurídica, capaz de
gerar outras relações reais.
Propriedade como unidade fundamental dos direitos reais: avançar noção de
propriedade como somatório de poderes sobre uma coisa – CC, art. 524, e art.
1229, Projeto.
– Oponibilidade perante terceiros.
– Seqüela ou ambulatoriedade: o direito real “persegue” a coisa onde quer que
ela esteja. Exemplo: furto, hipoteca, venda de imóvel sobre o qual pesa um usufruto.
– Preferência: falar dos direitos reais de garantia. S. Lopes: a preferência também diz respeito à predominância de um direito real constituído anteriormente,
sobre um constituído posteriormente.
– Abandono: o titular de um direito real pode dele abrir mão, em geral, sem
prestar contas a ninguém (lembrar regime de proteção do patrimônio mínimo:
pródigo, doação universal e inoficiosa).
– Perpetuidade: emborca com exceções, os direitos reais não são consumíveis
pelo exercício, protraindo-se no tempo.
– Titularidade: para cada direito real, deve haver apenas um titular (ou núcleo
de titularidade), que deve ser o tempo todo determinado. A estrutura da titularidade representa como, em uma sociedade, é repartida a riqueza. Falar de exceção:
multipropriedade (time sharing).
– Tipicidade ou numerus clausus: os direitos reais não podem ser criados por
via negocial, devendo estar previstos em lei. Falar do direito romano, da gewere,
dos códigos. Empecilho, no caso de direitos reais sobre imóveis (S. Rodrigues): o
registro. Leis extravagantes prevêem direitos reais diferentes: Estatuto da Cidade
(superfície), Lei 6.766 (direito real de preferência, no compromisso de compra e
venda), por exemplo. Falar do sistema espanhol.
Classificação dos direitos reais.
Direitos reais sobre coisa própria: Propriedade.
Direitos reais sobre coisa alheia:
De uso, gozo e fruição: usufruto; uso; habitação; renda constituída sobre imóvel; servidão; superfície.
De garantia: penhor; hipoteca; anticrese.
De aquisição: Direito de preferência na promessa de compra e venda.
FGV DIREITO RIO 87
direito de propriedade
São todos desmembramentos do direito de propriedade (ou melhor, dos seus
poderes).
Alienação fiduciária: não cria “novo” direito real, mas sim um novo contrato
legitimador de posse imediata.
Enfiteuse e renda
– Definição legal.
– Ultratividade.
– Art. 2038: aplicabilidade da regra de transição e direito intertemporal.
CASO GERADOR
O instituto da enfiteuse e a atual administração
Prof. Marcos Coimbra
Artigo publicado em set./2003 no jornal Ombro a Ombro
O líder do governo da atual administração Lula no Senado, Aloizio Mercadante, acaba de pronunciar-se contrário ao fim do instituto da enfiteuse no Brasil, em
nome do “interesse econômico da União” e da “necessidade de se manter elevados
superávits primários para garantir a confiança na capacidade de o governo honrar
os seus compromissos impede que a União abra mão, neste momento, dos recursos
arrecadados com as receitas patrimoniais”. Na melhor tradição monetarista, S. Exª
subordina fins a meios. De início, a atual administração Lula está cumprindo seus
compromissos, engajadamente, com os banqueiros e as multinacionais, mas não
com os trabalhadores, a exemplo da Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco Brasil (PREVI), onde os beneficiários, que teriam direito ao reajuste de 30,05%,
em junho do corrente ano, obtiveram apenas 18%, a pretexto de se evitar déficit
pelo terceiro ano consecutivo. S. Exª conhece muito bem os prejuízos ocasionados
à PREVI em função de sua utilização no processo de privatização selvagem de estatais brasileiras, como no crime de lesa pátria da “doação” da Companhia Vale do
Rio Doce, por influência de políticos com poder na administração anterior, mesmo
sendo de “oposição”. Para diminuir o déficit nominal do Tesouro não é preciso a utilização das receitas oriundas da enfiteuse, mas sim diminuir o extorsivo pagamento
de juros exorbitantes da dívida pública, da corrupção desenfreada e do empreguismo
utilizado pela tomada de assalto pelas políticas clientelistas da nova administração,
atingindo até o INCA. As “reformas previdenciária e tributária” são outras demonstrações de “ajustes fiscais”, que provocarão perdas irreparáveis à classe trabalhadora,
em especial à classe média, para alegria dos rentistas e do FMI.
A outra linha de argumentação exposta por S. Exª, quanto à propriedade de terras brasileiras, leva ao raciocínio absurdo de que então não existe mais propriedade
privada no Brasil. Na realidade, tudo deveria pertencer à União. Tal, contudo, não
FGV DIREITO RIO 88
direito de propriedade
ocorre. Por que só as chamadas “terras da Marinha”? De fato, quem recolhe o foro e o
laudêmio é o Serviço de Patrimônio da União, subordinado ao Ministério do Planejamento, atualmente com suas direções regionais entregues, no loteamento de cargos
para garantir a maioria no Congresso, a um partido político, com grande influência
religiosa, sempre presente em todos os governos, cabendo à Marinha, caso receba,
irrisória fatia da arrecadação. Sob o ponto de vista da justiça e sob o aspecto ético,
não há razão para a manutenção no anacrônico instituto, de origem medieval, capaz
de permitir até à família imperial brasileira, em Petrópolis, arrecadação permanente,
bem como a outras instituições privadas e religiosas.
Não conseguimos descobrir a importância estratégica na segurança e soberania
nacionais, em pleno século XXI, na era dos mísseis intercontinentais, de áreas costeiras. Não há porque serem de propriedade da União, por esta razão. É um argumento
sem fundamento. Quanto à preservação ecológica e do meio ambiente, as condições
atuais das citadas regiões como, por exemplo, a triste situação da baía de Guanabara
mostra, à saciedade, o abandono a que estão submetidas, “sob a proteção da União”.
A hipótese, então, destes “terrenos para instalação de unidades militares” está fora
da realidade, sabendo-se que a prioridade um da estratégia nacional é a de ocupar a
Amazônia, não havendo sentido na manutenção de organizações militares na costa,
pois as existentes, por falta de utilidade, estão sendo transformadas em museus, centros culturais e outras.
Os títulos fraudulentos e os aterros criminosos existem, apesar de serem de propriedade da União, e vão continuar existir, sejam ou não de sua propriedade. A
solução está no cumprimento da legislação vigente para qualquer parte do território
nacional. Portanto, não há justificativa racional para a manutenção do instituto da
enfiteuse no Brasil.
Professor Titular de Economia junto à Universidade Candido Mendes, Professor
na UERJ e Conselheiro da ESG.”35
Levando-se em consideração que os sucessores da Família Real já recebem foro
há mais de um século, seria possível a extinção do domínio direto, por alegação de
não cumprir a função social da propriedade?
Obs. Instruções para o role-play da compra de apartamentos.
http://www.brasilsoberano.
com.br/artigos/Anteriores/
oinstitutodaenfiteuse.htm.
35
FGV DIREITO RIO 89
direito de propriedade
AULA 19: FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO
Ementário de temas
Financiamento imobiliário. SFH e SFI. Histórico e formas de financiamento. Securitização do mercado imobiliário. Consórcio de imóveis para fins residenciais.
Leitura obrigatória
CHALHOUB, Melhim. Incorporação imobiliária, cap. 7.
Leitura complementar
CARNEIRO, Dionísio Dias. Financiamento à habitação e instabilidade econômica: experiências passadas, desafios e propostas para a ação futura.
Roteiro de aula.
Quadro comparativo do financiamento imobiliário
Aumento do preço do imóvel
PROGRAMA DE ARRENDAMENTO
RESIDENCIAL
SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO SISTEMA FINANCEIRO DE IMÓVEIS
LEASING
Lei 10.188/01
MÚTUO C/ HIPOTECA
Lei 4.380/64 e outras
MÚTUO C/ ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
Lei 9.514/97
Vicissitudes das modalidades de financiamento
– Critérios de correção das prestações.
– Correção do saldo devedor.
– Execução no Dec. 70/66.
CASO GERADOR
Simulações de compra de apartamentos (roleplay).
FGV DIREITO RIO 90
direito de propriedade
Aula 20: Alienação fiduciária
EMENTÁRIO DE TEMAS
Alienação fiduciária de móveis e imóveis. Compreensão do instituto. Comparação com hipoteca e penhor.Aspectos polêmicos da alienação fiduciária na aquisição
de bens. Proteção do alienante.
LEITURA OBRIGATÓRIA
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas, cap. 20.
LEITURA COMPLEMENTAR
COMPARATO, F.K. Função social dos bens de produção. Revista de Direito
Mercantil, n. 63.
ROTEIRO DE AULAS
Origens da alienação fiduciária no Direito Brasileiro
– Dec. 911/69.
– A propriedade fiduciária.
– A lei 9.514/97.
Aspectos processuais
–
–
–
–
Liminar.
Purga da mora.
Busca e apreensão.
Sentença.
CASO GERADOR.
A função social da propriedade dos bens de produção e a alienação fiduciária
“RECURSO ESPECIAL N° 128.048– lis (1997/0026362-2) RELATOR : MINISTRO ALUIR PASSARINHO JUNIOR – EMENTA: PROCESSUAL CIVIL.
RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BUSCA E APREENSÀO
FGV DIREITO RIO 91
direito de propriedade
MAQUNÁRIO AGRÍCOLK MEDIDA LIMINAR INDEFERIDA BEM NECESSÁRIO AO SUSTENTO DO DEVEDOR. DL N.91 1/69, ART. 30 1. .... II.
Merece tempero a concessão da medida liminar prevista no art. 3° do DecretoLei n. 922/69, quando se trate de bem necessário ao sustento do réu, caso do
maquinário agrícola fiduciariamente alienado. III. Recurso especial não conhecido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas,
Decide a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, rejeitada a preliminar, à
unanimidade, não conhecer do recurso, na forma o relatório e notas taquigráficas
constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante 46 presente julgado. Participaram do julgamento os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, Barros Monteiro, Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar.”
O que deve prevalecer: a necessidade de sustento do réu ou a proteção à propriedade e ao crédito?
FGV DIREITO RIO 92
direito de propriedade
AULA 21: HIPOTECA E PENHOR
EMENTÁRIO DE TEMAS
Princípios dos direitos reais de garantia. Hipoteca, penhor e alienação como
meios de financiamento de projetos. Corporate finance e project finance.
LEITURA OBRIGATÓRIA
COUTO E SILVA, Clóvis do. Hipoteca no direito comparado. In: FRADERA, Vera Jacob (Org.). O direito privado no pensamento de Clóvis do Couto
e Silva.
ROTEIRO DE AULA
Princípios dos direitos reais de garantia
Indivisibilidade (art. 1421);
Especificidade (art. 1424);
Vedação ao pacto comissório (art. 1428).
Penhor
Concepção tradicional.
Registro do penhor.
Deveres de credor e de devedor.
Hipoteca
Hipóteses do art. 1.473 do Código Civil.
Hipoteca no direito comparado: cédula de crédito hipotecário.
Corporate finance e project finance
Distinções.
Papel do penhor e hipoteca no project finance.
Penhor de futuros.
FGV DIREITO RIO 93
direito de propriedade
CASO GERADOR
É calculado erroneamente o valor de um imóvel financiado para fins de hipoteca. O mesmo é sub-avaliado e, em vez de ser cotado em 500.000, é cotado em
250.000. Pago o valor de 250.000, o adquirente pede o levantamento da hipoteca;
o Banco X S.A. recusa, alegando que os custos de construção foram revistos e, na
realidade, há ainda metade do valor a pagar. Quem tem razão?
FGV DIREITO RIO 94
direito de propriedade
AULAS 22 e 23: SUPERFÍCIE
Ementário de temas
Perspectivas de utilização urbanística. A superfície como modelo para uma revisão da propriedade.
LEITURA OBRIGATÓRIA
LIMA, Ricardo C. Pereira. O regime de superfície no Novo Código Civil.
LIMA, Henrique Viegas de. O direito de superfície como instrumento de ordenação
urbanística, conclusões.
ROTEIRO DE AULA
Superfície
Tudo isso por um “três quartos”? A frase, de uso cotidiano, encerra com precisão um dos graves problemas da realidade contemporânea urbana: o custo dos
terrenos. As famílias em geral passam muitos anos da sua vida pensando em adquirir um imóvel, e já vimos a série de dificuldades encontradas, tanto do ponto de
vista dos direitos reais quanto do ponto de vista contratual. Há também evidente
influência do custo dos terrenos na especulação imobiliária, na desordem urbana
e no refreio ao crescimento econômico. É necessário desatar o nó, que é muito
maior do que pensamos, pois nem sempre consideramos o custo ínsito à desordem
e à especulação imobiliária, que impulsiona sem direção o crescimento da cidade e
aumenta o custo de vida e os custos nos empreendimentos. Uma mercadoria não
é mais cara no shopping do que na loja de rua? Pense nisso em escala global. Mas
como baratear? Racionalizando o uso do solo. Quem pode fazê-lo? A resposta,
nesse caso, não é tão evidente.
Mas a introdução do direito de superfície no direito brasileiro deve ser considerada um caminho possível. É possível baratear a construção de imóveis por meio da
superfície? Ela consiste num desdobramento da propriedade, sendo que o dono do
terreno passa a ser uma pessoa, e o dono da construção ou plantação, outra.
A estrutura do direito de superfície
Em se tratando de direito de construir ou plantar sobre solo alheio, fica claro
que o direito de superfície representa exceção ao chamado princípio da acessão. O
direito de superfície pode então ser desmembrado em duas realidades: consistirá no
direito de utilizar o domínio útil do solo alheio, excluído o subsolo, e também resulFGV DIREITO RIO 95
direito de propriedade
tará na criação de uma propriedade superficiária, que terá por objeto a construção
ou plantação lançada ao solo alheio.36 O direito de superfície é, portanto, o direito
real sobre coisa alheia e também uma forma de criação de propriedade resolúvel
(art. 1.375). Portanto, para que se constituam os efeitos por ele criados, é vital a sua
consignação no Registro de Imóveis.
SUPERFÍCIE = REGISTRO DE PROPRIEDADE + ESCRITURA DE SUPERFÍCIE + REGISTRO DE SUPERFÍCIE.
Mas eu perco o que é meu?
Propriedade resolúvel? Trata-se de uma lógica básica do direito de superfície.
Terminado o prazo, a construção passa a ser de propriedade do dono do terreno,
que, salvo haja previsão em sentido contrário, nem mesmo é obrigado a indenizar
a perda do bem.37 Parece não ser vantajoso, mas a prática oriunda de países nos
quais a superfície é difundida mostra bem o contrário. Na realidade, a superfície
é mais barata por isso. O preço de um bem não-perecível como o solo varia de
acordo com o tempo que se será dono dele. Assim, se alguém for comprar um
apartamento por 100 anos, pagará mais barato do que se fosse comprar a fração
ideal do terreno para sempre.
Mas por que só a fração é para sempre? Porque, de acordo com as modernas
técnicas de construção, os prédios têm vida útil limitada. Além disso, se o prazo for
longo, por exemplo, 100 anos, não faria muita diferença?
Duplicidade de regimes
O instituto não foi introduzido no direito brasileiro pelo Código de 2002. A
previsão inicial do direito de superfície deu-se no chamado Estatuto da Cidade,
Lei nº 10.257/01. O direito de superfície encontra-se regulado dos artigos 21 e
seguintes deste diploma legal, que tem por objetivo servir de instrumento para a
criação de políticas urbanas nas cidades brasileiras.
Ocorre que esta superposição de regimes legais é problemática. Alguns, por
exemplo, poderiam afirmar que a entrada em vigor do Código serve de meio de revogação dos dispositivos do Estatuto da Cidade atinentes ao direito de superfície.
Os comentadores do Estatuto fazem entender que a superfície urbana será regrada
pela Lei especial, enquanto a rural será normatizada pelo Código Civil. Por exemplo, vejamos a opinião de Maria Sylvia di Pietro:
“Uma primeira conclusão, portanto, é no sentido de que o direito de superfície,
tal como disciplinado nessa lei, não abrange imóveis rurais. Já no projeto de CC a
extensão do instituto é maior, por que não distingue propriedade urbana ou rural.
O artigo 1368 estabelece que o proprietário pode conceder a outrem o direito de
construir ou de plantar em seu terreno por tempo determinado, mediante escritura
pública devidamente inscrita no registro de imóveis. Uma vez promulgado o novo
“Art. 1.369. O proprietário
pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar
em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura
pública devidamente registrada no Cartório de Registro de
Imóveis.
Parágrafo único. O direito de
superfície não autoriza obra no
subsolo, salvo se for inerente ao
objeto da concessão.”
36
37
CC, art. 1375.
FGV DIREITO RIO 96
direito de propriedade
CC, e entrando em vigor, o direito de superfície poderá ser indistintamente utilizado
pelo proprietário rural ou urbano”.38
Já Ricardo Lira, no texto obrigatório, defende visão distinta, corroborada pelo
enunciado 93 da 1ª Jornadas de Direito Civil, do CJF.39
Efetividade como meio de ordenação urbana: crítica
Do ponto de vista dos formuladores, o direito de superfície surge no estatuto
da cidade, de modo a “democratizar o acesso à terra urbana e dinamizar o mercado imobiliário, permitindo a separação do direito de construir do direito de
propriedade, barateando o processo de construção civil e fomentando a produção
habitacional”.40 A superfície, com efeito, facilita o adequado cumprimento da idéia
de função social da propriedade, porque elemento dinamizador da ocupação do
solo urbano, evitando, em muitos casos, o ônus excessivo decorrente da compra do
terreno e possibilitando a renovação urbanística, posto que sempre temporária (art.
1374, CC; Estatuto da Cidade, art. 21). Mas será que tem sido assim?
Superfície por cisão: posições doutrinárias
Será possível a constituição de superfície por cisão, uma vez que o art. 1369
menciona o terreno como objeto da superfície, o que poderia ser interpretado
como a possibilidade de constituição somente sobre terra nua?41 Ricardo Lira entende possível a superfície constituída por cisão, de modo que o proprietário anterior torna-se superficiário, alienando-se a propriedade do terreno para terceiro, ou
mesmo a operação ocorrendo inversamente.42
CASO GERADOR
Direito de superfície. In:
DALLARI, Adilson de Abreu;
FERRAZ, Sérgio Ferraz (Orgs.).
Estatuto da cidade. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 181
38
Vítimas da Encol esperam 12 anos
Invadido pelo matagal e eventualmente por ratazanas, o esqueleto de cimento
aparente na rua Corinto é a face exposta de um trauma que há mais de uma década
atinge pelo menos 2.500 famílias da cidade de São Paulo: a falência da construtora
Encol.
As ruínas são do Village Park, um prédio que seria erguido ao lado de um dos
portões da USP (Universidade de São Paulo), no Butantã, na zona oeste. Fazem parte de uma história de decepção e esperança, contada por Suhaila Shibli, professora
de física da USP que tem um sonho: ir a pé de casa para o trabalho.
Ela comprou um apartamento no edifício Village Park ainda na planta, em 1994.
Uniu esforços com os familiares e em apenas dois anos quitou as prestações, que
totalizavam cerca de R$ 100 mil. Quando já se preparava para a mudança, a obra
parou. “Inicialmente, achei que era um problema menor e mal dei atenção. Mas,
“93 – Art. 1.369: As normas
previstas no Código Civil sobre
direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto
da Cidade (Lei n. 10.257/2001)
por ser instrumento de política
de desenvolvimento urbano.”
39
OSÓRIO, Letícia Marques.
Direito de superfície. In:
______. (Org.). Estatuto da
cidade e reforma urbana. Porto
Alegre: Sérgio Fabris.
40
LIMA, Viegas de. Op. cit., p.
379.
41
O direito de superfície..., p.
543.
42
FGV DIREITO RIO 97
direito de propriedade
no ano seguinte [em 1997], a Encol conseguiu a concordata na Justiça. E então eu
percebi que poderia me dar mal”.
Foi o que aconteceu com Suhaila e outros 59 condôminos do Village Park. Em
1999, a Encol faliu. E, desde então, os dez andares erguidos dos 15 previstos começaram a ser invadidos pelo mato.
Quem tinha apostado o seu futuro nesses apartamentos teve de ir morar de aluguel ou com familiares. Alguns, sem dinheiro, tiveram o imóvel leiloado.
Suhaila e outros 29 ainda mantêm a esperança de viver ao lado da floresta da
USP. Após ganharem na Justiça o direito pelo prédio e de formarem uma associação
de moradores, buscam construtoras interessadas em retomar a obra. “Já gastei mais
que o dobro do valor inicial. Não vou desistir nunca”, afirma a professora.43
O direito de superfície poderia ser utilizado para resolver o problema dos prédios em ruína, permitindo a retomada das construções?
Superfície: Comparação dos regimes
Cessão do subsolo
Sempre prazo determinado
Estipulação de valor a ser pago ao concedente em caso de
transferência
Código Civil
não
sim
Estatuto da Cidade
sim
não
não
sim
Texto: “Locação built to suit”
Convergente com os avanços regulatórios e o esforço conjunto dos players da
indústria em dinamizar o mercado imobiliário, apresentamos mais uma modalidade
de investimento: Locações Built to Suit. Esta, apresenta-se como uma alternativa à
locações de imóveis urbanos, hoje legislada pela Lei das Locações (Lei 81245/91).
Trata-se de uma estrutura designada a um específico locatário onde o locador recebe
algumas garantias de que seu investimento terá o retorno pretendido. Tal mecanismo
possibilita que empresas não precisem adquirir imóveis próprios e imobilizarem alto
volume de seu capital, além de usufruírem de instalações desenvolvidas de acordo
com suas necessidades. Basicamente, a empresa interessada (“Locatária”) contrata os
serviços de um terceiro (“Locador”) para que este último: (i) adquira um determinado terreno; (ii) defina um projeto que atenda às necessidades da primeira; (iii) desenvolva e construa, caso seja uma empresa de construção civil, ou contrate um terceiro para tanto; e (iv) loque o empreendimento pronto por valor pré-definido. No
desenvolvimento de projetos sob a forma contratual built to suit, a Locatária pode
também fiscalizar a obra, garantindo que o projeto, sob o qual ela tem um comprometimento contratual de locação, seja desenvolvido de acordo com o projeto aprovado. O empreendimento em questão, diferentemente do convencional, é entregue
à locatária completamente pronto para ser ocupado (turn key contract), não sendo
necessário altos investimentos de readequação interna. Os contratos built to suit têm
um prazo entre 10 a 20 anos, dependendo da remuneração negociada, uma vez que
Disponível em: http://www.
vivianeamaral.com.br/noticia_vitimas.php.
43
FGV DIREITO RIO 98
direito de propriedade
os investimentos realizados pelo Locador devem ser amortizados e rentabilizados. A
eficácia contratual tem início na data de assinatura do contrato, ficando os fluxos de
recebimentos atrelados à entrega da obra. Em suma, a formatação contratual built to
suit tem por objetivo garantir ao Locador: (i) o retorno dos investimentos realizados
no projeto; e (ii) a remuneração pelo uso do imóvel. Neste sentido, esta relação preza
pela exigibilidade da permanência do Locatário bem como as previsibilidades e seguranças dos fluxos futuros. Em função dessas características, este tipo de contrato é
passível de securitização, permitindo que o investidor antecipe sua saída do negócio.
O processo de securitização de recebíveis imobiliários foi consolidado pela criação
dos CRI’s – Certificados de Recebíveis Imobiliários pela Lei 9.514/97. Com esta
regulamentação, sociedades por ações podem adquirir os créditos e, através de uma
securitizadora, emitir os CRI’s. Estes títulos são distribuídos à investidores e tem
como lastro o pagamento dos aluguéis. Os riscos quanto à previsibilidade dos fluxos
de receita são minimizados, uma vez que o contrato built to suit não busca apenas
remunerar o uso do imóvel, como a Lei das Locações, mas também amortizar os
investimentos efetuados na concretização do negócio. Frente a um cenário de rompimento de contrato por parte da Locatária, a esta cabe uma multa que, no mínimo,
refletirá a somatória dos valores restantes do contrato, garantindo assim o instrumento firmado e os fluxos esperados. O parágrafo único do art. 473 do Código Civil
(Lei 10.406/02) valida o conceito de que uma locação no formato built to suit só
poderá ser rescindida antes do prazo, pela Locatária, quando transcorrido o período
equivalente à natureza e ao vulto dos investimentos realizados pelo Locador.44
Pode haver, ou não, associação da locação built to suit à superfície. O que é mais
interessante?
Superfície associada ao planejamento tributário
Discussão do art. 1371 do Código Civil.
CASO GERADOR
É possível garantir um empréstimo em dinheiro com a constituição de uma
superfície?
CORDEIRO, Thiago Augusto
Cordeiro. Disponível em: http://
www.griffo.com.br/fundos/
pdf_imob/artigo_ago2_04.
pdf.
44
FGV DIREITO RIO 99
direito de propriedade
AULA 24: USUFRUTO E SERVIDÃO
Ementário de temas
Usufruto. Perspectivas tradicionais e utilização contemporânea. Usufrutos de
cotas e de ações. Servidão. Características e utilização. Usucapião de servidão.
LEITURA OBRIGATÓRIA
GOMES, Orlando. Direitos reais, cap. 26 e 27.
ROTEIRO DE AULA
Usufruto
O aproveitamento das utilidades de uma coisa por quem não é dono pode ser
exercido por efeito de relação contratual, como no arrendamento e no comodato,
em que o titular exerce o seu direito em nome do proprietário ou pode ser de direito próprio de ser exercido em nome do titular não-proprietário.45 Este direito que
se exerce em nome próprio sobre coisa alheia, e que resulta na faculdade de usá-la
e de gozá-la, recebe o nome de usufruto.
Diferentemente do Código Civil de 1916 (art. 713), o Código Civil de 2002
prescindiu de uma conceituação legal do usufruto. A lei anterior dispunha que
“constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades de frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”.
A principal característica do usufruto consiste no fato de ele ser sempre temporário. A razão da necessidade da fixação de prazo para esse direito real reside no
fato de que faculdades elementares que ele encerra – o uso da coisa e a percepção
dos frutos – são quase tão extensas quanto os do titular da coisa.46 Considerando-se
que o jus in re aliena no qual se constitui o usufruto não deve servir de meio para a
perda da propriedade, o que ocorreria na prática se este durasse para sempre (daí o
fim da previsão legal da enfiteuse), o artigo 1.410 do Código Civil prevê a duração
temporária do usufruto.
Além destas características, verifica-se que usufruto é direito limitado e não
exclusivo.47 Real e limitado porque abrange apenas os frutos e as utilidades de um
determinado bem ou patrimônio, nos limites do artigo 1.394 do Código Civil. E
ele não é exclusivo porque a exclusividade é um atributo específico da propriedade.
Melhor: o usufruto é o direito referido a uma coisa que implica sempre a existência
de um outro direito real sobre a mesma coisa, o qual se usufrui.
Como afirma Darcy Bessone48, historicamente o usufruto tem função alimentar.
Quase sempre é instituído para proporcionar meios de subsistência ao usufrutuário,
ALMEIDA, Lacerda de. Direito
das cousas, vol. I, p. 347.
45
MENDONÇA, M. I. Carvalho de.
Do usufruto, do uso e da habitação, p. 29.
46
CORDEIRO, Menezes. Direitos
reais, p. 649.
47
48
Direitos reais, p. 288.
FGV DIREITO RIO 100
direito de propriedade
muito embora a gratuidade não seja da sua essência. Todavia, alguns autores, como
Orlando Gomes49 e o próprio Darcy Bessone50, são especialmente radicais ao analisar tal caráter do direito, negando mesmo qualquer utilidade maior do usufruto na
contemporaneidade.
Por outro lado, alguns autores, como Manuel Inácio Carvalho de Mendonça51
e Marco Aurélio Viana52, entendem que é perfeitamente admissível a figura do
usufruto instituído a título oneroso. Não lhes parece em nada estranho o instituto,
bem como não parece a nós, por algumas razões que passamos a expender.
Em primeiro lugar, se o Código Civil admite a cessão onerosa do usufruto53,
no qual terceiro é legitimado no exercício dos direitos dele decorrentes, quem dirá
a constituição onerosa do usufruto. Em segundo lugar, comparando-se a redação
dos art. 1.412 e 1.414 do Código Civil, que tratam dos direitos reais de uso e de
habitação, verificamos que os referidos têm, efetivamente, caráter intuitu familiae.
O art. 1.412 exige, para o adequado exercício do direito de uso, que este seja feito
em atendimento das necessidades do “usuário e da sua família”. No art. 1414, o
titular do direito real de habitação pode simplesmente residir em uma casa “com
sua família”. Nada semelhante é encontrado no capítulo de usufruto no Código
Civil.
Servidão
Define-se servidão como o direito real constituído de um prédio em relação
ao outro, no qual se estabelece, em proveito deste, um serviço ou utilidade. Ao
primeiro se denomina prédio dominante, ao segundo, prédio serviente. Trata-se de
um direito de uso e gozo, ou fruição sobre coisa alheia, portanto, estabelecido de
um prédio em relação a outro
Tradicionalmente, são elencados alguns requisitos para que se tenha a constituição de uma servidão: devem existir dois prédios, ou seja, dois bens imóveis, para
que se tenha o surgimento de uma servidão. Não se nega, todavia, a possibilidade
do desmembramento de um bem imóvel em dois ser realizado concomitantemente
com a criação deste direito real: cuida-se da hipótese classicamente referida da servidão criada pelo pai de família que, ao dividir seu patrimônio, procede à criação
de servidões em favor de um e outro proprietário. Além disto, tradicionalmente se
afirma que os proprietários dos prédios devem ser distintos, excetuada a exceção
acima demonstrada. Se isto ocorrer, enquanto não for alienado um dos prédios, a
servidão permanecerá sem efeitos. Ocorre que a alienação necessária para que isto
ocorra não é a da propriedade, e sim a da posse. Se um proprietário de prédios
contíguos cria servidão de passagem de um para com outro, e loca dos dois, aquele
que alugou o prédio dominante poderá passar pelo interior do serviente. De qualquer modo, vale aguardar pela interpretação larga do dispositivo legal, que se refere
expressamente a dois proprietários.
Além disto, deve haver relação de serviço ou utilidade – não se pode falar em
servidões inúteis, na medida que sua constituição é negocial e as circunstâncias
negociais para a sua formação exigem seriedade dos contratantes.
49
Direitos reais, p. 334.
50
Op. loc. cit.
51
Op. cit, p. 91.
Comentários ao Código Civil,
vol. XVI, p. 622.
52
53
Art. 1.393.
FGV DIREITO RIO 101
direito de propriedade
Como características das servidões, temos a sua criação voluntária, oriunda da
celebração de um negócio unilateral ou bilateral, do que resulta o fato de que as
chamadas servidões administrativas não são propriamente servidões, e sim limitações
específicas impostas aos particulares pela Administração Pública. Também as chamadas servidões legais são apenas limitações ao uso da propriedade, oriundas do direito
de vizinhança, bem como a passagem forçada (art. 1285), também imposta por Lei.
Outra característica das servidões é a sua dupla ambulatoriedade: se algumas
servidões pessoais, como o direito real de habitação, são intuitu personae, as servidões impõem-se a qualquer proprietário (ou possuidor derivado) do prédio dominante e do serviente. E, por ser real, como prevê o dispositivo acima, e relativa à
imóvel, é obrigatório o registro do negócio (contrato ou testamento) no RGI para
que a servidão tenha efeitos reais. Não é impossível a hipótese de servidão meramente contratual, cujo descumprimento acarrete a condenação em perdas e danos;
ocorre que este expediente teria pouca utilidade – justamente por isto, desde o
direito romano, as servidões têm caráter real.
As servidões são sempre acessórias: perdida a propriedade, sucumbirão junto, já
que incorpóreas; além disto, tendem a ter prazo indeterminado, se nada se dispuser
em sentido contrário (art. 1387).
Classificam-se, com eficácia prática, em positivas (que importam em um agir
do ocupante do prédio serviente) e negativas (que importam em abstenção do
mesmo);
contínuas
exercício
nãodo direito
depende
de ação
específica de quem quer
legais são apenas
limitações ao(cujo
uso da propriedade,
oriundas
de vizinhança,
bem
como a passagem forçada (art. 1285), também imposta por Lei.
que seja,
e característica
independem
de exercício,
portanto) see descontínuas
(que são exercidas
Outra
das servidões
é a sua dupla ambulatoriedade:
algumas
servidões pessoais, como o direito real de habitação, são intuitu personae, as servidões se
vezimpõem
por vez,
como
tirar (ou
argila,
v.g.);
e aparentes
(queesedo revela por obras exteriores)
a qualquer
proprietário
possuidor
derivado)
do prédio dominante
serviente. E por ser real, como prevê o dispositivo acima, e relativa à imóvel, é obrigatório
e não-aparentes
(que ouescapam
esta última classificação,
o registro do negócio (contrato
testamento) noao
RGIexame
para que a ocular).
servidão tenha Sobre
efeitos
reais. Não é impossível a hipótese de servidão meramente contratual, cujo descumprimento
dispõe
súmulaem415
STF
“servidão
transito
acarreteaa condenação
perdas do
e danos;
ocorreque
que este
expediente teriade
pouca
utilidade – não titulada, mas tornada
justamente por isto, desde o Direito Romano, as servidões têm caráter real.
permanente,
sobretudo
pelaperdida
natureza
dassucumbirão
obrasjunto,
realizadas,
considera-se aparente,
As servidões
são sempre acessórias:
a propriedade,
já que
incorpóreas; além disto, tendem a ter prazo indeterminado, se nada se dispuser em sentido
conferindo
direito a proteção possessória”.
contrário (art. 1387).
Classificam-se, com eficácia prática, em positivas (que importam em um agir do
Comodoestabelecia
696
CC,ema abstenção
servidão
não se presume, devendo existir
ocupante
prédio serviente) oe art.
negativas
(quedo
importam
do mesmo);
contínuas (cujo exercício não depende de ação específica de quem quer que seja, e
prova
inequívoca
suae constituição.
Na dúvida,
é como
sabido, o domínio se presume
independem
de exercício, de
portanto)
descontínuas (que são exercidas
vez por vez,
tirar argila, v.g); e aparentes (que se revela por obras exteriores) e não-aparentes (que
desembaraçado
(art.Sobre
1231).
escapam ao exame ocular).
esta última classificação, dispõe a súmula 415 do STF
que “servidão de transito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das
obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito a proteção possessoria.”
Como estabelecia o art. 696 do CC116, a servidão não se presume, devendo existir
prova inequívoca de sua constituição. Na dúvida, é sabido, o domínio se presume
desembaraçado (art. 1231).
Usucapião de servidão: requisitos (art. 1.379)
Usucapião de servidão: requisitos (art. 1379).
CASO GERADOR
Caso gerador.
MAR
Muro que divide o
condomínio do
clube
portão
Terreno do
condomínio
Pergunta-se: é possível a usucapião da servidão?
Pergunta-se: é possível a usucapião da servidão?
FGV DIREITO RIO 102
direito de propriedade
Aula 25: Introdução a Análise Econômica do Direito – AED
Ementário de Temas
Origem e objetivos da AED. Conceitos Fundamentais. Maximização da Utilidade. Maximização da Riqueza. Comparando: Maximização da Utilidade e da
Riqueza. Eficiência e Equidade.
Leitura Obrigatória
POSNER, Richard. A. Economic Analysis of Law. Aspen Publishers. 2007. parte
I, cap.1, p. 3-21.
ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito & Economia - Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 74-83.
Leitura Complementar
POSNER, Richard. A. Economic Analysis of Law. Aspen Publishers. 2007. parte
I, cap.2, p. 23-28.
Texto1
Este curso introdutório aplica o instrumental microeconômico na análise do
sistema legal em especial na instituição do direito de propriedade e nas políticas
com ela diretamente relacionadas. São aulas introdutórias de “Law and Economics” Análise Econômica do Direito – AED – que cobrem alguns tópicos do Direito de Propriedade. Procura-se ao mesmo tempo alertar os alunos para a investigação recente nas várias áreas da AED bem como encorajar aplicações à realidade
brasileira.
A AED pode ser definida como a disciplina que estuda o Direito e as suas instituições tendo como base a racionalidade individual. Até 1960, AED era sinônimo de análise econômica do Direito da Concorrência, “Anti-trust Law”, havendo
algum trabalho pioneiro e exploratório no domínio da regulação de mercados e
intervenção do Estado. Esta área de investigação continua hoje muito popular e intimamente associada à Economia Industrial. No entanto, o termo “Law and Economics” após os artigos de Ronald Coase e Guido Calabresi em 1960, alicerçou o seu
domínio nas áreas de propriedade, contratos, responsabilidade (danos), criminal,
processual, família e constitucional.
A AED procura dar respostas a duas perguntas:
Texto escrito em parceria com
o Professor Nuno Garoupa.
1
FGV DIREITO RIO 103
direito de propriedade
a) Como o comportamento dos indivíduos e das instituições é afetado pelas
normas legais?
b) Em termos de medidas de bem-estar social definidas de forma rigorosa,
quais são as melhores normas e como se podem comparar diferentes normas
legais?
AED tem sido alvo de considerável antagonismo por parte de muitos juristas. O
famoso jurista norte-americano Morton Horwitz escrevia em 1980 na Hofstra Law
Review: “I have the strong feeling that the economic analysis of law has peaked out
as the latest fad in legal scholarship.” Nove anos mais tarde, outro famoso jurista,
Owen Fiss, escrevia na Cornell Law Review “law and economics... seems to have
peaked.” Contrariando estas sombrias previsões, a AED desenvolveu-se de forma
rápida tornando-se uma disciplina por mérito próprio. Segundo Richard Posner,
“Economic analysis of law has outlasted legal realism, legal process, and every other
field of the legal scholarship. It is probably the major breakthrough of the last two
hundred years in legal scholarship.”
A Análise Econômica do Direito tem por base os métodos da teoria microeconômica. Os agentes econômicos comparam os benefícios e os custos das diferentes
alternativas antes de tomar uma decisão, seja ela de natureza estritamente Econômica, seja ela de natureza social ou cultural. Estes custos e benefícios são avaliados segundo as preferências dos agentes e o conjunto de informação disponível no
momento da avaliação. Esta análise de custo-benefício é consequencialista porque
tem em conta o que vai acontecer (em termos probabilísticos) depois de tomada a
decisão, e não as causas que levaram à necessidade de tomar uma decisão. Os agentes econômicos preocupam-se com o futuro, e não com o passado (uma vez que este
não pode ser modificado).
Evidentemente que há limitações a este modelo. O modelo do agente racional
interpreta tendências importantes do comportamento do ser humano médio, mas
não explica e nem quer explicar desvios cognitivos ou psicológicos daqueles que
estão fora da média. Em alguns casos estes desvios psicológicos da tendência majoritária podem ser bastante importantes quer em termos da aplicação do Direito, quer
na análise normativa. Por exemplo, a incapacidade que têm muitos grupos sociais
de estimar ou mesmo entender a noção de risco pode ter um peso importante na
forma de regular o mercado de seguros ou de impor determinadas regras de responsabilidade civil. Nos últimos anos surgiu a escola comportamental dentro da AED
(Behavioral Law and Economics) que procura avaliar até que ponto certos desvios
cognitivos podem ter importância na análise positiva e normativa.
A avaliação custo-benefício faz-se num determinado contexto de preferências
que se traduz num nível de bem-estar dos agentes. O bem-estar individual é medido
pela utilidade que o agente retira da sua decisão bem como das decisões que poderia
ter tomado e não tomou (os custos de oportunidade). O conceito econômico de utilidade é bastante abrangente, refletindo não só bens materiais ou de consumo, mas
também o grau de altruísmo que um indivíduo tem para com terceiros e incluindo
bens não materiais (ou não mercantis) como a alegria, o amor ou a desilusão. Não
FGV DIREITO RIO 104
direito de propriedade
há uma medida exacta da utilidade individual, mas antes um conjunto axiomático
que estabelece uma ordem ou hierarquização nas escolhas.
O bem-estar social mede-se pela agregação do bem-estar dos indivíduos. Também aqui não há uma medida única de agregação, sendo o utilitarismo (a soma
simples e não ponderada da utilidade individual) apenas uma possibilidade, talvez a
mais habitual e não menos isenta de polêmica. Outra medida possível de bem-estar
social é aquela desenvolvida por John Rawls e consiste na preponderância absoluta
dos indivíduos com menor utilidade na função de bem-estar social.
A escolha da medida de bem-estar social obedece essencialmente a dois critérios:
eficiência e desigualdade de utilidades. Geralmente não é possível obter mais eficiência sem aumentar a assimetria distributiva. O critério utilitarista prefere a eficiência à igualdade distributiva (a rigor, é neutro em relação à distribuição): a sociedade
está melhor se em agregado tem um nível superior de utilidade. O critério rawlsiano
prefere a igualdade distributiva.
A perspectiva Econômica vê o Direito como uma instituição que deve promover
a eficiência contribuindo dessa forma a melhorar o bem-estar social. Contudo, o
Direito não deve ser usado para corrigir aspectos de distribuição ou desigualdade
social. A razão é muito simples: existem outros mecanismos, como a política fiscal
ou orçamentária, que podem corrigir esses aspectos com um menor custo social.
De alguma forma as noções de justo castigo ou justa indenização estão normalmente ausentes quando falamos de eficiência. Contudo estas noções são bastante
relevantes na análise dos problemas legais uma vez que muitas vezes se recorrem a
elas para justificar as normas jurídicas.
O problema mais importante com uma noção de justiça em termos de Análise
Econômica do Direito é a sua imprecisão quando comparada com a noção de eficiência. Esta difusão de critérios pode significar que não há uma idéia consensual
de justiça na sociedade. Uma vez que a perspectiva Econômica procura o bem-estar
agregado, a inclusão de uma noção de justiça nem sempre é fácil.
Evidentemente que a noção de justiça é relevante para dois níveis no modelo
econômico. Primeiramente ao nível agregado porque o bem-estar da sociedade vêse afetado pelos sentimentos de justiça. Em segundo lugar, a noção de justiça afeta
o comportamento individual, através de normas sociais ou de normas psicológicas.
Estas normas alteram a análise custo-benefício e consequentemente as decisões dos
indivíduos. Ignorar estas alterações significa que a política proposta não é eficiente.
A relação entre justiça, sentimentos e o comportamento individual tem sido estudada no contexto da escola comportamental (Behavioral Law and Economics).
Finalmente, não podemos ignorar que muitas noções de justiça e moral promovem a eficiência e o bem-estar social. Por exemplo, o princípio moral de que não
se deve mentir ou enganar, não só promove relações sociais cooperativas como diminui a necessidade de uma estrutura coerciva que consome recursos da sociedade.
Existem porém noções de justiça e moralidade que não são eficientes.
Já aqui foi dito que a perspectiva Econômica vê o Direito como uma instituição
que deve promover a eficiência contribuindo dessa forma a melhorar o bem-estar
social. No longo prazo podemos mesmo dizer que o Direito tende a ser eficiente.
FGV DIREITO RIO 105
direito de propriedade
Esta teoria é bastante polêmica dada a diversidade de sistema jurídicos que existem
no mundo. Evidentemente que não há apenas um sistema eficiente, isto é, podem
haver muitas soluções eficientes para o mesmo problema pelo que sistemas muito
diversos podem ser igualmente eficientes. Contudo, existem na realidade muitas
normas jurídicas e aspectos institucionais que não tem um conteúdo facilmente
explicável pela perspectiva Econômica. E existem muitos aspectos do ordenamento
jurídico que são claramente ineficientes. Até que ponto a evolução histórica do Direito corresponde realmente a um processo de melhoria do bem-estar social (será o
Direito causa ou conseqüência das melhorias sociais?) é uma questão empírica para
a qual ainda não há uma resposta.
Caso Gerador 12
Uma comissão foi formada para considerar algumas reformas nas leis penais. A
comissão identificou alguns crimes do colarinho-branco que são tipicamente cometidos por atores que computam racionalmente o ganho potencial e o risco de
serem pegos e punidos. Normalmente, aqueles que são condenados por este tipo de
crime, são sentenciados a uma pena restritiva de liberdade. Após coletar muitos testemunhos, a maioria deles junto a economistas, a comissão decidiu que uma multa
pecuniária seria uma punição apropriada para este tipo de conduta.
Questões:
1. Qual o preço implícito das sanções criminais?
2. Como variações no preço implícito das sanções criminais podem alterar o
comportamento dos atores racionais?
Caso Gerador 23
A empresa de produção de plásticos do João emite fuligem, que suja a roupa
lavada e que está em processo de secagem na lavanderia da Maria. João pode acabar
com a poluição instalando purificadores nas chaminés de sua empresa e Maria pode
livrar-se dos danos causados pela poluição da empresa de João instalando filtros no
sistema de ventilação da lavanderia. A instalação dos purificadores por João ou dos
filtros por Maria eliminariam completamente a poluição ou o dano causado por
ela. Instalar filtros é mais barato do que instalar purificadores. Maria e João são próximos um do outro, mas longe de qualquer outra empresa ou residência, portanto
ninguém mais é afetado pela poluição emitida pela empresa de João. Maria, então,
ingressa com uma ação judicial buscando a cessação das interferências prejudiciais
provocadas pela empresa de João. Se a ação de Maria for julgada procedente, João
será obrigado a adotar medidas para que cesse a poluição; se a ação de Maria for
julgada improcedente, o judiciário não intervirá no caso.
Questões:
2
Caso extraído e adaptado de
COOTER, R.; ULEN, T.; Law &
Economics. Pearson Education.
2003. 4° ed.
Caso extraído e adaptado de
COOTER, R.; ULEN, T.; Law &
Economics. Pearson Education.
2003. 4° ed.
3
FGV DIREITO RIO 106
direito de propriedade
1. João e Maria não são capazes de negociar, portanto não cooperam. O que
ocorre se a ação de Maria for procedente? O que ocorre se a ação de Maria
for improcedente?
2. O que ocorre se João e Maria são capazes de negociar e cooperar?
3. Qual a solução mais eficiente?
4. Quais fatores podem explicar porque as negociações algumas vezes não progredirem, ainda que, haja benefício mútuo com a cooperação?
Caso Gerador 31
Um fonoaudiólogo foi contratado por Ana, de 17 anos, para lhe confeccionar uma
prótese auditiva. Ana solicitou o produto e concordou em pagar por este a quantia
total de R$ 225,00. No ato da encomenda, entregou ao protético responsável um
cheque pessoal no valor de R$ 100,00. Conforme combinado com a paciente, o fonoaudiólogo confeccionou um pré-molde do aparelho e, em seguida, determinou a
confecção da prótese auditiva. Para tanto, assumiu um débito de R$110,00 perante
o protético. A consulta inicial foi realizada na quinta-feira, a prótese requisitada na
sexta-feira e, no sábado, foi entregue no consultório do fonoaudiólogo. Na segundafeira pela manhã, aconselhada por seu pai, Ana ligou e cancelou seu contrato, sustando o pagamento de seu cheque. A paciente tinha 17 anos, vivia na residência de seus
pais, e pagava algumas despesas pessoais com o dinheiro de seu estágio.
Diante dessa situação, o fonoaudiólogo ingressou com ação judicial de cobrança, alegando impossibilidade de restituição ao status quo ante (art. 182 do CC),
uma vez que a prótese auditiva, por ser personalizada, não poderá ser utilizada por
ninguém além de Ana. Assim, o produto não possui nenhum valor de mercado,
resultando então numa perda de R$ 110,00 pelo fonoaudiólogo.
De acordo com a teoria da “conduta social típica” de LARENZ2, adotada no
Brasil ora com a nomenclatura de “atos materiais” (GOMES3) ou de “atos existenciais” (PONTES DE MIRANDA e COUTO E SILVA4), estes são fontes de
obrigações ao lado dos contratos e dos atos ilícitos. Isso significa que, uma vez que
algo absolutamente necessário à vida humana ou socialmente típico for objeto de
obrigação jurídica, retira-se do suporte fático a vontade passando a ter a obrigação a
natureza de ato-fato. Dessa forma, a pergunta apresentada é se a prótese se enquadra
no conceito de “absolutamente necessário à vida humana”. Sendo assim compreendido, torna-se irrelevante para o caso a análise da capacidade civil de Ana.
Uma analogia pode ser feita entre este caso e a situação existente no caso de
contratação de contas universitárias por jovens menores de 18 anos. Portanto neste
caso, desde que a prótese não tem valor algum para outra pessoa, exceto para Ana,
o fonoaudiólogo sofreu uma perda que não pode ser recolocado em seu status quo
ante, exceto pelo pagamento de uma soma razoável.
O tribunal tem em mente o caso da lesão, prevista no art. 157 do CC, que exime
a pessoa inexperiente de pagar valor manifestamente desproporcional, mesmo que
expressamente tenha se comprometido a pagar mais.
Caso baseado em Cidis v. White. In: BARNES, David W.; STOUT,
Lynn A. Cases and Materials on
Law and Economics. West Publishing CO.,1992, p.2
1
“El moderno tráfico en masa
trae consigo que en algunos
casos, de acuerdo com la concepción del tráfico, se asuman
deberes, nazcan obligaciones,
sin que se emitan declaraciones
de voluntad encaminadas atal
fin ...” (LARENZ, Karl, em “Derecho de Obligaciones”, Tomo I,
Ed. Revista de Derecho Privado,
Madrid,1958, p. 58).
2
“No ato não-negocial, a vontade do conteúdo é irrelevante.
O agente quer realizá-lo e, para
tanto, manifesta a vontade,
pouco importando o resultado
que queira atingir. Nele se empresta relevância tão-somente
à vontade da manifestação,
ainda que esteja no propósito
do agente obter o resultado. É
indiferente, porém, que este
coincida, ou não, com o previsto
e determinado na lei. Em última
análise, a distinção ganha clareza à luz da teoria objetiva do
negócio jurídico,pela qual a este
se considera ato de autonomia
privada, natureza que não tem
o ato não-negocial ...”. (GOMES,
Orlando. Transformações Gerais
no Direito das Obrigações. 2ª ed.
São Paulo: RT, 1980, p. 56.)
3
São os atos absolutamente
necessários à vida humana. A
tipificação somente cresce de
ponto e de importância quando se tratar desse último tipo
de ato, pois serelativiza e se
objetiva a vontade, de modo a
converter o que seria, “in thesi”
negócio jurídico, em verdadeiro
ato-fato. Os atos de tipo existencial referem-se às necessidades básicas do indivíduo, tais
como alimentação, vestuário,
água, etc. Ninguém poderá
pensar em anulá-los desde que
se realizem dentro de moldes
normais e adequados, sob a
alegação, por exemplo, da incapacidade de uma das partes.
O número de atividades, que se
insere na esfera do necessário
ou existencial, depende dos
usos e concepções de vida de
cada povo, havendo, porém,
um mínimo comum. (COUTO E
SILVA, Clóvis Veríssimo. A obrigação como um processo. São
Paulo: GVlaw, 2006.
4
FGV DIREITO RIO 107
direito de propriedade
Com a finalidade de fazer justiça substancial entre as partes, o julgamento é
concedido em favor do fonoaudiólogo e contra a requerida, Ana, na soma de R$
150,00. Durante a instrução do processo, o pai insistiu que a filha não tinha sua
necessária assistência para realizar a contratação, não podendo ser penalizada por
ser relativamente capaz.
Questões:
1. Seria razoável supor que ambos (Ana e o fonoaudiólogo) pensaram estar melhorando seus níveis de utilidade quando realizaram a barganha, ainda que
seja muito pouco provável que eles na verdade pensaram nesses termos?
2. Qual custo de oportunidade o fonoaudiólogo suportou quando gastou seu
tempo providenciando a prótese auditiva para Ana? Seria o fonoaudiólogo
um maximizador racional se ele pudesse usar seu tempo para vender próteses
auditivas para alguém que estivesse disposto a pagar mais do que Ana?
3. A norma legal, em que o menor é incapaz para entrar em contratos, deixa
implícito que a maximização de utilidade não é importante, pelo menos para
os menores? Pode existir outra explicação para a norma legal?
4. Sob quais circunstâncias a determinação de um órgão julgador sobre o preço
de uma troca poderia levar a uma ineficiência na alocação dos recursos?
Caso Gerador 45
A controvérsia neste caso diz respeito à venda de um prédio-escolar que servia a
um distrito da cidade X, o qual era supervisionado por um Conselho Educacional.
Em fevereiro de 1953, o Conselho Educacional convocou uma reunião especial
com os votantes qualificados, visando decidir sobre o fechamento da escola e a venda do prédio. Pelo procedimento estabelecido no Estatuto do Conselho Educacional, se o prédio-escolar fosse vendido, o montante percebido seria distribuído entre
os pagadores de impostos daquele distrito onde o prédio-escolar estava localizado.
Realizada a assembléia, quatro propostas foram submetidas à votação: (1) Deve a
escola que funciona no prédio-escolar ser fechada? (2) Deve o prédio-escolar ser
vendido para a Igreja I por R$200.000.00 (3) Deve o prédio escolar ser vendido
para a Granja G por R$300.000,00 (4) Deve o prédio escolar ser vendido em leilão
público pela maior oferta? O edital estabelecia que a proposta n. 1 seria votada e,
caso aprovada, “as propostas subseqüentes (2), (3) e (4) seriam votadas para que a
propriedade pudesse ser vendida.”
Na reunião, a proposta de fechamento da escola foi aceita. Uma moção para que
os membros votantes da reunião considerassem primeiramente a proposta (4), ou seja,
de venda do prédio-escolar em leilão público pela maior oferta foi feita, mas foi considerada fora de ordem. Então a proposta n. (2), que previa a venda do prédio escolar
para a Igreja I por R$200.000,00, foi apresentada, sendo aceita por 32 votos a favor
e 24 contra. A reunião, assim, foi encerrada. Descontentes com a venda do prédioescolar para a Igreja I, os votos vencidos ingressaram judicialmente contra a decisão.
Caso baseado em Ross v.
Wilson. In: BARNES, David W.;
STOUT, Lynn A. Cases and Materials on Law and Economics.
West Publishing CO.,1992, p.6
5
FGV DIREITO RIO 108
direito de propriedade
O decisor decidiu: a subdivisão 6 do Estatuto do Conselho Educacional, mediante a qual o prédio-escolar foi vendido, não estabelece expressamente que o prédio deva ser vendido pela maior oferta. Se os conselheiros que confeccionaram o
Estatuto do Conselho Educacional não determinaram que o prédio escolar devesse
ser vendido em leilão público, isso não significa que os conselheiros intentavam autorizar os novos membros, ou mesmo a maioria dos votantes na reunião do conselho - a vender o prédio-escolar por um valor menor do que aquele oferecido por um
comprador habilitado. Qualquer que fosse o procedimento prescrito no Estatuto do
Conselho Educacional para a venda desta propriedade, era dever dos membros do
conselho e dos membros votantes da reunião optar pelo melhor preço, de acordo
com seu julgamento para com o uso legal das premissas.
A quantia de dinheiro envolvida é pequena, mas o principio é importante; a
oferta rejeitada era 50% maior que a oferta aceita pelo prédio-escolar. No presente
caso, o Estatuto do Conselho Educacional determinava que não seria necessário a
venda da propriedade em leilão, ainda que este procedimento fosse permitido. A
latitude tolerada no método da venda foi desenhada para permitir que os fiduciários adotassem o método que, em seus julgamentos, trouxesse o melhor preço, mas
não tolerava que, deliberadamente, selecionassem em favor de um comprador com
preço menor quando poderiam obter preço maior. O resultado direto do ocorrido
é, de fato, a aprovação de uma contribuição de R$100.000,00 pelo Conselho Educacional escolar para Igreja I.
Ainda, se os fatos deste caso não apresentassem a situação especial da divisão
obrigatória do valor percebido com a venda do prédio-escolar entre os pagadores
de impostos daquele distrito onde o prédio-escolar estava localizado, os membros
do atual Conselho Educacional e os votantes qualificados não teriam o poder de
direcionar parte da renda da venda para outros fins, além daqueles previstos no
Estatuto.
Pelas razões mencionadas, pensamos que faltou seriedade dos membros do Conselho Educacional ao aceitar a oferta de R$200.000,00 feita pela Igreja I e ao mesmo tempo rejeitar uma oferta de igual “boa fé” no valor de R$300.000,00 feita pela
Granja G. A ordem apelada deve ser revertida e as determinações dos membros do
Conselho Educacional, aprovando a venda para a Igreja I, deve ser anulada.
Questões:
1. Como a decisão do Conselho Educacional em ignorar a oferta de Granja G
e vender o prédio escolar para a Igreja I por R$200.000,00 interfere com a
maximização da riqueza – ex., o valor dos recursos sendo medido pela propensão das pessoas em pagar por eles? A decisão do distrito escolar em vender
o prédio para a Igreja I por R$200.000,00 realmente indica uma “contribuição (doação)” para a Igreja I de R$100.000,00? Estaria a Igreja I melhor ou
pior se a oferta da Granja G fosse apenas de R$199.900,00?
2. Suponha que em oferta aberta (sistema de leilão) os prósperos representantes
da Granja G estivessem propensos a ofertar R$300.000,00 pelo prédio-escolar, enquanto os desafortunados membros da Igreja I estivessem propensos a
FGV DIREITO RIO 109
direito de propriedade
pagar somente R$200.000,00. Isso significaria necessariamente que os membros da Granja A derivariam mais utilidade do prédio escolar? O sistema de
leilão maximizaria utilidade?
3. Se o tribunal tivesse mantido a decisão do Conselho Educacional em vender
o prédio escolar para a Igreja I por R$200.000,00, pode alguém estar acerto
que essa decisão interferiria com a maximização da riqueza, exemplo, impedindo o prédio escolar de ir para seu uso mais valorizado? Pode uma realocação subseqüente corrigir a ineficiência resultante da decisão do Conselho
Educacional?
4. Se a preferência das partes afetadas, adversa ou positivamente, pela venda
não são consideradas, a decisão de venda do prédio-escolar pela maior oferta
necessariamente maximiza utilidade? Riqueza?
Caso Gerador 56
O Requerente é proprietário de 2,8 acres7 próximos a um aeroporto na zona
rural da cidade do Rio de Janeiro. Neste terreno o requerente tem uma modesta
casa e vários barracões destinados à criação comercial de galinhas (uma granja). A
distância entre o final da pista de pouso/decolagem do aeroporto e dos prédios do
requerente (casa e barracões) está dentro dos padrões mínimos determinados pelas
autoridades competentes.
Desde de o início das operações do aeroporto, um grande número de aviões com
quatro turbinas e outros ainda maiores passam por sobre a propriedade do requerente. Esses aviões passam tão próximos que muitas vezes arrancam as folhas mais velhas
das árvores do requerente. O ruído produzido pelos aviões é súbito e penetrante;
durante a noite o brilho das luzes dos aviões incide sobre a casa e os barracões do
requerente. Como consequência do ruído, o requerente teve que desistir da criação
de galinhas, já que, em apenas um dia, 10 galinhas morreram pela agitação causada
pelo ruído produzido pelos aviões e, ainda, a produção de ovos foi prejudicada.
O resultado foi a inviabilidade do uso da propriedade como criação comercial de
frangos e produção de ovos. O requerente é frequentemente privado de seu sono e
sua família está nervosa e irritadiça. Ainda que não tenha havido nenhum acidente,
envolvendo aviões, dentro da propriedade do requerente, houveram vários acidentes
nas proximidades do aeroporto e perto da propriedade do requerente. Baseado nestes
fatos, o Tribunal decidiu que a propriedade do requerente havia sido desvalorizada,
pois houve a constituição de uma servidão8 sobre o imóvel fixando uma indenização
no valor de R$200.000,00.
Questões:
1. Seria o Estado mais ou menos propenso a pegar (desapropriar, onerar) a
propriedade privada se não fosse requerida a compensação (indenização)?
Seriam estas realocações sem indenização maximizadoras de utilidade ou
riqueza?
Caso baseado em United States
v. Causby. In: BARNES, David W.;
STOUT, Lynn A. Cases and Materials on Law and Economics.
West Publishing CO.,1992, p.13
6
7
Equivale a 4.046.856 m2
“Para Hely Lopes Meirelles,
a servidão administrativa ou
pública “é o ônus real de uso,
imposto pela administração à
propriedade particular, para
assegurar a realização e conservação de obras e serviços
públicos ou de utilidade pública, mediante indenização
dos prejuízos efetivamente
suportados pelo proprietário”.
“Cretella Júnior considera-a
como “direito público real
constituído por pessoa jurídica
de direito público sobre imóvel
do domínio privado para que
este, como prolongamento do
domínio público, possa atender
aos interesses coletivos”” apud
(RIZZARDO, Arnaldo. Direito das
Coisas, 3ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p.932)
8
FGV DIREITO RIO 110
direito de propriedade
2. Se o Estado (aeroporto) estivesse propenso e fosse capaz de pagar “compensação plena” ao requerente, a aproximação de Kaldor-Hicks maximizaria utilidade e riqueza?
3. Se a compensação potencial por uma desapropriação é calculada pelo valor
justo de mercado da propriedade, pode um formulador de política estar certo
que o critério de Kaldor-Hicks maximiza utilidade e riqueza?
4. A aproximação dada pelo decisor garantiu que a utilidade e a riqueza fossem
maximizadas?
5. A realocação da propriedade do requerente para o Estado (aeroporto) alcançou os critérios de Pareto e Kaldor-Hicks para realocação superior?
Caso Gerador 69
Neste caso consideraremos a constitucionalidade de uma decisão judicial quanto
à disposição da propriedade no divórcio.
João e Maria casaram-se em 30 de Junho de 1992. Cinco crianças são frutos deste
casamento. Em agosto de 1998, Maria deixou a casa do casal na cidade A, levando
consigo dois dos filhos menores e R$10.000,00 da conta corrente conjunta do casal.
Quase um mês mais tarde, as outras três crianças foram viver com Maria em uma
pequena casa de três quartos na cidade B. Maria alugou a casa com contrato mensal
(renovável todo mês), sendo avisada pelo locador que o contrato não seria renovado após maio de 1999. As crianças, durante o período em que viviam com Maria,
permaneceram matriculadas nas escolas da vizinhança próximas da casa da família
(antiga casa do casal). Maria utilizava seu carro para levá-las à escola todos os dias.
Em 2 de janeiro de 1999, Maria deu início a um pedido de separação judicial
e requereu pensão alimentícia para o sustento dos filhos. Requereu, também, uso
exclusivo e a posse da casa e do carro da família. Em 9 de fevereiro de 1999, João
contestou os pedidos e apresentou reconvenção, onde pleiteava a separação judicial
acusando Maria de abandono do lar.
Em 16 de Fevereiro de 1999 uma audiência foi realizada para decidir quanto à
pensão alimentícia e a necessidade das partes e das crianças em ficarem na casa da
família. Maria, em seu depoimento pessoal afirmou estar recebendo ajuda governamental (bolsa família), mas que não tinha fundos suficientes para alugar uma casa
ou apartamento. Apesar do salário de João de R$4.000,00, Maria disse que não
havia recebido nenhum auxílio (pensão) desde Agosto de 1998 (data que deixou a
casa do casal). Com relação as alternativas de moradia, Maria explicou que sua mãe
reside em uma pequena casa de três quartos, não oferecendo espaço suficiente para
sua família.
A decisão judicial concedeu a guarda provisória das crianças à Maria, determinando que João pagasse pensão alimentícia de R$1.000,00 para o sustento dos
filhos, bem como pagasse o financiamento e os impostos incidentes na casa da
família. A decisão também deu à Maria o direito de usar a casa da família, assim
como, o carro da família.
Caso baseado em Pitsenberger
v. Pitsenberger. In: BARNES, David W.; STOUT, Lynn A. Cases and
Materials on Law and Economics.
West Publishing CO.,1992, p.18
9
FGV DIREITO RIO 111
direito de propriedade
Em apelação, João sustentou que essa decisão tratava-se de uma “desapropriação
ilegal” sem justa e previa indenização e que, portanto, violava o artigo 5o, n. XXIV
da Constituição Federal. João afirma que a ordem para o uso e a posse deferida pelo
juizado em 23 de Maio de 1999, efetivamente tomou (expropriou) sua propriedade
ao contemplar o uso exclusivo da casa da família e do carro para Maria. João assevera que tem direito a indenização, de acordo com o valor de mercado da casa e por
despesas de realocação.
Decisão final: Para que se constitua uma desapropriação em favor do poder público, de acordo com o texto constitucional, necessário se faz o pagamento de indenização, já que ela irá privar o proprietário de todos os benefícios do uso da propriedade. Não é suficiente para o proprietário demonstrar que a ação do Estado tenha
causado uma perda ou dificuldade substancial. João, como guardião de seus filhos
menores, é obrigado a dar suporte, cuidado e bem-estar para eles. Em decorrência
das crianças estarem morando na casa da família e usando o carro para suas necessidades, João está, de fato, usando sua propriedade para abrigar e suportar seus filhos.
João, portanto, não foi privado de todos os usos benéficos de sua propriedade. Em
soma, a ordem judicial dando a Maria o direito de usar a casa da família, assim
como, o carro da família não se caracteriza como uma “desapropriação”, violando
a constituição. Concluímos que corretamente foram concedidos os direitos de uso
das propriedades da família para Maria.
Questões:
1. Suponha que as normas que regem o divórcio determinassem que o decisor
dividisse as propriedades do casal de forma “justa e eqüitativa”. No caso de
Maria e João, justiça e equidade aparentemente requerem que Maria fique
com a casa e com o carro, enquanto que João seja ordenado a sair da casa.
Três possíveis aproximações para a questão da justiça e equidade são discutidas abaixo:
2. Merecimento: A propriedade deve ser entregue ao cônjuge que a mereça mais.
Esta aproximação requer uma definição de “merecimento”. Talvez a casa e o
carro devam ser entregues à pessoa que queira permanecer casada. Se hipoteticamente, João quisesse permanecer casado, mas Maira insistisse no divorcio
após ter sido uma adúltera. Maria deveria ficar sem nada. Alternativamente,
talvez o cônjuge que necessitasse mais da propriedade é o que mereça nela
permanecer. Neste caso, a parte de João deve ir para Maria que está desempregada enquanto ele, que está empregado, fica sem nada ou com pouco.
a. Igualdade de tratamento: Após a venda da casa e do carro, o decisor divide o aferido uniformemente entre as partes. Sob esta regra, João e Maria
deveriam dividir o valor de mercado de suas posses.
b. Consentimento ratificado: O decisor deveria entregar a propriedade para
o indivíduo que tem a propriedade em seu nome e obrigar qualquer realocação com a qual as partes consintam. Portanto, o judiciário deveria dar
uma ordem determinando que as propriedades que estivessem em nome
de Maria e João respectivamente pertenceriam a cada um deles, mas poFGV DIREITO RIO 112
direito de propriedade
deria aprovar quaisquer trocas que as partes consentissem em fazer. Qual
interpretação de justiça que mais se aproxima da maximização da riqueza?
Qual visão mais reflete ou ofende nosso senso de justiça e equidade?
3. Se o julgador decidisse conceder a casa e o carro para a pessoa que mais valorizasse as propriedades, para quem provavelmente as propriedades seriam
concedidas?
4. Compare duas alocações do salário de João. Na primeira, Maria não recebe
nada do salário de João e, na segunda, recebe 75%. Imagine que, após estas
distribuições do salário de João, a casa seja alocada para a pessoa mais propensa e capaz de pagar mais por ela. Sob a primeira alocação, é bem possível
que João ficará com a casa. Sob a segunda alocação, é mais provável que
Maria fique com a casa. A alocação alternativa do salário de João afeta a eficiência na alocação da casa?
5. Retornando ao princípio do consentimento ratificado (c da questão 1), suponha que, após muita discussão, as partes concordassem que seria permitido
à Maria alugar a casa e o carro por R$200,00 por mês, pagos com a ajuda
governamental (bolsa família) que Maria recebe. A determinação de cumprimento de tal solução seria uma solução maximizadora de riqueza? Seria maximizadora de utilidade? O fato, das duas partes consentirem com o arranjo,
faz com que esse arranjo pareça mais justo?
FGV DIREITO RIO 113
direito de propriedade
Aula 26: Teoria Econômica dos Direitos de Propriedade, Como os
Direitos de Propriedade são Protegidos?
Ementário de Temas
Externalidades e Ineficiência. Distribuição Inicial e Troca de Direitos. Custos de
Transação e Impedimentos para Barganha. Teorema de Coase. O Nível dos Custos
de Transação e a Norma Legal Apropriada.
Leitura Obrigatória
BARZELI, Yoram. Economic Analysis of Property Rights. Cambridge University
Press. 1997. 2° ed, p. 3-15.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. Pearson Education. 2007.
5° ed. cap. 4, p. 85, p. 91-100 e p. 104-107.
Leitura Complementar
CALABRESI, Guido; MELAMED, Douglas. Property Rules, Liability Rules, and
Inalienability: One View of Cathedral. 85 Harvard Law Review 1089 (1972).
In: DAU-SCHMIDT, Kenneth; ULEN, Thomas. Law And Economics Anthology. Anderson Publishing Co. 2002. 2° ed. cap. 3, p. 193-198.
MEDEMA, Steven G; ZERBE, Richard O. Jr. The Coase Theorem. 0730. p. 836
– 839, http://encyclo.findlaw.com/0730book.pdf
Texto
A teoria econômica do direito de propriedade não tenta explicar o que a propriedade significa, mas busca prever os efeitos de formas alternativas de normas
relacionadas ao direito de propriedade, especialmente os efeitos destas normas do
ponto de vista da eficiência e, quando possível, da distribuição.
Um dos objetivos da teoria econômica é verificar como os direitos de propriedade influenciam na alocação de recursos, produtos e serviços escassos, buscando,
ainda, reconhecer quais os conflitos potenciais no exercício dos direitos de propriedade. A partir desta compreensão a teoria econômica busca a criação de um sistema
de direitos de propriedade que seja claro, impulsionando as trocas voluntárias e
assegurando que os direitos de propriedade fiquem nas mãos daqueles que os valorizam mais.
A teoria econômica da propriedade é estritamente ligada ao Teorema de Coase,
para o qual, quando os custos das transações são suficientemente baixos os recurFGV DIREITO RIO 114
direito de propriedade
sos serão usados eficientemente, não obstante a atribuição inicial dos direitos de
propriedade. Entretanto, uma implicação importante do Teorema de Coase é que
quando os custos das transações são elevados o uso eficiente dos recursos dependerá da alocação inicial dos direitos de propriedade. O Teorema de Coase quando
aplicado para resolver disputas sobre direitos de propriedade, tem as seguintes implicações: a) quando os custos das transações são baixos, as partes que disputam
os direitos de propriedade estão na melhor posição para resolver eficientemente a
questão, b) quando os custos das transações são elevados, a intervenção do sistema
legal é a recomendada.
Os elementos do custo de transação dividem-se em custos de busca, custos de
negociação e custos de aplicação. Os níveis dos custos de transação podem determinar a regra legal a ser adotada. É importante lembrar que as partes envolvidas em
uma disputa sobre direitos de propriedade estão na melhor posição (na concepção
delas) para avaliar o bem em disputa. Assim, a negociação entre as partes é preferível, pois assegurará que os direitos de propriedade fiquem nas mãos da parte que
os valorizem mais. O Teorema Normativo de Coase vai ainda além e apregoa que
“o sistema legal deve estruturar-se para remover os impedimentos aos acordos privados” reduzindo os custos transacionais que são exógenos e endógenos do sistema
legal. Outro teorema que serve de guia para os legisladores é o Teorema Normativo
Hobbes que proclama o seguinte: “o sistema legal deve estruturar-se para minimizar
os prejuízos causados pelas falhas em acordos privados”.
Os direitos de propriedade são protegidos de diferentes formas, a indenização
dos danos é referida como um remédio legal de alivio, ou seja, é um remédio que
busca sanar danos ocorridos no passado, no entanto este remédio de alivio também
pode servir como um remédio legal para danos futuros. Por outro lado, quando o
sistema legal proíbe as atividades que interferem nos direitos de propriedade de terceiros está aplicando um remédio eqüitativo que previne danos futuros. Ambos os
tipos de remédios permitem subseqüente negociações dos direitos de propriedade,
permitindo que estes mudem de mãos. Entretanto, o tipo de remédio aplicado tem
implicações na distribuição de valores. No caso de custos de transação elevados, a
indenização do dano é o remédio mais eficiente, enquanto no caso de custos de
transações baixos, a cessação de interferência é o remédio mais eficiente.
Caso Gerador 1
Um pecuarista vive ao lado de um fazendeiro. O fazendeiro cultiva milho em
parte de suas terras e em outra parte não cultiva nada. O pecuarista cria gado em
toda sua terra. A divisa entre as terras do fazendeiro e do pecuarista é clara, mas não
existe cerca ou muro entre elas. Desta forma, de tempo em tempo o gado pertencente ao pecuarista vagueia na propriedade do fazendeiro e danifica seu milho. O
dano poderia ser reduzido com a construção de um cerca, ou com a supervisão continuada do gado, ou com a redução no número de animais criados pelo pecuarista,
ou ainda com a redução na área de milho plantada pelo fazendeiro. O pecuarista e
FGV DIREITO RIO 115
direito de propriedade
o fazendeiro poderiam negociar para decidir quem deveria arcar com os custos do
dano. Alternativamente, a norma legal poderia intervir e atribuir a responsabilidade
pelos danos causados.
Há duas normas legais específicas que o sistema legal poderia adotar:
1. O fazendeiro é responsável em manter o gado fora de sua propriedade, e
deve arcar com os danos quando o gado do pecuarista invade suas terras (um
regime que nós poderíamos chamar de “direitos dos pecuaristas”), ou
2. O pecuarista é responsável em manter o gado em sua propriedade, e deve pagar pelos danos causados quando o gado invade as terras do fazendeiro (um
regime que nós poderíamos chamar de “direitos dos fazendeiros”).
De acordo com a primeira norma legal, o fazendeiro não teria nenhum recurso
legal contra o dano causado pelo gado do seu vizinho. Para reduzir os danos, o fazendeiro teria que reduzir a área de milho cultivada ou cercá-la. De acordo com a
segunda norma legal, o pecuarista deveria construir uma cerca para manter o gado
em sua propriedade. Se o gado escapasse e danificasse a plantação de milho do
fazendeiro, o sistema legal poderia determinar o valor do prejuízo causado e determinar que o pecuarista pague os danos sofridos pelo fazendeiro.
Questões:
1. Baseado na sua concepção de justiça qual a melhor norma legal para solução
do problema entre o pecuarista e o fazendeiro?
2. Baseado no Teorema de Coase qual a melhor norma legal para solução do
problema entre o pecuarista e o fazendeiro?
3. Qual das duas normas legais apresentará um resultado mais eficiente? Por
quê?
4. Quando as partes não cooperam, qual a importância da atribuição inicial dos
direitos de propriedade? E quando elas cooperam?
5. De forma geral, o que pode inviabilizar uma barganha?
6. Como podemos relacionar o Teorema de Coase e o desenvolvimento de uma
teoria econômica do direito de propriedade?
Caso Gerador 2
Considere o direito de fumar e o direito de ficar livre da fumaça do cigarro nas
seguintes situações. Em que situações você considera os custos de transação tão
elevados que impossibilitariam a negociação entre as partes, e em que situações
você considera os custos da transação baixos o suficiente para que as partes possam
negociar? Explique sua resposta.
1. Fumar em uma residência privada;
2. Fumar em uma área pública, tal como uma sala de concertos;
FGV DIREITO RIO 116
direito de propriedade
3. Fumar em quartos de hotel;
4. Fumar em vôos de linhas aéreas comerciais.
Caso Gerador 3
Quando os custos de transação são baixos, a alocação dos recursos será feita de
forma eficiente independentemente da determinação inicial dos direitos de propriedade. Quando os custos da transação são altos, a eficiência na alocação dos recursos
dependerá da determinação dos direitos de propriedade para parte que os valorizem
mais. De um exemplo de uma situação onde os custos de transação são baixos e
outra onde os custos de transação são altos.
Caso Gerador 4
Como podemos aplicar o Teorema Normativo de Hobbes para justificar as
legislações que regulam o processo da negociação coletiva entre empregadores e
empregados?
Caso Gerador 510
Um Citricultor (C) protocolou uma ação, buscando indenização pelos danos já
sofridos em seu pomar nos últimos seis anos, assim como a interrupção da interferência sofrida. C alega que os prejuízos foram causados pelo fluoreto emitido pela
Siderúrgica (S) durante o processo de produção de alumínio. O julgador determinou uma indenização de R$120.000,00 pelos danos ocorridos durante os seis anos
em questão.
Em essência, qualquer negócio é socialmente obrigado a trazer em seu empreendimento uma rede de benefícios para a sociedade ou que pelo menos que essa
rede não traga perdas para a sociedade. Em um mundo “fictício perfeito”, onde
todos os custos de produção nascidos de um empreendimento determinariam se a
empresa produz benefícios, ou se pelo menos a empresa não produz malefícios para
a sociedade, bastaria para sociedade examinar um balanço das despesas e receitas da
empresa para se chegar a uma conclusão. No entanto, no “mundo real” o desafio
é mais complexo, porque empreendimentos podem muitas vezes deslocar porções
de seus custos de produção para outras partes. No caso de uma planta industrial
emitindo poluição, aqueles prejudicados pelas emissões estão, de fato, involuntariamente suportando alguns dos custos de produção da indústria.
O mero fato de que uma empresa continua operando rentavelmente não é, por
si só, uma evidencia conclusiva que ela produz uma rede de benefícios para a sociedade. Devemos assegurar que cada empresa suporte seus custos totais de produção,
tão precisamente quanto estes custos possam ser aferidos. Um instituto fundamen-
Caso baseado em Orchard
View Farms, Inc. v. Martin
Marietta Aluminum, Inc.. In:
BARNES, David W.; STOUT, Lynn
A. Cases and Materials on Law
and Economics. West Publishing
CO.,1992, p.22
10
FGV DIREITO RIO 117
direito de propriedade
tal para este fim é o instituto da indenização por perdas e danos, que permite que
pessoas prejudicadas por atividades empresariais ou outras atividades sejam compensados pelo perpetror do dano.
Durante o processo constatou-se que a poluição gerada por S, ainda que dentro
dos limites impostos pela licença da agencia ambiental reguladora, causou as arvores de C e somente às arvores de C uma queda de produtividade. Ante o exposto,
decido que a Siderúrgica falhou em cumprir com suas obrigações, causando uma
redução na produção do pomar do Citricultor e, portanto, infligindo-lhe danos.
Questões:
1. Qual seria um exemplo de um beneficio externo que um proprietário poderia conferir a outro? Como as externalidades afetam a extensão pela qual
pessoas impõem custos e conferem benefícios a outras?
2. Foi determinada uma indenização para C pelos danos sofridos em suas árvores, danos estes causados pelo fluoreto emitido por S. Isso significa que o uso
do ar estava sendo alocado para C? Isso significa que o uso do ar por C era o
uso mais valorizado?
3. Seria obrigação do decisor determinar qual das partes, S ou C, valorizava
mais o ar? Ao determinar a indenização, o decisor meramente permite que as
partes determinem qual uso é o mais valorizado?
4. Se os danos fossem calculados, pagos e então jogados no fundo do oceano,
continuaria S suportando suas responsabilidades pelos danos na decisão de
produção?
5. Se, ao invés de jogar o dinheiro da indenização no fundo do mar ou entregar
esse dinheiro para C, o dinheiro da indenização fosse gasto com programas
de reabilitação de dependentes químicos ou fosse entregue para uma escola
municipal onde S está localizada, o pagamento da indenização continuaria
promovendo incentivos apropriados para o poluidor (S)?
Caso Gerador 611
De acordo com a inicial, o Reclamante é proprietário de uma residência que
é equipada com um sistema solar, que inclui coletores no telhado para suprir
energia para o aquecimento da água. Alguns anos após o reclamante ter construído o aquecedor solar em sua casa, o Reclamado comprou o lote imediatamente adjacente e iniciou a construção de uma casa. A inicial também descreve
que, quando o reclamante soube dos planos do reclamado em construir uma
casa, advertiu-o de que, se a casa fosse construída na localização proposta, ela,
substancial e adversamente, afetaria o aquecedor solar do reclamante, podendo
causar-lhe ainda outros danos. Não obstante, o reclamado iniciou a construção
da casa. O reclamante alega ter direito ao “uso irrestrito do sol e sua energia
solar”, requerendo assim a cessação da interferência imposta pelo requerido e
indenização por perdas e danos.
Caso baseado em Prah v.
Maretti. In: BARNES, David W.;
STOUT, Lynn A. Cases and Materials on Law and Economics.
West Publishing CO.,1992, p.44
11
FGV DIREITO RIO 118
direito de propriedade
A sociedade tem aumentado a regulação do uso das terras pelos proprietários em
nome do bem-estar geral. O acesso à luz solar adquiriu um novo significado nos
últimos anos. Neste caso, o requerente não busca proteger seu acesso à luz solar por
razões estéticas ou como fonte de iluminação; ele busca uma fonte de energia. Acesso à luz solar como fonte de energia é significante para o proprietário que investiu
nos coletores de luz solar e para sociedade que tem interesse no desenvolvimento de
fontes alternativas de energia.
Decido que o reclamado deve cessar a interferência e que o reclamante tem direito ao uso irrestrito da luz solar.
Questão:
1. Aparentemente o julgador acreditou que, reconhecendo o direito à luz solar,
promoveria o desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Se o Teorema de Coase está correto, pode o julgador também estar correto?
Caso Gerador 712
A questão fundamental desta ação concerne ao direito do paciente de controlar
seu próprio corpo e se a exploração comercial das células de um paciente por provedores de assistência médica, sem o seu consentimento, enseja uma ação por perdas
e danos. A primeira vista parece que sim.
Em 1976, um Requerente procurou por tratamento médico no Centro Médico da Universidade X, por conta de uma condição conhecida como “hairy-cell
leukemia”.13 O requerente foi examinado por um médico (Requerido), o qual confirmou o diagnóstico. Como parte necessária para o tratamento da doença, o requerente teve o baço removido pelo requerido.
Sem o conhecimento ou consentimento do requerente, o requerido pesquisou e
concluiu que as células do requerente eram únicas. Através da ciência da engenharia genética, o requerido desenvolveu uma linhagem-celular a partir das células do
requerente, a qual foi capaz de produzir produtos farmacêuticos de enorme valor
terapêutico e comercial. O requerido patenteou a linhagem-celular, assim como os
métodos de produção de muitos produtos. Em adição, o requerido entrou em uma
série de negociações comerciais envolvendo os direitos sobre a linhagem-celular e
seus produtos com uma Empresa Farmacêutica e com um Instituto de Genética.
O mercado potencial para os produtos extraídos da linhagem-celular do requerente
estava previsto para ser de, aproximadamente, três bilhões de dólares em 1990.
Centenas de milhões de dólares já foram pagos através destas negociações comerciais ao requerido. Sem informar o requerente, o requerido continuou monitorando
e extraindo suas amostras de sangue e tecidos por, aproximadamente, sete anos após
a retirada de seu baço.
Esta ação não enseja uma decisão quanto ao uso dos órgãos ou partes do corpo
humano através de “doações” ou de um “mercado livre”. Essa questão deve ser determinada pelo legislador. No presente caso, a linhagem-celular já foi comercializada
Caso baseado em Moore v.
Regents of The University of California. In: BARNES, David W.;
STOUT, Lynn A. Cases and Materials on Law and Economics.
West Publishing CO.,1992, p.79
12
Hairy-cell leukemia é um tipo
raro de câncer sanguíneo, no
qual, a medula óssea produz
um número acima do normal
de linfócitos (linfócito é um tipo
de glóbulo branco que combate
infecções), sendo que os linfócitos produzidos são “anormais”.
Conforme o numero de células
leucêmicas aumentam, menos
glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas saudáveis
são produzidos.
13
FGV DIREITO RIO 119
direito de propriedade
pelo requerido, restando ao julgador apenas a questão de quem deverá dividir os
rendimentos da comercialização.
Foi argumentado pelo requerido que, caso fosse dado ao requerente o poder de
decisão quanto à propriedade e interesses financeiros sobre a linhagem-celular, ele
teria, então, poder ilimitado para inibir pesquisas medicinais que poderiam, potencialmente, beneficiar a humanidade. O requerente poderia, concebivelmente, ir de
instituição à instituição procurando pela maior oferta; caso insatisfeito, poderia,
simplesmente, proibir as pesquisas.
Quanto à preocupação do requerido de que o requerente poderia procurar o
maior ganho financeiro com sua participação, este argumento não é persuasivo,
porque ele falha em explicar as razões pelas quais aquele, que patenteou a linhagemcelular do requerente e está se beneficiando financeiramente dela, é mais confiável
neste momento de decisão do que a pessoa que tem suas células usadas. A literatura
sugere que a biotecnologia não é mais puramente orientada por pesquisa primariamente incentivada pela academia ou pela melhora da humanidade. Se a biotecnologia tornou-se uma ciência com fins lucrativos, então falhamos em achar alguma
justificativa para excluirmos o requerido da participação nestes lucros.
Questão:
1. Tomando-se em conta as muitas considerações que podem ser levantadas
neste caso, qual a norma consistente com o objetivo da eficiência?
Caso Gerador 8
Hardin, A Tragédia dos Bens Comuns14 – A tragédia dos bens comuns desenvolve-se no seguinte caminho, imagine uma pastagem aberta para todos. A expectativa
é que cada criador tentará manter o maior número de cabeças de gado possível na
área comunal. Neste ponto, a lógica inerente dos bens comuns gera a tragédia.
Como seres racionais, cada criador procura maximizar seus ganhos. Explicita ou
implicitamente, mais ou menos conscientemente, ele se pergunta: “qual é a utilidade para mim se eu adicionar mais um animal ao meu rebanho?” Essa utilidade tem
um componente negativo e outro positivo.
O componente positivo é uma função do incremento de um animal. Desde que
o criador receba todos os rendimentos da venda do animal adicional, a utilidade
positiva será próxima de +1.
O componente negativo é uma função do consumo excessivo adicional da pastagem criado por um animal. No entanto, desde que todos os efeitos do consumo
excessivo são divididos por todos os criadores, a utilidade negativa para qualquer
criador particular tomador de decisão é somente de uma fração de -1.
Somando os componentes parciais da utilidade, o criador racional conclui que o
único curso sensato para ele é adicionar outro animal em seu rebanho e outro, e outro..., mas esta é a conclusão de cada um e de todos criadores racionais que dividem
a área comum de pastagem. Nisso constitui-se a tragédia. Cada homem é acuado
Tradução e adaptação de
“Hardin, The Tragedy of the
Commons.” In: BARNES, David
W.; STOUT, Lynn A. Cases and
Materials on Law and Economics.
West Publishing CO.,1992, p.28
14
FGV DIREITO RIO 120
direito de propriedade
dentro de um sistema que o compele a aumentar seu rebanho sem limite – em um
mundo que é limitado. Ruína é o destino final para todos os homens, cada um possuindo seu próprio melhor interesse em uma sociedade que acredita na liberdade
dos bens comuns.
O exemplo seguinte, onde gados pastam em uma pastagem comum, ilustra como
a produção excessiva de gado (com consumo excessivo da pastagem) é resultado da
falha dos criadores em internalizar os custos criados pelo consumo excessivo das
pastagens.
Tragédia dos Bens Comuns - Ilustrada
(1)
(2)
Número de cabeças de
Ganho de peso por
gado
cabeça por semana
de pastagem
(3)
Ganho total de
peso por semana
(4)
Carne adicional para a
sociedade em decorrência
do aumento do tamanho
do rebanho por uma
cabeça
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
7
18
24
28
30
30
28
24
9
-10
7
11
6
4
2
0
-2
-4
-15
-19
7
9
8
7
6
5
4
3
1
-1
Questões
1. Se um único indivíduo adquirisse a pastagem comum e estivesse decidindo quantas cabeças de gado colocar para pastar, seria a situação ótima do
proprietário privado igual a situação ótima social? Se um único indivíduo
adquirisse a pastagem e a alugasse, para criadores que desejam criar gado na
pastagem comum, em troca de uma porcentagem de ganho de peso do gado,
que número de cabeças pastando geraria a maior renda para o proprietário
da pastagem?
2. Se uma comunidade com um tomador de decisões central estivesse decidindo quantas cabeças de gado deveriam pastar para a maior obtenção de carne,
a situação ótima da comunidade assemelhar-se-ia com a situação ótima do
proprietário privado?
3. Uma autoridade central permite que o primeiro criador coloque seu gado na
área comum, mas qualquer pessoa que subsequentemente adicionasse um
animal as pastagens comuns teria que pagar pelos danos na produção de
carne do criador que já utilizava a pastagem. Esta solução de pagamento de
danos resultaria no mesmo número de cabeças de gado que a situação ótima
do proprietário privado?
FGV DIREITO RIO 121
direito de propriedade
4. Se os criadores sabem que um número excessivo de cabeças de gado leva a
ruína do bem comum, por que Hardin assume que os criadores não cessarão
voluntariamente de pastorear um número excessivo de animais?
FGV DIREITO RIO 122
direito de propriedade
Aula 27: Quais os Remédios Legais Para as Violações dos Direitos
de Propriedade?
Ementário de Temas
Remédios para Externalidades. Desapropriação (Compensação, utilidade pública,
holdouts, seguro e regulações).
Leitura Obrigatória
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. Pearson Education.
2007. 5° ed. cap. 5, p. 174-189.
POSNER, Richard. A. Economic Analysis of Law. Aspen Publishers. 2007. parte
II, cap.3, p. 55-61.
Leitura Complementar
MICELI, Thomas J.; SEGERSON, Kathleen. Takings, 1999, 6200, http://
encyclo.findlaw.com/6200book.pdf
POSNER, Richard. A. Economic Analysis of Law. Aspen Publishers. 2007. parte
II, cap.3, p. 68 – 72
SWANSON, Timothy; KONTOLEON, Andreas. Nuisance, 1999, Department
of Economics, School of Public Policy and CSERGE University College of
London, 2100, http://encyclo.findlaw.com/2100book.pdf
Texto
Externalidades – Economistas denominam externalidades como uma das falhas de
mercado. Competição imperfeita, informação assimétrica e bens públicos são os outros
casos em que o mercado não produz resultados eficientes e são referidos, juntamente
com as externalidades, como falhas de mercado. Trocas dentro de um mercado são feitas
de forma voluntária e produzem benefícios mútuos. Tipicamente, as partes envolvidas
nas negociações retêm todos os benefícios e suportam todos os custos. No entanto,
algumas vezes os benefícios ou os custos provenientes das trocas entre as partes podem
atingir outros indivíduos que não são partes do processo de troca, criando desta forma
os benefícios ou os custos externos, ou seja, as externalidades. As externalidades podem
ser positivas ou negativas consoantes os seus efeitos em terceiros sejam prejudiciais ou
benéficos. Se os indivíduos aproveitam benefícios adicionais pelos quais não pagaram
originam-se as externalidades positivas, em contraste, se os indivíduos tiverem custos
extras em que eles próprios não incorreram originam-se as externalidades negativas.
FGV DIREITO RIO 123
direito de propriedade
Existem alguns remédios legais que podem ser aplicados para que as externalidades negativas sejam internalizadas e a eficiência seja restaurada, estes remédios legais
são: a indenização por danos e a cessação da interferência. A eficiência relativa destes
remédios é estritamente conecta com a distinção entre público-privado. A questão
das externalidades “públicas” e “privadas” é relevante na medida em que algumas
externalidades tomam a forma de “mal público” (tal como a poluição do ar). Aqui
a principal fonte do problema é a natureza “não exclusiva” dos bens públicos, o fato
de o aumento do consumo por um indivíduo não reduzir a sua quantidade disponível para outros indivíduos.
Se a externalidade negativa é privada, poucas partes são afetadas, em conseqüência os custos de barganha entre as partes são baixos. Quando os custos de barganha
são baixos, as partes ordinariamente alcançarão um acordo cooperativo e farão o que
é eficiente. Conseqüentemente, nestas circunstâncias a escolha do remédio legal faz
pouca diferença na eficiência do resultado da barganha. O remédio legal tradicional
para as violações do direito de propriedade – cessação da interferência – é atrativo
sob estas circunstâncias, porque o julgador não precisa empreender o difícil trabalho da computação dos danos. Se alguém vê uma cessação de interferência como
sendo uma proibição contínua e para sempre da atividade ofensiva, então a inflexibilidade da proibição será custosa, entretanto, se alguém vê essa proibição como
uma instrução as partes para que elas resolvam sua disputa com a troca voluntária,
então ela será um remédio atrativo para as externalidades negativas privadas.
Em contraste, se a externalidade negativa é publica (do tipo de um “mal público”) tentar corrigi-la através de barganha envolveria a cooperação de todas as
partes afetadas, a barganha falha nestas circunstâncias porque exige a cooperação de
muitas pessoas. Em sua, podemos nos referir a uma externalidade negativa, do tipo
público, como um “mal público”. Nossa análise sugere que a indenização do dano
é um remédio legal mais eficiente para a externalidade pública negativa quando
comparada à determinação da cessação da interferência.
Desapropriação – A AED disponibiliza uma vasta literatura sobre a perda da
propriedade privada mediante a desapropriação ou a regulação pelo Estado. A análise econômica da desapropriação reporta ao artigo de Frank Michelman publicado
na Harvard Law Review de 1967, em que o autor discutiu (entre outras coisas) que
um juiz chamado a decidir um caso de desapropriação (nos Estados Unidos) poderia selecionar como critério de julgamento a maximização do bem-estar social.
Ao contrário das partes privadas que devem negociar umas com as outras quando desejam adquirir uma propriedade, o Estado pode adquirir propriedade privada,
mediante algumas condições, sem o consentimento do proprietário. O poder do
Estado em adquirir a propriedade e regular seu uso sem o consentimento do proprietário reduz a clareza e a certeza quanto aos direitos de propriedade, originando
um custo econômico sobre o excedente social.
A Constituição Federal, no art. 5o, n. XXIV, apregoa que a lei estabelecerá o
procedimento para desapropriação mediante duas condições (1) por necessidade
ou utilidade pública, ou por interesse social, (2) mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição. A literatura da
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direito de propriedade
AED enumera algumas questões relacionadas ao poder do Estado de desapropriar,
incluindo a justificação econômica para o poder iminente do Estado, o significado
dos requerimentos de utilidade pública ou ‘justa’ compensação e as implicações do
poder iminente nas decisões dos proprietários quanto o desenvolvimento de suas
propriedades. Para DAU-SCHMIDT E ULEN15 estas questões podem ser agregadas em apenas uma, “sob quais circunstancias, se é que existe alguma, uma venda
compulsória é eficiente?”
Proximamente relacionado está a questão econômica da regulação da propriedade. Em contraste com as aquisições físicas, para as quais quase sempre são pagas compensações, a regulação da propriedade privada pelo Estado geralmente não
exige compensação, sendo vista como um exercício legítimo do poder de polícia
do Estado. Entretanto, existe uma pergunta crucial sobre quando e se o poder de
regulação do Estado pode se tornar tão oneroso a um proprietário a ponto de exigir
compensação sob a cláusula da desapropriação, regulações que cruzam este ponto
divisório são consideradas pela AED como uma forma de “expropriação” através de
regulação. A AED tem procurado determinar as circunstancias sob as quais uma
“regulação do uso da propriedade” deve resultar em compensação (indenização)
para o proprietário afetado.
Caso Gerador 1.
A requerida, empresa fabricante de cimento, é acusada de produzir interferências nocivas (externalidades negativas) aos vizinhos, requerentes. Determinou-se
a indenização dos danos sofridos até a data da decisão, mas com base no art. 461,
§1 do Código Civil o pedido para cessação das interferências futuras causadas
pelas vibrações provenientes da requerida, de mesma ou maior intensidade, foi
convertido em indenização de danos. Os requerentes apelaram da decisão, requerendo a procedência do pedido e a determinação da cessação das interferências
futuras.
A determinação da cessação das interferências obrigaria a requerida a paralisar
suas atividades, vez que não existem meios tecnológicos para a solução das interferências, sendo um problema de ordem mundial. É grande a disparidade nas conseqüências econômicas entre o incômodo das interferências e a determinação da
cessação das interferências. O total aferido com a conversão da cessação das interferências futuras em indenização de danos, de forma permanente, é de Dois Milhões
de Reais. A requerida fez investimentos superiores a Quatro Bilhões de Reais na
construção de sua planta e emprega mais de 1.000 pessoas diretamente. A legislação
brasileira determina que, se há interferência continuada com dano substancial demonstrado pela parte atingida, impõe-se a cessação da interferência.
Questões:
1. Suponha que a decisão judicial tivesse determinado a cessação das interferências por parte fábrica de cimento. Quais seriam os obstáculos que a fábrica de
DAU-SHIMIDT, G Kenneth;
ULEN, Thomas S. Law and Economics Anthology. Anderson
Publishing Co. 2002. 2° ed.
cap. 3, E.
15
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direito de propriedade
cimento enfrentaria na tentativa de comprar dos vizinhos o direito de voltar
a produzir as interferências?
2. Mantida a decisão, de conversão da cessação das interferências futuras para
indenização de danos, quais seriam os incentivos da fábrica de cimento em
procurar por técnicas para minimizar as interferências?
Caso Gerador 2.
Suponha que o Estado necessite adquirir uma única e grande propriedade (imóvel), com o fim de suprir uma necessidade ou utilidade pública, digamos, uma
estação de monitoramento de satélite. Há somente um proprietário com quem negociar, pois sua propriedade é a única apropriada para a estação de monitoramento
(motivos técnicos de localização). Deve o Estado obrigar este indivíduo, um monopolista pelo uso público contemplado para a propriedade, a vender sua propriedade
apenas pelo preço de mercado?
Caso Gerador 3
Maria é proprietária de um prédio no centro de uma grande cidade, onde montou um bar anos atrás. A maior renda do bar de Maria vem da venda de bebidas alcoólicas. Por conta do excelente ponto comercial para o desenvolvimento das atividades de um bar, seu imóvel é muito valorizado e cobiçado, mas Maria não pensava
em vendê-lo, pois tinha intenção de ampliá-lo para poder melhorar o atendimento
aos clientes. Em decorrência das características do imóvel, sua função limita-se às
atividades de um bar. A administração pública, tentando reduzir o barulho e o vandalismo no centro da cidade, decide proibir a venda de bebidas alcoólicas dentro de
uma determinada área, dentro da qual o prédio de Maria está localizado.
Questão:
1. Teria Maria direito a indenização pelas perdas sofridas?
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direito de propriedade
GUSTAVO KLOH MULLER NEVES
Mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ.
Professor da FGV Direito Rio.
Advogado.
Antônio José Maristrello Porto
Doutorando, J.S.D, College of Law – University of Illinois em Law and
Economics, Law and Development, and Empirical Methods in Law.
LL.M, College of Law – University of Illinois, em Law and Economics,
and Comparative Legal Institutions. Graduado em direito pela Fundação de Ensino Octávio Bastos. Foi Pesquisador Assistente da University of Illinois, US, de 2004 a 2007. Advogou de 2001 a 2003. Artigos
em desenvolvimento: How People of Different Political Traditions,
Gender, Age, Education, Professional Experience, and Legal Tradition
Respond to Changes on the Legal System; e How the Performance of
a Country’s Legal System Affects People’s Willingness to Invest their
Money in that Country.
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direito de propriedade
FICHA TÉCNICA
Fundação Getulio Vargas
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PRESIDENTE
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