Anais do I Encontro de Pesquisadores em História da Saúde Mental www.encontrohistoriasm.ufsc.br ISBN 978-85-64747-01-2 4 e 5 de agosto de 2011 Campus Universitário David Ferreira Lima, UFSC - Trindade, Florianópolis História das instituições psiquiátricas s e do contexto em que se constituíram Epistemologia do campo da saúde s mental História das políticas em saúde s Quadro de Elias Andrade - artista ilhéu mental História dos serviços substitutivos e s ações em saúde mental História dos movimentos sociais que s atuam no campo da saúde mental Promoção: s GT de História da Psicologia da ANPPEP (Associação Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Psicologia) s Departamento de Psicologia UFSC s Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFSC s Núcleo de Pesquisas em Psicologia Clínica - PSICLIN / UFSC Apoios: s CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior s Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC s Pró-Saúde II da UFSC s Associação Brasileira de Saúde Mental Seção SC s Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina - CRP-12 s Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul - CRP-07 EXPEDIENTE Comissão Organizadora Coordenadora Geral • Daniela Ribeiro Schneider (UFSC) • • • • • Cristina Lhullier (UCS) Maria Stella Brandão Goulart (UFMG) Mário Teixeira – Psiquiatria (UFSC) Monique Stahnke (PIBIC – UFSC) Cristiane Budde (PIBIC- UFSC) Comissão Científica Coordenadora da Comissão Científica • Helena Beatriz Kochenborger Scarparo (PUC-RS) • • • • • • • • • • • • • • • • • • • Ana Maria Jacó-Vilela – Clio-Psyché , Instituto de Psicologia (UERJ) Arthur Arruda Leal Ferreira (UERJ) Cristina Lhullier – Universidade Caxias do Sul (UCS) Daniela Ribeiro Schneider (UFSC) Erika Lourenço (UFMG) Felipe Brognoli (CESUSC) Helena Beatriz Kochenborger Scarparo (PUC/RS) – Coordenadora Joselma Frutuoso (Depto de Psicologia – UFSC) Lucienne Martins Borges (Depto de Psicologia – UFSC) Magda do Canto Zurba (Depto de Psicologia – UFSC) Maria do Carmo Guedes (PUC/SP) Maria Stella Brandão Goulart (UFMG) Mário Teixeira (Psiquiatria – UFSC) Mitsuko Aparecida Makino Antunes (PUC/SP) Myriam Raquel Mitjavila (Depto de Serviço Social – UFSC) Nadia Maria Dourado Rocha (Faculdade Ruy Barbosa – Bahia) Sérgio Cirino (UFMG) Sonia Maluf (Depto de Antropologia – UFSC) Walter Ferreira de Oliveira (Depto de Saúde Pública – UFSC) Editora Letra Editorial Ilustração Elias Andrade Desenvolvimento Alquimídia.Org I ENCONTRO DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA SAÚDE MENTAL EDITORIAL O desenvolvimento de pesquisas históricas na área da saúde e da psicologia é de fundamental importância para a compreensão do contexto dos dispositivos de atenção à saúde e seus impactos no campo da produção da subjetividade. Nos últimos anos houve um incremento da produção de pesquisas sobre a história do campo da saúde mental no Brasil, sendo uma área interdisciplinar por excelência, com pesquisas desenvolvidas na área da psicologia, psiquiatria, antropologia, enfermagem, serviço social, entre outras. O GT de História da Psicologia da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPPPEP) e o Programa de Pós Graduação em Psicologia promovem o I Encontro de Pesquisadores em História da Saúde Mental com o objetivo de disponibilizar um evento que coloque em discussão as circunstâncias da construção de conceitos, políticas e práticas neste campo no Brasil e na América Latina, contextualizando-os no cenário internacional, a fim de viabilizar o tecimento de redes de pesquisadores interessados nesta temática, uma vez que se trata de um marcante processo que tem transformado a atenção à saúde, as profissões envolvidas e a produção de conhecimentos na área. Promoção Apoios GT de História da Psicologia da ANPPEP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia) CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Departamento de Psicologia UFSC Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFSC Núcleo de Pesquisas em Psicologia Clínica - PSICLIN / UFSC Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC Pró-Saúde II da UFSC Associação Brasileira de Saúde Mental - Seção SC Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina - CRP-12 Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul - CRP-07 3 I ENCONTRO DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA SAÚDE MENTAL Índice APRESENTAÇÃO 4 RESUMO DA CONFERÊNCIA DE ABERTURA 7 TRABALHOS COMPLETOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS 8 RESUMOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS 173 Epistemologia 173 Instituições 180 Movimentos sociais 204 Políticas públicas 212 Serviços substitutivos 225 TRABALHOS COMPLETOS DAS MESAS REDONDAS 238 CONFERÊNCIA DE ABERTURA COMPLETA 268 4 I ENCONTRO DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA SAÚDE MENTAL 04 e 05 de agosto de 2011 - UFSC Apresentação Marc Bloch em um dos escritos de sua fundamental e inacabada obra afirmou amar a História. Dentre as razões para tal associou a prática da história com a compreensão da vasta experiência da diversidade humana e com a vida que, como a ciência, tem tudo a ganhar, se construirmos encontros fraternais. (Bloch, 1974). Havia nesta posição esperança de que pesquisar ou historiar poderia significar, a priori, construir um mundo mais solidário. A mesma esperança invadiu Brecht (1991) quando dizia que a única tarefa da ciência é aliviar a miséria da existência humana. A História dos caminhos trilhados no campo da saúde mental no Brasil registra muitos desses encontros entre o viver e a ciência. Nem todos foram fraternais ou solidários, mas, de forma inevitável, todos formularam estratégias, construíram conceitos e provocaram efeitos na vida social. Muitos desses, por vezes anacronicamente, direcionam nossas práticas até o presente. Desse modo, pensar em um Encontro de Pesquisadores em História da Saúde Mental pode constituirse numa oportunidade, esperamos que fraterna, de compreender a produção de fazeres e práticas em saúde mental tendo em vista as ideias, concepções e seus efeitos na consolidação ou flexibilização de procedimentos, profissões, normativas e lugares sociais. Assim, o desenvolvimento de pesquisas históricas na área da psicologia e da saúde é de fundamental importância para a compreensão e avaliação crítica dos contextos de formulação dos dispositivos de atenção à saúde e de seus impactos no campo da produção da subjetividade. Nos últimos anos houve incrementos significativos da produção de pesquisas sobre a história do campo da saúde mental no Brasil. Trata-se de uma abordagem prioritariamente interdisciplinar, com pesquisas desenvolvidas nas áreas da psicologia, psiquiatria, antropologia, enfermagem, serviço social, história, entre outras. A psicologia brasileira, nas últimas décadas, foi marcada pela intensa necessidade de pensar criticamente suas práticas, tendo em vista a variedade de campos de inserção nos quais se inscreve. Nesse movimento, articula reflexões críticas sobre suas práticas à história construída. Assim, busca compreender os caminhos que percorreu e protagoniza processos de transformação tendo em vista os fenômenos e desafios do tempo presente. Provavelmente, em função disto, tem se evidenciado significativo aumento do interesse pela história da psicologia brasileira e, como decorrência, a intensificação da produção de conhecimentos sobre o tema. Podemos citar como exemplo, as recentes publicações do Conselho Federal de Psicologia e do 5 Grupo de História da Psicologia da Associação Nacional de Pesquisas e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), além do incremento de defesas de teses e dissertações e do surgimento de disciplinas curriculares de graduação e pós-graduação voltadas especificamente para este tipo de estudo. Cabe destacar ainda que as últimas décadas contam com relevantes e diversificados processos de intervenção da área, no que se refere ao planejamento, gestão e avaliação das políticas de saúde mental, tendo em vista os contextos regionais do Movimento da Reforma Sanitária, da implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da implementação da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Como se sabe, dentre as articulações necessárias à consolidação dessas políticas encontram-se os espaços de comunicação e diálogo acerca da história construída. Consequentemente é desejável a ampliação de oportunidades de interlocução e efetivação de projetos propositivos acerca dos itinerários e orientações das práticas e políticas de saúde mental brasileiras e latino-americanas, sem perder de vista as especificidades locais. No I Encontro de Pesquisadores em História da Saúde Mental destacam-se, portanto, as contribuições sobre as histórias da região sul do Brasil, cotejadas por outros registros nacionais e internacionais. Tais temáticas têm sido contempladas sistematicamente nas reuniões do Grupo de Trabalho de História da Psicologia da ANPEPP, que conta com pesquisadores dedicados ao estudo das especificidades dos processos de inserção de práticas de saúde mental protagonizadas pela Psicologia brasileira. Em sintonia com esta tendência e reconhecendo a necessidade de contribuir com a ampliação e aprofundamento das investigações e debates sobre o tema, realizou-se nos dias 4 e 5 de agosto de 2011, em Florianópolis, no campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o I Encontro de Pesquisadores em História da Saúde Mental. OBJETIVOS DO EVENTO: OBJETIVO GERAL: Proporcionar o debate e o intercâmbio de estudos e pesquisas em história da saúde mental, visando fundamentar políticas e ações nesta área. OBJETIVOS ESPECÍFICOS: 6 • Refletir sobre os marcos históricos pertinentes à constituição do campo da saúde mental em seus contextos e contradições; • Promover reflexões sobre as políticas públicas e a situação da atenção em saúde mental nos dias atuais, a partir dos elementos fornecidos pelos estudos históricos; • Identificar interfaces dos projetos de pesquisa de história da saúde mental tendo em vista as dimensões interdisciplinar e intersetorial. Em função desses objetivos, delinearam-se os seguintes eixos temáticos que orientaram a elaboração dos trabalhos apresentados: 1. História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram; 2. Epistemologia do campo da saúde mental; 3. História das políticas em saúde mental; 4. História dos serviços substitutivos e ações em saúde mental; 5. História dos movimentos sociais que atuam no campo da saúde mental; Para a efetivação do evento foram organizadas conferências, mesas redondas, sessões coordenadas de comunicação oral e apresentação de painéis. Disponibilizam-se neste e-book os resumos e trabalhos completos do evento que pretendeu colocar em discussão as circunstâncias de construção dos conceitos, propostas e práticas em Saúde Mental no Brasil e América Latina, situados no contexto mundial. Visa-se, com isso, contribuir na ampliação da rede de pesquisadores sobre esta temática, uma vez que se trata de um marcante e contínuo processo que tem transformado as profissões envolvidas, as práticas estabelecidas e a produção de conhecimentos na área. Referências Bibliográficas: Bloch, M. (1974). Introdução à história. Trad. Maria Manuel Miguel e Rui Grácio. 2a. ed. Lisboa: Europa-América. Brecht, B. (1991). Teatro Completo. Vol 6. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 7 O PARADIGMA DA CIDADANIA NA SAÚDE MENTAL Ernesto Venturini Depois de se ter referido aos conceitos de paradigma e de revolução científica, o autor analisa as causas sociais e culturais que forneceram suporte ao sucesso do “paradigma do monólogo da razão sobre a loucura”, gerador da disciplina psiquiátrica. Em seguida, examina a finalidade desta disciplina e a afirmação do novo “paradigma da subjetividade”, na década de 1970, localizando aquela que pode ser reconhecida como a sua grande cena instituidora. Em particular o autor aprofunda algumas passagens da prática e do pensamento de Franco Basaglia, que tem sido o protagonista indiscutível desta mudança. Enfim, procura-se compreender as motivações, históricas e culturais, da profunda afinidade que liga o pensamento de Franco Basaglia com a prática da reforma em saúde mental desenvolvida no Brasil. 8 TRABALHOS COMPLETOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS 9 VERDE, AMARELO E BRANCO: PÁTRIA E LIMPEZA OS PRECEITOS DA LIGA BRASILEIRA DE HYGIENE MENTAL E AS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DO INDIVÍDUO MODERNO Ananda Pinto Cardoso Bolsista Fapergs do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação do núcleo e-politcs do PPGPSI/UFRGS. [email protected] Daniel Dall’Igna Ecker Bolsista CNPq do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação do núcleo e-politcs do PPGPSI/UFRGS. Neuza Maria de Fátima Guareschi Orientadora do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação do núcleo e-politcs do PPGPSI/UFRGS. Palavras chave: higiene mental, biopoder, modernidade Este estudo é parte do projeto “Seios Fartos, filhos fortes: a Liga Brasileira de Higiene Mental e o Brasil Moderno” que faz parte de um projeto guarda chuva sobre Políticas Públicas e Práticas em Saúde Mental do grupo de pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação do núcleo de pesquisa e-politcs do PPGPSI/UFRGS. Tal projeto analisa o periódico “Archivos Brasileiros de Hygiene Mental” publicado pela Liga Brasileira de Hygiene Mental nas décadas de 1920 a 1940 para discutir as concepções eugênico-higiênicas que nos periódicos se evidenciam e o papel que essas concepções cumprem num momento crucial para a formação do estado democrático brasileiro. O texto a seguir se analisa os primeiros números desse periódico (n. 1 e n. 2 de 1925) para discutir as estratégias higienistas que se convertem em intervenções e ações profiláticas nesse Brasil da década de 20, período que se faz legítima a intervenção normatizadora na crescente população que toma tons de urbana. As discussões tem como referência o conceito foucaultiano de biopoder como aquele que entende a tomada de poder do estado sobre a vida das pessoas na forma de estatização do biológico. As concepções eugênico-higiênicas que se evidenciam nessa época, vão se articulando e se tensionando de forma a alicerçar um investimento na vida que regula modos específicos de ser sujeito, de ser um sujeito moderno. Verde, Amarelo: o Brasil quer ser moderno. Em meados da década de 20 o Brasil vive intensamente seu processo de introdução no capitalismo industrial. Nessa época toma lugar de cuidado especial na administração pública a cidade, dado que o desenvolvimento econômico e o crescimento populacional incitam um acentuado êxodo rural que implica na reconfiguração do espaço urbano. Essa reconfiguração é o efeito da transição de uma estrutura agrária tradicional para um estado moderno. A Modernidade, por pressupor industrialização, requer mão de obra apta ao trabalho e pressupõe, para isso, investimento na população de diversas formas, e uma delas é a saúde. A salubridade, portanto, torna-se um assunto que preocupava os gestores brasileiros nas primeiras décadas do século XX. Tornar a cidade salubre consistia em limpar tudo de poluído que nela havia. Fosse essa poluição humana ou não humana. Para limpar o não humano investia-se em obras públicas de saneamento. Para limpar o humano instauravam-se novos modos de vida: modos puros, modos saudáveis, modos ajustados, modos convenientes, modos higiênicos. O capitalismo conforme ia sendo fundido às estruturas arcaicas do nosso sistema ia conformando os indivíduos da maneira que lhe coubesse. Ia criando formas funcionais de os sujeitos entenderem a si, suas capacidades e seus limites. O capitalismo, para isso, se aliava às verdades científicas que explicavam os comportamentos, vícios e virtudes do homem para elucidar à incipiente 10 população sobre como se deveria agir, como deveria se portar enquanto indivíduo moderno. Essa elucidação se fazia através de uma profilaxia do comportamento, a qual levava o nome de higiene mental. O trabalho da higiene mental apresentava duas faces: a profilaxia mental, ou seja, trabalho defensivo contra as causas da degeneração mental e a higiene mental ou moral propriamente dita, a qual buscava equilíbrio entre a mentalidade individual e o meio físico e social. Um exemplo da amplitude da questão da higiene mental como fundamento da gestão pública é o 2º Congresso Brasileiro de Higiene cujo tema foi “O que já se fez e o que se pode fazer no Brasil em higiene mental” ocorrido em 1925 (Fontanelle, 1925). O advento da industrialização em nosso país permitia uma divisão do trabalho que possibilitava a organização de setores preocupados com o estudo dos problemas urbanos. Essas organizações geralmente eram grupos de seletas figuras da elite letrada que se juntavam numa inciativa privada para pesquisar temas relevantes como a educação, o trabalho e, sobretudo aquilo que mais preocupava a povos e governos, a saúde. Esse estudo se fazia sob a ótica de ciência prevalente na época, o positivismo. E branco: normati(li)zai-vos! A Liga Brasileira de Hygiene Mental é, então, uma das instituições criadas no Brasil nesse período como uma forma de auxílio à gestão urbana e ao ajustamento da população à nova estrutura econômica. Sua principal ação era a publicação dos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, periódicos que serviam como uma ação profilática que atentaria a população e seus administradores sobre as formas corretas de educar um indivíduo, os modos adequados de se trabalhar sem fadigar-se ao ponto de alienar-se, a importância de manter-se calmo, pois o nervosismo extremo era uma das causas da degeneração mental, enfim, sobre como as pessoas daquele tempo deveriam cuidar de si próprias para manterem-se no controle de si, afastando-se dos perigos da doença mental. Conforme publicado no próprio Archivos Brasileiros de Hygiene Mental (n. 2, 1925), a Liga coloca-se como uma ferramenta de orientação no sentido de resguardar e educar o cérebro através de seu programa social. Sua intenção é adaptar regras, prescrições, defesas, impedimentos e proibições conforme a aptidão de cada indivíduo. Através destas ferramentas, ela visa, em parceria com o poder legislativo, desenvolver leis sociais que sejam aplicadas a cada um (PENAFIEL, 1925) 1. Era preciso criar formas de incidir sobre os corpos disciplinando-os, docilizando-os às verdades e aos propósitos modernos. Cabe, a partir disso, analisar quais são as estratégias de investimento propostas pela Liga nesse sujeito que se pretende moderno; quais são os modos de conceber a si e ao mundo que devem ser operados nessa população para que as premissas da modernidade passem a ser naturais, usuais e produtivas. Pátria e Limpeza: uma análise a partir do conceito foucaultiano de biopoder. A conformação dos corpos enquanto individuais, Foucault conceitua como uma técnica de poder chamada disciplina2. O conceito de disciplina esboça os “procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de 1Os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental contém o acordo ortográfico vigente em 1925. Aqui opta-se por transcrever os excertos seguindo a norma atual do acordo ortográfico. 2O estudo que Foucault desenvolve para chegar ao conceito de disciplina se pauta na transição do poder soberano para o estado-nação na França. Cabe reiterar algumas ideias do autor na intenção de visualizar as condições de possibilidade para a emergência de um discurso por vezes similar que, em tempos diferentes, procurou configurar os estados para o modo capitalista de governo, levando sempre em conta as particularidades e as descontinuidades produzidas por cada coletividade. 11 visibilidade”, “eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda uma tecnologia” (Foucault, 2000). A essa tecnologia de poder o autor articula uma segunda tecnologia que não exclui a primeira, mas a modifica de forma a integrá-la. Essa nova técnica não tem mais estritamente o corpo como direção, ela se volta para a vida do homem, abarcando uma multiplicidade de homens que não é tomada num conjunto de corpos, mas como uma imensa massa, um conjunto que pode ser tido como homem-espécie. E o nome dessa nova tecnologia é biopolítica. Foucault em seu livro “Em defesa da sociedade” comenta que com o advento dessa biopolítica (evidenciada na França no século XVII e no Brasil no princípio do século XX), alguns objetos de saber e alguns alvos de controle tornam-se importantes. Falando primeiro dos objetos de saber, estão entre eles as doenças que acometem a população não na forma avassaladora de epidemias como a syphylis, por exemplo, mas as doenças que se mantêm permanentes dentro daquela coletividade e assim comprometem a força de trabalho daquele capital humano, como é o caso da doença mental. Leia-se no trecho dos Archivos quando o (Roxo, 1925) diz que a doença mental é percebida na constituição psicopática do sujeito e que essa constituição se transmite através da hereditariedade e é responsável pela degeneração do sujeito, já que ele tem uma organização cerebral deficiente. O cuidado nestas situações é evitar fatores de esgotamento e de irritabilidade nervosa como dificuldades financeiras, domésticas e de trabalho que suscetibilizam o sujeito a psicopatias, que sá irremediáveis. Em seguida o autor comenta que encontram-se chauffeurs e barbeiros epiléticos com frequência no Hospital dos Alienados, acreditando-se ser de enorme perigo estas profissões para o desenvolvimento do sujeito. Esse fragmento é algo que visibiliza elos entre as racionalidades que vão articulando o discurso daquilo que é tido como verdadeiro e os mecanismos de assujeitamento que se fazem presentes na construção de modos modernos de vida como, por exemplo, a associação que se faz entre “subemprego”, esgotamento mental e alienação. Quanto aos alvos de controle comentado pelo autor, surge justamente a higiene pública como um campo capaz de centralizar a ciência médica – entenda-se as ciências psi como colaboradoras desse grupo, nesse momento -, normalizando esse saber científico na constituição de mecanismos, estratégias de biopoder que intervenham na população buscando configurar uma média de sujeitos capazes de integrarem essa massa produtiva que o capitalismo requer. Pode-se pensar que essa massa é produtiva a partir de uma produção que é feita dela, produção feita pelo assujeitamento dos indivíduos perante verdades, verdades essas produto dos próprios mecanismos de assujeitamento. Toda essa conformação de corpos e vidas da qual aqui se falou se evidencia na análise dos Archivos quando vemos o movimento da Liga de justamente propor o molde desses corpos, dessa vida humana para a nova forma de organização social capitalista que constituirá nosso país. Para os colaboradores da Liga, todo esse investimento no capital humano era proposto tomando por base a permanente ameaça social da alienação. Como já foi posto, a doença mental se constituía como aquela endemia da qual Foucault fala que ameaçava as forças produtivas e para tratar disso era preciso rever as formas de trabalho, educação e saúde, principalmente. E essa revisão constitui explicitamente nas estratégias de investimento para a construção do indivíduo moderno. Valha-se da reportagem dos Archivos que fala do elemento psíquico no trabalho humano, na qual Penafiel (1925) diz que o trabalhador de fábrica deixa de ser entendido como um motor físico para a produção, para ser compreendido como um aparelho psico-fisiologico. Vemos aqui a apropriação da ciência médica sobre a vida das pessoas criando uma centralização desses saberes que organizará o espaço urbano. Os estudos do autor enfocam a conexão entre as pesquisas dos laboratórios de psicologia e os estudos dos fenômenos econômicos. A apropriação destas pesquisas pela Liga visa buscar subsídios para que se desenvolva, por meio de perícias apropriadas, um programa a serviço do “Comercio e da Industria Moderna”. O objetivo principal deste sistema seria procurar bons colaboradores e operários úteis para servirem o homem de negócios através do conhecimento da qualidade mental, das condições psicológicas, e dos melhores meios educativos para aumentar o rendimento do sujeito na produção industrial. O autor sugere que, para isso, se crie um 12 Instituto de Psychologia Experimental e esse serviço, apesar de ser apenas uma proposta, estaria em proporções modestas funcionando na sede da Liga no Rio de Janeiro. Considerações Finais Procurou-se nessa breve análise visibilizar o papel exercido pela Liga, através dos Archivos Brasileiros de Higiene Mental, na produção de modos modernos de vida pautados na ciência higiênica. Foi evidenciada a emergência de uma profilaxia do comportamento que implica em novas noções do cuidado de si mesmo, limites e perigos concernentes ao corpo, como uma tecnologia disciplinar, que se desdobra, se articula a um segundo modo de governo que massifica aquela coletividade, sob o signo da população, e cria verdades que possibilitem ao sujeito entender-se e produzir-se por uma tecnologia de poder que pode ser chamada de biopolítica. Todo esse quadro remete ao bipoder capaz de configurar estratégias de investimento na população que produzem indivíduos necessários a determinado modo de governo. O discurso higienista trazido pela Liga pode ser entendido como um tensionamento que ajudou a produzir a ruptura do sistema arcaico brasileiro para a operação de um sistema moderno onde os indivíduos passam a conceber outras verdades para governar a si e aos outros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SEIXAS, A. A.A; MOTA, A; ZILBREMAN, M. L. A origem da Liga Brasileira de Higiene Mental e seu contexto histórico. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rprs/v31n1/v31n1a15.pdf>. Acessado em 31 de março de 2011. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas - Brasília - Editora do Ministério da Saúde, 2005. CARVALHO, A. M. T. Trabalho e higiene mental: processo de produção discursiva do campo no Brasil. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos [online]. 1999, vol.6, n.1, pp. 133-156. GUARESCHI, N. M. F.; LARA, L; ADEGAS, M. A. Políticas públicas entre o sujeito de direitos e o homo economicus. Psico Pucrs, Porto Alegre, v.41, n.3, p. 332-339, jul/set. 2010 FAORO, R. Traços Gerais da Organização Administrativa, Social, Econômica e Financeira da Colônia. In: FAORO, R. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 1998. P. 171-234. FONTANELLE, J. P. Higiene Mental e educação. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, v. 1. 1-10. Foucault, M. (2010) Do governo dos vivos. São Paulo: Achiamé, _________. (2000) Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975 - 1976). São Paulo: Ed.Martins Fontes. _______. A governamentalidade. In Foucault, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010, p. 277-293. PENAFIEL, C. (1925) O elemento psychico no trabalho humano. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, v. 2. 10-26 ROXO, H. (1925) Hygiene Mental. Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, v. 2. 1-9. SUGIZAKI, E. Da anátomo-política à biopolítica. In. SOUZA, R. T.; OLIVEIRA, N. F. (Orgs). Fenomenologia Hoje III –Bioética, Biotecnologia, Biopolítica. Porto Alegre: Edipucrs, 2010, p.183199. WEFORT, F. C. Urbanização, Migrações e Populismo. WEFORT, F. C. In Populismo na Política Brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1980, p. 123-143. 13 INFLUÊNCIA ITALIANA NA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Carla Luiza Oliveira (UFMG) [email protected] Psiquiatria Democrática. Franco Basaglia. Reforma Psiquiátrica brasileira. Introdução: O presente artigo é um breve relato da monografia intitulada “Revisitando o movimento de luta antimanicomial: sementes italianas em solo brasileiro” (2010), realizada e apresentada para fins de conclusão da graduação em Psicologia. Nela, procurou-se realizar um resgate histórico sobre o movimento de luta antimanicomial italiano para a compreensão da influência que esse movimento deixou à Reforma Psiquiátrica brasileira. Para tanto, foi realizada uma pesquisa a partir de fontes bibliográficas, recuperando algumas importantes informações que compõem o resgate histórico proposto nesse trabalho. A influência italiana no processo de Reforma Psiquiátrica do nosso país é um tema que provoca certa inquietação por ser sempre lembrado, mas tão pouco aprofundado. A visita de Franco Basaglia ao Brasil é sempre referida como um marco na história da reforma brasileira, porém, é pouco explorado pela literatura sobre os principais conceitos e saberes que emergiram das novas práticas em saúde mental que esse psiquiatra realizou durante sua trajetória de trabalho. Assim, esse estudo tem como proposta discorrer sobre a história do movimento antimanicomial de ambos os países com o interesse em conhecer melhor as origens que influenciaram nossas práticas em saúde mental. Com o propósito de que essa história não se perca no decorrer de nosso percurso de reforma psiquiátrica. Franco Basaglia e a Psiquiatria Democrática: Franco Basaglia, psiquiatra italiano, tinha em sua caminhada profissional novas alternativas para os saberes e as práticas em saúde mental, que se podem estender também para todas as áreas da saúde. Retornar à trajetória de trabalho de Basaglia significa conhecer melhor quem influenciou nossa forma de trabalhar em saúde mental, além de ser fonte de inspiração para guiar nossas práticas e teorias atuais. Dessa forma, será realizado um retorno ao percurso de luta e trabalho desse psiquiatra que tem fundamental importância para os pacientes e trabalhadores da saúde mental do Brasil e de outros países. Basaglia nasceu no ano de 1924, na cidade de Veneza, Itália. Desde sua juventude, era um estudante muito questionador e preocupado com sua formação humanística. Basaglia durante sua formação acadêmica em medicina se interessava bastante pela filosofia existencial-fenomenológica em que tinha forte influência de filósofos como Sartre, Binswanger, dentre outros. Aprimorou ainda mais a sua preocupação humanística quando foi preso por lutar contra a repressão fascista na Itália. Na prisão, Basaglia aprendeu ainda mais a valorizar a vida e lutar pela liberdade. No final da Segunda Guerra Mundial, Basaglia sai da prisão e retorna à universidade para concluir sua graduação em medicina. Após o término do curso, Basaglia permaneceu na universidade como professor, totalizando 12 anos de vida acadêmica. Após esses anos na universidade, resolveu ir para a prática, pois sentiu a necessidade de conhecer mais de perto a saúde pública italiana. Não ultrapassavam os muros da universidade notícias da verdadeira realidade da saúde pública e muito menos sobre as transformações institucionais que estavam acontecendo em países como França e Inglaterra (Amarante, 1996). Diante disso, Basaglia foi nomeado diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia em 1961, onde pela primeira vez pisou em um manicômio. Ao conhecer o hospital psiquiátrico, sentiu como se tivesse retornado ao tempo em que esteve na prisão e se identificou profundamente com a realidade daqueles internos do hospital, por estarem aprisionados dentro do manicômio em situação bastante precária. 14 Durante a experiência no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, Basaglia aproveita o seu cargo de diretor do hospital e, assim, começa sua trajetória de luta para modificar o tratamento que era totalmente inadequado aos internos do manicômio. Assim, Basaglia e sua equipe começam a realizar duras críticas ao saber/fazer psiquiátrico vigentes na época e também aos hospitais psiquiátricos. Dessa maneira, Basaglia começa a procurar conhecer melhor as reformas psiquiátricas que vinham sendo realizadas em alguns países, como também a experiência de Comunidade Terapêutica desenvolvida por Maxwell Jones na Escócia e a Psicoterapia Institucional francesa com o objetivo de aplicá-las no manicômio de Gorizia. (Amarante, 1996). Basaglia reuniu todas essas experiências e começou a reproduzi-las a partir da invenção de novas práticas e novos modos de tratamento juntamente com sua equipe técnica e os próprios pacientes. O trabalho de Gorizia concentra-se em três grandes linhas de intervenção que, na prática, estão cotidianamente presentes nas assembléias, nas discussões com os técnicos, nos contatos com os familiares e a sociedade: a origem do pertencimento de classe dos internos do hospital; a pretensão de neutralidade e de produção de verdade das ciências; a função social de tutela e controle social da psiquiatria, do manicômio e do técnico na constituição da hegemonia (Amarante, 1996, pág. 73). Basaglia então lança uma nova maneira de ver a loucura. Ele faz uma inversão ao que era proposto pelo saber psiquiátrico da época. Ao invés de colocar parênteses no doente como a psiquiatria realizava, ele propôs colocar a doença entre parênteses. Isso, não significa a negação da doença mental, e sim, “uma recusa à aceitação da positividade do saber psiquiátrico em explicar e compreender a loucura/sofrimento psíquico.” (Amarante, 1996, pág. 80). Agora era necessário colocar o sujeito em evidência, em foco, e não mais a doença. Isso, para acabar com o duplo da doença mental causado pela institucionalização do sujeito. O mesmo autor cita Franca Basaglia, esposa e companheira de luta de Franco Basaglia, quando ela diz que para destruir o duplo da doença mental é “necessário buscar extrair as superestruturas dadas pela vida institucional, para poder assim individualizar quais partes eram de responsabilidade da doença e quais da instituição, no processo de destruição do doente” (Amarante, 1996, pág. 78). O autor supracitado realiza um apanhado sobre os novos conceitos que emergem dessas práticas inéditas e formas de pensar a loucura que Basaglia propõe: os conceitos se entrecruzam, relacionam-se entre si em um mesmo corpo teórico e, mais que isso, estão relacionados a questões concretas da prática que Basaglia está, em cada momento, experimentando e sobre ela refletindo. O conceito mais geral, que pode servir de base e linha condutora para o conjunto do texto, é o de desinstitucionalização que, desde o início, imprime as bases teórico-metodológicas do projeto de transformações (Amarante, 1996, pág. 67). Basaglia iniciou mudanças no hospital com o objetivo de humanizar o tratamento e de transformá-lo em uma comunidade terapêutica. Ao ver que a miséria humana tinha grandes proporções dentro do manicômio, Basaglia percebeu que a assistência em psiquiatria e as relações entre sociedade 15 e loucura deveriam passar por profundas transformações. Ao final do seu trabalho desenvolvido no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, ele percebeu que o resultado de todo o processo de modificações desenvolvidas, havia transformado o hospital, enfim, em uma comunidade terapêutica. Mas, o trabalho não poderia se encerrar em uma comunidade terapêutica. Isso não havia devolvido a liberdade e identidade ao paciente, roubados pelos longos anos de institucionalização. Assim, “a comunidade terapêutica é criticada por pretender tornar-se uma técnica com fim em si própria, que nada mais faz do que encobrir por intermédio de uma nova ideologia, as contradições sociais que tinha tentado tornar explícitas” (Amarante, 1996, p. 85). Contudo, Basaglia propõem à administração local de Gorizia o fechamento do manicômio, mas sua proposta é negada. Dessa forma, a recusa do fechamento do manicômio marca a saída de Basaglia e de toda a sua equipe do hospital psiquiátrico em 1968, após darem alta a todos os pacientes do hospital e pedirem demissão logo em seguida (Amarante, 1996). Após o trabalho realizado em Gorizia, que deu início a novas práticas de desconstrução do saber e das instituições psiquiátricas, Basaglia foi nomeado diretor do Hospital Provincial em Trieste, em 1970, iniciando com sua equipe um processo de “destruição” do manicômio (Amarante, 1996). Dessa forma Basaglia e sua equipe reiniciaram a luta a favor da desinstitucionalização e por uma sociedade sem manicômios. A favor da liberdade, Basaglia almejava o fechamento do hospital psiquiátrico. Devolver ao doente a sua liberdade e assim, poder recuperar a sua dignidade e cidadania perdida no interior dos muros do manicômio. Em Trieste, Basaglia e sua equipe dão início à elaboração de um programa de profundas transformações que envolvia pacientes, familiares, profissionais e toda a comunidade. Enfim, conseguiram realizar o que tanto almejavam: “derrubar” os muros do manicômio. Dessa forma, surgia a invenção de novas estruturas assistenciais e terapêuticas em saúde mental que substituíam o hospital psiquiátrico. É esse o propósito do processo de desinstitucionalização levado a cabo em Trieste. Os internos vão recebendo alta do hospital psiquiátrico e, quando não têm estrutura familiar de apoio, tornam-se ou “hóspedes” – no sentido de que passam a habitar em espaços do ex-hospital, não mais como internos –, ou passam a habitar em casas no meio da cidade (Amarante, 1996, pág. 96). Também foi construído em Trieste, à medida que o manicômio vai sendo desativado, centros de saúde territoriais, que exerciam função básica de apoio aos pacientes, familiares e comunidade. Surgem cooperativas de trabalho que criam possibilidades de “trabalho real” para os pacientes, isso devido às críticas que Basaglia tinha sobre as práticas da ergoterapia (Amarante, 1996). Foi durante a experiência inovadora no manicômio de Trieste que houve o surgimento da Psiquiatria Democrática (PD), fundada em 1973 na cidade de Bolonha (Itália). A PD surgiu num segundo momento do movimento antimanicomial, sendo que o movimento de luta antimanicomial italiano teve seu início em meados de 1960. A criação da PD tinha como objetivo uma maior organização e expansão do movimento, devido à recrudescência de outros movimentos de protesto da Itália naquela época (Goulart, 2007). Os principais participantes que compunham o grupo fundador da PD pertenciam à equipe de Basaglia que realizaram um trabalho inovador durante as experiências no manicômio de Gorizia e Trieste, cujas experiências já foram citadas no presente artigo. Por intermédio da PD criou-se a oportunidade de envolver diversos atores sociais ao movimento de reforma por meio da construção de espaços discursivos. Segundo Goulart, o discurso crítico da PD opunha-se: ás práticas psiquiátricas européias que conservavam os aparatos assistenciais tradicionais (especialmente à 16 psiquiatria de setor). Buscava refletir sobre o impacto político da instituição psiquiátrica, efetivando novos parâmetros de relacionamento entre técnicos (em saúde mental) e usuários dos serviços, com o objetivo de promover a reintegração social e a emancipação dos doentes mentais (Goulart, 2007, p.81). Com a constituição da PD foi possível que a implementação do projeto de desinstitucionalização se realizasse em Trieste, assim como contribuiu para a aprovação da Lei 180, mais conhecida como “Lei Basaglia”, aprovada em 13 de maio de 1978 e regulamentada no início dos anos 1990 (Goulart, 2007). Em 1979, Basaglia finaliza a sua experiência triestina. Nesse mesmo ano, Basaglia visita o Brasil realizando conferências e debates nas principais cidades do país. Devido a fundamental importância dessa visita para a Reforma Psiquiátrica brasileira, essa visita será mais bem retratada a seguir. Em 1980, Basaglia é convidado a trabalhar em Roma pela administração sanitária romana e também na região Lazio, mas não chega a assumir o trabalho devido à sua morte em 29 de agosto do mesmo ano. Influência italiana na Reforma Psiquiátrica brasileira: A Reforma Psiquiátrica brasileira deu-se início nos anos de 1960 e 1970. O início da reforma se desenvolveu ainda em tempos de ditadura militar, num momento histórico que tinha como característica bastante relevante, o aparecimento dos movimentos sociais no país. Surge também nesse momento, o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) que buscava uma reformulação da assistência em saúde mental. Aproveito o relato desse início do movimento da reforma brasileira, para registrar a vinda de Franco Basaglia ao Brasil em 1978, para participar do I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições na cidade do Rio de Janeiro. Retornou em 1979, sendo que essa sua visita foi de grande importância às transformações realizadas na saúde mental em nosso país (Goulart, 2007). Realmente, esse retorno de Basaglia ao Brasil dividiu nosso processo de reforma em antes e pós a essa sua visita em 1979, sendo um verdadeiro marco na história de Reforma Psiquiátrica brasileira. Por essa razão, será aqui retratado com mais detalhes essa sua segunda visita ao Brasil. Franco Basaglia realizou debates para discutir com os brasileiros, questões sobre o saber e as práticas psiquiátricas de acordo com os trabalhos que vinha desenvolvendo na Itália. As conferências de 1979 foram realizadas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Os debates aconteceram com o objetivo de discutir as transformações necessárias ao campo da saúde mental para que se possa pensar em reforma psiquiátrica. Além de realizar as conferências, Basaglia também visitou os manicômios brasileiros. Em Minas Gerais, visitou toda a rede de hospitais psiquiátricos públicos que faziam parte da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Sendo que sua visita ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena foi marcada pelo imenso impacto que causou ao nosso visitante por conta das precárias e desumanas condições em que se encontravam os pacientes naquele lugar. Basaglia ficou tão horrorizado com a realidade daquele manicômio que o comparou a um “campo de concentração nazista”. Antônio Soares Simone ao falar como foi a experiência de Basaglia ao visitar os hospitais psiquiátricos mineiros relata que “os dois primeiros [hospitais Galba Velloso e Raul Soares] já o impressionavam, deixando-o muito abalado. A visita ao terceiro [Barbacena] teve sobre ele um impacto tão violento que o deixou profundamente deprimido” (Simone apud Basaglia, 1982, p. 136). A visita de Basaglia em 1979, também representou uma forma de denúncia aos abusos que estavam acontecendo aos internos dos manicômios brasileiros, em especial o de Barbacena. Assim, todas essas informações chegaram ao âmbito político por meio da divulgação das conferências e dos 17 debates ocorridos durante essa importante visita. No mesmo ano da vinda de Basaglia ao Brasil, a imprensa toma nota dos acontecimentos no interior dos manicômios e começa a realizar denúncias favorecendo o movimento por mudanças na assistência psiquiátrica. Isso acontece por meio da série de reportagens realizada pelo jornalista Hiram Firmino denominada “Nos Porões da Loucura”, publicada no Jornal Estado de Minas. Na mesma época, o cineasta Helvécio Ratton revela com cenas reais do interior do hospício, o estado extremamente precário em que viviam os internos do Hospital Colônia de Barbacena no documentário “Em nome da razão”. Todos esses acontecimentos divulgavam na época o debate sobre a loucura, a denúncia em relação à violência institucional e a segregação dos doentes mentais, levando para o domínio público todas essas informações que estavam, até então, retidas no interior dos manicômios. Durante as conferências no Brasil, Basaglia deu ênfase ao falar da relação médico-doente que se dá através da dependência do doente para com o médico. Essa relação reproduz a lógica das instituições onde existem duas partes: uma que domina e a outra que é dominada. O manicômio, assim, tem a finalidade de controlar, e não a de curar. Ao falar disso, Basaglia traz uma importante discussão com os profissionais da saúde sobre as relações de saber/poder através da conduta do médico para com o doente (Basaglia, 1982). O ponto forte que é trazido por Basaglia durante as conferências no Brasil é o significado que ele dá ao trabalho que desenvolveu. Pois, ele relata que talvez os manicômios voltem a ser instituições fechadas, talvez mais fechadas que antes, mas foi demonstrado um novo modo de assistir o doente mental. Antes, era impensável a idéia de que o manicômio pudesse ser destruído. Mas, o importante mesmo é que agora se sabe o que se pode fazer (Basaglia, 1982). Basaglia trouxe um novo conceito de saúde, doença e relação. Foi de grande relevância seu trabalho ao possibilitar a reflexão sobre as práticas em saúde, como também, as relações de poder/saber das instituições em saúde e seus mecanismos de controle e segregação. Basaglia modificou a forma de tratar a doença mental, a relação médico-paciente e realizou importantes mudanças no saber e nas práticas psiquiátricas. Considerações Finais: Basaglia durante as conferências no Brasil, falava enfaticamente sobre a importância do interesse e comprometimento que os profissionais deveriam ter para uma saúde mental mais favorável. Cada país com a sua responsabilidade e com suas formas de mudar as suas políticas de saúde mental. Dessa maneira, é relevante abrir um leque de possibilidades de maiores investigações a respeito dos desafios em saúde mental na atualidade. Não podemos esquecer da principal contribuição de Basaglia que foi a sua experiência de luta em prol de seus ideais antimanicomiais. O constante repensar a saúde mental podem propiciar o distanciamento de práticas/saberes opressores e reprodutores de desigualdades no nosso cotidiano. Assim, como Basaglia questionou a ciência do seu tempo sobre o que sabiam sobre a loucura, nós ainda temos muito que colocar em discussão sobre os desafiadores saberes e práticas em saúde mental do nosso tempo. Questionar as novas formas de aprisionamento e silenciamento do sujeito em nossa sociedade. Refletir sobre o nosso posicionamento enquanto profissionais da área da saúde mental. Para quem e para quê estamos trabalhando e produzindo saberes? A favor dos pacientes ou a favor da imposição da Indústria Farmacêutica e das classificações diagnósticas? E os saberes médicos já foram questionados o suficiente diante da aprovação de certo “Ato Médico”? E os outros saberes como o da psicologia, psicanálise, serviço social, da terapia ocupacional? Em quê estão contribuindo para os avanços da reforma psiquiátrica brasileira? E os saberes produzidos no interior das universidades? Em que estão contribuindo na prática? Considera-se a partir dessas provocações a importância de sermos profissionais comprometidos em manter um posicionamento crítico e reflexivo em relação ao constante processo de reforma psiquiátrica que precisa ser construído em nossas práticas da saúde mental cotidianamente. Fica para nós, brasileiros, nos inspirar nessas contribuições basaglianas sem que elas fiquem perdidas na história, para continuarmos a “inventar/superar” nossas formas de pensar e agir em saúde 18 mental. Para que haja cada vez mais a (re) inserção dos portadores de sofrimento mental em nossa sociedade com a devolução de sua liberdade, dignidade, autonomia e plena cidadania. Referências Bibliográficas: Amarante, Paulo. (1996). O homem e a serpente: outras histórias para loucura e psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz. Basaglia, Franco. (1982). A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. (3ªed.) São Paulo: Brasil Debates. Goulart, Maria Stella Brandão. (2007). As raízes italianas do movimento antimanicomial. São Paulo: Casa do Psicólogo. 19 A COLÔNIA JULIANO MOREIRA NA DÉCADA DE 1970 Cleice Menezes - COC/Fiocruz – [email protected] Cristiana Facchinetti – COC/Fiocruz Colônia Juliano Moreira – Previdência Social – Década de 1970 Este trabalho pretende analisar a Colônia Juliano Moreira no contexto histórico de 1967 a 1979, tendo por objetivo demarcar o lugar desta instituição no contexto da assistência psiquiátrica do período, focando para as mudanças e/ou continuidades das políticas assistenciais e a influência das mesmas no interior desta instituição. Desta forma, este trabalho articula políticas de saúde mental do período com o conjunto de práticas e produções da Colônia. A pesquisa aqui delimitada visa contribuir para a história e para a historiografia da psiquiatria com um estudo sobre a psiquiatria do Rio de Janeiro em fins da década de 1960 até 1979. A investigação em que se baseia o trabalho ora apresentado pretende colaborar para lançar luz sobre o período por meio de trabalho em fontes primárias e secundárias. Assim, a pesquisa vem lançando mão de uma análise bibliográfica acerca do tema, bem como da análise de fontes do acervo da DINSAM presentes no arquivo do Instituto Municipal de Assistência a Saúde Juliano Moreira- IMASJM.. Vale dizer, há pouca pesquisa sobre o período e o que se encontra costuma advir de um recorte de leitura de atores da Reforma Psiquiátrica,3 que escreveram sobre o processo a partir das lentes políticas do asilamento a partir da década de 80.4 De fato, a ênfase historiográfica tem sido colocada sobre da Reforma Psiquiátrica, com destaque para as décadas de 1980 e 19905. Outro período privilegiado é o de criação do primeiro hospício brasileiro, no século XIX, até meados dos anos 1930 (Venancio e Cassilia, 2010, p.52). 1. O nascimento da Colônia Juliano Moreira, os fundamentos teóricos que a sustentaram e a consolidação de um projeto A década de 1920, é um importante marco temporal, na história cronológica da Colônia Juliano Moreira- CJM. Através de Lougon somos informados que “A idéia central que norteava a criação destes estabelecimentos era a de manter os doentes mentais em colônias agrícolas, dotadas de extensas áreas verdes e distantes do centro urbano, onde sua presença era incômoda e, ao mesmo tempo, conservá-los ocupados, cultivando a terra ou trabalhando em oficinas” (Lougon, 2006, p.61). Nesta análise, o autor se foca principalmente no papel disciplinador da criação da Colônia. Porém, outras motivações que levaram a tal execução são igualmente importantes para a compreensão da consolidação desse projeto, como a necessidade de ampliar a assistência aos doentes mentais. Em termos qualitativos, também é passível de observação os psiquiatras insistiam na necessidade de que os pacientes tivessem mais espaço livre para o desenvolvimento da agropecuária e de oficinas. Isso é importante quando se considera o quanto o trabalho visto como terapêutico para os psiquiatras: era, o que impedia a ociosidade dos doentes, direcionando-os para a realidade preconizada pelos mesmos, compreendida em termos de sanidade. Em termos quantitativos vale ressaltar que as colônias aliviavam o inchaço populacional existente no Hospital Nacional de Alienados. Os médicos acreditavam que a plena eficácia do tratamento e cura psiquiátrica dos pacientes agudos (o maior objetivo daquela instituição) vinha sendo impedida ou obstacularizada pela superlotação do HNA, que 3 4 5 Reforma Psiquiátrica pretende construir um novo estatuto social para o doente mental, este pretende modificar o sistema de tratamento com uma maior sociabilização do doente mental e uma maior participação dos familiares e dos integrantes das redes hospitalares, como médicos, enfermeiros e corpo administrativo. 20 acabava também por atender uma população de doentes crônicos que atingia a eficácia dos tratamentos e influía nas estatísticas de alta do hospital. Finalmente, considerava-se que a construção de tais colônias poderia “reduzir o ônus financeiro do Estado com a manutenção”, já que o trabalho dos internos seria, supostamente, suficiente “para que o modelo fosse pelo menos parcialmente autofinanciável”(Lougon, Azevedo, Sayd, 1984, p.04). Quanto à assistência, foram dois os modelos adotados a partir da criação da colônia: o trabalho terapêutico e a assistência hetero-familiar.6 O trabalho dentro das colônias visava resgatar o que ainda restava de sanidade do doente, fazendo com que ele retomasse suas obrigações, se sentisse útil, ganhasse ou mantivesse uma profissão. Ou seja, considerava-se como garantidor da normalidade do indivíduo um dos valores que se mantiveram na modernidade: o trabalho. Já a assistência heterofamiliar, utilizada na colônia desde sua criação, também tinha por objetivo reintegrar o doente mental socialmente. Naquele programa, o indivíduo era entregue a uma família, e o mesmo elaborava atividades compatíveis a sua condição física e mental, ao mesmo tempo em que era acompanhado por um psiquiatra. Inicialmente, o interno era entregue para famílias de funcionários, mas este projeto foi ampliado, por volta de 1927; assim outras famílias que não tinham vínculo com a instituição puderam participar do programa (p.79). Resumidamente podemos ressaltar então, à guisa de conclusão, que a inauguração desta Colônia esteve em direta consonância com as diretrizes do Estado, que por meio de engenheiros, médicos e participação política buscava estabelecer no país uma sociedade moderna, ainda mais após 1930. , Não é então aleatoriamente que Rodrigues Caldas, primeiro diretor da Colônia, em seu discurso no lançamento da pedra fundamental, afirma que “a psiquiatria é também uma prevenção das loucuras, marginalidades, vícios que são obstáculos para a organização social”. 2. A privatização do setor público A partir dos anos 50, o predomínio do setor público é quebrado, e o hospital como centro assistencial ganha força. Edmar Oliveira,7 ressalta que o declínio do setor público foi notado pela queda do número de hospitais, de leito, de repasse de verbas, assim como dos procedimentos terapêuticos avançados. Com isso, as unidades foram “divididas” conforme o nível social; a unidade “privada liberal, para as classes altas; a privada concessionária do setor público, para as classes médias e os trabalhadores urbanos; e a pública, para os trabalhadores rurais e sobrantes de todo gênero”. (Sampaio apud Oliveira, 2004, p.63) Com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social, após a unificação dos IAP’S (Institutos de Aposentadoria e Pensões), em 1967, a previdência passou a ser regida por leis que competiam a todos os grupos, não sendo mais uma previdência dividida por categorias, como o Instituto Aposentadoria e Pensão dos Industriários- IAPI, ou dos Comerciários- IAPC. Naquele momento, a política do Estado passou a ser a de compra de serviços do setor privado. Oliveira (2004, p. 66), em acordo com outros autores do período como Magda Vaissman, considera que o Estado teria aliado a saúde pública ao lucro dos empresários, e com isso a saúde mental transformara-se em uma mercadoria. O Estado passou a privatizar o setor psiquiátrico e a doença mental passou a ser objeto de lucro, já que nesse período o número de vagas para enfermos pagos pelo Estado foi aumentado em hospitais psiquiátricos particulares, facilitando o lucro por parte dos empresários. Outra característica da década de 1960 foi o aumento no atendimento ambulatorial, a ambulatorialização, que visava diminuir as internações. O discurso era de que além de impedir a cronificação de doentes, a diminuição no número de internação poderia significar mais dinheiro para os cofres públicos. Mas não foi isso que aconteciu, já que o Estado passou a ter que pagar aos ambulatórios, já que eses eram privados. “O atendimento ambulatorial inadequado e apressado, 6 A assistência hetero-familiar é um projeto europeu, que se baseia nas experiências vividas, na Bélgica, na Aldeia de Geel, que recebia romaria de alienados. Com isso muitos camponeses recebiam em suas residências dos doentes mentais, mediante o recebimento de pagamento. 7 em sua monografia apresentada como requisito de título para o Curso de especialização de Gestão em Saúde da Fundação João Goulart, em 2004 21 mantendo uma longa fila de espera e com uma quantidade de oferta sempre inferior à procura alimentava o dispositivo do internamento” (Oliveira, 2004, p.65). O período de maior expansão da privatização da saúde foi durante a década de 1970 (Escorel, Nascimento e Edler, 2005). No plano do discurso oficial, a assistência psiquiátrica foi alvo de propostas na Previdência Social para reformulação de suas práticas apoiada nos princípios da psiquiatria comunitária. Entretanto, tais reformulações não chegaram a se tornar realidade, “em virtude da privatização da assistência psiquiátrica e do privilégio, concedido pelo Estado, às empresas hospitalares. Em conseqüência disto, manteve-se o sistema asilar, obsoleto e medieval” (Vaissman, 1983, p. 1). Foi nesse período que um maior número de leitos foram disponibilizados no setor privado. Durante o governo Médice (1969-1974), a insatisfação com a ditadura ganhava força, os salários estagnaram enquanto os preços subiam. e o modelo de governo entrou em declínio. Os movimentos sociais aos poucos se reuniram e as denúncias sobre o caos que passava a saúde pública aumentavam. O movimento sanitário, que ganhara força durante este governo devido às críticas ao sistema de saúde vigente, teve inicio a partir dos Departamentos de Medicina Preventiva (DMP), que mesmo após o golpe militar fez duras críticas à teoria preventista, preconizando “uma visão extramuros, extrahospitalar, mais integral” (Escorel, Nascimento e Edler, 2005, p.64 3. O caso da Colônia Juliano Moreira e a influência das políticas assistenciais Para a análise do macro-hospital psiquiátrico8 Colônia Juliano Moreira utilizaremos as considerações feitas por Luiz Cerqueira (1984).9 Consideramos tal publicação como uma excelente fonte primária encontrada ao longo da pesquisa, por nos fornecer dados gerais (do Brasil) e específicos (da CJM) e o modo como aquele ator tomou para si a tarefa da crítica e a proposta de mudança da psiquiatria local. O percurso ao longo do livro nos mostra um Cerqueira que passou de um entusiasta das mudanças que buscava implementar a um analista melancólico dos obstáculos para uma psiquiatria comunitária no Brasil. Por meio de seu texto, vemos um projeto que se pôs em construção desde o fiinal dos anos de 1960 que por causa de interesses econômicos e políticos diversos, não conseguiu se instalar com sucesso. No recorte temporal aqui analisado, os leitos psiquiátricos públicos foram limitados em sua quantidade, enquanto os leitos da rede privada tiveram um expressivo aumento; se em 1941, os leitos particulares eram 3.034, em 1975 passaram a ser 55.670; já os leitos “oficiais” eram 21.079 e passaram a ser 22.603. Com esses dados reforçamos a análise feita no tópico anterior acerca da monopolização dos serviços psiquiátricos por parte dos empresários de saúde. Porém, não estamos aqui afirmando que esta prática não foi denunciada na época, tanto foi que o coordenador da Saúde Mental do estado de São Paulo, em 1974, perdeu o cargo por incomodar os empresários paulistas pelas críticas feitas ao sistema vigente. Quanto à situação dos internos no interior da instituição analisada, esta é crítica; no ano de unificação dos institutos de aposentadoria, os óbitos eram três vezes maior do que em qualquer outro hospital para crônicos no país. Através das pesquisas realizadas em estatísticas do período, podemos verificar, além disso, que naquele momento, a CJM não punha em ação uma filosofia assistencial que considerasse o interno dentro do seu contexto familiar e sócio-cultural, ou que pensasse a internação como propósito para o retorno do individuo a sua vida cotidiana. Ao contrário, a instituição não oferecia um programa de diagnóstico ou tratamento precoce, reabilitação ou prevenção 10 e os que lá estavam permaneciam por muitos anos, 877 dias em média- aproximadamente 2 anos e 4 meses ( e nas instituições públicas o tempo estimado era de 166 dias ou 5 meses aproximadamente) Assim, ainda em 1967, dos 7.298 internos crônicos em todo o Brasil, 4.923, estavam na CJM, 2.123 além da capacidade permitida. A colônia possuía ainda um elevado número de readmissões, 225 8 Designação utilizada por Luiz Cerqueira. 9 Publicação de 1984, “Psiquiatria Social- Problemas Brasileiros de Saúde Mental”. 10 BRASIL. MPAS/INPS/SAM - Manual de Serviço de Assistência Psiquiátrica – ODS – 304.3, de 19.7.1973 – BS/DS 177, de 14.9.1973 22 para cada cem primeiras admissões. Luiz Cerqueira ainda cita que o índice de renovação anual 11 de um hospital para não ser considerado um hospital de crônicos deveria ser de quatro vezes por ano, e a Colônia teria sua renovação de 0,5. Isso quereria dizer que com isso ela levaria cerca de dois anos para se renovar. (Cerqueira, 1984, p.78). Quanto aos óbitos “2,5 óbitos para 100 saídas, na rede particular. 1,9 na rede oficial, apesar do contrapeso de 10,7 na Colônia.” (Cerqueira, 1984, p.78). Podemos compreender através dos dados apresentados que na Colônia Juliano Moreira havia um grande índice de mortes para cada 100 saídas, Cerqueira também explicita que a doença mental não mata, então pode concluir que tais indivíduos morreram provavelmente pela ineficácia da reabilitação proposta pelo hospital. Como o capitalismo e o interesse financeiro foram um dos fatores que contribuíram para a degradação dos hospitais, e como o hospital era considerado o reabilitador, e a única forma de terapêutica estava diretamente ligado a ele, os internos também sofreram esse processo de aleijamento. Cerqueira acreditava que enquanto os hospitais particulares estivessem recebendo apoio financeiro do INPS para internação integral por tempo indeterminado não seria possível uma mudança eficaz de “reabilitação” da Colônia e de seus crônicos.. Algumas soluções que auxiliariam para a redução do tempo de permanência foram levantados, no cidade letrada muitas propostas foram dadas mas no concreto caso da CJM ainda não sabemos de alguma que tivesse sido posta em prática no período estudado. Até o momento, não encontramos nas fontes referências que demonstrem ter ali havido um tratamento eficaz no período, dentro do que se pensava ser um tratamento eficaz naqueles tempos: atendimento ambulatorial, cuidados especiais com os egressos, clínicas de orientação da infância e adolescência, que pudesse abranger toda a sociedade, psicoterapia, hospital-dia, hospital-noite ou de enfermarias psiquiátricas, além de serviços extrahospitalares. Além disso, os autores denunciavam como um outro elemento crucial contra a eficácia do asilo o número reduzido de psiquiatras que na Colônia contabilizam um para cada 267 internos. O Manual de Serviço para a Assistência Psiquiátrica, elaborado em 1973 e publicado em 1974, e que tinha ênfase na assistência extra-hospitalar, consagrava a equipe multi-profissional, com assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e terapeutas, e criticava as internações nos macro-hospitais, organizado tendo como objetivo a mudança radical da assistência, jamais foi posto em ação. Suas propostas foram ignoradas. Em conseqüência, os dados que encontramos demonstram que em meados da década de 1970 continuavam internados na CJM mais da metade dos internos crônicos do Brasil. Além disso, morriam ali seis vezes mais internos do que em qualquer outra instituição no país. Assim, ainda que se possa fazer a crítica de uma literatura de ação política, interessada, que foi produzida por ativistas da causa da Reforma, vemos através dos dados que encontramos em meio da documentação do DINSAM que no período estudado, em especial na década de 1970, a situação na instituição estudada era mesmo calamitosa, numa rotina tediosa e horrenda em que mais da metade dos internos domiam nos naturalizadíssimos leitos-chão, enquanto tantos e tantos outros eram mantidos trancados nos quartos-fortes. Bibliografia AMARANTE, Paulo D. de C. Psiquiatria social e colônias de alienados no Brasil (1830-1920). Dissertação de Mestrado em Medicina Social : Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1982. BRASIL. MPAS/INPS/SAM - Manual de Serviço de Assistência Psiquiátrica – ODS – 304.3, de 19.7.1973 – BS/DS 177, de 14.9.1973. CERQUEIRA, Luiz. Psiquiatria Social: problemas brasileiros de saúde mental. Rio de Janeiro: 11 Este cálculo é feito pelo número de saídas, altas+transferências+óbitos, no ano e dividido pelo nº de internos que estão no hospital no final do ano. Este cálculo dá uma idéia do tempo médio de permanência dos doentes. 23 Livraria Atheneu, 1984 ESCOREL, Sara.; NASCIMENTO, Dilene. Raimundo do Nascimento.; EDLER, Flávio Coelho. As origens da Reforma sanitária e do SUS. pp. 59 – 81.In : LIMA, Nísia Trindade; GERSCHMAN, Silvia EDLER, Flávio Coelho; SUAREZ, Juarez Manuel (Orgs.) Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005 LOUGON, Maurício – Psiquiatria Institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. LOUGON, Maurício; AZEVEDO,Creuza da Silva; SAYD, Patrícia Dutra . Assistência Psiquiátrica no Brasil- Modelos e estratégias entre 1920-1940 in: Colônia: Cadernos de psiquiatria social/ Colônia Juliano Moreira- 01/1984, p. 06. Editor: Rio de Janeiro: A colônia, [1983?]- Cad. Psiq. Social, 2(1) : 3-8, 1984 MACEDO, Maurício Roberto Campelo. Políticas de saúde mental no Brasil. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1981 MEDEIROS, Tácito Augusto. Formação do modelo assistencial psiquiátrico no Brasil. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1977 OLIVEIRA, Edmar. Engenho de Dentrodo lado de fora: o teritório como um Engenho Novo. 124 f. Monografia para o curso de especialização de gestão em saúde – Fundação João Goulart, 2004. SAMPAIO, José Jackson Coelho. 1988. Hospital Psiquiátrico Público no Brasil: a Sobrevivência do Asilo e Outros Destinos Possíveis. Dissertação de mestrado. Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. RJ. VAISSMAN, Magda. Assistência psiquiátrica e Previdência Social: análise da política de saúde mental nos anos 70. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1983 VENANCIO, Ana Teresa A.; CASSILIA, Janis A. História da política assistencial à doença mental (1941-1956): O caso da Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro. XXIV Simpósio Nacional de História, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil: Associação Nacional de História, Retirado do site, em 13 de Julho de 2010. http://snh2007.anpuh.org/ 2007. 24 RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA E SAÚDE MENTAL: BASES PSICOSSOCIAIS DA CURA Cristiana Tramonte- UFSC, [email protected] Palavras-chave: cultura afro-brasileira e saúde menta; umbanda; cultura afro-brasileira Introdução O trabalho apresenta aspectos de pesquisa desenvolvida junto a centros de religiosidade afrobrasileiros em Santa Catarina, notadamente Umbanda. Desde seus primórdios, é estreita a correlação entre as religiões afro-brasileiras e os aspectos físicos e psicossociais da dualidade saúde/doença. O preconceito e as justificativas à perseguição e repressão às práticas religiosas, se ocultarão sob as acusações de curandeirismo e prática ilegal da medicina empreendidas entre outros, pelos próprios profissionais da saúde. Na outra face deste fenômeno, a busca da saúde física e psíquica está entre os principais motores impulsionadores da adesão à religiosidade afro-brasileira, de indivíduos em situação de desesperança. As doenças do corpo e da alma que a medicina oficial não conseguiu solucionar estão entre as maiores responsáveis pela busca e crescimento desta forma de religiosidade. As curas populares na origem das religiões afro-brasileiras locais A origem das religiões afro-brasileiras em Santa Catarina remonta a meados do século XIX. Seus adeptos não podiam revelar-se ou organizar-se abertamente diante da violência física e simbólica que pairava sobre estes. A violência era oriunda dos preconceitos e conseqüente perseguição advindos da condição de marginalização e exclusão social de seus primeiros criadores, os negros africanos em situação de escravidão. Estudos anteriores indicam a ligação das religiões afro-brasileiras com seu aspecto terapêutico, tanto no sentido físico quanto psicológico. Pode-se afirmar que, na antiga Vila de Nossa Senhora do Desterro, as práticas alternativas de saúde estão na raiz das práticas religiosas afrobrasileiras. A cura procurada e exercida pelos pobres que não podiam arcar com os custos da medicina alopata, será o principal motor pelo qual, surgem, afirmam-se e crescem as práticas religiosas afrobrasileiras. Estas tem, nos seus primórdios, as benzedeiras, em geral mulheres das classes baixas da população, que possuíam grande prestígio pelo poder a elas atribuído de cura espiritual e física, com o auxílio de rezas e ervas, numa clara mistura de terapêutica corporal e espiritual. Os primeiros intelectuais que se destacaram nas pesquisas neste campo eram, muitos deles, médicos. Nina Rodrigues e Arthur Ramos em nível nacional e, em âmbito local, Oswaldo Rodrigues Cabral. Os primeiros argumentos contrários às práticas da benzedura associam-nas ao charlatanismo12 e ignorância. A obra de Cabral13 é um marco, porque, além de pioneira, é fruto de pesquisa desenvolvida há meio século e contribuíram para o registro, sistematização e inserção do tema da cultura médica e religiosa popular local no meio acadêmico14.”Curandeiros, feiticeiros e benzedeiras” e todos envolvidos com alternativas populares de saúde eram alcunhados como “charlatães” 15e rejeitados como praticantes de “falsa medicina”. Em contraposição, a redenção para os males da ignorância popular seria a “verdadeira medicina”, da Academia, hegemônica, calcada no cientificismo 12 Maggie localiza o surgimento do termo charlatanismo no Código Penal de 1942, art. 282: “charlatanismo é a prática da macumba e do candomblé, rituais de pessoas ignorantes, que devem ser controladas e penalizadas evitando que façam o mal”. (p.190) MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço. Relações entre poder e magia no Brasil. RJ: Arquivo Nacional, 1992. 13 . Medicina, médicos e charlatães do passado. IBGE, Departamento Estadual de Estatística. Estado de Santa Catarina. Imprensa Oficial, publicação nr.25, 1942 14 Duarte demonstra que estudos recentes tem incorporado o termo “psicossocial” para suprir a insatisfação com a categorização das representações sobre o humano na cultura ocidental moderna que fragmenta corpo e mente. Ele aponta que a partir da Segunda Guerra Mundial, vem se consolidando uma reação ao que denomina um “reducionismo biomédico”. DUARTE, Luis Fernando Dias. A outra saúde:mental, psicossocial, físico-moral .IN: ALVES & MINAYO (orgs.) Revista Saúde e Doença. Um olhar antropológico. RJ: Fiocruz, 1994 15 Maggie demonstra que o Código Penal de 1985 (art. 283) mantém inalterada a classificação de charlatanismo como “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível” deixando aberta a brecha para a interpretação das práticas religiosas afro-brasileiras como “charlatanismo” (op.cit, p.47). 25 racionalista ocidental, formadora das concepções da elite médica.Quando os princípios de cura começavam a ser exercido pelas classes populares, estes eram então perseguidos como feiticeiros, charlatães, curandeiros, terminologia destinada a criminalizar qualquer prática de saúde alternativa à Medicina alopata consagrada na Academia. As práticas populares de saúde: estigmas e desafios No século XIX, sob a denominação de “crendices e superstições” há indícios da presença de vários elementos de forte significação ritual para os praticantes das religiões afro-brasileiras cuja descrição corresponde exatamente aos relatos atuais de umbandistas, como “Pai Leco”: Aí minha mãe incorporou a Vó Estefânia e começou a fazer consultas e rezas, tornouse benzedeira. Minha mãe atendia num quartinho e a comunidade participava porque tudo elas benziam; espinhela caída, olho gordo, mau olhado, cobreiro, torção de pé, embruxado, zipra”. Na Desterro do século XIX, é incontestável a existência de práticas similares também denominadas “feitiçaria” e, desde tempos imemoriais, associadas à população negra: “Foi uso antigo apelar para os africanos, conhecedores de secretas forças e misteriosas composições. Alguns desmanchavam coisas feitas por outrem; e não raro atendiam ao apelo de fazer...feitiço por vingança...” (Cabral, op.cit .p.268). A repressão contra os “feiticeiros” era acionada sempre que se constatava sua existência, a prática era desautorizada e sobrevivia na clandestinidade.. Em 1831, um decreto da Câmara Municipal de Desterro indicava que “Todo indivíduo branco ou preto forro que em sua caza fizer ajuntamento de pretos, que dizem feitiçarias ou Bangalez...encorrerá na pena de 15 dias de prizão” (idem).Em finais do século XIX é incontestável a existência de traços das religiões de origem africana entre os moradores de Desterro: “Os presos Manoel Secretario e Domingos Gama, denunciados como feiticeiros, residentes no Sacco dos Limões...estes dois africanos já velhos, se empregavão no exercício do fetichismo, pretendendo fazer curativos por meios supersticiosos, iludindo”. (idem, p.269) A “higienização modernizadora” e as práticas religiosas afro-brasileiras Analisando a primeira metade do século XX, Campos16 informa como desencadearam-se dispositivos de controle sobre o corpo e a mente dos habitantes urbanos. O saneamento proposto durante o governo Nereu Ramos tinha conotações físicas e morais. Pobreza, vadiagem, loucura e crime passam a ser vistos como elementos interrelacionados e ameaçadores à nova sociedade que se quer moderna, racional e voltada para o trabalho neste contexto saneador e higienizador. As práticas de saúde afro-brasileiras representavam um desafio. Em primeiro lugar, porque para os adeptos destas, a “loucura” poderia ser apenas uma “mediunidade” que necessitava aflorar e ser desenvolvida17; em segundo lugar, pobreza para este grupo significava a herança da escravidão e da sociedade moderna do século XX preparada para a marginalização do negro; a vadiagem era o resultado da exclusão do mercado de trabalho que atingia a brancos e negros pobres; e por último crime era tudo aquilo que a legislação considerava como tal e para tanto, benzedores, curandeiros e feiticeiros eram criminosos em potencial, passíveis de prisão. A população negra e pobre estava incluída nos quatro grupos “ameaçadores” à Florianópolis cujas elites a sonhavam “moderna e desenvolvida” e que necessitavam abolir o passado e seus atores marginalizados pela desagregação da velha estrutura econômica e que a nova ordem não desejava incluir. Sodré18 analisa como o escravo e a população negra em geral configuraram-se historicamente como um empecilho ideológico à higiene e modernização e foi relacionado à insalubridade.A liberdade 16 CAMPOS, Cynthia Machado. Controle e normatização das condutas em Santa Catarina (1930-1945). Tese de mestrado. SP:PUC, 1992 17 Nos depoimentos de umbandistas, uma grande porcentagem deles relata que adentrou na religião porque estava agindo “como louco”, “ficando louco de fato”, ou “sendo visto como louco”. Os desequilíbrios mentais, tal como considerados pelo conhecimento médico psiquiátrico hegemônico, são companheiros constantes das religiões afro-brasileiras. 18 SODRE, Muniz. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, 1988. 26 do corpo, eixo central da cultura desta população choca-se de frente com os referenciais culturais das elites de origem européia, que propugnam o afastamento corporal. O desejo de “europeizar-se” estigmatizava o contato dos corpos como “promiscuidade”. Após a Abolição, a proximidade física entre negros e brancos passou a ser vista como ameaça maior do que a barreira da diferença estamental, resultante do que Sodré denomina como “tranqüilidade hierárquica”. A preocupação com a saúde e educação do corpo e o “melhoramento da raça”, ocupam o centro das preocupações do Primeiro Congresso de Brasilidade, ocorrido em Santa Catarina nos anos 50, como demonstra Campos (op.cit). A exclusão de “tipos inferiores da espécie” e a “aquisição das boas heranças”, o “culto à beleza e consciência da saúde” são preocupações afinadas com os sistemas totalitários coerentes com o nazi-fascismo emergente na época na Europa, com reflexos integralistas no Brasil. Este ideário de “aperfeiçoamento da raça” atinge diretamente as religiões afro-brasileiras em âmbito local. Em primeiro lugar, porque a população que a praticava pertencia majoritariamente ao grupo negro, excluído do arcabouço de idéias que pregava a eugenia; em segundo lugar, porque muitos dos necessitados que buscavam aquelas práticas religiosas estavam naquele grupo denominado por esta lógica de pensamento como “inferiores da espécie”, pois alguns deles apresentavam algum desequilíbrio emocional ou físico, do ponto de vista da normatização das condutas vigentes. As “boas heranças” certamente não se referiam àquelas dos ex-escravos. Por último, a “consciência da saúde” implicava na afinação com os preceitos da Medicina oficial vinculada à uma concepção racionalista e positivista. Para esta medicina, as práticas de saúde alternativa reduziam-se, pura e simplesmente, à “feitiçaria”. Medicina e normatização das condutas: a exclusão da cultura afro-brasileira A medicina e as religiões afro-brasileiras caminharão sempre ligadas. Diz Maggie:“Pode-se dizer que o campo religioso se entrelaça com o jurídico-burocrático-policial e médico e que essas instituições são cruciais para o entendimento das chamadas religiões mediúnicas”(op.cit.,p. 191) Campos (op.cit) aponta que a época analisada (1930-45) é marcada pela normatização e internalização de padrões de comportamento unificadores. Todo o período foi guiado pela inspiração totalitária, sob os ditames de um nacionalismo de Estado que se impunha pela força de um autoritarismo destruidor da diversidade e unificador pela ordenação de decretos. O disciplinamento médico-sanitário foi um dos eixos desta política autoritária. As estratégias de normatização faziam parte de uma estrutura global que transformava completamente o cenário urbano e rural de Florianópolis, mantendo sob controle diversos aspectos da vida pública e privada. Em Santa Catarina, a modernidade proposta que implicou na instalação ou reformulação de instituições como hospitais, manicômio e prisão, significou também uma maneira diferenciada de tratamento dado ao “doente, louco, pobre ou criminoso” que resultou na “generalização da prática de internamento”. Campos aponta como a instituição desta prática alterou o referencial do imaginário do cidadão acerca do que poderia ser um desvio de conduta e resultou em uma espécie de auto-censura e censura coletiva, com uns vigiando aos outros mutuamente: “percebendo o encarceramento como possibilidade, na esfera das representações que faziam da ordem social, os indivíduos tenderam a controlar suas próprias condutas e as alheias.”(op.cit,p.103). Este processo de “reforma moral” visava a integrá-los a um tipo de ordem cujo valor máximo e universal é o trabalho. Esta auto-censura e censura aos outros, além da proeminência da importância do trabalho na ordem racional do capitalismo moderno pode auxiliar na explicação dos fundamentos pelos quais será justificada a perseguição intensa aos cultos afrobrasileiros. Na Florianópolis das primeiras décadas do século, a própria sociedade, em nível das microrelações, tratará de apontar e perseguir os “feiticeiros” entre seus vizinhos, amigos e familiares. A auto-censura empurrará os praticantes da saúde popular para o anonimato, a ministrar rezas, benzeduras e remédios caseiros somente em âmbito privado, como nos fundos da própria casa, ou da casa do necessitado, numa atividade silenciosa e discreta, muitas vezes desconhecida até mesmo da própria família que muitas vezes condenava tais atos. Segundo Campos, a afirmação da instituição 27 familiar foi um esteio da normalização das condutas empreendida pelas elites. A própria família encarregava-se de excluir de seu convívio os “loucos e doentes” e exercia vigilância sobre seus membros. A diversidade torna-se intolerável, e o modelo de conduta da elite o único a ser seguido. A identidade da família passa a ser construída na direção da uniformização afinada com o modelo dominante construído pelas elites. A institucionalização da modernidade higienizadora das elites só foi possível porque, no nível das micro-relações, os indivíduos assumiram tais tarefas como suas. Entre aqueles passíveis de internamento por loucura na Florianópolis de então, estavam até mesmo os supersticiosos,entre estes entenda-se aqueles que acreditavam, recorriam, ou praticavam os cultos afro-brasileiros ou apelavam para seus rituais. A doença mental era ligada diretamente a condutas não compatíveis com o trabalho, num amplo leque do que foi denominado “comportamento desviante”. Ou seja, é louco todo aquele cuja conduta não é racional, e é racional tudo aquilo que está ligado ao trabalho. Ora, se considerarmos que o grupo negro permanecia à margem do mercado de trabalho, como já indicado largamente em diversos estudos, considerável parcela do grupo negro tornava-se vulnerável à inclusão como “desviante ou louco”. Diz Campos: “Para o conjunto da população catarinense afirmar sua face cidadã disciplinada, trabalhadora, higiênica e saudável precisava ter-se constituído o polo oposto...aqueles que divergiam dos demais cidadãos” (op.cit,p.118). Para os novos anseios modernizadores e higienizadores das classes dominantes da época, apontar o “desviante” é necessidade para a afirmação daquele que “não é desviante” - o conceito se define pela negação de seu contrário. Modernização e saúde popular: embates e preconceitos As figuras do “curandeiro”, “feiticeiro”, "benzedor”, denominações atribuídas aos praticantes da saúde alternativa, não se encaixavam no perfil do trabalhador disciplinado, saudável e racional do ideário dos anos 30 em Florianópolis. Pois, se fosse disciplinado, na concepção hegemônica modernizadora vigente, não poderia atender às inúmeras solicitações de necessitados a qualquer hora do dia, às vezes de madrugada, sempre no momento em que o consulente demandasse. A disciplina rígida é incompatível com a prática espiritualizada dos benzedores e curandeiros de então, que caminhava livremente por uma lógica antagônica à da racionalidade. Se fosse saudável física e mentalmente, dentro do conceito cientificista da Medicina oficial da Academia, não necessitaria recorrer aos cultos religiosos de reequilibro físico e espiritual; se fosse racionalista, do ponto de vista cartesiano, não seria místico e religioso. A conseqüência deste esforço modernizador das elites foi a segregação da pobreza. Além do isolamento em prisões e manicômios, também segregou-se os ditos “normais”, porém pobres, nos morros e arredores da cidade (Campos, op.cit). A “profilaxia urbana” adquire principalmente uma conotação social, ao lado do caráter meramente técnico. As preocupações sanitárias e de organização e embelezamento das áreas urbanas centrais, eixos da modernidade pretendida, não incluíram uma opção democratizadora dos espaços e possibilidades da cidade. Ao contrário, objetivaram construir uma barreira invisível: de um lado, as classes médias emergentes e elites, ocupando as áreas centrais e nobres, carreando a maior parte dos recursos do Poder Público e, portanto, melhor atendidas; de outro, as classes populares, empurradas para os morros e áreas rurais. Estas eram majoritariamente integradas por indivíduos negros e uma parte de brancos pobres, desempregados ou sub-empregados, marginalizados pela estrutura econômica moderna ou seja, indivíduos sem condições estruturais de adaptarem-se e integrarem-se às novas demandas sociais. Ciência e fé: construindo novas fronteiras O pensamento médico hegemônico desprezou as causas psicossomáticas das doenças. Recentemente, as causas de origem emocional e psíquica são admitidas entre alguns profissionais da saúde como origem de doenças orgânicas19 e correspondem à maior porcentagem dos indivíduos que procuram a Umbanda. Segundo seus adeptos, esta traz benefícios psíquicos e emocionais e também físicos dada a importância e eficácia das ervas e remédios caseiros utilizados, mas estas alternativas são desprezadas pelo cientificismo hegemônico desde do início do século XX. Este, incapaz de 19 Os termos aqui utilizados tem sua base na experiência empírica, não havendo preocupação maior com a precisão técnica dos mesmos, que não é objetivo deste trabalho. 28 considerar contribuições de outras origens epistemológicas, nega a contribuição das tradições culturais populares do povo brasileiro – notadamente indígenas e negros – e proclama a supremacia absoluta da “nova” verdade médica, elaborada nas Academias. Nas primeiras décadas do século XX, o pensamento hegemônico dos profissionais da saúde acreditava que o avanço da Medicina oficial exterminaria as diversas práticas alternativas de saúde mas, o que se vê atualmente é a associação cada vez mais estreita entre fé, religiosidade e ciência, tanto da parte de indivíduos leigos, como profissionais da saúde. Vários dentre estes utilizam suas próprias crenças religiosas no trabalho cotidiano em uma “nova tendência que está colocando por terra a impressão equivocada de que medicina e ceticismo andam juntos” 20. São profissionais médicos que, no próprio receituário, indicam, além dos remédios da ciência oficial, os sugeridos por suas próprias religiões. “E isso inclui desde passes receitados por médicos espíritas, até ir para o confessionário”(idem). Grupos de profissionais estão se unindo e formando associações que tem a religião como denominador comum21. Em Joinville, o médico psiquiatra Rui Arsego, propõe o debate em torno dos “novos paradigmas da medicina”. Criticando a ciência praticada majoritariamente no Ocidente, aponta a importância das forças energéticas do Universo, a necessidade da busca do equilíbrio dinâmico com o meio e do respeito e inclusão das terapias alternativas22. A partir destes dados, pode-se perceber que, o afastamento da ciência em relação à religião vai sendo superado, ao menos parcialmente, numa perspectiva integral que reúne corpo e espírito, conforme Rabelo23: “A importância dos cultos religiosos na interpretação e tratamento da doença tem sido amplamente reconhecida...Ao invés das explicações reducionistas da medicina, os sistemas religiosos de cura oferecem uma explicação à doença que a insere no contexto sociocultural mais amplo do sofredor” (p.47). Mais do que atribuir uma causa objetiva a estados confusos e desordenados, aponta a autora, a interpretação religiosa reorganiza estes estados em um todo coerente. Ela aponta a despersonalização causada pelo tratamento médico tradicional, enquanto o tratamento religioso preocupa-se com a totalidade do indivíduo, reinserindo-o como sujeito de seus relacionamentos no mundo. Passar da doença à saúde significa, assim, uma reorientação do comportamento do doente, da maneira como percebe seu mundo e relaciona-se com outros. As terapias religiosas podem auxiliar em tal transformação e vários estudos da atualidade tem se voltado para compreender o ritual religioso como um espaço de reorganização da experiência do sujeito no mundo 20 Isto é, 14/7/1999. Médicos de Fé. 21 A Associação Católica de Psicólogos e Psiquiatras em São Paulo é uma delas, reunindo 300 profissionais para debater lições do Evangelho e discutir questões cientificas sob os olhos da religião. Outra é a Associação Médica Espírita, que possui sede em 19 estados do país, aí incluído o estado de Santa Catarina e que, somente em São Paulo reúne 250 profissionais filiados. O médico neurologista Nubor Facure, um de seus integrantes, usa muito dos preceitos do espiritismo em seu trabalho. Em seu consultório, as portas ficam sempre abertas “para que os espíritos possam participar das consultas se desejarem”. Ele acredita que uma determinada doença pode se manifestar fisicamente, como a epilepsia, por exemplo e afirma que quando esse paciente vai buscar cura espiritual, tomando passes ou conversando com os médiuns sua melhora é significativa. Outro caso é o dos ecumênicos, como o endocrinologista e homeopata Eduvaldo Dorta para o qual, o importante é a fé que o paciente desenvolve diante de um problema, seja qual for a religião. Esta atitude mais contemplativa e menos racional trará a convicção da cura, e assim, haverá uma melhora progressiva. Ele indica, junto com os remédios convencionais, a meditação e a preceterapia, a terapia da reza. (idem) 22 A ciência médica, em sua concepção, carece de uma revolução que leve em consideração a vitalidade, negada no Ocidente e conhecida no Oriente como prana, uma força universal ativa em todos os seres vivos. O ser humano, para ele é um aglomerado de energia, em constante integração com o meio e deve ser tratado como um todo integral físico, emocional e energético. A Notícia, 17/2/2000. Seção Opinião. Joinville (SC) 23 RABELLO, Miriam Cristina. Religião, ritual e cura. In: ALVES & MINAYO (orgs.) Revista Saúde e Doença. Um olhar antropológico. RJ: Fiocruz, 1994 29 possibilitando, assim, que o doente caminhe na recuperação de sua saúde. “O ritual produz cura na medida em que permite uma mudança na perspectiva subjetiva pela qual o paciente e comunidade percebem o contexto da aflição”(idem, p.49) . Para a antropóloga, o doente redireciona sua atenção a novos ângulos de sua experiência, examinando-a com outra ótica. Assim, a cura seria não um retorno ao estágio inicial anterior à doença, mas a inserção do doente em um novo contexto em que é possível estar mais saudável para se situar de forma mais integral e menos fragmentada. Analisando o ritual do jarê, da Chapada Diamantina, Bahia, uma variante do “candomblé de caboclo”, Rabelo descreve o processo de expulsão do mal para fora do doente e a reconstituição do corpo, com o fechamento das extremidades e fronteiras enfraquecidas formando um círculo de proteção. “Se a doença se produz em uma situação de vulnerabilidade (corpo aberto), a cura busca redefinir o contexto relacional da doença”.(idem, p.51). Desta forma, o “fechamento do corpo” garante seu fortalecimento e uma posição menos vulnerável para relacionar-se no mundo. Do exposto, podemos inferir que as religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis originaram-se principalmente nas práticas alternativas de saúde de benzedores, curandeiros e “feiticeiros” dos finais do século XIX até a década de 40 do século XX. Estas representaram, para as classes populares da época, um das poucas alternativas de organização social e de busca de saúde física e espiritual. Suas práticas foram combatidas pela Medicina oficial hegemônica e pela chamada “higienização modernizadora” levada a cabo nas primeiras décadas do século XX em Florianópolis, ambas portadoras de uma concepção excludente, que marginalizou negros e pobres, os mentores culturais das religiões afro-brasileiras. 30 A PRÉ-REFORMA PSIQUIÁTRICA DOS ANOS 1970 EM SANTA CATARINA Profª Drª Daniela Ribeiro Schneider24 – (Profª. do Depto de Psicologia - PSICLIN/UFSC); Cristiane Budde (graduação em psi – UFSC); Monique Stahnke (graduação em psi – UFSC); Eliane Regina Ternes Torres (psicóloga - PSICLIN); Palavras-chaves: Resumo O texto discute as iniciativas de mudança na assistência psiquiátrica entre os anos 1971-1975, em Santa Catarina, durante o governo Colombo Salles, descrevendo o cenário dos antecendentes da Reforma Psiquiátrica no Brasil e refletindo sobre o papel histórico dessa iniciativa neste estado. Introdução Santa Catarina realizou nos anos 1970 uma experiência pioneira para a época, em direção ao que se chamava de Reforma da Assistência Psiquiátrica. Orientado por técnicos da Organização PanAmericana de Saúde (OPAS), o governo do Estado desenvolveu uma política de saúde mental, com base nas experiências da psiquiatria preventiva do governo Kennedy, alinhadas com as diretrizes da Divisão Nacional de Previdência Social que, a partir de 1962, determinava que o desenvolvimento da assistência psiquiátrica passasse a ocorrer de forma descentralizada e regionalizada, oferecida sempre que possível na comunidade, com uso de recursos extra-hospitalares, como em ambulatórios, hospitais gerais (Paulin & Turato, 2004). A experiência de Santa Catarina, pouco conhecida dos estudiosos da área, durou todo o período do governo Colombo Salles, de 1971-1975, atingindo o Sistema de Saúde do Estado como um todo. A descrição da constituição dessa experiência, a discussão do contexto onde ela se gestou, assim como as contradições que fizeram parte do seu desenvolvimento, são os principais objetivos deste texto. Metodologia A pesquisa que fundamenta este artigo tem um delineamento descritivo-exploratório, com características qualitativas, sendo realizadas entrevistas semi-estruturadas e análise documental. Os participantes desta etapa da pesquisa foram profissionais que estiveram presentes na história da atenção à saúde mental em Santa Catarina nos anos 1970. Foram entrevistadas oito pessoas: quatro psiquiatras; um enfermeiro; duas assistentes sociais, um médico, que ocupou o lugar de Secretário de Saúde no período estudado. A pesquisa seguiu todos os procedimentos éticos exigidos, com a assinatura dos termos de consentimento livre e esclarecido, tendo sido aprovada no comitê de ética de pesquisas com seres humanos da UFSC, sob número 739/2010. Os anos 1970 na história da saúde mental em Santa Catarina e no Brasil A história da atenção à saúde mental no Brasil ocorre em consonância com processos nesta área que ocorrem em outras partes do mundo, ainda que, algumas vezes, com algum atraso em sua realização. No Brasil, assim como em outras partes do mundo, a partir do final do século XIX, passa a predominar a política do macro-hospital público, principal instrumento de intervenção para a chamada “doença mental”. O Hospital Colônia Santana, em São José, no Estado de Santa Catarina, criado em 1941, foi um dos últimos desse modelo a ser criado no país. Esta política estava conectada com a da Liga Brasileira de Higiene Mental, criada em 1923, visando limpar os centros urbanos dos males sociais, que poderiam contagiar famílias e comunidades (Costa, 2010). O modelo produziu, em pleno século XX, aquilo que Foucault (1978) caracterizou como a “Grande Internação”, ocorrida na Europa 24 [email protected] 31 no século XVIII, quando se internavam indigentes, bêbados, vadios, deficientes e loucos, fundando grandes asilos para a higienização das cidades e controle social das populações. A fala de alguns de nossos entrevistados mostra essa condição no Hospital Colônia Santana quando, no início dos anos 1970, um grupo de profissionais assumiu a direção da instituição para fazer mudanças que urgiam: Como instituição eu a chamava de “associação de infelizes”, porque sempre tinham pobres, abandonados, inválidos, deficientes mentais, epilépticos e, no meio disso tudo, tinham loucos, que nesta situação só pioravam, tudo isso numa associação caótica, lamentável, inadministrável e sem recursos de modo geral. Porque? Porque o padre internava, o político internava, o juiz de direito internava, a família internava e a casa não tinha triagem, não tinha capacidade de se impor, de dizer a que ela se determinava, qual deveria ser seu objetivo. (Gonçalves, entrevista pessoal, 19 de outubro, 2010). Neste sentido, naquele momento histórico, o isolamento social da loucura passou a ser uma regra disciplinadora do seu tratamento. O desdobramento lógico dessa medida foi o descompromisso das famílias, das comunidades, dos governantes para com as pessoas que apresentavam problemas psíquicos ou desajustes sociais. Isto gerou o movimento de abandono dessas pessoas nos hospícios, que viraram verdadeiros abrigos, cada vez mais superlotados de todos os tipos de excluídos sociais, mantidos em condições insalubres, com muitos leitos-chão, constituindo-se em um “território dos horrores”. O que nós encontramos na Colônia Santana quando chegamos em 5 de agosto de 1971, no dia da posse? Nós fizemos uma contagem geral no hospital, colocamos todos os pacientes do lado de fora das enfermarias e pessoas na porta contando. Nós contamos 2156 pessoas internadas na colônia, que tinham entre camas e beliches 1400 leitos. Havia, então, 756 leitos-chão. O Professor Luis Cerqueira falava muito, que leito-chão era uma instituição brasileira (Kramer, entrevista pessoal, 2010). Este modelo, que passou a ser chamado pela literatura especializada de “modelo manicomial” (Amarante, 1995; Hirdes, 2009), gerou um forte processo de contestação mundial e nacional a partir dos anos 1950. Por outro lado, o aparecimento dos psicofármacos, a partir de 1952, respondeu aos anseios de uma psiquiatria que se pretendia científica e foi dar uma força nova ao já questionado modelo de assistência psiquiátrica. Esta nova onda veio acompanhada de uma discussão acerca da necessidade de diagnósticos precoces, que evitariam a instalação da chamada doença mental, bem como com a consolidação de estudos epidemiológicos, que traçariam o perfil da população com risco de adoecimento, fornecendo bases para uma proposta de profilaxia para este campo. Esses processos fundamentarão a chamada psiquiatria preventiva-comunitária, surgida nos Estados Unidos, elaborada por Gerald Caplan, consolidando-a enquanto política de estado americana, adotada no governo Kennedy, em 1963, que definiu como sendo “Saúde Mental” o campo sobre o qual atua (Leone, 1999; Paulin & Turato, 2004). Os princípios preventivos e comunitários passaram a ser adotados como proposta da Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo a Organização Pan Americana de Saúde a responsável por sua aplicação na América Latina (OPAS), consolidada na planificação da Reunião de Ministros da Saúde da América Latina em Santiago do Chile, ocorrida em 1972, da qual o Brasil foi participante (Santos, 1994). A proposta de transformação da assistência psiquiátrica sustentada nos princípios preventivoscomunitários efetivou-se, na verdade, como uma espécie de Pré-Reforma Psiquiátrica. No Brasil, essa política se consolidou através do “Manual de serviço para a assistência psiquiátrica”, editado em 1973, pela Secretaria de Assistência Médica do INPS, que regulou os anseios e discussões que vinham ocorrendo na categoria (Paulin & Turato, 2004). Incentivava a formação de equipes multiprofissionais 32 e apregoava princípios técnico-administrativos que estarão na base do futuro Sistema Único de Saúde (SUS), entre os quais a integração, regionalização, descentralização, constante aperfeiçoamento de pessoal, etc. Visava, enfim, evitar que a doença se instalasse, utilizando-se de programas de prevenção, ao montar uma rede de serviços comunitários e postular a humanização dos tratamentos, tendo como meta a “promoção da saúde mental”. Mas, no fundo, seu grande intuito, era o de baixar o custo das internações hospitalares, que arrancava grandes quantias dos cofres públicos (Leone, 1999). No entanto, segundo denuncia de Luis Cerqueira, o modelo preventista-comunitário, no Brasil, serviu como uma bela ideologia, mas pouco colocada em prática (Paulin & Turato, 2004). É bem por isso que a experiência das transformações da assistência psiquiátrica em Santa Catarina, entre os anos 1971-1975, durante o governo Colombo Salles, que seguiu a risca os princípios preventistas-comunitários teve sua importância histórica e deve ser conhecida pelos estudiosos da saúde mental no Brasil. Por outro lado, uma das principais razões para a não adoção do modelo preventista no Brasil foram os interesses privados na atenção à loucura, pois paralelos a edição do Manual, o próprio INPS começou a estabelecer convênios com as clínicas privadas, para dar conta da excessiva demanda de internação, sendo que esta prerrogativa sim despertou os interesses da maioria da categoria médicopsiquiátrica. Essa política da compra de serviços da rede privada acarretou que o “percentual de internações desta especialidade fosse elevado em 344% de 1973 para 1976” (Amarante, 1997, p. 167). Com isso, no final dos anos 1970, inverte-se a balança, e 70% dos leitos psiquiátricos no país passaram a ser de hospitais privados (Paulin & Turato, 2004). Dessa forma, tal processo promoveu a lógica da “mercantilização da loucura, ou se preferir, da indústria da loucura: o Estado ao comprar os serviços psiquiátricos privados, cria condições para a transformação da loucura em mercadoria. Por esses tempos, anos 1960-70, começou a se expressar com maior significância a antítese ao modelo de assistência dominante. A questão do resgate da cidadania do louco passa a ocupar lugar central nas reivindicações de muitos trabalhadores em saúde mental. A influência dos movimentos antipsiquiátricos de outros países começa a ter ecos mais consistentes nos movimentos sociais brasileiros (Leone, 1999). Na verdade, o sistema de saúde como um todo estava em crise na época e começavam a organizar-se reivindicações de mudança, que vão constituir o Movimento da Reforma Sanitária, influenciado pelos princípios do movimento preventivista, mas procurando superar certos impasses e limites deste, que irão definir novos princípios norteadores para as políticas de saúde, sendo base de constituição do Sistema Único de Saúde. (SUS) (Leone, 1999). Influenciado diretamente por este zeitgeist, o campo da saúde mental começa a propor mudanças nos modelos de atenção, sendo que surgem propostas concretas de modelos substitutivos ao manicomial, que vão consolidar-se como política pública para a área, no que se costuma chamar de Reforma Psiquiátrica Brasileira, consolidada na Lei 10216, de 6 de abril de 2001 (Tenório, 2002). Anos 1970 na Saúde Mental em Santa Catarina De acordo com o modelo desenvolvimentista brasileiro em época de governo militar, Santa Catarina, durante o Governo de Colombo Salles, entre os anos de 1971-1975 realizou o “Plano de Desenvolvimento Catarinense”. Este plano previa 13 programas, entre eles o da área da saúde (Governo do Estado de Santa Catarina, 1971). Na reforma dest área, Santa Catarina contou por estes anos com o apoio fundamental da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), que enquanto representante da OMS para a América Latina, realizava esforços de promover mudanças no sistema de saúde dos países, com vistas a modificar o modelo centrado em macro hospitais, que implicava em enormes gastos para os cofres públicos (Santos, 1994). Em 1971, antes mesmo da realização da Reunião Especial de Ministros da Saúde da America Latina, em Santiago do Chile, que definiu o Plano Decenal de Saúde para as Américas, em 1972, a OPAS já influenciava as mudanças na saúde de Santa Catarina: Tivemos nos primeiros dias de administração um amparo inesperado e extraordinário 33 que nos foi orquestrado pela Superintendência do Desenvolvimento do Sul, SUDESUL. A Organização Panamericana de Saúde, tinha um consultor junto a Sudesul, que nos ofereceu um contato com este assessor que poderia nos proporcionar idéias, pensamentos, experiências, literatura da OMS. Talvez tenhamos sido, pelo que dizia o consultor Ferrer, um dos primeiros estados que abriu inteiramente o seu ambiente para que eles viessem a atuar, prestando contribuição (Paraíso, entrevista pessoal, 10 de novembro, 2010). Estes planos atingiram a área da assistência psiquiátrica. Para orquestrar o planejamento e as reformas neste campo, pela primeira vez foi criada uma seção de saúde mental do Departamento de Saúde Pública, através do decreto SES/10, de 24/03/1971 (Santos, 1994), sendo nomeado o psiquiatra Abelardo Viana para o cargo. Também o Hospital Colônia Santana, que como vimos acima havia sido construído em 1941, sendo o único macro hospital público deste Estado, passou a ser vinculado à Fundação Hospitalar, recém criada. As mudanças começaram por modificar a situação precária do atendimento do Hospital Colônia Santana. Em 1971 nós entramos na Santana com muita coragem, pois nós começamos a dizer que primeiro nós íamos botar uma porta e só entraria quem nós deixássemos, isso era estancar um pouco esse processo... porque o padre mandava, o político mandava e a instituição só cabia absorver, né? E não importava se ele estava mandando um pobre, um inválido, um epiléptico ou um deficiente mental, ali era o repositório. Bom, então começamos a quebrar isso tudo, acabar com isso tudo, derrubamos inclusive celas, grades e tal. (...) Eu entendo tudo isso como passagens históricas que tinham que ser vividas (Gonçalves, entrevista pessoal, 19 de outubro, 2010). Dessa forma, no interior do Hospital Colônia Santana as mudanças foram grandes. Ocorreu a divisão em 12 unidades, com uma ala feminina e uma masculina para cada um dos Centros Administrativo Regional de Saúde (CARS) criados pela Secretaria Estadual de Saúde. Seu objetivo era agrupar os internos por afinidades geográficas, sociais e culturais. Ocorreu, também, pela primeira vez, a contratação de equipe multidisciplinar de saúde: assistentes sociais, enfermeiros, clínicos gerais, dentistas, bioquímicos, terapeutas ocupacionais, além dos psiquiatras e técnicos de enfermagem já existentes. Também foram realizadas ações que podem ser caracterizadas como de desospitalização, pois visavam devolver os pacientes para suas famílias e comunidades, visando diminuir o número de internos e construir a possibilidade de sua reinserção comunitária e familiar, ainda que este ideal ficasse mais distante. Àquela época, começou a haver também uma preocupação por parte da equipe, da direção da Colônia Santana, em levar os pacientes de volta pra casa, devido à superlotação. Então nós começamos a organizar viagens ao interior do estado, eram viagens de ônibus fretados, então lotava-se um ônibus e viajava-se praticamente uma semana. Ia um enfermeiro, um assistente social, dois técnicos de enfermagem, pra cuidar dos pacientes. Era, na verdade, uma política de desospitalização, porque não tinha assim muita estrutura de pensar na reabilitação desses pacientes que estavam saindo (Puel, entrevista pessoal, 29 de setembro, 2010). Essas ações resultaram, concretamente, na implementação de ações de regionalização, ou ainda, de interiorização do cuidado psiquiátrico, visando diminuir o fluxo de pacientes das regiões mais distantes para o hospital-colônia, que passaram a ser tratados, de preferência, em suas próprias comunidades. Inicia-se, assim, a ênfase no tratamento ambulatorial, com reforço da atenção primária, conforme preconizavam as tendências de mudança na área da saúde pública. Esse trabalho foi orientado pelos técnicos da OPAS, que começaram a capacitar médicos 34 generalistas do interior do Estado de Santa Catarina em conhecimentos e intervenções em psiquiatria. Com isso, já no ano de 1971, foram criados ambulatórios de saúde mental em 12 cidades sedes de distritos sanitários, sendo que em 1973 havia médicos generalistas treinados em 32 distritos sanitários (Santos, 1994), sendo que destes muitos consolidaram ambulatórios específicos de saúde mental. Nenhum paciente poderia ir para a Colônia sem passar pelo ambulatório. Vocês vejam só, o que foi feito? Nós montamos um boletim de encaminhamento, aí eles ficavam na Colônia e era feito um relatório que eles levavam, dizendo o que eles tinham, qual era a medicação que faziam. Quando eles voltavam prá sua casa de origem o ambulatório de onde eles vinham ficava responsável por eles. Mas isso, infelizmente, foi destruído depois de um tempo (Vieira, entrevista pessoal, 25 de outubro, 2010). Por esses anos também foram criados leitos psiquiátricos em hospital geral em Santa Catarina, numa atitude pioneira naqueles tempos. Os primeiros a serem criados foram em Blumenau, pelo doutor Hercílio Luz Costa, no Hospital Santa Catarina (Garcia, 2010). Essas experiências não foram continuadas na sua íntegra pelos governos posteriores de Santa Catarina. A herança dos ambulatórios no interior continuou ainda por mais um tempo, assim como os leitos em hospitais gerais. No entanto, a ênfase hospitalocêntrica voltou com força em decorrência da continuidade da lógica da prioridade das internações em hospitais psiquiátricos. Santa Catarina, vanguarda da psiquiatria brasileira? À guisa de uma conclusão... Verifica-se que foram muitas as mudanças no cenário da saúde mental no início dos anos 1970 em Santa Catarina, tendo sido uma experiência, de um certo ponto de vista, exitosa na implantação dos princípios da saúde preventista-comunitária, podendo ser considerada uma espécie de pré-reforma psiquiátrica. Poder-se-ia dizer que este Estado teve papel de vanguarda nas mudanças na assistência psiquiátrica nos anos 1970, sendo essa a convicção dos entrevistados, que consideram que já se realizava naqueles tempos o que só seria consolidado no Brasil, nos anos 1980-90, com a chamada Reforma Psiquiátrica Brasileira. Sem dúvida, implantaram-se muitos dispositivos que seriam debatidos posteriormente na Reforma Sanitária e Psiquiátrica. Nessa direção, são interessantes as reflexões marcadas por Paulin & Turato (2004): “(...) embora sejam consideradas por alguns como algo que não modificou o cerne da estrutura assistencial psiquiátrica, elas não podem e nem devem em absoluto ser qualificadas como um movimento secundário. Sobretudo (...) naquele momento, em que se privilegiava uma prática previdenciária voltada para a compra de serviços de instituições privadas, criar alternativas assistenciais públicas a partir de sistemas hierarquizados, regionalizados e descentralizados era um significativo avanço no ‘pensar’ outros modelos que não o imposto pelo capitalismo monopolista. (p. 242-3). No entanto, a meta de diminuição do número de internações do Hospital Colônia Santana, não aconteceu como previsto, pois até 1975 os números da internação continuaram aumentando no Estado. Santa Catarina foi, nestes anos 1970, “um dos estados com mais alta taxa de internações por consulta no Brasil” (Santos, 1994, p. 94). Outrossim, a visão dos psiquiatras sobre o papel dos ambulatórios enquanto centros de controle dos pacientes e de administração da medicação, evitando que estes viessem ao hospital com o intuito de serem medicados, produziu aquilo que se define como “psiquiatrização do social”, pois sem questionar a lógica da produção social da loucura, aumento significativamento o número de diagnósticos, medicaç=lização e hospitalização da população. “Programas semelhantes de prevenção (...) acarretaram um aumento da população com atendimento ambulatorial e extrahospitalar. (...) A psiquiatria preventiva não atingiu necessariamente as instituições asilares. Houve até um movimento de retroalimentação dessas instituições, pelo ingresso de novos contingentes de clientes para tratamento mental” (Paulin & Turato, 2004, p. 251). 35 Os dados da história são fundamentais para compreendermos o contexto atual da Reforma Psiquiátrica Brasileira, sendo que entender os avanços, bem como os impasses e contradições vividos nos anos 1990-2000, passa por compreender as contradições desses cenários que o antecedem e fundamentam. Referências Bibliográficas Amarante, P. (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz. Amarante, P. (1997). Loucura, Cultura e Subjetividade: Conceitos e Estratégias, Percursos e Atores da Reforma Psiquiátrica Brasileira. In: Fleury (org). Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial. Araújo, C. C. (2007). A história da psicologia na Colônia Santana. [Entrevista concedida a Daniela Ribeiro Schneider]. 15 de maio de 2007. Borges, C.; Baptista T. (2008). 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[Entrevista concedida a Daniela Ribeiro Schneider e equipe]. 25 de outubro de 2010. 37 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOMETRIA PARA A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO BRASIL: UMA GENEALOGIA Daniele Uglione Fabbrin Casale dos Santos Universidade de Caxias do Sul [email protected] Cristina Lhullier Curso de Psicologia – Universidade de Caxias do Sul Palavras-chave: deficiência intelectual; modos de subjetivação; psicometria O presente artigo propõe-se a apresentar uma genealogia de caráter bibliográfico das práticas psicométricas aplicadas à educação que possibilitaram estabelecer uma relação entre o discurso psicológico constituído no limiar do século XX e sua aplicabilidade nas instituições escolares, as quais eram concebidas como formadoras dos cidadãos brasileiros. Entendemos genealogia nesta pesquisa como um modo de interrogação que suspeita dos objetos de análise fazendo-se uma metodologia da desconfiança e crítica para análise das produções históricas-discursivas, nas quais os discursos são unidades de análise que denunciam conteúdos históricos mascarados e sepultados (Hook & Hüning, 2009). Segundo Foucault (2003, citado por Lemos & Cardoso, 2009), a distribuição de discursos opera no controle daquilo que deve ou não ser mostrado, as práticas discursivas são concebidas como instituições porque possuem realidade material e disparam efeitos produzindo saberes que se difundem nos espaços institucionais. Esses saberes estão sempre atrelados a tecnologias de poder; portanto, são entendidos como uma relação de saber-poder. James McKeen Cattell (1860-1944) inaugurou o estudo científico das diferenças pela psicometria nos Estados Unidos. A psicologia de Cattell concentrava-se no estudo das capacidades humanas, desenvolvendo um método amplamente utilizado de classificação por ordem de mérito. Contribuiu, também, para a legitimação do discurso psicológico americano e cunhou o termo Testes Mentais. (Rosenfeld, 1993; Schultz &Schultz, 2011) Foi Alfred Binet (1857-1911) o primeiro a abordar sobre situações de testes ligados à vida comum, após organizar uma série de testes em 1898. Acentuou a necessidade de classificar indivíduos pela determinação de tipos de formação das famílias naturais de caráter (Rosenfeld, 1993) e foi o organizador do primeiro teste psicológico de habilidade mental. Em 1904, o ministro da educação francês criou uma comissão de estudos sobre a capacidade de aprendizagem das crianças que apresentavam dificuldades na escola nomeando Binet e o psiquiatra Theodore Simon (1873-1961) para compor este corpo de estudos. (Schultz & Schultz, 2011) Binet fundou em 1905 o Laboratório de Pedagogia Normal numa escola em Paris. Suas obras incidem nas crianças anormais e na incapacidade escolar, bem como nas pesquisas sobre inteligência. Juntamente com Simon constatou que faltava aos alienistas uma base exata de diagnóstico provendo a estes um instrumento adequado de mensuração da inteligência. Os trabalhos de Binet e Simon satisfaziam o Ministério da Instrução Pública que se via encurralado pelas leis Ferry de 1886 e 1893, que asseguravam obrigatoriedade de escolaridade de crianças anormais na França. (Braunstein & Pewzner, 2003) Binet e Simon concluíram que a psicologia tornara-se uma ciência da ação (Goulart, 1998). Neste âmbito de aplicabilidade, nos Estados Unidos, Cattell já havia coordenado um movimento para o desenvolvimento da psicologia aplicada que correspondia a uma necessidade de organização da escola pública que vinha aumentando o número de clientes de 07 para 20 milhões entre os anos de 1870 a 1915. (Schultz & Schultz, 2011) Para Binet e Simon, as crianças que não se enquadravam na média normal deveriam receber uma educação especial, pois não eram capazes de usufruir da educação oferecida nas instituições 38 públicas escolares. Porém, afirmavam que algumas crianças com retardo poderiam adquirir instrução elementar e aprender algumas normas sociais, o que define uma atuação útil na sociedade ao invés de serem apenas enclausuradas e inutilizadas. (Plaisance, 2005) Ugo Pizzoli (1863-1934) fundou na Itália o Laboratório de Pedagogia Científica em 1899 com intuito de exercer as práticas da Psicologia Experimental e preparar de forma técnica os professores para a realização de exames em seus alunos, aprendendo de forma experimental a avaliá-los. (Centofanti, 2006; Monarcha, 2007) Pizzoli veio ao Brasil em 1913 a convite de Oscar Thompson (1872-1938) para atuar como colaborador na Escola Normal de São Paulo, onde ministrou um curso de formação de professores com aulas de Anatomia, Biologia, Antropologia Pedagógica, Psicologia Pedagógica, exame da criança e da sensibilidade, e Educação dos Sentidos. (Centofanti, 2002; 2006) Em 1910, por ofício do governo brasileiro, Clemente Quaglio (1872-1948) escreveu para os professores o texto Gabinetes de antropologia pedagógica e psicologia experimental, no qual apresenta os instrumentos e aparelhos de laboratórios de psicologia experimental e de antropologia pedagógica para demonstrar que poderiam ser úteis no conhecimento da natureza humana. (Centofanti, 2006) Quaglio organizou o Laboratório de Psicologia Experimental em São Paulo e realizou pesquisas em duas escolas da capital aplicando a escala métrica de Binet/Simon e publicando os resultados obtidos em 1913 clivando um novo discurso pedagógico no Brasil: o aproveitamento escolar. (Jannuzzi, 1985) Os critérios de aproveitamento escolar foram elaborados por Binet e Simon dos quais levam em consideração os resultados das crianças francesas e belgas em relação às brasileiras apontando um alto índice de anormais nas escolas públicas, resultado percentual de 13 %, segundo Jannuzzi (1985). Clemente Quaglio defendeu a criação de asilos-escolas com gabinetes de Psicologia Experimental e cursos especiais anexos às Escolas Normais destinados a formação de professores para atuar na educação dos anormais psíquicos (Monarcha, 2007), pois afirmava que o anormal psíquico verdadeiro era assunto de asilo-escola legitimando a figura do médico escolar, bem como apontou a necessidade de preparação do professor para o ensino especial destes, prenunciando a figura do psicólogo e legitimando a seleção dos docentes. (Centofanti, 2006) Em 1917, o médico Vieira de Mello publicou uma obra intitulada Débeis mentais na escola pública na qual constatava a necessidade da segregação dos anormais a estabelecimentos especializados com professores devidamente preparados para atuar com esse público e a classificação dos tipos de deficiência que cada um apresentava. (Jannuzzi, 1985) A partir desses debates, as crianças com DI passaram a ser chamadas de mentecaptas e ocupar espaços em pavilhões anexos dos Hospitais Psiquiátricos. Em 1920, Leitão da Cunha em Petrópolis e Francisco da Rocha em São Paulo construíram pavilhões para abrigar crianças com DI para que estas permanecessem em ambiente controlado com atendimento clínico e pedagógico. (Jannuzzi, 1985) Babini (1996, citado por Centofanti, 2002) afirma que a necessidade de uma reforma metodológica das práticas pedagógicas para o atendimento das massas nas instituições públicas de ensino abriram as portas para o cientificismo pedagógico e a domesticação das pessoas com deficiência intelectual (DI), pois as práticas educacionais e seus reflexos na estrutura social foram foco de debates entre psicólogos e antropólogos que classificaram os sujeitos com DI no mesmo âmbito de criminosos e parasitas sociais. Vale ressaltar que até o século XVIII a DI não se distinguia da loucura. Foi através da clássica definição de da loucura como Esquirol (1772-1840) perda da razão e da deficiência mental como um estado onde a razão nunca existiu que o discurso médico inicia as diretrizes para o tratamento das pessoas com DI, pois Esquirol afirmava que uma pessoa com DI não era apta para adquirir uma educação comum. (Ceccim, 1997) Com a industrialização crescente nos meados do século XX surgiu a necessidade de instrução para a qualificação da mão-de-obra. Neste contexto, as ideias positivistas viam na escolarização um meio de formar cidadãos e difundir seus princípios, bem como urbanizar o país. (Antunes, 2007) Auguste Comte (1798-1857), fundador do positivismo, universalizou todas as enfermidades como 39 “excesso ou defeito de excitação dos diversos tecidos acima ou abaixo do grau que se constitui normal” (Jannuzzi, 1985, p.101) A via doutrinária de Comte, segundo Centofanti (2006), teve o evolucionismo como modelo, o que facilitou aos psicólogos de matriz evolucionista o emprego da instrumentalização para a avaliação mental dos sujeitos. Na década de 1920 o Brasil era um país predominantemente rural e a variação dos níveis de assalariamento repercutia diretamente no desenvolvimento das crianças. A denúncia da falta de homogeneidade nas instituições públicas surgia no âmbito de análise da inteligência, promovendo o discurso da necessidade de reformas da educação e uma problemática pedagógica. (Biccas & Freitas, 2009) Neste âmbito, a Psicologia tornou-se ciência básica instrumental para a Pedagogia impulsionando um desenvolvimento teórico/prático da educação para lidar com as preocupações dessa problemática pedagógica em voga. (Antunes, 2007) Nesse período, Manuel Bergstrom Lourenço Filho (1897-1970) iniciou pesquisas experimentais e as primeiras experiências com o Teste ABC. Lourenço Filho iniciou seus estudos com testes de atenção e de maturidade para a leitura, na Escola Complementar de Piracicaba, e desenvolveu o Teste ABC para verificar a maturidade necessária das crianças para a aquisição da leitura e escrita. (Biccas & Freitas, 2009) Lourenço Filho reorganizou o ensino em São Paulo criando cursos de aperfeiçoamento para professores, nos quais exigia as disciplinas de Psicologia e Sociologia. Também reestruturou, na Escola Normal de São Paulo, o Laboratório de Psicologia Educacional com Noemi Rudolpher da Silveira (1902-1988). (Monarcha, 2007) A educadora Helena Antipoff (1892-1974) chegou ao Brasil em 1929 para assumir o cargo de professora de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento em Belo Horizonte, onde organizou o Laboratório de Psicologia utilizando o Método de Experimentação Natural com estudantes primários. (Rafante & Lopes, 2009) Segundo Jannuzzi (1985), na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte as estudantes do curso normal prestavam assistência às classes de crianças retardadas e organizaram a primeira associação de atendimento educacional voltada para pessoas com deficiência intelectual: a Sociedade Pestalozzi do Brasil. As atividades do Instituto Pestalozzi de Belo Horizonte contavam com exercícios de ortopedia mental, com o ensino de trabalhos manuais, ensino técnico-profissional das oficinas e o trabalho doméstico além das matérias escolares [português, matemática, geografia, etc.]. (Rafante & Lopes, 2009) As pesquisas realizadas no laboratório da Escola de Aperfeiçoamento demostraram que os resultados inferiores das crianças brasileiras em comparação às europeias nas escalas métricas devia-se às condições socioeconômicas do país, portanto, Antipoff é considerada pioneira em demonstrar o papel do meio ambiente sociocultural no desenvolvimento da cognição retirando o conceito de inteligência do âmbito puramente biológico. (Campos, 1992) Os laboratórios das Escolas normais tornaram-se centros de cultura superior, organizavam palestras e cursos de aperfeiçoamento, onde os estudantes realizavam pesquisas e produziam monografias e publicações periódicas como a revista Educação e Pediatria. (Antunes, 2006). Neste âmbito de saberes, a Pedagogia desenvolveu teorias educacionais capazes de operar no desenvolvimento da inteligência e inúmeras técnicas especiais de educação (Ceccim, 1997). Considerações finais Segundo Jannuzzi (1985), a educação das crianças com DI surgiu no âmbito institucional de maneira tímida, pois outros tipos de deficiência já possuíam espaços educacionais desde o período colonial. Os primeiros discursos sobre a educação da pessoa com deficiência iniciaram no âmbito da medicina, mas foi no âmbito da psicologia, através das práticas psicométricas, que a educabilidade da pessoa com deficiência intelectual foi produzida (Jannuzzi, 1985; Goulart, 1998). Foi no contexto do pensamento psicológico para a diferenciação dos anormais/normais que surgiu uma preocupação com o conhecimento do funcionamento da máquina mental. (Goulart, 1998) A psicometria possibilitou às escolas instrumentos classificatórios para justificar o fracasso escolar, planejar o ensino conforme a clientela, promover agrupamentos homogêneos e descrever a personalidade, as aptidões e o caráter dos 40 estudantes. (Goulart, 1998) Esses agrupamentos, na realidade não foram homogêneos, pois, segundo Jannuzzi (1985), todos os problemas intelectuais, dos mais graves aos mais amenos, as crianças abandonadas e as crianças inquietas compunham o grupo dos DI, ou seja, todos os comportamentos divergentes das normas sociais. Porém, esse novo agrupamento retirou o sujeito com DI do clausuro do lar ou de um cuidado médico juntamente com sujeitos classificados como doentes mentais ou irracionais para o ambiente educacional, onde passaram a ser vistos com outras lentes, deixando de ser um incapaz completo para ser alguém que pode desenvolver alguma habilidade. Neste sentido, Jannuzzi (1985) afirma uma diminuição da segregação e marginalização desses sujeitos, passando a ocupar novos espaços. Plaisance (2005) afirma que “nomear e classificar é fazer existir”, nesse sentido, os sujeitos com DI passaram de um ambiente ao outro iniciando sua história de existência, ocupando seu campo de ação, foram moldados nas relações de saberes-poderes constituídos nas práticas discursivas das tecnologias que se formaram nos fins do século XIX e início do século XX. Os saberes constituídos nos laboratórios corroboraram para uma classificação e seleção de estudantes e de profissionais da educação, bem como produziram o futuro psicólogo. Neste âmbito, a mensuração da inteligência e a classificação dos normais/anormais produziram um discurso sobre a pessoa com DI que assegurou-lhes um espaço especial nas instituições de ensino através da criação das classes especiais e instituições públicas especializadas em educar aqueles sujeitos que se distanciavam dos valores estabelecidos como normais nas escalas psicométricas. Nesse sentido, novos modos de subjetivação foram produzidos, emergindo desse discurso um novo grupo de pessoas, pois “ao mesmo tempo que um indivíduo é vigiado e modelado por tecnologias disciplinares, produz-se um campo documentário que o captura e o fixa, comparando-o com os demais, classificando-o, objetivando-o.” (Lemos & Cardoso, 2009, p. 335) Numa postura genealógica questionamos “o que fez com que seja o que é”. Portanto, um olhar sobre as práticas discursivas historicamente legitimadas apontam subsídios para um entendimento do “como” os sujeitos estão sendo tomados como objeto de conhecimento. Neste sentido, a constituição da pessoa com DI e seus espaços foram produzidos dentro de parâmetros mensuráveis matematicamente, recebendo denominações e valores numéricos que os objetivaram a “ser diferente”. Porém, esta objetivação abriu portas para a educabilidade dessas pessoas e uma atuação social, mesmo que restrita, na condição de “seres produtivos” para alguma atividade e capazes de algum aprendizado. Vale ressaltar que estes apontamentos identificam as primeiras práticas que originaram os discursos em torno da produção de subjetividade das pessoas com DI e não a origem destes discursos. Nossa intenção é a produção de questionamentos apontando como as relações de saberes-poderes legitimaram os modos de subjetivação nas práticas exercidas pela Psicologia no âmbito educacional no que se refere à pessoa com DI. Referências Antunes, M. A. P. (2007) A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. São Paulo: Marco/EDUC. Biccas, M. S. & Freitas, M. C. (2009) História social da educação no Brasil (1929-1996). São Paulo: Cortez. Braunstein, J. F. & Pewzner, E. (2003) História da psicologia. (A. Emílio, Trad.) Lisboa: Instituto Piaget. 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São Paulo: Cengage Learning. 42 MULTIMÍDIA EDUCATIVA PARA O ENSINO DOS PARADIGMAS PSIQUIÁTRICOASILAR E PSICOSSOCIAL Débora Aparecida Silva Souza. Bolsista de Iniciação Cientifica CNPq/UFSJ Acadêmica do 4º Período do Curso de Enfermagem da UFSJ/CCO. E-mail [email protected] Carine Gabriele Silva Zambalde. Acadêmica do 4º Período do Curso de Enfermagem da UFSJ/CCO. Cecília Godoi Campos. Enfermeira do Centro Mineiro de Toxicomania/ FHEMIG. Mestre em Enfermagem Psiquiátrica EERP/USP. Nadja Cristiane Lappann Botti. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica EERP/USP. Professora Adjunta da UFSJ/CCO Palavras-chave: Tecnologia, Saúde Mental, Aprendizagem Introdução Em função dos avanços tecnológicos contemporâneos a educação passa por transformações. Entre elas encontra-se o desenvolvimento de novos métodos de ensino aprendizagem como a informática educativa atuando como um instrumento didático, potencializador do processo de ensino. Neste cenário, a informática possibilita o aprendizado auto-instrucional, processando informações de modo ágil e preciso através de recursos computacionais. O desenvolvimento da informática promoveu “mudanças nas relações entre os homens e desses com o meio, assim como é notório que as tecnologias de informação e comunicação passaram a desempenhar papel importante na estrutura organizacional das sociedades” (Cardoso et al., 2008, p. 284). Como agente transformador, o professor, deve buscar evidenciar a importância da sua área de ensino na qualificação prática do trabalho dos profissionais que forma. Dentro deste cenário, “a consciência do docente em relação ao momento histórico e social em que se encontra é fundamental” (Lucchese, 2005, p. 21). Na construção do conhecimento, as novas tecnologias evoluem rapidamente e desempenham papel preponderante no modo de acessar e organizar as informações, colocando novos desafios no processo ensinoaprendizagem (Dowbor, 2001). Sabe-se que os recursos mediados pela informática favorecem a interação de conteúdos e diminui as dificuldades no processo de ganho de conhecimento, principalmente pela “velocidade em que novas informações se interagem, pois a informática vista como um elo permite instantaneamente reunir grande quantidade de informações e utilizá-las para a resolução de problemas” (Jaques, 2008, p. 221). A multimídia, com sua linguagem virtual, torna-se um recurso pedagógico utilizado para ampliar as alternativas de ação didática. O objetivo é utilizar-se da integração de diversas modalidades de mídia, como fotografias, mapas, sons, vídeos, cores, textos, gráficos e animações, isto é, ferramentas capazes de surpreender e aumentar a curiosidade do aluno para que este explore todo conteúdo com autonomia no seu processo de aprendizagem (Santos, 2003). Atualmente aponta-se que a Educação a Distância (EaD) como possibilidade para solucionar as dificuldades de formação adequada aos profissionais da Saúde Mental visto que cursos presenciais são de difícil realização e alto custo. Entretanto, “a EaD não deve ser vista como substitutiva de outras formas de educação convencional, mas como modalidade educacional alternativa” (Candido e Furegato, 2008, p. 474). Sabe-se que o ensino de Enfermagem em Saúde Mental apresenta dificuldades quanto aos recursos didáticos utilizados no ensino tradicional. Nesse sentido a “inserção da tecnologia computacional cria novos espaços para os movimentos pedagógicos, criando novas formas de interação entre professores e alunos e entre os próprios alunos” (Silva, 2007). Além de que são notáveis as mudanças históricas na área o que justifica a necessidade de transformações dentro dos currículos de Enfermagem. Portanto como o uso dos recursos atuais da tecnologia da informática traz novas formas de ler, escrever, pensar e agir. Nesta nova fase da educação aliada à tecnologia, o 43 acadêmico de Enfermagem, dentro desse contexto, pode adquirir conhecimentos através de uma linguagem virtual de maneira interdisciplinar complementando os conhecimentos transmitidos por outros recursos pedagógicos. Sabe-se que a prática de ensino de Enfermagem Psiquiátrica/Saúde Mental está assentada em uma concepção pedagógica tradicional, que viabiliza um método de ensino transmissivista, sendo obstáculo à formação de sujeitos críticos-reflexivos frente à necessidade de superação do modelo de atenção psiquiátrica asilar (Braga, 2003). Ao apontar para a necessidade imediata de revisão e questionamento do ensino de Enfermagem em Saúde Mental que favoreça o desenvolvimento da competência dos futuros profissionais, orienta-se a buscar neste campo “novas estratégias de ensino que proporcionem situações de aprendizagem, mediante ações transformadoras” (Lucchese, 2005, p. 28). A partir das considerações supracitadas este trabalho parte da seguinte conjectura: a) a temática do paradigma asilar e psicossocial fazem parte do conteúdo curricular do ensino de graduação em Enfermagem, b) a multimídia educativa é uma estratégia de ensino-aprendizagem que pode ser utilizada por estudantes de graduação em Enfermagem. Partindo-se destes pressupostos este estudo tem como objetivo descrever as etapas de construção da multimídia educativa desenvolvida para o ensino dos paradigmas psiquiátrico-asilar e psicossocial para ser utilizado por professores e estudantes na área de saúde. Construção da multimídia educativa A construção da multimídia educativa obedeceu às seguintes fases: 4. Fase incubação dos módulos A incubação dos módulos se deu por meio de buscas bibliográficas e virtuais, através de fotografias, imagens e textos, a fim de localizar geograficamente os paradigmas asilares no Mundo e no Brasil descrevendo os locais das principais instituições psiquiátricas. Dentro do panorama psicossocial brasileiro, localizaram-se os principais serviços substitutivos nacionais. E ainda, encontram-se as personalidades da Psiquiatria/Saúde Mental no Brasil e no Mundo, cada uma com sua história e participação neste cenário. Esta etapa objetivou definir a seleção da bibliografia e também das fontes de pesquisas virtuais, ambas temáticas, além de decidir quais seriam os objetivos de cada módulo e como estes seriam estruturados. Foi criado um banco de dados para cada um dos módulos constituindo-se de fotografias, imagens e textos. O tema geografia foi escolhido para nortear a divisão da multimídia em cada um dos seus módulos: Geografia do Paradigma Asilar no mundo e no Brasil, Geografia do Paradigma Psicossocial no Brasil e Personalidades da Psiquiatria/Saúde Mental. O primeiro módulo da multimídia, Geografia do Paradigma Asilar no mundo e no Brasil, identifica geograficamente as principais instituições do modelo asilar no mundo e no Brasil, isto é, hospícios, hospitais psiquiátricos, colônias ou manicômio – sinônimos de uma mesma lógica. Já o segundo, Geografia do Paradigma Psicossocial no Brasil, localiza as principais instituições do paradigma psicossocial brasileiro, isto é, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – instituições substitutivas ao modo asilar. E o último módulo, Personalidades da Psiquiatria/Saúde Mental, identifica personalidades da Psiquiatria e Saúde Mental no mundo e no Brasil. 5. Fase de seleção do conteúdo O conteúdo selecionado no módulo I, Geografia do Paradigma Asilar no mundo e no Brasil, se deu através da literatura, da busca virtual através do site da Biblioteca virtual em Saúde, Área Temática, e de outros sites à procura de imagens dos paradigmas asilares. Os textos utilizados neste módulo foram criados à partir das referências literárias: Bases Psicoterápicas da Enfermagem, de Inaiá Monteiro Mello; Cidadania e Loucura – Políticas de saúde mental no Brasil, de Silvério Almeida Tundis e Nilson do Rosário Costa; História da Psiquiatria Mineira, de Joaquim Affonso Moretzsohn e 44 O Século dos Manicômios, de Isaias Pessoti. Ainda dentro deste módulo foram usados o mapa-múndi, assim como mapas da Europa, da América do Norte, Central e Sul, identificando geograficamente as instituições do paradigma asilar no mundo. Também foi utilizado o mapa político do Brasil, dividido em 27 unidades da federação e inseridas as instituições em suas respectivas localidades. Além disso, o mapa brasileiro foi colorido a fim de dividir as regiões, sendo este mais um recurso facilitador da localização da instituição. Já o módulo II, Geografia do Paradigma Psicossocial no Brasil, também se utilizou do mapa político do Brasil e a busca se deu através do site Centro Cultural de Saúde. Os CAPS foram inseridos e divididos nas cinco regiões do país: norte, nordeste, centro-oeste, sul e sudeste. No módulo III, Personalidades da Psiquiatria/Saúde Mental, última seção da multimídia, foram utilizadas imagens das personalidades como forma de identificá-las, além do uso de textos que permitem conhecer o contexto de cada uma dentro da psiquiatria/Saúde Mental. As imagens foram adquiridas através de sites diversos, inclusive do Centro Cultural da Saúde. Como critério de inclusão foi selecionado as instituições e personalidades que possuíam imagens e que se destacaram no cenário nacional e mundial. Além disso, para ilustrar o cenário pós reforma psiquiátrica no Brasil, elencaram-se os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS). 6. Fase de edição O aplicativo, contendo 94 slides subdivididos em 3 módulos, utiliza-se de fotografias, imagens, mapas, cores, textos e botões de comando. O programa foi gravado em CD-ROM ocupando um espaço de 15,4 megabytes. É composto de 6 mapas, sendo eles o mapa-múndi, e outros 5 mapas: Europa, América do Norte, América Central, América do Sul e Brasil. Os CAPS foram divididos em tabelas no formato.pdf de acordo com as regiões brasileiras (sul, sudeste, norte, nordeste e centro-oeste), totalizando 1.092 unidades. Foram encontradas 31 instituições, sendo 16 internacionais e 15 nacionais, dispostas de acordo com suas localizações geográficas e inseridas na multimídia com imagens e textos formato.pdf. Quanto às personalidades, foram encontradas 36 e inseridas no aplicativo com fotografias e textos em formato.pdf. Os botões de ajuda dão autonomia ao usuário permitindo definir a busca, assim como, voltar, acessar a leitura obrigatória, retornar e sair, a todo tempo através de hiperlinks, os quais direcionam a função escolhida, ou seja, possibilitam a dinamicidade da multimídia. 7. Roteiro norteador de uso da multimídia A multimídia conta com um recurso de ajuda, explicativo, onde, ao iniciá-la, permite conhecer quais os ícones inseridos na ferramenta por módulo e quais as finalidades de cada um deles, facilitando o acesso e a interatividade ao manusear tal aplicativo. Considerações Finais A construção da multimídia permitiu refletir sobre a necessidade das ferramentas computacionais como facilitadoras do processo de aprendizagem. Uma vez que estes mecanismos criam um ambiente interativo que desperta a curiosidade, além de estimular a busca pelo conhecimento. Nesse sentido, é imperativa a importância da informática no processo educativo como uma ferramenta auxiliar na educação. Portanto, considerando os objetivos deste trabalho, conclui-se que a construção da multimídia, mostrou- se uma importante estratégia para o ensino da área saúde, principalmente no campo da saúde mental uma vez que esta atravessa inúmeros problemas no processo ensino-aprendizagem. Dentro desta perspectiva, a inserção da tecnologia estimula ao estudante uma nova forma de pesquisa mais ágil e prática, visto que a multimídia não substitui a literatura, como fonte principal de estudo, mas sua dinâmica provê maior rapidez da busca de forma mais atrativa. Diante disso, é fato, que para que esta estratégia inovadora seja eficiente é necessário que os docentes estimulem o uso de aplicativos computacionais, além da construção e o manuseio destes. 45 Referências Braga, J.E.F. (2003). Ensino de graduação em enfermagem psiquiátrica e saúde mental no contexto da reforma psiquiátrica. [Dissertação de Mestrado]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências da Saúde. Candido, M. C. 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Recuperado em 10 de abril de 2011. Obtido em http://revistas.unipar.br/saude/article/viewFile/2539/1982 Lucchese, R. A. (2005). Enfermagem psiquiátrica e saúde mental: a necessária constituição de competências na formação e na prática do enfermeiro. Tese apresentada ao Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem dos Campi de São Paulo e Ribeirão Preto, Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. Mello, I. M. (2009). Bases Psicoterápicas da Enfermagem. 2ª Ed. São Paulo: Editora Atheneu. Moretzsohn, J. A. (1989). História da Psiquiatria Mineira. Belo Horizonte: Ed. Coopmed, 206p. Pessoti, I. (1996). O século dos Manicômios. São Paulo: Ed. 34, 304p. Santos, M. L.(2003). Do giz a era digital. São Paulo: Zouk. Silva, E. C.(2007). Educação à distância: ambientes digitais para o processo ensino-aprendizagem em enfermagem psiquiátrica. Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica, Escola de Enfermagem da USP. Ribeirão Preto, SP. Tundis, S. A., & Costa, N. R. (2000). Cidadania e Loucura. Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Ed. Vozes. 6 ed. 288p. 46 CEZAR RODRIGUES CAMPOS: DE PSIQUIATRA A MILITANTE DA REFORMA Diego Patrick da Silva - Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG [email protected] Marcela Alves de Abreu - UFMG Hernani L. Chevreux Oliveira Coelho Dias - UFMG Maria Stella Brandão Goulart (Coord.) - Universidade Federal de Minas Gerais Palavras - chave: História; Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental RESUMO O tema do trabalho é referente à história da Reforma Psiquiátrica mineira entre as décadas de 60 a 90 do século XX. Neste artigo, porém, focalizamos o ano de 1979 e analisamos a ocorrência do III Congresso mineiro de Psiquiatria. O objetivo geral é o de resgate desta história através da trajetória profissional do psiquiatra, gestor público e militante da luta antimanicomial, Cezar Rodrigues Campos. O estudo se insere no domínio da história das instituições de saúde mental e na dimensão da HistóriaSocial, onde se dará destaque à perspectiva da Micro-História (Carlo Ginzburg). Esta perspectiva se articula com o marco teórico interpretativo da Análise Institucional (René Lourau), percebendo tensões e contradições das relações entre grupos, redes, organizações e instituições. Identificaremos e analisaremos a trajetória institucional e as iniciativas técnicas, políticas e sociais de Campos, a partir de pesquisa documental, tomando como fontes primárias o conjunto de documentos que integram acervo doado pela família e já instalado na Universidade Federal de Minas Gerais. Este acervo compõe-se de documentos pessoais e públicos, além de revistas e recortes de jornais e alguns livros. A análise do material se pautará na análise de conteúdo. Como metas e resultados, a intenção é, destacadamente, a de organizar, restaurar, manter e divulgar o seu conteúdo de relevância histórica e política, garantindo sua divulgação eletrônica. Nossas conclusões parciais remetem à retomada da sequência biográfica, articulada com a identificação de contextos, acontecimentos históricos, instituições e atores sócio-políticos relevantes. O trabalho é resultado parcial de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, intitulada Cezar Rodrigues Campos e a história da reforma psiquiátrica mineira. Palavras – chave: Saúde Mental; História; Reforma Psiquiátrica mineira INTRODUÇÃO O presente artigo apresenta dados parciais produzidos na pesquisa intitulada “Cezar Rodrigues Campos e a Reforma Psiquiátrica mineira”, onde se investiga a história da Reforma Psiquiátrica mineira entre as décadas de 1960 e 1990. O resgate desta história será através do estudo da trajetória profissional do psiquiatra, gestor público e militante da luta antimanicomial, Cezar Rodrigues Campos (Abreu, 2008). Este estudo é financiado pela FAPEMIG, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, desde novembro de 2011. Neste texto, destacaremos um momento relevante da trajetória de Cezar Campos e, por conseguinte, da Reforma Psiquiátrica de Minas Gerais, a saber: o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, ocorrido em 1979. Este momento remete a um conjunto de iniciativas, ações e produtos que foram, se não determinantes, no mínimo, imprescindíveis para a consolidação de uma produção crítica em relação às instituições psiquiátricas à Reforma. Não se pretende inferir que a figura ou pessoa de Campos tenha “determinado” o processo de Reforma. “É o mesmo que ocorre com a ‘vida’ ou com a ‘trajetória’ de um ator social: não se trata de escolher um indivíduo a ser biografado como um fim em si mesmo. A vida está sendo examinada em função de um problema” (Barros, 2010, p. 161). Campos foi escolhido porque o seu percurso permite vislumbrar toda uma lógica perversa de funcionamento institucional e as tentativas de sua superação ou promoção de mudanças na política de saúde mental mineira. A proposta de pesquisa valoriza a história regional, mineira, e a força de uma relevante 47 liderança de um projeto de grande alcance político e social que enfrenta, ainda hoje, grande resistência: o de tirar aqueles que possuem uma vivência peculiar no mundo - “portadores de sofrimento mental” de situações de enclausuramento, para oferecer tratamento clínico digno e oportunizar reabilitação psicossocial. MÉTODO Apoiamo-nos na pesquisa documental, explorando o material encontrado a partir da perspectiva da Análise Institucional e da Micro-História. A aproximação da Análise Institucional (AI) da MicroHistória pode ser muito bem vinda, na medida em que a primeira é um instrumento de análise das instituições sociais, as quais se produzem historicamente (Castoriadis, 1992; Lourau, 1974) e perpassam os nossos modos de vida/existência. Elas dão visibilidade ao processo de constituição de “realidade social”, nos permitindo vislumbrar a produção de atores sociais. Daí reside a importância de se conhecer o contexto institucional no qual o texto/discurso (documentos) é emitido: En primer lugar se puede establecer una relación entre la sociedad y el texto que se examina. Los acontecimientos sociales, políticos, económicos, culturales e institucionales del momento histórico y del ámbito más cercano al autor establecen las condiciones de posibilidad para la acción [...]. Esta puesta en contexto se refiere, también, a relaciones dialécticas entre la obra y la sociedad que nos explican tanto la génesis como la producción y el impacto. (Rivero, Matínez & Trejo, 1996, p. 92). Só podemos pensar no surgimento e nas possibilidades de ação de um ator social, tendo em vista a lógica de funcionamento político das instituições vigentes no período histórico analisado. Ele é concebido como efeito das práticas institucionais e, ao mesmo tempo, um elemento importante de transformação das mesmas. A perspectiva da Micro-História, por sua vez, é uma proposição de análise histórica que defende uma delimitação temática extremamente específica por parte do historiador, sem, no entanto, perder o contexto mais amplo. Numa escala de observação reduzida, a análise desenvolve-se a partir de uma exploração exaustiva das fontes. Assim, [A Micro-História] apega-se obsessivamente às mínimas evidências que a documentação pode fornecer para dar vida a personagens esquecidos e desvelar enredos e sociedades ocultadas pela história geral. (Vaifans, 2002, p. 103). Observa-se que os objetivos de ambas perspectivas metodológicas se entrelaçam ao se proporem à desconstrução de uma história conhecida como “oficial”, instituída, fazendo surgir, portanto, uma “outra” história, local, contraditória, complexa, incompleta. Pretende-se ir além da utilização de instrumentos simplificadores, serializados ou descritivos, enriquecendo o real (história), introduzindo na análise o maior número possível de variáveis, sem, no entanto, renunciar à identificação de suas regularidades. Ademais, existem várias histórias a serem enredadas: econômicas, culturais, ideológicas, desejantes e outras. Portanto, não se estuda, com a Micro-História e a Análise Institucional, a história de maneira uniforme e linear. No que concerne a AI não se prioriza estritamente a questão do como ou do porquê, mas a quem isso serve, quais os interesses implícitos e, consequentemente, as relações de poder em jogo que delineiam as narrativas e consolidações normativas. É nesse sentido que a AI se insere em um contexto de análise política que é trabalhado numa pesquisa microhistoriográfica. 1979 E O III CONGRESSO MINEIRO DE PSIQUIATRIA Explorando os recortes de jornais selecionados por Campos juntamente com certas fotografias, algumas informações se revelam interessantes. O ano de 1979, data do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, é emblemático e definidor de novos rumos no que diz respeito à política de saúde mental mineira e brasileira, tendo em vista sua virulência e seu potencial instituinte. Ele foi organizado pelo Centro de Estudos Galba Velloso, da Residência em Psiquiatria do Instituto Raul Soares. Mas, é 48 importante salientar que antes deste Congresso já haviam se realizado propostas de reestruturação da assistência psiquiátrica, além de denúncias da situação desumana em hospícios (Firmino, 1982; Goulart, 1992). Segundo Cezar Campos, coordenador do evento e preceptor da Residência em Psiquiatria do Instituto Raul Soares, em entrevista ao Jornal Estado de Minas (1979), no I e II Congressos Mineiros de Psiquiatria (1970 e 1971, respectivamente), levantaram-se sérias críticas à situação degradante na assistência psiquiátrica. Porém nada se fez efetivamente. O III Congresso teria, segundo ele, uma preocupação diferente: Será [seria] evitado esse círculo vicioso de tratarmos o problema apenas do ponto de vista técnico. As nossas propostas anteriores, de mudar o modelo da assistência asilar para outros modelos, tipo comunitário, falhou justamente por isso. Mas, agora não existe apenas uma mobilização de técnicos. O enfoque do congresso, a partir da própria abertura do governo, será político-social, com a participação de todas as pessoas também de todos os interessados, como a imprensa, os sindicatos, e até mesmo pessoas leigas, preocupadas na humanização do problema. (Jornal Estado de Minas, 1979a). Campos declarava ainda, em outro veículo, que “mais do que nunca é [seria] necessária a mobilização dos profissionais em torno do congresso para a formação de um processo de modificação real da assistência psiquiátrica” (Jornal de Casa, 1979, grifo nosso). Nestas duas reportagens (entrevistas), salienta-se um distintivo: a politização do processo de crítica e construção de respostas. Reconhece-se a ocorrência de outros acontecimentos relevantes (como provavelmente as experiências com comunidades terapêuticas e criação de ambulatórios, ou iniciativas institucionais de formas de gerenciamento da política de saúde mental – criação da FEAP, Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica). Porém, sua ineficácia é já reconhecida, conferindo ao processo de reforma que se instauraria, um caráter particularmente incisivo. O III Congresso Mineiro de Psiquiatria foi realizado de 15 a 21 de novembro de 1979 na Associação Médica de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Mais de 600 participantes, entre médicos, psiquiatras, psicólogos, sociólogos e assistentes sociais tiveram presença garantida (Jornal Estado de Minas, 1979), além da comunidade não pertencente à assistência psiquiátrica, como familiares dos internos e a imprensa. Demonstrando, assim, que a problemática da loucura não se restringe aos setores médicos, exatamente por ter um conteúdo muito mais político-social do que de ordem médica. Além dos temas – “Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais” (Presidida por Cezar Campos mais 4 debatedores), “Condições de Trabalho dos Profissionais em Saúde Mental”, “Espaço da Psiquiatria” e “Alternativas de Trabalho em Saúde mental” das mesas redondas, o Congresso contou com mais seis cursos intitulados: “Estado Atual e Perspectivas das Terapêuticas Psicofarmacológicas em Psiquiatria” (Dr. Jorge Paprocki), “Terapia de Crise” (Dra. Carmem Lent), “Esquizofrenia – Uma Aproximação Psicanalítica” (Dr Luis Córdoba), “Psiquiatria e Controle Social” (Robert Castel), “Assistência Psiquiátrica e Participação Popular” (Dr. Franco Basaglia) e “Grupo Vivencial – Identidade Profissional” (Dra. Carmem Lent). (Jornal de casa, 1979). Mas o que foi o III Congresso Mineiro de Psiquiatria? Será que seus participantes sabiam dos impactos que ele teria? Um fato é certo: ele foi produção de política. A vinda e a participação de nomes internacionais importantes para a transformação e o fazer psiquiátricos, como foi o caso de Franco Basaglia e Robert Castel, permitiram com que se afirmassem os movimentos contestadores da ordem psiquiátrica. A vinda de Basaglia, sobretudo, foi planejada, por grupos que já se mobilizavam com a causa manicomial, sendo uma importante jogada política na época, com repercussões nacionais, pois suas denúncias atingiam de maneira incisiva a estrutura psiquiátrica. Causando grande questionamento por parte dos dirigentes públicos, como mostra o descontentamento do presidente do CRM-MG Afonso Moretzsohn: Eu acho que esse Basaglia deveria tratar somente da Máfia na Itália, e não da nossa Psiquiatria. Nós temos condições para resolver os nossos problemas. (Jornal Estado de Minas, 1979b). 49 Durante o evento, o Secretário Adjunto da Saúde, José Expedito Janotti, declarou que a mídia visual (televisiva) estaria impedida de entrar nos hospitais psiquiátricos, como documentou a reportagem do Jornal Estado de Minas (1979) “TV não entra. Ordem é do Secretário [da Saúde]”. O Secretário, no caso, era Eduardo Levindo Coelho, o mesmo que havia permitido a imprensa escrita (jornais) conhecer a realidade dos hospitais públicos do Estado (Firmino, 1982). O Secretário Adjunto de Coelho argumentou que “A televisão brasileira está [estaria] proibida de devassar a intimidade dos doentes mentais” (Jornal Estado de Minas, 1979). Toda a “preocupação” da Secretaria Estadual de Saúde aumentou ainda mais a ansiedade dos participantes do III Congresso Mineiro de Psiquiatria pelas devidas soluções por parte dos órgãos públicos. Criou-se uma grande expectativa em torno do pronunciamento do Secretário Estadual de Saúde, do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) e da FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais) para o problema da situação degradante dos loucos nos hospitais psiquiátricos, após as denúncias feitas pela mídia. Ocorreu efetivamente que o Secretário de Saúde não compareceu pessoalmente. Fez-se representar por José Expedito Giannotti, Secretário Adjunto de Saúde. Já o superintendente da FHEMIG, Archimedes Theodoro que, por “motivos de saúde”, foi impossibilitado de comparecer, foi representado por José Ribeiro de Paiva Filho, o seu diretor - hospitalar. O INAMPS compareceu através da pessoa de Cândido Espinheiro, que se colocou como “simples participante” do evento. Tudo isso sugere a relevância do evento e a atitude defensiva dos órgãos públicos envolvidos. Era um acontecimento político e não um Congresso técnico-científico. Durante os dias do III Congresso, o MDB havia convidado Franco Basaglia para falar sobre a situação do Hospital Colônia de Barbacena na Assembléia Legislativa de Belo Horizonte e, por uma séria de manobras políticas da Arena (partido do governador e do prefeito da época), proibiram a entrada do psiquiatra italiano. Este comentou que tal atitude Foi um grande erro político. Uma falta de inteligência enorme. Com isso, a Arena deu à oposição a chance para assumir a causa dos loucos, que é justa, boa e humana. Uma assembléia que se recusa a saber das necessidades do povo, no campo da saúde mental, não representa este povo (Jornal Estado de Minas, 1979c). O Evento termina com a promessa, feita por parte dos governantes, em efetivar a extinção dos manicômios no estado de Minas Gerais, tendo em vista os rumos para o tratamento ambulatorial. Além disso, os congressistas ratificam o seu repúdio à política de saúde mental, pública e privada, existente em todo o país. Propõem a criação de alternativas terapêuticas, por meio da participação dos sindicatos e demais representantes de classes. O fortalecimento do movimento nacional de trabalhadores de saúde mental, como assessor do governo na formulação de novas políticas de assistência psiquiátrica, além do embate contra a mercantilização e privatização da medicina. Por fim, ficou decidido a luta por um compromisso permanente pela humanização da psiquiatria, a partir da extinção dos hospitais e sua substituição pelo tratamento ambulatorial. É importante salientar que o fim dos manicômios não acabaria com todo o estigma que a loucura tem em nossa sociedade, mas seria o início para um tratamento mais digno e humano. Mas para que isso ocorresse, os médicos dos ambulatórios deveriam ser bem remunerados, até melhor dos que trabalhassem nos hospitais psiquiátricos. Essa era a crítica que se fez por muito tempo ao INAMPS. Sobre o Congresso, Franco Basaglia salientou que: O importante é que as pessoas passarão agora a pensar sobre os loucos e sobre si mesmas. Isto, naturalmente, vai obrigá-las a buscar uma alternativa qualquer, já que estão conscientes do que poderá acontecer com seus parentes, caso sejam assistidos pelo atual modelo de assistência. (Jornal Estado de Minas, 1979c) A década de 1980 seria marcada por lutas pela consolidação das propostas do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, que se não tinha conseguido implementar imediatamente todas as suas propostas, tinha lançado o germe da mudança na saúde mental. A partir da Reforma Psiquiátrica 50 brasileira, desencadeada a partir do III Congresso, várias mudanças ocorreram na década de 1980. O hospital Galba Velloso, por exemplo, modificou sua política frente ao setor privado e à Previdência Social, deixando de ser um hospital de triagem e fornecedor de loucos para as clínicas particulares. Ressalta-se neste processo de redefinição político-técnico a atuação de Cezar Campos que assumiu a diretoria do hospital entre os anos de 1983 e 1986 (Goulart, 2009). Além disso, implantou-se nesse hospital serviços como: Oficinas Terapêuticas, Hospital - Dia, Leito - Crise e, em parceria com a PUC Minas, ofertou uma Residência em Psicologia na área de saúde mental (Goulart, 2009). As propostas debatidas no III Congresso Mineiro de Psiquiatria foram transformadas em um documento que seria encaminhado ao INAMPS. O que teve repercussões, pois em 1982 seria lançado o “Plano de Reorientação da Assistência Psiquiátrica” elaborado pelo CONASP (Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária) e implementado pelo INAMPS. O Programa foi claramente inspirado nas proposições discutidas no III Congresso que teria como objetivo a erradicação da gravidade do problema. CONCLUSÕES Este trabalho nos permitiu debruçar sobre a nossa história, nos colocando indagações e reflexões, sem que para isto perdêssemos a visão do contexto nacional da política de saúde mental. Percebemos que o ano de 1979, é redefinidor da política de saúde mental mineira e brasileira, tendo em vista sua virulência e seu potencial instituinte. Nossa intenção foi descrever através da trajetória do militante e gestor público, Cezar Rodrigues Campos, o período crítico de questionamento das instituições psiquiátricas no estado de Minas Gerais: o III Congresso Mineiro de Psiquiatria. Este evento foi realizado de 15 a 21 de novembro de 1979, em Belo Horizonte. Com mais de 600 participantes, o Congresso teve a participação de grandes nomes da saúde mental, nacionais e internacionais, como, por exemplo, os de Franco Basaglia e Robert Castel. Com suas experiências em seus respectivos países, esses atores inspiraram e apoiaram o movimento político-social que se estabelecia naquele ano de 1979 em Minas Gerais e que teria impactos nacionais na reorientação da política de saúde mental. Sabemos que Campos estava envolvido nestes eventos, atuando como promotor e articulador. Os documentos de seu acervo pessoal detalham vários momentos destes acontecimentos históricos. Lidamos com um fragmento (Cezar Campos – III Congresso Mineiro de Psiquiatria) como meio, através do qual, pretendemos enxergar uma questão social mais ampla. Demonstrando, assim, que a problemática da loucura não se restringe aos setores médicos, exatamente por ter um conteúdo muito mais político-social do que de ordem médica. Tudo isso sugere a relevância do evento e a atitude defensiva dos órgãos públicos envolvidos. Era um acontecimento político e não um Congresso técnico-científico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 8. Abreu, M. A. de. (2008). Cezar Rodrigues Campos e a Reforma Psiquiátrica mineira. Monografia de conclusão de graduação não-publicada, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Barros, J. D’. (2010). O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes. 9. Castoriadis, C. (1992). Encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentando. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 10. Congresso provoca riso, aplausos e lágrimas. (1979a, novembro 17). Nos porões da loucura. Jornal Estado de Minas. 11. Firmino, H. (1982). Nos porões da loucura. Rio de Janeiro: CODECRI. 12. Goulart, M. S. B. (1992). O ambulatório de saúde mental em questão: desafios do novo e reprodução de velhas fórmulas. Belo Horizonte: UFMG. Dissertação de mestrado nãopublicada, Departamento de Sociologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. 13. Goulart, M. S. B. (2009). Hospital Galba Velloso e suas histórias. Anais. V Encontro da 51 Regional Sul da Associação Brasileira de História Oral “Desigualdades e Diferenças”. Belo Horizonte, MG, Brasil. 14. Lourau, R. (1974). A análise institucional. Petrópolis, RJ: Vozes. 15. Médicos exigem humanização da Psiquiatria. (1979b, novembro). Nos porões da loucura. Jornal Estado de Minas. Psiquiatras apóiam governo, mas vão cobrar as promessas. (1979c, novembro). Nos porões da loucura. Jornal Estado de Minas. Psiquiatria – Estudiosos discutem como Minas trata seus doentes. (1979). Jornal de Casa. Rivero, R. A., Martínez, J., & Trejo, F. (1996). Metodología para la História de la Psicología. Madrid: Alianza Editorial, S. A. Vaifans, R. (2002). Os protagonistas anônimos da história: micro-história. Rio de Janeiro: Campus. 52 MESTIÇAGEM, CRIMINOLOGIA E SAÚDE MENTAL. NOTAS SOBRE NINA RODRIGUES (1862-1906) Éder Silveira (UFCSPA) [email protected] Palavras-chave: Raimundo Nina Rodrigues, mestiçagem, história da psicologia. Introdução Surgido em meio ao movimento intelectual conhecido como Geração de 1870, Raimundo Nina Rodrigues rapidamente firmou-se como um dos principais responsáveis pela recepção no Brasil do pensamento médico produzido na Itália e na França. É em especial reconhecido como pioneiro no estudo das comunidades africanas e de afro-descendentes no Brasil.25 Sua produção intelectual estende-se por inúmeras obras e campos de saber, destacando-se obras na área da criminologia, como As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil e O Alienado no Direito Civil Brasileiro e estudos de etnopsiquiatria, como O Animismo Fetichista dos Negros Africanos e os póstumos Africanos no Brasil e Coletividades anormais. Nas páginas que seguem, serão analisados alguns aspectos do pensamento de Nina Rodrigues, mais especificamente, o seu olhar sobre o “problema racial” no Brasil, em especial a mestiçagem e as relações desta com os fenômenos de “loucura coletiva”, por ele estudados na passagem do século XIX ao XX. 25O antropólogo francês Roger Bastide, em O Candomblé da Bahia, dá relevo à obra de Nina Rodrigues. Segundo Bastide: “Os primeiros estudos sobre as sobrevivências religiosas africanas, datados de 1896, saíram na forma de artigos na Revista Brasileira; eram da pena de um jovem médico baiano, Nina Rodrigues. A partir dessa época e até sua morte, em 1906, dedicou-se inteiramente esse grande pesquisador à descrição e análise dessas sobrevivências, publicando também em francês L’animismefétichistedesnégres de Bahia (1900). Depois de sua morte, Homero Pires recolheu os diversos artigos dispersos em numerosas publicações, formando um volume intitulado Os Africanos no Brasil. Ambos os livros se ressentem, sem dúvida, da época em que foram escritos, e preconceitos raciais deformam-lhes as melhores páginas. Nina Rodrigues acreditava na inferioridade do negro e em sua incapacidade para integrar-se na civilização ocidental. Como médico-legista e psiquiatra, não viu mais que simples manifestações de histeria nos transes místicos e nas crises de possessão que caracterizam o culto público dos africanos brasileiros. Em contrapartida, sua própria interpretação etnográfica da religião é construída segundo os quadros de referência da ciência de seu tempo: no fim do século XIX, o positivismo se implantara no Brasil, onde, como se sabe, desempenharia um papel político de primeira plana; daí o título do primeiro de seus livros: O animismo fetichista. Apesar de todas essas falhas, as obras de Nina Rodrigues, ainda agora, não deixam de ser talvez as melhores publicadas sobre o assunto, primeiro porque seus informantes pertenciam ao candomblé mais puramente africano de sua época, o candomblé de Gantois; depois, porque suas descrições do culto, das hierarquias sacerdotais, das representações coletivas do grupo negro, são fiéis e sempre válidas. São sem dúvida livros incompletos, mas, naquilo que descrevem, são livros seguros”. BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 21-2. 53 Pensamento médico e questão racial Nina Rodrigues, além de professor e pesquisador foi o fundador de uma “escola”, deixando um considerável número de seguidores. Seus interesses como lembrava Arthur Ramos, assumidamente um dos seguidores de Rodrigues, eram amplos e se estendiam "da medicina legal á psychopathologia forense e á hygiene, da anthropologia criminal á psychologia collectiva e ethnica, desdobrando-se em applicações imprevistas a multiplos problemas da vida nacional".26 As pesquisas realizadas por Nina Rodrigues a respeito da presença africana ajudaram a sedimentar uma mudança de condição do negro ante os olhos de uma parcela da intelectualidade brasileira. Aprofundando a intuição de Silvio Romero, ele completou a passagem da condição de escravo à de negro; no entanto, com isso transforma o negro não em um cidadão, mas em um objeto de estudo científico.27 A sua dedicação ao entendimento das “matrizes étnicas” que formavam o Brasil, em especial a diversidade de grupos africanos e as suas dinâmicas de “cruzamento racial” o levam a elaborar uma crítica forte à ideia de igualdade. Segundo ele, era preciso abandonar as noções espiritualistas de igualdade, por ele condenadas, por exemplo, em As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil. O que o autor propunha era uma compreensão da natureza da diversidade de povos e cruzamentos efetuados no Brasil para que a partir desse movimento fosse possível projetar-se o sistema penal adequado às desigualdades étnicas e regionais. Esta proposição legal está ligada, é claro, a uma ampla interpretação das particularidades da “raça africana” e dos resultados de seus cruzamentos com os “brancos” no Brasil. Mais do que isso, está ligada à necessidade de se pensar a unidade nacional, ou, em outras palavras, a identidade nacional. Sobre as bases de uma explicação raciológica, estava em questão o ingresso do Brasil entre os povos civilizados, dado somente possível com o ataque à diferença. Segundo Nina Rodrigues, [...] diante da necessidade de, ou civilizar-se de pronto, ou capitular na luta e concorrência que lhes movem os povos brancos, a incapacidade ou a morosidade de progredir, por parte dos negros, se tornam equivalentes na prática. Os extraordinários progressos da civilização européia entregaram aos brancos o domínio do mundo, as suas maravilhosas aplicações industriais suprimiram a distância e o tempo. Impossível conceder, pois, aos negros como em geral aos povos fracos e retardatários, lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e remota da sua emancipação social. Em todos os tempos não passou de utopias de filantropos, ou de planos ambiciosos de poderio sectário, a idéia de transformar-se uma parte das nações às quais a necessidade de progredir mais do que as imitações monomaníacas do liberalismo impõe a necessidade social da igualdade civil e política, em tutora da outra parte, destinada à interminável aprendizagem em vastos seminários ou oficinas profissionais. A geral desaparição do índio em toda a América, a lenta e gradual sujeição dos povos negros à administração inteligente e 26Ibidem, p. 188. 27Silvio Romero, na década de 1880, já apontava para a necessidade de pensar-se o negro como um objeto de estudo, importante para a compreensão do Brasil. Segundo Romero: “Bem como os portugueses estanciaram dois séculos na Índia e nada ali descobriram de extraordinário para a ciência, deixando aos ingleses a glória da revelação do sânscrito e dos livros bramínicos, tal nós vamos levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa como inúteis, como iremos deixar a outros o estudo de tantos dialetos africanos, que se falam em nossas senzalas! O negro não é só uma máquina econômica; ele é, antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciência”. ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. Rio de Janeiro, 1888, p. 10-1. 54 exploradora dos povos brancos, tem sido a resposta prática a essas divagações sentimentais.28 Ancorado nos estudos então correntes sobre raça e evolução, Nina Rodrigues buscará demonstrar que, por uma predisposição orgânica, evolutiva, uma “raça inferior” precisaria de gerações para alcançar o estágio de desenvolvimento da superior. Para Nina Rodrigues, qualquer “tentativa de impor ao negro as nossas condições artificiais de existência há de falhar, pois os caracteres de raça não podem ser transformados de repente: e mesmo quando fosse possível impor-lhes a nossa civilização, esta não seria duradoura, porque entre a situação deles e a nossa faltaria as fases de transição.” Faltaria, aos negros, ultrapassar algumas fases evolutivas que os separavam dos brancos, em um processo lento. Caso contrário, a experiência da civilização seria fugaz, uma vez que, para que seja “permanente, a civilização deve ser gradual; pois só quando um passo avante está dado com segurança é que o caráter de raça se torna firme e capaz de sofrer novo impulso”.29 Essa ideia, defendida pelo autor em diversos de seus escritos, é a sua porta de entrada para o estudo da psicologia social ou, se preferirmos, da etnopsiquiatria. Nina Rodrigues, especialmente em As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil, deter-se-á sobre a responsabilidade penal pensando a criminologia tropicalizada, ou seja, repensando as teorias de, em especial, Cesare Lombroso e da Escola Criminológica Italiana, procurando construir, no Brasil, parâmetros de análise da predisposição criminal e a questão da inimputabilidade dentro de um balizamento étnico e climático adaptado à realidade nacional.30 Ao criticar os fundamentos da idéia de igualdade entre as raças, Nina Rodrigues percorrerá a diferença vista sob a ótica do desenvolvimento evolutivo. Assim, buscará demonstrar, através das teorias evolucionistas sobre a raça e pela análise das desigualdades climáticas das regiões do Brasil que, para um povo tão múltiplo em seus graus de evolução, exposto a tamanha diversidade climática, precisar-se-ia pensar um Código Penal que tomasse essas diferenças como ponto de partida para a questão da imputabilidade. Para ele, o variado estágio mental partilhado entre os habitantes do Brasil fazia com que eles guiassem seus atos morais através de códigos de valores mais apropriados ao seu estágio evolutivo. Afirma, assim, uma atuação mais direta de intervenção intelectual na sociedade brasileira, abrindo uma vereda de atuação que marcou seu tempo: a entrada do discurso científico no espaço político, medicalizando o social. No Brasil do século XIX o discurso médico passa a incidir 28RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil. Brasília: UNB, 1982, p. 264. 29RODRIGUES, op. cit., p. 266. Em uma outra obra, As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil, Nina Rodrigues enfatiza esse mesmo dado, afirmando: “Todavia, tem-se pretendido, não obstante o Natura non facit saltus de Linneo, fazer um povo selvagem, ou barbaro, transpôr, no curso da vida de uma geração, o caminho percorrido pelas nações civilisadas durante seculos, como se fosse possivelsupprimir a lei de herança, dispensar as lentas accumulaçõeshereditarias e prescindir da acçãonecessaria do tempo.” RODRIGUES, Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil. Salvador: Guanabara, 1894, p. 32. 30Além do estudo ‘macro’, que situava o criminoso no meio e pensava-o desde sua hereditariedade, era parte constitutiva dos estudos criminológicos de Nina Rodrigues o estudo particularizado do indivíduo, a partir de critérios próprios à antropologia criminal. Segundo Sérgio Carrara, os principais traços que ‘comprovavam o caráter atávico do criminoso poderiam ser sintetizados em torno de alguns estigmas. Como afirma Carrara: “Em termos anatômicos, a ausência de pêlos, o comprimento exagerado dos braços, a ‘obtusidade’ das feições, as orelhas munidas do tubérculo de Darwin, os maxilares superdesenvolvidos, a fronte ‘figidia’, a saliência dos zigomas, o exagerado escavamento da abóboda palatina e das fossas oculares e ainda outras peculiaridades do crânio desenhavam sobre o corpo do criminoso o perfil anatômico dos símios. Em termos fisiológicos, a nalgesia (insensibilidade à dor), a desvulnerabilidade (capacidade de rápida recuperação dos ferimentos), o mancinismo ou o ambidestrismo eram tidos tanto como características dos selvagens quanto dos criminosos natos. Psicologicamente, o gosto pela tatuagem, pela gíria e onomatopéias, a imprevidência, a prodigalidade, a vaidade, a imprudência, a impulsividade, a insensibilidade moral, o caráter vingativo, o amor pela orgia, a preguiça, a precocidade e o prazer no delito, a ausência de remorsos completavam a figura do atávico.” CARRARA, Sérgio. Crime e Loucura: O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. São Paulo: Edusp e Rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p. 105. 55 sobre o corpo do indivíduo como aparato normalizador. O traço mais gritante da diferença neste contexto, como tenho enfatizado, é a mestiçagem e as suas conseqüências na reflexão sobre a identidade nacional. Assim sendo, com Nina Rodrigues passa-se mais efetivamente à análise normalizadora da sociedade brasileira. O intelectual médico começa a posicionar-se como interlocutor da justiça e do discurso político. Essa entrada do médico na práxis política torna-o um elo entre a ciência e o Estado, exigindo deste atitudes políticas de intervenção no corpo social. Para Lília Moritz Schwarcz, “o objetivo era curar um país enfermo, tendo como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte gangrenada do país, para que restasse uma população de possível ‘perfectibilidade’.”31 Era preciso sanar uma nação doente. A psicologia de massas Pouco antes de falecer, Nina Rodrigues vinha trabalhando naquela que deveria ser a sua grande obra, fruto de sua maturidade intelectual. Em As coletividades anormais, publicado postumamente por Arthur Ramos, Rodrigues projetava uma incursão, em suas palavras pela “psicologia coletiva ou das massas”, tendo sempre como pano de fundo a questão racial no Brasil e, mais especificamente, o problema da mestiçagem. Nos estudos publicados em revistas, no Brasil e no exterior, o autor demonstrava grande familiaridade com aquilo que vinha sendo produzido fora do país e procurando, sempre, manter um diálogo crítico, a um só tempo teórico e empírico, com esses autores.32 Exemplares, nesse sentido, dão as análises propostas pelo autor sobre a Campanha de Canudos. Em A Loucura Epidemica de Canudos. Antonio Conselheiro e os Jagunços, ensaio sobre o fenômeno de “vesania colectiva”, Nina Rodrigues analisa o movimento a partir da loucura do seu mentor. Segundo o autor, “Antonio Conselheiro é seguramente um simples louco. Mas a sua loucura é daquelas em que a fatalidade inconsciente da moléstia registra com precisão instrumental o reflexo senão de uma época pelo menos do meio em que elas se geraram”.33 O Antonio Conselheiro que é apresentado em suas páginas é um alienado, vítima de uma miríade de delírios, somada ao meio físico do sertão e a composição etnológica dos seguidores desse movimento. Aos olhos do médico maranhense o movimento é fruto, em parte do meio agreste e distante da civilização, que por sua fragilidade e exposição às mazelas sociais fica à mercê deste tipo de rebelião, em parte pela “composição étnica” do jagunço, “produto tão mestiço no físico que reproduz os caracteres antropológicos combinados das raças que provém, quanto híbrido nas suas manifestações sociais que representam a fusão quase inviável de civilizações muito desiguais”.34 O jagunço era visto por Nina Rodrigues como uma importante representação do mestiço do sertão brasileiro, que traz em sua composição étnica os traços atávicos de uma descendência de guerreiros e selvagens. Segundo Rodrigues, 31SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil, 1870 – 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 190. 32Dentre aqueles mais citados por Nina Rodrigues, é possível destacar Gabriel Tarde, Gustave Le Bon, Rossi, Sighele, entre outros. 33Rodrigues, Raimundo Nina. A Loucura Epidemica de Canudos. Antonio Conselheiro e os Jagunços. In:______. As coletividades anormais. Brasilia: Senado Federal, 2006. p. 42. 34Ibidem, p. 49. 56 Pelo lado etnológico não é o jagunço todo e qualquer mestiço brasileiro. Representa-o em rigor o mestiço do sertão que soube accomodar as qualidades viris dos seus ascendentes selvagens, índios ou negros, às condições sociais da vida livre e da civilização rudimentar dos centros que habita. Muito diferente é o mestiço do litoral que a aguardente, o ambiente das cidades, a luta pela vida mais intelectual do que física, uma civilização superior às exigências da sua organização física e mental, enfraqueceram, abastardaram, acentuando nota degenerativa que já resulta do simples cruzamento de raças antropologicamente muito diferentes, e criando, numa regra geral que conhece muitas exceções, esses tipos imprestáveis e sem virilidade que vão desde os degenerados inferiores, verdadeiros produtos patológicos, até esses talentos tão fáceis, superficiais e palavrosos quanto abúlicos e improdutivos, nos quais os lampejos de uma inteligencia vivaz e de curto vôo, correm parelhas com a falta de energia e até de perfeito equilibrio moral.35 As palavras de Nina Rodrigues indicam uma série de caminhos para a análise da cultura brasileira que se tornaram relativamente hegemônicas em fins do século XIX. Em primeiro lugar, aponta para a necessidade de prestar-se maior atenção ao “Brasil profundo”, o interior brasileiro, longe dos olhos da maioria de nossos homens de letras. Este mesmo Brasil que foi apresentado por Euclides da Cunha em Os Sertões. Ainda que não disponha de indícios, penso ser plenamente plausível considerar que Euclides tivesse em vista o ensaio supracitado de Nina Rodrigues ao escrever Os Sertões, na medida em que aquele era de domínio público desde 1897, ainda que tenha sido publicado em livro apenas após a morte de Nina Rodrigues36, e pelo fato de ambos apresentarem uma comunhão de sugestões em torno da dicotomia entre o sertão e o litoral. Para Nina, o jagunço sertanejo apresenta traços de um guerreiro manqué, cujas ancestralidades atávicas guiam à luta, assim como o meio impele à struggle for life, em contraposição ao mestiço do litoral, um degenerado pelos vícios da civilização, pelo álcool e pela libertinagem. Euclides aparentemente retoma essa dicotomia, na medida em que, para ele: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.”37 Euclides da Cunha vê na figura ambígua do sertanejo esse Hércules-Quasímodo, o cerne de nossa nacionalidade. “É um retrógrado; não é degenerado.”38 Menos enfraquecido pelo excessivo e múltiplo processo de mestiçamento, ao contrário do homem do litoral, mais aberto ao diverso, mais misturado, mais à mercê dos vícios, menos essencial. Com Nina, Euclides comunga um juízo negativo acerca dos efeitos da mestiçagem. Para ele, A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílico-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço – traço de união entre as raças, breve existência 35Idem. 36O ensaio supracitado, como esclarece Arthur Ramos na apresentação de As CollectividadesAnormaes, foi publicado originalmente em 1897, na ”Revista Brasileira”, III Anno, tomo XII, de 1 de novembro de 1897. RAMOS, Arthur. Prefácio. In: op. cit., p. 13. 37CUNHA, Euclides. Os Sertões. Campanha de Canudos, 35ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 81. 38Ibidem, p. 79. 57 individual em que se comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado.39 É justamente a idéia de que a mestiçagem formava um híbrido, desequilibrado física e mentalmente, que aproxima Euclides da Cunha de conclusões às quais Nina Rodrigues havia chegado em seus estudos. Em ensaios que compõem a obra Coletividades anormais, como aquele sobre Lucas da Feira, o supracitado ensaio sobre Canudos e Antonio Conselheiro, Nina Rodrigues se apoiou fortemente no estudo craniométrico e frenológico, combinados a considerações sobre raça e sobre o meio para elaborar suas conclusões sobre o funcionamento dos levantes populares no nordeste brasileiro. Considerações finais Raça e meio são os dois elementos centrais do pensamento de Nina Rodrigues. Eles desempenham as funções de ator e de palco e, não raro, o enredo por ele desenhado é trágico. Ao observar aquilo que aos seus olhos se apresentava como a realidade nacional, Nina Rodrigues procurava colocar-se no papel de um cientista, cujo distanciamento de seu objeto de pesquisa era controlado pelo método. A mestiçagem era, aos olhos de grande parte dos intelectuais que eram contemporâneos de Nina Rodrigues, a grande questão a ser respondida quando pensavam sobre os caminhos que o país tomaria na caminhada rumo à civilização. A peculiaridade da resposta oferecida por Nina Rodrigues está justamente no caminho analítico por ele percorrido. Todo o seu esforço se deu no sentido de compreender a relação entre as diferentes “combinações raciais” e os fenômenos psicosociais, como as explosões de “irracionalismo” e violência. 39Ibidem, p. 77. 58 AS INSTITUIÇÕES UNIVERSITÁRIAS E A REFORMA PSIQUIÁTRICA MINEIRA: NOTAS DE PESQUISA Maria Stella Brandão Goulart – UFMG [email protected] Eliane Rodrigues da Silva – UFMG Palavras-chave: Instituições de credenciamento profissional; reforma psiquiátrica; saúde mental A pesquisa “As instituições universitárias e a construção da Reforma Psiquiátrica mineira nos anos 60, 70 e 80”40 investigou as relações entre os centros de produção de cultura formal e profissional de nível superior em psicologia e psiquiatria, como instituições de credenciamento profissional, a partir de seus atores, ações e produtos, tomados como um dos mediadores entre Estado e sociedade civil no desencadeamento do processo de reforma psiquiátrica em Minas Gerais. A hipótese principal é de que segmentos importantes dos corpos docente e discente das universidades tiveram participação relevante no processo que resultou na redefinição da política de saúde mental mineira. Focamos nossa investigação nas seguintes instituições: Cursos de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC); Residência em Psiquiatria do Hospital de Ensino Instituto Raul Soares (HEIRS); Curso de especialização em Saúde Mental da Escola de Saúde de Minas Gerais (ESMIG, atual ESP). Quando nos referimos às instituições de credenciamento profissional, apoiamo-nos em conceitos oriundos do campo da análise institucional (Castoriadis, 1992; Lourau, 1974; Lapassade, 1983; Baremblitt, 1992; Jepperson, 1991). Entendemos as instituições como um espaço polissêmico e contraditório. Estaríamos enfatizando especificamente a dimensão instituinte do processo de formação de psicólogos e psiquiatras. Esta perspectiva nos permite colocar em evidência os acontecimentos e atores sem vincular ou atrelar os produtos acadêmicos com sua continuidade, regularidade e reconhecimento político-institucional. Como cultura crítica, entendemos o conjunto de bens simbólicos de um subgrupo profissional do campo da saúde mental. São valores e identidades, preferências teóricas e técnicas, padrões de interação com a clientela, com os órgãos públicos e instituições privadas que são específicas e culturalmente orientadas (Vasconcelos, 2000). Para a realização da pesquisa, apoiamo-nos na pesquisa documental e na história oral, explorando o material encontrado a partir da perspectiva da análise do discurso (Machado, 2002) aliada à análise de conteúdo. Registre-se que a preocupação com a história oral surgiu e aprofundouse ao longo do processo de investigação e que mobilizou um esforço de revisão de literatura, na medida em que nos defrontamos com as dificuldades de localização de acervos (fontes primárias) confiáveis. Nossas principais fontes foram, portanto os currículos dos cursos de psicologia e psiquiatria - disciplinas, eventos, projetos de investigação e iniciativas de extensão universitária; levantamento das atividades de extensão e pesquisa. Trabalhamos também com entrevistas semiestruturadas, de forma complementar. Resultados e discussão O curso de Psicologia da PUC Minas (1958) percorreu uma trajetória marcada inicialmente 40 Esta pesquisa contou com o apoio da PUC Minas e da UFMG (instituição associada), sendo financiada pela FAPEMIG, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, no período de dezembro de 2005 a agosto de 2007. Contamos também com a consultoria do Prof. Eduardo Mourão Vasconcelos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. A equipe de trabalho foi composta pelas professoras doutoras Maria Stella Brandão Goulart (coordenadora) e Izabel Friche Passos (UFMG), além das estudantes de iniciação científica da PUC Minas: Ana Paula Sá da Silva, Carolina Novaes Cunha, Eliane Rodrigues da Silva, Marcela Alves de Abreu, Natalia Alves dos Santos e da UFMG: Fernanda de Moura Braga. 59 por uma tendência à visão experimentalista aplicada a área de seleção e treinamento da psicologia (anos 60), culminando, nos anos 80, numa perspectiva clínica, graças à influência da Psicanálise. Mas, foi também nessa época que o discurso crítico em saúde mental ganhou destaque no curso de Psicologia da PUC Minas, de forma mais incisiva, através das disciplinas de Psicologia Social. Em relação à extensão, a PUC Minas destacou-se por projetos que introduziram os preceitos de psicologia comunitária e fomentaram o discurso crítico na formação dos alunos: Projeto de Araçuaí, Projeto Cabana do Pai Tomás e Projeto de Saúde Mental da Prefeitura de Ibirité. O Projeto Cabana, coordenado pelo professor William César Castilho Pereira, tornou possível a implantação de modelos alternativos de atendimento ao portador de sofrimento mental, pautados numa lógica antimanicomial. No âmbito das pesquisas, foi identificado, no ano de 1986, a formação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, iniciativa de professores da PUC Minas. Foi o primeiro grupo de estudos vinculado aos centros de formação, sobre o tema da saúde mental que identificamos no contexto da psicologia. Identificamos a atuação e a participação de muitos atores presentes na PUC Minas e vinculados a outras instituições pesquisadas, principalmente à UFMG e à Residência do Instituto Raul Soares, configurando um ambiente de inquietação, produção crítica e de intervenções no campo da saúde mental. A Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares iniciada em 1968, no hospital Galba Velloso e transferida em 1971 para o Instituto Raul Soares, foi berço de destacado pensamento crítico, apontando para a influência da cultura formal nas ações políticas, pois os residentes e preceptores deste curso foram os agentes das propostas e executores das mudanças geradas pela Reforma Psiquiátrica. Em relação às disciplinas ministradas, destacamos a Psiquiatria Social, ministrada inicialmente por Francisco Paes Barreto (anos 70) e nos anos 80 pelo Dr. Cezar Rodrigues Campos. Tal disciplina abarcou críticas ao modelo psiquiátrico vigente. A residência ainda foi parceira da Associação Mineira de Psiquiatria, na organização do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, evento que contou com a participação de nomes importantes do cenário nacional e internacional, como Helvécio Ratton, Franco Basaglia e Robert Castel. As discussões que neste congresso ocorreram apontam para a busca de novas perspectivas na psiquiatria mineira e brasileira. O curso de Psicologia da UFMG (1963) destacou-se, nos anos 60 e 70, na formação no pensamento crítico acerca da saúde mental principalmente pelas disciplinas e seminários promovidos pelo então Setor de Psicologia Social, coordenado por Célio Garcia. Dentre os temas trabalhados estavam: mudança social, saúde pública, antipsiquiatria, psicossociologia francesa, análise de conteúdo, análise de discurso, perspectivas comunitárias, reflexões sobre Psicologia e Poder. O Setor promoveu visitas importantes como de André Levy e de Max Pagés (1968); Georges Lapassade (1972) e Michel Foucault (1973). Em 1974, ocorreu a mais polêmica e disputada mudança curricular da história do curso, quando os conteúdos de psicologia social e de psicanálise foram introduzidos, resultado da pressão do movimento estudantil. Dentre os projetos de extensão, destacaram-se, no período de 1971 a 1973, o Grupo de discussão e o Projeto de Pesquisa sobre Doenças mentais, na FAFICH, e o Curso de Sociologia da Doença sobre Doença Mental, no Hospital Espírita André Luiz. O Projeto Capim Branco, em 1973, onde Cornelis Stralen e Júlio Mourão atuavam em áreas de risco epidêmico de esquistossomose; e o Projeto Montes Claros, criado em 1976, no 1º seminário nacional do PISAM (Programa Integrado dos Serviços de Saúde do Norte de Minas), em Belo Horizonte, são exemplos de atividades de extensão que orientavam suas ações dentro da lógica do movimento sanitarista. O Projeto Guimarães Rosa, desenvolvido no Instituto Raul Soares (IRS) no final da década de 70 e início dos anos 80 pelos alunos do curso de psicologia, foi um trabalho alternativo e voluntário. Suas atividades visavam a uma reabilitação cultural dos pacientes ao ambiente hospitalar. Para isto, foram propostas atividades, tais como Rocinha, Porteirinha e MOBRAL, onde era focalizado o processo de ressocialização dos pacientes dentro da instituição psiquiátrica e em suas comunidades de origem. Em 1983, houve a implantação do Projeto de Integração Docente Assistencial, na região 60 metropolitana de Belo Horizonte e no norte de Minas, através de um convênio feito entre a Secretaria de Estado da Saúde, o Centro Metropolitano de Saúde (CMS) e o Departamento de Psicologia da UFMG. Isto permitiu que os alunos do curso de psicologia dos últimos períodos, supervisionados pelo professor Cornelis van Stralen, fizessem estágio nos centros de saúde de Belo Horizonte e no norte de Minas. No âmbito das pesquisas, em 1967, o Setor de Psicologia Social cria o Centro de Psicologia Social Aplicada (CEPSA), dedicado à pesquisa e aplicação da psicologia social, de caráter interdisciplinar, reunia professores de várias áreas (ciências sociais, comunicação, etc). Em 1968, ele é oficializado e renomeado para Centro de Pesquisa em Psicologia e Sociologia, no entanto, posteriormente, suas atividades não tiveram continuidade. Uma das críticas de Machado ([1985] 2004) é que se observava certa divisão entre teoria e prática. O Curso de Psicologia da FUMEC (1969), na década de 70, era marcado pela disputa entre duas concepções epistemológicas: o Behaviorismo e o Humanismo (Rogeriano). Neste período ocorreu a visita de Ronald Laing na FUMEC, apontando já aí uma postura crítica no que se refere à discussão sobre a assistência psiquiátrica no Brasil e no mundo. As iniciativas que apontaram uma discussão crítica e política sobre o Movimento de Reforma Psiquiátrica em Minas Gerais nessa Instituição foram protagonizadas pelo Movimento Estudantil (anos 70 e 80); pela prática de Psicopatologia proposta pelo professor Goyatá e pela contribuição da Psicanálise Lacaniana (anos 80), além dos “Encontros de Saúde Mental” e as discussões da Associação Mineira de Psiquiatria, levados à FUMEC por Goyatá. A FUMEC ainda se caracterizou como um importante centro de credenciamento profissional para a atuação no novo modelo da Saúde Mental adotado em Minas Gerais, sob a ótica antimanicomial. Importantes nomes da Luta Antimanicomial (Rede Internúcleos) como Rosimeire Aparecida Silva, Marta Elizabeth de Souza e Marcus Vinícius foram graduados pela FUMEC e muitos alunos ingressam na rede de serviços substitutivos de Belo Horizonte e região metropolitana. Finalmente, merece destaque na FUMEC outra experiência de estágio citada por Sampaio em sua entrevista. Por volta de 1988, 1989 ou 1990, ocorreu um estágio com alguns estudantes da FUMEC na cidade de Santos, experiência implantada pela então prefeita Telma de Souza, seguindo o modelo de Trieste, de Franco Basaglia, na Itália. Essa experiência foi um marco para a FUMEC, pois envolveu uma discussão de cunho político acerca da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Os professores envolvidos neste projeto foram: Francisco José dos Reis Goyatá; Mara Viana de Castro; Eduardo Martins, Emerson Pardié e o próprio Tadeu Otávio Sales Sampaio. Pode-se também concluir a formação de uma rede de atores que envolvem as universidades PUC, UFMG e FUMEC, como é o caso de William César Castilho Pereira, Célio Garcia, Cornelis Van Stralen e Eduardo Mourão Vasconcelos. A Escola de Saúde Pública de Minas Gerais acolheu, no final dos anos 80, o Grupo de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental (numa parceria com a PUC MINAS) e, ofertava desde sua criação, capacitação e formação em nível de pós-graduação para profissionais de saúde e saúde mental inseridos ou não nos serviços públicos. Assim, a ESP-MG contribuiu na constituição de uma cultura crítica que estimulou o processo de Reforma Psiquiátrica, na medida em que formava tanto especialistas em Saúde Pública (Convênio com a Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ), como em Saúde Mental. A ESP-MG construiu consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde (1988/90) por ser um curso atualizado, afinado com o tempo e com as necessidades da prática clínica; por buscar um diálogo com várias disciplinas; e por ter como horizonte a construção dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a preparação de pessoal qualificado para trabalhar dentro da nova lógica de assistência em Saúde Mental (Rocha, 2002). Disciplinas como, Clínica em Saúde Mental (1986 e 1987), Planejamento e Administração dos Serviços de Saúde Mental (1986 e 1987), Introdução a Teoria Psicanalítica (1987), Análise Institucional (1987), Psicopatologia (1987) e Aspectos Sociais do Processo Saúde/Doença (1987 e 1988), demonstram esta preocupação. Revela também nomes de atores relevantes no processo de reforma psiquiátrica, que estiveram integrados ao seu quadro de professores como: Cezar Rodrigues 61 Campos e Romualdo Francisco Dâmaso, em 1987 e José Lorenzzato de Mendonça. Destacou-se, ainda, uma significativa sintonia com a Escola Nacional da FIOCRUZ, com a Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, a Residência em Psiquiatria do Hospital de Ensino Instituto Raul Soares e a FUMEC. Conclusões Não se pretendeu inferir, em nenhum momento, que as universidades tenham capitaneado o processo de Reforma, mas que a contribuição de muitos dos professores e alunos que atuavam nestes espaços foram relevantes para a transformação do pensamento e da cultura, que estava se processando. Nosso trabalho de investigação capturou, no entanto, a emergência e a perseveração de uma cultura crítica que tomou a forma de conteúdos específicos e de práticas de intervenção e de pesquisa, apesar de não ter abordado a formação básica em Medicina que seria concernente à Psiquiatria. Pudemos identificar que este discurso crítico se apoiava, nos anos 60, na sintonia com a Antipsiquiatria anglo-saxônica, que pertencia ao campo da psiquiatria social, com a psicossociologia americana e francesa e com a psicanálise (como perspectiva clínica). Esta perspectiva foi sinalizada tanto na especialização em psiquiatria da Residência do Hospital Galba Velloso e do Instituto Raul Soares, como na formação básica em psicologia então ofertados (UFMG, PUC, FUMEC). Toda uma escola de pensamento em Psiquiatria parte de um cenário que tinha mais compromissos com as urgências da prática, onde se destacam os nomes de.Jorge Paprocki e a equipe que participou da experiência de comunidade terapêutica do Hospital Galba Velloso. No que concerne à Psicologia, destaca-se o impacto do trabalho realizado no Banco da Lavoura através de Pierre Weil. Já o estudo que realizamos sobre a UFMG e sobre as primeiras Residências em Psiquiatria delimitam um campo institucional relevante e diferenciado, cuja principal conexão se funda no nome de Célio Garcia que tem um papel central na constituição da cultura crítica profissional mineira quando se integra ao curso de Psicologia da UFMG e começa a formar um pauta de trabalho interdisciplinar e crítica e também um grupo de psicólogos (o Setor de Social) que criou condições de transformação da cultura conservadora dominante, de modo a gerar pensamento e ação fortes, tanto do ponto de vista político (de esquerda) como de geração de novos modos de interpretação (crítica às instituições sociais). Nos anos 70, identificamos a emergência de outro paradigma de pensamento e ação que foi a psicologia e psiquiatria comunitárias. A relevância dos conteúdos vinculados a esta corrente de pensamento traz as questões relativas ao direito social, da participação dos setores de baixa renda (movimentos comunitários e populares) e da democratização das relações societárias para o centro da discussão. Além disso, identificamos a relação com o movimento sanitarista brasileiro e o processo de construção da Reforma no campo da saúde pública e coletiva. A disciplina em questão aparece como conteúdo na UFMG (primeira ofertada no Brasil) e passa a integrar oficialmente o currículo de psicologia em função da pressão do movimento estudantil. Aqui temos que destacar o nome do professor Cornelis Joanes van Stralen que testemunha o desenvolvimento das primeiras iniciativas neste campo e leva este perspectiva de trabalho não apenas para a UFMG, como também para a ESP e para o Centro metropolitano de Saúde da SES de MG já na década de 80. Esta perspectiva de pensamento e trabalho se expressou nos projetos de extensão da UFMG – Projeto Metropolitano – e também fez história na PUC, nos anos 80, através, em especial, do trabalho dos professores William César Castilho, Marcos Vieira da Silva e Eduardo Mourão Vasconcelos. Este conjunto de nomes nos faria pensar em uma estruturação de rede. Os anos 80 podem, por sua vez, serem interpretados como um período de busca de respostas, de esforço de construção de um modelo de atenção que pudesse afrontar o modelo assistencial hospitalocêntrico. As direções tomadas pelas diversas instituições estudadas foram duas: o trabalho dentro dos hospitais psiquiátricos em processo de reforma e o trabalho ambulatorial e comunitário. O curso de psicologia da PUC implementou dois projetos de extensão relevantes: o Cabana do Pai Tomás e o de Ibirité (ambos de perspectiva comunitária e com forte presença da Psicanálise). O curso de Psicologia da UFMG realizou o projeto docente-assistencial e o internato rural. A Residência do IRS 62 investiu no trabalho dentro do hospital (5ª. enfermaria) com o Plano de Reestruturação e acolheu o Guimarães Rosa que era uma iniciativa de estudantes da UFMG. A formação em psicanálise, na ocasião já ofertada pelas instituições acadêmicas, se tornou parte do perfil que correspondia às expectativas de boa atuação no campo da saúde mental. A ESP passou a oferecer a possibilidade de formação para o psicólogo e o psiquiatra, primeiramente com o curso de saúde pública e posteriormente com o curso de saúde mental. Note-se que, a relação de colaboração institucional desloca-se desde a UFMG (através da mediação de Stralen) para a FUMEC. Chamou nossa atenção o fato de, nas disciplinas relativas a Análise Institucional, a ESP ter procurado apoio no cenário de formação do Rio de Janeiro, mas que se justificava na parceria com a ENSP da FIOCRUZ. Não se pode dizer, no entanto, que o tema da Reforma Psiquiátrica tenha conquistado espaço hegemônico no interior das instituições acadêmicas, excetuando-se, talvez a Residência do IRS, onde a saúde mental encontrou, no período estudado, alguma centralidade. Percebemos que a Reforma Psiquiátrica, como tema, nos projeta num conjunto de professores e estudantes que tem uma atuação quase sempre interinstitucional. São eles que tecem redes que operam em determinados momentos históricos, mas que não se sustentam fora deles. Assim, se identificamos ambientes intelectuais informados por referencias teóricas muito semelhantes, não nos parece evidente a consolidação de vínculos de colaboração entre a academia e a Reforma Psiquiátrica. Quanto à cultura crítica, podemos concluir que, no período focado, pudemos identificar que as instituições pesquisadas, de forma diferenciada entre elas, ofertavam um paradigma de questionamento ao conceito de doenças mentais e seus modos de tratamento. Belo Horizonte foi palco de experimentação de ações comunitárias e de trabalho clínico correlacionáveis aos centros de formação. No que concerne à formação em psiquiatria, a Residência do Instituto Raul Soares cumpriu papel essencial na Reforma Psiquiátrica mineira realizando um projeto já delineado nos anos 60. Considerando que tínhamos como objetivo geral “identificar e avaliar a participação das variáveis de cultura formal em processos de mudança social, enfocando, especificamente, mudanças no campo da saúde mental”, entendemos que a Reforma Psiquiátrica mineira tem um cenário rico em sugestões. O que nos parece central é revelar que houveram propostas e iniciativas, mas que elas se revelaram insuficientes para dar uma resposta adequada ao processo de transformação demandado e que tomou a forma nos anos 90 de criação de um modelo substitutivo. A cultura acadêmica enfocada, apesar de crítica, não foi capaz de formar, nos anos 80, quando se configura o primeiro projeto de ação concreto, psicólogos e psiquiatras capazes de afrontar a tendência hospitalocêntrica da política de saúde mental de então. O paradigma da Psicologia comunitária foi fortemente criticado e a prática dominante da academia estava longe de ser sensível aos problemas prementes da Reforma Psiquiátrica. Nossas conclusões, no entanto, acusam o enraizamento de pensamento crítico abrem questionamentos acerca da memória, (des)continuidades e conflitos ocorridos ao longo do processo de desencadeamento da Reforma Psiquiátrica mineira. Referências Bibliográficas Baremblitt, G. (1994). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática (2ª Edição). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Castoriadis, C. (1988). Encruzilhadas do Labirinto II. Rio de janeiro: Paz e Terra. Goulart, M. S. B.; et al. (2007). As Instituições Universitárias e a Construção da Reforma Psiquiátrica Mineira nas Décadas de 60, 70 e 80. Relatório final de pesquisa não-publicado. FAPEMIG/ PUC Minas/ UFMG, Belo Horizonte, Brasil. Jepperson, R. L. (1991). Institutions, institutional effects, and institutionalism. In W. W. Powell and P. J. DiMaggio, The new institutionalism in organizational analysis. Chicago/London : The University of Chicago Press. Lapassade, G. (1983). Grupos, organizações e instituições (2ª. Edição). Rio de Janeiro: Francisco Alves. Lourau, R. (1974). A análise institucional. Petrópolis: Vozes. 63 Machado, M. N. M. (2002). Entrevista de pesquisa: a interação pesquisador/pesquisado. Belo Horizonte: Arte. Rocha, A. T. (2002). A história em construção do curso de especialização em saúde mental da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Belo Horizonte: Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Vasconcelos, E. M. (2000). Reinvenção da cidadania no campo da saúde mental e estratégia política no movimento de usuários. In E. M. Vasconcelos (Org.), Saúde mental e serviço social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez. 64 AS CONCEPÇÕES DE LOUCURA NO BRASIL DA SEGUNDA METADE DOS OITOCENTOS Emanuele Luiz Proença (Universidade Federal do Espírito Santo/ Grupo Hospitalar Conceição – [email protected]) Túlio Alberto Martins de Figueiredo (Universidade Federal do Espírito Santo) Palavras-chave: Loucura; Saúde Mental; História O recorte temporal realizado para o desenvolvimento deste artigo, que se propõe a discutir sobre as concepções de loucura vigentes na sociedade brasileira na segunda metade do século XIX, ocorreu em virtude de ser este o período histórico correspondente ao que o dramaturgo Qorpo-Santo viveu experiências marcadas pela loucura – tais como o início da manifestação dos seus sintomas de adoecimento psíquico, a interdição judicial por insanidade mental e o registro pessoal dessas vivências na sua obra literária – tendo em vista que este trabalho integra pesquisa mais ampla, ainda em andamento, que tem como tema a vida e obra desta curiosa personalidade gaúcha. Qorpo-Santo era a forma como se autodenominava José Joaquim de Campos Leão (18291883), que viveu em Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul à época. Era professor de gramática, ocupou também cargos de vereador e delegado de polícia, porém, coincidindo com o início da fase de mais intensa produção escrita, sua esposa requereu, no ano de 1862, sua interdição judicial por insanidade mental. O processo foi concluído somente em 1868 com a interdição de Qorpo-Santo, que ao longo desses anos empenhara muitas forças na tentativa de efetuar sua defesa. Ironicamente, Qorpo-Santo, que não foi compreendido nem aceito pelos seus contemporâneos, um século mais tarde, passou a ser muito valorizado pelos críticos do teatro em função de seu caráter inovador, sendo que atualmente é reconhecido como um dos grandes gênios da história da dramaturgia (Espírito Santo, 2003; Schechtman, 2005; Ramos, 2008). No entanto, a pertinência em estudar as concepções de loucura nesse referido tempo não se estabeleceu apenas pela necessidade de se compreender melhor o contexto no qual transcorreu a insólita vida de Qorpo-Santo, mas também por se identificar que foi esse o momento histórico em que o Estado brasileiro passou a perceber a loucura como um problema social no qual deveria intervir e quando as primeiras instituições psiquiátricas foram fundadas, ao passo que a própria psiquiatria começava a se organizar como especialidade da medicina no País (Resende, 2001; Caponi, 2009). Assim, no intuito de desenvolver a referida discussão, empreendemos uma observação documental, na qual as fontes de informações constituíram-se de livros, artigos, dissertações e teses que discorressem sobre a forma como era entendida e tratada a questão da loucura no século XIX. Rudio (2002) afirmou que o termo observação, geralmente utilizado apenas em pesquisas que tratam da realidade empírica, pode ser estendido ao “uso da biblioteca” (p. 48, grifo do autor), onde se reúnem os produtos das observações e experiências de outros pesquisadores acerca do tema de interesse. Como o objetivo era estudar aspectos da realidade de um tempo passado, debruçamo-nos sobre o que já fora registrado e analisado por diferentes autores acerca da loucura nesse período, atentando para o contexto no qual foi produzido cada trabalho, além do seu conteúdo, conforme sugestão de Flick (2009) para a análise de documentos textuais. A seleção dos textos utilizados como fontes na pesquisa iniciou por publicações acerca da temática que eram já conhecidas pelos pesquisadores, de buscas em bibliotecas e em publicações online, sendo que, posteriormente, as referências de tais textos serviram como guias para a seleção de novos documentos. A partir da leitura e análise do material consultado até o presente momento, dentre as demais fontes selecionadas, foi possível entender que aqueles sujeitos considerados como loucos, que até meados do século XIX costumavam compor o cenário cotidiano das comunidades no território brasileiro, gozando de relativa tolerância e liberdade, começaram a partir de então a serem percebidos como um problema social e, portanto, merecedores da intervenção do Estado. Assim, a principal estratégia a ser traçada foi o confinamento desses sujeitos em instituições que pudessem os controlar, antes mesmo de cuidá-los ou tratá-los. E, assim, com a constituição dessa nova demanda social, ainda 65 anterior ao estabelecimento das primeiras instituições psiquiátricas no País, passou-se a enviar os loucos para os estabelecimentos aqui já existentes que vinham desempenhando essa função asilar, embora com outro público, como, por exemplo, as Santas Casas de Misericórdia (Resende, 2001). Lorenzo (2007) identificou o ano de 1834 como aquele em que a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre começou a acolher os ditos loucos ou alienados em suas dependências. A instituição havia iniciado suas atividades em 1824, tendo como principal atribuição o recolhimento de enfermos pobres, sendo que, primeiramente, os alienados que deveria atender seriam também aqueles que estivessem em situação de indigência ou de explícita carência de recursos. No início da década de 1860, o público da Santa Casa estava então formado por doentes, escravos, menores abandonados e alienados. Porém, a crescente demanda pelo recolhimento de alienados nessa instituição, solicitado em grande parte pelas autoridades policiais e judiciais da Província, ensejou a construção de um espaço exclusivo para atendimento desta população específica, sendo assim inaugurado, em 1863, o Asylo de Alienados da Santa Casa de Porto Alegre – que pouco tempo depois também se mostrou insuficiente. Se por um lado, as autoridades policiais estavam entre as que mais demandavam à Santa Casa o recebimento de alienados, por outro era a própria Cadeia Pública o outro destino mais comum a esses sujeitos. Lorenzo (2007) percebeu que havia, por sua vez, situações de conflito entre essas diferentes instituições com relação à necessidade de internação dos alienados, bem como sobre os critérios a serem utilizados para definir se o destino mais apropriado a eles seria a Cadeia ou a Santa Casa. O autor compreendeu que, de forma geral, tais ações de confinamento dos alienados compunham um conjunto de estratégias forjadas com o intuito de reprimir o não trabalho e de manter uma determinada ordem social. Foucault (1978), na História da Loucura na Idade Clássica, havia descrito o processo que denominou de “a grande internação” ocorrida ao longo dos séculos XVII e XVIII na Europa, por meio do qual se tornaram elementos das ações de confinamento os pobres, vagabundos, desempregados, presidiários e alienados. Eram todos destinados às mesmas entidades que cumpriam um papel ora administrativo, ora jurídico, e que embora na França fossem chamados de Hospitais Gerais, não se caracterizavam como estabelecimentos médicos. O século XVII fora o palco para a disseminação dessas casas de internamento pela Europa ocidental, das quais os Estados, encarnados de maneira geral no poder absolutista, faziam uso de forma arbitrária ao decidirem pela internação de um indivíduo. O autor expôs que o principal foco dessas ações nesse período fora a miséria, percebida então como obstáculo à ordem social, sendo que o internamento desses sujeitos cumpria com uma função ao mesmo tempo assistencial e repressiva. Nesse sentido, algumas semelhanças podem ser traçadas entre essa experiência na Europa e o processo de internamento vivido no Brasil do século XIX. Lorenzo também verificara que na atuação das Santas Casas, destinadas a acolherem os pobres, era difícil distinguir a função caritativa daquela de repressão, haja vista que estava articulada às instâncias do Estado e que acabava por retirar das ruas indistintamente os mendigos, vadios, inválidos e insanos. Além disso, no período estudado pelo historiador, que foi da década de 1830 a 1870, era do mesmo modo incipiente a atuação dos médicos na Santa Casa de Porto Alegre, por exemplo. Resende (2001) que também identificou a possibilidade de se fazer paralelos entre o que ocorreu na Europa e mais de um século após no Brasil, alertou, entretanto, para as diferenças estruturais entre esses dois processos, tendo em vista que a Europa no século XVII já passava pela grande transformação da sua ordem social e econômica com o advento do capitalismo mercantil, enquanto o Brasil ainda se configurava numa colônia rural e pré-capitalista no século XIX. Torna-se, ainda, relevante ressaltar que as denominações loucura e louco, que foram utilizadas de forma universal desde a Antiguidade, foram substituídas pelos termos alienação mental e alienado no decorrer das transformações sociais acima descritas – ora na Europa, mais tarde no Brasil – passando a aparecer de forma mais freqüente nas fontes que tratavam desses períodos (Lorenzo, 2007). A racionalidade moderna, desenvolvida a partir do século XVII sob forte influência do pensamento cientificista de Descartes, produziu outro entendimento para a razão, e também para a loucura, distintos daqueles que estavam colocados ao longo da Renascença. Ainda neste momento 66 histórico, razão e loucura não estavam isoladas uma da outra, ao contrário, eram compreendidas como aspectos imanentes da natureza humana, que ao mesmo tempo em que se recusavam, se fundamentavam um no outro. Descartes teria, no entanto, proferido a cisão entre razão e loucura ao defender que esta se colocaria como uma impossibilidade ao pensamento que busca o encontro com a verdade e que, portanto, o homem para conseguir pensar não poderia ser louco; por conseguinte, não existiria razão na loucura de acordo com esta concepção (Foucault, 1978). A loucura, desta forma, passou a ser concebida como erro de juízo ou desrazão e, assim, emergiu o conceito de alienação mental que passou a designar o louco como um sujeito que tinha uma desordem da razão e por isso estava alienado ou afastado da possibilidade de julgar e reconhecer a verdade, tornando-se, por conseqüência, também incapaz de partilhar o pacto social (Torre & Amarante, 2001; Palombini, 2007). Deste modo, articulou-se uma justificativa racional para o enviou dos alienados às instituições de confinamento. Mais tarde, porém, pôde ser identificada nova substituição de termos, quando doença mental passou a ser utilizado com mais freqüência nos textos que abordavam o tema da loucura, demonstrando assim a configuração de outra concepção acerca dessa problemática. No Brasil, foi somente ao aproximar-se o término do século XIX que a medicina, que ficara afastada das intervenções do Estado diante da loucura ou participara apenas de forma coadjuvante, se apropriou dessa questão (Caponi, 2009). Na Europa, isso já havia ocorrido no final do século XVIII, sendo que pode ser considerado como um marco deste movimento a cena em que Pinel libertou os loucos das correntes às quais ficavam presos – sem distinção alguma dos indivíduos considerados contraventores que tinham penas a serem cumpridas – dando assim início às reformas dos hospitais que haviam mantido até então um caráter caritativo e correcional e passaram a se tornar estabelecimentos onde se almejava a cura ou o restabelecimento da saúde, por meio da atuação fundamental dos profissionais médicos (Foucault, 1978; Torre & Amarante, 2001; Palombini, 2007). Os ensaios iniciais de organização da medicina em torno da loucura no Brasil foram já percebidos nos movimentos que instigaram a fundação do primeiro hospício brasileiro – Hospício Pedro II, inaugurado, em 1852, pelo próprio Imperador no Rio de Janeiro. Mas, segundo Lorenzo (2007), a classe médica que começava então a se estabelecer não deveria ser tomada como um grupo homogêneo e coeso, pois existiam entre eles divergências quanto ao entendimento e abordagens para a loucura, como se pôde verificar ao analisar o caso de Qorpo-Santo que foi avaliado por diferentes médicos em função de existir uma discordância quanto ao seu diagnóstico, assim como a respeito da necessidade de ser interditado. Nesta situação específica, como não houve consenso entre os profissionais e Qorpo-Santo se recusara a ser submetido à outra avaliação, a decisão final acabou sendo do juiz que, ao interditá-lo, contrariou a maioria dos médicos envolvidos no caso (Schechtman, 2005). De qualquer forma, compreende-se que foi ao longo da segunda metade do século XIX que se produziram as condições para a constituição da psiquiatria como especialidade da medicina que, na passagem para o século XIX, já teria alcançado o domínio sobre a loucura, então entendida como doença mental (Caponi, 2009). No entanto, torna-se imprescindível ressaltar que a forma como a psiquiatria passou a abordar a loucura não representou uma ruptura total com a maneira anterior. Pois, se por um lado o louco deixou de ser tratado como qualquer outro indivíduo pobre ou criminoso, ele passou a ser destinado a instituições então especializadas; se antes o alienado necessitava ser isolado por não possuir juízo e capacidade de julgamento, a partir deste momento, o doente mental precisava ficar confinado para melhor compreender a doença que lhe acometera e para que pudesse ser tratado ou corrigido ao permanecer afastado das más interferências do meio social, que por sua vez ficava protegido do perigo que aqueles sujeitos desprovidos de discernimento representavam (Torre & Amarante, 2001; Palombini, 2007). O grande aumento na demanda por internações de alienados em estabelecimentos como as Santas Casas proporcionou a abertura de diversas instituições psiquiátricas pelo País. Palombini (2007) defendeu que as necessidades advindas da intensa urbanização que ocorria neste tempo favoreceram o acréscimo dessa demanda, a proliferação das instituições psiquiátricas, bem como a consolidação do 67 saber psiquiátrico. Dessa forma, compreende-se que, de forma geral, tanto instituição como saber psiquiátrico surgiram e se legitimaram ao contribuir com o Estado na mesma função de controle social que este já desempenhava há mais tempo. Embora possamos apontar situações que demonstram não ter existido num mesmo momento histórico – como a segunda metade do século XIX – homogeneidade nos discursos sobre a loucura mesmo no interior de um único saber, como o psiquiátrico, assim como entre diferentes saberes articulados às funções do Estado – saber jurídico versus saber psiquiátrico, por exemplo. Questões como estas poderão ser ainda mais exploradas a partir da articulação de uma compreensão macropolítica acerca da história da saúde mental neste período com a análise de um caso específico como o de Qorpo-Santo, que nos legou um rico testemunho, por meio de sua obra literária, de esforço pela não sujeição a tais ações de controle e dos limites aos quais não conseguiu se desvencilhar. Referências Palombini, A. L. (2007). Clínica-mundo: histórias, genealogias. In Palombini, A. L., Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade – contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica (pp. 79-137). Tese de doutorado, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Torre, E. H. G., & Amarante, P. (2001). Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 6(1), 73-85. Caponi, S. (2009). Michel Foucault e a persistência do poder psiquiátrico. 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O livro – O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo (1986) – originado da tese de doutorado da autora, propõe reflexão exatamente sobre a psiquiatria brasileira em fins do século XIX e décadas iniciais do século XX. A autora problematiza a construção do saber psiquiátrico no Brasil a partir do impulso desenvolvedor do marco temporal considerado, resgatando a partir da pesquisa no hospital, trajetórias de sujeitos que ilustram o papel da medicina psiquiátrica na determinação de discursos sobre normalidade e anormalidade (Cf. CUNHA, 1986). O trecho que, enfim, citarei, embora possua claramente um recorte de gênero a ser considerado e embora trate especificamente do contexto brasileiro, ilustra em minha opinião, uma característica essencial do que já foi apontado por inúmeros autores como algo marcante da medicina do período: a busca na vida dos sujeitos, em suas histórias, de elementos para sustentar construções nosográficas de loucura. Vejamos: Nossa doente é a ultima filha nascida e como tal sempre habituada a mimos e carícias excessivas. Muito inteligente, estudou na Escola Normal, onde salientou-se, recebendo sempre os maiores elogios, que a tornaram orgulhosa. Realmente os merecia, pois três anos após sua formatura foi nomeada diretora de grupo escolar em Santos. Ali, sempre se distinguiu, multiplicando a sua atividade. (...) Por uma futilidade, desgostou-se e pediu remoção para Araras; achou o meio muito acanhado para o seu talento e abandonou o lugar. Trabalhava demais: havia uma hiperexcitação intelectual; escrevia livros escolares que julgara modelos; fundava escolas noturnas; comprava livros e livros para ler; já neste tempo tornara-se completamente independente: não admitia intervenção ou mesmo conselhos dos pais ou irmãos mais velhos; confiava exclusivamente em si(...). (CUNHA, 1986: 151). O trecho citado faz parte da papeleta médica de Eunice C., que esteve internada no Hospital entre Janeiro e Junho de 1910, no qual constava uma desde muito jovem, vivacidade intelectual. Na leitura que faço do que foi escrito pelo médico responsável no trecho acima, fica evidente que a loucura alegada está sendo justificada pela trajetória supostamente desregrada pela qual havia passado a paciente. Para além de uma representação específica sobre papéis sociais adequados às mulheres – sintomática do período – destaco, aliado também a este aspecto, a interface que a medicina psiquiátrica do período criou entre sociedade e loucura, portanto, de uma loucura que poderia ser produzida no âmbito da sociedade, nas experiências sociais dos indivíduos. O fato de uma mulher ter sido considerada louca em função da realização de atividades então consideradas como inadequadas para a mesma não significa somente que a medicina psiquiátrica operava com uma rígida representação de 41 As discussões apresentadas no âmbito deste breve artigo se originaram de debates e pesquisas desenvolvidas entre 2007 e 2009 no Grupo de Pesquisa Cultura, Relações de Gênero e Memória, vinculado ao Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. O proponente do presente trabalho encontrava-se então na graduação do Curso de Ciências Sociais e produzia reflexões sobre as conexões entre o desenvolvimento do saber psiquiátrico e a reafirmação de representações de gênero. As discussões aqui apresentadas fazem parte, portanto, desse contexto maior do Grupo de Pesquisa mencionado, mas também compõe, atualmente, a pesquisa para a dissertação de mestrado em Antropologia Social, na qual o autor tem sondado a possibilidade de estudar uma interface entre Antropologia da Saúde e Antropologia da Religião no espaço de um hospital para tratamento psiquiátrico. 70 gênero (que encontrava reverberação também em outras instituições). Isto também evidencia um poder de reinventar sujeitos que é atribuído ao saber psiquiátrico e que os destitui de suas próprias histórias criando outras em seus lugares, onde a doença poderia ser lida nas etapas que lhe são constitutivas. Em outras palavras, uma idéia de desvio social (e penso aqui em situações como essa da paciente acima citada), a vida pregressa dos pacientes, eram então lida como manifestação de desvios patológicos e o que poderia, via de regra, conduzir a loucura. Para além disso, conforme sugeriu Magali Engel, foi na categoria de doença mental que se anunciou a amplitude da intervenção médica na sociedade, não somente na sexualidade, mas “nas relações de trabalho, nas condutas individuais ou coletivas, que dissessem respeito a questões políticas ou religiosas” (ENGEL, 2001: 329). Neste artigo tentarei narrar um pouco da história da constituição do saber psiquiátrico, com especial atenção para as últimas décadas do século XIX, e aos processos que aí são geridos, e para as décadas iniciais do século XX. O objetivo principal é, como sugeri nos parágrafos anteriores, produzir alguma reflexão teórica sobre uma relação que se produz entre medicina, sociedade e loucura neste período, trazendo questões como a modernização das instituições sociais e a complexificação dos modos de produção para debater a constituição da medicina psiquiátrica. História e loucura, ou a loucura na história. Um dos primeiros trabalhos do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), A História da Loucura na Idade Clássica, de 1961 é também possivelmente uma das principais referências para os debates que se produzem em Ciências Humanas sobre as relações entre a sociedade ocidental e uma certa produção de discursos do sujeito. Abrindo o texto Sujeito e Poder, o próprio Michel Foucault diz a este respeito, que seu tema de pesquisa sempre foi antes o sujeito que o poder, apesar de este último, segundo ele, apresentar-se sempre de modo bastante complexo em relações de produção e significação em que o sujeito humano é colocado (Michel Foucault, 1995). No caso específico de seus estudos sobre loucura, anteriores às suas discussões sobre o dispositivo da sexualidade, diz o autor: “estudei a objetivação do sujeito naquilo que eu chamarei de ‘práticas divisoras’. O sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros. Este processo o objetiva. Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os ‘bons meninos’.”. Em sua obra, ainda identifica o autor, o objetivo teria sido o de “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornamse sujeitos” (FOUCAULT, 1995: 231). Sem entrar na seara das discussões sobre o estruturalismo da obra de Foucault, a divisão (oposição) entre louco e são – por exemplo – produtora de uma objetivação de ambos os lados informa o processo que o autor tenta descortinar na História da Loucura na Idade Clássica (1961) que – apesar de não tratar diretamente dos temas que na sequência seriam centrais na obra do autor, como as idéias de discurso, saber, poder (cf. Gilles Deleuze, 1992)42 – narra, efetivamente, uma história das transformações da idéia de loucura e dos processos de subjetivação ao qual os indivíduos envolvidos na história se vêem enredados. História de Foucault começa com a informação de que a lepra desaparece do mundo ocidental no fim da Idade Média. A lepra, que durante dezenas de anos assustara a sociedade com suas imagens de morte e desespero, desaparece deixando vago seu espaço social. Apesar disso, a imagem que se construíra do leproso ainda permaneceria. Sua existência como emanação da vontade divina – da medida certa da punição e do castigo essenciais à redenção; da exclusão como uma medida de salvação eterna – marcam toda a experiência do internamento durante a Idade Média. A construção do autor sobre o tema é que o espaço (físico, moral, cultural) que a lepra ocupara, agora passara a abrigar toda uma série de novos disparatados: pobres, vagabundos, presidiários, “cabeças alienadas”, doentes, entre outros. Operou-se uma substituição dos habitantes do leprosário, por meio da massificação do desvio social. A este procedimento o autor chamará de Grande Internação. Embora inicialmente não se pudesse precisar, segundo Michel 42 A idéia de que A História da Loucura ainda não continha tais temas formalmente realizados em seu conteúdo encontrase na entrevista concedida por Gilles Deleuze para Claire Parnet, em 1986. Segundo Deleuze o desenvolvimento intelectual do autor “procedeu por crises” de rupturas e de orientações e não numa evolução. Ainda assim, Gilles Deleuze afirma que a questão da loucura atravessa toda a obra de Foucault. A entrevista em questão encontra-se traduzida para o português no livro Conversações: 1962-1990, publicado pela Editora 34. 71 Foucault, qual dos novos ocupantes alcançaria o status da lepra, é em torno da loucura que rapidamente se organizará o espólio do leprosário. A loucura ascende, pois modifica os julgamentos que antes se produziam sobre a lepra. Na loucura, o juízo moral modifica ou re-significa toda a compreensão médica da doença e do confinamento. (Cf. Foucault, 2010 [1961]). Debatendo o internamento diz Michel Foucault: A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. (FOUCAULT, 2010: 78) O século XVIII, por sua vez, ao qual historicamente se tem atribuído o título de século das luzes, século de insignes pensadores da ciência ocidental – Voltaire, Rousseau, Newton, Hegel, entre outros – marcou uma nova revolução de sentido no procedimento asilar. Libertadas no Renascimento, as vozes da loucura são chamadas ao ambiente do internamento no período clássico, para posteriormente verem-se novamente objeto de esquadrinhamento no Iluminismo nascente do século XVIII. O século das luzes marcou, portanto, a ascensão de uma modalidade racionalista de interpretar a realidade. A esse respeito diz o pesquisador Michael H. Stone: Na psiquiatria dos anos 1700, uma confiança ainda maior foi colocada na observação direta e discussão racional. A superstição e o dogmatismo estavam diminuindo (...). Embora os termos diagnósticos cunhados pelos médicos gregos tenham sido largamente mantidos – mania, melancolia, histeria, as noções sobre etiologia afastavam-se das teorias sobre humores e “úteros migratórios”. Teorias neuroanatômicas, embora primitivas, surgiam agora, assim como as teorias psicológicas com relação às “paixões” (principalmente, amor ou raiva). O dualismo cartesiano (a noção de que o espírito era distinto do corpo) ainda dominava os muitos médicos e filósofos que também mantinham uma orientação religiosa. Também evidente era o surgimento do pensamento reducionista materialista/monista, que explicava o organismo humano em termos puramente mecânicos. Por exemplo, os monistas ingleses, impressionados pela física de Newton, sustentavam que os transtornos nervosos surgiam de uma “falta de força e elasticidade suficientes nos sólidos e nos nervos”. (STONE, 1999: 62). Modernismos: século XIX e loucura, medicina e padrões sociais Embora não seja o escopo do presente trabalho discutir a modernidade e os extensíssimos debates que já se produziram a seu respeito, é essencial que se fale, ainda que brevemente, sobre o desenvolvimento da idéia de modernidade e que processos estão alinhados com a sua ocorrência. O paradigma racionalista que orientou o processo de urbanização e de modernização na onda progressista engendrada entre os séculos XIX e XX também afetou, evidentemente, a psiquiatria de então, em franca consolidação. A idéia aqui é de perceber de que maneira o período, no qual se viveram diversas tensões sociais, desenvolveu uma idéia bastante específica sobre loucura. Traçar uma cronologia clássica da modernidade não é tarefa fácil. Talvez as características mais atuais do fenômeno possam ser lidas nos termos de Zygmunt Bauman, quando debate sobre a fluidez das relações, como uma modernidade que é líquida. Deste ponto de vista necessariamente seria preciso debater a emergência da individualidade como valor, dos novos significados conferidos ao estatuto do 72 cidadão, ao tempo, ao espaço, entre tantos outros aspectos. (Conferir Bauman, 2001). Esta idéia corrobora a construção de Marshall Berman, quando lembra, evocando Karl Marx, que “ser moderno é fazer parte de um universo no qual, (...) ‘tudo que é sólido desmancha no ar’” (BERMAN, 2007: 24). Do ponto de vista histórico, porém, a idéia não nasce muito longe do contexto de aceleração do modelo capitalista de produção. Partindo dos debates sobre capitalismo e urbanização, produzidos por Maria Encarnação Espósito Beltrão, é possível pensar na modernidade não somente como produto da complexificação das relações nas sociedades contemporâneas, mas também da urbanização das sociedades medievais, que é marcada pelo desenvolvimento de rotas de comércio, abertura de portos, e pela exuberância de cidades em crescimento do final da Idade Média (s/d: 31). Na Europa – de onde saíram os principais nomes do alienismo e também os maiores críticos do sistema médico-pedagógico da psiquiatria – pensar a loucura em termos de exclusão já era ainda em meados do século XIX um produto concreto da avançada ciência médica européia. Conforme apontado por diversos autores (FOUCAULT, 1988; CUNHA, 1986; HARRIS, 1993) a medicalização da loucura, isto é, pensar o sujeito louco como sujeito passível de cuidado e cura, e a própria loucura um fenômeno no qual a sociedade precisaria intervir para garantir o bom funcionamento do organismo social, é evento ligado necessariamente com o processo de aburguesamento da sociedade ocidental. A necessidade de progresso, imposta no próprio desenrolar histórico, demandou da sociedade moderna que no seu processo de adesão ao sistema capitalista, também ela aderisse a estratégias que implicitamente garantissem o sucesso do projeto de sociedade burguesa. O sucesso dos Manicômios dependeu, dessa forma, de um projeto social que envolvia não somente a medicina, mas, conforme Cunha, a engenharia, a própria polícia e um conjunto diverso de instituições, que buscaram na reorganização das cidades, a higienização do espaço vivido e a literal erradicação das pestes urbanas, que entre outras incluía a própria loucura (1986: 23-24). A normalização dos sujeitos; a higienização do espaço urbano; assim como a disciplinarização dos espaços de sociabilidade são produtos da onda progressiva engendrada nos países em cuja história se inscreveu o lema de industrialização e urbanização. A questão do saneamento social dos centros urbanos, entendida como uma reação aos desviantes sociais na sociedade industrial foi essencial na determinação de ambientes de sociabilidade bem como de práticas que repercutissem positivamente neste processo. Durante o século XIX até meados do século XX a relação da sociedade com tais desviantes sociais foi de enquadramento social, via homogeneização dos mais diversos tipos desviantes: prostitutas; boêmios; homossexuais; imbecis; libertinos sob a denominação de loucos e a utilização e domínio das concepções médicas como meios de interpretar e solucionar a loucura. (VIEIRA, 2006/07). Dentro da ampla produção cientifica da época merecem citação, conforme Ruth Harris (1993), algumas concepções teóricas – não somente do campo da Medicina, mas também das Ciências Jurídicas – que balizaram as discussões sobre a loucura, tais como a tendência utilitarista na Filosofia Penal; as teorias médicas da Degeneração e do Automatismo Neurofisiológico; e mais adiante o Tratamento Moral de Pinel. No que se refere mais especificamente à medicina, sabe-se que no período considerado ela foi fortemente influenciada por uma tendência, lembrada pelo filósofo francês Michel Foucault na sua História da Sexualidade (1988), de voltar-se para o cotidiano e a vida particular dos indivíduos para procurar sinais da degeneração (1988: 32-33). Referindo-se a Medicina do final do século XIX, diz ainda o célebre filósofo: (...) arvorava-se em instância soberana dos imperativos da higiene, somando os velhos medos do mal venéreo aos novos temas da assepsia, os grandes mitos evolucionários às modernas instituições da saúde pública, pretendia assegurar o vigor físico e a pureza moral do corpo social, prometia eliminar os portadores de taras, os degenerados e as populações abastardadas. Em nome de uma urgência biológica e histórica, justificava os racismos oficiais, então iminentes. E os fundamentava como “verdade” (FOUCAULT, 1988: 54). Para os pensadores da teoria do automatismo neurofisiológico interessavam, sobretudo os 73 indícios físicos da insanidade. Os estudos sobre o eixo cérebro-espinhal e as demências que eventualmente decorressem de seu mau funcionamento foram centrais nas discussões. Interessa frisar que esta atenção especial para a constituição fisiológica da loucura deu origem a diversas outras pesquisas que se relacionavam com o caráter automático das sensações e emoções humanos – entendidas naturalmente na relação causal bom desenvolvimento cerebral – bom desenvolvimento moral (HARRIS, 1993: 47). Na teoria da Degeneração, cujo expoente foi Auguste Morel, que em 1875 publicou seu Traité des dégénérescences, evidenciava-se, sobretudo o Evolucionismo – natural para as comunidades acadêmicas do fim do século XIX – nos corolários médicos. Para tais alienistas e mais ainda em Morel, a combinação hereditariedade e ambiente favoreciam o aparecimento de insanidades. No desenrolar da história da medicina psiquiátrica a perspectiva da doença como fruto do ambiente social foi essencial para o desenvolvimento de um Alienismo carregado de preocupações com a moralidade (HARRIS, 1993: 58 59). Com tais perspectivas para a sociedade – onde a cada dia aumentavam os sinais iminentes de um enlouquecimento geral – se evidenciou, por fim, um grau altíssimo do pessimismo da psiquiatria quanto a própria cultura ocidental. Comentando o assunto, diz Ruth Harris: Os médicos viam perigos por toda parte, no colapso dos calores morais dentro da burguesia assim como na resistência à autoridade entre as camadas inferiores, e recomendavam às vezes intervenções radicais para evitar maior desestabilização. (...) no fin de siècle eles insistiam cada vez mais nos procedimentos curativos que tendiam a ameaçar a visão liberal a que há muito tempo se haviam associado, justificando suas campanhas em nome da sobrevivência nacional. Neste contexto, a medicina servia-se dos mais diversos desviantes sociais para julgar a existência e/ou a propensão à loucura – surgindo daí a grande preocupação em higienizar os espaços de sociabilidade citada anteriormente. Evitar, dessa forma, que um individuo sofresse desnecessariamente as penas da Justiça foi, apesar das práticas da psiquiatria na idade moderna, preocupação dos Alienistas – que nesta proposta impuseram sua posição na sociedade causando não somente assombro com o ‘novo’ tratamento, mas desconforto entre os juristas e advogados – que evidentemente não julgavam ser coisa para médicos lidar com a Justiça. (HARRIS, 1993: 15-16). Naquilo que diz respeito aos juristas e advogados, a possibilidade de tratamento dos assassinos, estupradores e tantos outros tipos de criminosos a partir de uma perspectiva que não considerasse o castigo como penalidade pelos erros cometidos, filosofia esta diretamente reconhecida a partir da Filosofia Penal Utilitarista43, foi entendida como uma ingerência inexata da ciência médica nos ambientes exclusivos da Justiça, que desde os primórdios lidou pessoalmente com o castigo dado aos desviantes sociais. (HARRIS, 1993: 14-15). Enquanto médicos e juristas digladiavam-se pela melhor forma de cuidar dos insanos, evidencia-se na sociedade um novo saber, que prometia amplas medidas de intervenção e desafiava as garantias da Lei Penal: a Política Criminal. Inicialmente um recurso aos julgamentos criminais, la médecine légale des aliénés rapidamente ganhou os tribunais e as universidades. Julgar um assassino demandava necessariamente que se consultasse um alienista, pois só ele poderia encontrar os sinais de loucura que eventualmente o tivessem levado a cometer o crime. Julgar um assassino sem recorrer ao alienista era atestar a possibilidade de se cometer uma injustiça (HARRIS, 1993: 18). É assim que, no complexo sistema que envolve os desviantes sociais se vai estabelecer o papel do operador do saber psiquiátrico; o sujeito que carregará por muito tempo – talvez até hoje – o poder de dar a palavra final sobre ser ou não louco: o Psiquiatra. Na relação Alienista X Alienado conforme fala Maria Clementina Cunha, os alienistas – guardiões da alma, carcereiros da “natureza humana” – são capazes de produzir discursos que se sobrepõem aos próprios discursos dos insanos enredando-os em seus diagnósticos. Para a autora a ciência referenda – sob o titulo de verdade – não somente os papéis sociais, mas as desigualdades raciais e sociais, os preconceitos, a moral-e-bons-costumes, o sexo normalizado, a lei e a ordem 43 Filosofia que acreditava duplamente na medida justa de sofrimento e num programa de reabilitação que seria propicio a reflexão moral dos delinqüentes. 74 (1986: 161). De acordo com Harris, “a presença pública cada vez maior de psiquiatras e médicos era sintomática da maneira como o conhecimento desses profissionais atuou de forma considerável, específica e caracterizadora na sociedade do fin de siècle” (1993: 20), No entanto, receio que possamos nos aprofundar no sujeito Alienista: as maneiras pelas quais atuavam; como eram reconhecidos na época; sondar algumas de suas práticas; entre outros, a fim de frisar sua importância na relação da sociedade com o Médico; e do médico com seus doentes metais. Para Ruth Harris, que analisa as relações entre Justiça e Psiquiatria, os conflitos entre juristas e médicos só tem fim quando, beneficiados pela ampla atmosfera anticlericalista na segunda metade do século XIX, a população vê nos médicos um apoio moral e cívico para a constituição e consolidação da República. Questões a tempo acalentadas pelos médicos, como a libertação da “superstição religiosa”; a necessidade de valorizar a cultura meritocrática; e mesmo a república baseada no sufrágio masculino universal fizeram com que os psiquiatras conquistassem o apoio da população (1993: 19). No complexo sistema Industrialização – Saneamento Social, o papel do médico legal dos loucos; médico dos nervos; e por fim, do alienista, deixa de ser estritamente judicial e se alia a uma visão ampla do médico como sujeito autorizado moral, política e cientificamente a falar sobre a loucura. Os médicos tornam-se assim, profetas do progresso, que para além da Ciência eram considerados incorporações das mais nobres filosofias, aspirações e ideais morais e sociais. (HARRIS, 1993: 19-20). Referencias Bibliográficas BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Editora Companhia das Letãs, 2007. CUNHA, Maria C. P. O Espelho do Mundo: Juquery, a História de um Asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. ENGEL, Magali. Psiquiatria e Feminilidade. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 322-361. FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Editora Perspectiva. São Paulo, 2010. FOUCAULT, Michel. 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Essa pesquisa visa, mais do que uma simples compilação numérica, mas o mapeamento e a construção de um catálogo que objetiva divulgar os trabalhos realizados em todo o país, visto que o Brasil apresenta dimensões continentais – que por sua vez guardam manifestações artístico-culturais demasiadamente distintas – e que, por isso mesmo, escondem riquezas e estilos de trabalho e fazeres ímpares. Reconhecendo a importância da riqueza e pluralidade de fazeres e saberes brasileiros, a Constituição de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã” instituiu, em seus artigos de 196 a 200, as diretrizes de um Sistema Único de Saúde, o SUS. Tal sistema, baseado nos sistemas nacionais de saúde da Inglaterra e do Canadá, visa à promoção da saúde a todos os brasileiros, através da máxima: “A saúde é direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988), reconhecendo que, exatamente pelas dimensões continentais de um país como o Brasil, dever-se-ia criar um sistema que garantisse o mínimo de cuidado a todos. Em 1990 foi sancionada a lei 8080 que cria o SUS e orienta o modo como esse será gerido e quais suas ocupações enquanto sistema único de saúde. O fato de já se ter a proposta de um sistema de saúde integrado presente na Constituição Nacional dá legitimidade ao SUS, pois o Brasil saía de um longo processo de ditadura e de uma calorosa Assembléia Nacional Constituinte, o que dá legitimidade a essa conquista. Junto com a lei 8080, surgiu a lei 8142, também de 1990, que criou os Conselhos de Saúde e as Conferências de Saúde nas hierarquias municipais, estaduais e nacional. No afã dos movimentos sociais e da luta pela democracia e igualdade de direitos, ainda em 1987, aconteceu a I Conferência Nacional de Saúde Mental que discutiu, entre outras assuntos, o processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira. Percebeu-se que, do mesmo modo que o Brasil saía de um longo processo de ditadura, os hospitais psiquiátricos mantinham suas estruturas rígidas e com tratamentos invasivos aos seus internos, o que não condizia com os pleitos de tratamentos mais humanizados. Em 1989, o então deputado federal Paulo Delgado, criou o Projeto de Lei 3657 (PL 3657/89) que visava à extinção gradativa dos hospitais psiquiátricos e a utilização de métodos de tratamento menos invasivos ao sujeito em sofrimento psíquico. Tal Projeto de lei demorou 12 anos para ser votado e sancionado sendo, apenas em 2001, transformado em lei: a lei 10.216, também conhecida como “Lei Paulo Delgado”. O PL 3657/89, “Dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua 44 As pesquisas foram desenvolvidas sob orientação do Prof. Dr. Walter Melo, coordenador do NEPIS (Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde) vinculado ao LAPIP (Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial) do DPSIC (Departamento de Psicologia) da UFSJ (Universidade Federal de São João Del Rei). O mapeamento da região Sudeste, realizado pela bolsista de Iniciação Científica Patrícia Fonseca de Oliveira, foi financiado pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais) de julho de 2009 a agosto de 2010. O mapeamento da região Sul foi realizado pelos bolsistas de Iniciação Científica Joely Andrade e Lisângelo Coimbra, financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) de agosto de 2009 a julho de 2010. De agosto de 2010 a julho de 2011 conclui-se o mapeamento das regiões Centro-Oeste e Norte, ambos realizados pela bolsista de Iniciação Científica Maria Alice Silveira, e da região Nordeste, realizado pelo bolsista de Iniciação Científica Filippe de Mello Lopes, financiado pelo CNPq. 76 substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória” (BRASIL, 1989); já a lei 10.216/01 diz que são direitos da pessoa portadora de transtorno mental: “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade” (BRASIL, 2001). Vale ressaltar que a possibilidade de reinserir o sujeito em sofrimento psíquico na família, trabalho e comunidade só se tornou possível através da criação dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, também chamados CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Nesse sentido, em 2002, após a III Conferência Nacional de Saúde Mental – ocorrida no final de 2001 –, foi editada a Portaria Ministerial 336 (PM 336), que definiu e estabeleceu as diretrizes de trabalho dos CAPS como serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, que atuariam e organizariam suas equipes para tratar e cuidar dos sujeitos em sofrimento psíquico (BRASIL, 2002). A criação dos CAPS corroborou o momento histórico de abertura política no país, pois que o primeiro CAPS do Brasil foi inaugurado em 1987 em São Paulo, com ênfase no conceito de cidadania. Com a criação do SUS, o campo da saúde – coletiva e mental – passou por um amplo processo de transformação, de ordem administrativa, econômica, jurídica, técnica e cultural. A APROXIMAÇÃO ENTRE SAÚDE COLETIVA E SAÚDE MENTAL Ao se editar a PM 336, um dos conceitos que tomaram corpo foi o da “lógica territorial”. Em consonância com as diretrizes nacionais da saúde pública, em 1994 criou-se a legislação sobre os PSFs (Programa de Saúde da Família), que tem por base dois conceitos: o de atenção primária e o de área de abrangência. Por atenção primária entende-se a atenção à população em suas necessidades básicas, ou seja, parte-se do pressuposto de que não é necessário que o sujeito esteja adoecido para ter atenção à sua saúde. Para se observar as necessidades básicas do sujeito é necessário que se esteja perto de seu ambiente de convívio, garantindo o planejamento de ações que possam surtir efeitos de melhora em sua vida, visto que, a partir da criação do SUS, o conceito de saúde é ampliado para um conjunto de fatores e de setores que interferem direta ou indiretamente na saúde, como: transporte, moradia, lazer, renda e acesso a bens e serviços. Desse modo, o conceito de área de abrangência surgiu como base para se entender os modos de adoecimento que os sujeitos apresentam. Vale ressaltar que para efetivar trabalho tão próximo ao cotidiano das pessoas, criou-se a figura do agente comunitário, que se tornou ator fundamental para que a área de abrangência se efetue eficazmente, na medida em que será o estreitamento dos laços entre médico, enfermeiro e agente comunitário o mote para que faça sentido atuar dentro de uma área de abrangência que dê conta de observar aquele sujeito que demanda atenção como um sujeito dentro de seu território. A figura do agente comunitário surgiu em 1991, no Ceará e, antes de ser reconhecido como profissão no Brasil, já estava presente na realidade dos serviços de saúde desse Estado. Isso se deu pelo fato de que era necessário um ator social que fizesse a interlocução entre os serviços de saúde e os sujeitos em seus territórios. É a partir desse trabalho desenvolvido no Ceará que se criaram os PSFs no Brasil, ou seja, foi a partir do trabalho dos agentes comunitários no Ceará que se pensou no que se chama, atualmente, de atenção primária, isto é, num conjunto de ações e serviços que tendem a observar o sujeito e os condicionantes de sua saúde em seu território. Será, então, através da vinculação entre as ações da atenção primária e dos agentes comunitários que a lógica de funcionamento dos CAPS se orientará pela lógica territorial, visto que, não bastará que o 77 sujeito freqüente o CAPS, será necessário que o CAPS acompanhe a vida do sujeito em sua multiplicidade de setores e relações. Segundo Milton Santos (1988), existe uma distinção entre os conceitos de lugar, espaço e território. Desse modo, o autor define como lugar as paredes, o endereço, a porta, enfim, aquilo que o localiza e que define sua existência física. De acordo com esse autor, o espaço é definido como o lugar em relação com as subjetividades que o ocupam. Nesse sentido, um lugar só se torna espaço pelo fato de que suas frestas, salas e chão foram ocupadas por subjetividades, que dão vida e ritmo àquele lugar. Já como território, foi definido como sendo o encontro do espaço com algo mais do que as subjetividades, com as questões, com aquilo que move o sujeito, com aquilo que o faz relacionar no mundo de forma ímpar e que, muitas vezes, não passa pelo dizível. Para esse autor (1988), o conceito de território é o somatório do lugar e do espaço e seus condicionantes visíveis e invisíveis, ou seja, a maneira como sujeito ocupa os lugares transformandoos em espaço se dá de maneira ímpar e é essa maneira ímpar que torna o território formado e formador de si. O sujeito atravessa e é atravessado pelo território numa dimensão topológica e topográfica. Para Delgado (1997) “o território não é (apenas) o bairro de domicílio do sujeito, mas o conjunto de referência sócio-culturais e econômicas que desenham a moldura de seu cotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserção no mundo”. MÉTODO Para a realização dessa pesquisa, delimitamos os serviços a serem contactados (CAPS e Centros de Convivência), fazendo, inicialmente, um levantamento e estudo bibliográfico sobre a relação da arte com o campo da saúde mental tanto no Brasil quanto no exterior. Um segundo momento da pesquisa se caracterizou pelo estabelecimento de contatos com as Secretarias Estaduais e Municipais de saúde da região nordeste para que pudéssemos saber quantos serviços de saúde mental existiam na região. Após o conhecimento de quantos serviços existem em cada município e estado, construiu-se uma tabela contendo: nome da instituição; nome do coordenador; quais atividades realizavam; uma breve descrição da atividade e o ano de criação da atividade para que os sujeitos de pesquisa pudessem preencher e, aqueles que forem selecionados para o catálogo, serão novamente contactados para que enviem uma descrição mais detalhada de seus trabalhos, para que possa ser montado o catálogo. RESULTADOS E DISCUSSÃO Dentre os inúmeros trabalhos mapeados na pesquisa, podemos citar dois como sendo exemplos da riqueza de diversidade que, ao mesmo tempo, revela o quanto se faz necessário refletir e repensar as práticas e conceitos que utilizados no campo da saúde mental. Um exemplo da relação entre arte e saúde mental, é um trabalho de teatro chamado “Projeto Em Cena Insanidade” que acontece em Salvador, Bahia. O Projeto que teve início no ano de 2010 realiza oficinas de teatro com os usuários dos serviços de saúde mental de Salvador, tendo feito apresentações nos teatros Castro Alves e Vila Velha nos meses de junho e agosto, respectivamente. Esse trabalho revela uma atuação exitosa ao relacionar a arte com o campo da saúde mental, demonstrando a potência desta relação. Nesse caso, o território do sujeito deixa de ser “casa-CAPS/CAPS-casa” e passa a ser “casa-CAPS-teatro”, possibilitando contato com as pessoas, reconhecimento social, sentimentos, aplausos, novos olhares, novas sensações... Um segundo exemplo é o do trabalho realizado no município de Amargosa – BA, iniciado em 2008, chamado de “Memórias em Jogo”. Esse trabalho baseia-se na construção de oficinas teatrais a partir das histórias de vida dos usuários dos serviços de saúde mental através de jogos, improvisação e samba 78 de roda. Esses exemplos demonstram a coerência no campo da saúde mental e a apropriação do conceito de território na PM 336, que pretende romper com a dinâmica dos CAPS que estão operando em atendimentos autocentrados, ou seja, ao invés da equipe sair do CAPS e ir até o território do sujeito, a equipe aguarda que o sujeito vá até o CAPS, esvaziando, então, toda a potência que a concepção do território produz. É sempre válido ressaltar que já é um ganho imenso o fato de o sujeito em sofrimento psíquico se deslocar, viver em família etc, porém, não podemos considerar isto suficiente e esquecermos o quão mais interessante e produtivo para o sujeito e para seu tratamento seria se, ao invés do CAPS ser o centro, o sujeito e toda a gama de vivências, sentimentos, possibilidades, anseios etc, fossem o centro. CONCLUSÕES A pesquisa obteve material significativo sobre a relação entre a arte e o campo da saúde mental e caminha para novos questionamentos a partir de indagações como: Por que o conceito de território não atingiu toda sua potência em nossos serviços de saúde mental? Existe algum antropólogo que trabalha em CAPS no Brasil? Se sim, esse fazer antropológico repete o cotidiano do CAPS ou avança na questão do território? Outra questão levantada na pesquisa foi baseada na teoria de MERHY (1997), que revela a existência de três tipos de tecnologias das quais podemos dispor para trabalhar: as tecnologias duras, leve-duras e leves. Como tecnologias duras entendem-se os aspectos rígidos que fazem parte da cultura como, os lugares – segundo Milton Santos (1988) – as paredes, os tijolos e as estruturas. Como tecnologias leve-duras entendem-se as técnicas para se apropriar e mediar as relações e os processos de aprendizagem. E como tecnologias leves entendem-se os sentimentos, as emoções etc. Aquilo que diz da subjetividade e do que não é palpável. De acordo com essas definições, podemos observar o quanto a utilização das tecnologias leve-duras pode ser transformada, isto é, a psiquiatria e alguns ramos da própria psicologia tem transformado as tecnologias leve-duras em tecnologias duras. Isso se dá quando se observa a utilização de instrumentos, como os Compêndios de Psiquiatria, sendo utilizados para afastar os sujeitos em sofrimento psíquico, ou seja, as taxionomias diagnósticas dos DSMs se transformaram em modos da psiquiatria tornar estranho e distante o que era para se tornar próximo ou o que era para se transformar me cuidado. Nesse sentido, vemos como o conceito de território perde espaço também aqui, pois que ao se transformar as tecnologias leve-duras em tecnologias duras, o território deixa de ser em toda sua potencialidade para se transformar em ações programáticas que são, em verdade, ações pontuais nos lugares e nos espaços, mas não no território. Assim, pudemos perceber que a transformação das tecnologias leve-duras em tecnologias duras também tem sido um entrave para a realização do trabalho esperado no campo da saúde mental com relação à questão do território. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL (1988). Congresso Nacional. Constituição Federal. Brasília 79 _______ (2001). Congresso Nacional. Lei da Saúde Mental, n° 10216. Brasília _______ (1990). Congresso Nacional. Lei do Sistema Único de Saúde, n° 8080. Brasília. _______ (1989). Deputado Federal Paulo Delgado. Projeto de Lei n° 3657. Brasília. MERHY, E. et al. (1997). Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. & Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação e o dia a dia de um serviço interrogando e gerindo trabalho em saúde. Merhy e Onocko (org) Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: HUCITEC, 71-150. SANTOS, M.(org.). (1988) Novos Rumos da Geografia Brasileira. São Paulo: HUCITEC. 80 ELEMENTOS ARQUEOLÓGICOS DA PSICANÁLISE: ESTUDO DE ESCRITOS GREGOS ESCLARECEDORES DAS TÉCNICAS CLÍNICAS ANTIGAS Gustavo Héctor Brun Docente do Curso de Psicologia da UNIJUI [email protected] key-word: maiêutica, epistemologia, psicanálise. O estudo de textos antigos nos permitirá avaliar as concepções de psiquismo que existiram na Grécia Antiga e os procedimentos técnicos que as provocaram. São muitos os autores que se ocuparam das fontes clássicas, argumentando sobre interpretações tradicionais, repetiram as ilusões que alimentaram temas filosóficos e teológicos ao longo dos séculos. Uma profunda revisão histórica é necessária, porque por muito tempo tem-se reproduzido uma interpretação falsa do que os gregos faziam e compreendiam com relação às formações psíquicas. Por enquanto podemos afirmar que o estudo do equívoco acompanhou a hegemonia que foi concedida a textos como “Fedro” e o “Fedão” de Platão, porque estes escritos metafísicos foram mantidos como os mais relevantes para reconhecer as possíveis compreensões da mente antiga, mas essa supremacia apagou outros documentos de maior importância para nossa psicologia contemporânea. Por muito tempo tendências filosóficas medievais como a Patrística e posteriormente a Escolástica combinaram os aportes desses filósofos ao cristianismo, levantando uma muralha teológica em torno da alma que dificultou a observação em perspectiva analítica. A partir do século XVI a filosofia tentou resgatar o psíquico do domínio da fé, mas o empreendimento foi limitado pela supremacia do logos, a razão que a fundamenta como ciência. De modo diferente, os modernos, a partir do estudo de Freud sobre os atos falhos, a vida sexual humana, as representações psíquicas e os afetos, abriram espaço para uma técnica de análise da mente humana. Com este novo instrumento, nas primeiras décadas do século passado a psicanálise permitiu reconsiderar o papel da tragédia grega e dos mitos, também poderá ser assim quando seja reconsiderado o conhecimento do psíquico na antiguidade. Com propostas distantes das tradições orfico-pitagóricas dominantes no século V, os textos “Teteto” de Platão e “As nuvens” de Aristófanes servem como indicadores, uma vez que estes são duas versões da análise socrática do psíquico, o primeiro apresentando explicações do funcionamento da mente e o segundo descobrindo e se burlando da prática maiêutica. A maiêutica foi exposta no diálogo “Teteto, sobre o conhecimento experimentado”. No capítulo sétimo desse livro, Platão descreveu as vicissitudes dessa técnica (tejné), e depois se ocupou com o problema do conhecimento e passou descrever a psique que corresponde à técnica socrática. Inicialmente considera as percepções e os diferentes registros do psíquico onde as representações estão ordenadas por relações de temporalidade e de similitude, a distinção entre o que se percebe, o que se lembra, e o que se diz, permite-lhe discriminar as representações das palavras (onoma) que produzem o equívoco. Errar é difícil de explicar, pois como é possível saber algo e ao mesmo tempo não saber aquilo que se diz? (Tee 187 d)45. A intenção da alma de trocar uma coisa por outra, não pela oposição das naturezas, mas pela natureza da oposição (Tee 189 d) é o enigma por resolver. Como é possível dizer boi quando o que temos em mente é cavalo, ou por que expressamos dois quando sabemos que é três? O maiêutico revela que existe um tipo involuntário de substituição, o equívoco, que deve ser questionado. Sócrates e Teteto ensaiaram três modelos, o primeiro figurando a mente como uma placa de cera como as que eram utilizadas cotidianamente para escrever ou fazer contas, o segundo imaginando a alma como uma gaiola preenchida de pássaros que se comportam como representações psíquicas, e por último, o psíquico como escritura, os quais lhes permitem realizar conjeturas para explicar o fenômeno do equívoco que emerge do que não é consciente. A deusa Mnemosine deu para o homem a capacidade de inscrever, como numa placa de cera, 45As referencias a parágrafos antigos seguem o modelo canônico: Tee para o texto Teteto e LN para As Nuvens, os números e as letras minúsculas indicam a localização dos parágrafos. 81 aquilo que ouve, o que vê, incluso o que pensa. O imprime, mantendo assim a possibilidade de perceber e de rememorar, mas quando a cera amolece as impressões se apagam e atingimos o esquecimento. Esta comparação que propõe Sócrates introduz a ideia de um traço (tupos) psíquico, ainda no problema do equívoco, perguntou-se Sócrates como é possível tomar uma coisa por outra. Dizer aquilo, do que se tem um traço psíquico, mas confundindo, dizer outra coisa sobre a qual também se tem um traço psíquico, mas que não se percebe. É impossível pensar num saber que não se sabe, ainda quando tem-se impressos os traços psíquicos, responde o Teteto. Ambos dialogam na borda do sentido, porque uma impressão que se tem gravada é substituída, efeito de alguma intenção desconhecida pela mente, por outra impressão que também está gravada na memória. Outra explicação, mais dinâmica, expôs Sócrates quando comparou o psiquismo a uma gaiola com pássaros. A finalidade desta alegoria é esclarecer as causas do equívoco. Um caçador tem na gaiola muitos pássaros, pardais, pombas, tordos e muitos outros. Ele se aproxima e as aves se agitam, alguns deles voam sozinhos e outros em bandos. No começo, quando era ainda criança tinha poucas aves, mas com o tempo aconteceu como acontece com as representações da mente, foram aumentando em número. Estes pássaros, como os conhecimentos, podem-se caçar, guardar e às vezes fogem. A intenção do caçador é pegar um pardal, chega na gaiola e pega uma pomba, se confunde (amartón) e erra (Tee. 199 d). Faremos uma tradução deste parágrafo que nos permite aproximar a compreensão do psiquismo que a maiêutica determinava: “... Primeiro: que tenha a representação (episteme) de alguma coisa, mas ignore isto mesmo, não pela ignorância, mas pela própria representação. A continuação, opinar que outra, pelo contrário é esta e esta, a outra. Como deixaria de ser uma falta de sentido (alogos) que psique ignore tudo (tem psichen meden) e não conheça nada das representações que aparecem e inabitam nela mesma? Porque a partir deste pensamento (logou) nada impede que o equívoco (agnoia) presente permita nos conhecer alguma coisa, a cegueira ver, e as representações psíquicas permitam ignorar algumas coisas...” (Tee. 199 d) Para acompanhar a análise do psíquico Sócrates chega a formular a existência de um espaço que depende de um continente cujo conteúdo são elementos móveis que não habitam nele, mas que são capazes de aparecer de modo consciente ou não. A partir deste parágrafo Sócrates está ciente de que não conseguirá permanecer no logos, diz para Teeteto que se pretendem avançar deverão confrontar sonhos contra sonhos. Fora da razão, o jovem propõe considerar essas representações mentais como anepistemosumas, os não-conscientes que voam sós ou entrelaçados na gaiola do espírito. O problema é bem recebido por Sócrates que se lembrou de um mitema antigo. Muito tempo antes, nos dias em que os sábios falavam com as pedras e as árvores, afirmavam que os primeiros elementos (stoijeiron) de que estamos compostos nós e os outros, carecem de explicação. Estes elementos são as “letras originais” (Tee 201 e). Além delas, estão as palavras cujas explicações, como texturas, se realizam com laços de uma a outra. Mas este mito resultou-lhes insuficiente: Por que seriam elementos inconscientes estas letras inscritas no psiquismo, mas as relações entre estas, as sílabas e as palavras podem sim, ser explicadas? Pela natureza da oposição, que o erro põe em evidencia, fica explícita a formulação da letra inconsciente. Este paradigma do psiquismo não é fonológico porque tem a escritura com fundamento. Muito próximo de Derrida (1967), a letra inexplicável encontra seu fundamento a partir da diferença. Na diafora (Tee 208 c) o que é distintivo é o que permite que alguma coisa possa ser explicada e se tornar consciente. Mas Sócrates se confronta com a condição incompleta da linguagem e cada vez que encontra uma explicação que possa distinguir este problema dos outros, deverá apresentar um argumento que o distinga dos anteriores, e assim, como um “remolino aristofánico” (Tee 209 e), ficará em torno do mesmo vazio. Como o sintoma para os modernos, o equívoco foi a chave que encontrou Sócrates para abrir a porta que se fecha quando a atenção lhe é direcionada. Para analisar o equívoco considerou as representações inconscientes e uma epistemologia que deve somar o saber que não se sabe. 82 Passaremos a considerar o nosso segundo tesouro arqueológico: o comediante Aristófanes, ele quem conheceu bem Sócrates e esforçou-se em “As Nuvens” para figurar a tarefa maiêutica numa perspectiva humorística. Lacan conhecia a arte de Sócrates, em Lituraterre, e em doze de maio de 1971 falou do valor dessa comédia para a psicanálise. O analista francês destacou o semblante por excelência que se desprendendo das nuvens precipitam a barra do sujeito. O que são as nuvens? São projeções, repetições, reproduções, figuras que tomam a forma daquele que as invoque. Elas compõem o coro da comedia e aparecem com forma de veado se fala um covarde como Cleónimo, com forma de lobo se fala um ladrão como Simão, com forma de mulheres narigudas quando falam Sócrates e Estripsíades. Dissimulado, Sócrates justifica essa forma feminina pela presença de Clístenes, um conhecido homossexual de Atenas, mas eles são dois homens que abordaram diferentes temas e alguns de natureza sexual, mais precisamente, o tema da escolha homossexual. Além das nuvens que espelham o imaginário, o real vazio do Caos e o simbólico da Língua, são as outras deidades que Sócrates invoca para o exercício da sua arte. Estripsíades chega ao locutório de Sócrates: “...Psichon sofon tout esti ffrontisterion...” (LN 94) que é o pensatório das psiques sabias. O camponês busca atenção porque sofre de dívidas, a doença de cavalos que lhe devoram a alma, pois seu filho Fidípides gasta todo seu dinheiro em cavalos e carros. O maiêutico não demora em explicar os procedimentos da sua técnica. Estripsíades deve se relacionar com as nuvens, porque elas o instruem a partir de si mesmo “... Apo seautou go se didasxo...” (LN 385). Distante do conhece-te a ti mesmo desgastado pelo pensamento filosófico, a técnica socrática foi baseada no vínculo que a língua produz. Para falar com as nuvens deve- se deitar sobre o divã “...ton ieron skimpoda...” sagrado (LN 250). Deitado sobre o divã, não enxerga o Sócrates que está flutuando atrás dele e informando o modo como deve falar. Ocupe-se agora e discorra por todos os modos, concentrando o pensamento em direção a ti mesmo, diz Sócrates. Rápido também, quando caia num atoleiro, encadeie um outro pensamento da sua memória. Quando chegue a uma aporia deve desconsiderar e imediatamente compensar com uma regressão de seu pensamento (LN 703 e 743). Quem escuta analiticamente ou tem contato com os textos de Freud pode reconhecer que este modo de associar ideias não é muito diferente do proposto pela clínica moderna. A resposta de Estripsíades ao procedimento maiêutico é de uma forte dor psíquica e sexual. As coisas que saem do divã fragmentam-lhe o peito, devoram a alma, castram e sodomizam. Entra então em desespero porque desaparece seu corpo, desaparece seu ego e progressivamente vai desaparecendo ele também (LN 710 a 720). Todo esse sacrifício não soluciona os problemas de Estripsíades que vai buscar o seu filho para continuar com os procedimentos. A comédia continua sobre uma sequência de mal-entendidos, de exibicionismo erótico e conflitos morais, tudo entorno de um Sócrates singular, diferente do que a tradição filosófica ensinou. A perspectiva trágica do Teteto de Platão, assim como a comedia de Aristófanes, oferecem ainda características do labor socrático como a falta de finalidade, ou melhor dizer, o vazio no fim de todo diálogo, seu afastamento da ideia de uma cura ou uma educação. A suspensão de preconceitos, a necessidade de não determinar o rumo das cadeias associativas são elementos que indicam um modo de escutar que ficou velado pelas interpretações que por séculos foram feitas distantes da análise do psíquico. No percurso desta pesquisa estudamos textos que nos apresentam um Sócrates diferente do que as tradições pedagógicas ou filosóficas legaram, hoje, como consequência da escuta psicanalítica temos possibilidades de reconsiderar a análise psíquica que Sócrates dilatava e resolvia. A eironeia socrática, a figura retórica que o caracterizou, é a simulação afável, quando o que se diz é diferente do que se entende; assim Sócrates interpretou com encanto e humildade, intervindo com seu engenho sobre a seriedade de seus interlocutores. Esta historia hoje pode ser contada para a formação dos que pretendem escutar, porque somente renunciando às pretensões de saber, a fala prossegue pelas cadeias associativas singulares de cada sujeito. A suspensão do ego no silêncio socrático é o paradigma antigo que garante a atemporalidade da reserva freudiana. Como uma constelação mítica, mergulhando na sincronia da linguagem, o erotismo, os equívocos, a angústia, as representações inconscientes e os rituais são revividos a cada dia 83 em novas situações psicanalíticas. Bibliografia: Aristófanes. Les Nuées. Colection Grecque. Ed. Librairie Hatier. Paris, 1946. _________ . As Nuvens. Trad. de Gilda Strarzynski. Ed. Nova Cultural. São Paulo, 1987. _________ . Les Nuées. Trad. 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Paris, 1947. 84 PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA NOS PERCURSOS DA REFORMA MINEIRA Hernani Luís Chevreux Oliveira Coelho Dias – Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] Marcela Alves de Abreu – Universidade Federal de Minas Gerais Diego Patrick da Silva – Universidade Federal de Minas Gerais Maria Stella Brandão Goulart – Universidade Federal de Minas Gerais (coordenador) O trabalho aqui presente busca discutir a história da reforma psiquiátrica mineira retomando o veio da história da instituição psicanalítica. Esta discussão integra a pesquisa intitulada Cezar Rodrigues Campos e a história da reforma psiquiátrica mineira, onde procura-se articular a metodologia de Micro-história (Mh) e o marco teórico da Análise Institucional (AI). Este trabalho tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais e integra as iniciativas do grupo de pesquisadores do Laboratório de Direitos Humanos e Transdisciplinaridade (LADHT) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A utilização de pressupostos da Mh (como a utilização da escala de análise reduzida) conectado com conceitos da AI (como o de analisador; instituído-instituinte) tem o intuito de desvelar o caráter cultural e político da Psiquiatria mineira. Ao traçar a história da instituição psicanalítica, a definição de seus exercícios, as alternativas criadas para suas práticas, os seus caminhos e descaminhos, abre-se a oportunidade para repensar as práticas assistenciais psiquiátricas mineiras e suas características singulares. A utilização de um fragmento do que viria ser apenas um tópico da história da psiquiatria serve como meio para que percebamos uma questão social mais ampla, um problema histórico e cultural significativo. Assim, pretende-se trazer à luz o que de outra forma passaria despercebido sob a égide de uma história oficial. Inicialmente será apresentado uma breve retomada da discussão metodológica e, em seguida, um histórico do percurso da Psicanálise pertinente ao contexto da Reforma Psiquiátrica Mineira. Metodologia: Micro-história e a Análise Institucional A junção dos marcos da Micro-história e a Análise Institucional é facilitadora da análise histórica que apresentamos. Propicia o desvelamento de práticas dominantes, hegemônicas e naturalizadoras que podem se reproduzir cotidianamente. Elas permitem apoiar e deflagrar nas comunidades, nos coletivos e nos conjuntos de pessoas, processos de auto-análise, na medida em que se faz importante conhecer o contexto institucional no qual os textos/discursos são emitidos. Neste sentido, repensar [re]produções de práticas “psi” no âmbito do contexto psiquiátrico e de saúde mental de forma crítica faz-se necessário. O surgimento da Micro-história ocorreu na Itália, em 1980, através da coleção intitulada Microhistorie. Tal método foi desenvolvido, em grande parte, como resultado de um mal-estar diante da dependência de modelos historiográficos tradicionais importados, sobretudo dos franceses e anglosaxões. Os historiadores Carlo Ginzburg e Giovani Levi iniciavam então seus estudos sobre o inovador método de se abordar a história. (Levi, 2000; Vainfas, 2002). A Mh tem o objetivo de realizar sua análise histórica através de uma delimitação temática extremamente específica (especialmente em termos de espacialidade e de temporalidade), além de relacionar à narrativa histórica as fontes de origem. Contempla temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas — geográfica ou sociologicamente —, às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente figuras anônimas, que passariam despercebidas na multidão (Ginzburg, 1998/2007). Já a AI é anterior: surgiu a partir dos anos 40 e 50, na França. Nesta época, um conjunto de disciplinas e movimentos propiciaram diversas experiências através da análise institucional e da socioanálise, onde se destacam as obras de René Lourau e Georges Lapassade; além da esquizoanálise da obra de Félix Guattari e Gilles Deleuze (Rodrigues, 2005). Ademais, a partir dos anos 60 e 70 que 85 se consolidará o chamado “movimento institucionalista” com maior impacto, especialmente, na Itália, na Argentina e no Brasil. No final dos anos 1960, “o Setor” (Setor de Psicologia Social) da UFMG foi responsável pela introdução da Análise Institucional no Brasil. Este núcleo, “o Setor” congregou a AI francesa como um de seus principais referenciais. (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 3). Trouxe para o cenário brasileiro importantes intelectuais, como George Lapassade e Michel Foucault que reforçaram as críticas tecidas contra as instituições autoritárias (a psiquiatria) e à ditadura brasileira (Cunha et al., 2006). No eixo do Rio de Janeiro é a partir da fundação em 1978 do Instituto Brasileiro de Psicanálise, grupos e instituições (IBRAPSI), e do Departamento de Análise Institucional criado em 1982 que se consolidaram as práticas institucionalistas, além de estimular, no Brasil, “a formação de trabalhadores em saúde mental dentro de uma visão marxista e não a de formar psicanalistas ‘puros’" (Coimbra, 1995, p.164). A Reforma Psiquiátrica mineira Em 1979, a partir da abertura dos hospitais psiquiátricos à imprensa e com a denúncia das condições de assistência psiquiátrica público e privada de Minas Gerais, estava aberto o processo da reforma psiquiátrica mineira. As propostas da reforma se visibilizaram no III Congresso Mineiro de Psiquiatria (1979). Este congresso foi presidido por Cezar Rodrigues Campos, que articulou a vinda do italiano Franco Basaglia e do francês Robert Castel – figuras de destaque na luta antimanicomial (Barreto, 1999, p.62) e que haviam participado do primeiro congresso do IBRAPSI. A abertura dos hospitais à imprensa escrita, concedida pelo Secretário de Saúde Eduardo Levindo Coelho, possibilitou à opinião pública o confronto com a terrível situação dos hospitais psiquiátricos da época. O jornalista Hiram Firmino retratou, em diversas reportagens intituladas “Nos Porões da Loucura” no Jornal Estado de Minas, o cotidiano do funcionamento de tais instituições. Em Barbacena, o cineasta Elvécio Ratton realizou o documentário “Em nome da razão”, gravado no Hospital Psiquiátrico de Barbacena (Goulart, 2010). Os organizadores do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, provindos, em sua maioria, da diáspora da experiência em comunidade terapêutica e da residência de psiquiatria do Hospital Galba Veloso (HGV), que depois fora transferida para o Instituto Raul Soares elaboraram um plano de reestruturação da assistência psiquiátrica em Minas Gerais. Paralelamente, a crise da Previdência Social apontou para as prioridades de remanejamento da assistência na direção extra-hospitalar; na qualificação da assistência psiquiátrica (a melhoria na qualidade dos serviços); e do adequado controle e avaliação da assistência prestada por serviços previdenciários e de terceiros. (INAMPS, 1983). Davase então, andamento as denúncias ao modelo manicomial – onde diversos fatores sociais é que indicavam a patologia de algum indivíduo. (Jorge, 1997). Os hospitais públicos tenderam a se humanizar minimamente e constituiu-se uma rede de equipes de saúde mental, que foram uma primeira iniciativa de municipalização da assistência psiquiátrica, ancorada em recursos previdenciários. Contudo, somente nos anos 90, as mudanças mais significativas ocorreriam. Em 1995, através da Lei Estadual nº11.802, foi decretada a abolição progressiva dos manicômios. O modelo substitutivo da Saúde Mental, proposto pela Reforma Psiquiátrica constituíu-se de: ambulatórios, hospitais-dia, serviços de urgência, unidades psiquiátricas em hospitais gerais, centros de convivência e referência em saúde mental e residências terapêuticas (Barreto, 1999, p.200). O intuito da Reforma Psiquiátrica foi o de trazer uma modificação na forma de lidar com a doença mental. As propostas são a de repensar alguns pontos como: internações desnecessárias; práticas de atos iatrogênicos; baixa eficácia do atendimento ambulatorial; baixo grau de integração entre a disciplina de Psiquiatria e as demais áreas clínicas, no âmbito da universidade; internação para acompanhamento terapêutico. Assim, rompia-se com a hegemonia médica no tratamento ao portador de saúde mental. A Reforma Psiquiátrica pretende rechaçar o aparato manicomial, a fim de substituir os Hospitais psiquiátricos por serviços substitutivos - territórios de atenção psicossocial. (Jorge, 1997). 86 Basaglia (1985, p.105) ao falar da marca dos hospitais psiquiátricos constata que “não é um ou outro tipo de abordagem, mas, antes, o sistema sócio-econômico é que determina as modalidades adotadas em níveis diversos”. Nesse sentido o Hospital Psiquiátrico já estava em declínio e urgia novas medidas. As Instituições psicanalíticas na Reforma Mineira A psicanálise pode ser conceituada: como teoria; como método de investigação; como técnica; e a psicanálise como instituição. Este último ponto remete às instituições encarregadas de formar, reunir os psicanalistas, e definir o seu próprio exercício profissional. Porém, ao promoverem a transmissão da psicanálise, a evolução de sua teoria e a definição de seu exercício, estas estiveram em constante tensionamento com a realidade brasileira e consigo próprias. Tomaremos como norte, essas elucidações para entendermos o percurso da psicanálise mineira. A história do movimento psicanalítico, desde Freud, dava inicio a uma nova forma de lidar com a ‘clínica psiquiátrica’. Esta forma consiste em não mais derivar o mal estar das pessoas da causalidade anátomo-patológica cerebral, mas de buscar sua verdade no campo da fala e da linguagem. As influências de Lacan, no que tange a escuta clínica do sujeito, possibilitou sair de um formato psiquiátrico organicista, rígido. No Brasil, a psicanálise de orientação lacaniana esteve e está presente em nossos serviços públicos de saúde mental. Isso decorre da “clínica da psicose” e de uma série de fatores, como por exemplo, a aproximação do movimento lacaniano mineiro com a reforma psiquiátrica (Barreto, 1999, p. 159). No Brasil, inicialmente este campo de conhecimento esteve ligado às sociedades oficiais internacionais, que davam permissão e reconhecimento a quaisquer novos aspirantes à prática psicanalítica. Contudo, uma estrutura hierarquizada não permitia vislumbrar aproximações de sua aplicabilidade à realidade brasileira. Um exemplo é quanto ao processo de formação de um psicanalista – custoso e demorado - e o outro é quanto ao atendimento psicanalítico no Brasil, que se restringe à [pequena] parcela da população privilegiada. Assim, tanto o desejo de ser psicanalista como o de ser analisado deveria ser encarado como investimento econômico-financeiro e de dispêndio do tempo necessário (Coimbra, 1995). Em Minas Gerais, o Círculo Psicanalítico Mineiro (CPMG) – primeira instituição psicanalítica mineira, datada de 1963 – recebeu duras críticas no final dos anos 70 e 80. O círculo mineiro foi fundado pelo Prof. Malomar Lund Edelweis com o nome de Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda de Minas Gerais e era filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CPMG, 2011). A história do círculo psicanalítico, inicialmente, tinha propostas instigantes na figura de Igor Caruso, como a de fazer dialogar a psicanálise com a fenomenologia existencialista e o marxismo. Contudo, os círculos se instituíram no modelo das “sociedades oficiais” ligadas à International Psychoanalitical Association (IPA) e são os primeiros estabelecimentos de formação psicanalítica fundados por Freud e seus discípulos desde 1910. No Brasil, as principais sociedades psicanalíticas buscaram filiar-se em tal Associação. Assim, em 1951, no Congresso Internacional de Amsterdam, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo foi reconhecida pela IPA. Em 1955, no Congresso Internacional de Genebra, foi a vez da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro ser reconhecida. Em 1959 no Congresso Internacional de Paris a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro é reconhecida pela IPA. Em 1963, no Congresso de Estocolmo, a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre foi reconhecida como filial da IPA. Em 1967, foi criada a Associação Brasileira de Psicanálise (ABP) que reuniria as sociedades “oficiais” da época (a de São Paulo, Porto Alegre as duas do Rio de Janeiro). (Coimbra, 1995, p.64; Sagawa, s.d., p. 7). Contudo, a estruturação dessas Sociedades ditas “oficiais” se mostrava institucionalmente elitizada, hierarquizada, ortodoxa, autoritária e burocratizada. Assim, “apenas estudava-se e aplicava a teoria e a técnica dos ‘mestres’ estrangeiros” (Coimbra, 1995, p.70) como Freud, Klein e Bion. Outras instituições que funcionavam em paralelo nos anos 60, que vieram para marcar posição diferente da “oficial” psicanálise e instrumentalizar outra formação foram: o Instituto de Medicina 87 Psicológica (IMP) – fundado em 1953 pela psiquiatra Iracy Doyle, depois se tornou o SPID (Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, em 1974); e o Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) fundado em 1956 em Pelotas, no Rio Grande do Sul, pelo Prof. Malomar Lund Edelweis. Porém, essas instituições logo se assemelharam às associações “oficiais” da IPA. A “verdadeira psicanálise” era a legitimada, quer pela IPA ou pelos Círculos. Assim o fechamento dessas associações entre os seus membros e grupos, se mostrando como “marionetes” de uma prática sem circunstâncias, sem sintonia com a realidade brasileira, revelava o seu caráter “instituído”. Para Baremblitt (1998) o instituído é visto como algo cristalizado, como estático sem possibilidades de mudanças. As instituições psicanalíticas assim se reduziam. Apenas a partir dos anos 70 e 80 que novos empenhos se deram em prol de se desgarrarem de tal estagnação. (Coimbra, 1995). Ocorreram, então, diversos grupos que se prestaram à flexibilização do processo de formação analítica e a uma maior sintonia com a maioria da população brasileira. Um desses grupos foi a SEPLA (Sociedade de Estudos Latino-americanos), criado em 1978. Este grupo pretendia ter uma gestão democrática da sociedade, ausência de uma figura centralizadora de poder, ausência de ditadas na instituição, estar em análise era opcional (Coimbra apud Figueiredo, 1995, p. 170). Aqui poderíamos citar também o Instituto Sedes Sapientiae o Núcleo de Estudos de Psicologia e Psiquiatria (NEPP), a CASA e Centro de Estudos em Psicanálise e Análise Institucional (CEPAI), em São Paulo. No Rio de Janeiro o grupo “Plataforma”, o próprio IBRAPSI, anteriormente referido por ter trazido Franco Basaglia ao Brasil. Em Minas, o Colégio Mineiro de Psicanálise daria inicio as críticas à “verdadeira psicanálise”. (Rodrigues, 2005; Coimbra, 1995; Barreto, 1999). Esses novos grupos “alternativos” tentam eliminar diversos entraves do processo da formação analítica além de promover o início de um engajamento político-social. Alguns desses grupos apoiaram o movimento de Diretas Já. Entretanto, todos esses esforços não foram suficientes para o desgarramento de um viés instituído. Coimbra (1995, p.171) sugere que alguns desses grupos ainda insistiram em “práticas em muito semelhantes às que pretendem [pretendiam] criticar, continuando confinados no estreito território “psi”, ainda encharcados pelo corporativismo dos psicólogos e, em realidade, fortalecendo-o”. Outro movimento psicanalítico que chega ao Brasil com o intuito de rechaçar a “verdadeira psicanálise” é o movimento lacaniano. Este movimento consistiu de trazer novo corpo teórico para psicanálise, como por exemplo, através de uma “clínica da psicose” ou “clínica do sujeito”. Ao analisar o lacanismo do Rio de Janeiro e São Paulo, Coimbra (1995, p. 182) descreve que, apesar das particularidades de cada região, o movimento lacaniano continuou mantendo-se corporativista, politicamente neutro, naturalizante e elitista, sem pensar os movimentos sociais. Mantinham uma preocupação clínica focada na aplicação do “mestre” Lacan, direcionados para seus atendimentos consultoriais privados. Em Minas Gerais percebe-se, no entanto, uma direção diversa: a aproximação do movimento lacaniano com alguns movimentos sociais. Exemplo seria a aproximação deste movimento com a reforma psiquiátrica mineira. Foi através do Colégio Mineiro de Psicanálise, em 1980, que Minas Gerais iniciou um processo de autonomização em relação às sociedades “oficiais” da IPA e com o Círculo Mineiro de Psicanálise. É curioso notar que a história da instituição psicanalítica em Minas Gerais esteve ligada, desde seu início, aos trabalhadores de saúde mental (Coimbra, 1995), como alguns dos componentes da “turma do galba”, inicialmente estimulada por Jorge Paprocki. O percurso da Psicanálise na reforma mineira A psicanálise de forma geral serviu para contestação do modelo clássico de psiquiatria e a possibilidade de uma nova “clínica psiquiátrica”, a insurgente “clínica psicanalítica”. Por sua vez, as diversas organizações da psicanálise conturbaram todo o seu projeto inovador. O percurso do movimento psicanalítico é marcado por um teor instituinte ao fazer e saber psiquiátrico. Porém ao mesmo tempo recai na malha instituída de estagnação e certa ortodoxia de sua própria instituição. Lacan avança os estudos de Freud ao buscar exprimir que a natureza da cura é que demonstra a natureza da enfermidade, e não o contrário, assim trazia novidades para o campo do saber dantes 88 hegemônico. Antigamente a classificação das doenças mentais justificava medidas de controle e tratamentos. A teoria da degenerescência era recorrente como ideologia, porém agora a clínica baseada na escuta do sujeito ao invés da doença em si, propiciava novos tratos. Essas inovações entraram na formação dos psiquiatras mineiros através da experiência com comunidade terapêutica e a residência em psiquiatria no Hospital Galba Veloso (HGV) em 1968. O grupo, “turma do Galba”, era “ávido”, por novos materiais de estudos, para além de manuais psiquiátricos clássicos e ultrapassados, “a psiquiatria se abria em interface com a sociologia, a cultura, a etologia, a política, a psicanálise e o humanismo” (Baggio, s.d., p.3). Jorge Paprocki submeteu todos e todas à análise. Os psicanalistas responsáveis foram: Célio Garcia, Eli Bonini Garcia, Bernardo Blay Neto, Jarbas Portela. Os integrantes da “turma do Galba” eram: César Rodrigues Campos, José de Assis Corrêa, Eudes Ramón Montilla, Francisco Xavier, Chicão, Barreto, Vicente, Virgílio, Mário Catão Guimarães, José Domingues, José Raimundo da Silva Lippi, José Carlos Amarante, Eunice Rangel, Hélio Tavares Filho, Rodrigo Teixeira de Salles. Alguns colegas mais velhos conviviam conosco: Dr. Helênio Coutinho Guimarães, Neusa Magalhães Carneiro, José James de Castro Barros, Dalton Lintz de Freitas, Benítez Conde. (Baggio, s.d., p.3). A psicanálise permitiu um olhar, clínico, desses recém-formados psiquiatras. Abria-se um espaço para o “fomento de cultura crítica para Reforma Psiquiátrica mineira” (Goulart & Durães, 2004, p.4). Era, no entanto, um projeto de formação nos moldes que Coimbra chama de “oficiais”. O contato com esta perspectiva crítica em relação à prática e conhecimentos psiquiátricos tradicionais e biologicistas não sustentaram por si as necessárias transformações nos hospitais psiquiátricos.mineiros. Em 1980, o Colégio Mineiro de Psicanálise (CMP) rechaça as categorias de internação que se dão no Hospital Psiquiátrico Instituto Raul Soares (IRS). (Barreto, 1999, p. 185), com ímpeto lacaniano semelhante ao de outras localidades brasileiras. Assim, a concepção que se coloca é a de que o Hospital não deva servir mais como um aliviador de tensão social com a reclusão de pessoas indesejáveis. As definições de critérios de internação são repensadas. Um exemplo é o de que apenas casos em que haja um comprometimento grave do juízo crítico, uma situação de sério risco para si ou para outrem ou um estado de intensa excitação psicomotora que deveria ser indicado o uso de uma contenção e internação. Barreto (1999), componente do Colégio e ex-integrante do grupo do “Galba”, acusa que as principais motivações das famílias dos pacientes para internação eram quanto: a necessidade terapêutica; rejeição; segregação; punição; invalidação; benefício. Ou seja, os critérios de internação se referenciavam no caráter moral, e, por conseguinte, na tendência de retirar da sociedade os não adequáveis a ela. Essas novas práticas, inovaram, no IRS, quanto à inserção de métodos psicoterápicos e socioterápicos entre os profissionais mineiros. (Barreto, 1999, p.25). O movimento lacaniano mineiro, tanto pela contribuição à teoria psicanalítica como por se prestarem a serem instituições mais flexíveis - quanto à formação principalmente - que as “oficiais” pode ser entendido como uma primeira aproximação da realidade social local, carente de direitos sociais. Saber escutar o sujeito ‘louco’, ou o cidadão poderia consistir em uma libertação de práticas sociais cerceadoras. Neste intuito, toda a remodelação da assistência psiquiátrica trabalha no sentido de dar espaço, voz, tempo para cada portador de transtorno mental entrar na realidade comum a todas as pessoas. (Barreto, 1999; Coimbra, 1995; Lobosque & Abou-Yo, 1998). Esta perspectiva lacaniana, diferentemente de outros estados brasileiros, ganha espaço crescentemente na rede de serviços hospitalares e ambulatoriais mineiros, principalmente os de Belo Horizonte. Porém, no final dos anos 80, no entanto, ficava patente, na avaliação dos resultados de uma década de esforços de reforma, a insuficiência da prática clínica para “dar voz” e vez aos usuários dos serviços de saúde mental. Os psicanalistas lacanianos estabeleceram-se em consultórios nos Centros de saúde, na rede. Contudo tenderam, ao mesmo tempo, a certo distanciamento da população, além de evitarem casos graves e de aprofundarem a sedação feminina. No eixo mineiro, este isolamento entre analista e o cliente demarca o caráter elitista que se tornava a psicanálise lacaniana – tanto no que tange seus atores, como na complexidade e intelectualidade que envolveria a formação - voltada para prática consultorial privada e dirigida aos setores médios e às elites. A psicanálise lacaniana mineira não se comprometia com remissão de sintomas, com reajustamento, ou readaptação, dos sujeitos, ou com produção de bem-estar, 89 evitando, dessa forma, o disciplinamento de subjetividades e comportamentos. Havia, ainda, uma extremada preocupação com a especificidade do trabalho psicanalítico, restringindo-o ao atendimento estritamente individual e à rejeição de interpretações e intervenções de caráter coletivo e grupal. Assim, outros grupos de diversos do espaço “psi” buscam retomar o caráter psicossocial necessário à atenção de saúde mental. O modelo substitutivo de saúde mental, nos anos 90 e na década seguinte, faz valer novas remodelações e expurgo progressivo dos hospitais psiquiátricos. Articulava-se práticas de produção de bem-estar, conscientização, informação e lazer, como também, intervenções direcionadas para readaptação e a reintegração da clientela. Considerações Finais A proposta deste artigo contemplou retratar o percurso da psicanálise na reforma mineira e suscitar motivos de permanência nas estruturas de atenção à saúde mental até os dias de hoje. A marca da psicanálise serviu-nos com extrema importância, principalmente, no que tange a afirmação do singular, à luta contra a homogeneização e segregação do portador de transtorno mental. Ainda, foi responsável por elencar novos manejos de um campo até então restrito ao poder e saber psiquiátrico. Porém, foi possível perceber que os avanços logrados careciam de uma real transformação - no que se refere as relações de poder e em proposições objetivas para com nossa realidade. Nesse sentido, a retomada da história teve o intuito de munir os combatentes do presente a entenderem as implicações históricas passadas. Dessa forma, os trabalhadores e militantes dos serviços de atenção à saúde mental podem trazer consigo a implicação de suas próprias práticas assistenciais na saúde mental. Referências Bibliográficas: Baggio, M.A. (s.d). Jornal mineiro de psiquiatria. BH, Ano VI, n.16. Disponível em < http://www.jmpsiquiatria.com.br/edicao_16/historia_16.htm>. Acesso dia 04 de julho de 2011. Baremblitt, G. (1998). Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos. Barreto, F.P. (1985). Reforma psiquiatrica e movimento lacaniano. Belo Horizonte: Itatiaia. Basaglia, F. (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. 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Alguns lugares trabalhavam com a prática da inserção social do indivíduo, enquanto em outros locais ainda se baseavam no modelo asilar e repressor. Esses fatores me causaram inquietação e curiosidade fazendo com que eu buscasse compreender quanto o argumento e opinião do século XIX ainda se conserva presente na atualidade e identificar os desdobramentos presentes entre as idéias de Pinel e a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Para isto, foi realizada uma análise de discurso sobre a loucura do século XIX, utilizando como base os escritos sobre os pensamentos de Pinel e da Reforma Psiquiátrica, a fim de gerar uma discussão e articulação desses dois períodos. O procedimento de pesquisa partiu do levantamento da publicação de uma dissertação de mestrado, que descreve os pensamentos de Pinel, publicado em 1993, por Ariane Patrícia Ewald, que foi encontrada no acervo histórico da biblioteca da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Também foi utilizado como corpus para este estudo o texto da Lei 10.216. A LOUCURA DO SÉCULO XIX No final do século XVIII e início do XIX, as cidades brasileiras, até mesmo a capital Rio de Janeiro, possuíam uma população pequena e pode-se dizer que elas eram um prolongamento da vida rural onde a indústria ainda era principiante. A vida social daquele período era de um lado uma minoria de senhores e proprietários de terras, e do outro lado, a multidão de escravos. Uma terceira categoria era os ‘vadios’, que se sustentavam através do crime. A loucura passa a ser percebida e vem encher a leva de ‘vadios’ e desordeiros das cidades. Eles começam a ser notados pelos seus comportamentos incomuns e pela reação violenta que tinham com as provocações dos demais. Passaram a ser abrigados nas Santas Casas de Misericórdia e recebiam tratamento diferenciado: eram aglomerados nos porões, não tinham assistência médica, eram vigiados por carcereiros, os seus sintomas, como delírios e agitação, eram manejados com espancamento ou contenção em troncos. Pode-se dizer que os loucos eram condenados à morte por maus tratos, desnutrição e doenças infecciosas. No entanto, as Santas Casas não estavam dando conta da demanda de doentes mentais que ainda deambulavam pelas ruas. Restaram as prisões, onde os insanos passaram a dividir espaço com os criminosos e os maus tratos eram distribuídos a todos (Resende, 2001). O mesmo autor ainda ressalta que a exclusão era o modelo de assistência usada para tratar o doente mental e o ano de 1852 foi o marco institucional da assistência psiquiátrica brasileira. Nesse ano foi inaugurado, no Rio de Janeiro, pelo imperador D. Pedro II, o hospício que levava o seu nome. A direção do hospital era subordinada à Santa Casa de Misericórdia, possuía capacidade para 350 pacientes e quando inaugurado já abrigava 144. Pouco mais de um ano após a inauguração do hospício, este já se encontrava com sua lotação esgotada, asilos que eram abertos na época, em pouco tempo se viam assoberbados pela demanda, solicitando mais verbas e mais hospícios. São Paulo, Bahia, Pernambuco e Pará, seguiram o exemplo do Rio de Janeiro e trataram de construir hospitais psiquiátricos alguns anos depois. Os hospícios eram criados longe dos centros urbanos e usava-se como justificativa a necessidade do louco de ter tranqüilidade, calma e espaço. O 92 tratamento dado ao doente era através do uso de camisa de força, jejuns impostos, maus tratos físicos e até o assassinato (Resende, 2001). Os pacientes eram classificados a partir de critérios variados, muitas vezes o médico utilizava o seu critério pessoal, visto que a psicopatologia da época estava desnorteada e não possuía uma base empírica (Pessotti, 1995). Segundo Fernandes (2009), foi a partir de 1884 com a inserção de disciplinas de psiquiatria nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, foi possível haver um melhor estudo sobre as doenças mentais. Os psiquiatras da época tiveram como influência as idéias de Pinel, que recomendava o afastamento dos insanos da sua família e da sociedade, já que estas eram a fonte da loucura. Pode se dizer, que foi no século XIX que junto com os manicômios foi se constituindo no Brasil o discurso de que os portadores de doenças mentais não deveriam fazer parte da sociedade, sendo assim, o muro do manicômio era o que dividia a população entre os normais e os loucos. O ato de aprisionar os ditos insanos passou a se consolidar em todo o território nacional e com o passar do tempo este método criou forças no campo da saúde. Mas a partir do médico francês, Philippe Pinel, a psiquiatria tomou novos rumos: estudo das causas da loucura, classificações das doenças mentais e um novo modelo de tratamento. PHILIPPE PINEL Pode-se dizer que foi a partir de Pinel que a psiquiatria foi iniciada como especialidade médica através da sua publicação, o Tratado Médico-Filosófico, ou Traité, sobre alienação mental que foi divulgado em 1801 e uma segunda edição em 1809 (Cherubini, 2006). Para Pinel a alienação mental era uma doença orgânica que se dava devido à perturbação do funcionamento do sistema nervoso. Sua causa poderia ser hereditária e/ou orgânica, mas os motivos de maior importância eram as alterações psicológicas e morais (Ewald, 1993). Percebe-se que as classificações das doenças mentais propostas por Pinel foi um importante avanço para a psiquiatria da época e atualmente tais classificações são ferramentas importantes para os profissionais da área. Os manuais diagnósticos de transtornos mentais são instrumentos que fazem parte da rotina dos profissionais e através dele o portador de sofrimento psíquico recebe o seu diagnóstico. É evidente que esses manuais classificatórios possuem a sua importância para a saúde, mas se deve ter, muito cuidado para não se deixa cair no reducionismo, isto é, restringir o sujeito e sua singularidade por meio de uma classificação ou até mesmo através de um número. Nota-se ainda que as idéias de Philippe perpetuam até o presente momento, visto que muitas das patologias que ele classificou no século XIX permanecem utilizadas. Como é o caso da histeria, ninfomania, bulimia, demência, mania e até mesmo das alterações da vista e do ouvido, o que hoje chamamos de alucinação e delírio. Claro que muitas das suas classificações caíram por terra, mas é notória a influência das idéias do médico francês. Segundo Semelaigne (1930, citado por Ewald, 1993) os princípios de Philippe Pinel eram: a) os doentes mentais deveriam ter seus comportamentos inadequados reprimidos, mas o paciente poderia usufruir da liberdade no hospício; b) o médico deve ser o confidente das aflições do paciente; c) tendo os alienados agrupados no manicômio, seria mais fácil determinar as espécies e variações da loucura através da comparação. Deste modo, o hospício passa a ser a melhor terapêutica para o portador de alienação mental e o médico o principal responsável pela instituição psiquiátrica. Cabe a família buscar auxílio do manicômio e dos doutores para poder dar conta dos comportamentos disfuncionais do doente. Asilar o paciente passa a ser sinônimo de tratamento, de correção dos atos desviantes e das idéias estranhas, ou seja, consiste no melhor caminho para chegar até a razão. Ewald (1993) expõe que o Tratamento Moral de Pinel era o mecanismo utilizado para paralisar e manejar a loucura buscando fazer com que o paciente voltasse ao seu estado de normalidade. O alienado deveria ser tratado com firmeza, autoridade e compreensão. O médico teria que estar atento para não ser influenciado pelo louco, pois ele deve dominar a sua insanidade e levar o paciente a cura. Esse tratamento tem como base os conceitos morais da sociedade, ou seja, o conceito de moral do médico e dos guardas dos hospícios. O doente passa a ser vigiado e qualquer comportamento que foge do adequado terá como conseqüência uma punição, já que o objetivo do tratamento é reeducar o 93 alienado e para isso ele passará por uma severa disciplina, que atua no nível do convencimento do paciente e reprime os seus sintomas. O isolamento também passou a ser uma das principais técnicas utilizadas no Tratamento Moral. Pinel acreditava que as visitas não eram boas para a evolução do doente e pior que isso, poderiam deixar o louco em um estado de incurabilidade. Também destacava que se caso o alienado voltasse, precocemente, para a sua família poderia regredir para o seu estado anterior (Ewald, 1993). Como destaca Cherubini (2006), o alienado passa a acreditar que de fato é um doente que necessita do tratamento e que cabe ao médico o poder de cura. Sua identidade não vale de nada, sua fala não tem importância, ele passa a ser apenas uma caricatura da loucura. O tipo de entendimento e de tratamento da loucura passou a ser questionado somente no final do século XX, inicialmente pelos trabalhadores da área da saúde mental. Foram realizadas diversas manifestações para que pudesse ser criado um novo modelo de assistência que prestasse um atendimento humanizado e de reinserção social, ou seja, essas manifestações lutavam por uma reforma na psiquiatria brasileira. REFORMA PSIQUIÁTRICA Os movimentos de reforma psiquiátrica tiveram como principal influência o modelo de desinstitucionalização da psiquiatria italiana desenvolvido por Basaglia, a partir de 1971. Podemos dizer que o início dos movimentos de reforma, aqui no Brasil, foi por volta dos anos de 1978-1980. A causa imediata para o começo do movimento foi a “Crise da Dinsam” (Divisão Nacional de Saúde Mental), que era o setor responsável pela formulação das políticas de saúde mental. Há muitos anos não se realizava concursos públicos e devido ao quadro defasado de profissionais a Dinsam passou a contratar “bolsistas”, que eram profissionais graduados ou estudantes universitários. Além de a contratação ser ilegal, os funcionários possuíam precárias condições de trabalho. E foi devido a uma denúncia feita por médicos bolsistas, sobre as irregularidades dos hospitais que os profissionais passaram a se unir contra esse sistema. (Amarante, 1995). Assim, nasce o MTSM, isto é, o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que tinham como reivindicação o aumento salarial, a redução dos números excessivos de consultas por turno de trabalho, tinham críticas aos manicômios e ao uso de eletrochoque, queriam melhores condições de assistência à população e humanização dos serviços. A partir disso, inicia-se uma série de encontros, conferências e congressos (Lüchmann & Rodrigues, 2006). Os mesmos autores relatam que o II Congresso Nacional do MTSM, realizado em Bauru/SP, teve a presença dos doentes mentais e seus familiares da associação ‘Loucos pela Vida’. Calicchio (2007), afirma que foi com a inserção dos familiares e usuários no MTSM, que inicialmente tinham uma proposta voltada para os trabalhadores, começou-se a repensar os princípios do movimento. Foi assim que se autonomearam de Movimento da Luta Antimanicomial (MLA), passaram a utilizar como tema a frase ‘Por uma Sociedade sem Manicômios’. Uma das principais conquista do Movimento da Luta Antimanicomial, foi a formulação do Projeto de Lei nº 3657, elaborado por Paulo Delgado em 1989 (Tomaz, 2009). Doze anos depois o Projeto de Lei de Paulo Delgado foi aprovado e converteu-se na Lei nº 10.216 (2001). O texto da lei aprovada se difere do texto do projeto, principalmente sobre a extinção dos manicômios, mas como ressalta Machado (2005), a Lei da Reforma Psiquiátrica foi completada dentro do que poderia ser feito naquele período. Tal lei se constitui de treze artigos e possui a seguinte ementa: “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (Lei nº 10216, de 06 de abril de 2001, p.1). A partir dos movimentos que lutavam, e lutam até hoje, pelos direitos e pela reinserção social dos doentes mentais, foi possível modificar o modelo de assistência à saúde mental. Atualmente o portador de sofrimento psíquico conta com uma rede extra-hospitalar que se constitui de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Residenciais Terapêuticos, Programa “De Volta Pra Casa” e entre outros. Além disso, o sujeito pode contar com as Unidades Psiquiátricas em Hospitais Gerais (Machado, 2005). Como destaca o autor, compreende-se que a Reforma Psiquiátrica batalha para 94 transformar a relação que a sociedade e as instituições estabelecem com o sujeito portador de transtorno mental, além de mudar as próprias práticas de saúde que se baseavam nos séculos passados. Atualmente podemos perceber as mudanças feitas no modelo de assistência à saúde mental através na implantação da rede extra-hospitalar em todo o território nacional, mas como destaca Rosa (2002 citado por Grunpeter, Costa & Mustafá, 2007, p.517) é percebido que “atualmente coexistem no Brasil, nem sempre de maneira pacífica, por serem pouco integrados, modelos diferenciados de assistência tanto fundamentado no modelo asilar quanto no modelo dos novos serviços”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da análise feita, pode-se dizer que Pinel inovou a psiquiatria através do seu entendimento de loucura e da técnica do tratamento através da correção da moral. Será que poderíamos dizer que Pinel propôs uma reforma psiquiátrica? Naquela época Philippe buscava fornecer um melhor tratamento para os alienados, suas técnicas eram utilizadas para o bem do paciente e buscava a cura da alienação mental. Foi ele quem deu para os insanos a escolha de sair das correntes e a liberdade de perambular dentro dos muros dos hospitais psiquiátricos, algo inovador e até mesmo escandaloso para a época. O movimento da luta antimanicomial, aqui no Brasil, também lutava pela libertação dos doentes mentais, mas esta liberdade ultrapassaria os muros manicomiais, objetivo parcialmente conquistado após a aprovação da lei nº 10.216. Apesar de a lei garantir direitos aos portadores de sofrimento psíquico, se pode observar que freqüentemente não se cumpre o que ela decreta, muitas instituições de internação psiquiátrica possuem pacientes moradores e que não possuem uma vida social ou que está é largamente limitada, isto infringe o que diz os seguintes trechos da lei 10.216 (2001): o paciente deve receber um tratamento que vise alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade, que o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio e que o paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. Parece que as instituições e os profissionais da área da saúde mental atuam conforme a sua opinião e crença, deste modo, se eles se identificam com a reforma psiquiátrica eles trabalham dentro das diretrizes da mesma, mas se não concordam não atuam dentro da lei. Também há a existência do interesse lucrativo que a doença mental desperta nos hospitais e clínicas psiquiátricas privadas, pois quanto maior a internação maior é o lucro. Mas cabe ressaltar que não se trata de gostar ou não do que diz a reforma psiquiátrica, visto que é uma lei e que leis devem ser exercidas. Mas acredito que o maior conflito existente é a ambivalente presença dos dois discursos, o do modelo asilar e do modelo da reforma psiquiátrica. A maior luta do movimento antimanicomial é institucionalizar na sociedade o discurso de que o portador de doença mental não é um ser incapaz e sem utilidades, mas que ele é um cidadão, possuidor de direitos e deveres, um ser que pode ter a sua autonomia e que é digno de viver em sociedade com os demais. Deste modo, podemos concluir que o modelo de tratamento asilar que foi proposto há cerca de 200 anos atrás por Philippe Pinel, ainda é muito presente nos dias de hoje e influencia muitos profissionais da saúde mental. Mas a luta antimanicomial também segue presente e forte, e já conseguiu romper com muitas idéias e práticas do século passado, mas ainda há um longo caminha a percorrer. REFERÊNCIAS AMARANTE, P.(org.). (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP. 95 CALICCHIO, R. R.(2007). Vinte anos de luta antimanicomial no Brasil – arte e comunicação como estratégia de participação e transformação social no contexto da reforma psiquiátrica. Eco-Pós. 10(1), 13-21. Recuperado em: 28 outubro, 2010, de http://www.pos.eco.ufrj.br/ojs2.2.2/index.php/revista/article/viewFile/63/42 CHERUBINI, K. G. (2006). Modelos históricos de compreensão da loucura: da Antigüidade Clássica a Philippe Pinel. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1135. Recuperado em 28 outubro, 2010, de http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/pinel.pdf. EWALD, A. P. (1993). A psiquiatria não tem cura: o mito Pinel na sociedade contemporânea. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. FERNANDES, F. (2009). História da psiquiatria no Brasil. Recuperado em: 12 novembro, 2010, de http://artigos.psicologado.com/psicopatologia/psiq uiatria/historia-da-psiquiatria-no-brasil GRUNPETER, P. V., COSTA, T. C. R. e MUSTAFÁ, M. A. M. (2007, abril). 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(1995). A Loucura e as épocas (cap. IV). Rio de janeiro: Editora 34. RESENDE, H. (2001). Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: BEZERRA, B, Jr. et al.Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil (cap. I). Petrópolis: Editora Vozes. TOMAZ, C. S. (2009). A cidadania do louco: um debate necessário para a compreensão da direção teórico-político da luta antimanicomial. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil. Recuperado em: 04 novembro, 2010, de http://www.bdtd.ufjf.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=577 96 O físico, o moral e o mental: O projeto de reforma da cultura nacional do Circulo Brasileiro de Educação Sexual Leandro Alves Felicio - COC/Fiocruz – [email protected] Introdução: O objetivo deste trabalho é demonstrar como os cuidados com a saúde mental possuíram estreita relação com o projeto de educação sexual do Circulo Brasileiro de Educação Sexual e de seu idealizador, Jose de Albuquerque durante a Era Vargas. Para uma melhor compreensão de nossa temática é mister salientar o que era o Circulo Brasileiro de Educação Sexual e qual foi o papel desempenhado por este. O CBES foi uma entidade de características filantrópicas, fundada em 1933, que possuía como objetivo máximo promover uma reforma sobre a educação/cultura sexual da população brasileira, de forma a instruir cuidados com a higiene, eugenia e sobretudo com a moral da população brasileira. Com a ação de médicos, advogados, jornalistas, professores, pedagogos, editores, sociólogos, entre outros ramos do conhecimento, o CBES buscou abranger todo o território nacional com seu movimento, propagando suas ideias em jornais, panfletos e palestra. Entendemos o CBES como uma das vertentes do pensamento conservador do cientificismo brasileiro, uma vez que este órgão efetuou um movimento de reforma por meio de uma intervenção médico - cientifica normatizante, com fortes argumentos da biologia, psicologia e sociologia. Dentre os membros do CBES, apresentamos o médico e fundador da entidade, José de Albuquerque, que se formou pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com a tese “Cirurgia do sympathico periarterial”, no ano de 1924. Atuou durante a primeira metade do século XX, sendo considerado um dos precursores do projeto de educação sexual nacional voltada para a população. Entre outras nomeações destacamos o posto honorário de Presidente do Congresso Inter Americano de Higyene Mental (Boletim de Educação Sexual, 01/1936). Contexto do cientificismo brasileiro, educação sexual e a higiene mental: A década de 1930 foi um período marcado por diversos projetos de ordem nacionalistas, oficiais e de iniciativa civil, que buscavam propor soluções para os problemas de modernização do País. Entendemos que tais projetos não se referiam apenas a reformulações das estruturas políticas e econômicas do Brasil, mas também àquelas estruturas sociais concebidas pelos intelectuais da época, como débeis e atrasadas. Na tese nº 1 da I Conferência Nacional de Educação, o médico sanitarista Belisário Penna (1927: 29), descreve que a educação científica se fazia necessária para alcançar um estado de consciência nacional ideal: Se mais de 90% dos brasileiros não sabem ou não tem suficientemente educadas a inteligência e a vontade para defender e melhorar incessantemente á própria vida, é evidente que não contribuem para a defesa e melhoramento da vida da família, da sociedade e da espécie. Ao contrário, o seu concurso de indolentes, de depositários e propagadores de doenças e taras patológicas é o de continua e progressiva degeneração da família, da sociedade e da espécie. As discussões no campo da ciência são destaque deste período, pois os conhecimentos utilizados por médicos, higienistas, pedagogos, entre outros eram concebidos como fundamentos para as reformas a serem empreendidas no país. No entanto, esta intervenção da ciência sobre a sociedade, de forma normativa, não tem origem durante o contexto que analisamos, mas sim em fins do século XVIII, com o movimento ilustrado, que orientou uma longa trajetória filosófica que abarcou o XIX e início do XX. Das palavras de Roque Spencer Maciel de Barros na obra: A ilustração Brasileira e a idéia de universidade (1986) depreendemos que a transição do XIX para o XX foi marcada pela necessidade de 97 mudanças de cunho científico nas instituições tal como filosofias nacionais. A República, a educação, o direito, entre outros precisavam ser repensados à luz da ciência moderna. As muitas correntes científicas apontavam para a necessidade do aprimoramento físico, mental e moral da população brasileira. Encontramos como seus expoentes, personalidades que se destacaram nos diversos campos do conhecimento como: Belisário Penna, Renato Kehl, Celina Padilha, assim como o médico José de Albuquerque. Os pareceres destes personagens sofreram forte influência do cientificismo, e em meio a estas influências, identificamos as vertentes da ideologia reformadora do CBES e de seu fundador. Os aspectos que norteavam as discussões destes intelectuais eram a educação, a higiene a eugenia. Entendemos as três temáticas como associadas neste contexto, uma vez que se pensava uma nova sociedade brasileira; logo, os problemas de cada ordem perpassavam pela lógica do físico, do mental e do moral. O papel do homem, da mulher, da criança, da família, da sociedade e da espécie humana, foi problematizado na busca por tipos ideais para a nação. Pensava-se necessário regular, controlar e tolher qualquer conduta contrária ao idealizado, e neste preâmbulo, a educação, a jurisprudência e a medicina desempenharam papéis normativos na sociedade brasileira. Lucélia de Moraes Braga Bassalo define que na virada para o século XX, o interesse por disciplinar os corpos no interior da sociedade brasileira, acompanhado por discursos médicos de normatização, passam a serem os definidores de novas discussões sobre a sexualidade e a família. Segundo esta autora: No que se refere ao marco temporal, convém esclarecer que este foi estabelecido considerando que entre fins do século XIX, e meados do século XX, surgem inúmeras iniciativas de formulação de estratégias disciplinares da sociedade brasileira, que incide, de modo especial, sobre o controle do corpo, o que pode ser atestado pelo empenho da Editora Calvino, no Rio de Janeiro ao editar a “Coleção de Cultura Sexual”, com 20 títulos e “Freud ao alcance de todos”, com 13 títulos. Além disso, começa a crescer a influência da área médica, na normalização do que é saudável, normal ou anormal em relação à sexualidade e ao ambiente familiar, caracterizando-se como um período rico de contradições e conflitos, cenário de disputa política e econômica, de embates entre as razões teológica e moderna, no qual se constroem muitos significados novos, entre eles, da família, da sexualidade, do adolescente, da mulher e do homem. (BASSALO, 2000, p.1) É nesta ambientação que identificamos as preocupações do CBES e de José de Albuquerque com a questão sexual nacional. Segundo a historiografia, a possibilidade de organizar um programa de educação sexual se fazia imprescindível para muitos intelectuais do período, posto que, com o advento da urbanização, os problemas de pauperismo e crescimento populacional eram alarmantes. Junto com estas questões observava-se a busca pelo desenvolvimento de uma população salubre, física e mentalmente, que estivesse apta para a produção nacional. Os projetos eugênicos do período se afiguravam como possíveis soluções, moldando o que seria a nova identidade do povo brasileiro. Tais projetos contavam com as ciências sexológica e a psicanalítica como aliadas. Como elucidam os antropólogos Sérgio Luís Carrara e Jane Araújo Russo (2002): o panorama mais geral que assiste ao surgimento dos primeiros psicanalistas e sexólogos brasileiros parece marcado pela agitação em torno daquilo que, desde o final do século XIX, vinha sendo designado como o “problema” ou a “questão sexual”. Em 1928, ao publicar o livro A neurastenia sexual e seu tratamento, o professor de clínica neurológica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Antônio Austregésilo, dizia ter sido motivado a escrever aquele “pequeno manual” devido ao “crescido número de consulentes nervosos, atacados de neurastenia sexual” que vinha tratando em seu consultório. De fato, alguma coisa parecia acontecer com a “libido nacional” naquele período, pois, nos anos seguintes, a capital da república iria assistir à realização de cursos populares sobre sexologia, a comemorações especiais, como o Dia do Sexo; iria ouvir emissões radiofônicas sobre sexo e acompanhar, nos jornais diários, notícias sobre campanhas de educação sexual. Periódicos especializados e novas instituições iriam ser criados especialmente para tratar do tema, que parece ter se tornado tão popular a ponto de fazer com que, no Carnaval de 1935, o tradicional clube carnavalesco Fenianos levasse às ruas um carro alegórico chamado “A educação sexual”. Os primeiros sexólogos e psicanalistas iriam então abrir seus consultórios, partilhando a clientela que o professor Austregésilo dizia ser tão numerosa e carente. 98 A questão sexual era debatida por diversos campos da medicina, porém a psicanálise e a sexologia eram campos privilegiados nestas discussões, e valiam-se de tal para adquirir autoridade científica. Embora munidas de ferramentas teóricas comuns, a psicanálise e a sexologia diferenciavam-se. A sexologia detinha-se ao campo da orientação e estudos das relações sexuais. A respeito do impacto social da psicanálise e da sexologia, Carrara e Russo descrevem que: “Em contraste com a psicanálise, que impôs bem mais facilmente sua face respeitável no campo da medicina e da psiquiatria, a sexologia atraía sobre si suspeitas de imoralidade e seus cultores nem sempre escaparam ao estigma de perversos ou pervertidos” (idem, 2000, p. 275). Mediante as referências, entendemos o papel do CBES enquanto entidade que agregou tanto valores da sexologia quanto da psicanálise em seu advento de educação sexual. Localizamos no discurso de José de Albuquerque, vinculados ao CBES, uma série de apontamentos que nos permitem entender as inclinações científicas do autor e da entidade, tais como aqueles referentes Francis Galton, Sigmund Freud, Charles Darwin, entre outros. Das obras de José de Albuquerque, Higiene Sexual (1929) e Moral Sexual (1930), um argumento que nos serve como exemplo é aquele em que o médico define o problema da procriação em face da moral em duas partes: uma que se ocupa do nascimento e outra do desenvolvimento da criança sob as mais estritas condições de sanidade. O médico discute que nascer com sanidade é fácil, uma vez que o procriador se queira sujeitar às leis da ciência Eugênica de Galton. Já o desenvolvimento seria algo difícil devido às muitas condições a que se submeteria o organismo da prole (ALBUQUERQUE, 1930, p. 112). Outras intervenções de Albuquerque denotam as preocupações do médico quanto aos problemas de ordem sexual e metal da população. Em seu texto autobiográfico define as intenções de seu projeto de educação, expressando a necessidade de uma medicina que interviesse na vida social de modo a dar conta de problemas sexuais e mentais: Com esse critério (o dá ciência) se erigiria uma moral sexual que beneficiaria não só o indivíduo como a sociedade, pois, grande número de delitos e crimes, que põem em jogo o equilíbrio social, deixariam de ser perpetrados, visto como não se exigiria do indivíduo conduzir-se na sociedade de forma artificial. Se para evitarmos que o indivíduo “são” contraia qualquer doença temos de lhe criar hábitos de vida que não o deixem exposto a influências das causas que a determinam, ipso facto para impedirmos a eclosão dos estados mórbidos sexuais, o único meio seria o se afastar as causas que pudessem dar lugar não só a aquelas como a estes. Para os casos em que as causas destas disfunções são de caráter psicológico, os processos de sua profilaxia teriam de se fazer sentir sobre os fatores responsáveis pela influência das representações mentais que atuassem como traumatizantes para o espírito. Seria preciso que se criasse um ambiente mental impróprio para que tais representações pudessem substituir, para que não dessem em resultado a formação de recalques e, em última análise, a geração de neuroses. Em síntese, ter-se-ia de fazer a modificação completa, integral, de fond en comble das normas educacionais até então adotadas. Em duas palavras: ter-se-ia de realizar a educação sexual de nosso povo. (ALBUQUERQUE, 1958, 173). Dentre as estruturas sociais no foco da ação do CBES, o matrimonio encontra longa analise. Exemplificando, observar qual o parecer de Albuquerque, expresso em suas publicações e nas do CBES a cerca do matrimônio, pode nos auxiliar a analisar qual papel à ciência desempenha na visão deste sobre a instituição do casamento. Na obra “Moral Sexual”, texto destacado em muitas artigos do Boletim de Educação Sexual periódico oficial do CBES, Albuquerque expõe sua visão sobre as formas de casamentos em diversas culturas e temporalidades (ALBUQUERQUE, 1930, p. 97). O médico considera que para uma união matrimonial ser bem sucedida, e entenda-se que para isso esta união deveria produzir uma prole saudável e manter-se estável, o casal deveria se submeter a um exame médico conhecido como “exame de sanidade pré-nupcial”. Tal exame teria o intuito de analisar as aptidões físicas e mentais de um casal propenso ao matrimônio, de modo definir a “viabilidade” de uma união salubre de prole fértil, de acordo com os “ideais nacionais”. Em outro texto, publicado no Boletim de Educação Sexual, intitulado: O problema sexual nas penitenciárias (Boletim de Educação Sexual 01/1939), José Ortiz Monteiro discute o problema sexual de detentos de presídios que eram privados de suas práticas sexuais com as esposas, incorrendo em sérios problemas físicos e mentais. A continência sexual destes foi vista pelo autor como um problema 99 de “esterilização artificial” imposta pelo governo, que poderia gerar O homo-sexualismo e o onanismo (como) conseqüências fataes das condições que a prisão criou para o detento. O médico José de Albuquerque definia que os principais motivadores das enfermidades ligadas ao sexo estavam atrelados a uma má educação sexual e mesmo ao preconceito social. Como já citado, nas leituras de textos originais de Freud, Albuquerque estabelece empatia principalmente com os conceitos do psicanalista que se referem a desejos reprimidos como causadores de neuroses. As experiências das consultas inclinaram Albuquerque a constatar que os principais recalques motivadores de neuroses em seus pacientes estavam ligados a imposições de ordem religiosa e nos erros de orientação educacional da criança no lar e na escola. Segundo destaca Albuquerque (1958, 172): A falsa moral, inspirada em postulados que se achavam divorciados da biologia, era, pois, o elemento que entrava com maior contingente no desencadeamento dos distúrbios sexuais que mais de duas terças partes dos doentes carregavam, como um elemento aniquilador de sua personalidade, pela vida em fora. Em matéria publicada no Boletim do CBES, de Abril de 1935, intitulada: A abstinência e o excesso em matéria sexual – Albuquerque destaca como a continência e os excessos sexuais poderiam ser prejudiciais a saúde física e metal dos pacientes. Estabelece que: “Aqueles que se entregam a vida sexual immoderadamente, alegando que o “a funcção faz o orgão”, incidem num erro tão grande quanto aos primeiros, pois seus organismos são tomados de perturbações locaes e geraes, que repercutem na esphera nervosa, conduzindo a estados de morbidade que poderão terminar pela impotência.” (Boletim de Educação Sexual, 04/1935) Em obra anterior, que teve destaque no Boletim do CBES, “Estudo clínico e Therapeutico da Coitofobia no Homem” (1931), Albuquerque descreve uma patologia de ordem sexual que seria motivada pelo medo masculino da prática do coito como mais um caso de impotência sexual e, desta feita, de ordem psíquica. Segundo o médico alguns desencadeadores desse tipo de impotência seriam problemas de ordem afetiva que gerariam uma série de sintomas que impediriam a ereção masculina, portanto a cópula. Estabelece que embora existam muitas causas para a coitofobia, prefere definir alguns, como: o temor de serem descobertas as relações sexuais (possível relação adultera); temor de contaminações venéreas (contágios anteriores, medo de doenças; medo de revelar doença adquirida em prática adultera); temor de não satisfazer a parceira sexual (em práticas sexuais com parceiras com “ardor sexual” elevado); temor da prática sexual com parceira virgem (relativo à possibilidade da parceira fingir experiência sexual, e uma vez “deflorada”, obrigar o matrimônio); temor de ter revelado alguma característica ou doença pela parceira (características físicas tidas como defeito ou que ponham em dúvida a virilidade, assim como possíveis doenças constrangedoras) (ALBUQUERQUE, p. 1931, p. 9 – 11). Para a terapêutica o médico atribui uma série de medidas a serem tomadas pelo homem em conjunto com sua “parceira sexual”. Segundo Albuquerque o primeiro movimento a ser feito para o tratamento da psicose da coitofobia é diagnosticar as causas desta. Seria preciso afastar todas as possibilidades de uma impotência de natureza orgânica e funcional a partir de uma acurada anamnése clínica e laboratorial. Uma vez descartadas as possibilidades de uma impotência orgânica e funcional, o problema dos pacientes seria diagnosticado como impotência psíquica. Porém, antes de iniciar o tratamento seria necessário investigar se o medo da cópula estaria ligado a algum problema de natureza orgânica, e neste caso o tratamento orgânico se faz necessário antes do tratamento psíquico. Uma vez constata a impotência psíquica pura, o combate a tal enfermidade deveria ser feito sem que o paciente soubesse que esta estivesse sendo combatida. As recomendações feitas na maioria dos casos por Albuquerque seriam: Redução do fumo e bebidas alcoólicas; dieta alimentar que abstivesse o paciente de alimentos condimentados e excitantes, dando preferência a legumes e frutas frescas; evitar 100 aborrecimento e frustrações seguido de uma vida de hábitos saudáveis (leituras, lazeres, etc), evitar prisão de ventre, sendo recomendado o uso de medicamentos se necessário; uso de medicamentos de natureza psicoterapêutica adequado ao caso do paciente; prática sexual bissemanal com intervalos de três dias com a mesma parceira sem o uso de artifícios (toques manuais, contato bucal, etc) de modo a estimular a ereção (prática de maior eficácia no tratamento) ; submeter-se a essas prescrições durante o período de três meses consecutivos (idem, p.27). Sobre o aspecto recomendado de prática sexual bissemanal, Albuquerque destaca ser o mais importante. Ao paciente deve ser recomendado que o ato seja feito segundo fins terapêuticos e não prazerosos. Esta recomendação se faz necessária devido à possibilidade de insucesso na cópula, que uma vez que ocorra será entendida como parte do processo terapêutico. A proibição de artifícios para a obtenção de uma ereção (felação, masturbação, etc), com exceção dos movimentos afetivos, sem contato direto com o órgão masculino, se faria necessário para que a ereção fosse possível segundo um esforço interno e passivo do paciente. A prática sexual deveria envolver a mesma mulher durante todo o tratamento de modo a estimular a afetividade (idem, p. 28 – 29). A parceira sexual era parte importante do tratamento, pois esta auxiliaria no intuito terapêutico, estando o prazer em último plano. O papel feminino estaria ligado à revelação do estado de impotência psíquica. O motivo do temor dos homens residiria na possibilidade de um “vexame” diante a parceira devido ao insucesso da cópula. Uma vez que qualquer possibilidade de insucesso fosse prevista no tratamento e revelada à parceira, a impotência sexual deixaria de ter foco para o paciente com a mesma veemência. O intervalo de tempo entre as relações visaria impor um ritmo que pudesse estimular o paciente a desejar maior número de vezes e a manter o controle sobre si mesmo que auxiliaria na manutenção da libido sexual. O período de três meses do tratamento estaria ligado à condição mental do paciente; doze semanas de práticas sexuais com boa margem de sucessos afastaria o temor da cópula levando o paciente ao auto-diagnostico de cura (idem, p. 30 – 31). Depreendemos das análises do médico um conteúdo com intencionalidade normativa sobre as práticas sociais – sexuais – do paciente tal como a preocupação com as condições afetivas da mente do mesmo. O contato com a mulher inerente à terapêutica nos mostra como a relação social na pratica sexual era pensada pelo médico, em uma tentativa de estabelecer um método sexual conivente com a moral a que se apregoa. Concluímos nossa abordagem apontando como o projeto de educação sexual do CBES e de José de Albuquerque coadunaram os cuidados da sexologia e da psicanálise. A relação dessas ciências demonstra como as novas correntes filosóficas foram abraçadas pelos intelectuais do país, como importantes instrumentos de reflexão e proposição de soluções. Longe de uma perspectiva que apenas vislumbra os saberes médicos como ferramentas de controle ou mesmo coerção, entendemos que estas ciências serviram aos ideais de uma geração, que pretendia reformular as bases da Nação, promovendo a derrocada das estruturas obsoletas da primeira república em prol do soerguimento de novas, que impusessem a face da modernidade à sociedade e cultura brasileira. Referências Bibliográficas: ALBUQUERQUE, José de. 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História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(2):273-90, maio-ago. 2002. FERREIRA, S. da C. – A I Conferência Nacional de Educação (contribuição para o estudo das origens da escola nova no Brasil) Brasília: INEP, 1993. 102 POLÍTICAS SOBRE DROGAS: A ESTRATÉGIA DE REDUÇÃO DE DANOS Letícia Vier Machado – Universidade Estadual de Maringá email: [email protected] Maria Lucia Boarini – Universidade Estadual de Maringá Palavras-chave: redução de danos; saúde pública; saúde mental. Introdução O uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas não é um fenômeno da modernidade. Na história há registro de uso de drogas em diferentes contextos históricos, sociais e culturais, assumindo significados distintos em cada local em que se manifesta. Tais registros indicam que cabe à sociedade em geral reinventar maneiras de lidar com o fenômeno, sendo que no Brasil a história do percurso da criação de políticas públicas direcionadas às pessoas que usam drogas, à repressão ao tráfico e à prevenção de maneira geral é relativamente recente. Até a década de 1920, não havia regulamentação em relação a qualquer tipo de droga no país. A partir desse período, surgiram as primeiras regulamentações em relação às drogas ilícitas, como o ópio por exemplo. As drogas lícitas, tal como o álcool, continuaram sem regulamentação legal, fato que se estende, de certa forma, até os dias atuais. Nas sete décadas seguintes, a legislação produzida centrouse em aspectos relativos à repressão ao tráfico de drogas, à criação de Secretarias e Conselhos para a fiscalização e repressão. No âmbito do cuidado da saúde do usuário de drogas pouco foi feito, privilegiando-se no domínio público a Lei nº 6.368/1976 (Brasil, 1976), que balizou durante três décadas as ações referentes à prevenção ao uso indevido de drogas, além das ações nãogovernamentais. Foi a partir da década de 1980 que, no Brasil, rompe-se o hiato criado entre a segurança e saúde pública no que se refere ao uso e abuso de drogas. Fortalecida pelos movimentos sociais, foram geradas em solo brasileiro políticas públicas direcionadas principalmente às pessoas que abusam de drogas, principalmente aquelas ilícitas. É nesse contexto que ganhou espaço no Brasil a estratégia de redução de danos, definida como mais uma maneira de se abordar o usuário de drogas, descentrando o foco do problema da erradicação e abstinência, e privilegiando o direito à saúde de todos, respeitando a liberdade individual daquele que não deseja ou não consegue interromper o uso da droga. Tendo em vista essas considerações iniciais e com o objetivo de recuperar o histórico da estratégia de redução de danos no Brasil, enquanto uma ação de saúde pública no campo das drogas lícitas e ilícitas, realizamos uma pesquisa em bases de dados disponíveis virtualmente, com os descritores redução de danos. Dentre a literatura consultada, privilegiamos aquelas especializadas no assunto e a legislação brasileira sobre o uso e abuso de drogas ilícitas e redução de danos. Após a formação de um banco de dados, estabelecendo uma linha cronológica na criação das políticas públicas sobre drogas no país até o presente momento, analisamos as informações principais que permitiram chegar aos resultados apresentados. 1. Histórico da redução de danos no Brasil A problemática das drogas lícitas e ilícitas no Brasil esteve, em grande parte de sua história, mais conectada às questões de segurança do que de saúde pública. Todavia, vale destacar que o abuso do consumo das bebidas alcoólicas foi motivo de grande preocupação dos médicos higienistas, sobretudo da Liga Brasileira de Higiene Mental nas primeiras décadas do século XX. Muitas iniciativas foram tomadas por estes profissionais, dentre as quais destacamos as inúmeras campanhas antialcóolicas. Entretanto, tais ações não tiveram nenhuma repercussão em termos de legislação sobre saúde pública. Na época, o enfoque principal era repressão em detrimento da prevenção (Garcia, Leal & Abreu, 2008). As primeiras medidas no domínio público dataram da década de 1920, marco inicial no Brasil 103 do controle sobre drogas, tais quais ópio e cocaína, que resultou na publicação de uma Lei restritiva ao consumo dessas drogas, com punições àquelas utilizações “que não seguissem as recomendações médicas” (As transformações..., 2009, p. 11). Essa medida e aquelas que sucederam eram provenientes do campo da Justiça e da segurança pública, além de demandarem para os usuários internação e isolamento social (Machado & Miranda, 2007, p. 804). No ano de 1938, foi publicada a regulamentação sobre drogas por meio do reconhecimento da necessidade de fiscalização de entorpecentes no Decreto-lei nº 891, incluindo nessa classe drogas como o ópio, maconha, cocaína e heroína. Quanto ao uso, o mesmo documento classificou a toxicomania como “doença de notificação compulsória”, não podendo ser tratada em domicílio. Nesses casos, ou até mesmo na intoxicação por bebidas alcoólicas, a internação em hospital psiquiátrico era tida como obrigatória quando determinada pelo Juiz ou facultativa, podendo ser vitalícia. A alta médica, por outro lado, era autorizada quando o médico responsável alegasse a cura do toxicômano, por meio de testes e exames (Brasil, 1938). Para Garcia, Leal e Abreu (2008) esse Decreto-Lei, incorporado ao Código Penal de 1941, correspondia às aspirações do governo Getúlio Vargas para conter comportamentos desviantes, tendo como foco o trabalhador. Para tanto, valia-se do discurso médico e normatizante, correspondente ao perfil da abstinência almejado para o trabalhador da época. Entrava em cena, portanto, o ideal da abstinência como fator de segurança pública. Na década de 1970, o controle da medicina e da psiquiatria sobre os usuários de drogas, utilizando-se de dispositivos que prometiam “salvar, recuperar, tratar e punir” (Machado & Miranda, 2007, p. 804) reforçaram o enfoque no ideal de abstinência, e acarretaram na publicação da Lei nº 6.368/1976, que balizou durante três décadas as ações referentes à prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes causadoras de dependência física ou psíquica (Brasil, 1976). Além disso, a referida Lei intensifica a medicalização dos usuários de drogas, legitimando termos como “dependente de drogas” ao invés de “viciado”, ainda que o tratamento hospitalar não tivesse mais o caráter compulsório (Machado & Miranda, 2007, p. 805). O aumento do consumo e variedade de drogas ilícitas disponíveis no mercado, o advento da AIDS na década de 1980 foram fatores desencadeantes para pensar em diferentes estratégias de saúde, para além daquelas que cumpriam com o ideal da abstinência, do proibicionismo e da repressão. Tendo em vista a intensificação do número de casos de pessoas infectadas pelo vírus HIV resultante do uso de drogas injetáveis, começou-se a questionar a eficácia do modelo adotado para evitar a proliferação da AIDS nessa população. Além disso, tal situação indicava a incipiência dos serviços de saúde mental no Brasil voltados para a questão das drogas, denunciando a ineficácia dos tratamentos e a falta de clareza sobre a magnitude do problema (Mesquita, 1991). O expoente dessa contracorrente é a redução de danos, nesse período já aplicada em países como Austrália, Canadá, Holanda e Inglaterra. Essa estratégia pode ser definida como uma forma de encaminhamento cujo objetivo é minimizar as consequências sociais e à saúde decorrentes do uso e/ou dependência de drogas, utilizando-se de práticas mais higiênicas, além de informações sobre o uso mais seguro da substância, sobre o risco da transmissão de doenças virais como a Hepatite B e a AIDS, entre outras medidas de saúde. Por se falar em redução de danos principalmente quando já ocorre o uso de drogas, enquadra-se esse modelo no nível da prevenção terciária46 (Carlini, 2003). Mas, para além dessas ações instrumentais, a redução de danos também se pauta em princípios de saúde e cidadania, tendo em vista os direitos humanos. Além disso, a redução de danos tende para uma formatação mais humanitária, ou ainda, como definem Dias et al. (2003), caracteriza-se como uma medida de “baixa exigência”, uma vez que não estabelece como meta inicial para o tratamento a abstinência do uso da droga, permitindo também que o usuário participe de seu tratamento. Para Dias et al. (2003, p. 343 ), sua face política está no fato de que “A recusa do paciente a se tornar abstinente nunca deveria ser motivo para a exclusão do tratamento” , além de ter como princípios a neutralidade 46De acordo com Carlini (2003, p. 336), “R.L. Dupont (1987) [...] sumariou três tipos de prevenção: primária – prevenir o uso antes que ele se inicie; secundária- impedir a progressão do uso, uma vez já iniciado; terciária – impedir as piores consequências do uso contínuo”. 104 moral, ou seja, aquele que pretende reduzir os danos decorrentes da droga não se posiciona contra ou em favor do uso, isentando-se portanto de posições ideológicas. Essa medida de saúde pública era restrita inicialmente aos programas de trocas de seringas para usuários de drogas injetáveis, e a partir da década de 2000 expandiu suas ações para a escolha do motorista sóbrio; aplicação de adesivos de nicotina em fumantes; tratamentos de substituição de drogas pesadas por outras consideradas menos danosas, como medicamentos; confecção de cachimbos e piteiras de silicone para usuários de crack, evitando o compartilhamento de seus insumos; distribuição de preservativos e informativos sobre doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. Em síntese, a redução de danos foi, desde seu início, de encontro à estratégia proibicionista norte-americana de “guerra às drogas”. Não obstante os estudos indicarem que já no ano de 1926, no Colégio de Médicos Britânicos e no Comitê Rolleston, na Inglaterra, pensava-se na distribuição de seringas higienizadas para os usuários de heroína (Carlini, 2003), no Brasil há consenso entre os estudiosos sobre o ingresso das estratégias de redução de danos em 1989, na cidade de Santos - SP, resultado das iniciativas do sanitarista David Capistrano, que implementou programas de distribuição de seringas aos usuários de drogas injetáveis (Doneda et al., 2003; Mesquita, 1991). Contudo, para o Ministério da Saúde, a redução de danos é reconhecida como estratégia de saúde pública a partir de 1994, tendo como meta a prevenção de DST/AIDS e de hepatites entre usuários de drogas injetáveis “[...] por meio de uma cooperação com o UNDCP – Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas, constituindo-se o primeiro projeto de redução de danos apoiado por este organismo internacional” (Brasil, 2003, p. 36). O Conselho Federal de Entorpecentes – Confen –, criado na década de 1980, também aprovou a redução de danos como estratégia de saúde pública, mobilizado por dois principais fatores: 1) a epidemia da AIDS, que exigia respostas rápidas e eficazes, possibilitadas pela redução de danos; 2) o artigo 196 da Constituição Federal, cuja determinação é: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988). Entretanto, por entrar em conflito com as disposições da Lei 6.368/1976 (Brasil, 1976), vigente naquele período e posteriormente revogada pela Lei 11.343/2006, a redução de danos enfrentou e enfrenta resistências, sendo vista por alguns segmentos, dentre eles, a Igreja Católica e a Polícia Federal, como incitação ao uso de drogas ilícitas e, consequentemente, crime (Machado & Miranda, 2007, p. 809). Por um lado, esse conflito traz à lume o debate entre saúde e segurança pública, não solucionado até o presente momento; por outro, é preciso argumentar que os fundamentos da redução de danos não incluem a legalização de drogas, uma vez que focam na saúde e na minimização dos danos decorrentes do uso, abuso ou dependência de drogas. Somente na última década, no ano de 2001 com a aprovação da Lei Federal 10.216 (Brasil, 2001a), que legitimou o movimento da Reforma Psiquiátrica na área da saúde mental, é que os usuários de drogas foram efetivamente incorporados como responsabilidade da saúde pública e, mais especificamente, da saúde mental. Essa lei reconhece os direitos e a proteção dos portadores de transtorno mental, seu direito ao tratamento e reinserção social, priorizando a rede extra-hospitalar de cuidados. Com a vigência dessa lei, as políticas sobre drogas passaram a priorizar a rede de cuidados extra-hospitalares, como os Centro de Atenção Psicossociais álcool e drogas – CAPSad – além de ressaltar os direitos à saúde e proteção do usuário e dependente de álcool e outras drogas. Contudo, nesse mesmo ano de grande importância para a atenção em saúde mental no Brasil, com a realização da III Conferência de Saúde Mental e a publicação da Lei 10.216/2001, ocorreu paralelamente o 2º Fórum Nacional Antidrogas, o que possivelmente propagou a dificuldade de articulação das duas áreas, saúde e segurança pública, que se arrasta ao longo de décadas no que se refere à problemática das drogas, principalmente as ilícitas (Machado & Miranda, 2007). Ainda em 2001, é aprovada a Política Nacional Antidrogas – PNAD – que paralelamente leva o “antidrogas” em sua denominação e apóia a criação e implementação de estratégias de redução de danos para o 105 indivíduo, grupo social ou comunidade, com enfoque na prevenção das doenças infecciosas, ou seja, medidas restritas à prevenção de doenças, e na formação de redutores de danos47 (Brasil, 2001b). Em meio a essas contradições, a aprovação da Lei nº 10.216/2001 ainda implicou na criação e reestruturação de outras políticas da saúde, como foi o caso da Política Nacional para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, de 2003 (Brasil, 2003). Nessa Política e em outras que foram elaboradas posteriormente, a estratégia da redução de danos se alinha aos pressupostos do respeito aos direitos do usuário, universalidade do acesso à assistência e descentralização do atendimento. Para Machado & Miranda (2007), a Política de 2003 foi central para a superação de concepções moralistas que se propagavam nas Políticas Nacionais. Nesse ponto, chegou-se a um impasse, a uma necessidade de adotar um posicionamento político-ideológico nas políticas sobre drogas: entre as políticas antidrogas ou aquelas regidas pelo princípio da redução de danos, a segunda vertente foi predominante, defendendo a assunção da saúde pública sobre os usuários de álcool e outras drogas. Como conseqüência, a denominação da PNAD foi modificada no ano de 2005, juntamente com outras disposições da Política, atualmente balizadora das ações no âmbito da prevenção, tratamento, reinserção social e repressão ao tráfico, denominada agora Política Nacional sobre Drogas e regida, teoricamente, pelo princípio da redução de danos (Brasil, 2005). Essa mudança simbólica representou o desejo de reverter o foco da PNAD, que trazia como bandeira a “guerra às drogas”, e no intuito de resgatar o usuário nessa discussão (Garcia; Leal & Abreu, 2008). Nos anos que se seguiram da alteração da Política Nacional sobre Drogas, até o presente momento, a redução de danos conquistou espaço no âmbito das políticas públicas no país: foi contemplada no Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde – PEAD48 –(Brasil, 2009), como meta e estratégia a ser seguida; bem como no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack (Brasil, 2010). Ainda que a estratégia de redução de danos não esteja prevista diretamente no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack, aparece subentendida no rol dessas estratégias e nas experiências bem-sucedidas tomadas como referência para as ações do Plano. A ampliação desse território de ação refletiu a falência do discurso proibicionista inspirado no modelo norte americano, que não vinha demonstrando eficácia na saúde pública. Além disso, como apontam Doneda et al. (2003), as políticas proibicionistas resultaram em onerosos custos sociais e econômicos para o país. Entretanto, alguns desafios se apresentam atualmente no campo da redução de danos, desde a delimitação de seu campo de ação, questionando-se em cada contexto: qual dano pretende-se reduzir? Qual é a demanda da população e qual a relação que ela estabelece com a droga? Como reduzir os danos sociais decorrentes do uso da droga? Para dar continuidade à construção da história da redução de danos no país, é preciso colocar em pauta tais desafios, incluindo no rol das discussões o álcool como problema de saúde pública, no caso das drogas lícitas, e o crack, no caso das ilícitas, entre outras. A partir da configuração atual do cenário das drogas no país, urge pensar e construir outras estratégias de redução de danos, que contemplem a especificidade de cada droga. Afinal, o contexto em que surgiu a redução de danos no Brasil, por meio dos programas de troca de seringas, já não é mais predominante, uma vez que as 47Redutores de danos são profissionais da saúde reconhecidos pela Política Nacional Sobre Drogas de 2005, que trabalham na perspectiva da redução de danos com usuários de droga. Em 1997, os redutores de danos do Brasil fundaram a Associação Brasileira de Redutores de Danos – ABORDA –, com o intuito de instituir a redução de danos como política pública e melhorar a capacitação, as condições de trabalho e vida desses profissionais. A Associação já se difundiu pelos Estados brasileiros, assumindo um papel ativo na luta pelos direitos do usuário de drogas. (disponível em: http://www.abordabrasil.org/). 48O PEAD consistiu num Plano com metas precisas, a serem cumpridas no intervalo de um ano (2009-2010), dirigidas aos 100 municípios listados como prioridade, dentre os quais estão desde grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Brasília, até Maringá, Foz do Iguaçu, Blumenau e Gravataí, entre outros, devido à fragilidade na assistência ao dependente químico e à magnitude do problema das drogas nos mesmos. O Plano teve como principal objetivo a ampliação do acesso ao tratamento e prevenção no SUS em álcool e outras drogas, por meio da diversificação das ações. 106 drogas injetáveis deram espaço a uma gama de outras drogas usadas de diferentes formas, que demandam, portanto, novas estratégias e adequação da redução de danos a essa outra realidade social. Conclusões Concluímos que o descompasso do surgimento das políticas públicas sobre drogas no campo da segurança e da saúde pública reflete o debate histórico sobre drogas no país, que oscilou entre os dois âmbitos, segurança e saúde, carregando sinais das políticas proibicionistas, pautadas no ideal de abstinência e “guerra às drogas”. Ainda que a redução de danos tenha conquistado um espaço na agenda pública a partir da década de 1990, sua implementação e compreensão ainda se apresentam incipientes, deparando-se atualmente com desafios que exigem ações para além do uso de drogas injetáveis e da prevenção de doenças infecciosas como a AIDS. Sendo assim, todo o debate atual decorrente da possível falta de clareza sobre a redução de danos indica que a superação dos entraves entre segurança e saúde só foi parcialmente efetivada no plano teórico, mas na prática essas duas esferas ainda restam ambíguas. Não se pode dizer que a saúde superou os entraves da segurança pública e da justiça na questão das drogas, uma vez que as experiências práticas ainda demonstram a falta de clareza sobre os âmbitos de intervenção de cada uma dessas áreas e a contradição entre as concepções sobre o fenômeno droga de ambos os lados. Além do que, a assunção dos problemas decorrentes do uso de drogas pela saúde mental fazendo uso da estratégia de redução de danos é polêmica e não aceita por todos os segmentos da sociedade. Referências As transformações das Políticas Públicas Brasileiras Sobre Álcool e Outras Drogas. (2009). Psicologia Ciência e Profissão – DIÁLOGOS, 6 (6), 11-13. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (2009). Vade Mecum RT. 4 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Brasil. Decreto-lei nº 891, de 25 de novembro de 1938. (1938). Aprova a Lei de Fiscalização de Entorpecentes. Recuperado em 14 outubro, 2010, de: http://www.planalto.gov.br/ccivil/DecretoLei/1937-1946/Del0891.htm. Brasil. Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. (1976). Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica. 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São Paulo: Hucitec. 108 O LOUCO E A CIDADE: UM OLHAR SOBRE O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO Lucas Henrique Braga - UFMG [email protected] Palavras-chave: acompanhamento terapêutico, cidade, loucura. Introdução Nos últimos anos o Brasil vem passando por um processo de mudanças políticas, sociais, culturais, administrativas e jurídicas que visam transformar a relação da sociedade para com o portador de sofrimento mental e cujos reflexos são bastante visíveis na atualidade. Em 2001 foi aprovada a Lei Paulo Delgado (Lei nº 10.216, de seis de abril de 2001), que propõe a extinção progressiva dos manicômios, sua substituição por serviços alternativos assistenciais e, além disso, regulamenta a internação psiquiátrica compulsória. Quase dez anos se passaram desde sua a aprovação, e muito já foi feito em benefício daqueles que passaram anos em situação de extremo abandono nos hospitais psiquiátricos. Entretanto, sempre serão pertinentes os questionamentos acerca dessas novas práticas, as quais pretendem romper com o conhecimento tradicional da psiquiatria clássica, mas se diferenciam desta apenas por uma forma de olhar que marca, define e traça caminhos: o olhar manicomial (Lobosque, 1997). É de capital importância, portanto, que atentemos para essa reinserção do portador de sofrimento mental na sociedade e no resgate de sua cidadania, pois por muito tempo lhe foi subtraída a possibilidade de inscrição no espaço da cidade e no mundo dos direitos (Birman, 1992) e, justamente por isso, ainda vemos sinais da dificuldade enfrentada pelas pessoas em conviver com a loucura. Muito já tem sido feito por parte dos profissionais direta e indiretamente envolvidos com o tema da reforma psiquiátrica. Entretanto, além da formulação de leis ou da elaboração de políticas de assistência social, é necessária uma avaliação e maior atuação na promoção de uma mudança da mentalidade da população, que historicamente vem excluindo a loucura do espaço de convivência em comunidade. Devemos pensar que não é sem dificuldades que um cidadão aceita o portador de sofrimento mental como seu vizinho ou como alguém que partilha do mesmo ambiente de convívio. Esta exclusão social da loucura teve como correlata a atuação do Estado durante um longo período da história, quando este instalava forçosamente os portadores de sofrimento mental nos confins do espaço urbano e a loucura era inserida nas nosologias do século XVIII. Caracterizada, então, como doença, cabiam às instituições, através do tratamento moral, a cura da insanidade mental e o resgate da racionalidade perdida do louco. Autorizou-se, com isso, a sua exclusão social e a destituição de seus demais direitos sociais, isto é, uma condição de cidadania plena (Birman, 1992). A sociedade se esquece dos loucos e estes se esquecem de como viver em sociedade. Foucault também teoriza sobre a estigmatização da loucura pela sociedade, dizendo que o “louco não pode ser louco para si mesmo, mas apenas aos olhos de um terceiro que, somente este, pode distinguir o exercício da razão pela própria razão” (Foucault, 1978, p. 186). A mudança proposta pela reforma psiquiátrica implica uma transformação nas relações de poder, no resgate da singularidade do doente mental e na reconstrução das bases objetivas de nossa realidade, redimensionando os dados subjetivos que a sustentam (Delgado, 1992). É preciso que haja uma disponibilidade da sociedade em acolher o doente mental, com seus delírios e alucinações, de volta ao espaço urbano. Uma das iniciativas nesse sentido é a prática do acompanhamento terapêutico, que teve início em princípios da década de 70 e vem ganhando cada vez mais espaço no tratamento do portador de sofrimento mental (Ribeiro, 2002). Na última década, tem-se observado uma maior conciliação teórica entre o campo social e o psíquico nessa prática, possibilitando, além das intervenções clínicas a que se propõe o acompanhante, também um trabalho no sentido da ressocialização do sujeito. É na prática do acompanhamento terapêutico o palco onde ainda se desvelam os cerceamentos e barreiras simbólicas 109 nas incursões dos usuários pela cidade, que acabam restringindo as saídas desses sujeitos a trajetos que são, em muitos casos, curtos e repetitivos, “circuitos fechados que não fazem rede nos fluxos da cidade, ou ainda fecham-se em grades privadas e mediações midiáticas, cerceando-se a um convívio que se resume aos personagens usuais de seus trajetos fechados: CAPS, casa, supermercado, casa.” (Fonseca, 2008). A cidade como palco da exclusão Frente a isso, seria importante que os pensadores e militantes da reforma voltassem seus olhares para as áreas metropolitanas, entendendo-as como palco para a manifestação de exclusão e interação entre as pessoas (Ferreira Neto, 2004). É cada vez maior a velocidade em que tais áreas se modificam no Brasil, e essas rápidas mudanças começam a ser observadas principalmente a partir da proclamação da República, quando passa a viger um discurso que prega a modernização e a moralização do espaço urbano a um só tempo, segundo uma utopia de civilidade (Fonseca, 2008). Cada detalhe das cidades passa a ser tratado com o rigor de uma ciência que objetiva impor certa regulação à vida de seus habitantes. Tais influências não deixam de chegar aos loucos, que, no início do século XX, freqüentavam os manicômios e, atualmente, são lançados de volta a lugares que foram, durante décadas, se constituindo segundo uma lógica particular de exclusão. Em Minas Gerais, particularmente, a República significou a estruturação de um arcabouço político-econômico e a modelação de um tipo de cidadania que se adequasse tanto às exigências da nova ordem econômica quanto às premissas do Estado. O contexto histórico da época era enormemente influenciado pelos ideais da republica francesa: modernização e urbanização. A própria cidade de Paris havia sido completamente reprojetada, pensando-se em um espaço que pudesse anteceder-se ao acolhimento dos futuros moradores e freqüentadores da sociedade moderna francesa. No contexto brasileiro observou-se que, ao assumir o poder uma determinada parcela da população, passou-se a pensar um novo regime que se propunha libertário, branco, fraternal, igualitário e, portanto, civilizado como a Europa, colocando-se contra a nacionalidade espontânea, mestiça e bárbara da população do Antigo Regime (Costa & Arguelhes, 2008). Dentre os diversos problemas de que assolavam as cidades da época, os de ordem sanitária preocupavam a elite e a República recém-nascida. Na passagem do século, a política higienista era a matriz ideológica vigente e adequava-se ao projeto político econômico e social subjacente à consolidação da república em todos os seus desdobramentos. Em Minas, a recém-instalada capital exibia um planejamento urbanístico e arquitetônico digno de novos tempos, eficiente no sepultamento de um insalubre arraial e, por isso, merecedor de uma população sintonizada com sua realidade (Henriques, 1997). Em finais do século XIX, crescia entre as camadas dominantes brasileiras uma grande preocupação com relação ao comportamento das classes operárias e ao aumento da mendicância e da dita “vadiagem”. A solução para tais problemas foi encontrada nas reformas urbanas, que, ancoradas em argumentos científicos e sancionadas pelos políticos da época, pretendiam reforçar uma política de controle social. Nesse contexto, Ouro Preto, capital da província de Minas Gerais, não conseguia exercer a centralidade nem a modernidade necessária que a fariam representante da identidade aspirada por seu povo. A efervescência sociopolítica do final do século XIX requeria ações e símbolos para que a nova organização política, idealizada na República, ganhasse legitimidade perante seus defensores. Esse contexto pode ser visto como um dos motivos que justificaram a construção de Belo Horizonte, a nova capital de um estado que havia alcançado expressiva participação econômica e que, tal como a República emergente, traria modernidade e progresso para Minas Gerais e para a sociedade como um todo (Costa & Arguelhes, 2008). Para a construção de Belo Horizonte, primeira cidade planejada do país, coloca-se em marcha uma lógica racional e simétrica de uma cidade planejada, evidenciando uma real intenção de ordenar, dividir, separar, agregar, estabelecer lugares e disposições aos seus habitantes, tentando manipulá-los 110 cotidianamente. O planejamento parece querer tirar de seus habitantes toda e qualquer possibilidade de escolha e de autodeterminação e dar lugar a uma cidade dominadora e autoritária. A planta inicial da cidade apresentada ao governo em 1895 foi desenhada pelo engenheiro politécnico Aarão Reis, que teve total liberdade na escolha de sua equipe, compondo-a essencialmente de mentes afeitas à racionalidade e ao positivismo republicano: Belo Horizonte tornava-se abrigo para os que quisessem mergulhar no ‘sonho da razão’. Sob a proteção da autoridade da ciência, Aarão Reis ia traçando seu projeto, exigindo atendimento às condições de higiene, àquilo que seria a comprovação de que pela razão científica se chegaria ao aperfeiçoamento social. (Bomeny, 1994, p.43). Como mencionado, os aspectos técnicos, amparados pela ciência positivista, prevaleciam sobre os ideais políticos da época. Apenas algumas diretrizes mais gerais do governo foram passadas à equipe de projetistas e a Lei nº 03, adicional à Constituição Estadual de 1891, concedeu a Aarão reis o direito e a autonomia de dar à cidade o formato técnico que desejava. A nova cidade foi concebida para ser ocupada por uma população total de 200 mil habitantes, sendo que essa ocupação aconteceria, na visão de Aarão Reis, do centro para a periferia. Desse modo, a infra-estrutura conseguiria acompanhar, gradativamente, a ocupação desejada pelo engenheiro, sem prejuízo da imagem imaculada da cidade. As ruas e as avenidas largas pensadas no projeto não foram projetadas para serem lugares de encontro, mas sim de tráfego. Na planta da nova cidade observam-se muito mais uma preocupação de destinar, a cada fração da população, o seu lugar: grandes avenidas, poucas praças, poucos lugares de encontro, uma avenida de contorno que isola a cidade, uma zona suburbana e, depois, a periferia. A área urbana da nova capital foi planejada com o objetivo de receber, principalmente, o aparato burocrático-administrativo do governo e os funcionários públicos, vindos de Ouro Preto. Por isso, sua infra-estrutura foi projetada de forma detalhada (sistema de abastecimento de água, de esgoto, de eletricidade e de telefone). Para o setor suburbano, previa-se a construção de quintas e casas de campo, segundo um padrão muito menos rigoroso de infra-estrutura, mas que, ainda assim, cedia uma parte delimitada da cidade para a ocupação dessa fração da sociedade. Na prática, a ocupação de Belo Horizonte contrariou a previsão de Aarão Reis, uma vez que se desenvolveu da periferia em direção ao centro e não de modo inverso. Sendo assim, observa-se, nos primeiros anos da capital, o centro dotado de infra-estrutura e despovoado, enquanto há um adensamento populacional na periferia, onde não haviam recursos planejados para tal crescimento demográfico. É a partir daí que as preocupações da elite mineira começam a se voltar para essas áreas, e a ação policial repressiva começa a se fazer presente em regiões determinadas. Alguns bairros da época, tais como Barroca, Favela, Leitão, Calafate, Barreiro e Lagoinha, eram vistos como lugares de prostituição e delinqüência, sendo, dessa forma, constantemente veiculados aos meios de comunicação que circulavam na capital. Os jornais, à época, eram o elo entre o Estado e a população alfabetizada, ou seja, aqueles que podiam votar e cujos interesses interessavam aos governantes. É interessante ressaltar, entretanto, que outros locais onde também havia incidência de prostituição e demais ilegalidades, não apareciam da mesma forma nos jornais, como é o caso do cine-teatro livre, instalado à Rua da Bahia, uma casa de shows para homens de alto poder aquisitivo e status político. Reflexo disso é a concentração da ação policial em prostíbulos de lugares como o Barreiro e sua ausência na região do cine-teatro. Jornais como o ‘Diário de Notícias’, circulante na época, protestavam contra a ineficácia da prefeitura de Belo Horizonte em limpar a cidade da “infestação de mendigos e degenerados”. A elite vê a sujeira, a mendicância e a doença como o avesso das promessas de bem-estar e acusa a ineficiência dos políticos, tornando-os alvo de vigilância e de avaliação. É a partir daí que se abre cada vez mais espaço para a insurgência dos microfascismos. O poder do Estado de versar sobre a vida das pessoas vai sendo diluído e inserido nas interações inerentes ao espaço público, e, a partir daí, são os próprios cidadãos que passam a ditar as regras de exclusão no cotidiano (Fonseca 2008). Desse modo, começam 111 a surgir medidas aparentemente humanitárias que determinavam confinamento de mendigos e o isolamento dos doentes, inclusive os doentes mentais. Bom concurso trariam a acção restauradora das nossas forças productoras em boa hora emprehendida pelos poderes públicos, os senhores da policia conseguissem a completa extincção da vadiagem em nossa terra. Mesmo na Capital, é contristador o espetáculo que presenciamos: as tavernas vivem locupletadas de parasitas que tantos serviços podiam prestar [...] e não seria esse cancro social que todos nos devemos temer. Guerra, pois, aos vadios [...]. (DIÁRIO DE NOTICIAS, 1907, p. 1). Os mineiros passam, portanto, a ser responsáveis pela manutenção do sucesso da cidade, sendo-lhes indesejado tudo aquilo que não pudesse fazer jus ao ideal de modernidade e higienização, pelo fato de agredir a ordem e a imagem públicas e não constar no plano original por trás da construção da capital. Por fim, ao analisarmos a elaboração e a construção da cidade de Belo Horizonte e o contexto atual da cidade percebemos que, apesar da existência de um projeto político de gerenciamento do espaço urbano, houve também uma reformulação do uso que se tem feito desse espaço. Os desenhos urbanísticos de Aarão Reis, impostos à população na virada do século passado, acabaram sendo reformulados e descaracterizados pelos habitantes da urbe, que vão lhes conferindo novos sentidos. Assim, os cidadãos excluídos pelo Plano da Cidade encontraram a saída para se integrarem a ela, já que a cidade somente existe em um espaço ocupado de vivências, experiências e relações de seus habitantes (Costa & Arguelhes, 2008). Atualmente, Belo Horizonte torna-se referência nacional da reforma psiquiátrica, sendo novamente vitrine do país no que diz respeito à implantação de uma política antimanicomial que pretende fechar hospitais psiquiátricos e implantar serviços substitutivos, devolvendo à cena pública os atores que, historicamente, sofreram e ainda sofrem intensamente os efeitos das políticas higienistas ocultas (ou nem tanto) detrás do plano de construção da capital mineira. O desfile do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, que ocorre na cidade desde 1997, representa uma das principais iniciativas nesse sentido, anunciando uma mudança de paradigma no trabalho com saúde mental. Através da participação social e desse momento festivo, o louco passa a ocupar o espaço urbano, outrora opressor, de modo a apropriar-se dele e apresentar-se para os demais atores. Refazendo caminhos no espaço público – História do AT O acompanhamento terapêutico surge no trabalho em saúde mental brasileiro por meio de movimentos como a antipsiquiatria, que questionavam o modelo psiquiátrico manicomial e propunham a sua reforma, iniciando uma prática voltada ao restabelecimento da saúde, através da instituição de um modelo não hierarquizado de comunicação entre pacientes e técnicos, o qual viria pôr em questão o saber e as práticas psiquiátricas vigentes. O AT, como ficou mais conhecido, advém dessa brecha, que abriu espaço a novas construções de tratamento, como é o caso, ainda, das comunidades terapêuticas e do hospital-dia. As instituições onde a função do AT teve início no Brasil foram, nomeadamente, a Clínica Pinel, em Porto Alegre, a partir de meados dos anos 60, e a Clínica Villa Pinheiros, no Rio de Janeiro, entre 1969 e 1976. Em Belo Horizonte, o AT teve seus primeiros sinais em meados da década de 1970, juntamente com a implantação das comunidades terapêuticas Centro Psicoterapêutico e Centro Terapêutico Santa Margarida. As diretrizes deste trabalho valorizavam a aproximação mais carismática entre os pacientes e a equipe técnica no cotidiano das instituições, de modo que fosse proposta aos internos uma postura mais autônoma de tomada de decisões. A indeterminação de uma formação específica para o acompanhante terapêutico e o caráter profissionalmente indefinido de sua função, que marcam a existência da prática até os dias de hoje, iam de encontro à proposta de um tratamento 112 mais igualitário aos pacientes, em favor do que haveria de terapêutico no conviver comunitário e democrático proposto pela antipsiquiatria. Entretanto, ainda se percebia a psiquiatria ditando o saber sobre a loucura, enquanto o AT (nesta época conhecido também como Auxiliar Psiquiátrico) respondia de um lugar difuso e pouco estabelecido, o que alimentava o jogo de poder dentro das instituições psiquiátricas. A partir da década de 1980, estudantes de medicina e, progressivamente, os de psicologia, começam a iniciar-se no AT como meio de aprendizagem de uma prática clínica, encontrando, ainda, um meio de remuneração. A psicanálise torna-se, nesse momento, uma ferramenta que guia o trabalho dos praticantes dessa técnica, o que, por vezes, acaba vinculando esse trabalho ao atendimento clínico nos consultórios dos psiquiatras e psicanalistas supervisores. Um segundo momento, na década de 1990, traz as oficinas terapêuticas, dispositivo usado nas instituições psiquiátricas públicas advindas da prática antimanicomial, quando foi então questionado o trabalho dos psicanalistas e dos acompanhantes terapêuticos que tinham como referência a ética psicanalítica, tida como alienada diante do pragmatismo social que ganhava força e ocupava o campo da clínica (Palombini, 2000). A atual política de saúde mental, instaurada em Belo Horizonte a partir de 1993, serve para regular o trabalho do AT na rede pública, condicionando a prática à condução do sujeito rumo aos serviços substitutivos ao manicômio (como é o caso do Programa de Desospitalização Psiquiátrica, implantado pela Prefeitura), buscando sua articulação com outros níveis de atenção em saúde e mesmo com outros campos das políticas públicas. A cidade, e não mais o asilo, é o espaço em que a experiência da loucura requer ser acompanhada. Conclusão Pensando no contraponto apresentado, entre a construção do município de Belo Horizonte e evolução da prática do Acompanhamento Terapêutico nas últimas décadas, é possível perceber na dinâmica da cidade moderna uma forte relação entre a construção idealizada da cidadania e a exclusão efetiva daqueles que não correspondem a ela. Daí serem correlatos esses dois processos, os quais devem ser mais bem estudados, visando à elaboração de novas estratégias de enfrentamento a qualquer tipo de discriminação da loucura. E mesmo o AT não está livre do risco de constituir a rua como um espaço segregado, devido a uma fixação da sociedade em uma espécie de olhar manicomial que nos acompanha para além dos muros do hospital. A partir das contribuições trazidas, pode-se pensar que o próprio processo de implantação da reforma psiquiátrica, progressivamente implantado em Belo Horizonte, pode ser colocado sob análise na prática do AT, colocando em xeque o funcionamento da rede e as formas como as comunidades locais, a começar pelas famílias, respondem à desinstitucionalização da loucura. A cidade vai sendo percebida e vivenciada na sua dimensão produtora de relações, conflitos e negociação, oposta à metrópole higienista do inicio do século, que impunha uniformidade e ordem, fazendo do outro objeto de exclusão. 113 Referências Bibliográficas Birman, J. A Cidadania Tresloucada, In: Amarante, P. e Bezerra Junior, B. (orgs.) (1992). Psiquiatria sem Hospício, Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará. p. 71-90. Botti, N. C. L.; Sangiovanni, A. G. (2008). Significados dos desfiles do dia nacional da luta antimanicomial em Belo Horizonte, 1998-2007. Revista Cogitare Enfermagem, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, v. 13, n. 1, Jan./Mar. p. 25-32. Costa, A. C. S.; Arguelhes, D. O. (2008). A higienização social através do planejamento urbano de Belo Horizonte nos primeiros anos do século XX. Univ. Hum., Brasília, v. 5, n. 1/2, jan./dez. p. 109137. Delgado, P. G. G. Perspectivas da psiquiatria pós-asilar no Brasil, In: Tundis, S. A.; Costa, N. do R. (org.) (1992). 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Acesso em: 04 julho 2011. 115 ANÁLISE INSTITUCIONAL EM UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO MINEIRO NOS ANOS 60 Marcela Alves de Abreu – Programa de Pós graduação em Psicologia Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – [email protected] Maria Stella Brandão Goulart – Programa de Pós graduação em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais Palavras-chave: Hospital Psiquiátrico, análise institucional, Setor de Psicologia Social O presente trabalho discute uma intervenção psicossociológica em Análise Institucional realizada em 1968, pelo Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no Hospital Galba Velloso (HGV), em Belo Horizonte, MG. Este hospital psiquiátrico começou a funcionar em 1962. Atendia mulheres carentes, pobres, na sua maioria ex-internas oriundas do Instituto Raul Soares, outra instituição psiquiátrica da capital mineira (Goulart, 2009, 2011). No ano de 1968, quando ocorreu a experiência de intervenção, o “Galba” como ficou conhecido, passou a integrar o quadro de hospitais associados a então criada Fundação de Educação e Assistência Psiquiátrica (FEAP): a primeira iniciativa do estado mineiro de melhorar a qualidade da sua assistência psiquiátrica. O psiquiatra Jorge Paprocki foi diretor do hospital desde o início do seu funcionamento até o final dos anos 60, período em que implantou paulatinamente um projeto terapêutico – psicológico e medicamentoso – e de pesquisa. Destaca-se a criação de atendimento ambulatorial e, justamente em 1968, a estruturação da primeira residência em Psiquiatria de Minas Gerais. Isso se deu no contexto de experimentação de sistema de “open door” e de constituição de uma “comunidade terapêutica” que dialogava com uma postura não tradicionalista: Pretendia-se que os pacientes tivessem a possibilidade de circular livremente no hospital e que seu cotidiano pudesse ser mais ativo e menos restritivo. Havia a perspectiva de trabalho no modelo de “Comunidade Terapêutica”. Foram abolidos, nesta gestão, dispositivos como celas fortes, grades e outras estruturas repressivas que tem caráter carcerário. Estas iniciativas foram fortalecidas pelo intercâmbio com a recém inaugurada Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Belo Horizonte), através do então professor Célio Garcia e do Setor de Psicologia Social. (Goulart, 2009, p. 71) Já em 1963, o Hospital Galba Velloso constituiu um “Departamento de Psicologia”, reconhecendo a participação desses profissionais no âmbito da assistência psiquiátrica apenas um ano após a sua regulamentação dessa profissão. (Goulart, 2011, p. 246). O diálogo com a área de Psicologia Social, que é objeto de discussão neste artigo que apresentamos, aponta para a relação, já em 1964, com o grupo do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais - criado por Célio Garcia – que ensaiava trabalhos na área de intervenção psicossociológica em várias instituições, como o Hospital Galba Velloso. Os trabalhos realizados nessa instituição psiquiátrica se caracterizavam por um viés critico ao modelo psiquiátrico tradicional. A antipsiquiatria era entendida por Garcia (1973) como, uma forma de contestação da “concepção conservadora que fundamenta a criação de instituições alienantes, abalando assim os fundamentos sobre os quais repousa a prática médica e o poder médico” (Garcia, Luz, Katz, & Lapassade, 1973, p. 15). O grupo do chamado “Setor de Social” da UFMG, além de desenvolver várias atividades vinculadas ao Hospital Galba Velloso, também tinha a preocupação com a formação crítica de seus alunos em relação à atuação do psicólogo em instituições, principalmente a partir da perspectiva interdisciplinar dos franceses que contribuíram com trabalhos na temática da intervenção psicossociológica e experiências realizadas também em hospitais psiquiátricos, escolas e outras 116 organizações. Garcia (1973) ao trazer uma crítica ao modelo psiquiátrico da época, afirma a partir de Laing e Cooper que a loucura não é algo do indivíduo e sim um rótulo imposto pelo outro e conclui: Nada nos autoriza a dizer que a doença mental seja um insulto à liberdade, como pretendem os psiquiatras liberais e liberalizantes; ela é a fiel companheira do homem, ela segue e acompanha os movimentos do homem. O ser humano não pode ser compreendido sem a doença mental, sem a loucura. (Não é a Psicologia que detém a verdade sobre a loucura, e sim o contrário). (Garcia et al., 1973, p. 16) No ano de 1968, o Setor, a partir do convênio firmado com o Consulado francês, trouxe ao Brasil grandes nomes como André Levy e Max Pagés, que contribuíram teoricamente para o aprendizado sobre intervenção psicossociológica e sua aplicabilidade prática em instituições. Professores do Setor de Psicologia Social da UFMG traduziram diversos textos de teóricos franceses que ainda não eram divulgados no Brasil, destacando-se duas experiências em hospitais psiquiátricos descritos por André Levy: “Levy, A. (1963). Une intervention psychologique dans un service d'hospital psychiatrique [Intervenção psicologica em um Serviço de Hospital Psiquiátrico]. Sociologie du Travail 2”; Levy, A. (1969). Paradoxos de la liberté dans un Hôpital Psychiatrique. [Paradoxos da liberdade num Hospital Psiquiátrico]. Paris: Editions de L'Épi”. Assim, podemos identificar que o Setor da UFMG não desenvolveu uma atividade isolada em um hospital psiquiátrico, mas já realizava a crítica ao modelo psiquiátrico como um todo, sendo recorrente a preocupação em pensar novos formatos de atendimento aos pacientes tanto nos estudos como em práticas desenvolvidos pelo grupo. A intervenção psicossociológica no Hospital Galba Velloso retratou esta perspectiva crítica, sintonizada com a busca, na parceria com o Setor de Social da UFMG, de uma visão diferenciada e humanizada no tratamento do paciente. A partir desta visão, sob a coordenação de Célio Garcia, foi realizado um trabalho a “Reunião comunitária de hospitais”. A reunião se deu com a participação dos médicos, residentes, funcionários e a direção do hospital, visando a troca de papéis entre esses profissionais. Segundo Garcia (1973), durante a atividade utilizava-se “estratégia que procurava equilibrar participação dos médicos, pessoal funcionário administrativo e demais componentes da equipe psiquiátrica, e burocracia, isto é, estabelecimentos de regulamentos, redação de ofícios, decisões do diretor.” (Garcia et al., 1973, p. 14) [grifo do autor] Ao definir as etapas de institucionalização, Garcia (197[?]) conclui que tanto em sua primeira fase, a seriação, onde o grupo ainda não está formalizado, como na etapa final, momento que o grupo já está formado e possui uma rotina estabelecida, são equivalentes. Portanto, o objetivo que a análise institucional se propõe é de intervenção, “em qualquer uma das etapas em que se encontra o processo [de institucionalização], a fim de que a criatividade seja restituída através de um dispositivo analítico que dê conta da etapa em que se encontra o processo”. (p. 183). Na intervenção ocorrida no “Galba” o que se observou é que todos os participantes, tanto psicólogos, psiquiatras, direção do hospital, funcionários, analistas, compartilhavam uma angustia com relação à perda de sentido da instituição, assim, o trabalho tinha como objetivo atingir os 3 níveis de análise: grupo, organização, instituição. Visava o balanceamento entre a participação e burocracia, podendo assim intervir na estrutura de poder do hospital e nas atitudes da equipe de profissionais e técnicos. Na tentativa de se atingir esses propósitos (e para que fosse realizada uma Análise Institucional, à moda francesa), ocorreu uma “direção colegiada” das atividades, com assessores que fizessem articulação entre a diretoria e os funcionários, alem de reuniões com e sem a presença do diretor. (Garcia et al., 1973). Durante o trabalho de intervenção desenvolvido neste hospital, justamente no dia 1 de maio de 1968, num momento de agravamento das tensões sociais e políticas em todo o Brasil, foi promovida essa “Reunião comunitária de hospitais” que visava à troca de papéis entre os funcionários da instituição, no período de 24 horas. “(...) cada um dos médicos, cada um dos funcionários, cada um ocupou um papel diferente daquele de que se via incumbido habitualmente.” (Garcia et al., 1973, p. 16). Após a intervenção os seus organizadores analisaram a dinâmica institucional a partir de reuniões, observando até mesmo as justificativas feitas para utilização de alguns termos, comuns na 117 instituição, constatando uma defasagem entre o grupo jovem e o mais antigo. Observou-se uma alteração no hospital tanto em sua organização formal, como também modificações pontuais em atitudes de alguns funcionários. (Garcia, 1971, 197[?]). Hoje, já passado algum tempo, podemos perceber que se tratava de vencer algumas resistências (quando conduzíamos atividades de participação, tipo Grupo T) suscitadas pelas novas orientações que partiam da burocracia (renovação do quadro do hospital; os médicos antigos deixaram o hospital, enquanto os novos se instalaram, exigências de um maior rigor quanto à formação dos jovens estagiários, introdução dos outros especialistas entre o pessoal do hospital, tais como psicólogos, professores, praxiterapeutas). (Garcia, 1971, p. 444-445). Para Garcia (1971) “a análise institucional institui um campo para o discurso social, onde todos podem falar, onde tudo pode ser dito” (p. 146). Porém, verifica que apesar da proposta do trabalho ser a de favorecer a fala de todos, e mesmo contando com o apoio da instituição, a intervenção realizada neste hospital psiquiátrico não conseguiu superar todas as barreiras, e reproduz em seu artigo trechos de suas anotações e sentimentos vivenciados durante o processo. [Em] Comentário à margem, no meu diário de experiência [registrei]: “É uma pena que os doentes não tivessem sido incluídos, pois só então teríamos atingido o centro o centro da questão.” Tínhamos a impressão, na época, de estar revirando completamente o hospital, vasculhando inteiramente suas estruturas, sua rotina. Que todos sairiam daquela “Reunião Comunitária” com outra visão dos problemas, munidos de tolerância para com as imperfeições do sistema, dispostos a progredirem na aprendizagem no trato com a doença mental. Pois nada disso aconteceu. Ou pouco, muito pouco. De fato, alguma coisa deve ter acontecido. Pois o vácuo não perdura. Assim, a jovem equipe, objeto de trabalho de Análise Institucional na época, ocupa hoje postos de direção de hospitais, lugares de destaque nas associações científicas e profissionais, consultórios de clientela particular. (Garcia et al., 1973, p.16). Para Garcia (197[?]) esta experiência de intervenção que chamou de Análise Institucional (A. I.) possibilitou que o grupo verificasse a presença do discurso médico no hospital psiquiátrico e o discurso do normal-patológico nas teorias psicológicas. Podemos entender que apesar da visão vanguardista e todas as propostas de modificação do atendimento psiquiátrico, a instituição não pode ameaçar a sua própria existência. Seria talvez um risco para a sua manutenção possibilitar que o paciente tivesse voz, pudesse apontar suas queixas com relação ao seu atendimento. Os pacientes quando inseridos dentro da instituição psiquiátrica são excluídos e silenciados. Garcia (1973) afirma que as proibições sofridas pelos pacientes estão na ordem do poder e do desejo, já que, enquanto isolado nas instituições psiquiátricas, o sujeito está privado, isolado (Garcia et al., 1973). Assim, no final das atividades, os psicossociólogos não identificaram grandes alterações na dinâmica hospitalar, porém os jovens profissionais, que foram o objeto do trabalho, posteriormente, se destacaram, ocupando posições de militância na reforma psiquiátrica e direção de projetos alternativos, indicando, possivelmente, o impacto da intervenção. Houve um deslocamento da região onde se processava o conflito, mas os termos do conflito continuaram os mesmos. Antes do trabalho de Análise Institucional havia defasagem entre um grupo jovem e um grupo mais antigo. O antigo retirou-se, deixando lugar aos mais jovens. Os mais jovens passaram a viver conflitos que muito têm a ver com a parte censurada da Instituição e que jamais foi abordada. O processo de exclusão continuou sendo o procedimento por excelência, mesmo em se tratando da relação frente ao saber. Onde residiria o impasse dessa investigação que não é capaz de nos dar condições para nos apropriarmos do saber, do conhecimento como meio de ultrapassar as contradições? (Garcia et al., 1973, p. 16). Note-se que, em 1970, dois anos após a intervenção, o Setor realizou um estudo sobre o I Congresso Mineiro de Psiquiatria, que ocorreu na cidade de Araxá, MG. (Garcia et al., 1973). Assim, evidenciam-se desdobramentos da experiência realizada no “Galba”. Durante o evento, registrou-se uma reduzida aceitação entre os psiquiatras, com relação ao modelo de Comunidade Terapêutica, que 118 era o tema do evento. Em dinâmica proposta durante o congresso, constatou-se a resistência dos psiquiatras frente a este novo modelo de atendimento. Ainda se estava muito distante da efetivação de uma mudança no discurso e nas práticas desses profissionais. O texto intitulado “Crítica do Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais”, escrito na seqüência dos acontecimentos, pelo psiquiatra Francisco Paes Barreto (psiquiatra do grupo jovem do “Galba”) e Célio Garcia, aponta para a preocupação, que os autores compartilhavam na época, de não conseguirem promover uma efetiva modificação do espaço, das práticas e dos discursos nas instituições psiquiátricas. É muito comum o fato de certas instituições serem criadas para superar determinadas necessidades, e aos poucos, tomarem a si próprias como um fim. A partir deste ponto, desvirtuam suas finalidades originais: ao invés de ajudar a comunidade a superar suas necessidades, agem no sentido de perpetuá-las. Há, deste modo, um esclerosamento destas instituições, que não mais se constituem em fator de solução, mas em fator de preservação das exigências em função das quais foram criadas. Estariam nossas instituições psiquiátricas incluídas nesta perspectiva? Acreditamos que sim. (...) (Garcia et al., 1973, p. 59) Como o passado pode ensinar o presente e nos alertar para os caminhos trilhados para o futuro? Podemos refletir sobre o risco que as atuais práticas de saúde mental correm, de se perderem na sua própria ideologia, mantendo assim as mesmas práticas e o mesmo formato silenciador dos usuários e fortalecendo o discurso do detentor do poder - seja ele qual for. Referências bibliográficas: Garcia, C. (197[?]). Instituições e ciências humanas. Separata 66, XIX (1966 a 1972). KRITERION Revista de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, pp. 158-184. Garcia, C. (1971). Análise institucional. Separata Revista Ciência e Cultura, 24, pp. 141-147. Garcia, C.; LUZ, M. A.; KATZ, C. S.; LAPASSADE, G. (1973). Análise institucional: teoria e prática. Revista de Cultura Vozes, LXVII, 4. Goulart, M. S. B. Hospital Galba Velloso e as vicissitudes da História da Reforma Psiquiátrica mineira nos anos 60. Relatório final da pesquisa não-publicado. FAPEMIG/PUC Minas/Hospital Galba Velloso, Belo Horizonte, 2009. Goulart, M. S. B. (2011). Hospital Galba Velloso (HGV) In A. M. Jacó-Vilela (Org.), Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil (pp. 245-246). Rio de Janeiro: Imago. 119 A TRAJETÓRIA DO SERVIÇO MUNICIPAL DE SAÚDE MENTAL DE MARINGÁ-PARANÁ Maria Teresa Claro Gonzaga – Universidade Estadual de Maringá[email protected] Silvio Yasui – Universidade Estadual Paulista – UNESP Ana Carolina Jacinto Alarcão – Universidade Estadual de Maringá - UEM Marcela Battilani Belo – Universidade Estadual de Maringá - UEM Palavras Chave: Saúde Mental; Reforma Psiquiátrica; Desinstitucionalização. Muitas são as ações desenvolvidas com o objetivo de humanizar e potencializar a assistência às pessoas com sofrimento psíquico. Conhecer e analisar tais práticas no que concerne à abrangência, resultados e limites são de extrema importância para traçar um quadro geral das características dessas políticas públicas tão recentemente desenvolvidas no Brasil. A Reforma Psiquiátrica é um movimento político-social que surgiu em reação ao tratamento desumano dispensado às pessoas com sofrimento psíquico nas instituições psiquiátricas de todo o mundo. No Brasil, sua origem data do fim da década de 70, momento importante de redemocratização do país e a consequente reorganização e participação social. Amarante (1995) define a reforma como “(...) um processo histórico de reformulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria (p. 87).” Porém, a reforma psiquiátrica mais que uma reação frente a um modelo assistencial clássico-psiquiátrico, é um movimento que implica não somente o questionamento do saber e do fazer técnico, mas envolve a discussão de aspectos clínicos, políticos, sociais, culturais e jurídicos, o que exige um envolvimento de toda sociedade num trabalho de desconstrução da representação da loucura que possibilite o resgate da cidadania da pessoa com sofrimento psíquico (Tenório, 2002). E, mais do que resgatar a cidadania, a reforma deve garantir a emancipação pessoal, social e cultural dessas pessoas e para isso precisa viabilizar e estimular em todos os ambientes sociais um olhar mais complexo e humano para o diferente, destituindo-lhe do enquadre aos padrões igualitários e de normalidade tão apregoados socialmente (Alverga e Dimenstein, 2006). Com o Movimento da Reforma Psiquiátrica, muda-se a ênfase: da atenção aos hospitais psiquiátricos repressivos e regressivos para uma atenção mais aberta e flexível na comunidade. Porém, sabe-se que somente o fechamento dos hospitais psiquiátricos sem a implantação de uma sólida rede psicossocial de atendimento à saúde mental é um perigoso processo. Tem-se lutado muito para que indivíduos com transtornos mentais consigam, além do tratamento e apoio para superar tal sofrimento fora dos hospitais em convívio com a comunidade, a conscientização da população para que ultrapassem as fronteiras da estigmatização e exclusão, enxergando-os como cidadãos, exercendo um papel na sociedade. Pretende-se, acima de tudo, mostrar a desinstituicionalização como “[...] um processo ético de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos”. (Amarante, 1995) Em 1978, é criado no Brasil o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, 120 fruto da crítica do tratamento dispensado aos internos, das péssimas condições de trabalho, e do caráter privatista das instituições de saúde no país. Somam-se a isso as denúncias de fraude na administração do dinheiro público destinado a essas instituições privadas e “Combinando reivindicações trabalhistas e um discurso humanitário, o MTSM alcançou grande repercussão e, nos anos seguintes, liderou os acontecimentos que fizeram avançar a luta até seu caráter definitivamente antimanicomial (Tenório, 2002, p.32). Será contra essa realidade que o movimento se organiza e, muito embora tenha sofrido influências de vários modelos teórico-práticos desenvolvidos na Europa, como as comunidades terapêuticas inglesas, a psicoterapia institucional e psiquiatria de setor francesa e a psiquiatria preventista americana, será a antipsiquiatria e a desinstitucionalização na tradição basagliana suas maiores fontes de inspiração. Tais referências foram adotadas por questionarem a percepção biologicista da gênese dos transtornos psíquicos, relacionando-os com determinantes sociais e econômicos bem como por conceberem a desinstitucionalização como um processo de desconstrução dos saberes prático-teóricoculturais até então empregados para perceber e entender a loucura (Amarante, 1995). Porém, será a tradição basagliana e a psiquiatria democrática italiana, que se iniciam na década de 60 no manicômio de Gorizia, a maior fonte de inspirações teóricas e práticas do cuidar em liberdade. Segundo Amarante (1995), “A experiência de Gorizia revela o nexo psiquiatria/controle social/exclusão e, portanto, a conexão intrínseca entre os interesses político-sociais mais amplos e a instituição da ciência psiquiatria (p. 47).” Esse modelo tem como principal objetivo romper com o paradigma da ciência positivista “problema-solução” e, no caso da saúde mental, “doença-cura”. Nesse sentido, torna-se mais importante acolher o sofrimento e cuidar, não mais da doença, mas sim da pessoa que sofre. Ao considerar a experiência de sofrimento e sua relação com o contexto social, entende-se que o cuidado não pode ser oferecido retirando o sujeito desse ambiente, destituindo-lhe de seus direitos sociais, mas sim instrumentalizando-o para lidar com a experiência de loucura e a sociedade para tolerá-la e acolhêlá. Contudo, mesmo com tal referencial teórico, os avanços obtidos com a organização e luta do MTSM, nos anos que se seguiram à sua criação, se restringiram as ações de reforma e publicização do modelo asilar. Porém, a temática estava posta e avanços nas discussões e críticas permitiram que mais pessoas se envolvessem no processo, reformulações da legislação fossem discutidos e ainda, que bons resultados fossem alcançados com a implantação de serviços substitutivos aos manicômios. (op. cit.). Esses acontecimentos levaram à realização, no ano de 1987, da I Conferência Nacional de Saúde Mental e do II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, ambos com ampla e inédita participação de familiares e usuários dos serviços, que a partir daí passou a ser uma constante. Com o lema: “Por uma sociedade sem manicômios” os resultados da I Conferência apontam para uma mudança no modelo assistencial. (op. cit.) Consequência dessa mobilização tem-se, ainda, a elaboração pelo deputado Paulo Delgado (PT-MG) do projeto de lei 3.657/89. E segundo Tenório (2002), O projeto era simples, com apenas três artigos de conteúdo: o primeiro impedia a construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; o segundo previa o direcionamento dos recursos públicos para a criação de “recursos não-manicomiais de atendimento”; e o terceiro obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, que deveria então emitir parecer sobre legalidade da internação. (p. 36). Porém, esse projeto não foi aprovado pelo Senado, mas levou a uma ampla discussão do assunto pela sociedade sendo, no ano de 2001, aprovada a lei nacional de Saúde Mental 10.216, mais modesta que esse projeto, mas, ainda assim, progressista. Contudo, antes mesmo da aprovação dessa 121 lei, outros dispositivos legais foram empregados para dar respaldo legal à reforma psiquiátrica, como por exemplo, as portarias 189/91 e 224/92 que regulamentaram e indicaram como unidade fundamental da rede de saúde mental os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial) e as portarias 106 e 1.220, ambas de 2000, que regulamentaram um novo serviço substitutivo, a saber, a Residência Terapêutica, destinada ao acolhimento dos usuários, que por estarem há muito tempo hospitalizados, perderam os vínculos sociais e familiares. (op. cit.) Em 1992, foi realizada II Conferência Nacional de Saúde Mental, marco na participação de familiares e usuários dos serviços, sendo seu relatório final adotado como referência da política oficial. Tal relatório teve como diretrizes principais: a atenção integral e a cidadania do portador de transtorno mental. (op. cit.) Já em 2001, após a aprovação da lei 10.216/2001, foi realizada a III Conferência Nacional de Saúde Mental, precedida por várias conferências municipais, estaduais e regionais. Nessa Conferência, além das discussões dos temas já abordados até aqui, tem ênfase o reconhecimento do trabalho enquanto forma de reinserção social. A Reforma Psiquiátrica Brasileiro não ocorreu de forma linear e sem conflitos, muitos foram os atores que determinaram os rumos e os resultados alcançados. Dentre eles, destaca-se: o MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, que contribuiu para a crítica, discussão e proposição de práticas alternativas, embora em vários momentos tenha sucumbido ao poder institucionalizante dos órgãos estatais de saúde; o setor privado de saúde representado, principalmente, pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) que resistiu e, ainda, resiste à substituição dos hospitais psiquiátricos como recurso de atendimento e, em função de seu poder, influenciou diretamente na elaboração e aprovação da lei 10.216/01 que não prescreve o fim desses estabelecimentos; a indústria farmacêutica, que por meio de seu poder econômico e financiador, aliciaram e aliciam médicos e técnicos de serviços de saúde mental para vislumbrarem na medicação a única forma de tratamento eficaz; e, por fim, as associações de usuários e familiares, que muitas vezes serviram aos setores antirreformistas ao defenderem a manutenção dos manicômios como instituições de tratamento (associações de familiares), mas que ao se envolverem na luta o desenvolvimento do processo de reforma foram importantes agentes transformadores e críticos (Amarante, 1995). Muitos foram às discussões em que estiveram presentes no embate entre esses segmentos e seus respectivos interesses. E, muito embora, a Reforma Psiquiátrica esteja longe de sua ideal implementação, o Movimento em saúde mental no Brasil é o principal ator responsável pelas reformas desenvolvidas e, mesmo em face de seus momentos ora utópicos, ora revolucionários, ora pragmáticos e normativos, contribuiu e contribui para a modernização, ao menos, das instituições e entidades assistenciais (Amarante, 1996). Nesta realidade que o movimento se organiza e, muito embora tenha sofrido influências de vários modelos teórico-práticos desenvolvidos na Europa, como as comunidades terapêuticas inglesas, a psicoterapia institucional e psiquiatria de setor francesa, e a psiquiatria preventista americana, será a antipsiquiatria e a desinstitucionalização na tradição basagliana suas maiores fontes de inspiração (Tenório, 2002). A proposta de desinstitucionalização mostra uma preocupação na forma de cuidar do doente mental, um cuidar que vai além dos muros do hospital, busca um profissional que não esteja só preocupado com as questões específicas da hospitalização, higienização, administração de remédios, atividades ocupacionais. Trata-se da desconstrução de um aparato manicomial interno e da maneira de pensar e agir em relação ao doente mental. É um processo de revisão dos saberes e práticas psiquiátricas até então utilizadas, que segundo se entende favorece a exclusão social dos doentes mentais. Como afirmam Alverga e Dimenstein (2006), os desafios para a desinstitucionalização da loucura requisitam uma complexidade de fatores administrativos, financeiros, organizacionais, técnicos, afetivos e subjetivos, enfim uma gama de questões que estão articuladas com a produção de formas de vida em sociedade. Sabe-se que todo esse processo de desinstitucionalização muda de forma significativa, os 122 rumos da saúde mental e de seus paradigmas, e que entendemos ser necessário o conhecimento e a evolução desse processo no Brasil, principalmente, conhecer o que os técnicos da área de saúde mental, sabem a respeito e se acreditam na efetiva ação desses propósitos nas ações diárias. Para que a reforma psiquiátrica ocorra, torna-se fundamental a participação dos profissionais. A ênfase no trabalho em equipe, multiprofissional e interdisciplinar surge como um espaço a ser construído para a efetivação de um modelo de assistência orientado para a melhoria da qualidade da atenção à saúde, a garantia de acessibilidade aos serviços e a maior resolubilidade das ações de saúde (Costa, 1996). Dentro dessa perspectiva, esta pesquisa tem como objetivo descrever a trajetória do Serviço de Saúde Mental no município de Maringá-Paraná com destaque para o processo de delineamento progressivo da política de saúde mental alinhada com os princípios da Reforma Psiquiátrica e do marco legal. Para isso o método utilizado foi a análise de dados obtidos através da 15ª Regional de Saúde e Secretaria Municipal de Saúde de Maringá, e o levantamento bibliográfico. A presente pesquisa indicou, que no início da década de 90, as práticas de Saúde Mental em Maringá ocorriam de forma fragmentada, e com o passar do tempo, outras formas de atendimento foram sendo incrementadas contando atualmente com uma estrutura composta por 25 Unidades Básicas de Saúde- UBS todas ofertando atendimento psicológico; 07 equipes de Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF, sendo que cada equipe conta com 01 psicólogo para o desenvolvimento das ações em saúde mental; 01 Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II; 01 Centro de Atenção Psicossocial AD II - Álcool e Drogas; 01 Ambulatório de Saúde Mental denominado Centro Integrado de Saúde Mental de Maringá – CISAM; 01 Serviço de Emergência Psiquiátrico em Hospital Geral, com 26 leitos (referência para 67 municípios) e 02 Serviços Residenciais Terapêuticos, os quais retratam uma maior complexidade na organização de Saúde Mental. A articulação em rede dos variados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico é crucial para a constituição de um conjunto concreto de referências capazes de acolher a pessoa em sofrimento mental. Esta rede é maior, no entanto, do que o conjunto dos serviços de saúde mental do município. É portanto fundamento para a construção desta rede a presença de um movimento permanente, direcionado para os outros espaços da cidade, em busca da emancipação das pessoas com transtornos mentais É a articulação em rede de diversos equipamentos da cidade, e não apenas de equipamentos de saúde, que pode garantir resolutividade, promoção da autonomia e da cidadania das pessoas com transtornos mentais (Brasil, 2005). A análise dos dados sobre a trajetória histórica da saúde mental em Maringá revelou que a reforma trouxe para a prática a reorganização da saúde que esta em um processo que se reflete em um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais. Verificou-se ainda que, mais que uma reação frente a um modelo assistencial clássicopsiquiátrico, a reestruturação do Serviço de Saúde Mental em Maringá é um movimento que implica não somente no questionamento do fazer técnico, mas do saber que envolve a discussão de aspectos clínicos, sociais, culturais, o que exige um processo de desconstrução da representação da loucura que possibilite o resgate da cidadania da pessoa com sofrimento psíquico. Pois, mais do que resgatar a cidadania, a reforma deve garantir a emancipação pessoal, social e cultural desses indivíduos e para isso precisa viabilizar e estimular em todos os ambientes sociais um olhar mais complexo e humano para o diferente, destituindo-lhe do enquadre aos padrões igualitários e de normalidade tão apregoados socialmente (Alverga e Dimenstein, 2006). Um dos principais desafios contatado para o processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica é a formação de recursos humanos capazes de superar o paradigma da tutela do louco, assim o processo da reforma psiquiátrica exige cada vez mais a formação técnica e teórica dos trabalhadores, muitas vezes desmotivados (Brasil, 21005). Assim para a efetivação da Reforma Psiquiátria é importante que os atores institucionais sejam incluídos e se façam incluir como sujeitos ativos no processo de reflexão e de construção de uma atenção à saúde renovada, por meio da exploração das possibilidades e potencialidades dos atores 123 envolvidos, técnicos de saúde, usuários e familiares na sua capacidade de autogestão. É recomendável que as estratégias de mudança do paradigma psicossocial, comprometidas com os princípios do SUS, sejam recolocadas por meio do debate das idéias conceituais entre todos os atores (Lima, 2004). Entender o processo de desinstitucionalização não é uma tarefa difícil mas, acreditar na possibilidade prática desse processo e se despojar de conceitos e preconceitos que nos foram passados tanto por processos de vida como por teoria, eis aí a dificuldade! Contudo, tal complexidade não deve nos imobilizar diante dos desafios e sim nos fazer refletir quanto ao papel de cada um de nós na ruptura radical com modelos, muitas vezes, naturalizados de lidar com a diferença. Nesse sentido, identificar as barreiras colocadas aos serviços de saúde mental,sejam elas comportamentais, financeiras, sócio-culturais, entre outras, é uma oportunidade de enfrentá-las e, assim, de forma consciente e pró-ativa desenvolver práticas realmente transformadoras e emancipadoras. Referencias Bibliográficas: Alverga, A. R. de; Dimenstein, M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.10, n.20, p.299-316, jul./dez. 2006. Amarante, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. Brasil. Ministério da Saúde. Ministerio da Justiça. Reforma Psiquiátrica e Manicômios Judiciários: Relatório Final do Seminário Nacional para a Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Brasília, Ministério da Saúde, 2002. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental : 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005. Costa, M. P. Saúde mental e reabilitação psicossocial [tese de Doutorado em Medicina]. Ribeirão Preto (SP): Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 1996. 202f. Lima, M. Silva, G. B. A reforma psiquiátrica no Distrito Federal. Rev. bras. enferm., Brasília, v. 57, n. 5, Oct. 2004 . 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AS CONCEPÇÕES E PRÁTICAS NO HOSPITAL COLÔNIA DE BARBACENA (1946 até os dias atuais)49 MARISTELA NASCIMENTO DUARTE Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); [email protected] Palavras-chave: Concepções e práticas da psiquiatria; campo psiquiátrico mineiro, Hospital Colônia de Barbacena Introdução Este estudo trata das concepções e práticas adotadas pelo Hospital Colônia de Barbacena (HCB), no período de 1946 até os dias atuais. As concepções e as práticas existentes no campo psiquiátrico mineiro são aqui analisadas para se tentar verificar se a não-incorporação de inovações de concepções e práticas psiquiátricas pelos médicos e/ou psiquiatras permitiu a heteronomia do campo psiquiátrico pela não-assimilação dos embates, dos conflitos e das estratégias inerentes ao campo, que pudessem provocar a reestruturação do saber e do poder no interior dessa instituição. Serão apresentadas as razões de o HCB ter se tornado primordialmente uma instituição manicomial com característica de “guardiã da sociedade”, buscando controlar todos aqueles atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores tidos como anormais, desviando-se do escopo de realizar o tratamento e cura dos pacientes, que passaram a morrer por outras causas, que não a doença mental. De maneira sucinta, faz-se referência às transformações ocorridas no HCB após a Reforma Psiquiátrica, em 1979, bem como a adoção do sistema de residências terapêuticas para os ex-internos dessa instituição. Método Inicialmente, foi realizado um levantamento das fontes documentais disponíveis nos arquivos do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB) e no Museu da Loucura, localizado nas dependências do CHPB, em Barbacena. Logo a seguir, buscaram-se, nos arquivos da instituição, alguns documentos relativos aos internos; por exemplo, os Livros de Entradas de Homens e Mulheres Loucos(as) e Indigentes, e os Livros de Entradas dos Pensionistas. Foram procurados, nas cartas, ofícios e sindicâncias, indícios que pudessem confirmar as denúncias sobre algumas práticas no HCB veiculadas pela imprensa, notadamente nos jornais Estado de Minas, Diário da Tarde e Cidade de Barbacena, na revista O Cruzeiro e pelo documentário “Em Nome da Razão”. Foram encontradas, nesses arquivos, fontes, ou seja, cartas, declarações e ofícios relativos, que comprovam a compra e venda de cadáveres. O material bibliográfico, as publicações de textos e de artigos encontradas em revistas científicas foram importantes para analisar o objeto deste estudo. 49 Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da FHEMIG. 126 Nas bibliotecas do Instituto Raul Soares e do Hospital Galba Velloso, ambos situados em Belo Horizonte, foram consultados materiais didáticos compostos por apostilas, textos e/ou artigos científicos, que professores e/ou residentes em Psiquiatria liam e utilizavam naquelas instituições. Esse material possibilitou a reconstrução das concepções e práticas veiculadas na Psiquiatria a partir de 1968, quando foi instalada a residência psiquiátrica no Hospital Galba Velloso. Também fizeram parte dessas fontes as Mensagens do Executivo ao Legislativo, Leis e Decretos-lei dos governos federal e estadual e estatutos e/ou regimentos elaborados pelo governo de Minas. Esses documentos forneceram subsídios importantes para o conhecimento e a análise das ações do poder público em relação às políticas de saúde coletiva e de saúde mental. Todas essas fontes serviram, ainda, para complementar as informações das entrevistas, e viceversa. A busca dessa documentação também implicou contatos pessoais com os entrevistados e com os poucos pesquisadores que pudessem sugerir vestígios sobre documentos e/ou pistas sobre pessoas e grupos que pudessem esclarecer as concepções e práticas psiquiátricas e o impacto das políticas de saúde mental do período que abrange este estudo. Foi um trabalho exaustivo, pois cada pista descoberta implicava a pesquisa de outras. A metodologia de história oral, portanto, possibilitou articular e recuperar “as experiências e os pontos de vista daqueles que normalmente permanecem invisíveis na documentação histórica convencional e de considerar estas fontes como evidência” (Lozano, 1987, p. 35). Isso permitiu o resgate do processo histórico, de modo a reconstituir o passado sob o olhar atualizado do presente. Na escolha dos entrevistados, foram priorizados aqueles atores sociais considerados significativos no campo psiquiátrico mineiro de acordo com a posição relacional ocupada nos postoschave do HCB e também nas fundações, possibilitando que tivessem maior visibilidade sobre as concepções e práticas empregadas naquele nosocômio. Trata-se, porém, de um discurso não-isento de juízos de valores, pois esses indivíduos geralmente eram, na época, os porta-vozes do Estado, uma vez que os cargos por eles ocupados passavam pela indicação de políticos para depois seus nomes serem homologados pelo governador. Por meio dessas entrevistas, foi possível reconstruir parte da história das concepções e práticas empregadas na Psiquiatria mineira, nos hospitais psiquiátricos públicos, especialmente no HCB. Para as entrevistas, foram selecionados psiquiatras, médicos e um atendente de enfermagem, que ocupavam lugar de destaque na instituição e nas fundações – Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica, Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica, ambas FEAPs, e Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, conhecida pela denominação de FHEMIG. Mediante a metodologia de história oral, buscou-se recuperar as concepções e práticas presentes no campo psiquiátrico mineiro, que influenciaram HCB no tratamento da doença mental. Optou-se pela utilização de perguntas abertas ou não-estruturadas, o que permite ao pesquisado ampla liberdade para discorrer sobre o tema. No roteiro da entrevista, constaram os seguintes temas: as concepções e práticas utilizadas no campo psiquiátrico mineiro e no Hospital Colônia de Barbacena; as políticas de saúde mental; a atuação dos médicos e/ou psiquiatras junto aos processos decisórios; as principais causas atribuídas à internação; os critérios de distribuição e remoção de pacientes para o HCB; a infraestrutura do hospital e as condições de internamento; o tratamento dispensado aos internos (indigentes, pensionistas e crianças); os recursos terapêuticos e as práticas de controle e contenção dos pacientes; o relacionamento entre médicos, funcionários e pacientes; a relação do corpo técnico com a administração hospitalar e com a administração estadual; e as reações da administração e do corpo médico frente às denúncias. Para minimizar os efeitos de possíveis desigualdades entre entrevistador e entrevistado e possibilitar maior interação social e, assim, “reduzir” ao máximo possível a possibilidade de a “violência simbólica” ser exercida na relação entrevistador e entrevistado, estabeleceu-se um acordo entre ambos na tentativa de minimizar as expectativas do pesquisado. Assim sendo, são importantes tanto a visão oficial que é contada quanto os segredos dos bastidores, bem como a relação entre um e outro. Nessa inter-relação, o pesquisador e os atores sociais, considerados como sujeitos-objeto da pesquisa, interagem e, portanto, interferem dinamicamente no conhecimento da realidade, mostrando, com isso, que ambos não estão isentos de juízos de valor sobre a própria realidade. 127 Num segundo momento, empregou-se o método de observação participante na tentativa de observar a rotina dos ex-pacientes do HCB, agora moradores das residências terapêuticas distribuídas em diferentes bairros da cidade de Barbacena. Procurou-se nessa observação que o entrevistado revelasse não apenas fatos dos quais tivesse conhecimento, mas também sua opinião, atitudes, crenças etc., ao passo que, do pesquisador, foi esperada discrição, instaurando, assim, “uma escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-intervenção da entrevista” (Bourdieu, 1987, p. 695: grifo no original). Resultado e Discussão Para a realização do estudo de caso sobre o HCB, uma das instituições mais significativas da história da psiquiatria mineira e brasileira, foram identificadas e analisadas as concepções e práticas de assistência e tratamento prestadas nos hospitais psiquiátricos, as políticas de saúde e de saúde mental adotadas e seus respectivos impactos nas instituições psiquiátricas que impulsionaram o processo de Reforma Psiquiátrica, caracterizado pela retomada da mobilização social, sobretudo em torno da luta pela redemocratização do país. Juntamente com outros movimentos populares, os trabalhadores de saúde mental denunciam as más condições de asilamento e tratamento de pacientes e exigem uma política de Estado que envolva mudanças na assistência de acordo com os novos pressupostos técnicos e éticos. Antes da Reforma, percebe-se a opção do governo em priorizar a assistência médica individual e curativa em detrimento da saúde coletiva, aprofundando e precarizando ainda mais os hospitais psiquiátricos públicos (Duarte, 2009). Apesar do surgimento de inovações decorrentes das reformas psiquiátricas anteriores, ainda persistiram aquelas concepções e práticas que sustentavam o modelo manicomial predominante, principalmente nos hospitais psiquiátricos públicos. Uma das características mais cruciais identificada por este estudo sobre o HCB foi a não-incorporação de inovações de concepções e práticas psiquiátricas pelos médicos e/ou psiquiatras dessa instituição. Nele, predominavam os adeptos da Psiquiatria tradicional, que se submetiam às concepções e práticas ditadas por seus pares, que ocupavam posição de destaque no campo psiquiátrico; porém, eles não permitiram que a direção geral do Hospital fosse ocupada por outros agentes que não fossem aqueles estritamente ligados ao campo psiquiátrico. Todavia, marcante para a heteronomia do campo psiquiátrico foi a não-assimilação dos embates, dos conflitos e das estratégias inerentes ao campo que pudessem provocar a reestruturação do saber e do poder no interior da própria instituição. Sendo assim, o Hospital tornou-se primordialmente uma instituição manicomial com característica de “guardiã da sociedade”, buscando “controlar todos aqueles atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores tidos como anormais”, desviando-se do escopo de realizar a cura de pacientes, que passaram a morrer por outras causas, que não a doença mental.As condições para o começo dessa heteronomia podem ser encontradas na institucionalização do Regulamento da Assistência Hospitalar do Estado de Minas Gerais de 1934, quando o HCB assumiu um papel secundário por estar afastado dos centros de produção do poder e do saber, ficando a condução do campo psiquiátrico ditada pelos profissionais do Hospital Raul Soares e, posterioremente, na década de 1960, por aqueles vinculados ao Hospital Galba Veloso, ambos localizados em Belo Horizonte. Acentua-se cada vez mais a característica assumida pelo HCB, ou seja, uma instituição destinada a receber pacientes crônicos que deveriam ser “ressocializados” por intermédio da assistência heterofamiliar junto às famílias de nutrícios, devendo também ser “recuperados” pelo trabalho na Colônia em atividades de laborterapia, objetivando tanto a minimização dos gastos financeiros quanto a supressão de parte da parca receita que o Estado enviava ao Hospital. Estabeleceu-se também a relação da história da cidade de Barbacena com o Hospital Colônia. Pôde-se constatar que o Hospital representou um dos instrumentos políticos do mandonismo local ao assegurar, por várias décadas, a contratação e nomeação de correligionários em vez de pessoal qualificado para a função hospitalar. Associam-se ainda a essa ineficiência as sucessivas reinternações, a cronificação dos pacientes e 128 a superlotação resultando na precarização das práticas presentes no Hospital, que, diante da dimensão de seus problemas, tornou Barbacena conhecida, entre as demais cidades, como “Cidade dos Loucos”. Diversas práticas reiteram a comprovação cabal da ineficiência do modelo manicomial: os maus tratos aos internos; o expediente do leito-chão – colocação de capim no chão das enfermarias dos pavilhões para servir de cama para os pacientes dormirem; a utilização, pela municipalidade, da mão de obra praticamente gratuita do “doente mental” em calçamentos de rua e na manutenção da limpeza; e a transformação do “doente mental” em trabalhador agrícola pelos fazendeiros e sitiantes ou então para servir a outras famílias em serviços de empregada doméstica. Tudo isso realizado com a conivência de alguns funcionários do Hospital, autoridades públicas e munícipes, pois não se tem conhecimento de registros e/ou acordos trabalhistas entre as partes. Por outro lado, alguns barbacenenses que utilizavam a mão de obra dos internos do HCB acreditavam estar realizando filantropia, porque os retiravam de um local onde predominavam a superlotação e a precarização das condições de asilamento, entre outros problemas (Coelho, 1979; Duarte, 1996). Pela suposta aquiescência, talvez seja possível inferir que essa condição seria, para os internos, uma forma de resistência, pois estar fora do Hospital, mesmo sem receber pagamento pelos seus serviços, impedia-os de contrair doenças endêmicas que poderiam levá-los à morte. Acresce-se, ainda, a impunidade de práticas ilícitas de funcionários, o que colaborou para o uso indevido dos recursos financeiros obtidos na instituição. Essa condescendência do Estado em não punir os funcionários públicos, supostamente apadrinhados, possibilitou que outras práticas, algumas até legalizadas pela instituição, aparecessem, como é o caso da “venda de peças anatômicas” para as Faculdades de Medicina do país, cujo lucro, como ficou constatado, não era destinado à instituição. Sabe-se, contudo, que somente um funcionário passou por um processo de sindicância por ter atuado como “bode expiatório” nessas transações. Entretanto, mesmo sendo comprovado o seu envolvimento na venda de cadáveres, ele não foi demitido (Arquivo do Museu da Loucura, 1973). Apesar das tentativas esparsas de se instituírem concepções e práticas psiquiátricas, programas e políticas de saúde mental que visavam à desospitalização intra e extramuros, elas não se efetivaram devido à inoperância do Estado durante o período da ditadura empresarial-militar. Implantada no Hospital Galba Veloso, por Paprocki e Rangel (1969), a experiência de open door, vista erroneamente como modalidade “comunidade terapêutica”, consistiu numa tentativa de provocar mudanças nos rumos da Psiquiatria em Minas; porém, essa experiência buscava somente a redução do tempo médio de internação naquele Hospital. Aquelas pacientes que extrapolavam o tempo previsto de internação eram prontamente transferidas para o HCB, ocasionando vários problemas decorrentes da superlotação. Nota-se que a influência do “open door ou comunidade terapêutica” no Hospital foi nula, ou seja, ele continuou exercendo a mesma função de receber pacientes crônicos, agravando ainda mais os problemas da instituição. Conclusão Quando analisadas as práticas do HCB, constatou-se que a violência simbólica expressa nas concepções e nas práticas e também legitimada pelas políticas de saúde mental, bem como pelos regulamentos das instituições psiquiátricas, teve os seus contornos extrapolados. Verificou-se ali o uso de mecanismos punitivos no controle dos pacientes, que consistia no emprego de práticas explícitas de violência física e moral, como o isolamento em celas e a lobotomia. Apesar de ser uma prática adotada esparsamente, verifica-se que a sua introdução aconteceu no ano de 1953, sendo realizada mais tarde e, principalmente, na década de 1970, por neurocirurgiões que tinham como objetivo controlar a agressividade de pacientes recalcitrantes. Diante da superlotação existente no Hospital, foi implantada a prática do “leito-chão”, ou seja, espalhava-se capim no chão da enfermaria e ali os pacientes dormiam na mais completa falta de higiene, pois era no capim que eles urinavam e defecavam, permitindo a proliferação de doenças. Outra precariedade constatada refere-se à falta de alimentação adequada em termos de quantidade e qualidade para os internos, o que acabava por incidir nos casos de subnutrição e anemia, entre outras doenças nos pacientes. A frequência dessas duas últimas práticas 129 contribuiu para a incidência de diversos tipos de doenças, ocasionando o aumento da mortalidade entre os pacientes. Por isso, o Hospital foi chamado de “inferno humano”50, “fábrica de cadáveres” e “campo de concentração” por diversos autores que denunciaram as condições precárias e subumanas dos internos, e, inclusive, apontaram a existência de um comércio de “peças anatômicas” com diversas Faculdades de Medicina do Brasil. No entanto, é importante lembrar que o HCB foi concebido para que os doentes ali internados recebessem “ares e luzes”, pois ele foi construído dentro das normas modernas da engenharia, que projetou um espaço asilar no interior do Estado, localizado na periferia da cidade e semelhante à zona rural, donde a maioria dos internos era proveniente. Essas novas propostas se ajustavam à Psiquiatria moderna e combinavam tratamento, ressocialização e recuperação dos pacientes por meio do convívio social e pelo trabalho, tornando-os indivíduos ajustados e produtivos. Contudo, o HCB foi paulatinamente tornando-se um instrumento obscuro de práticas que, para os pacientes, representavam dor, terror e morte: um “Inferno Humano”, como muitos deles diziam, donde apenas a morte, enfim, os libertaria. No III Congresso Mineiro de Psiquiatria, em 1979, ocasião em que estava presente Franco Basaglia, os profissionais de saúde mental fizeram várias denúncias sobre as formas de asilamento e tratamento terapêutico praticados nos hospitais psiquiátricos públicos, em especial o HCB. Esse evento contribuiu para engrossar outros movimentos distribuídos pelo país, exigindo do Estado reformas administrativas, melhorias nas condições de trabalho dos profissionais e assistência e tratamento adequado para os pacientes. Apesar de diversos problemas que, por vezes, impõem certos limites, a luta antimanicomial tem assegurado a afirmação dos direitos humanos e o resgate da cidadania dos portadores de transtornos mentais. A Reforma Psiquiátrica, portanto, vem possibilitando que transformações substanciais ocorram nos espaços hospitalares dos diversos manicômios brasileiros, inclusive no HCB – atualmente, denominado Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, instituição ligada à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Durante a década de 1980, verificou-se que o Hospital passou por diversas transformações que incluem desde contratação de profissionais qualificados e tratamento humanizado para os internos até desospitalização gradativa mediante o encaminhamento de pacientes para as suas famílias. Aqueles pacientes que perderam seus laços familiares, por certo período, permaneceram ainda no Hospital e atualmente vários deles são moradores das residências terapêuticas e convivem com os habitantes da cidade. Enfim, tornaram-se cidadãos depois de uma longa história de sofrimento. Referências Arquivo do Museu da Loucura CHPB/FHEMIG. (1973). Circular 03/73 da FEAP, n.002348, de 24 de dezembro de 1973. Protocolo Bourdieu, P. (1987). Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense. Coelho, R. S. (1979). Barbacena: 1900-1980. [Mimeo]. Trabalho apresentado no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, Belo Horizonte, MG. Duarte, M. N. (1996). Ares e luzes para mentes obscuras. O Caso do Hospital Colônia de Barbacena. 1922-1946. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, DCP/FAFICH/UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil. Duarte, M. N. (2009). De “ares e luzes” a “inferno humano”. Concepções e práticas no Hospital Colônia de Barbacana: 1946-1979. Estudo de Caso. Tese de Doutorado em História, Universidade 50 Originalmente, quem utiliza a expressão “inferno humano” é uma paciente do HCB no documentário “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton. 130 Federal de Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Lozano, J. E. A. (1987). Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: Ferreira, M. de M. & Amado, J. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV. Paprocki, J. & Rangel, E. (1969). “Open door” integral em Hospital Psiquiátrico Médica. Rio de Janeiro, 58(5), 604-609. público. Folha 131 O COTIDIANO DOS SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS E SUAS CONTRADIÇÕES Michelle de Almeida Cezar51 - UFSJ ([email protected]) Mayara Pacheco Coelho52 - UFSJ Walter Melo53 - UFSJ Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica; Serviços Substitutivos; Contradições; Introdução Os movimentos da Reforma Psiquiátrica e também da Luta Antimanicomial brasileiras suscitaram grande repercussão no âmbito da luta por direitos mínimos, prevendo a modificação no modelo de assistência oferecido ao doente mental. Assim, foram criados novos serviços, entre eles o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) com intuito de substituir o hospital psiquiátrico. No CAPS, o tratamento oferecido à pessoa com transtorno mental tem a finalidade de inseri-la novamente na sociedade, buscando restabelecer os laços sociais e superar o modelo asilar de assistência. Parta tanto, é necessário o desenvolvimento de práticas que busquem a criação de uma rede de relações que atinjam o território onde vivem estas pessoas, na tentativa de ampliar os espaços sociais que elas ocupam, o que requer, entre outros fatores, uma atuação profissional que contribua para o processo efetivo de desinstitucionalização54, rompendo com o modelo psiquiátrico tradicional a fim de construir novas formas de lidar com a loucura. Dessa forma, o presente trabalho tem o objetivo apresentar uma argumentação teórica sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a criação dos serviços substitutivos a partir do levantamento das leis e portarias que criam e regulamentam esses serviços. Para melhor fundamentar essa discussão, apresentaremos as atividades desenvolvidas em uma oficina de teatro em um serviço substitutivo. Essa oficina, desenvolvida no serviço desde 2007, é parte integrante do Programa de Extensão Sistema de Saúde e Educação: estreitamento de laços e ações conjuntas (Laços e Ações)55 da Universidade Federal de São João Del Rei. A atuação no serviço substitutivo por meio desta oficina possibilitou compreender a estrutura e organização do serviço. Argumentação Teórica Uma breve passagem pelo surgimento da Psiquiatria como prática normativa se faz necessária para avançarmos em direção aos pressupostos da Reforma Psiquiátrica. Com o início da sociedade industrial e com o crescimento das cidades, houve também a multiplicação dos ditos “perturbadores da ordem”. Eram, na sua maioria, mendigos, vagabundos e loucos destinados às prisões e casas de correção que funcionavam como verdadeiros depósitos humanos (Resende, 2001). Como podemos perceber, neste período, ainda não se falava em uma assistência voltada especificamente para o 51 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del Rei. 52 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del Rei. 53 Professor Adjunto da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ); Coordenador do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS); Coordenador do Programa de Extensão Sistema de Saúde e Educação: estreitamento dos laços e ações conjuntas (Laços e Ações); autor dos livros Nise da Silveira (Imago/CFP, 2001) e O terapeuta como Companheiro Mítico: ensaios de psicologia analítica (Espaço artaud, 2009). 54 A noção de desinstitucionalização surge nos EUA na década de 1960 e era basicamente entendida como um conjunto de medidas de desospitalização. Outra tendência entende o processo de desinstitucionalização como desassistência, desamparo e abandono. O processo de desinstitucionalização também pode ser compreendido como uma necessidade da desconstrução do saber psiquiátrico clássico e construção de novos saberes sobre a loucura. (Amarante, 1996). É nesse sentido que é entendida a desinstitucionalização efetiva da loucura no presente trabalho. 55 O Programa Laços e Ações possui como proposta estabelecer parcerias da UFSJ com setores da saúde de São João Del Rei e região. Atualmente, são desenvolvidas as oficinas de teatro e artes plásticas no CAPS, oficina de música no conservatório musical de São João Del Rei, atividades no Conselho Municipal de Saúde (CMS) e no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA). 132 tratamento da loucura. Segundo Castel (1978), a Psiquiatria surge apenas com o advento dos ideais da Revolução Francesa e após a superlotação das prisões e casas de correção, apoiada nos aparatos da ciência, como a responsável por tratar a doença mental, humanizando o tratamento oferecido até então (Amarante, 2007). Dessa forma, o predomínio da prática psiquiátrica de internação dos loucos se dá tanto como resposta socialmente adequada às condições de emergência das sociedades moderna e contemporânea quanto da mudança na percepção social da loucura. Essa mudança diz respeito à redução da loucura à categoria médica, por meio do discurso psiquiátrico, principalmente com Philippe Pinel no final do século XVIII (Passos & Beato, 2003). A partir da segunda metade do século XIX, a psiquiatria seguirá a orientação das ciências naturais, baseando-se em um modelo centrado na medicina biológica, com o intuito de construir um conhecimento objetivo do homem que buscava encontrar a causa da doença mental. Este modelo de causalidade biológica contrapõe-se à medicina mental de Pinel, a qual se atentava apenas em sinais e sintomas com a finalidade de classificá-los e agrupá-los (Amarante, 1995). Contudo, é apenas na metade do século XX que as práticas psiquiátricas, como o tratamento moral de Pinel, o tratamento orgânico e a contenção passam a ser contestadas (Oliveira & Alesi, 2005). Assim, as reformas que sucederam o modelo de tratamento proposto por Pinel procuraram questionar tanto a instituição asilar quanto o saber psiquiátrico. Entre elas, a Psicoterapia Institucional e as Comunidades Terapêuticas se configuram como reformas restritas ao âmbito asilar; a Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva ultrapassaram de certa forma o âmbito do asilo; e a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática surgiram como reformas instauradoras de ruptura com os modelos anteriores (Amarante, 1995). Assim, no contexto brasileiro, as idéias de Foucault, Goffman, Basaglia ganham força juntamente com as críticas à assistência psiquiátrica oferecida e as denúncias contra os maus tratos nos hospícios, encontrando campo fértil no processo de redemocratização do país, após a ditadura militar. Com as críticas aos modelos psiquiátricos tradicionais e a luta em prol do respeito aos direitos humanos, tem-se no Brasil a configuração de vários movimentos sociais, entre eles o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), cuja estratégia principal era intervir na sociedade ampliando o debate relacionado aos aspectos da loucura e da psiquiatria. Um ponto de destaque deste movimento foi o II Congresso Nacional do MTSM em Bauru, em 1987. Nesse evento, o movimento sofreu uma significativa transformação: a adesão de usuários dos serviços de saúde mental e seus familiares (Amarante, 2007). Dessa forma, observa-se que é nesta trajetória de desinstitucionalização que surgem projetos de lei de vários estados brasileiros estimulando o debate sobre a questão da loucura (Amarante, 1995). Após a abertura política, em meados da década de 1980, se estabelece a chamada “Constituição Cidadã” de 1988, que promulga a Lei do SUS, a qual legitima que a saúde é um bem de todos e é dever do Estado prover as condições para seu exercício, garantindo o bem estar físico, mental e social. A partir dessa lei cria-se a portaria n. 224 de 29 de janeiro de 1992 que regulamenta os Núcleos/Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS). Esses se constituem como unidades de saúde regionalizadas, que atendem a uma população específica e oferecem os cuidados intermediários entre o ambulatório e a internação. Esta portaria assegura ainda que a assistência aos pacientes deva incluir não só o atendimento individual, seja medicamentoso ou psicoterapêutico, como também atividades comunitárias que integrem o paciente à comunidade. Outro instrumento de apoio à Reforma Psiquiátrica é a Lei 10.21656, aprovada em 2001, conhecida como Lei Paulo Delgado que dispõe sobre a seguridade dos direitos e da proteção das pessoas com transtorno mental. De acordo com a referida lei, é direito dos portadores de transtorno mental, ter acesso ao melhor tratamento no sistema de saúde, de acordo com suas necessidades, ser tratado com humanidade e respeito, preferencialmente em serviços comunitários. Em relação aos serviços comunitários, além da portaria n. 224 de 29 de janeiro de 1992 que regulamenta os NAPS e CAPS, em 2002 é criada a portaria n. 336, a qual dispõe sobre a 56 Lei 10.216 foi promulgada em 2001, porém o Projeto de Lei 3.657 que deu origem a esta lei, foi apresentado em 1989 estimulando o debate sobre a loucura em todo o país. 133 organização e estruturação dos CAPS. De acordo com essa portaria, os CAPS devem se organizar em CAPS I, CAPS II ou CAPS III, definidos conforme o porte/complexidade e abrangência populacional. O serviço substitutivo a que se refere este trabalho se configura como CAPS I, ou seja, é um serviço de referência para uma população de até 70 mil habitantes. Quanto à equipe técnica, o CAPS I deve contar com o mínimo de um médico, um enfermeiro, três profissionais de nível superior e 4 profissionais de nível médio para o atendimento de 20 pacientes por turno. A portaria prevê, ainda, que o CAPS I ofereça atendimento individual e em grupos, visitas domiciliares, atendimento à família, atividades comunitárias enfocando a integração do paciente na comunidade e sua inserção familiar e social, além de oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio. No serviço substitutivo apresentado neste trabalho, são realizadas oficinas de artes plásticas e oficina de teatro, implantadas pelo Programa Laços e Ações. A oficina de teatro é realizada uma vez por semana, com duração de uma hora, e conta com a participação de três oficineiras, estagiárias do curso de Psicologia da UFSJ e, em média, oito usuários do serviço. A oficina busca oferecer técnicas teatrais para a montagem de esquetes que são construídas a partir de fatos cotidianos trazidos pelos próprios participantes57. Cabe ressaltar que, desde a implantação do Programa Laços e Ações, essa oficina não objetivou configurar-se como uma oficina terapêutica. Ainda que possamos perceber alguns resultados nesse sentido, a oficina se apresentou como uma estratégia cujo objetivo principal foi realizar um trabalho educativo no que diz respeito a apresentar, dentro da instituição, outras formas de lidar com a loucura que não aquela apoiada fundamentalmente numa perspectiva medicamentosa. A atuação no serviço, através da oficina, possibilitou o contato direto com o cotidiano da instituição, o que nos permitiu perceber que o processo de Reforma Psiquiátrica tem produzido novos desafios para o campo da saúde mental. Segundo Nicácio e Campos (2004), a desinstitucionalização propõe uma diferente perspectiva ética, teórica e política para compreender a questão da loucura e as relações produzidas no contexto social. Nessa visada, a construção dos serviços de atenção psicossocial efetivamente substitutivos e territoriais não pode ser compreendida como simples modernização do circuito assistencial, pois implica uma profunda transformação das relações entre as pessoas e as instituições, dos modos de pensar e fazer saúde mental (p. 72). Dessa forma, compreende-se a necessidade de transformar as formas de agir em saúde mental, sob o risco de reproduzir, dentro dos serviços substitutivos, práticas manicomiais de assistência. A utilização de contenção física, o abuso no uso de medicamentos, o diálogo limitado com os usuários, a precarização da estrutura do serviço, onde faltam desde artigos de higiene pessoal até um ambiente agradável e acolhedor para o tratamento, bem como o funcionamento de um serviço com a equipe técnica reduzida, atendendo uma população superior à sua capacidade, constituem graves entraves ao processo de desinstitucionalização, revelando falhas na implementação e fiscalização das políticas públicas em saúde mental. Conclusões A percepção científica sobre a loucura se instalou de maneira hegemônica, a princípio pelo saber médico-moral defendido por Pinel, seguido pelo saber médico-organicista, baseado no modelo de conhecimento das ciências naturais e, posteriormente, pelo saber fenomenológico e psicanalítico (Passos & Beato, 2003). Assim, as críticas ao modelo pineliano dão origem a diferentes tentativas de reforma, tanto da instituição asilar, como do saber psiquiátrico clássico e compõem o atual debate crítico em torno da saúde mental e do processo de Reforma Psiquiátrica. O movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil teve início na década de 1970, com o surgimento do MTSM, que por meio de denúncias e acusações ao governo militar, principalmente em relação à assistência dada aos loucos, no que diz respeito à tortura, corrupção e fraude, se constituiu 57 No ano de 2011 foi firmada uma parceria com o curso de Teatro da mesma universidade, o que, de certa forma, transformou a dinâmica da oficina, uma vez que esta passou a ser organizada pelos estagiários do curso de teatro. 134 como um instrumento pela busca da desinstitucionalização do saber e da prática psiquiátricos consolidando o lema ‘por uma sociedade sem manicômios’ (Amarante, 1995). Contudo, observou-se que, na busca pela desinstitucionalização, a criação de serviços substitutivos não garante a superação do modelo asilar de assistência, uma vez que equipes inseridas nesses serviços podem, sem se dar conta, reproduzir a institucionalização, ou seja, a lógica manicomial. Portanto, a desinstitucionalização efetiva requer a desconstrução das relações sociais calcadas no paradigma racionalista questionando os princípios que norteiam a relação da sociedade com a loucura, enfrentando o processo de desconstrução do manicômio (Torre & Amarante, 2001). Um modelo de atuação que desconsidere a relação histórica da sociedade com a loucura, visando apenas à instituição da norma, patologizando o sujeito sem construir novos fazeres que promovam sua integração na sociedade, não se constitui como uma atuação válida quando se trabalha na busca da desinstitucionalização efetiva. É necessário superar a idéia de submeter o doente mental a processos de disciplinarização e exclusão. Contudo, a desconstrução dessa prática, legitimada pelo discurso científico desde o século XVIII, implica na necessidade dos atores em saúde mental, seja trabalhadores, familiares, usuários e comunidade construírem novos fazeres nesse campo de atuação. Referências Bibliográficas Amarante, P. (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil (2a ed.). Rio de Janeiro: Fiocruz. Amarante, P. (1996). O homem e a serpente. Outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz. Amarante, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial (2a ed.). Rio de Janeiro: Fiocruz Castel, R. (1978). A ordem psiquiátrica: a Idade de Ouro de alienismo. (M. T. C. Albuquerque, Trad.). Rio de Janeiro: Graal. (Obra original publicada em 1978). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1998). Brasília. Recuperado em 13 de julho de 2011 de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm Lei n. 10.216 de 6 de abril de 2001. (2001). 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Recuperado em 13 de julho de 2011 de http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/conteudo/cao/ccf/quadro%20sinotico%20sus/portaria%20sas-ms %20n%C2%BA%20224-92%20-%20diretrizes%20e%20normas%20saude%20mental.pdf 135 Portaria n. 336/GM de 9 de fevereiro de 2002. (2002). Regulamenta o funcionamento e estrutura dos CAPS. Recuperado em 13 de julho de 2001 de http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Portaria %20GM%20336-2002.pdf Resende, H. (2001). Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tundis, S. A.; Costa, N. R. (Org.). Cidadania e loucura: Políticas de Saúde mental (7a ed.). Petrópolis: Vozes. Torre, E. H. G. & Amarante, P. (2001). Protagonismo e subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 6/1, 73-85. 136 A ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA EM MINAS GERAIS: O HOSPITAL COLÔNIA DE BARBACENA (1967-1977)58 Michelle de Almeida Cézar59 – UFSJ ([email protected]) Maristela Nascimento Duarte60 – UFSJ ([email protected]) Palavras-chave: Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais; Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica, Hospital Colônia de Barbacena Introdução O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa intitulada “Os internos do Hospital Colônia de Barbacena (CHPB/FHEMIG): 1967-1977. Estudo de caso,”, que objetivou identificar quem eram os doentes mentais internados no Hospital Colônia de Barbacena (HCB), atualmente conhecido como Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CHPB/FHEMIG). Neste trabalho, será apresentado o estudo sobre o HCB durante os anos em que este estava vinculado à Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica (FEAP), ou seja, durante o período de 1968 a 1971. Naquele período, a assistência psiquiátrica no Brasil foi conhecida como “psiquiatria de massa” pelo grande número de internações que se processam nos hospícios públicos e nas clínicas psiquiátricas particulares (Resende, 2001). O período coincide também com a definição dos papéis das autarquias, empresas e fundações públicas e com a redefinição das competências do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde, quando o Estado tentou, por intermédio dessas Fundações estatais, instituir novos mecanismos de gestão pública baseados numa racionalidade técnicoempresarial. Resende (2001) e Duarte (2009) concordam que, no período recortado por este estudo, acirraram-se os problemas de assistência nos hospitais psiquiátricos públicos, como a superlotação, as péssimas condições de hotelaria, a deficiência de pessoal qualificado e especializado para o tratamento do doente mental etc., como será apresentado no decorrer deste trabalho, uma vez que demonstra a precarização da assistência psiquiátrica fornecida aos internos pelo HCB. Método A perspectiva teórica adotada no desenvolvimento deste trabalho se inscreve na área da História da Psiquiatria e dialoga com a História Cultural, dado que essa última é marcada pela abertura com outros campos científicos, multi e interdisciplinar. Busca-se, portanto, investir em explicações e análise que deem conta do objeto de estudo sem perder de vista suas articulações com as dimensões sociais, políticas e econômicas, que, indubitavelmente, influenciaram o campo psiquiátrico e, consequentemente, os casos de internações processadas no HCB. Dessa forma, foi pesquisada a estrutura organizacional da FEAP, que influenciou a mudança de função do HCB. Também foi realizado o levantamento da documentação impressa sobre a legislação hospitalar psiquiátrica no estado de Minas Gerais (leis, estatutos, regimentos, portarias e legislação federal), com o intuito de averiguar as concepções e as práticas terapêuticas utilizadas pelo modelo manicomial no período 58 O presente trabalho é fruto de um projeto de Iniciação Científica intitulado: “Os internos do Hospital Colônia de Barbacena (CHPB/FHEMIG): 1967-1977. Estudo de caso”. A pesquisa foi desenvolvida no período de agosto de 2010 a julho de 2011, por meio do PIIC/UFSJ/CNPq, com apoio da FHEMIG. 59 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. 60 Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del-Rei. 137 estudado. No que se refere à documentação dos pacientes do HCB, foram pesquisados os Livros de Registro de Entrada de pacientes, denominados Livros de Matrículas de “Homens-Indigentes” e “Mulheres-Indigentes”, referentes às internações efetuadas no período de 1968 a 1971. Esses livros estavam alocados numa sala contígua ao prédio do Museu da Loucura (CHPB) em Barbacena. Com o objetivo de conhecer a população interna do referido Hospital, selecionaram-se 5% do número de internos do Hospital no período recortado, empregando o processo de amostragem estratificada proporcional, uma vez que foi observada a mesma proporção de pacientes dos sexos masculino e feminino registrados nos arquivos da instituição. Assim, integram a amostra deste estudo 268 pacientes, sendo 124 mulheres e 144 homens, que deram entrada no hospício mencionado. Resultados e Discussão No período ditatorial, pós-1964, a psiquiatria assumiu o status de “prática assistencial de massa” (Resende, 2001, p. 56). A política centralizadora do governo criou o Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), em 1966, para depois instituir o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que, além de incorporar os Institutos de Aposentadorias e Pensões existentes até então, regulava aposentadorias, pensões, reabilitação profissional e assistência médica. A “ideologia privatista” do INPS e do INAMPS privilegiava a contratação de leitos em hospitais privados para atender à demanda de pacientes. Acresce ainda que o desenvolvimento da industrialização possibilitou a intensificação do modelo capitalista no campo da medicina. Era preciso, portanto, atender às demandas de mercado exigidas pela instalação das multinacionais no favorecimento dessas indústrias farmacêuticas. Assim, o setor de saúde assumiu características de grande consumidor de bens e produtos na área médicohospitalar, favorecendo a ampliação das condições de capitalização na área da saúde. A política de saúde, portanto, atendia aos interesses dos setores lucrativos, provocando, por conseguinte, o aprofundamento dos desequilíbrios inter e extrarregionais já existentes no que diz respeito à distribuição geográfica, à cobertura de atendimento ambulatorial e hospitalar e à política de formação de pessoal. Durante meados da década de 1960 até a década de 1970, observa-se a afluência maciça de doentes para os hospitais da rede privada, enquanto os hospitais públicos receberam para internação aqueles indivíduos considerados “loucos (as)-indigentes”, ou seja, indivíduos alijados da assistência prevista pelo sistema previdenciário. Apesar de o Estado privilegiar a política de saúde adotada pelo INAMPS, a Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério da Saúde, tentou por diversas vezes inverter o quadro de uma medicina curativa para uma medicina de caráter preventivista. Iniciativas sucederam-se umas às outras, como foram os casos dos programas de psiquiatria comunitária, que davam “ênfase à assistência extra-hospitalar, à readaptação do doente e à equipe multidisciplinar” (Resende, 2001, p. 61). Entretanto, todas essas tentativas foram malogradas porque a Previdência Social estava dominada pela iniciativa privada, notadamente o subsetor da assistência psiquiátrica (Paulin & Turato, 2004). Por outro lado, essas tentativas possibilitaram a formação de uma consciência crítica entre os profissionais ligados à saúde mental e entre alguns segmentos da população que, anos mais tarde, iriam contribuir para promover a Reforma Psiquiátrica Brasileira. De acordo com os partir dos dados retirados dos Livros de Registro de Entrada de pacientes, denominados Livros de Matrículas de “Homens-Indigentes” e “Mulheres-Indigentes”, referentes ao período de 1968 a 1971, foram contabilizadas 5.282 novas internações, sendo 2.835 indivíduos do sexo masculino e 2.447 novas internações de mulheres. Portanto, fazem parte da amostra deste estudo 144 internações masculinas e 124 internações femininas. Nesses livros, foram encontradas informações como idade, estado civil, profissão, procedência, responsável pela internação, diagnóstico, datas de entrada e saída e condição de saída, que inclui alta, evasão ou óbito. A partir de janeiro de 1971, os livros de internações de mulheres apresentam apenas as informações referentes à data da internação, diagnóstico, procedência e pavilhão de internação. Somente depois de novembro 138 do mesmo ano, foram acrescentadas informações como cor e idade das pacientes. No caso dos homens, após julho de 1971, foi acrescida apenas a informação referente ao tempo médio de permanência no Hospital, medido em dias. Alguns resultados referentes a esses dados serão apresentados neste trabalho. Os dados apontam que, entre os homens, a maioria foi enviada ao Hospital pela Delegacia de Polícia (26,5%), demonstrando que cabia não só ao médico, mas também à Justiça, o poder de sequestrar aqueles indivíduos ditos loucos e/ou desviantes. No caso das mulheres, a maioria era enviada ao Hospital pela família (36,6%) e algumas delas vinham transferidas do Hospital Galba Veloso, de Belo Horizonte (13,3%). Quanto às ocorrências, ou seja, à condição de saída dos pacientes, os dados revelam que a maioria dos homens e mulheres da amostra pesquisada, 30,6% dos homens e 58,2% das mulheres, obteve alta. No que diz respeito à evasão, nota-se que 8,9% dos homens evadiram e, entre as mulheres, não se registrou nenhum caso de evasão. Os casos de óbito foram registrados apenas até 1970, somando um total de 71 casos61. A causa da morte predominante entre homens e mulheres era assistolia, enterocolite e insuficiência cardíaca. Porém, foram encontrados também casos de gastroenterite, “pneupatia”62 ocasionada por congelamento63 e desidratação. Outro fato que chama atenção sobre o registro de óbitos é relacionado à venda de cadáveres para as Faculdades de Medicina tanto de Minas Gerais como de outros Estados brasileiros. Dessa forma, o HCB vendia cadáveres para as Faculdades de Montes Claros, Itajubá, Petrópolis, Teresópolis, Volta Redonda e Barbacena, além da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A venda de cadáveres constituía-se como uma prática do HCB. Tanto o controle como a distribuição de cadáveres de internos indigentes estavam previstos e legitimados pelos Art. 116 do Decreto-lei n. 6.169, de 1922, e pelo art. 209 do Decreto 11.276, de 27 de março de 1934. Segundo esse Decreto, os corpos dos pensionistas somente seriam autopsiados com autorização prévia da família, enquanto que os cadáveres dos indigentes poderiam ser necropsiados, caso houvesse interesse científico, podendo ainda ser cedidos às Faculdades de Medicina para trabalhos e aulas de anatomia, como mencionado anteriormente (Duarte, 2009). Assim, na amostra pesquisada, entre os homens, dos 40 mortos, foram vendidos 29 cadáveres (72,5%) para as Faculdades de Medicina especificadas. No caso das mulheres, foram vendidos 22 cadáveres dos 31 óbitos, ou seja, 70,9% dos cadáveres foram vendidos. A respeito dos diagnósticos dos pacientes internados no Hospital, 75,1% dos diagnósticos dos homens e 44,3% das mulheres se enquadram na categoria Transtornos Mentais conforme a Classificação Internação de Doenças (CID-9). Os diagnósticos do restante da amostra se dividem em 6,3% dos homens e 4,7% das mulheres na categoria Doenças do Sistema Nervoso e dos Órgãos do Sentido e 1,1% dos diagnósticos dos homens se incluem em outras categorias. Nota-se que a maioria dos diagnósticos, tanto dos homens como das mulheres, se enquadra na categoria de Transtornos Mentais. No caso dos homens, o diagnóstico de esquizofrenia é atribuído à maioria da amostra pesquisada (48%), o mesmo não ocorre entre as mulheres, uma vez que apenas 24,2% delas receberam esse diagnóstico. O diagnóstico de epilepsia foi atribuído a 6,2% dos homens e 4% das mulheres; 10,4% dos homens receberam o diagnóstico de alcoolismo e 2,1% de esquizofrenia e alcoolismo, sendo que, no caso das mulheres, não houve nenhum registro desses diagnósticos. O diagnóstico de oligofrenia foi atribuído a 5,5% da amostra masculina e 5,6% da amostra feminina e 10,4% dos homens e 15,3% das mulheres receberam outros diagnósticos que não os citados. Observa-se ainda que 10,4% dos homens 61 A partir de 1971, os livros de registro apresentam uma nova disposição de dados que não inclui o registro de óbitos; portanto, não é possível precisar se esses casos diminuíram ou aumentaram. 62 Esse termo utilizado é tal como se encontra registrado no livro de Entrada de “Homens-Indigentes”. Trata-se da doença conhecida como pneumopatia, ou seja, doença que afeta os pulmões. 63 Esse caso é de um paciente cujo diagnóstico era o de catatonia. No dia que antecedeu a sua morte, ele ficou esquecido no pátio por funcionários do Hospital. Considerando que em Barbacena predomina o clima temperado de altitude, onde as temperaturas no inverno oscilam de 0 a 8° C, provavelmente, o paciente ficou “congelado” pelo frio, como registrado no livro de registro de pacientes; daí, a sua causa mortis (Duarte, 2009). 139 não tiveram seu diagnóstico registrado e, no caso das mulheres, esse número é relativamente alto, pois mais da metade da amostra, 50,9%, foi internada sem que fosse registrado seu diagnóstico. Conclusão Desde as primeiras décadas do século XX, a superlotação, o número insuficiente e a baixa remuneração de médicos e enfermeiros, bem como a falta de qualificação desses últimos, consistiam em entraves que dificultavam o bom funcionamento dos hospícios públicos e os transformavam em “espaços de misturas, onde não havia separações entre os diferentes tipos de estágios das doenças mentais, nem entre crianças e adultos; ricos, pobres e miseráveis, curáveis e crônicos” (Engel, 2001, p. 282). Resende (2001) também argumenta a respeito da superlotação dos hospitais, afirmando que é possível especular que, sob o abrangente rótulo de neurose ou outra categoria nosológica igualmente imprecisa, existiam problemas sociais diversos que tinham no asilo a única solução possível. Essa afirmação torna-se pertinente, uma vez que, diante dos dados apresentados, foi possível observar um grande número de pacientes internados sem nenhum diagnóstico registrado, revelando, possivelmente, que o HCB assumia funções ou papéis a ele reservados indiretamente, como controlar “aqueles atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores ‘desviantes’, tidos como anormais (Engel, 1998, p. 547). Dessa forma, para o Hospital, eram enviados, em sua grande maioria, aqueles indivíduos que, por questões de ordem moral, econômica ou político-cultural, atentavam contra a ordem pública por se afastarem da norma e da disciplina. Por conseguinte, tiveram o seu “problema” por vezes associado à doença mental, como era o caso dos alcoólatras, homicidas, ladrões, delinquentes juvenis, homossexuais, prostitutas, enfim, os marginalizados sociais. Contudo, Duarte (2009) aponta que, se por um lado a abrangência da noção de anormalidade possibilitou a intervenção do psiquiatra na sociedade, conferindo-lhe maior poder em decorrência de sua autoridade científica, por outro lado verifica-se que a capacidade de intervenção da maioria dos psiquiatras ficava circunscrita ao espaço hospitalar. Essa diluição do poder médico é perceptível a partir da análise dos dados, visto que, mais que os hospitais da rede FEAP, a Delegacia de Polícia foi a instituição a encaminhar o maior número de pacientes ao HCB no período estudado. Assim, este estudo nos permite afirmar que a assistência psiquiátrica oferecida no HCB se configurou conforme o modelo manicomial de assistência, apresentando um grave problema de superlotação. Juntos a esse problema, incidiram também a precariedade no atendimento fornecido aos internos, principalmente quando observamos que as principais causas de morte dos pacientes envolviam questões básicas de higiene e alimentação, bem como a inoperância do Estado quanto à fiscalização dos estabelecimentos ou instituições psiquiátricas e o aprofundamento de uma política privatista para a saúde, principalmente a partir da década de 1960. Apesar de o Estado tentar por diversas vezes inverter o quadro de uma medicina curativa para uma medicina de caráter preventivista ou de instituir outros programas de reforma psiquiátrica, enfatizar uma assistência ambulatorial, promover a readaptação do doente e contratar uma equipe multidisciplinar, essas investidas foram tímidas diante dos problemas cristalizados do modelo manicomial existente no HCB. Referências Decreto n. 6.169, de 31 de agosto de 1922. (1922). Aprova o Regulamento de Assistência a Alienados em Minas Gerais. Decreto-lei n. 11.276, de 27 de março de 1934. (1934). Regulamento que dispõe sobre a Assistência Hospitalar do Estado de Minas Gerais e dá providências à assistência a psicopatas e à atribuição de seus estabelecimentos. 140 Duarte, M. N. (2009). De “ares e luzes” a “inferno humano”. Concepções e práticas no Hospital Colônia de Barbacana: 1946-1979. Estudo de Caso. Tese de Doutorado em História, Universidade Federal de Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Engel, M. (1998). As fronteiras da “anormalidade”: psiquiatria e controle social. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 5(3), 547-63. Engel, M. (2001). Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. Lei n. 4.953, de 25 de setembro de 1968. (1968). Autoriza o Poder Executivo a instituir a Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica, com sede em Belo Horizonte, e dá outras providências. Lei n. 5.207, de 25 de junho de 1969. (1969). Altera o § 3° e o artigo 11, da Lei n. 4.953, de 25 de setembro de 1968, que autorizam o Poder Executivo a instituir a Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica. Lei n. 5.804, de 13 de dezembro de 1971. (1971). Dispõe sobre a Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica, alterando os dispositivos da Lei n. 4.953, de 25 de setembro de 1968. Paulin, L. F., & Turato, E. R. (2004). Antecedentes da reforma psiquiátrica no Brasil: as contradições dos anos 1970. História e Ciências, Saúde-Manguinhos, 11(2), 241-258. Resende, H. (2001). Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In S. A. Tundis, & N. R. Costa (Org.). Cidadania e loucura: Políticas de Saúde mental (7. ed.). Petrópolis: Vozes. 141 SAÚDE MENTAL E MEDICALIZAÇÃO DA CRIMINALIDADE NO BRASIL: TRAJETÓRIAS RECENTES Myriam R. Mitjavila – UFSC – [email protected] Bruno Grah - UFSC Priscilla Gomes Mathes – UFSC Palavras-chave: Saúde mental; Periculosidade criminal; Psiquiatria forense. O presente trabalho tem por objetivo analisar algumas dimensões sócio-culturais dos processos e formas de estruturação dos discursos da psiquiatria forense sobre saúde mental e periculosidade criminal no momento contemporâneo, bem como suas articulações com algumas das tecnologias biopolíticas de gestão da criminalidade que emergem em contextos neoliberais. Para tanto, são utilizados os resultados parciais de uma pesquisa que teve por objetivo examinar os conteúdos científico-técnicos, doutrinários e ideológicos que orientam a medicalização do crime nas sociedades contemporâneas, através de uma etnografia documental em torno de uma amostra de materiais bibliográficos, eletrônicos e documentais substantivamente representativos da produção científicotécnica da psiquiatria brasileira sobre o tema. Procura-se, desse modo, avançar na compreensão das modalidades de participação do saber psiquiátrico na divisão social do trabalho judiciário na área criminal, as que compreendem, fundamentalmente, a emissão de laudos de sanidade mental e de laudos de cessação de periculosidade, dois dos principais momentos em que o saber científico-técnico é convocado como fonte legítima para a emissão de “verdades” e de “provas”. Interessa sublinhar a importância que assumem os mecanismos através dos quais se realizam essas arbitragens e o que estão nos informando sobre os rumos culturais e os universos simbólicos da vida social atual. É em função do interesse em compreender os significados sociais e as bases ideológicas nas quais estes saberes se sustentam que definimos como foco de análise para o presente trabalho os conteúdos científico-técnicos, doutrinários e ideológicos que orientam a medicalização do crime nas sociedades contemporâneas, bem como os modos de estruturação das idéias médicas em torno da questão da periculosidade criminal, e os modelos etiológicos que os sustentam. A relevância sociológica do problema descansa em três pressupostos baseados em antecedentes de pesquisa: i) a confiança institucional que o poder judiciário maciçamente lhe confere ao saber médico para determinar a periculosidade de indivíduos julgados criminalmente; ii) o alcance e as conseqüências dos laudos psiquiátricos sobre periculosidade criminal, no sentido de constituírem peças chave de medidas judiciais que podem conduzir ao confinamento perpétuo dos indivíduos periciados; iii) a influência sociocultural que o saber médico exerce na institucionalização das idéias em torno a questões como a loucura, o crime, o criminoso e a moralidade. Discursos sobre loucura e periculosidade criminal na psiquiatria forense. Atualmente não existe consenso na literatura médica acerca das relações entre doença mental e criminalidade do ponto de vista do valor etiológico da primeira para predizer a segunda (AbdallaFilho, 2004a), porém isso não parece ter sido um impedimento para que o campo jurídico-penal continue a instituir para medicina psiquiátrica o caráter de único saber com competência técnica e amparo legal para determinar a periculosidade criminal de indivíduos diagnosticados como doentes ou portadores de transtornos mentais. No entanto, essa carência relativa de evidências que vinculem a loucura à periculosidade criminal não tem sido um obstáculo para que a psiquiatria forense desempenhasse um papel fundamental nas complexas relações existentes entre medicina, leis e sociedade a partir da segunda metade do século XIX (Harris, 1993; Castel, 1991). Fortemente estruturada em torno do positivismo 142 emergente e dos empreendimentos morais que se desenvolveram a partir das manifestações que a questão social suscitava nos espaços urbanos e industriais, a criminologia nasceu como um campo dominado pela medicina como área de conhecimento e como profissão. As idéias médicas sobre a loucura e a periculosidade, sobre o normal e o patológico, acabaram se convertendo em elementos decisivos para a trajetória da medicina como profissão, principalmente do ponto de vista da ampliação indefinida de seus objetos de intervenção, cada vez mais sociais e decididamente biopolíticos (Foucault, 1977). Desta forma, o campo judiciário tem-se convertido no principal laboratório de produção de dispositivos periciais que tiveram uma origem médica, mas que acabaram se estendendo para outros domínios extrajudiciais, criando "verdades" que se instituíram como referências morais de largo alcance institucional e populacional no mundo ocidental. Contemporaneamente o campo jurídico-penal continua a instituir para medicina psiquiátrica o caráter de único saber com competência técnica e amparo legal para determinar a periculosidade criminal de indivíduos diagnosticados como doentes ou portadores de transtornos mentais. Em períodos recentes, a relação entre loucura e criminalidade vem sendo objeto de controvérsias no próprio interior do campo médico-psiquiátrico. Tanto na literatura de circulação internacional como nos material empírico em que se apóia o presente trabalho, é possível encontrar uma proporção significativa de questionamentos e relativizações sobre a periculosidade como um atributo dos doentes mentais. Recentemente, um psiquiatra brasileiro manifestava com veemência seu rechaço a considerar qualquer classe de ingerência da psiquiatria nas avaliações de periculosidade criminal: “O tema da periculosidade, jamais foi discutido seriamente pelos psiquiatras. Periculosidade é uma questão social e jurídica, porém absolutamente fora do campo psicopatológico. O que o psiquiatra pode dizer sobre o examinando restringe-se à sua saúde mental. Existem pessoas perigosíssimas sem nenhum problema psiquiátrico, e vice-versa.”64 Ou, ainda, na concepção de Taborda (2004) “(...) cabe formular a questão: o doente mental será de fato o melhor exemplo de individuo perigoso na realidade brasileira?” (p. 23). O autor ensaia uma resposta na qual ressalta a função da psiquiatria de mostrar para a sociedade que o crime em realidade seria o resultado de “fatores culturais prevalentes em uma sociedade enferma em termos de conduta moral.” (p. 24) Contudo, a posição majoritariamente encontrada na literatura da área caracteriza-se por questionar o grau e alcance das relações entre doença mental e periculosidade criminal. A maior parte dos manuais e livros aqui examinados apóia-se em pesquisas de origem anglosaxônica que apontam para a existência de fracas ou nulas correlações entre ambas as variáveis, principalmente nos casos de estudos populacionais. Embora os posicionamentos críticos de muitos autores questionem a suposta relação estreita entre doença mental e criminalidade, boa parte deles continua apontando o rótulo diagnóstico, em termos de entidade nosológica, como elemento chave para a identificação de periculosidade: “Dentro das psicoses, as paranóides, como as esquizofrenias paranóides, são normalmente mais violentas do que qualquer outra categoria (...) As probabilidades de esquizofrênicos paranóides cometerem crimes graves é maior, graças à sua habilidade de planeamento e concretização.” (Cordeiro, 2003, p. 128). Embora em vários dos textos analisados apareçam comentários em torno da necessidade de relativizar as relações entre doença mental e periculosidade criminal, observa-se, igualmente, a presença de afirmações que estabelecem uma sorte de identidade perfeita entre doença ou anomalia mental e periculosidade. Assim, por exemplo, Teitelbaum (2003) classifica a periculosidade em permanente e transitória, e aponta que pode ser permanente, “(...) como nos casos de retardo mental, em alguns transtornos de personalidade e transtornos delirantes crônicos, entre outros quadros de permanência também duradoura.” (p. 911). Da periculosidade ao risco de comportamento criminal: tendências recentes. 64Cláudio Lyra Bastos. Opinião. Coluna da Lista Brasileira de Psiquiatria Psychiatry On-line Brazil12 (10),2007. Disponível em http://www.polbr.med.br/ano07/lbp1007.php 143 Nos últimos quinze anos a questão do risco despertou um crescente interesse em diversos campos do conhecimento cientifico e, particularmente, nas ciências sociais. A noção de risco alcançou tanta relevância que alguns autores chegam a ponto de definir a modernidade como uma cultura do risco (Giddens, 1995). Esse novo interesse das ciências sociais pela noção de risco é resultado precisamente da necessidade de identificação tanto das bases quanto das conseqüências sociais de uma nova semântica e práticas sociais em torno das incertezas e perigos da vida contemporânea. Porém, a preocupação pelo risco estaria menos vinculada ao predomínio real ou factual de diversos tipos de ameaça para a vida humana do que às racionalidades, interesses e padrões culturais que organizam a percepção e as respostas sociais perante esses perigos. (Giddens, 1995). Devido a isso, torna-se necessário partir do reconhecimento da densidade sócio-política e cultural que envolvem as noções de risco e perigo (Lupton, 1999). Neste sentido, pode-se salientar uma característica típica dos discursos sobre risco e perigo que consiste em proporcionar um suporte sintático apto para circular abrangentemente no espaço social permitindo assim transportar múltiplos, e nem sempre evidentes, significados sociais. Outra característica dos discursos sobre risco e perigo refere-se às suas propriedades imunizadoras perante a possibilidade de fracasso dos resultados de eventuais prognósticos associados a diversas classes de eventos. Na medida em que estas noções operam através de enunciados sobre o futuro, qualquer medição em termos de possibilidade será fictícia e, por isso, sem compromisso. Assim, os sistemas abstratos - e especialmente as disciplinas técnicas como a medicina, por exemplo – têm incorporado, em graus variáveis, a avaliação de riscos e perigos, mas sempre diante do desafio de diagnosticar (e predizer) o futuro de situações concretas, únicas, irrepetíveis, assim como intervir sobre elas em nome desses conhecimentos. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a predição de riscos e perigos, isto é, a avaliação de eventos cuja existência seria virtual ou probabilística, constituiria uma prática suscetível de exercer certo grau de violência sobre o tipo de racionalidade que organiza a medicina clínica, fortemente estruturada em torno do que poderíamos chamar de “universo da certeza” representada na realidade dos corpos e no olhar clinico que sobre eles se debruça. Nesse contexto, a clínica médica tem se historicamente mostrado avessa às predições em matéria de saúde e doença, principalmente porque prognósticos não realizados tendiam a ser percebidos e socialmente avaliados como fontes de fracasso profissional (Freidson, 1978). Porém, mais recentemente, a incorporação de elementos de análise oriundos do que se tem denominado medicina baseada em evidências (Vasconcellos-Silva & Castiel, 2005) permite proteger as predições diante de eventos que poderiam contestá-las, podendo-se fundamentar o fracasso de uma explicação, não na certeza, mas na probabilidade, apenas, de acontecer o que foi anteriormente anunciado. Com efeito, a partir dos anos 80 do século XX, a medicina psiquiátrica começou a problematizar a própria idéia de periculosidade criminal, geralmente restrita, neste campo, à ameaça de exercício da violência física contra terceiros. Percebe-se, na reflexão acadêmica sobre o tema, o desconforto provocado pela imposição de emitir laudos nos restritos moldes do código binário (sim/não), e a formulação de instrumentos que permitam introduzir formas de relativizar sentenças médicas absolutas a respeito da condição perigosa de um indivíduo, bem como se proteger diante do fracasso eventual no prognóstico de ocorrência de atos de violência no futuro. No Brasil, esses novos instrumentos ainda permanecem em estado de exercício acadêmico, mas podem ser interpretados como tentativas de inserção em formas contemporâneas de gestão dos riscos sociais que valorizam e, em muitos casos exigem, em nome da eficiência das tecnologias empregadas, a padronização dos sistemas de categorização de indivíduos e populações. Uma característica comum a praticamente todos esses novos instrumentos é a substituição do termo periculosidade pela palavra “risco”. A introdução da linguagem do risco pode ser constatada de maneira mais clara em manuais e outras publicações da área da psiquiatria forense lançados a partir do final da década de 1990. Começou, assim, a ganhar espaço a idéia de risco como superação na noção de periculosidade, em função, principalmente, da possibilidade da prognosticar periculosidade, já não 144 apenas a partir da avaliação dos traços observados como constantes no comportamento do indivíduo, e sim a partir da inclusão de um amplo (e poderíamos dizer indefinido) leque de fatores ambientais, situacionais e sociais (Webster et al, 1997; Thomson, 1999; Abdalla-Filho, 2004b). Até que ponto essa mudança de léxico é o resultado de uma transformação do campo semântico na abordagem da periculosidade é uma questão que merece ser sociologicamente explorada. De momento, limitamo-nos a registrar algumas observações nessa direção, principalmente no que tange aos instrumentos de avaliação de risco de periculosidade recentemente apresentados na literatura sobre o tema. Dois dos principais instrumentos padronizados de avaliação de risco de violência são o HCR20 (Historical, Clinical, Risk Management) e o PCL-R (Psychopathy Checklist Revised), os quais encontram-se em fase inicial de adoção no Brasil (Morana, 2008; Taborda, 2004). Ambos os instrumentos consistem em escalas de medição de fatores de risco que permitem classificar os indivíduos de acordo com o nível de risco (baixo, médio, alto), como resultado da pontuação em 20 itens, e processada como índice somatório simples. De acordo com Abdalla-Filho (2004b), os próprios autores da escala sugerem que a avaliação final seja estimada em função de três níveis de risco: baixo (que inclui a ausência de risco), moderado ou alto. Ao mesmo tempo, não fornecem uma nota de corte para se delimitar cada um desses níveis de risco, “por reconhecerem que ela seria um valor arbitrário, desprovido de sentido e perigoso de ser usado de forma rígida.” (AbdallaFilho, 2004b, p. 172). Estes tipos instrumentos de predição da violência, longe de representar uma ruptura com as formas precedentes de conceber a periculosidade na psiquiatria forense, representam uma formalização, uma “tecnicalizção” de alguns de seus traços mais marcantes, entre os quais destaca-se a reprodução de um atributo dos laudos forenses que com a criação destes mesmos instrumentos pretendia-se abolir: o raciocínio baseado na lógica binária. Com efeito, se, por um lado, a psiquiatria forense opunha resistência à emissão de laudos que concluíssem apenas pela resposta “sim” ou “não” à pergunta sobre a condição perigosa do periciado, por outro lado, organiza-se uma resposta técnica por meio da elaboração de escalas inteiramente organizadas em torno de alternativas igualmente dicotômicas para cada fator de risco. Com independência de qualquer consideração de natureza técnica a respeito da validade das medições com estas escalas (o que não pertence ao âmbito da nossa análise sociológica), deve-se dizer que estes instrumentos estariam atualizando, via formalização metodológica, uma característica secular do saber médico: sua autonomia para produzir categorizações num duplo sentido: autonomia da profissão para criar suas próprias regras, e autonomia de cada médico para utilizar os instrumentos de categorização, em função de critérios predominantemente axiológicos (Freidson, 1978). Para concluir A partir da análise até aqui realizada, é possível identificar duas dimensões altamente problemáticas do papel e dos rumos que historicamente vem adotando as relações entre as instituições jurídicas e o saber médico, ora aprofundando tendências seculares, ora renovando as estratégias discursivas de acordo com os desafios introduzidos pela realidade social no momento contemporâneo: o problema da avaliação de risco e periculosidade criminais e os limites da autonomia da ciência e da técnica na arbitragem da criminalidade Quanto à questão da avaliação de risco e periculosidade, é preciso lembrar que os discursos organizados em torno à idéia de risco podem ser amplamente utilizados para legitimar políticas ou para desacreditá-las; para proteger os indivíduos das instituições ou para proteger as instituições dos agentes individuais. A moralização e a politização dos perigos no contexto da modernidade exige um vocabulário uniforme que já não pode ser o da religião, que estaria baseado nas idéias de pecado e de tabu. Em condições de modernidade, o risco possui a virtualidade de oferecer, segundo a expressão de Mary Douglas (1990), “termos seculares para reescrever as sagradas escrituras” (p. 5). Um dos problemas inerentes à avaliação forense de riscos e periculosidades reside nos critérios utilizados pelos profissionais envolvidos nas práticas periciais. Existem atualmente, tanto do ponto de vista das fontes 145 teóricas como das condições de aplicação dos mesmos, duas grandes correntes de pensamento, quais sejam, a avaliação clínica de risco e periculosidade desenvolvida nos moldes da psiquiatria clínica, onde a relação inter-pessoal e a observação in loco de atributos do periciado por meio de interrogatório e/ou entrevista; e a aplicação de métodos padronizados baseados em testes e cálculos probabilísticos de risco e periculosidade criminais. No Brasil, este último tipo de recurso permanece ainda como um exercício acadêmico com escassa ou nula inserção nas práticas forenses desenvolvidas nos hospitais de custódia. No entanto, tanto a avaliação clínica tradicional quanto aquela baseada em instrumentos padronizados, permanecem altamente dependentes de critérios ideológicos de atribuição de periculosidade e, ao mesmo tempo, como fundamentos para a aplicação de punições que podem chegar até o confinamento perpétuo dos indivíduos. Finalmente, no que diz respeito aos limites da autonomia da ciência e da técnica na arbitragem da criminalidade, é preciso registrar a atual ausência quase absoluta de limites sócio-técnicos à tradicional autonomia da psiquiatria forense na emissão de laudos na área criminal. Além de haver historicamente atribuído à medicina o monopólio para determinar a responsabilidade e a periculosidade criminais, a justiça criminal institucionaliza condições de autonomia para o exercício dessa função por parte da psiquiatria forense que superam, provavelmente, os níveis de autonomia que a profissão médica detém como um todo, incluindo também outras áreas de atuação da medicina legal. Se por autonomia da medicina entendemos, junto com Friedson (1993), a possibilidade da profissão criar, de maneira independente, e auto-validar as regras do exercício profissional, podemos concluir que estes atributos se manifestam de maneira radicalizada nas perícias psiquiátricas. Com efeito, o exame pericial que constitui a base da emissão de laudos de sanidade mental e de cessação de periculosidade consiste em uma entrevista ou interrogatório dirigido à obtenção de evidências sobre a responsabilidade e a periculosidade do periciado com relação a um evento passado, no primeiro caso, e a eventos incertos de natureza violenta ou criminosa, num futuro também indeterminado. Do ponto de vista dos direitos humanos dos sujeitos periciados, trata-se de uma tecnologia que não oferece garantias mínimas, no sentido de permitir realizar controles técnicos posteriores, devido à irreplicabilidade dos procedimentos e, portanto, à impossibilidade de introduzir a avaliação por pares. Diferentemente do que acontece em outras áreas da medicina legal, onde as evidências forenses são ou podem ser registradas por meio de imagens e outros suportes tecnológicos ou materiais, assistimos aqui a elaboração de juízos profissionais baseados em informação obtida a partir de evidências imateriais (simbólicas, objetivas ou subjetivas) e irrepetíveis, devido ao contexto interacional entre perito e periciado que caracteriza o ato forense. Referências Abdalla-Filho, E. (2004a). Transtornos da personalidade. In: J. G. Taborda.; M. Chalub; E. AbdalaFilho. Psiquiatria Forense. São Paulo: Artmed, pp. 281-295. Abdalla-Filho, E. (2004b). Avaliação de Risco. In: J. G. Taborda.; M. Chalub; E. Abdala-Filho. Psiquiatria Forense. São Paulo: Artmed, pp. 161-174. Castel, R. (1991). From Dangerousness to Risk. In: G. Burchell; C. Gordon; P. Miller(Ed.) The FoucaultEffect. Chicago: The University of Chicago Press, pp 281-298. Cordeiro, J. C. D. (2003). Manual de Psiquiatria Clínica. 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Institute Simon Frazer University. 147 O CONTEXTO HISTÓRICO DE UMA ONG/AIDS E O PAPEL DO PSICÓLOGO NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA Pedro Augusto Garcia Marini (Psicólogo Voluntário do GAPA/RS, endereço eletrônico: [email protected]), Marcela Haupt Bessis (Psicóloga Voluntária do GAPA/RS), Carla Almeida (Presidente do GAPA/RS) Palavras chaves: ONG, HIV/AIDS, Atendimento Psicológico SIDA é a sigla em português para AIDS, que significa Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. HIV é a sigla em inglês para Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). A AIDS é uma doença infecciosa, transmitida por um vírus chamado HIV. Para se ter AIDS é preciso estar contaminado com o vírus HIV; não existe AIDS sem a presença do vírus. Segundo a OMS (2005), cerca de 40 milhões de pessoas possuem a enfermidade, das quais 20 milhões morreram. Neste triste panorama evidenciamos tanto os graves problemas de investimentos do governo em políticas públicas que promovam a prevenção, promoção e tratamento da saúde destas pessoas, quanto à negação de grandes empresas em ter seu nome associado à ONGs/AIDS. Sabemos da importância destas instituições no combate ao preconceito, repúdio e descaso social, sendo muitas vezes a única opção de auxilio. O objetivo deste trabalho é descrever e refletir sobre o processo histórico da ONG Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS no Rio Grande do Sul (GAPA-RS) ao longo dos anos, com enfoque no Serviço de Atendimento Terapêutico (SAT) e no papel do psicólogo nesse local. Esta é uma pesquisa bibliográfica e documental, pois recupera a história da instituição junto com a evolução da epidemia do HIV/AIDS, além de explicar esta situação sob o prisma da saúde pública. A HISTÓRIA DAS ONGS NO BRASIL O termo ONG nem sempre foi atribuído com facilidade a denominação de uma construção social, ou, uma alternativa ao conturbado cenário que se instaurava na década de 80, com as lutas de classe e toda espécie de vulnerabilidade social. Na verdade o termo, assim como esta “particular instituição” foi passando por diversas modificações de acordo com o momento em que se faz inscrever no âmbito da historicidade. Álvares (2000) atribui o aparecimento das ONGs a partir do paradigma desenvolvimentista, íntimo do conceito de modernidade e industrialização, ao qual deu possibilidade do surgimento desta como uma alternativa aos Estados Liberais. Ao que tudo indica esta forma de organização social, mais independente do estado, promotora de pluralidade, igualdade e ajuda mútua, surge como resposta à crescente pobreza nos países menos desenvolvidos, herança do modo de organização dos Estados Nacionais, remetente à idéia de colonialismo e modelo escravocrata. Landim (2002) chega a mencionar que já na década de 70 vê-se o aparecimento, ainda que em estado latente, do que se pode chamar de atores não-governamentais. Entretanto, referindo-se ao que estava ocorrendo nas duas décadas que viriam em seguida, as ONGs se fizeram presente principalmente aos “movimentos sociais ligados à construção de identidades e sujeitos coletivos, de grupos de defesa de direitos específicos ou difusos: ambientalismo, mulheres, negros, portadores de HIV, povos indíginas, crianças e adolescentes, etc (Landim, 2002). Assim, podemos descrever uma porção de conotações relativas ao conceito de ONG: “entidades existindo « a serviço de determinados movimentos sociais ou grupos dominados (…) dentro de perspectivas de transformação social » (Landim 1988), “micro-organismos do processo democrático, referências, lugares de inovação e criação de novos processos », ou « espaços de criação da utopia democrática” (Souza 1992) citado por (Landim, 2002),“ canais de participação das classes 148 médias na esfera pública, exercendo funções de tradução e rearticulação dos interesses e demandas populares nas arenas institucionais de confronto e negociações sociais" (Oliveira Neto 1992) citado por (Landim, 2002), “inovação institucional da esquerda brasileira » (Fernandes & Piquet 1992) citado por (Landim, 2002), “novidade institucional” no cenário latinoamericano” (Landim, 2002). A história da epidemia da AIDS no Brasil surge em meio ao processo de redemocratização no país. Ainda com reminiscências do período de ditadura militar que durou cerca de duas décadas, a sociedade recém esboçava tomar o controle através de uma participação democrática. Contudo, estes movimentos sociais tomaram a proporção de as primeiras iniciativas à reconstrução da sociedade civil. Impulsionados por uma militância que ameaçava à ordem ditatorial que outrora imperava, partidos políticos de esquerda e algumas ONGs ganharam força no cotidiano das pessoas (Silva, 1998). Atores tipicamente não-governamentais, como o próprio GAPA, segundo Souza (2007) assumiram importante resistência contra a epidemia. A epidemia de AIDS visibilizou segmentos sociais historicamente estigmatizados e impulsionou a organização destes grupos. Facchini (2005) citado por Souza (2007) chega a comentar que epidemia da AIDS “fundou” o movimento homossexual organizado, manifestando-se sob diversas formas e canais. Questões como a promoção da autonomia, o incentivo da responsabilidade frente ao tratamento, ou até mesmo a qualidade que muitas ONGs assumem de “tradutoras” da linguagem biomédica são alguns pontos centrais que permeiam o universo destas instituições. Portanto, a demasiada dependência médica que estes usuários evidenciam em seu dia-a-dia, é minimizada e relativizada em um contexto menos alienante e mais proativo. Aliada a parcerias que sustentam relações formais, institucionais, e com uma diversidade de atores, o usuário torna-se mais consciente acerca da doença e, por conseguinte, de sua própria saúde (Silva, 1998). História do GAPA/RS O GAPA-RS foi constituído em 1989 a partir da idealização de um grupo de jovens, que tinham descoberto serem portadores do vírus HIV e que percebiam a necessidade de se encontrar e trocar informações sobre “essa doença” (HIV/AIDS), ainda pouco conhecida por todos. Também teve como o objetivo de se formar um grupo de pessoas visando um encontro social entre iguais, pois na época ainda existia muito preconceito e exclusão social com relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS. Primeiramente se estruturou o GAPA-SP e no dia 03 de abril de 1989 nasceu o GAPA-RS (GAPA/RS, 2001). Em 1996 já se contabilizava que a instituição contemplava em torno de 80.000 pessoas atingidas diretamente pelos projetos de sensibilização sobre a doença. Estes trabalhos, sendo elaborados junto à população foram um grande marco para a ascensão e consolidação das práticas de cunho reflexivo e de promoção da cidadania que sempre acompanharam o GAPA/RS (GAPA/RS, 2001). Nesta mesma época, quanto a atendimentos diretos ou indiretos que eram prestados pelos diversos atores engajados na assistência à comunidade, temos um total de 500 atendimentos diretos por mês na sede na sede e 2.000 atendimentos indiretos por mês. Assim, para se manter a excelência do atendimento e respeitabilidade desta instituição, muito da ajuda era provinda de entidades internacionais que financiavam parcialmente projetos específicos. Isso, aliado ao trabalho voluntário, em ultima análise foi o que sustentou e ampliou os serviços oferecidos a comunidade (SILVA, 1996). O Serviço de Atendimento Terapêutico (SAT): a atuação do psicólogo Criado em 1992, o Serviço de Atendimento Terapêutico (SAT) era basicamente composto por psicólogos. Consistia-se em um dos programas adotados pelo GAPA no processo de acolhimento dos usuários. Em estrita relação com outros serviços, como o Plantão de Acolhimento Pessoal e Telefônico, Serviço de Visitação e a Atividade de Adesão, o SAT com sua especificidade de 149 intervenção estruturada nas noções de escuta ativa e aconselhamento, visava contemplar todas as nuances da integralidade (GAPA/RS, 2001) A consolidação do atendimento psicoterápico veio com o entendimento de que as pessoas que procuravam a instituição demandavam um assistência de qualidade e de natureza mais profunda que o próprio aconselhamento. Daí o fato de o SAT ter adotado variadas formas de atenção psicológica como psicoterapias em grupo para familiares, para crianças, psicoterapia longas, terapias alternativas. Após este primeiro momento de experimentação, finalmente adotou-se o método de psicoterapias breves e pontuais, como técnica mais adequada à população que procurava a instituição (GAPA/RS, 2001). Não há dúvidas sobre os valiosos benefícios que um trabalho como este pode auxiliar no processo de tratamento e reabilitação de pacientes acometidos pelos infortúnios do HIV. O que buscamos com este trabalho, além da recuperação histórica da instituição, entender o papel do psicólogo neste tipo de instituição. A vasta literatura a esse respeito aponta que as diversas ações realizadas pelos psicólogos, estão centradas no aconselhamento pré-pós testes, a psicoterapia individual a pacientes ambulatoriais e internados, a psicoterapia de grupo com pacientes soropositivos e com seus familiares, bem como com os profissionais que lidam com pessoas com HIV/AIDS, além das intervenções de prevenção de diferentes tipos junto a variados grupos populacionais (Zegans et al., 1994, Catalan, 1995; IDAC/BANCO DE HORAS, 2000; Buchalla, Paiva, 2002; Silva et al., 2002; Saldanha, Figueiredo, Coutinho, 2004) citados por (Rasera e Issa, 2007). Segundo Emerson (2007) um dos principais desafios da atuação do psicólogo no contexto de ONG/AIDS está na sincronia que este profissional deve ter entre sua prática e o compromisso social, sem perder de vista a própria relação entre terapeuta/paciente, o lugar que este último está para o primeiro. Conforme o psicólogo e ex-presidente do GAPA José Eduardo Martins Gonçalves (GAPA/RS, 2001) um importante recurso que, não somente o psicólogo, mas também outros profissionais da saúde podem dispor para trabalhar no nível da saúde integral é o processo da construção do ato de aconselhamento. A epidemia da AIDS abalou as estruturas das ciências positivistas, mostrando que uma abordagem que não admita as noções de integralidade do ser humano, pouco tem a oferecer em resistência à doença. Desta forma, por trás da noção de aconselhamento existem dois pilares que, dentro do contexto da psicologia inserida em ONGS/AIDS, consolidaram qualquer iniciativa de intervenção terapêutica: o acolhimento, que nos leva a dar valor ao outro em sua individualidade e essência, e a escuta ativa, sendo o instrumento do aconselhamento. É o espaço que se instaura a pergunta. Ao descrever o trabalho realizado por psicólogos do Grupo Humanitário de Incentivo à Vida (GHIV) em uma organização não governamental de Ribeirão Preto/São Paulo/Brasil, (Rasera e Issa, 2007) falam sobre a importância de novas posturas no campo psicológico que busquem responder ao compromisso social. Assim, a Psicologia cidadã e a saúde integral foram os principais conceitos e valores que orientaram as ações dos psicólogos daquele Programa. A partir desta postura, foi possível ampliar as noções que condicionaram a soropositividade à questões reducionistas e admitir que diferentes fenômenos como as desigualdades sociais, econômicas, de gênero e/ou sexuais também fazem parte do adoecer. Em concordância com estes preceitos não podemos deixar de salientar acerca da importância do suporte social na manutenção do tratamento, no controle da ansiedade, fortalecimento da autoestima, sentimento de proteção, aceitação e pertencência social. Sendo um dos focos, a promoção e organização da rede de apoio do paciente, é necessário que o psicólogo possa ser, junto com outros profissionais, um agente incentivador do processo de cidadania, através do controle social e de práticas que estejam ligadas com a militância e com uma ideologia renovadora, de força instituinte. Seidl et al. (2005) destacam que a partir de meados dos anos de 1990, os estudos passaram a investigar associações entre variáveis psicológicas (o enfrentamento e suporte social) e a percepção da Qualidade de Vida, buscando identificar assim, fatores que propiciam o ajustamento à condição de enfermidade crônica e enfrentamento ativo diante da disponibilidade de tratamento (Dunbar, Mueller, 150 Medina & Wolf, 1998Friedland, Renwick e McColl, 1996). Estudos sobre pessoas vivendo com HIV/Aids têm apresentado a expressão qualidade de vida relacionada com a saúde (QVRS) que avalia o impacto da saúde nas atividades sociais e na mobilidade, focalizando a ausência ou presença de sinais e sintomas e o efeito de novas drogas ou intervenções na saúde. A QVRS não contempla aspectos como o nível de satisfação do indivíduo com a sua vida, principalmente no tocante às questões como renda, habitação, emprego, meio ambiente, sexualidade, entre outras (Santos et al. 2007). A adesão ao tratamento antiretroviral, segundo Kern (2004), está associada à forma como o sujeito portador conduz ou pretende conduzir sua vida sexual e seus hábitos e relações sociais, assim como à maneira como o sujeito vê a si e como se sente frente à situação presente. Aderir ao tratamento medicamentoso é uma tentativa de inibir ou retardar a degradação sofrida pelo vírus e para o controle do vírus HIV com o intuito de reduzir sua carga viral, e muitas vezes à eficiência do tratamento possibilita ao portador viver muitos anos sem que doenças oportunistas características da AIDS, como tuberculose, herpes, entre outras, se manifestem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se: que mesmo com as dificuldades vivenciada por ONG´s que dependem do trabalho e dedicação de voluntários, o GAPA continua permanecendo um centro de referência em prevenção à AIDS e apoio a pessoas que vivem com HIV/AIDS em Porto Alegre. O atendimento psicológico a pessoas que se encontram em período de janela ou que vivem com HIV/AIDS é extrema importância para a busca de atenção a saúde integral do indivíduo e sua qualidade de vida. Sendo assim, podemos observar o valor desse serviço oferecido aos usuários dessa instituição. REFERÊNCIAS Álvares, L. (2000). ONGs: Uma Alternativa Aos Descaminhos do Desenvolvimento. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 5: 39-62, Dunbar, H. T., Mueller, C. W., Medina, C. & Wolf, T. (1998). Psychological and Schmitz, M. F. & Crystal, S. (2000). Social relations, coping, and psychological distress among persons with HIV/AIDS. Journal of Applied Social Psychology, 30, 665-685. Friedland, J., Renwick, R. & McColl, M. (1996). Coping and social support as determinats of quality of life in HIV/AIDS. AIDS Care, 8, 15-31. GAPA/RS. (2001). GAPA/RS: Uma História em Movimento. Porto Alegre. 90 pp. Kern, F. A.(2004). Redes de Apoio no Contexto da Aids: um retorno para a vida. Porto Alegre. EDIPUCRS. 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(2007). “Respostas Brasileiras à Violência Urbana no Campo da Segurança Pública: Os movimentos sociais e as Organizações não-governamentais. Tese de Doutorado em Ciências na Área de Saúde Pública. Ministério da Saúde - FIOCRUZ – Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro. 146 pp. 152 DA EXCLUSÃO À REFORMA PSIQUIÁTRICA: O HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO FELIPE BASSO SILVA – UFSC – [email protected] PRISCILLA GOMES MATHES – UFSC MANICÔMIO JUDICIARIO; HCTP; TRAJETÓRIA Introdução O presente artigo tem como objetivo pensar o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico – HCTP – como um espaço privilegiado na construção de uma historicidade do tratamento da “loucura”. Metodologicamente, a partir de uma pesquisa bibliográfica e de relatórios produzidos sobre essa instituição, construiu-se um trabalho histórico sobre a saúde mental no Brasil. Substituindo os manicômios judiciais, os HCTP se constituem como uma instituição com duplo sentido: “custodiar e tratar doentes mentais perigosos”, característica esta responsável pelo seu caráter ambíguo, inclusive porque as ações terapêuticas e diagnósticas são avaliadas pelo sistema jurídico penal, exercendo influência nas atividades hospitalares. O Processo de Institucionalização da Loucura: O Manicômio Judiciário Os hospícios surgem enquanto estabelecimento criado para albergar os loucos, como uma classe particular de protagonistas de comportamentos desviantes. Com a criação dos hospícios, a loucura ingressa num novo espaço de observação e tratamento. A esse impulso de reinserção social da loucura num novo espaço respondeu o emblemático gesto do médico Phillippe Pinel, libertando os loucos das correntes que os prendiam dos porões do Hospital de Bicêtre, do qual era diretor, em plena Revolução Francesa. Mediante esse gesto, o louco começou a libertar-se de certas formas de exclusão e confinamento para ser inserido em um novo espaço de observação e custódia, agora sob a lógica cientifico-técnica. (RUSSO, 2002). Mas, diferentemente do que ocorria na Europa, até meados do século XIX, não existia no Brasil nenhum estabelecimento especificamente destinado aos alienados mentais. Vagando pelas ruas ou vítimas do encerro e maus tratos nas prisões, a condição social dos loucos tornou-se foco de atenção da corporação médica, especialmente com a campanha iniciada pelo médico português José Clemente Pereira, formado na Franca, e figura de destaque no cenário político do Rio de Janeiro, sob o slogan “Aos loucos, o hospício”. Tratava-se de uma campanha que pretendia repetir, em terras brasileiras, o mesmo gesto libertador de Pinel. (RUSSO, 2002) Com efeito, a partir de 1830, médicos higienistas do Rio de Janeiro passaram a requisitar a construção de um hospício para os loucos, criticando as insalubres celas da Santa Casa de Misericórdia, os castigos corporais que os doentes mentais sofriam e, de forma geral, os métodos de tratamento dos hospitais gerais. (COSTA, 1976). As Santas Casas de Misericórdia acolheram os doentes mentais em seus hospitais pelo período do primeiro reinado e também na época das regências. Enquanto que os pacientes clínicos e cirúrgicos ficavam nos andares de cima, aos "loucos" eram destinados os porões, geralmente abaixo do piso reservado aos pacientes com cólera. De acordo com Bastos (2007), os loucos mais agitados eram presos ao tronco para serem espancados pelos guardas. Pouco tempo depois, em 18 de Julho de 1841, exatamente no dia em que assumiu o trono, Dom Pedro II assinou o decreto de fundação do Hospício Pedro II, finalmente inaugurado em 1852. Durante quase quatro décadas, esse estabelecimento permaneceu sob o domínio de uma congregação de freiras e de uma administração que respondia ao poder político. Recém com a Proclamação da República e sob os protestos do médico José Carlos Brandão, o hospício passa a ser uma instituição de assistência médica, com a substituição das freiras por funcionários de enfermagem e a transferência da direção para um médico. (COSTA, 1976). 153 Já em nesse período, a partir de 1835, os doentes mentais e os menores de 14 anos são considerados juridicamente inimputáveis de acordo com a lei de 04 de junho desse ano. (RIGONATTI, 2003). Em 1890 o Hospício D. Pedro II passa a ser o Hospital Nacional dos Alienados, sob responsabilidade do Estado e não mais da Santa Casa de Misericórdia. (COSTA, 1976). Apesar da Lei de 1835 legislar sobre a inimputabilidade dos doentes mentais e dos menores de 14 anos, não há dados que comprovem que ela tenha sido de fato efetivada e quem determinaria sua aplicação. De acordo com os estudos disponíveis (VENÂNCIO, 2003), durante as três primeiras décadas do século XX, o movimento da higiene mental ganha um forte impulso no Brasil, a partir da articulação de elementos do alienismo francês, do cientificismo organicista da psiquiatria alemã, e dos projetos políticos voltados para o enfrentamento dos problemas sociais. Nesse período, ocorre no Brasil a transformação do asilo em hospital psiquiátrico. Trata-se de uma transformação que instituirá o mandato social para a psiquiatria cumprir um papel específico na organização das respostas sociais, e particularmente estatais, ao problema social gerado pela loucura. No entanto, a instituição asilar, mesmo quando começou a adotar uma estrutura hospitalar, não teve um surgimento e distribuição homogêneanos no Brasil. No período da Primeira República, apenas alguns estados da União criaram asilos ou colônias de alienados, o que terá repercussões no desenvolvimento da assistência e formação dos psiquiatras ao longo do século XX. (MACHADO et all., 1978; JABERT,2005) Na primeira legislação criminal brasileira, que corresponde ao Código Criminal do Império do Brasil (1830), não foi previsto nenhum tipo de tratamento especial para os "loucos de todo gênero" que houvessem cometido crimes. Devido a isso, eles geralmente eram confinados nas instituições a eles reservadas ou no seio dos próprios lares, cabendo a decisão exclusivamente ao juiz. A obrigatoriedade de realização de perícias médicas e a criação de asilos e ou de alas especiais para os doentes mentais criminosos vai concretizar-se recém em 1903, a partir do Decreto 1132, impulsionado pela atuação legislativa de Teixeira Brandão. Nesse momento, foi aprovado o Regulamento de Assistência a Alienados do Distrito Federal. Somente então foram previstas legalmente tanto a obrigatoriedade da realização de perícia médica para internação em manicômios quanto a necessidade da criação de alas especiais para os loucos criminosos nos asilos para alienados existentes (CARRARA, 1987, p. 49) A malha institucional brasileira nesta área se mantém, até o presente, bastante heterogênea e complexa. De fato, a maioria dos estados brasileiros não dispõem de unidades de tratamento psiquiátrico-forense, além de serem inúmeras as cidades brasileiras que não possuem peritos oficiais em psiquiatria forense. (ABDALLA-FILHO, 2003). Em Santa Catarina, durante o governo do Interventor Nereu Oliveira Ramos (1936-1947), foram construídos na Grande Florianópolis, dois grandes hospitais colônias, ambos destinados ao tratamento de pacientes com doenças crônicas ou graves: Hospital Colônia Sant'Ana (HCS), criado em 1941, especificamente destinado ao tratamento de pacientes psiquiátricos, e o Hospital Colônia Santa Teresa, criado em 1943, destinado ao tratamento de pacientes com hanseníase. Outro empreendimento desse porte no mesmo período foi a criação do Hospital Nereu Ramos em 1940, para o isolamento e tratamento de pacientes portadores de tuberculose e de outras doenças infecto-contagiosas. (PAULING; TURATO, 2001) Durante as décadas de 1941 a 1960, a assistência aos doentes mentais era basicamente hospitalocêntrica, e o tratamento do doente mental visava afastá-lo do convívio familiar e social, acreditando-se que dessa forma, o doente poderia obter benefícios terapêuticos e o meio poderia ser saneado com sua ausência. (BORENSTEIN et.all 2007). No entanto, a partir da década de 1950, já se observavam sinais claras de um progressivo caos e deterioro das estruturas hospitalares nesta área, caracterizados pelo abandono e péssimas condições de vida dos pacientes internados. A Lei e o “Louco Infrator” No século XIX, a relação entre violência e doença mental cumpriu um papel fortemente estruturante do saber psiquiátrico. “A prática e o saber psiquiátricos constroem-se, dessa forma, em estreita relação com o campo da justiça criminal, questionando os pressupostos da doutrina clássica do 154 direito penal tais como responsabilidade e livre-arbítrio (Castel, 1978; Harris, 1993; Foucault, 1991, 1990).” (PERES; NERY FILHO, 2002, p.336). A psiquiatria ampliou os limites da anormalidade e também atuou como instância de controle social ao aderir à teoria de degenerescência de Morel e à antropologia criminal de Lombroso. O Código Criminal do Império de 1830 tipificava os doentes mentais como os "loucos de todo gênero". Este termo ainda continuava a estar presente no Código Civil de 1916. (PICCININI, ODA, 2009). Com a abolição da escravatura, o Código Criminal do Império foi reformado e foi aprovado como lei em 11 de outubro de 1890. Esse passou a ser o primeiro Código Penal da República, trazendo significativas alterações “no estatuto jurídico penal do doente mental e seu destino institucional”. (PERES; NERY FILHO, 2002, p.337). Essas alterações aparecem nos artigos 1, 7, 27 e 29: Art 1. Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido qualificado crime, nem com penas que não estejam previamente estabelecidas. Art 7. Crime é violação imputável e culposa da lei penal. Art 27. Não são criminosos: §3. os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; §4. os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime. Art 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim o exigir para a segurança do público. É a lei, por meio do Código Penal Brasileiro - Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - que apresenta uma primeira concepção do indivíduo inimputável. Segundo o artigo 26, é “isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Esse é o indivíduo criminoso destituído de razão. (PAVEZI, 2009). Ou seja, efetivamente, a partir do Código de 1940 a doença mental passa a ser considerada causa excludente de culpabilidade. Isto porque este código apresenta dois tipos de resposta social: a pena, sendo definida de acordo com o grau de culpabilidade do indivíduo e a gravidade de seu ato; e a medida de segurança, baseada na avaliação do nível de periculosidade do acusado. Com isto, passava a ser competência dos psiquiatras a avaliação do "estado perigoso" daqueles que tivessem cometido algum crime. Esta medida de segurança ao mesmo tempo que alcança os "loucos criminosos", lhes garante sua absolvição do ponto de vista penal. Ou seja, esses doentes mentais não podem sofrer alguma punição, mas devem receber tratamento. Para isto há a necessidade da medida de segurança com internação em manicômio judiciário, especialmente pela periculosidade do paciente presumida por lei. Na verdade, a medida de segurança era não somente aplicável aos doentes mentais que infringissem a Lei, mas também a alguns casos específicos como os reincidentes em crimes dolosos e/ou aos aliados de quadrilha de criminosos (C.P. art. 78). (MITJAVILA, 2009; COHEN, 1999). Em 1984, o Código Penal de 1940 teve sua Parte Geral revisada, reservando a qualificação de periculosidade social apenas aos doentes mentais que infringirem a Lei (C.P. art.97), restringindo a medida de segurança para os doentes mentais penalmente inimputáveis. Houve também nesse ano a promulgação da Lei de Execução Penal (LEP), n. 7.209, de 11 de julho de 1984, criada com três objetivos principais: garantir o bem-estar do condenado; classificar o indivíduo e individualizar sua pena; e dar assistência durante o período de cumprimento da pena. Contudo, quanto à sua efetividade, percebe-se “um grande abismo” entre a realidade e a legislação, dando a sensação de “letra morta” à Lei de Execuções Penais. Aqui cabe ressaltar que Escorel (1905, p. 49 apud PERES; NERY FILHO, 2002, p.339) comenta o Código Penal, destacando a diferença existente entre imputabilidade e responsabilidade. Se imputar relaciona-se com atribuir uma ação a um sujeito, a imputabilidade é uma qualidade que garante uma relação causal entre alguém e uma ação, que aqui é delituosa. Já a responsabilidade está relacionada com as conseqüências do ato praticado. Assim, os loucos não são responsáveis pelos atos cometidos por estarem compreendidos no parágrafo 4 do artigo 27 como inimputáveis, se não lhes são atribuídos os atos, tampouco respondem legalmente por eles, estando isentos de sanções penais. Se a estratégia alienista já se ocupava com o controle social, a questão dos doentes mentais perigosos aparece como mais uma função. De acordo com o novo Código Civil, há a possibilidade, segundo seu artigo 1.772, da 155 interdição parcial: “pronunciada a interdição (...) o juiz assinará segundo o estado, o desenvolvimento mental do interdito, os limites da curatela”. Isso permite que o juiz limite a curatela, para que o doente mental possa praticar alguns atos da vida civil sem a interdição total. Já àquele que estava interditado totalmente, antes do atual Código Civil, é possível a revisão dessa interdição, visando alcançar uma interdição parcial. Caso o curador não quiser fazer o requerimento, o Ministério Público pode ser acionado. A Lei 10.216 se aplica também ao usuário de álcool e outras drogas, pois estes estão com a saúde mental comprometida, ou que possuem transtorno mental decorrente do uso de álcool e drogas. Aqui a perícia médica será necessária para uma avaliação acerca do grau de comprometimento mental pelo uso do álcool e/ou outras drogas. Cabe destacar a diferença entre curatela e tutela, pois aquela é específica para os incapazes por problemas mentais, assim como para os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e também os pródigos, enquanto que a tutela é somente para o menor de idade sem representante legal. (ALVES, 2004). As medidas acima comentadas aparecem nos arts. 96 e 97 do atual Código Penal Brasileiro da seguinte forma; Art. 96. As medidas de segurança são: I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II - sujeição a tratamento ambulatorial. Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. Imposição da medida de segurança para inimputável Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial. Prazo § 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos. Enquanto à legislação sobre saúde mental, pode-se dizer que o Decreto de 1934 mostrou e evidenciou a medicina preocupada com a profilaxia e a higiene mental, visando superar os males que afetavam o povo. Também com esse decreto, surge o médico psiquiatra como perito para determinar a existência ou não da doença mental. Porém, foi com o projeto de lei de 1989 que a percepção sobre a reforma psiquiátrica se mostrou imprescindível, especificamente no que tange à luta pelos direitos humanos e sociais dos doentes mentais. Após este decreto, há a promulgação da Lei 10.216 (2001), a qual é na realidade um documento de intenções. Nela estão presentes princípios como a proteção dos doentes mentais e o anseio de melhorias no atendimento desse segmento da população. De fato, esta lei atual anseia garantir os direitos básicos do doente mental, reconhecendo a internação psiquiátrica integral não como um problema, mas como mais um recurso terapêutico – desde que o atendimento seja de boa qualidade –, ainda que destaque a urgência de políticas que objetivem a desospitalização. (PICCININI, ODA, 2009). O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico: um estudo de caso Com a Reforma Penal de 1984, o Manicômio Judiciário passa a ser chamado de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, alterações essas previstas no art. 99 da Lei de Execuções Penais e no Código Penal Brasileiro (arts. 96 e 97). O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Florianópolis (HCTP) é uma instituição pública, sob responsabilidade estatal. Integra o conjunto de instituições do Sistema Penal do Estado de Santa Catarina, está ligado ao Departamento de Administração Penal - DEAP e subordinado à Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa do Cidadão. Foi criado em 1971, de acordo com a Lei Estadual nº 4.559, de sete de janeiro de 1971, sob a administração do governador Colombo Machado Salles e presidência do general Emílio Garrastazu Médici, como exigência do Código Penal. O HCTP, anteriormente denominado Manicômio Judicial, é um órgão de defesa social e de clínica psiquiátrica, constituindo-se em um misto de hospital-presídio. Tem como objetivo o tratamento psiquiátrico do paciente, preservando os direitos humanos e a dignidade do mesmo, garantindo qualidade de vida e bom atendimento durante a hospitalização. Visa tratar e recuperar seus 156 internos, buscando uma reintegração deles ao meio social e custodiar estes indivíduos que, por determinação judicial tem uma medida de segurança a cumprir pelo delito que cometeram. Sua finalidade, definida segundo regimento, é: I - realizar perícia psiquiátrica para fins de apuração de responsabilidade penal; II – receber, para fins de tratamento psiquiátrico e por determinação judicial, os pacientes que apresentarem sintomas de doença mental no decurso de prisão provisória ou após a sentença condenatória; III – proceder a exame de sanidade mental em detentos quando solicitados pela Autoridade Judiciária ou pelo Conselho Penitenciário do Estado; IV – exercer outras atividades relacionadas com a natureza do Hospital e sua finalidade específica (Decreto nº 4.283, de 22 de fevereiro de 1994). Atualmente, com a lei de Paulo Delgado, prevê-se uma progressiva extinção dos manicômios, assim como a sua substituição por outras formas de atendimento, além de regulamentar a internação psiquiátrica. Vários Conselhos de familiares de doentes mentais e ONGs - nacionais e internacionais – têm apoiado o movimento antimanicomial. Contudo, o “louco criminoso” não está inserido na mesma lógica, pois não se defende o fechamento dos Manicômios Judiciários nem a reintegração desse doente à sociedade. (MELO, 2004) Em fins de 1980, os movimentos sociais do Brasil associados à luta pelos direitos humanos culminaram na Reforma Psiquiátrica, garantindo uma nova Política de Saúde Mental, com as seguintes características: redução de leitos; controle sobre os hospitais psiquiátricos; rede de serviços alternativos para substituição dos leitos; aprovação da nova legislação de saúde mental – a Lei nº. 10.216, de 6 de abril de 2001 –; incentivo ao processo de desinstitucionalização; e a saúde mental como parte integrante do sistema de educação do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Mângia (2008), nesse processo identificam-se duas vertentes de enfrentamento: a tecnocrática, priorizando ações de influência na atuação dos profissionais que lidam com os doentes mentais, como desativação das celas fortes, proibição do eletrochoque e de novas internações; e a comunitária, preocupada com a participação dos doentes mentais e de seus familiares no processo de mudança. A Portaria nº 224, de 29 de janeiro de 1992 do Ministério da Saúde determina as diretrizes do atendimento dos doentes mentais nos serviços de saúde mental, normatizando serviços como: atendimento ambulatorial com serviços de saúde mental (unidade básica, centro de saúde e ambulatório), Centros e Núcleos de atenção psicossocial (CAPS/NAPS), atendimento de urgência psiquiátrica em hospital-geral, leito psiquiátrico em hospital-geral, Hospital-Dia (HD). Enquanto que a Portaria nº 106, de 11 de fevereiro de 2000(3), passa a determinar os Serviços Residenciais Terapêuticos para os pacientes de longa permanência dos hospitais psiquiátricos. (PICCININI, ODA, 2009). Cabe destacar que a desinstitucionalização não se restringe a deslocar para a comunidade o centro da atenção, em contrapartida do hospício ou do manicômio, ainda que, como realidade concreta, esse seja o ponto principal desse processo de mudança da percepção da loucura e do tratamento do paciente. (HIRDES, 2009) Considerações Finais No Brasil, observou-se um desenvolvimento tardio do alienismo. Porém, a relação entre a loucura e a criminalidade fez parte de discussões teóricas e políticas, nas quais o campo do direito criminal garantiu seu lugar de destaque, gerando debates entre alienistas e magistrados, derivando na constituição de uma intervenção penal para os doentes mentais delinqüentes. (PERES; NERY FILHO, 2002). Quando se fala de Manicômio Judiciário, a ambigüidade está sempre presente, ao se pensar nas dicotomias “guarda/enfermeiro, presos/pacientes, pena/tratamento, hospital/prisão” envolvidas nesse contexto (DELGADO, 1992, p. 57). Esse espaço, que comporta pacientes internados por longos períodos ou aguardando os exames periciais, cumpre duas classes de funções, a de custodiar, mas também a de tratar doentes mentais perigosos, se definindo como um misto de hospital e presídio. Esta característica seria responsável pelo caráter ambíguo da instituição e dos profissionais inseridos 157 nela, tanto pelo fato de custodiar e tratar ao mesmo tempo, como pelo fato de as ações terapêuticas e diagnósticas do médico responderem aos imperativos e normas do sistema jurídico penal. Segundo Carrara (1987 apud PINTO, 2004, p.69), as práticas e os pensamentos jurídicos e médicos encontram no manicômio judiciário o espaço privilegiado para sua junção. Porém, apesar da mudança de nomenclatura, os hospitais de custódia se constituem em uma instituição com o duplo sentido de “custodiar e tratar doentes mentais perigosos” (CORDIOLI, 2004: 22), se definindo como esse misto de hospital e presídio. Esta característica seria responsável pelo caráter ambíguo da instituição e dos profissionais inseridos nela, tanto pelo fato de custodiar e tratar ao mesmo tempo, como pelo fato de que as ações terapêuticas e diagnósticos do médico são medidos pelo sistema jurídico penal, sendo ainda uma influência nas limitações técnicas do hospital. Atualmente, com a Reforma Psiquiátrica, têm-se novas concepções sobre o transtorno mental e como tratá-lo. Com a aprovação da Lei Federal n° 10.216, a realização do Seminário para a Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e a publicação da Portaria n° 623, em abril de 2002, surge uma nova etapa no redirecionamento da assistência ao portador de transtorno mental infrator. Tornou-se consensual a compreensão de que o Sistema Único de Saúde – SUS e a rede de atenção à saúde mental devem se responsabilizar pelo acompanhamento da pessoa submetida à medida de segurança. Contudo, apesar dos avanços alcançados na legislação e na assistência aos portadores de transtorno mental, a temática da medida de segurança tem sido pouco abordada e aprofundada na Reforma Psiquiátrica Brasileira. Nesse sentido, é preciso destacar, mais uma vez, que a luta antimanicomial, o questionamento das condições de vida e a defesa dos direitos da população internada por decisão judicial não tem sido, até o momento, incluídos na agenda da reforma psiquiátrica em curso no Brasil. A participação das profissões do campo social – Serviço Social, Psicologia, Direito – no registro desta ‘omissão’ poderia representar um começo de ruptura com esse silenciamento que caracteriza práticas discursivas e não discursivas de diversos tipos de agentes neste campo. 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Manguinhos, vol. 10(3): 883-900, set.-dez. 159 A VIDA REDUZIDA ÀS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE: VIVÊNCIAS E NOVAS POSSIBILIDADES Autores: Regina Longaray Jaeger-Doutoranda em Psicologia Social e Institucional/UFRGS Tania Mara Galli Fonseca-Professora do Programa de Doutorado em Psicologia Social e Institucional/UFRGS Email: [email protected] Palavras-chave: instituições, genealogia, transdisciplinaridade Apresentação do tema Durante a experiência de residente multiprofissional da Escola de Saúde Pública (RGS), na ênfase Saúde Mental Coletiva, realizada no ambulatório do Hospital Psiquiátrico São Pedro(HPSP) e no serviço substitutivo Centro de Atendimento Psicossocial- Centro(CAPS), em Porto Alegre, entre os anos de 2009 e 2011, apontamos uma questão comum: a preocupação das equipes de saúde em relação aos usuários com histórico de longa permanência nesses serviços. Apesar de longo tempo de tratamento e das respostas consideradas satisfatórias pelo serviço especializado, a indicação de encaminhamento para outro serviço e/ou atividade provocava no usuário extrema insatisfação, e, muitas vezes, consistindo um problema importante na constituição de novas redes institucionais e sociais. Vidas reduzidas à doença sob cuidados garantidos pelos benefícios sociais, sentem que lhes restam apenas as vias institucionais de cuidados tutelados, para garantir sua sobrevivência. Expressam a dificuldade de se ligar a outras instituições que não seja pelo assujeitamento à doença mental. Diante da possibilidade de ruptura do vínculo com a instituição especializada, entendem que dificilmente encontrarão outro espaço que “solucione” seus problemas ou mesmo que os admita. Por que estes dois serviços, arranjos institucionais produzidos por diferentes saberes e poderes coincidem no mesmo problema? Por que estes arranjos institucionais tornam-se essenciais para a integridade da vida de muitos usuários pois que, diante da possibilidade de ruptura do vínculo com a instituição especializada, entendem que dificilmente encontrarão outro espaço que “solucione” seu problemas ou mesmo que os admita? O que carregam estes corpos que precisam ser sustentados pela instituição? Que marcas, consideradas erros os tornam tão frágeis a ponto de se inventar um outro corpo que os sustente e busque animá-lo? É deste ponto de redução da vida à instituição, analisado em trabalho de conclusão da Residência em Saúde, que estou partindo para fazer um projeto de pesquisa no Programa de Doutorado em Psicologia Social e Institucional, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Consideramos que uma pesquisa deve estar articulada com o plano de análise e de intervenção, conectada às problematizações dos cuidados que podem produzir contribuições concretas para novas políticas públicas. Muito vem sendo feito. Mas, apesar dos inúmeros avanços terapêuticos, das políticas e das práticas de desinstitucionalização, a produção do indivíduo crônico/institucionalizado continua a ser um problema proliferante. A cronicidade “estática” das grandes instituições manicomiais foi substituída pela cronicidade “móvel” dos usuários que estão dentro dos serviços substitutivos, residenciais terapêuticos e unidades de saúde. Instituições que se tornam imprescindíveis para suas existências. M. recebia acompanhamento clínico de um hospital geral há anos. Após semanas com evidentes sintomas clínicos buscou atendimento neste hospital. Uma médica ao ver a carteira do Ambulatório Melanie Klein alegou que o que sentia eram problemas psicológicos. M. necessitou retornar ao ambulatório e solicitar uma comprovação da especialista, que afirmasse que não se tratava naquele momento, de uma doença psiquiátrica para então receber o atendimento necessário. Usuários movem-se diariamente em serviços de saúde sobrecarregados onde a precarização do trabalho mina o desejo das equipes em construir um permanente trabalho multiprofissional e intersetorial: “Precisamos desaprender a achar que vamos construir um SUS com fragmentos de profissões e entre profissões” (Mehri, 2011). Dificuldades estas que se expressam nas redes de serviços. Neste trabalho, propomos analisar a constituição das práticas desterritorializantes em saúde, enfocando a clínica transdisciplinar como uma via importante em desestabilizar as fronteiras rígidas dos especialismos para promover potências de vida para além das dicotomias de um sujeito doente. Alguns contornos teóricos 160 O processo denominado Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo ao movimento sanitário, iniciado na década de 1970. A luta em favor da reformulação dos modelos de gestão, atenção, de defesa da saúde coletiva, equidade, teve como aspecto importante a participação dos trabalhadores e usuários de saúde nos processos de gestão e tecnologias de cuidado. Este movimento social heterogêneo conquista direito nas instâncias máximas de decisões em saúde, confere ao SUS uma singularidade histórica e internacional de controle social. “Controle social, no sistema de saúde brasileiro, quer dizer direito e dever da sociedade de participar do debate e da decisão sobre a formulação, execução e avaliação da política nacional de saúde.” (Ceccin, R.; Feuerwerker, 2004, p.43). Atualmente o processo de reforma da assistência em saúde mental está em transição de um modelo centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário. No entanto, apesar dos direitos de participação dos usuários nas instancias políticas formais, segue-se muitas vezes a lógica tutelar manicomial nos novos serviços. Os cidadãos devem ser escutados; os doentes, nem tanto. Os serviços substitutivos, dispositivos estratégicos da atual política pública de assistência à saúde mental, vieram para romper com a lógica manicomial através da construção de rede de atenção psicossocial, com base territorial. Tornar-se-á um instrumento de desinstitucionalização “se for capaz de produzir uma relação e um lugar social diferentes para a experiência da loucura para aquele que a experiência se, no seu dia-a-dia, no seu cotidiano, inventar um outro modo de funcional, de se organizar e de se articular com a cidade.”(Leal; Delgado, 2008). A escassez dos recursos intersetoriais na rede pública de Saúde da Prefeitura Municipal de Porto Alegre vem sobrecarregando os serviços do Caps(Centro de Atendimento Psicossocial), que se lança a um perigoso “excesso de cuidar” (Mehri, 2010). Corre-se o risco de direcionar uma ação de institucionalização manicomial para sua própria organização interna. A integralidade do atendimento no serviço acaba voltando-se para si, superpondo uma série de cuidados multidisciplinares, constituindo-se em um arranjo institucional que se torna essencial para os sujeitos diagnosticados. O efeito perigoso é o distanciamento das estratégias de desinstitucionalização preconizada pelo movimento reformista que desencadeou o atendimento neste serviço pela via do território: se há escassos recursos de tratamento de saúde, sancionados por políticas públicas, existe uma escassez maior ainda na oferta de recursos não institucionalizados. A desinstitucionalização da loucura, preconizada pelo movimento da reforma, necessita da articulação em campos diferentes, de produção de inusitados arranjos e de diferentes potências. As instituições se antecipam e geram as demandas institucionalizadas. Os usuários,quando entram numa instituição, ganham um número, um prontuários, recebem uma carteirinha. Passa a fazer parte deste arranjo institucional, são privados de outras opções, de contato e legitimidades próprias destituem-se de suas singularidades e assumem as demandas institucionais. Ou seja, aprendem a ser loucos, recebem tutelas institucionais dos programas do governo e passam a ser denominados crônicos quando não conseguem sobreviver fora delas. Denominamos de práticas desterritorializantes em saúde, as práticas que promovem experiências de vida que fogem dos territórios da doença mental, onde territórios “é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre ela mesma” e pode ser remetido a um sistema perceptivo, a um espaço vivido. (Guattari, 1986). Inovadoras, capazes de articular domínios singulares, as práticas desterritorializantes em saúde fazem emergir relações de forças potencializadoras de transversalização de saberes, de ações e afetos. Ao construir rizomas, não localizáveis, ganham velocidade e abrem territórios às forças disruptivas, que traçam linhas de fuga. Tais práticas desarranjam o funcionamento da máquina concreta que encarna o acontecimento loucura, não sem o risco de transformarem em práticas que empreendem a reterritorialização da tutela manicomial. Linhas revolucionárias foram em muitos lugares repartidas, sedentarizadas, reestratificadas, institucionalizadas sob um conjunto de saberes e poderes, para constituir técnicos, sujeitos doentes, indústrias... Procedimentos de pesquisa Utilizamos referências da cartografia: a realidade é uma multiplicidade de elementos heterogêneos, tomados em sua função, em agenciamentos. O vemos, sentimos sempre são agenciamentos de agenciamentos que constituem e são constituídos por um plano de intensidades em conexão, que produzem realidades (Deleuze e Parnet, 1998). É preciso romper as evidencias do que 161 analisamos, do que apóia nosso saber, nossas referencias históricas, com as imposições do mesmo jeito de ser, fazer e sentir. Trata-se de fazer surgir uma singularidade. A partir de uma realidade em movimento, constituída de coisas e fluxos, tomamos alguns elementos destes arranjamentos e complexificamos, tornando-o problemas, “achar de novo as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, que formaram, num momento dado, o que em seguida, vai funcionar como evidencia, universalidade, necessidade.” (Foucault, 2002). Acontecimentalizar requer fazer a genealogia dos acontecimentos, distingui-los, diferenciar quais as redes a que pertencem, a quais arranjos de forças se ligam, de quais matérias se constituem. Algumas conclusões que nos levam a seguir em nossas análises das práticas desterritorializantes em saúde Na pesquisa de conclusão da Residência com usuários do Ambulatório Melanie Klein com indicação de alta terapêutica e/ou encaminhamento para a rede de serviços de saúde, era freqüente referirem que sentiam-se abandonados, “peça fora do jogo”, temiam retornar ao estado de adoecimento anterior. A impossibilidade de vínculo em outros espaços e a falta do tratamento especializado, não conseguiriam forças para viver. Detectamos no acontecimento “ameaçar” um duplo regime de forças com o especialista:ora ameaçando-o, resistindo ao estado de coisas que se apresenta, ora mostrando-se frágil, submetendo-se ao regime de verdades do especialista. O que denominamos doença mental está relacionado com o advento das instituições formadas para seu tratamento. As instituições constituem-se de arranjos de diferentes forças e matérias e imprimem nos corpos que fazem parte destes arranjos, regimes de poder/saber. Entre a doença mental e a instituição de tratamento que produz esta doença e sua cura são estabelecidos arranjos essenciais para algumas demandas e necessidades dos usuários e profissionais da saúde. Se estes usuários forem desengatados isto é, se por diferentes motivos serem encaminhados para fora da instituição de saúde, nenhuma outra instituição os admite com sua singularidade. Tais usuários só existem dentro destas instituições. Se desconstruirmos este arranjo, desconstruímos parte de si mesmas. Sem a presença dos especialistas, ninguém mais pode dar conta da sua condição. Embora haja muita crítica, sustentamos fortemente uma psicologia que reduz o indivíduo às dicotomias: normal e patológico, adaptado e desadaptado, corpo e espírito. A meta a ser alcançada é a resolução da crise subjetiva, um estado de normalidade e de adaptação. Redução dualista “(...) em que um dos pólos é privilegiado como promessa de solução ou apaziguamento da tensão subjetiva(...). “É esta natureza que orienta as atitudes corretivas e adaptadoras, e que faz da tarefa psi o mero atendimento de uma demanda inquestionável.”( Benevides e Passos ,2000). Nos reportamos deste modo as palavras de Rotell(2001)i, quando afirma que o hospital psiquiátrico é local de descarga e ocultamento daqueles “desfiliados” que o Estado capitalista produziu e não deu conta através da assistência, da justiça, da educação... Para que possamos nos aproximar deste intrincado paradoxo: “a instituição cria a doença e a doença cria a instituição”, e da relação essencial que se dá usuário e ambulatório, levantamos a seguinte questão: qual é a experiência do especialista na atualidade? Corpo e mente separados em diferentes especialidades, onde “uma parte não conversa com a outra”. Trabalho realizado em situações sabidamente precárias tem o desafio na atualidade de ampliar seu campo de saber em direção ao campo da saúde coletiva. Segundo Benevides e Passos(2000), em que pese o esforço destes profissionais em flexibilizar as fronteiras rígidas dos saberes, o que se conseguiu foi estabelecer um diálogo entre profissionais mais identificados entre si e a determinados especialismos.( Benevides e Passos, 2000). A clínica transdisciplinar proposta por estes autores exige uma nova postura do profissional, de ruptura do mesmo padrão de atendimento para todos, do conhecimento soberano prévio. É uma clínica que não se limita a agregar disciplinas, mas de amplificar o plano do conhecimento, composto de diferentes matérias, componentes tecnológicos, estéticos, éticos, econômicos, políticos e afetivos. Para Deleuze e Parnet (1998) é preciso uma intradisciplinaridade, transversalização que carrega diferentes potências. Sair destes campos constituídos para produzir novas articulações em diferentes campos. Leva em conta todas as dimensões da pessoa. Abre-se nesta clínica a possibilidade do novo, do inusitado que podem promover potências de vida para além das dicotomias de um sujeito que desvela 162 seu objeto, distribuindo conceitos e classificações. Trata-se de propor aqui de uma clínica que não incorpore promessas salvadoras de cura para demandas extremas, tais como as que chegam ao ambulatório, tampouco se omita ou delegar responsabilidades. Mas de pensar novas práticas que amplificam os especialismos através dos atravessamentos desestabilizadores de diferentes domínios (conceituais, sócio-políticos, etc). É uma clínica que envolve interrogar saberes constituídos, demandas que são construídas como da saúde mental. Mas talvez seja preciso interrogar a potência da clínica de transversalizar campos heterogêneos de saberes e poderes, de estratificações, romper com territórios estabelecidos que dizem o que é doença e não doença. E mais ainda colocar em questão nossos saberes, desarticulá-los sem hierarquias, para fazer aparecer novas potências coletivas. É, portanto, necessário interrogar se queremos abrir mão de nossas terapêuticas exclusivas, de nossas instituições que ainda equalizam loucura e erro, estabelecendo uma linha divisória hierárquica entre usuário e especialista. Referências Bibliográficas Ceccin, R.; Feuerwerker, L (2004). O quadrilátero da formação para a área da saúde:ensino,gestão e controle social. (versão eletrônica)Physis, vol. 14,n.1, pp.41-65. Barros, R. Passos, E. (2000) A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. (versão eletrônica) Psic.: Teoria e Pesquisa,vol.16, pp71-79. Deleuze, G; Parnet, C( 1998). Diálogos. São Paulo: Escuta. Foucault, M. Mesa Redonda de 20 de maio 1978.In Ditos e Escritos VIII. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Guattari,F. ( 1986) Les Anneés d`Hiver. Paris: Barrault. Lea, E; Delgado, P.( 2007) Clínica e Cotidiano:o CAPS como dispositivo de desinstitucionalização. In Pinheiro, P (org.) Desinstitucionalização da saúde mental: contribuições para estudos avaliativos. Rio de Janeiro: CEPESC/ABRASCO. Mehri, E.(2010). A narrativa do sofrimento, a seleção de evidencias na clínica e a formação das profissões em saúde.In 9 Congresso da Rede Unida.Saúde é construção da vida no cotidiano:educação, trabalho e cidadania. Porto Alegre: UFCSPA. Mehir, E.(2011) 6 Conferencia Municipal de Saúde. Porto Alegre Rotelli, F. Leonardis,O. , Mauri,D.(2001).Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec. 163 REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA DO PLANEJAMENTO E A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO HOSPITAL COLÔNIA ADAUTO BOTELHO – SESA/PR Sônia M. B. F. Krachenski - UEM [email protected] Silvana L. Buscioli - UEM [email protected] Aline P. Guedes - UEM [email protected] Palavras chaves: Reforma Psiquiátrica; Planejamento em Saúde; Políticas Públicas. Resumo O presente trabalho pretende estabelecer uma relação entre a prática do planejamento em saúde e as políticas públicas de saúde mental, inserida no processo histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil e no contexto de um hospital psiquiátrico do Estado do Paraná, desde a década de 1980 até os dias atuais. Para compreender este processo, faz-se uma revisão da construção das políticas de saúde mental no Brasil, das diretrizes e normatizações para gerenciamento e implantação dos serviços no novo modelo proposto. Neste trabalho focaremos o processo da desinstitucionalização, o repensar de saberes e práticas e o estabelecimento de novas relações, os quais se encontram em construção, com novos desafios a serem enfrentados. Introdução Para uma melhor compreensão do processo de transformações do modelo hospitalocêntrico considerou-se importante contextualizar o período em que o Hospital Colônia Adauto Botelho (HCAB) foi construído. Tendo como referência o modelo de tratamento dos chamados Manicômios/Nosocômios, no início do século XX, foi bastante difundida a prática racional tanto de terapias biológicas - cirurgias neurológicas, eletroconvulsoterapia, insulinoterapia e tratamento medicamentoso - como da terapia ativa ou praxiterapia, sob influência de Herman Simom na Alemanha e de outros países europeus. O princípio fundamental era a mudança na assistência aos doentes mentais, com objetivo curativo e não apenas custodial (Suliano Filho. 1953). No Brasil criou-se o Serviço Nacional de Doenças Mentais do Ministério da Saúde, sob a gestão do psiquiatra Dr. Adauto Botelho. Tinha como meta a construção de hospitais psiquiátricos e instituições no modelo colônia para doentes crônicos, utilizando as ocupações nos moldes industriais, com o objetivo principal da produção. Nesse contexto, foi inaugurado em 1954 o Hospital Colônia Adauto Botelho (HCAB) no Estado do Paraná. Durante os anos 50 e 60 houve investimentos estruturais e terapêuticos. O HCAB destinava-se ao tratamento de doentes mentais, adultos e crianças, oferecendo serviços complementares como laboratório, farmácia, serviço cirúrgico, odontologia, radiologia, assistência religiosa e praxiterapia. No início dos anos 70, o HCAB encontrava-se com uma superlotação chegando a ter aproximadamente 1.300 pacientes, procedentes de vários Estados da Federação, e nesse período serviços extra-hospitalares eram escassos. Houve um processo de reestruturação tendo como diretriz o programa “Humanização do Ser” quando lentamente o número de internados diminuiu e foram extintos diversos equipamentos e práticas, como o eletrochoque e os cubículos, ocorrendo também a contratação de profissionais de diversas categorias. Metodologicamente, analisou-se a relação entre a reforma psiquiátrica no Brasil, o planejamento estratégico em saúde e as práticas no hospital psiquiátrico. Foi realizado um levantamento histórico dos programas de saúde mental no HCAB, por meio de pesquisa documental (diretrizes para a saúde mental da Fundação Caetano Munhoz da Rocha, do Instituto de Saúde e da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná e das leis e portarias do Ministério da Saúde). Reforma Psiquiátrica, Planejamento Estratégico em Saúde e a Prática no HCAB O movimento da reforma psiquiátrica, em confluência com o movimento sanitário, teve representatividade a partir da década de 1970. Em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão 164 nas práticas de saúde, priorizou-se a saúde coletiva, a equidade na oferta de serviços, o protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde e a produção de tecnologias de cuidado. Nesse período, questionava-se o modelo centrado no hospital psiquiátrico, tendo em vista mudanças no contexto internacional, por meio da superação da violência asilar e de movimentos sociais voltados aos direitos dos pacientes psiquiátricos. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, foi no cotidiano da vida nas instituições, dos serviços, e das relações interpessoais, que o processo de reforma psiquiátrica avançou, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. No início dos anos 80, por iniciativa da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado da Saúde e do Bem-Estar Social (SESB), realizou-se um levantamento das estruturas e recursos existentes a nível federal, estadual e municipal, na qual se constataram fragilidades nos serviços. No HCAB as unidades de tratamento tornaram-se espaços de asilamento, uma vez que muitos pacientes eram abandonados pelos familiares. A terapia medicamentosa era a única legitimada, havendo dificuldade na comunicação entre profissionais, pacientes e gestores. Observava-se a falta de qualificação profissional para o atendimento na área de saúde mental, a insuficiência de recursos extrahospitalares que atendessem aos pacientes, evitando assim os re-internamentos, além da crença familiar e da sociedade como um todo de que a solução para o paciente seria a exclusão social. Diante dessa realidade, evidenciou-se uma dificuldade devido à baixa rotatividade e ao aumento de pessoas que necessitavam do serviço hospitalar. Deste modo, buscou-se outra forma de abordagem do problema e uma nova programação de trabalho, cujo objetivo era identificar e possibilitar a reinserção social do paciente. Nesse período foi realizado o projeto “Mutirão”, um trabalho conjunto do hospital com as prefeituras, unidades de saúde e comunidade, que promoveu a desinstitucionalização. Mais de 100 famílias foram localizadas, reduzindo-se o número de leitos, de 500 para 300, os quais permaneceram fechados. Entretanto 50% dos asilares ainda ficaram na instituição. Em consonância com o cenário nacional e internacional que discutia sobre a reformulação do modelo de assistência, no HCAB essa discussão desencadeou ações com o objetivo de melhorar a assistência hospitalar e a qualidade de vida dos pacientes, com mudanças no paradigma do atendimento às pessoas com transtornos mentais. Em 1987 e 1988 foi realizada, a partir da união de algumas instituições de saúde, uma análise crítica da realidade na área da Saúde Mental no Paraná, que culminou no relatório constando as principais dificuldades e sugestões para a melhoria na qualidade dos serviços prestados e em mudanças na condução dos atendimentos aos pacientes. Nessa época a área da saúde mental, assim como outras áreas da saúde no Estado do Paraná, encontravam-se em uma situação de progressiva decadência, fruto de uma grande preocupação com os aspectos econômicos em detrimento dos aspectos sociais. Analisou-se que a falta de investimentos adequados na educação, na saúde, e na área social provocou uma queda na qualificação e motivação dos profissionais envolvidos, assim como um sucateamento dos instrumentos e das estruturas físicas dessas instituições. Quanto à situação dos hospitais, incluindo os hospitais psiquiátricos, havia um problema em relação ao número e à distribuição de leitos pelo Estado, bem como os altos custos hospitalares que não eram devidamente financiados, evidenciando uma ineficiente remuneração pelos serviços prestados, a falta de qualificação dos técnicos, ou a desmotivação e consequente desligamento dos mesmos nesse tipo de trabalho. O investimento na melhoria e ampliação da assistência ambulatorial mostrava significativos problemas. Diante do quadro exposto, o relatório apresentou diversas medidas para melhorar o padrão da assistência psiquiátrica no Estado do Paraná, na gestão dos serviços públicos. Ressaltou-se a assistência ambulatorial como o atendimento prioritário em saúde mental, com a regionalização dos atendimentos; medidas preventivas e um atendimento de base na atenção primária junto a outras especialidades já existentes. Os ambulatórios deveriam funcionar com equipes multiprofissionais e promover a integração e o intercâmbio entre os hospitais, ambulatórios e o INPS. Todas essas ações no âmbito da saúde mental, no entanto, para serem viabilizadas deveriam 165 ocorrer de forma descentralizada dos outros serviços de saúde e de forma específica para a realidade do Estado, resguardando as diferenças com outras regiões do país. Com a criação e o desenvolvimento da política do SUS, enquanto o Sistema Único de Saúde, procurou-se minimizar e adequar o atendimento em saúde da população e muitas das propostas acima foram contempladas. Entretanto vários aspectos até hoje ainda não foram implantados ou concluídos, restando muitos problemas a serem solucionados. Os movimentos sociais marcaram o processo de redemocratização e influenciaram diretamente os pressupostos e as premissas políticas do SUS: Universalidade, Integralidade e Equidade. Segundo o SUS, a saúde implica na integração com os territórios de convivências, isto é, não depende somente da assistência médica, mas também do trabalho, da habitação, da educação e do lazer, de forma que o sujeito tenha condições para o exercício da cidadania. Em 1987 foi criado o programa “Fazenda Modelo Experimental” (FAMOEX) pela Secretaria do Estado da Saúde (SESA), e implantado nas instituições Hospital Colônia Adauto Botelho e Hospital de Dermatologia Sanitária São Roque, objetivando o aproveitamento das áreas ociosas na produção e distribuição de alimentos básicos junto aos restaurantes e cantinas dos órgãos vinculados à SESA. Em 1988, a Fundação Caetano Munhoz da Rocha – Instituto de Saúde do Estado do Paraná, realizou um processo seletivo para a contratação de vários profissionais, visando implementar um serviço mais humanizado e dinâmico, além de distribuir funcionários para o programa FAMOEX. A inclusão dos pacientes no programa FAMOEX foi cercada de conflitos quanto à aceitação e à compreensão da função terapêutica do trabalho. Este programa foi reestruturado com as mudanças de governo, foram demitidos a maioria dos funcionários terceirizados que atuavam nas atividades da fazenda e o projeto sofreu várias transformações. Passou a funcionar o Núcleo de Terapias Alternativas, em que se instalou a hidroponia e o plantio fitoterápico. No início da década de 1990 o HCAB contava com uma redução no número de pacientes asilares, porém ainda muitos se encontravam espalhados nas Unidades de Psicóticos Agudos. Foram abertas as Unidades de Adolescentes com Transtornos Mentais e consecutivamente havia uma redução gradativa de internamentos de crianças até o fechamento dos leitos infantis. Entre 1995 e 2000, as equipes do hospital foram orientadas a concentrar suas atividades especificamente nas unidades em que eram responsáveis. Dessa forma, observou-se uma estagnação dos programas de desinstitucionalização e protocolos de atenção à saúde mental. Um marco histórico para a política pública de saúde mental na América Latina foi a Conferência de Caracas, em novembro de 1990, na qual foi elaborada a Declaração de Caracas com críticas objetivas e fundamentais sobre o sistema psiquiátrico centrado no modelo hospitalocêntrico. Foi proposto um modelo assistencial psiquiátrico com a articulação necessária entre a atenção primária e os sistemas locais de saúde centrados na comunidade e suas redes sociais, isto é, a importância da clinica ampliada e ações no território. Em 06 de Abril de 2001, foi aprovada a Lei Federal Paulo Delgado 10.216, redirecionando a assistência em saúde mental, entretanto não instituiu mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Diante dessa lei e da realização em 2002 da III Conferência Nacional de Saúde Mental, o governo federal baseando-se nas diretrizes da Reforma Psiquiátrica, consolidou a nova política de saúde mental dando a esta maior sustentação e visibilidade. Em 2001 a Secretaria Estadual de Saúde do Paraná lançou o programa “Saber Viver” com o objetivo de reduzir as internações e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. O programa tinha como linha de atuação a promoção da dignidade, dos direitos e da cidadania para os usuários. Diante disso, a Coordenação Estadual de Saúde Mental, junto à Comissão de Saúde Mental do Conselho Estadual de Saúde (CES) estabeleceu-se a meta no HCAB de executar o processo de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial para inserção dos pacientes de longa permanência, promovendo o resgate familiar, o cadastramento no benefício “Programa de Volta para Casa”, a inserção em Serviços Residenciais Terapêuticos e a redução gradual de leitos. 166 Durante esse processo ocorreu um movimento na SESA de fechar o hospital psiquiátrico, porém isso foi denunciado à Comissão de Saúde Mental do CES, que promoveu uma conferência local no HCAB, com a participação de diversos segmentos, resultando na instalação de um Conselho Local para o controle social na efetivação do programa de desinstitucionalização e melhores condições de trabalho aos servidores. No período entre 2001 e 2006, numa parceria entre HCAB, Coordenação Estadual de Saúde Mental e Conselho Estadual de Saúde, foi elaborado e efetivado o “Projeto de Desinstitucionalização e Ressocialização da Clientela de Longa Permanência e Implantação de Residências Terapêuticas”. Houve um processo de informação e orientação aos funcionários do HCAB visando maior integração, efetivação do projeto, conscientização das leis em defesa do usuário dos serviços de saúde mental e debates sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. Considerando as inúmeras limitações que apresentavam os usuários de longa permanência foram criadas moradias transitórias próximas ao hospital, um ambiente intermediário entre o hospital e as residências terapêuticas. Objetivava-se o resgate da autonomia dos usuários e a apropriação a um lar, proporcionando uma adaptação gradativa. Em 2002 o número de pacientes asilares no HCAB era de 123. A partir de 2004 alguns pacientes foram encaminhados para o Serviço Residencial Terapêutico e outros retornaram ao convívio familiar. Atualmente, constam no hospital 21 pacientes de longa permanência, com necessidades especiais. Revisitando este processo e refletindo a partir do Planejamento Estratégico formulado por Testa (1995), evidencia-se que as diretrizes do Ministério da Saúde tem sido adaptadas à realidade do Estado do Paraná pela SESA e com a participação de equipes locais, elencando os problemas e necessidades da região. Foi inserida a participação da comunidade através do Conselho Local no HCAB. O Pacto pela Saúde criado pelo Ministério da Saúde em 2006 implicou em importantes alterações nos processos de qualificação da gestão dos municípios e estados, bem como em mudanças nos mecanismos de alocação e transferência de recursos (Portaria GM/399 de 2006). Consta também nesse pacto a Programação Pactuada e Integrada (PPI), na qualidade de um instrumento de alocação, caracterizado como ferramenta inserida no processo de planejamento. Os momentos do processo de planejamento, quais sejam o momento explicativo, o estratégico, o normativo e o tático-operacional, ao adotar a concepção de Matus (1993), são dimensões consideradas necessárias para uma orientação abrangente e complementar do encadeamento racional das proposições de política e da sua gestão estratégica. O Estado do Paraná aderiu à política do PPI, entretanto tal planejamento não foi observado no HCAB, uma vez que não teve uma programação anual ou plurianual, as ações foram incrementalistas e descontínuas, a manutenção dos programas existentes depende da atuação das equipes, não sendo uma gestão partilhada. É importante ressaltar que desde 2007, o Conselho Local do HCAB deixou de se reunir, diminuindo o controle social direto. Durante o período de 2007 e 2010, observou-se estagnação dos programas, os pacientes de longa permanência com necessidades especiais ou com ordem judicial permaneceram no hospital, apesar das tentativas de desinstitucionalização por parte das equipes. Nesse período houve uma redução no número de funcionários de forma substancial sem a reposição desse quadro, unidades foram fechadas por falta de recursos humanos, mas os leitos ainda não foram descredenciados do SUS, pois existe a solicitação de preenchimento de vagas para o andamento dos programas. Em 2011, com a mudança de gestão no governo, uma das diretrizes e prioridades é a saúde mental, com o foco na integração da rede. Considerações Finais Ao discorrer este trabalho, resgatando a trajetória histórica de todo o processo, fez-se uma reflexão de como se alternaram os momentos de movimentação em consonância com os pressupostos das políticas de saúde mental e os momentos de marasmo, perpetuando o modelo, somente com mudanças discretas. As transformações ocorreram a partir de normatizações, com o estabelecimento de 167 metas e cobranças de prazos, havendo uma lacuna entre os formuladores do planejamento e os que a executavam. A dificuldade em comunicação e escuta entre os atores pôs em questão o Planejamento Estratégico. Percebe-se a necessidade de um modelo de planejamento voltado para uma maior ação comunicativa, como propõe Rivera (1989). No processo de aplicação do programa no HCAB houve algumas tentativas em melhorar a comunicação, com muitos conflitos, sem sucesso nas negociações. A normatização estabelece a implantação de novos dispositivos e serviços, no entanto, sem o real comprometimento de todos os atores e setores, e desconsiderando a comunicação, a integração e as parcerias, não se garante a modificação do paradigma hegemônico centrado na doença e na instituição hospitalar, nem a integração de uma rede social. Uma questão fundamental referida por Torre e Amarante (2001) para a transformação institucional no processo de desconstrução é o movimento de tomada de responsabilidade individual e coletiva. A trajetória de sair da condição de sujeito, marcado pelo exame clínico e psiquiátrico, até a transformação em um usuário do sistema de saúde, que luta para produzir cidadania para si e seu grupo, passa pelo aspecto da autonomia. Para tanto, a finalidade do tratamento é produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo a relação de tutela. Atualmente estão sendo implantados vários serviços de saúde mental ou de atenção psicossocial, sendo uma das necessidades a composição de uma rede de comunicação entre esses trabalhos através de trocas e debates. Um dos riscos que se tem quando não há clareza sobre a desinstitucionalização, enquanto desconstrução do dispositivo e do paradigma psiquiátrico, é o de sair do manicômio e continuar reproduzindo os mesmos mecanismos, mantendo a função da psiquiatria como saber-poder, criando equipamentos nas cidades, sem por isso trabalhar no campo social, o que leva à perpetuação das antigas estruturas segregativas. Referências Bibliográficas Campos, F.C.C. Gestão intergovernamental e financiamento do sistema único de saúde: apontamentos para os gestores municipais. In Gestão Municipal de Saúde, Rio de Janeiro, Brasil, MS, 2001. Fundação de Saúde Caetano Munhoz da Rocha/SESA. Subsídios para um Plano de Formação de Pessoal. Curitiba, Junho de 1983. Hospital Colônia Adauto Botelho/SESA. 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Norton Mayer- PUCRS Helena Beatriz Scarparo-PUCRS Palavras Chaves: Psicologia, Memória, Práticas. INTRODUÇÃO Este projeto¹ faz parte de uma pesquisa mais ampla que estuda os processos de instituição da Psicologia no Brasil. O estudo visa, especificamente, entender os sentidos atribuídos à Psicologia no ano de 1962, ano da oficialização da área como profissão no país. Trata-se de uma temática especialmente relevante neste momento, uma vez que os psicólogos comemoram, em 2012, 50 anos de oficialização da profissão. A pesquisa foi desenvolvida pelo Grupo “Psicologia e Políticas Sociais: Memória, História e Produção do Presente”, orientado pela professora Helena Beatriz Scarparo e busca compreender as práticas psicológicas como um espaço histórico e político de articulação dos modos de convivência no presente. Apoiado na perspectiva da complexidade, o grupo tem procurado favorecer espaços dialógicos. Desse modo, privilegia a explicitação de memórias, experiências e projetos sociais como possibilidade de construção coletiva de estratégias emancipatórias. A década de sessenta no Brasil apresenta marcas histórico-políticas profundas. Os sete meses de Jânio Quadros e os trinta meses de João Goulart narram disputas, tensionamentos e oposições constantes. No meio intelectual proliferavam discussões pautadas no desenvolvimentismo. As buscas bibliográficas preliminares sobre o tema revelaram lacunas quanto aos registros históricos do fazer psicológico nesse tempo. São raros os artigos voltados para a psicologia nos periódicos produzidos no Rio Grande do Sul, apesar de a documentação até aqui examinada aponta para movimentos de expansão da área. Fortalecia-se no meio universitário o desejo de conhecer e instrumentalizar-se com o conhecimento psicológico, o que motivou a organização de eventos e cursos regulares na área, através de iniciativas de professores e gestores vinculados aos cursos de Filosofia e Pedagogia (SCHROEDER; JOÃO, 1991). Na medida em que consideramos a psicologia como uma prática social e, por isso, politicamente comprometida (PRADO 2002) questiona-se como ela se delineava na época da sua oficialização e como se estabeleciam suas práticas em contexto. Desse modo, o estudo indagou-se quanto às articulações entre os acontecimentos que caracterizaram os anos sessenta e os discursos em mídia impressa referentes à psicologia. Utilizamos como fonte para a coleta dos dados empíricos todas as edições de 1962 do Jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Além disso, com apoio em estudos bibliográficos acerca desse contexto histórico, foram examinadas notícias de cunho político-social dessa fonte e associadas à matérias nas quais se evidenciam as expectativas, significados e projetos sociais referentes à psicologia. ______________________________________________________________________ ¹ Apoio FAPERGS, CNPq Buscou-se, dessa forma, identificar sentidos de Psicologia registrando as ações coletivas protagonizadas por profissionais de Psicologia no contexto que antecedeu o golpe civil-militar e promover processos reflexivos e dialógicos quanto à importância da historicidade para compreensão dos processos de construção das práticas psicológicas. Dentre os resultados alcançados encontra-se a predominância de materiais voltados para a avaliação psicológica, para o aconselhamento nos campos da educação e do manejo de crianças e adolescentes, para as atribuições de gênero e para o desenvolvimento de habilidades profissionais. Tais 170 características mostravam claramente as expectativas para a profissão na sociedade da época: fortalecer os projetos de progresso, pautados na industrialização e no desenvolvimento econômico e tecnológico. Neste contexto, observou-se, ainda, o expressivo atrelamento do conhecimento e das práticas psicológicas aos padrões de normalidade oriundos das ciências biomédicas. Nessa perspectiva, destacamos a expectativa de corroboração de práticas voltadas para a legitimação de comportamentos considerados normais ou patológicos, adequados ou inadequados, aceitáveis ou desviantes. No que se refere aos contextos globais, encontramos matérias que relacionavam acontecimentos políticos mundiais característicos da época, como a Guerra Fria, por exemplo, às expectativas para a construção do conhecimento psicológico. Podemos citar como exemplo, a matéria “Psicologia acumula dados que podem ser usados para prevenir as Guerras”. (Ed n° 273, Jornal Correio do Povo, 25 de Agosto de 1962, p.11). Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos expressos em matérias acerca da conquista do espaço conviviam com o anúncio de pesquisas e técnicas para conhecer, diagnosticar e prever comportamentos. Desse modo, contextos locais e globais associados aos processos de consolidação da profissão revelaram intencionalidades, expectativas e atribuições para a psicologia desenvolvida no Brasil naquele período. MÉTODO Foram realizadas coletas de dados através de buscas bibliográficas e materiais midiáticos. Esses últimos foram coletados no museu de comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre, o que possibilitou as análises e interlocuções teóricas. Os procedimentos de análise tiveram como base as perspectivas construcionistas e apoiaram-se na proposta de práticas discursivas (SPINK, 2000). Essas práticas têm como finalidade entender as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentido e se posicionam em relações sociais cotidianas. Além disso, as imagens advindas do material coletado foram examinadas tendo em vista as imagens paradas (BARTHES, 1984; BAUER e GASKELL, 2000). Paralelamente foi realizada revisão bibliográfica e seminários de estudos sobre a historiografia da época, coleta e organização da coleção de imagens, manchetes e textos; ampliação e manutenção do acervo do grupo com a construção de um banco virtual para consultas dessa e de outras pesquisas relacionadas ao tema; início do processo de análise dos dados utilizando metodologia proposta; divulgação científica, através da participação em eventos e processo de escrita de artigo a ser submetido em periódicos. A conjugação dessas análises aos estudos historiográficos realizados evidenciou as temáticas descritas a seguir. RESULTADOS E DISCUSSÃO Dentre os resultados do projeto destaca-se a compreensão sobre as práticas e instrumentos utilizados pelos psicólogos do período, que favoreceram um maior entendimento do contexto em questão. Passamos a descrever a seguir alguns temas que nortearam a referida compreensão. Primeiramente consideramos importante destacar a trajetória desenvolvimentista em que o Brasil estava vivendo. Essa lógica teve um grande impulso na era Vargas e se estendeu pelos períodos subsequentes da história brasileira. Ela foi marcada por um investimento na mão de obra nacional e nos avanços industriais, através da redução das importações em função da crise mundial de 1929, em que os EUA, possuidor de uma grande parcela da produção mundial, sofreu uma grave crise econômica, causando falências, desempregos e reformulações políticas em todo o mundo capitalista. (VICENTINO, 1997). Havia, nesta época, uma grande busca em empreender esforços na qualificação 171 de recursos humanos e apoio para pesquisas que favorecessem a industrialização, já que o Brasil almejava tornar-se autossuficiente em produtos básicos (MARTINS, 2004). Estes projetos foram retomados por Juscelino Kubitscheck, no qual o Brasil tinha como desafio superar o seu atraso, tendo como estratégia a implantação de projetos industriais de bens duráveis e a liberalização da economia que potencializou a busca de capital e a importação de tecnologia. Havia também clara intenção de interiorização do desenvolvimento do Brasil, que tem como ícone central a construção da nova Capital Federal- Brasília, uma cidade funcional, pois foi construída para se adequar a toda estrutura políticoadministrativa brasileira, estando localizada no centro do país, marcando um maior desenvolvimento na zona não litorânea, além de possuir uma arquitetura projetada para os interesses da época, percebida por prédios futurísticos, superquadras e também pelo seu formato (avião). Essa trajetória desenvolvimentista aparece também nas práticas psicológicas do ano de 1962, pois pela análise dos dados, observa-se que existe um padrão de sexo, faixa etária e aparência préestipulado para a inserção do indivíduo no mercado de trabalho, o que justifica a vigência de avaliações psicométricas e projetivas, já que estas serviam como um facilitador, podendo-se medir habilidades de forma rápida e simples. Além desse fator, a psicologia já tinha uma tradição de controle, categorização e classificação, estando muito voltada, como profissão e saber, às elites brasileiras (BOCK e ODAIR FURTADO, 2008). Existe também uma preocupação com o conceito de marginalidade e de normalidade, como se não pudesse haver um padrão abstrato de sujeito. A não adaptação às normas leva a uma lógica de “desvio” e a uma culpabilização exclusiva dos pais que não estão dando uma educação adequada. Algumas reportagens relatam ainda, formas de observar se o sujeito está virando um delinquente, citando características como vestimenta inadequada e vocabulário estranho. Percebe-se a utilização de testes para avaliar a saúde mental, compreendendo-se a psicologia como uma ciência capaz de dirimir dúvidas e indicar comportamentos ou manejos adequados nas relações humanas. Um exemplo de reportagem seria “Como está a sua saúde mental?” (Edição número 157, Jornal Correio do Povo, 08 de Abril de 1962, p.25), em que aparecem 13 quesitos básicos para a pessoa avaliar como anda a sua saúde mental, dentre eles: “você é incapaz, por razões determinadas, de se concentrar?”, “você vive constantemente angustiada?”, “As crianças deixam-na constantemente nervosa?”, mostrando uma profunda preocupação com comportamentos que poderiam sugerir alguma instabilidade, alguma “fuga” do que é esperado. Articuladas a esta perspectiva, podemos citar as expectativas presentes na regulamentação da profissão, especialmente no artigo 4 da Regulamentação da Psicologia (ago1962- jan1964) em que, entre as funções do psicólogo estão utilizar métodos e técnicas com o objetivo de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento As expectativas sobre a psicologia aparecem articuladas ao contexto da guerra fria, havendo um medo constante, em contexto global, com uma terceira grande guerra. No Brasil, esse período é marcado por turbulências politicas (Renúncia de Jânio Quadros, impedimento da posse do vice, João Goulart. Movimento da Legalidade que resultou no Regime de Parlamentarismo), o que promove mais instabilidade e incertezas quanto ao dia de amanhã. Os saberes psicológicos, dentro dessa lógica, são concebidos como instrumentos para impedir conflitos entre as nações. A psicologia foi oficializada dois anos antes da ditadura civil militar que se instaurou no Brasil em 1964. A proximidade cronológica deste acontecimento marcou profundamente as concepções e práticas de psicologia que se inauguraram oficialmente em 62. CONCLUSÃO O estudo do projeto nos possibilitou interlocuções entre a psicologia e a história, trazendo um maior reconhecimento da importância do contexto para entender as práticas e expectativas da profissão em cada época. É a partir desse entendimento que se pode abrir espaço, então, para discutir, refletir, questionar e criticar as concepções da profissão. 172 Os discursos sobre a área no período de 1962 revelavam práticas de evitação de conflitos e de atendimento a crises, além da adequação de sujeitos a padrões abstratos de comportamento, através do uso de instrumentos psicométricos e projetivos, se evidenciando especialmente nos processos de inserção no mercado de trabalho e no campo educacional. Observa-se através dessas práticas, uma psicologia que, articulada ao contexto histórico, buscava por espaços de legitimização e de relevância na sociedade brasileira, sendo utilizada como instrumento de acomodação e de resistência, podendo incluir ou excluir o indivíduo de acordo com os estereótipos pré-estabelecidos. Apesar de observarmos muitas dessas concepções ainda vigentes nos dias de hoje, pensamos que a psicologia, por trabalhar com o ser humano, com o psíquico, se torna uma prática muito subjetiva, levando muitas vezes a analisar além do que está explícito, ao que aparece externamente. Dentro dessa perspectiva, o trabalho com a mídia impressa, principalmente pela análise das imagens paradas, possibilitou esse exercício, já que em um primeiro momento se procurou observar apenas o que a imagem mostrava explicitamente, para depois analisar, dentro do momento histórico, o que mais aquela imagem poderia trazer. Sendo assim, o estudo midiático foi fundamental para entender o fazer psicológico do período e possibilitou um conhecimento mais amplo do que um apoio apenas bibliográfico. A psicologia não é linear, existem diferentes maneiras de se ver o mundo e o ser humano, e é essa diversidade que configura e transforma a área continuamente. Figueiredo (2008), explica essa concepção ao afirmar “A psicologia, a rigor, não existe, ao menos no singular”, demonstrando que não existe apenas uma história da psicologia, mas várias, que expressam diversas formas de narrar experiências, saberes e práticas. A psicologia da contemporaneidade exige cada vez mais demanda e estudo, principalmente pelo fato de ser um campo em expansão, estando nas empresas, nos hospitais, nas unidades básicas de saúde, sendo cada vez mais aceita e procurada pela população e, desta maneira, o entendimento sobre a sua constituição no Brasil se torna imprescindível. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -BARTHES, R. (1984) A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. -BAUER, M. W. &GASKELL, G. (2002) Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som – Um manual Prático. Petrópolis: Vozes -FAUSTO, B. (2006) História do Brasil. Ed. edusp,São Paulo. -FIGUEIREDO, L (2008) Prefácio. In: Jacó-Vilela, Ana Maria; Ferreira, Arthur A.L; Portugal, Francisco T. (Orgs.). História da Psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: NAU Ed. - MARTINS, E. O contexto político e o discurso da ciência da informação no Brasil. Uma análise a partir do IBICT. Ci. Inf. Brasília,v33. N.1,p.91-100, jan\abril,2004. -SCARPARO, H., PIZZINATO,A. , ACCORSI, A. Contextos, processos e memórias: narrativas sobre a saúde mental na década de sessenta a oitenta no Brasil. Porto Alegre, dez.2010 - SCHROEDER H., FAUSTINO, J. (1991) Síntese Histórica do Instituto de Psicologia da PUCRS. Tomo I e II – PUCRS- Instituto de Psicologia. Relatório não publicado. - VICENTINO, C. (1997) História Geral. Ed. Scipione. São Paulo. 173 RESUMOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS Epistemologia 174 Eixo: Epistemologia do Campo da Saúde Mental Autores: Eliane R. da Silva; Maria S. B. Goulart; Izabel Friche Passos; Marcela Alves de Abreu Modalidade: Comunicação Oral Título: As Instituições Universitárias e a Reforma Psiquiátrica Mineira: Notas de Pesquisa Resumo: Neste trabalho apresentamos a pesquisa “As Instituições Universitárias e a Construção da Reforma Psiquiátrica Mineira nas décadas de 60, 70 e 80”. O objetivo geral da pesquisa é identificar e avaliar a participação das variáveis de cultura formal em processos de mudança social, enfocando, em particular, a relação existente entre a formação de uma cultura antimanicomial, profissional e leiga, crítica à instituição psiquiátrica tradicional e a formação profissional em psicologia e psiquiatria ofertada pelas principais instituições formadoras de Belo Horizonte, no período recortado, a saber: PUC Minas, UFMG, FUMEC; Pós-graduação em Psiquiatria da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais oferecida no Instituto Raul Soares; Pós-graduação em Saúde Mental oferecida pela ESMIG, Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. O objetivo específico é levantar e acumular evidências acerca da possível relevância dessas instituições universitárias de Belo Horizonte para o processo de Reforma Psiquiátrica mineira, sem desconsiderar, entretanto, as muitas resistências advindas do meio universitário mais amplo. Trabalhamos com três tipos de fontes documentais: imprensa escrita e fontes secundárias (sobre o processo de Reforma mineira); relatos de profissionais e professores; e documentos acadêmicos relativos à oferta de disciplinas e iniciativas de estágio, extensão e pesquisa, desenvolvidas pelas instituições no período enfocado. Observamos, a partir do conjunto de dados levantados e analisados, o enriquecimento do cenário que deu origem e sustentou a reforma psiquiátrica mineira, dando a ela um perfil próprio, onde a universidade ocupa, na figura de professores, alunos e projetos contra-hegemônicos, um lugar a ser resgatado historicamente. Palavras Chaves (3): Instituições de credenciamento profissional; reforma psiquiátrica; saúde mental. 175 Eixo: Epistemologia do Campo da Saúde Mental Autores: Regina Longaray Jaeger; Tânia Mara Galli da Fonseca. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Vida Reduzida às Instituições de Saúde: Vivências e Novas Possibilidades Resumo: A experiência de psicóloga, residente multiprofissional da Escola de Saúde Pública, na ênfase Saúde Mental Coletiva, realizada em dois serviços públicos apontou uma questão comum entre eles: a preocupação das equipes de saúde em relação aos usuários com histórico de longa permanência nesses serviços. A indicação de encaminhamento para outro serviço provocava no usuário extrema insatisfação. Adotamos a pesquisa-intervenção por acreditamos que a abordagem de pesquisa qualitativa contribui para a construção de novas bases da psicologia nas instituições. Acrescentamos pesquisa genealógica, acontecimentalizando entrevistas e vivências nestes serviços. Vidas reduzidas à doença sob cuidados garantidos pelos benefícios sociais, sentem que lhes resta apenas as vias institucionais de cuidados tutelados, para garantir sua sobrevivência. Expressam a dificuldade de se ligar a outras instituições que não seja pelo assujeitamento à doença mental. Diante da possibilidade de ruptura do vínculo com a instituição especializada, entendem que dificilmente encontrarão outro espaço que “solucione” seus problemas ou mesmo que os admita. Por que tornam-se essenciais para a integridade da vida de muitos usuários? O que carregam estes corpos que precisam ser sustentados pela instituição? Detectamos no acontecimento ameaçar um duplo regime de forças: a força de resistência ao corte, à ruptura do tratamento de um lado e por outro, a entrega de si, à morte e ao consentimento de incapacidade de cuidar-se e proteger-se. Entendemos que a clínica transdisciplinar como uma via importante de desestabilizar as fronteiras rígidas dos especialismos, capaz de promover potências de vida para além das dicotomias de um sujeito. Palavras Chaves (3): Clínica transdisciplinar; instituições de saúde;acontecimento 176 Eixo: Epistemologia do Campo da Saúde Mental Autores: Fernando José Ciello Modalidade: Comunicação Oral Título: “Máquina de Fazer Loucos”, ou o Saber Médico-Psiquiátrico e a Construção do Alienado no Século XIX Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal propor breves discussões sobre o processo de constituição do saber psiquiátrico no século XIX, com especial atenção para a transformação discursiva da medicina do período – guiada, entre outros, por uma orientação racionalista e, sobretudo, pelo paradigma burguês-modernista de sociabilidade vigente no período. Entre outros aspectos relevantes do processo histórico de constituição da psiquiatria, é nos séculos XIX e nas décadas iniciais do século XX, que fatores importantes do próprio saber médico-psiquiátrico podem ser verificados, dentre eles a configuração de um campo socialmente legitimado para falar sobre as “afecções mentais” e a delimitação de um campo simbólico, porém de marcada atuação política, onde os médicos passam a ter o domínio sobre a experiência da loucura e seu tratamento. A medicina típica do século XIX – minuciosa no conhecimento dos detalhes que levavam à doença; e socialmente autorizada a ensinar a higiene e a moral – contribuiu sobremaneira, concluímos, na determinação de trajetórias sociais diversas e no processo de constituição de identidades e padrões sociais referentes ao louco, ao hospício e a medicina psiquiátrica como um todo. A pesquisa foi desenvolvida, em sua grande parte, a partir de exploração bibliográfica. Recorreu-se, também, à produção médica do período (seja em obras que se remetiam à elas ou em artigos médicos do período) para ilustrar o quadro construído pela bibliografia. Palavras Chaves (3): Saber Psiquiátrico; Cultura; Loucura. 177 Eixo: Epistemologia do Campo da Saúde Mental Autores: Laura Antunes Bloch; Arthur Arruda Leal Ferreira. Modalidade: Comunicação Oral Título: Governando Por Categorizações: As Transformaçôes No DSM e os Modos de Governamentalidade Contemporâneos Resumo: O presente trabalho procura investigar as relações entre o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a questão da governamentalidade - conceituada por Michel Foucault como arte de “condução da conduta alheia”. Através de uma análise discursiva de suas quatro formulações e do recurso a diversos autores que problematizam o DSM sob diferentes aspectos, procuramos abrir essa “caixa preta” – segundo conceito latouriano – e investigar os conflitos e direções morais, políticas e econômicas que fizeram e fazem parte da constituição do Manual, enfocando as variações nos modos de governamentalidade envolvidos em suas sucessivas edições. Desse modo, buscamos desconstruir a proposição amplamente aceita de que o DSM consistiria em um produto neutro e isento de contradições em sua formulação. Examinando primeiramente a mudança paradigmática que se deu na psiquiatria com a publicação do DSM-III, passamos a investigar os efeitos desse deslocamento, procurando desvelar suas diversas implicações. Nesse escopo, analisamos alguns diagnósticos específicos, como o Transtorno de Personalidade Anti-Social e o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, que revelaram apresentar uma estreita relação com questões atinentes a novos modos de condução da conduta. Por fim, concluímos que o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais constitui uma peça fundamental na articulação entre psicologia e governamentalidade, possibilitando uma inscrição das subjetividades e tornando-as accessíveis às técnicas de governo. Palavras Chaves: DSM; governamentalidade; 178 Eixo: Epistemologia do Campo da Saúde Mental Autores: Gustavo Héctor Brun Modalidade: Comunicação Oral Título: Elementos Arqueológicos da Psicanálise: Estudo de Escritos Gregos Esclarecedores das Técnicas Clínicas Antigas Resumo: Nesta pesquisa propõe-se uma leitura de escritos gregos que versam sobre o psíquico e sobre a técnica maiêutica a partir de fundamentos psicanalíticos. Começamos pela análise de parágrafos do Teteto de Platão porque é o primeiro texto epistemológico ocidental com uma concepção de Psique diferente das órfico-pitagóricas, predominantes na época clássica. O psíquico aqui é explicado incluindo o sofrimento de angústia (odineuo) e o equívoco (amartein). Com o lapso nasce um problema com diversas questões sobre as representações não conscientes (anepistemousas) permitindo conjeturar o psíquico ainda inominável. A revisão dos escritos gregos Teteto, Banquete e Fedro, permitem compreender a concepção complexa do psíquico coerente com procedimentos maiêuticos. Em um segundo momento, para reconhecer a técnica socrática, faz-se necessária a análise de parágrafos da comédia As Nuvens, de Aristófanes, porque aí o comediante descreveu um Sócrates em exercício da sua arte. Ele nos mostra Sócrates propondo um modo de fala livre, mas específica, com reserva de opinião, atento às queixas e resistências de Estripsíades. O comediante exagera com humor os procedimentos técnicos, mas conservando muitos dados descritivos do fazer socrático, intervenções e paradoxos. O conceito de ironia eironéia pode ser considerado um paradigma da escuta e da intervenção, capaz de modificar a posição do sujeito da enunciação a respeito de seu sofrimento. Concluímos, indicando algumas semelhanças e diferenças entre as concepções do psíquico dos séculos -V e IXX, visando situar esses fragmentos clássicos numa história das idéias psicológicas e técnicas clínicas. Palavras Chaves (3): Maiêutica; Psicanálise; Ironia 179 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autor: Éder Silveira Modalidade: Comunicação Oral Título: Mestiçagem, criminologia e saúde mental. Notas sobre Nina Rodrigues (1862-1906) Resumo: Dentre os autores identificados com a Geração de 1870 no Brasil Raymundo Nina Rodrigues se destaca pelo emprego de conhecimentos científicos do campo da psicologia e da psiquiatria na interpretação da cultura brasileira. Pioneiro na criação de laboratórios dedicados aos estudos da craniometria e da frenologia na Faculdade de Medicina da Bahia e na divulgação dos estudos da Escola Italiana de Criminologia, assim como a chamada Escola Francesa. A partir da década de 1890, passou a concentrar a sua atenção nos estudos que aproximavam a antropologia e a psicologia, abrindo assim ao menos duas frentes de pesquisa: a) a cultura africana, principalmente aspectos de suas manifestações religiosas e a sua permanência no Brasil, com ensaios sobre fetiche e totemismo; b) a psicologia das massas, onde são visíveis as influências de autores como Gustave Le Bon e Gabriel Tarde, cujas obras foram esteio de suas interpretações de fenômenos de “loucura epidêmica” como a Guerra de Canudos, por exemplo. Na presente comunicação, sob a perspectiva predominante da história das ideias, proponho uma interpretação de seus trabalhos mais significativos sobre “psicologia de massas”, “alienação” e ”medicina mental”, que marcam o deslocamento do autor de uma interpretação de aspectos somente fisiológicos para os fenômenos psíquicos, destacando o uso que o autor fez das teorias psicológicas de sua época e como ele as combinava a algumas das principais marcas do racismo científico, predominante naquele contexto do debate intelectual brasileiro. Além disso, será destacada a sua influência em autores como Juliano Moreira e Arthur Ramos. Palavras Chaves (3): Psiquiatria, Nina Rodrigues, Escola baiana de medicina 180 RESUMOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS Instituições 181 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Michelle de Almeida Cezar; Maristela Nascimento Duarte. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Assistência Psiquiátrica em Minas Gerais: o Hospital Colônia de Barbacena (19671977) Resumo: Busca-se neste trabalho apresentar como se constituía a assistência psiquiátrica em Minas Gerais, no período de 1967 a 1977, e quem eram os internos do Hospital Colônia de Barbacena. Assim, foram pesquisadas as estruturas organizacionais e as mudanças de funções do conhecido Hospital Colônia durante as gestões da Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica e da Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica, ambas denominadas de FEAP, com o objetivo de averiguar as práticas terapêuticas utilizadas e apreender o modelo de assistência à doença mental vigente. Foi realizado o levantamento da documentação impressa sobre a legislação hospitalar psiquiátrica no estado de Minas Gerais e também da legislação federal. Para identificar quem eram os internos do Hospital Colônia, foram analisados os livros de entrada de homens e mulheres indigentes, selecionando uma amostra de 5% do número de internos nesse período. A partir desta análise e do levantamento de documentos observa-se que o Hospital Colônia recebia, em sua maioria, doentes de diferentes localidades de Minas, que eram trazidos por familiares ou pela Delegacia de Polícia, sendo que, no caso das mulheres, muitas eram transferidas do Hospital Galba Veloso de Belo Horizonte. Nota-se também que o Hospital Colônia se caracterizou como instituição manicomial, “guardiã da sociedade”, que buscava controlar as atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores tidos como anormais, desviando-se de sua função primordial que deveria ser promover a cura de pacientes. Palavras Chaves (3): Assistência Psiquiátrica; Hospital Colônia de Barbacena; 182 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Cleice de Souza Menezes; Cristiana Facchinetti Modalidade: Comunicação Oral Título: A Colônia Juliano Moreira no contexto da década de 1970 Resumo: A Colônia Juliano Moreira é uma instituição pública que esteve voltada para doentes mentais crônicos, foi fundada na zona oeste do Rio de Janeiro em 1924, e se baseava nos modelos das colônias agrícolas européias. Esse modelo tinha como um dos objetivos o isolamento dos pacientes dos grandes centros urbanos em espaços onde o trabalho agrícola era considerado uma vanguarda no tratamento psiquiátrico. O objetivo deste trabalho é apresentar os processos científicos, sociais e políticos empreendidos na Colônia Juliano Moreira, na década de 1970, período de institucionalização do Departamento Nacional de Saúde Mental- DINSAM. Esse momento é caracterizado como o de maior expansão da privatização da saúde, onde um maior número de leitos foram disponibilizados no setor privado. Com isso, a saúde pública foi sendo suprimida em benefício das entidades privadas, este foi um período que poucos recursos foram repassados para o setor público. A pesquisa aqui delimitada visa contribuir para a história e para a historiografia da psiquiatria com um estudo sobre a psiquiatria do Rio de Janeiro na década de 1970. Pretendemos assim colaborar para reduzir o déficit de informação acerca do período por meio de trabalho em fontes documentais. Com isso o objetivo é investigar as práticas psiquiátricas e as políticas de saúde mental no Rio de Janeiro, na segunda metade no século XX. Palavras Chaves (3): Colônia Juliano Moreira; psiquiatria; década de 1970 183 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autor: Alexandre Jabert Modalidade: Comunicação Oral Título: A Experiência da Loucura Segundo o Espiritismo: Os Prontuários Médicos do Sanatório Espírita de Uberaba. Resumo: Como aponta a bibliografia mais recente da história das artes de curar no Brasil, a medicina acadêmica nacional encontrou fortes resistências para penetrar em diversos setores da sociedade brasileira durante todo o século XIX e a primeira metade do século XX. Durante esse período a classe médica teve que enfrentar a competição cotidiana com representantes de diversificadas práticas de cura, como curandeiros, rezadeiras e espíritas. Especificamente no campo do tratamento das moléstias mentais, alguns autores consideram o espiritismo de orientação kardecista como o principal concorrente da medicina mental e de seu projeto para se tornar o saber hegemônico para o tratamento da loucura no país. Como resultado de elaborações particulares de sua doutrina o espiritismo kardecista desenvolveu a ideia de que, nos casos em que não era possível encontrar algum tipo de lesão cerebral, a loucura seria o resultado ações persecutórias de espíritos desencarnados que habitam outro plano imaterial de existência, denominado de plano espiritual. Nesses casos a loucura era definida como uma obsessão espiritual, tendo como tratamento indicado a realização de sessões de desobsessão conduzidas por médiuns treinados. Desta forma, este trabalho tem como objetivo apresentar, a partir da análise dos prontuários de internamento de uma instituição destinada ao tratamento de alienados administrada por seguidores do espiritismo, as concepções particulares sobre saúde, doença e loucura produzidas por essa doutrina e o modo pelo qual elas eram transpostas para o interior de uma instituição de caráter asilar, o Sanatório Espírita de Uberaba, no Brasil da primeira metade do século XX. Palavras Chaves (3): História da loucura; história da psiquiatria; história do espiritismo. 184 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Ananda Pinto Cardoso; Neuza Maria de Fátima Guareschi; Daniel Dal'Igna Ecker. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Higiene Mental como Fantoche do Biopoder: Uma Análise dos "Archivos Brasileiros de Hygiene Mental" Resumo: De 200 até 250 palavras): Este trabalho é parte do projeto “Seios Fartos, filhos fortes: a Liga Brasileira de Higiene Mental e o Brasil Moderno” do grupo de pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação do núcleo e-politcs do PPGPSI/UFRGS. Tal projeto analisa o periódico “Archivos Brasileiros de Hygiene Mental” publicado pela Liga Brasileira de Hygiene Mental nas décadas de 1920 a 1940 para discutir as concepções eugênico-higiênicas que no periódico se evidenciam e o papel que essas concepções cumprem num momento crucial para a formação do estado democrático brasileiro. O texto a ser apresentado analisa os dois primeiros números desse periódico (n. 1 e n. 2 de 1925) e faz a partir deles uma discussão das estratégias de investimento no capital humano proposta pelos higienistas que publicam o periódico e do momento histórico-econômico vivido no Brasil que torna legítima essa intervenção normatizadora. Para isso, será utilizado o conceito foucaultiano de biopoder como aquele que discute a tomada de poder sobre a vida das pessoas sob a forma de estatização do biológico. Com isso, aponta-se que o discurso da “hygiene mental”, anunciado como preocupado com a saúde do povo, serviu como saber legitimador de uma série de políticas de manejo social que se preocuparam em “ordenar” e fazer “progredir” o Brasil moderno. A Liga Brasileira de Hygiene Mental, através de suas publicações, produziu o homem são, portanto apto ao trabalho; e produziu o desajustado, que deve ocupar as margens da cidade e do progresso, para não mais atrasar o país. Palavras Chaves (3): Higiene mental; Brasil moderno; Políticas públicas. 185 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Ana Paula Casagrande Cichowicz Modalidade: Painel Título: “Aos loucos o hospício”: arte e ciência dialogando sobre constituição da medicina psiquiátrica no Brasil Resumo: A proposta desta comunicação baseia-se na exposição de uma análise da maneira como a medicina psiquiátrica se estabeleceu no Brasil, num dialógo entre ciência e arte tomando como base a obra O Alienista de Machado de Assis. Em um primeiro momento a reflexão situar-se-á em torno da maneira em que a saúde, e mais preponderantemente a doença fora tratada no Brasil Colônia; para então abranger a constituição da medicina social e suas políticas higienistas e de normalização social na sociedade brasileira. Acrescenta-se ainda uma discussão sobre o engendramento do primeiro asilo no Brasil, e a atribuição da responsabilidade sob as doenças mentais à psiquiatria nascente, ambos – o asilo e a psiquiatria - baseados nos paradigmas europeus, sobretudo os franceses. Por fim, dado estes tópicos anteriores, far-se-á uma explanação da obra O Alienista, buscando estabelecer - através dos dispositivos teóricos oferecidos pela discussão científica - uma correspondência entre a ficção do autor e o contexto histórico e ideológico do Brasil oitocentista. Destarte, a fim de refletir sobre o resultado desta pesquisa far-se-á ainda um discussão acerca da emergência dos pressupostos da ciência moderna, para então se ater nas reflexões erigidas pelo pensamento pós-colonial, com o intuito de verificar a pertinência de apreender o conto machadiano como uma obra que reflete sobre o colonialismo do poder/saber de dentro das próprias margens do sistema. Palavras Chaves (3): Medicina Psiquiátrica; Machado de Assis; Arte/Ciência 186 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Allister Andrew Teixeira Dias Modalidade: Comunicação Oral Título: Arquivos de Crime e Loucura: Heitor Carrilho e o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro (1930-1954) Resumo: Essa proposta de apresentação tem como objetivo investigar uma parte do percurso histórico do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro (M.J.R.J), de 1930 até 1954, sob a gestão daquele que é considerado pela memória da psiquiatria no Brasil como o fundador da psiquiatria forense aqui: Heitor Carrilho. Para tanto, priorizou-se, como fonte central de pesquisa, o periódico do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, os Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. A construção do Manicômio Judiciário teria sido o primeiro passo na “sedimentação da psiquiatria forense”, passando esta instituição a monopolizar as perícias psiquiátricas em questões penais na cidade. Ele representou, segundo as interpretações mais autorizadas, uma “superposição complexa” de um modelo “jurídico punitivo” sobre o modelo “psiquiátrico terapêutico”. No bojo das ciências humanas, muito se discutiu acerca da criação desta instituição, mas quase nada foi dito sobre sua história subseqüente, nas décadas de 1930, 1940 e 1950. A partir das páginas do periódico mencionado, mapeamos o cotidiano institucional e as continuidades e descontinuidades na prática e no conceitual da psicopatologia forense, analisando artigos, laudos periciais, discussões jurisprudenciais e pareceres do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro. No contexto histórico priorizado, que abrange sobretudo a era Vargas, percebemos o quanto o Manicômio Judiciário foi um espaço de cruzamento de discursos, muitas vezes em tensão. Como muitas instituições congêneres da primeira metade do século XX na América Latina, o Manicômio era um “território camaleônico”, onde se misturavam custódia, assistência, repressão, controle e tentativas terapêuticas e de ressocialização. Palavras Chaves (3): Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro; Heitor Carrilho; Psiquiatria Forense 187 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Michelle Kamers Modalidade: Comunicação Oral Título: As Condições Sócio-Históricas Necessárias à Constituição de um Saber Psiquiátrico sobre a Criança Resumo: (De 200 até 250 palavras): Este trabalho visa refletir acerca das condições sócio-históricas necessárias para a constituição de um saber psiquiátrico sobre a criança. Para tanto, retoma textos clássicos da psiquiatria, especificamente, autores que se debruçaram sobre o tratamento moral, demonstrando o quanto a constituição desse campo de saber esteve, e ainda está relacionada com a necessidade de escolarização, exigência que se colocou a partir da emergência do capitalismo. Enquanto na psiquiatria de adultos, o saber médico se consolidou em torno daqueles que não se adaptavam às exigências colocadas pelo processo de urbanização e industrialização das cidades, na psiquiatria infantil, o saber médico se consolidou sob a forma de tratamento moral realizado pelos primeiros médicos pedagogos que se debruçaram sobre a educação moral com idiotas, num momento em que os questionamentos eram sobre a possibilidade de a idiotia ser congênita ou adquirida. Nesse sentido, foi graças às experiências realizadas por Jean Itard e por Seguin que se constituiu um campo de intervenção sobre a infância, denominado até os dias atuais como educação especial. O que deu origem a todo um sistema de instituições especializadas para crianças anormais. Foi somente a partir de Kraepelin que a psiquiatria infantil de fato se tornou um campo de estudo independente da psiquiatria de adultos. Momento em que se passou a estender o conceito de demência precoce, até então utilizado para adultos, para a psiquiatria com crianças. O que posteriormente culminou, a partir de Bleuler, na teorização acerca da psicose na infância, constituindo um campo específico acerca da psicopatologia infantil. Palavras Chaves (3): Infância; saber psiquiátrico; psicopatologia infantil; 188 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Maristela Nascimento Duarte Modalidade: Comunicação Oral Título: As Concepções E Práticas No Hospital Colônia De Barbacena (1946 Até Os Dias Atuais) Resumo: Neste estudo utilizou-se de fontes primárias e recursos de história oral na identificação das concepções e práticas no Hospital Colônia de Barbacena, principalmente no período de 1946 a 1979. Apesar do surgimento de inovações decorrentes das reformas psiquiátricas anteriores à Reforma Psiquiátrica de 1979, verificou-se que no HCB persistiram aquelas concepções e práticas que sustentavam o modelo manicomial predominante nos hospitais psiquiátricos públicos. A nãoincorporação de inovações de concepções e práticas psiquiátricas pelos médicos e/ou psiquiatras permitiram a heteronomia do campo psiquiátrico, pela não-assimilação dos embates, dos conflitos e das estratégias inerentes ao campo que pudessem provocar a reestruturação do saber e do poder no interior dessa instituição. O Hospital tornou-se primordialmente uma instituição manicomial com característica de “guardiã da sociedade”, buscando controlar todos aqueles atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores tidos como anormais, desviando-se do escopo de realizar a cura de pacientes, que passaram a morrer por outras causas, que não a doença mental. Após a Reforma Psiquiátrica, verificou-se que o Hospital passou por diversas transformações desde desospitalização gradativa dos pacientes além da implantação de residências terapêuticas nos diversos bairros da cidade. Palavras Chaves (3): História da psiquiatria em Minas Gerais; Hospital Colônia de Barbacena; concepções e práticas de assistência psiquiátrica 189 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Felipe Basso Silva; Priscilla Gomes Mathes. Modalidade: Comunicação Oral Título: Da Exclusão à Reforma Psiquiátrica: o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Resumo: O presente artigo tem como objetivo pensar o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico – HCTP – como um espaço privilegiado na construção de uma historicidade do tratamento da “loucura”. Metodologicamente, a partir de uma pesquisa bibliográfica e de relatórios produzidos sobre essa instituição, construiu-se um trabalho histórico sobre a saúde mental no Brasil. Substituindo os manicômios judiciais, os HCTP se constituem como uma instituição com duplo sentido: “custodiar e tratar doentes mentais perigosos”, característica esta responsável pelo seu caráter ambíguo, inclusive porque as ações terapêuticas e diagnósticas são avaliadas pelo sistema jurídico penal, exercendo influência nas atividades hospitalares. Atualmente, com a Reforma Psiquiátrica, têm-se novas concepções sobre o transtorno mental e como tratá-lo. Com a nova legislação surge um momento de redirecionamento da assistência ao portador de transtorno mental infrator, onde se tornou consensual a compreensão de que o Sistema Único de Saúde – SUS e a rede de atenção à saúde mental devem se responsabilizar pelo acompanhamento da pessoa submetida à medida de segurança. Conclui-se, contudo, que apesar dos avanços alcançados na legislação e na assistência aos portadores de transtorno mental, a temática da medida de segurança tem sido pouco abordada e aprofundada na Reforma Psiquiátrica Brasileira, e a maioria das unidades dos HCTP do país não estão sequer integrados à rede do SUS. Permanece o desafio do fortalecimento da rede de atenção extra-hospitalar e de capacitação dos profissionais da área da Saúde e da Justiça para um redirecionamento da assistência aos internos dos HCTP. Palavras Chaves (3): Manicômio Judiciário; HCTP; trajetória. 190 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Pedro Felipe Neves de Muñoz Modalidade: Comunicação Oral Título: Do Pavilhão de Observações ao IPUB: A Trajetória de Henrique Roxo na Recepção da Psiquiatria Alemã (1904-1938) Resumo: Muitos autores vêm analisando a papel pioneiro do Dr. Juliano Moreira na recepção da psiquiatria alemã no Brasil, especialmente a kraepeliana, já nos primeiros anos do século XX. Contudo, nossa pesquisa de doutorado acerca da história da psiquiatria no Rio de Janeiro tem objetivado analisar as críticas e as resistências travadas à agenda de Moreira. Tais críticas, sob grande influência do referencial do alienismo francês e, em particular, de Magnan eram provenientes da Cátedra de Psiquiatria e Moléstias Nervosas e do Pavilhão de observações, cargos ocupados por Teixeira Brandão e por seu discípulo Henrique Roxo (1904-1907 e 1911-1921). Com a morte de Brandão, em 1921, Henrique Roxo passou a ser titular da cátedra e diretor do Instituto de Neuropatologia (que já havia incorporado o Pavilhão de observações, em 1911). Isto posto, podemos dizer que o presente trabalho pretende analisar a trajetória de Roxo e as transfo rmações pelas quais passou o Pavilhão de Observações, instituição situada no Hospício Nacional de Alienados até a criação do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (IPUB), em 1938, ao moldes da Clínica de Munique. Assim, vemos que, enquanto médico e diretor da primeira instituição e fundador da segunda, o Dr. Henrique Roxo deixou sua posição crítica e passou a incorporar o modelo psiquiátrico proposto Kraepelin e seus seguidores. Para analisar esse percurso, investigamos os diversos trabalhos de Roxo, bem como decretos, Relatórios Ministeriais, periódicos médicos (especialmente os Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria), atas de congressos internacionais, além de outras fontes de época. Palavras Chaves (3): Instituições Psiquiátricas; Rio de Janeiro; Psiquiatria Alemã 191 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Alexander Jabert; Luciana V. Caliman; Barbara S. de Paula; Giovana do N. Valiati; Marina F. Bernabé; Rafaela G. Amorim; Rayanne S. Francisco; Tammy A. Motta; Hugo C. Guangiroli. Modalidade: Comunicação Oral Título: Formas de Administração Social da Loucura Durante a Primeira República no Estado Do Espírito Santo Resumo: De 200 até 250 palavras): Este projeto de pesquisa tem como objetivo específico investigar quais ações foram implementadas pelo governo do estado do Espírito Santo no campo da assistência psiquiátrica durante o período da Primeira República. O fenômeno da loucura é comum a várias organizações sociais humanas, sendo que a complexidade do problema gerado pelo louco cria freqüentemente a necessidade da realização de rearranjos sociais, políticos e institucionais que possam produzir respostas para o desafio sócio-político gerado por esses indivíduos. Apesar de existir uma significativa tradição historiográfica brasileira que procura analisar as políticas que levaram ao estabelecimento dos serviços de assistência, tratamento e controle da loucura, chama atenção a escassez de trabalhos acadêmicos que tratam deste tema em relação ao estado do Espírito Santo. Desta forma, este projeto de pesquisa tem como objetivo geral suprir essa lacuna ao realizar um levantamento inicial das políticas de saúde mental elaboradas pelo poder público capixaba a partir da instauração do regime republicano. Nossas investigações têm sido feitas em relatórios de governo, ofícios, memorandos e fontes jornalísticas no Arquivo Público do estado do Espírito Santo. De posse da informação de que não havia sido possível ao governo estadual inaugurar nenhuma instituição de tratamento de alienados durante esse período histórico, nosso trabalho se concentra na investigação das soluções alternativas encontradas pelo poder público para controlar e tratar sua população de alienados. 192 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Carla Torres Pereira Carrion;Lílian Rose Margotto Modalidade: Comunicação Oral Título: História do Hospital Adauto Botelho: um olhar para discursos e práticas acerca da loucura no Espírito Santo Resumo: O presente trabalho trata de uma história do Hospital Adauto Botelho (hoje, Hospital Estadual de Atenção Clínica – Heac), localizado em Cariacica - município da Região Metropolitana da Grande Vitória - no Espírito Santo. Não existe uma única história da loucura e da psiquiatria e nem uma única forma de contar cada história. Desse modo, trazemos essa história não a partir de uma linha do tempo que narre acontecimentos de cada época. Buscamos a fluidez dos discursos e das práticas em lugar da precisão das datas. E, sobre esses discursos e essas práticas, o próprio Hospital tem muito a apresentar, a partir dos prontuários médicos datados desde inauguração em 1954 e a partir de depoimentos de pessoas que lá tenham trabalhado. Foram analisados 102 prontuários e entrevistadas 4 pessoas. A partir dos prontuários e das entrevistas, colocamos em discussão as seguintes questões: 1. As formas de encaminhamento dos pacientes para o hospital e o modo como a polícia se inseria nesse processo; 2. As terapêuticas do hospital, seu aspecto moralizante e o modo como elas incidiam sobre os corpos; 3. As lutas e resistências em processo no cotidiano do hospital. Todas essas questões são atravessadas por breves histórias de vidas dos pacientes ali internados e dos funcionários que narraram as vivências no hospital. Não há dúvida de que há inúmeras outras questões a serem debatidas, mas aqui falamos do que nos pareceu mais intenso no material pesquisado. Palavras Chaves (3): Hospital Psiquiátrico, institucionalização, loucura 193 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Giovanna Do Nascimento Valiati; Alexander Jabert; Luciana V. Caliman; Barbara S. de Paula; Marina F. Bernabé; Rafaela G. Amorim; Rayanne S. Francisco; Tammy A. Motta; Hugo C. Guangiroli. Modalidade: Painel Título: Loucos Capixabas no Rio de Janeiro Durante a Primeira República Resumo: Em sua etapa atual este projeto procura investigar de forma mais específica quais as ações no campo da assistência psiquiátrica foram realizadas pelo governo do estado do Espírito Santo durante o período da Primeira República. Apesar de existir uma significativa tradição historiográfica brasileira que procura analisar as políticas que levaram ao estabelecimento dos serviços de assistência, tratamento e controle da loucura, chama atenção a escassez de trabalhos acadêmicos que tratam deste tema em relação ao estado do Espírito Santo. Nossas investigações têm sido feitas em relatórios de governos e fontes jornalísticas no Arquivo Público Estadual. De posse da informação de que não havia sido possível ao governo estadual inaugurar nenhuma instituição de tratamento de alienados durante esse período histórico, nosso trabalho se concentra na investigação das soluções alternativas encontradas pelo poder público para controlar e tratar sua população de alienados. Uma dessas soluções foi o estabelecimento de convênios entre o governo estadual e o Hospício Nacional de Alienados (HNA) objetivando enviar pacientes capixabas para o Rio de Janeiro para serem internados nessa instituição. Ainda nessa primeira etapa da pesquisa temos procurado investigar algumas questões que permanecem obscuras em relação às negociações entre o Estado e o Governo Federal na questão da assistência aos alienados. Quem de fato financiava as estadias dos loucos capixabas no HNA: o Estado do ES? O Governo Federal? Havia contribuição das famílias? Como regiam as leis que operavam em volta da questão dos loucos? Como era definido quem iria para o Hospício Nacional de Alienados? Palavras Chaves (3): história da loucura; espírito santo; hospício nacional de alienados 194 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Izabel Friche Passos; Maristela Nascimento Duarte; Mônica Soares da Fonseca Beato; Walderez Aparecida Sabino de Souza Modalidade: Comunicação Oral Título: Loucura e sociedade: estudo etnográfico e histórico sobre a relação da cidade de Barbacena com seu passado manicomial Resumo: Fruto de pesquisa comparativa mais ampla realizada nas cidades mineiras de Prados e Barbacena, o artigo visa analisar como Barbacena, que se caracterizou no século XX como "cidade dos loucos" por abrigar um grande número de hospitais e clínicas psiquiátricas com práticas disciplinares típicas da psiquiatria asilar do século XIX, convive hoje com essa história. Dada a complexidade do objeto em estudo e a conectividade de aspectos culturais, históricos, econômicos, científicos e filosóficos, utilizamos um cruzamento metodológico que fez dialogar a psicologia social (significados da loucura), com a sociologia e a antropologia cultural (conceito de redes sociais), a lingüística (análise do discurso), a filosofia e a história (percepções e sentidos históricos da loucura). Foram adotadas as seguintes estratégias metodológicas: entrevistas em profundidade com pessoas representativas da comunidade discursiva (moradores, profissionais da saúde e da saúde mental, políticos, jornalista, juiz); análise do discurso sobre os textos das entrevistas (corpus) com objetivo de identificar as formações discursivas dominantes; observação participante em instituições de saúde mental das duas cidades; pesquisa documental em arquivos dessas instituições, e no caso de Barbacena, na imprensa local, para complementação e confrontação de informações e dados históricos; reconstrução de histórias de vida de casos significativos. Como principais conclusões, diríamos que a cidade possui cultura psiquiátrica asilar ainda arraigada e ambiguidade em relação a sua história que se expressa na memória viva do passado manicomial mas na resistência a uma reflexão crítica e reconhecimento desse passado. O projeto foi financiado pela FAPEMIG, PróReitoria de Pesquisa da UFMG e CNPq. Palavras Chaves (3): Loucura; discurso; redes sociais; inclusão e exclusão social 195 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Débora Aparecida Silva Souza; Carine G. S. Zambalde, Cecília G. Campos, Nadja C. L. Botti Modalidade: Painel Título: Multimídia educativa para o ensino dos paradigmas psiquiátrico-asilar e psicossocial Resumo: Introdução: A multimídia é uma ferramenta auto instrucional que facilita o acesso a novas informações, desperta a curiosidade e aprendizagem daqueles que a manuseiam. É importante ressaltar que não se trata de um método inovador de aprendizagem, mas um complemento aos recursos tradicionais. Objetivo: Partindo-se do pressuposto de que a multimídia educativa é uma estratégia de ensi-no/aprendizagem este estudo objetiva descrever as etapas de construção de uma multimídia para o ensino dos paradigmas psiquiátrico-asilar e psicossocial para ser utilizado por professores e estudantes na área de saúde. Metodologia: Para construção da multimídia educativa utilizou-se o Programa Microsoft Office Power Point 2007 partindo-se da incubação dos módulos temáticos referentes: 1) Geografia do Paradigma Asilar identificando as principais instituições do paradigma asilar no mundo, isto é, hospícios, hospitais psiquiátricos, colônias ou manicômio; 2) Geografia do Paradigma Asilar identificando as principais instituições do paradigma asilar no Brasil; 3) Geografia do Paradigma Psicossocial identificando as principais instituições do paradigma psicossocial no Brasil, isto é, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – instituições substitutivas ao modo asilar e; 4) Personalidades da Psiquiatria/Saúde Mental identificando personalidades no mundo e no Brasil. Conclusão: A utilização de ambientes virtuais de aprendizagem no campo da saúde mental é uma estratégia, que por ser inovadora, torna-se um desafio. Considerando os objetivos deste estudo, concluiu-se que a construção da multimídia educativa atingiu a sua meta como instrumento de aprendizagem mostrando ser uma alternativa para o conhecimento dos paradigmas psiquiátrico-asilar e psicossocial. Palavras Chaves (3): Tecnologia; Saúde Mental; Aprendizagem. 196 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Pedro Augusto Garcia Marini; Marcela Bessil.; Carla Patrícia. Modalidade: Comunicação Oral Título: O Contexto Histórico de uma ONG/AIDS e o Papel do Psicólogo na Construção da Cidadania Resumo: A AIDS é a doença infecciosa que se não tratada adequadamente pode levar a morte. Segundo a OMS (2005), cerca de 40 milhões de pessoas possuem a enfermidade, das quais 20 milhões morreram. Neste triste panorama evidenciamos tanto os graves problemas de investimentos do governo em políticas públicas que promovam a prevenção, promoção e recuperação da saúde destas pessoas, quanto à negação de grandes empresas em ter seu nome associado à ONGs/AIDS. Sabemos da importância destas instituições no combate ao preconceito, repúdio e descaso social, sendo muitas vezes a única opção de auxilio social. O objetivo deste trabalho é descrever e refletir sobre o processo histórico da ONG Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS no Rio Grande do Sul (GAPA-RS) ao longo dos anos, com enfoque no Serviço de Atendimento Terapêutico (SAT) e no papel do psicólogo nesse local. Esta é uma pesquisa bibliográfica e documental, pois recuper a a história da instituição e compara com dados da realidade presente, além de explicar esta situação sob o prisma da saúde pública. Conclui-se: mesmo com as dificuldades vivenciada por ONG´s que dependem do trabalho e dedicação de voluntários, o GAPA continua permanecendo um centro de referência em prevenção à AIDS e apoio a pessoas que vivem com HIV/AIDS em Porto Alegre, sendo SAT é uma das formas de materialização do potencial instituinte do psicólogo. O atendimento psicológico a pessoas que se encontram em período de janela ou que vivem com HIV/AIDS é extrema importância para a busca de atenção a saúde integral do indivíduo. Palavras Chaves (3): HIV/AIDS, saúde pública, atuação profissional 197 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Lourenço Luciano Carneiro Filho; Renata Bellenzani Modalidade: Comunicação Oral Título: O percurso de um hospital psiquiátrico no cenário das transformações históricas na saúde mental Resumo: A história da psiquiatria está atrelada aos modelos de sociedade, com seus valores e regras, sendo considerados insanos e patológicos os comportamentos que fogem aos padrões naturalizados como normais. Às pessoas que infringiam os padrões foi destinado um espaço social para mantê-los a parte do convívio: o hospital psiquiátrico, instituição que sofreu profundas mudanças. Este trabalho apresenta dados preliminares de um estudo em andamento que busca co-produzir junto a alguns atores sociais, uma retrospectiva histórica e psicossocial das fases pelas quais passou, até a atualidade, um hospital psiquiátrico de um município em Mato Grosso do Sul-Brasil. Investigar-se-á o contexto sociocultural de sua inauguração, convergências e contradições dos seus sucessivos modelos de atenção em relação às proposições das Reformas Psiquiátricas e Políticas de Saúde, agregando a percepção dos autores sobre a atual função social da instituição. Utilizando-se de roteiro de entrevista em profundidade, um dos informantes-chaves foi entrevistado, o atual Diretor da instituição cujo nome foi alterado de “hospital psiquiátrico” para “instituto”, agregando-se o nome de sua idealizadora, avó do informante. Inaugurado na década de 1960 por religiosos espíritas filantrópicos, passou na última década por mudanças de infra-estrutura, modelo de atenção e clientela atendida, com aumento das internações por dependência química, evidenciando uma mudança em sua função social atrelada às mudanças socioculturais. Em avaliações hospitalares nacionais tem ocupado posição de mérito e juntamente com o Centro de Atenção Psicossocial/CAPS divide, no imaginário, a representação de local para atenção psiquiátrica, investido simbolicamente e politicamente pela população e pela rede de saúde regional. Palavras Chaves (3): Hospital psiquiátrico; Saúde mental; Práticas humanizadas 198 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Hernani Luis C. O. Coelho Dias;Maria Stella Goulart; Diego Patrick; Marcela Abreu Modalidade: Comunicação Oral Título: Psicanálise e psiquiatria nos percursos da reforma mineira Resumo: O trabalho aqui presente busca discutir a história da reforma psiquiátrica mineira retomando o viés da história da instituição psicanalítica. Esta discussão integra a pesquisa intitulada Cezar Rodrigues Campos e a história da reforma psiquiátrica mineira, onde procura-se articular a metodologia de Micro-história (Mh) e o marco teórico da Análise Institucional(AI). A articulação de pressupostos da Mh (como a utilização da escala de análise reduzida) conectado com conceitos da AI (como o de analisador, instituído-instituinte) propicia a análise da Instituição Psicanalítica, além de desvelar sua correlata aproximação com a Psiquiatria mineira. A utilização de um fragmento do que viria ser apenas um tópico da história da psiquiatria serve como meio para que percebamos uma questão social mais ampla, um problema histórico e cultural significativo. Assim, pretende-se trazer à luz o que de outra forma passaria desapercebido sob a égide de uma história oficial. Ao traçar a história da instituição psicanalítica, a definição de seus exercícios, alternativas criadas para suas práticas, os seus caminhos e descaminhos abre-se a oportunidade para repensar as práticas assistenciais características do território mineiro - tanto de suas reformulações, normatizações, desenlaces, como os seus agentes públicos e privados. Trata-se da apresentação de revisão crítica de literatura, que se apresenta como resultado parcial da pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais. Palavras Chaves (3): reforma psiquiátrica; análise institucional; microhistória 199 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Karla Gomes Nunes; Neuza Maria de Fátima Guareschi Modalidade: Comunicação Oral Título: Reabilitar pelo trabalho: Uma análise das práticas no campo da alienação mental Resumo: Este estudo analisa a emergência do trabalho como prescrição terapêutica no contexto da Assistência a Alienados, em Minas Gerais, entre 1900 e 1934. Os materiais de pesquisa são documentos que tratam da criação de instituições destinadas aos alienados mentais e, também, do funcionamento das mesmas. São eles: 3 leis estaduais, 3 decretos, 3 regulamentos, 1 mensagem Presidencial e 1 projeto para reforma do hospício. Parte-se da perspectiva genealógica proposta por Michel Foucault e de suas formulações sobre o poder disciplinar e a biopolítica, com o objetivo de visibilizar como a noção do trabalho se desloca ao longo das práticas psiquiátricas e possibilita a passagem do discurso da reclusão à reabilitação pelo trabalho. Apontamos ainda as estratégias de controle que deixam de ter o corpo como alvo, buscando fixa-lo, para produzir uma população que deve ser manejada, por meio de um processo de mapeamento dos riscos e definição dos indivíduos que devem ser reformados. Observa-se que, gradativamente, a adesão ao trabalho adquire no interior das práticas psiquiátricas uma dupla vantagem: tanto terapêutica quanto possibilidade de lucro para o Estado. Fora do hospício, o trabalho é constituído como norma de conduta e como critério para patologização ou criminalização daqueles considerados vadios, ociosos ou indigentes. Trata-se de olhar o passado para pensar as práticas que historicamente tem constituído os cuidados em saúde mental, no qual os discursos sobre a cura perdem força e emergem os da reabilitação psicossocial, para os quais o trabalho, por meio das oficinas terapêuticas, é ainda um recurso presente. Palavras Chaves (3): Saúde mental; Trabalho; Reabilitação psicossocial 200 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autores: Sonia Margarete Batista Frade Krachenski; Silvana Lima Buscioli; Aline Pinto Guedes. Modalidade: Comunicação Oral Título: Reflexão sobre a Prática do Planejamento e a Reforma Psiquiátrica no Hospital Colônia Adauto Botelho – SESA/PR Resumo: O presente trabalho pretende estabelecer uma relação entre a prática do planejamento em saúde e as políticas públicas de saúde mental, inserido no processo histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil e no contexto de um hospital psiquiátrico do Estado do Paraná, desde a década de 1980 até os dias atuais. Para compreender este processo, faz-se uma revisão da construção das políticas de saúde mental no Brasil, das diretrizes e normatizações para gerenciamento e implantação dos serviços no novo modelo proposto. Realizou-se um levantamento histórico da execução dos programas de saúde mental no Hospital Colônia Adauto Botelho (HCAB), hospital psiquiátrico da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, inaugurado na década de 1950, que chegou a contar com uma população de mais de 1000 pacientes nos anos 70, procedentes de vários Estados da Federação, principalmente Paraná, Santa Catarina e São Paulo, sendo que nesse período os serviços extra-hospitalares eram escassos. Atualmente, o HCAB possui 160 leitos cadastrados, atendendo prioritariamente a população da região metropolitana de Curitiba, litoral e as cidades do interior do Paraná que não dispõem de vagas para atendimento especializado na região. Neste trabalho focaremos o processo da desinstitucionalização, a reconstrução de saberes e práticas e o estabelecimento de novas relações, o qual se encontra em construção, com novos desafios a serem enfrentados. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiátrica; Planejamento em Saúde; Políticas Públicas 201 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Andréa de Alvarenga Lima; Adriano Furtado Holanda. Modalidade: Comunicação Oral Título: Sanatório Bom Retiro: Psiquiatria e Espiritismo no Tratamento da Loucura no Paraná Resumo: Ao longo da história, as relações entre vivência da religiosidade e psicopatologia têm sido complexas e ambíguas. A presente apresentação discute resultados selecionados da pesquisa de Mestrado intitulada “Psiquiatria e espiritismo no atendimento à doença mental: a história do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro (Curitiba, 1930-1950). A partir de um fato pontual, o surgimento do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, inaugurado em Curitiba em 1946, o trabalho busca estabelecer as diferentes concepções e tratamentos que se desenvolveram, nesse contexto, nos campos do espiritismo e da psiquiatria médica. Tendo o método fenomenológico como substrato, foram utilizados procedimentos da pesquisa historiográfica oral e documental e consultados os acervos do próprio Hospital, da Universidade Federal do Paraná, da Biblioteca Pública do Paraná e da Federação Espírita do Paraná. Apoiada nessas fontes, estabelece-se uma narrativa que, sensível ao contexto social de Curitiba na primeira metade do século XX, se volta à análise de três distintos cenários: a expansão da doutrina kardecista no Paraná e a concepção e tratamento da doença mental por ela propostos; a constituição do saber psiquiátrico no Paraná e as relações que esse saber estabelece com o espiritismo; por fim, a constituição e funcionamento do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro. Palavras Chaves (3): História da psicologia. História da psiquiatria. Espiritismo. 202 Eixo: História das Instituições Psiquiátricas e do Contexto em que se Constituíram Autores: Myriam Raquel Mitjavila; Priscilla Gomes Mathes; Bruno Grah. Modalidade: Comunicação Oral Título: Saúde Mental e Medicalização da Criminalidade No Brasil: Trajetórias Recentes Resumo: O trabalho tem por objetivo analisar algumas dimensões sócio-culturais dos processos e formas de estruturação dos discursos da psiquiatria forense sobre saúde mental e periculosidade criminal no momento contemporâneo, bem como suas articulações com algumas das tecnologias biopolíticas de gestão da criminalidade que emergem em contextos neoliberais. Para tanto, são utilizados os resultados parciais de uma pesquisa que teve por objetivo examinar os conteúdos científico-técnicos, doutrinários e ideológicos que orientam a medicalização do crime nas sociedades contemporâneas, através de uma etnografia documental em torno de uma amostra de materiais bibliográficos, eletrônicos e documentais substantivamente representativos da produção científicotécnica da psiquiatria brasileira sobre o tema. A análise de conteúdo do material empírico foi estruturada a partir dos seguintes eixos temáticos: a) representações sobre loucura, crime, comportamento criminal, risco, periculosidade e responsabilidade criminal. b) definições e critérios de risco e periculosidade criminais; c) a nova penologia e suas conexões com os processos recentes de medicalização/desmedicalização da criminalidade; d) tipo de racionalidade e tecnologias ou instrumentos utilizados para a determinação dos critérios acima mencionados; e) estratégias interpretativas e modelos etiológicos sobre a periculosidade criminal; f) auto-percepções sobre o papel da medicina psiquiátrica no desempenho de funções forenses; g) principais debates e dilemas sócioculturais, políticos e éticos presentes no exercício da prática profissional da psiquiatria forense voltada para a avaliação de periculosidade criminal. Palavras Chaves (3): Saúde Mental, Criminalidade, Medicalização 203 Eixo: História das instituições psiquiátricas e do contexto em que se constituíram Autor: Elisa Paula Marques Modalidade: Comunicação Oral Título: Se essas paredes pudessem falar: a Colônia Santana e o contexto de sua criação Resumo: Em 1941, foi criada em Santa Catarina, a Colônia Santana, instituição voltada para o atendimento de pessoas com transtornos mentais. Suas instalações foram construídas num local de difícil acesso, pois se acreditava que o isolamento contribuía para a cura e tratamento dos doentes. Ao olhar a história da Colônia (atual Instituto de Psiquiatria do Estado de Santa Catarina-IPQ), verificamos que não eram apenas os portadores de doença mental que se encontravam por detrás de seus portões. Séculos depois de Pinel ter libertado os “loucos” dos grilhões que os prendiam, e de todas as leis e reformas que na Europa procuraram retirar a miséria e a criminalidade do contato com os insanos, nos deparamos com realidades que nossa consciência preferia julgar inexistentes. Miséria, abandono e problemas familiares foram transformados em motivos de internação. O internamento, embora não constasse entre os objetivos da criação da Colônia Santana serviu para asilar todo um grupo de pessoas que, assim como os doentes mentais, não encontravam inserção na sociedade. A perspectiva de dar voz ao paciente de uma Instituição Psiquiátrica é, no mínimo, difícil de concretizar, pois muitos dos que ainda hoje se encontram nos corredores do IPQ, não sabem mais de onde vieram, por quê ou quem são. Mas podemos encontrar nos corredores e arquivos da instituição algumas pistas para entender o cotidiano da Colônia e as formas de tratamentos utilizados nos doentes antes da luta antimanicomial. Para esta comunicação optei por trabalhar os primeiros anos após a fundação da Colônia Santana. E as fontes utilizadas foram os prontuários médicos, notícias do jornal Diário da Tarde e entrevistas orais. Palavras Chaves (3): Colônia Santana; transtornos mentais; pacientes 204 RESUMOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS Movimentos sociais 205 Eixo: História dos Movimentos Sociais que Atuam no Campo da Saúde Mental Autores: Juliana Cantele; Dorian Mônica Arpini. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Perspectiva da Psicologia Dentro do Atual Modelo de Atenção Em Saúde Mental Resumo: A loucura durante muito tempo perpassou por diversas culturas, costumes, religiões, economias, políticas, rituais, reeditadas em cada época. Com o despertar dos trabalhadores em saúde mental surge a Reforma Psiquiátrica Brasileira na perspectiva de superar o modelo hospitalocêntrico, levando ao sujeito que sofre uma forma mais humanitária de tratamento. Assim, os Centros de Atenção Psicossocial entram em vigor com a finalidade de restabelecer os laços entre o usuário, a família e a sociedade. Com isso, o psicólogo, ao lado de outros profissionais, passa a se inserir nesse novo modelo. A pesquisa teve como objetivo conhecer a experiência dos profissionais da psicologia inseridos no atual modelo de atenção em saúde mental. Foi realizado um estudo de caráter qualitativo, com a utilização da técnica de entrevistas semi-estruturadas, tendo como participantes sete psicólogos de três CAPS de uma cidade do Rio Grande do Sul. Enquanto método de análise empregou-se a análise de conteúdo. O estudo evidenciou a relevância do psicólogo dentro desta modalidade de serviço, bem como as diferenças entre práticas tradicionais e as demandadas pelo atual modelo de atenção em saúde mental. Os participantes enfatizaram a importância de um constante repensar da ação profissional, destacando a importância da realização de capacitação quando da entrada do profissional no serviço e da supervisão clínico-institucional como recurso para qualificar a prática. Realçaram também a importância do trabalho em equipe e do olhar multiprofissional em relação ao usuário. Contudo, pode-se concluir que os profissionais da psicologia têm um papel preponderante nas equipes que compõem os CAPS. Palavras Chaves (3): Centro de Atenção Psicossocial; Profissionais da Psicologia; Saúde Mental. 206 Eixo: História dos Movimentos Sociais que Atuam no Campo da Saúde Mental Autor: Martha Helena Oliveira Noal Modalidade: Comunicação Oral Título: Fórum Regional Permanente de Saúde Mental do Vale Do Rio Pardo - Rs – 15 Anos Resumo: O Fórum Regional Permanente de Saúde Mental do Vale do Rio Pardo surgiu em 1997 da necessidade de um pensar coletivo e interdisciplinar sobre a reorientação do modelo assistencial em saúde mental numa região que, até então, limitava-se a oferecer uma atenção exclusivamente hospitalocêntrica, instituindo-se como entidade representativa das ações em saúde mental dos treze municípios da 13ª Coordenadoria Regional de Saúde, abrangendo uma população de 307.932 mil habitantes. O Fórum teve como objetivos ampliar a rede de atenção, estimulando a criação de novos serviços de saúde mental, de acordo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, instrumentalizar o controle social, fomentar a discussão nas comunidades sobre os problemas psíquicos e suas soluções e articular a integralidade e a intersetorialidade das ações em saúde,junto à rede de atenção básica dos municípios. O Fórum Permanente já realizou quinze edições do Fórum Anual de Saúde Mental reunindo aproximadamente 700 participantes cada uma, dentre gestores, trabalhadores de saúde mental, estudantes, agentes comunitários de saúde, comunidade em geral, usuários dos serviços e seus familiares. A representatividade regional do Fórum, seus debates e deliberações, definiram a política de saúde mental da região baseada numa abordagem biopsicossocial, comunitária, preventiva, reabilitadora e visando a integralidade. A maioria dos municípios constituintes do Fórum não dispunha de qualquer ação de saúde mental até a implantação deste. Atualmente a rede conta com nove centros de atenção psicossociais, ambulatórios de saúde mental, leitos psiquiátricos em hospitais gerais e ações de saúde mental na rede básica. Palavras Chaves (3): fórum; saúde mental; história. 207 Eixo: História dos Movimentos Sociais que Atuam no Campo da Saúde Mental Autores: Lorena de Fátima Prim; Thalita Ladewig Scwarz; Camila Francelina Bertoldi Neckel. Modalidade: Comunicação Oral Título: História da Saúde Mental e da Economia Solidária em Blumenau: um Estudo Sobre a Enloucrescer Resumo: Este trabalho objetiva apresentar a história da Associação de Familiares, Amigos e Usuários do Serviço de Saúde Mental do Município de Blumenau (ENLOUCRESCER) criada em meados 2005, tendo como pilares a junção de dois movimentos sociais, vinculados à história das lutas em prol da melhoria das políticas públicas de saúde mental neste município. Os dois movimentos sociais são o da Luta Antimanicomial e o da Economia Solidária. Os Objetivos específicos desse trabalho são: a) a apresentação do panorama histórico desses dois movimentos, que visam a inclusão social dos usuários do Serviço de Saúde Mental de Blumenau; b) as características gerais da ENLOUCRESCER, sendo essas sua história, objetivos, forma de funcionamento, identidade, conquistas e desafios e; c) as especificidades da atuação da psicologia na contribuição para a consolidação das políticas públicas de saúde mental. Para tanto, os procedimentos metodológicos utilizados foram a revisão da literatura vinculada ao tema; resgate de documentos tais como projetos, atas, relatórios, entre outros; entrevistas com sujeitos vinculados aos movimentos da Luta Antimanicomial, da Economia Solidária e da ENLOUCRESCER e observações nas atividades da Associação. A principal conclusão é que a participação dos usuários do serviço de Saúde Mental na ENLOUCRESCER e nas lutas sociais, tanto na Antimanicomial, como na da Economia Solidária os potencializa – diminuindo os impactos psicossociais negativos advindos da condição de rotulação, estigmatização e discriminação vinculados ao processo dialético de exclusão/inclusão social perverso. Palavras Chaves (3): saúde mental; economia solidária; Enloucrescer. 208 Eixo: História dos Movimentos Sociais que Atuam no Campo da Saúde Mental Autores: Carla Luiza Oliveira Modalidade: Comunicação Oral Título: Influência Italiana na Reforma Psiquiátrica Brasileira Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir a influência italiana no processo de Reforma Psiquiátrica do Brasil. A hipótese inicial deste trabalho foi que esta influência é retratada na maioria das vezes apenas como um marco na história da reforma brasileira, não sendo apresentada de forma mais aprofundada nos estudos em saúde mental. Desse modo, o objetivo específico da pesquisa foi conhecer melhor o movimento de luta antimanicomial italiano, bem como compreender sua influência no processo de reforma no Brasil. Assim, foi realizada uma pesquisa a partir de fontes bibliográficas, que visou recuperar algumas importantes informações que compõem o resgate histórico proposto nesse trabalho. A pesquisa aborda o surgimento da Psiquiatria Democrática, a trajetória de trabalho do psiquiatra italiano Franco Basaglia e as importantes experiências realizadas nos manicômios de Gorizia e Trieste. Discorre sobre a visita de Franco Basaglia ao Brasil e sua repercussão no início do nosso movimento antimanicomial, como também, abre discussão sobre os desafios atuais da área de saúde mental brasileira. Para tanto, alguns(mas) teóricos(as) que discutem sobre estes temas foram utilizados(as), tais como: Basaglia (1982; 1991); Amarante (1994; 1996); Goulart (2007); Passos (2009); Devera e Costa-Rosa (2007); Dimenstein e Liberato (2009); dentre outros. Verificou-se a partir desse estudo que o projeto de desinstitucionalização italiano foi de fundamental importância para a Reforma Psiquiátrica do Brasil, e o quanto esse ideal ainda se faz desafiador para o campo da saúde mental nos dias atuais. Palavras Chaves (3): Psiquiatria Democrática Italiana; Reforma Psiquiátrica; Desinstitucionalização. 209 Eixo: História dos Movimentos Sociais que Atuam no Campo da Saúde Mental Autor: Leandro Alves Felício Modalidade: Comunicação Oral Título: O Físico, o Moral e o Mental: O Projeto de Reforma da Cultura Nacional do Círculo Brasileiro de Educação Sexual Resumo: O objetivo deste trabalho é demonstrar como os cuidados com a saúde mental possuíram estreita relação com o projeto de educação sexual do Circulo Brasileiro de Educação Sexual durante a Era Vargas. Apresentamos o CBES como uma entidade filantrópica que atuou na capital federal do Brasil, o então estado do Rio de Janeiro, a partir do ano de 1933 tendo como fundador o médico e precursor do movimento sexológico e de educação sexual, enquanto manifestações científicas e pedagógicas, José de Oliveira Pereira de Albuquerque. Na perspectiva do médico e do CBES, patologias de características sexuais tais como alguns tipos de impotência sexual masculina, espermatorréia, entre outras de sintomas físicos possuíam relação direta com problemas de origem mental. Na obra “Estudo clínico e Therapeutico da Coitofobia no Homem” (1931), Albuquerque descreve uma patologia de ordem sexual que seria motivada pelo medo masculino da prática do coito como mais um caso de impotência sexual e desta feita de ordem psíquica. Segundo o médico alguns desencadeadores desse tipo de impotência seriam problemas de ordem afetiva que gerariam uma série de sintomas que impediriam a ereção masculina, portanto a cópula. Neste sentido a conexão entre físico e mental deveria ser problematizada segundo uma acurada anamnése clínica, laboratorial e psicológica. As influencias dos trabalhos de Sigmund Freud se fizeram presentes nas análises do médico e da entidade demonstrando como os problemas de neuroses poderiam ser fatores determinantes no entendimento e diagnóstico de patologias de características sexuais. Palavras Chaves (3): Físico; Mental; Sexual 210 Eixo: História dos movimentos sociais que atuam no campo da saúde mental Autor: Felipe Basso Silva Modalidade: Comunicação Oral Título: Psicologia e Reforma Psiquiátrica: uma só História? Resumo: Com o presente artigo, objetiva-se construir uma percepção histórica do processo de implementação da reforma psiquiátrica no Brasil a partir da Psicologia enquanto campo de conhecimento. O método utilizado é uma vasta pesquisa bibliográfica, a qual subsidiou a construção da trajetória desse movimento social da área da saúde mental, e a psicologia como saber participante desse processo. Foi no final de 1980 que os movimentos sociais do Brasil associados à luta pelos direitos humanos culminaram na Reforma Psiquiátrica, garantindo uma nova Política de Saúde Mental, com as seguintes características: redução de leitos; controle sobre os hospitais psiquiátricos; rede de serviços alternativos para substituição dos leitos; aprovação da nova legislação de saúde mental – a Lei nº. 10.216, de 6 de abril de 2001 –; incentivo ao processo de desinstitucionalização; e a saúde mental como parte integrante do sistema de educação do Sistema Único de Saúde (SUS). Como conclusão deste trabalho, ressalta-se uma maior presença do saber psicológico nesse movimento social apenas mais recentemente. Contudo, trabalhos indicam que vêm se criando uma cultura profissional nova, porém ainda restrita aos espaços de pós-graduação e aos serviços de entidades corporativas. Já os cursos universitários de psicologia do país, especialmente em nível de graduação, demonstram-se inertes diante de diversos desafios impostos pelos campos de atuação na área pública. Palavras Chaves (3): Psicologia; Reforma Psiquiátrica; História. 211 Eixo: História dos Movimentos Sociais que Atuam no Campo da Saúde Mental Autor: Cristiana Tramonte Modalidade: Comunicação Oral Título: Religiosidade Afro-Brasileira e Saúde Mental: As Bases Psicossociais da Cura Resumo: O trabalho apresenta aspectos de pesquisa desenvolvida junto a centros de religiosidade afro-brasileiros em Santa Catarina, notadamente Umbanda. Desde seus primórdios, é estreita a correlação entre as religiões afro-brasileiras e os aspectos físicos e psicossociais da dualidade saúde/doença. O preconceito e as justificativas à perseguição e repressão às práticas religiosas, se ocultarão sob as acusações de curandeirismo e prática ilegal da medicina empreendidas, entre outros, pelos próprios profissionais da saúde. Contraditoriamente, a preocupação com os efeitos e o impacto das práticas de curas dos “feiticeiros e curandeiros”, não resultará apenas em violência simbólica e física sobre seus praticantes, mas impulsionará o interesse de estudiosos da área da saúde, resultando nos primeiros registros históricos sobre as práticas. Os primeiros e mais significativos estudos sobre as religiões afro-brasileiras ao longo de sua trajetória serão realizados por indivíduos ligados à medicina, como é o caso do médico baiano Nina Rodrigues e, no caso específico de Santa Catarina, o historiador, antropólogo e professor de medicina legal Oswaldo Cabral. Na outra face deste fenômeno, a busca da saúde física e psíquica está entre os principais motores impulsionadores da adesão “ao santo”, ou seja, á religiosidade afro-brasileira, de indivíduos em situação de desesperança. As doenças do corpo e da alma que a medicina oficial por diversos fatores não conseguiu solucionar, estão entre as maiores responsáveis pela busca e crescimento desta forma de religiosidade. Palavras Chaves (3): Umbanda; cultura afro-brasileira; Cultura e saúde mental 212 RESUMOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS Políticas públicas 213 Eixo: História das Políticas Em Saúde Mental Autores: Vitor Lima da Silva; Kleber Prado Filho. Modalidade: Comunicação Oral Título: A IV Conferência Nacional de Saúde Mental no contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Resumo: Proposta de estudo a ser apresentada liga-se ao contexto das “Histórias das Políticas de Saúde Pública” e está sendo desenvolvida como pesquisa de Mestrado no Programa de Pós Graduação da UFSC. O trabalho busca analisar a IV Conferência Nacional de Saúde Mental-Intersetorial, realizada no ano de 2010, levando em conta as três conferências anteriormente acontecidas nos anos de 1988, 1994 e 2001, à luz da problematização crítica da Loucura em Michel Foucault. Neste sentido, aplica uma metodologia de Análise Documental sobre Relatórios dos Encontros ocorridos em nível municipal, Estadual e Nacional, procurando traçar a trajetória histórica dos rumos tomados ao longo da Reforma psiquiátrica, que resultaram na implementação dos chamados “Serviços Substitutivos”. Mais que uma proposta de estudo, a atividade remete ainda a participação ativa do pesquisador no movimento de resistência a violência psiquiátrica no Brasil, o que aproxima a pesquisa de uma perspectiva etnográfica, com participação efetiva do pesquisador nas conferências como delegado do segmento intersetorial, o que resultou na elaboração de um diário de campo também utilizado como fonte de informação. Portanto, será feito um cruzamento dos conteúdos oficiais dos relatórios, com as vivências práticas e políticas experienciadas nas Conferências. Como a pesquisa encontra-se em andamento, não há conclusões a serem apresentadas, no entanto, a hipótese que orienta o trabalho aponta para verificação de uma psiquiatrização dos Centros de Atenção Psicossocial, supondo uma captura destes “serviços substitutivos” pelo Poder Psiquiátrico, que opera conforme uma racionalidade manicomial. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiatrica, Psiquiatrização do CAPS, Michel Foucault 214 Eixo: História das Políticas Em Saúde Mental Autores: Arthur Arruda Leal Ferreira; Karina Lopes Padilha; Miriam Starosky; Rodrigo Costa Nascimento. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Questão da Liberdade nos Processos Reformistas: Uma Multiplicidade de Práticas Governamentais Resumo: Um campo possível para o estudo do surgimento dos saberes psicológicos é o das práticas de governo, conforme delineadas por Foucault. Por práticas de governo entendem-se as formas como se estrutura a condução da conduta alheia, desde as formas pastorais do cristianismo primitivo até os modos atuais do Estado contemporâneo. O ponto chave dessa história encontra-se no século XVI, quando surge um conjunto de novas técnicas de governo, embasadas na necessidade de registro e disciplinamento constante das ações dos governados, caracterizando o “Estado de polícia”. Contudo, no século XVIII surgem novas tecnologias de governo, patrocinadas pelos fisiocratas; a população passa a ser vista como um ente natural a ser governado não mais se intervindo em todos os detalhes de sua vida, mas acompanhando de modo científico todas as suas flutuações livres. Para Rose, a psicologia passa a ter especial importância no século XX, atuando através da constituição de políticas múltiplas para governo de indivíduos em sociedades democráticas. Nosso objetivo é avaliar os modos de governamentalidade engendradas no contexto das Reformas Psiquiátricas brasileira e italiana, por meio dos conceitos de cidadania e liberdade. A hipótese central é que co-existem não apenas os antigos dispositivos disciplinares-asilares (e as formas de resistência a estes), mas modos liberais de gestão, presentes em algumas figuras como a empresa social (e toda uma nova configuração do usuário como trabalhador e consumidor). Trata-se de formas de gestão pela liberdade e voltadas para uma ação mais flexível em que o usuário-cidadão deve agora ser capacitado para sua auto-gestão. Palavras Chaves (3): Governamentalidade; Reformas Psiquiátricas; Liberdade 215 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Maria Teresa Claro Gonzaga; Silvio Iasue; Ana Carolina Jacinto Alarcão; Marcela Battilani Belo. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Trajetória do Serviço Municipal de Saúde Mental de Maringá-Paraná Resumo: A construção de uma política de Saúde Mental na perspectiva da reforma psiquiátrica é um processo em construção no Brasil e não ocorre de forma única, estando ela relacionada a questões políticas, históricas, econômicas e culturais, tendo cada região a sua própria característica. Este trabalho tem como objetivo descrever a trajetória do Serviço de Saúde Mental no município de Maringá-Paraná com destaque para o processo de delineamento progressivo da política de saúde mental alinhada com os princípios da Reforma Psiquiátrica e do marco legal. O método utilizado é a análise de dados obtidos através da 15ª Regional de Saúde. O estudo indicou que no início da década de 90, as práticas de Saúde Mental em Maringá ocorriam de forma fragmentada, e com o passar do tempo, outras formas de atendimento foram sendo incrementadas contando atualmente com uma estrutura composta por 25 Unidades Básicas de Saúde- UBS todas ofertando atendimento psicológico; 07 equipes de Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF; 01 Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II; 01 Centro de Atenção Psicossocial AD II - Álcool e Drogas; 01 Ambulatório de Saúde Mental denominado Centro Integrado de Saúde Mental de Maringá – CISAM; 01 Serviço de Emergência Psiquiátrico em Hospital Geral, com 26 leitos e 02 Serviços Residenciais Terapêuticos. A análise dos dados sobre a trajetória histórica da saúde mental em Maringá revelou uma maior complexidade e um processo de reorganização na Saúde Mental, que se reflete em um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais. Palavras Chaves (3): saude mental; reforma psiquiátrica; política pública 216 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Kenny Paolo Ramponi, Andréia de Carvalho Andrade, Maria Cristina Sanna. Modalidade: Comunicação Oral Título: Atores participantes das Conferências Nacionais de Saúde Mental: (1987-2009) Resumo: Objetivo: Com o presente estudo pretende-se avaliar qual foi a participação que os atores e instituições tiveram nas quatro conferências sobre saúde mental que ocorreram no Brasil, desde então. Tendo este panorama traçado, pretende-se levantar o número de profissionais e instituições que participaram diretamente da organização das Conferências Nacionais de Saúde Mental, para identificar os atores que protagonizaram essa forma de participação social. Além de investigar quantos atores dela participaram ao longo destes 24 anos e que locais representaram, se quer saber como os atores se fizeram representar neste espaço principal e primordial para o encaminhamento das questões da Saúde Mental no país. A internação psiquiátrica remonta às abordagens realizadas no século XIX, quando foi instituído o asilo psiquiátrico. Várias transformações ocorreram até os dias atuais. A partir dos anos 1970, iniciaram-se experiências em transformação da assistência pautadas, no começo, pela reforma intramuros das instituições psiquiátricas (comunidades terapêuticas) e, mais tarde, pela proposição de um modelo centrado na comunidade e substitutivo ao modelo do hospital especializado. Metodologia: Estudo descritivo e exploratório, com abordagem quantitativa, documental. Conclusões: Observamos nas conferências variações entre a participação das entidades, um aumento crescente do número de profissionais e usuários participando da formulação das conferências, também um aumento de comissões organizadoras das conferências nacionais. Os resultados permitiram traçar um panorama de como os profissionais, familiares e usuários foram representadas nas conferências, quais entidades estão auxiliando na formulação das políticas públicas, além de observar qual a importância de mobilização que esta temática apresenta para a sociedade. Palavras chave: Políticas Públicas, Saúde Mental, Organização Social. 217 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Diego Patrick da Silva; Maria Stella Brandão Goulart; Marcela Alves de Abreu; Hernani Chevreux. Modalidade: Comunicação Oral Título: Cezar Rodrigues Campos: De Psiquiatra a Militante Da Reforma Resumo: O tema do trabalho é a história da Reforma Psiquiátrica mineira entre as décadas de 60 a 90 do século XX. O objetivo geral é o de resgatar esta história através do estudo da trajetória profissional do psiquiatra, gestor público e militante da luta antimanicomial, Cezar Rodrigues Campos. O estudo se insere no domínio da história das instituições de saúde mental e na dimensão da História-Social, onde se dará destaque à perspectiva da Microhistória (Carlo Ginzburg). Esta perspectiva se articula com o marco teórico interpretativo da Análise Institucional (René Lourau), perseguindo tensões e contradições das relações entre grupos, redes, organizações e instituições. Identificaremos e analisaremos a trajetória institucional e as iniciativas técnicas, políticas e sociais de Campos, a partir de pesquisa documental, tomando como fontes primárias o conjunto de documentos que integram acervo doado pela família e já instalado na Universidade Federal de Minas Gerais. Este acervo compõe-se de documentos pessoais e públicos, além de revistas e recortes de jornais e alguns livros. A análise do material se pautará na análise de conteúdo. Como metas e resultados, a intenção é, destacadamente, a de organizar, restaurar, manter e divulgar o seu conteúdo de relevância histórica e política, garantindo sua divulgação eletrônica. Nossas conclusões parciais remetem à retomada da sequência biográfica, articulada com a identificação de contextos, acontecimentos históricos, instituições e atores sócio-políticos relevantes. O trabalho é resultado parcial de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, intitulada Cezar Rodrigues Campos e a história da reforma psiquiátrica mineira. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiátrica; Análise Institucional; Microhistória 218 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Daniele Uglione Fabrin Casale dos Santos; Cristina Lhullier. Modalidade: Comunicação Oral Título: Contribuições da Psicometria para a Construção do Sujeito Com Deficiência Intelectual no Brasil: Uma Genealogia. Resumo: O desenvolvimento da Psicologia no Brasil está estreitamente ligado ao da Educação. Em uma perspectiva foucaultiana, ambas as ciências atuam como legitimadoras de modos de subjetivação. Os primeiros discursos sobre a educação da pessoa com deficiência surgem no país no âmbito da Medicina e vão incorporando os saberes da Psicologia experimental, difundindo-se a partir da criação de laboratórios em instituições de ensino. Este trabalho pretende fornecer subsídios para descrever os saberes-poderes relacionados na formação da estrutura institucional escolar e do campo de atuação inicial da ciência psicológica no contexto brasileiro como um dispositivo de produção do sujeito com deficiência intelectual. Para tanto, é necessária uma genealogia das práticas psicométricas do início do século XX e suas consequências na produção de sujeitos escolares e sua ocupação posicional no espaço institucional. Os saberes constituídos nos laboratórios colaboraram para uma classificação e seleção de estudantes e profissionais da educação. Neste âmbito, a mensuração da inteligência e a classificação dos normais/anormais produziram um discurso sobre o deficiente intelectual segregandoo a um espaço especial nas instituições de ensino através da criação das classes especiais e instituições públicas especializadas em educar aqueles sujeitos que se distanciavam dos valores estabelecidos como normais nas escalas psicométricas. A deficiência intelectual passa para as páginas de manuais de educação e de saúde mental caracterizando um sujeito com limitação funcional que necessita atenção clinica. Palavras Chaves (3): deficiência intelectual; modos de subjetivação; psicometria. 219 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Marcela Alves de Abreu; Renata Trad Campos; Hernani Luís Chevreux Oliveira Coelho Dias; Diego Patrick da Silva; Maria Stella Brandão Goulart. Modalidade: Painel Título: História da Reforma Psiquiátrica Mineira por Cézar Rodrigues Campos Resumo: O seguinte trabalho é resultado do projeto de conclusão de curso, em Psicologia, pela PUC MINAS. A partir da história de Cezar Rodrigues Campos, participante da reforma das políticas de saúde mental em Minas Gerais, recuperou-se elementos da memória da Reforma psiquiátrica mineira. Utilizando o método biográfico e o referencial teórico da Micro-história, foram analisados documentos/jornais de diversas instituições que tiveram impacto cultural e político para este processo de reforma, e que Cezar esteve presente, contribuir na construção da história da Reforma Psiquiátrica em Minas Gerais. Cezar Rodrigues Campos nasceu em 15 de Março de 1940 e faleceu em 24 de Março de 1999. Durante seu período de vida, esteve presente, em diversas instituições, como a Universidade Federal de Minas Gerais, Hospital Galba Velloso, Instituto Raul Soares, Associação Mineira de Psiquiatria, Escola de Saúde Publica de Minas Gerais (ESP), Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Podemos destacar sua participação, como presidente, do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, e também como Secretário de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte. Cezar colaborou na elaboração da legislação referente à Saúde Mental e na implantação dos primeiros serviços substitutivos ao atendimento a Saúde Mental, auxiliando na constituição de organizações do Movimento de Luta Antimanicomial em Minas Gerais. Cezar Rodrigues Campos esteve presente em diversas instituições psiquiátricas e participou de eventos relevantes para a formação do Movimento de Reforma Psiquiátrica de Minas Gerais. Palavras Chaves (3): Cézar Rodrigues Campos, Reforma Psiquiátrica mineira, método biográfico 220 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Daniela Ribeiro Schneider; Eliane Ternes Torres; Cristiane Budde; Daniella Pessoti Bampi; Monique Stahnke. Modalidade: Comunicação Oral Título: História das Políticas de Saúde Mental em Santa Catarina: O Contexto dos Anos 1970 Resumo: O trabalho discute as iniciativas de mudança na assistência psiquiátrica no Estado de Santa Catarina, nos anos 1970, durante o governo Colombo Salles, descrevendo o contexto sóciopolítico brasileiro e catarinense. Discute o cenário dos antecedentes da reforma psiquiátrica no Brasil e reflete sobre o papel histórico dessa iniciativa, que realizou uma experiência pioneira para a época, em direção ao que se chamava de Reforma da Assistência Psiquiátrica. Orientado por técnicos da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), o governo do Estado desenvolveu uma política de saúde mental, com base nas experiências da psiquiatria preventiva do governo Kennedy, tendo sido uma experiência, de um certo ponto de vista, exitosa na implantação dos princípios da saúde preventista-comunitária, podendo ser considerada uma espécie de pré-reforma psiquiátrica, que iria se consolidar nos anos 1980-90 no Brasil. A descrição da constituição daquela experiência, a discussão do contexto local, nacional e internacional onde ela se gestou, assim como as contradições que fizeram parte do seu desenvolvimento, são os principais objetivos deste trabalho, que pretende contribuir para a compreensão da constituição do campo das políticas de saúde mental no Brasil. Caracterizou-se como uma pesquisa qualitativa, de características descritivo-exploratórias, que utilizou como instrumentos entrevistas semi-estruturadas e pesquisa documental em arquivos públicos, bem como a análise de conteúdo para a elaboração e discussão dos dados. Palavras Chaves (3): Pré-Reforma Psiquiátrica; Políticas de Saúde Mental; Santa Catarina; Anos 1970 221 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Thais de Souza Sottili; Norton Mayer; Helena Beatriz K. Scarparo. Modalidade: Painel Título: Oficialização da Psicologia no Brasil: A Construção do Conhecimento e Práticas em Contexto Resumo: O estudo aborda o período de oficialização da psicologia no Brasil e busca compreender as articulações entre os contextos histórico-político e os sentidos de psicologia explicitados na mídia impressa, mais especificamente, as edições do Jornal Correio do Povo do ano de 1962. Além da historiografia sobre o período, foram examinadas notícias de cunho político-social dessa fonte e associadas a matérias nas quais se evidenciam as expectativas, significados e projetos sociais referentes à psicologia. Os procedimentos de efetivação da pesquisa iniciaram com uma revisão bibliográfica acerca do tema. Posteriormente foi feita a coleta e análise dos materiais midiáticos no acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre. A análise enfocou os discursos evidenciados no material coletado. Dentre os resultados destaca-se explicitação de expectativas para a psicologia associada ao contexto da Guerra Fria e à necessidade de corroborar o desenvolvimento tecnológico, econômico e industrial do Brasil. Desse modo, os discursos sobre a área revelam práticas de evitação de conflitos e de atendimento à crises, além da adequação de sujeitos a padrões abstratos de comportamento, através do uso de instrumentos psicométricos e projetivos. Tais práticas se evidenciam especialmente nos processos de inserção no mercado de trabalho e no campo educacional. Dentre as conclusões desse estudo cabe ressaltar a evidente articulação entre contextos e formulação de práticas da profissão que, recém oficializada, buscava espaços de legitimação e relevância na sociedade brasileira. * Pesquisa realizada com o apoio da FAPERGS. Palavras Chaves (3): Psicologia;Conhecimento; Práticas 222 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Letícia Vier Machado; Maria Lucia Boarini. Modalidade: Comunicação Oral Título: Políticas Públicas Sobre Drogas: A Estratégia de Redução De Danos Resumo: Com o objetivo de recuperar o histórico da redução de danos no Brasil, enquanto estratégia de saúde pública no campo das drogas lícitas e ilícitas, realizamos pesquisa em bases de dados disponíveis virtualmente. Privilegiamos a legislação brasileira sobre drogas ilícitas e redução de danos, e literatura especializada sobre o assunto. Após a formação de um banco de dados, analisamos as informações principais que permitiram chegar aos resultados: o uso e abuso de substâncias lícitas e ilícitas é um fenômeno secular. Entretanto, no Brasil as primeiras regulamentações em relação às drogas ilícitas datam da década de 1920, enquanto as substâncias lícitas como o álcool continuaram sem regulamentações. As medidas desse período e aquelas que sucederam eram provenientes da Justiça e segurança pública. O aumento do consumo e variedade de drogas ilícitas disponíveis no mercado, o advento da AIDS na década de 1980 foram fatores desencadeantes para estratégias de saúde, como a redução de danos, já aplicada na Holanda e Inglaterra. Visto que as políticas proibicionistas inspiradas no modelo norte americano não demonstravam eficácia na saúde, emergiu a necessidade de cindir responsabilidades desta e da segurança, antes hegemônica. Concluímos que esse descompasso reflete o debate histórico sobre drogas no país, que oscilou entre os dois âmbitos, carregando ranços das políticas proibicionistas, pautadas no ideal de abstinência e guerra às drogas. Além do que, a assunção dos problemas decorrentes do uso de drogas pela saúde mental fazendo uso da redução de danos é polêmica e não aceita por todos os segmentos da sociedade. Palavras Chaves (3): Redução de danos; Saúde pública; Saúde mental 223 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Pedro Roberto Meinberg Garcia Filho Modalidade: Painel Título: Por Uma Autonomia da Loucura: Contra Análise das Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil Resumo: A pesquisa tem por principal objetivo fazer uma contra análise das políticas públicas em saúde mental no Brasil desde o período de insurgência da Reforma Psiquiátrica, a luz dos pressupostos de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para tanto, inicialmente, a pesquisa se desdobra em dois momentos teórico-metodológicos: no primeiro, a partir de Foucault, almeja-se desenvolver a temática da loucura enquanto forma silenciada de conhecimento e aprisionada pela razão científica do século XIX. Ademais, partindo desta compreensão histórica, sugerir um olhar sobre a loucura enquanto obra de arte de vida, como uma estética de existir, aludindo a uma experiência autônoma do louco atual “cuidando de si”. Posteriormente, no segundo momento teórico da pesquisa, a partir de Deleuze e Guattari, refletir, filosoficamente, como o sujeitamento atual do doente mental é também uma questão política, bem como a possibilidade de pensar a loucura como um devir na contemporaneidade. Assim, a pesquisa discutirá os processos de desterritorialização da loucura, que vem ocorrendo no país desde a Reforma Psiquiátrica. O trabalho não desconsidera o propósito luta Anti Manicomial, porém, questiona: mesmo sem o antigo encarceramento hospitalar higienista, em que medida existe hoje uma autonomia da loucura? Como é resistir no âmago das atuais políticas públicas em saúde mental? A investigação se encontra em fase inicial. Porém, previamente, posso considerar que a busca por uma contra análise das políticas públicas indica grandes avanços quanto ao uso da liberdade e autonomia do paciente, todavia, ainda há necessidade de sujeição aos saberes institucionalizado clínico. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiátrica; Cuidado de si; Políticas Públicas. 224 Eixo: História das Políticas em Saúde Mental Autores: Mateus Thomaz Bayer; Debora Navarro Moura; Arthur Arruda Leal Ferreira. Modalidade: Comunicação Oral Título: Reabilitação Psicossocial e Governo Liberal: A Questão da Cidadania no Bojo da Reforma Psiquiátrica Resumo: Este estudo parte de uma análise das técnicas de governo trabalhadas por autores como Rose, Senellart e Foucault. Tais técnicas serão utilizadas para pensar a Reforma Psiquiátrica e as políticas de Saúde Mental no Brasil, tomando como foco as práticas de Reabilitação Psicossocial. Dois marcos são importantes nesta história: (I) no século XVI surgem formas de governo pautadas na maximização da presença e intervenção do Estado, como vistas no Estado de “polícia”; e (II) no século XVIII, onde há a ascensão de novas tecnologias de governo marcadas por princípios liberais, tendo estes o sentido de uma gestão pautada na liberdade e fundamentada no conhecimento da suposta natureza dos governados. Assim, segundo Rose, os saberes psi ganham especial importância no liberalismo do século XX, atuando notadamente em sociedades democráticas a partir do manejo da liberdade e da atividade dos indivíduos. Nossa hipótese é que a Reforma Psiquiátrica pôde incluir, entre outros modos de governo, formas liberais de gestão no esforço de superação do modelo disciplinar baseado nos asilos, tomando o não-enclausuramento e a liberdade do usuário como alicerce. A Reabilitação Psicossocial se constitui, dessa forma, como uma prática que cristaliza características expressivas deste novo regime: a promoção de um sujeito ativo, dotado de um autogoverno situado entre a liberdade e a responsabilidade, sendo esta a via para a constituição de sua cidadania. Mais especificamente, tentaremos descrever nos textos clássicos de difusão da reforma e em dispositivos legais os modos característicos com que essas novas técnicas de governo se fazem presentes. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiátrica; Reabilitação Psicossocial; Governo Liberal. 225 RESUMOS DE COMUNICAÇÃO ORAL E PAINÉIS Serviços substitutivos 226 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Adelson Bruno dos Reis Santos; Caio Cardoso Tomé. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Desinstitucionalização Para Além das Estratégias Técnico-Administrativas: Experiência em Debate Resumo: Os autores, psicólogos do Programa de Saúde Mental do município de Silva Jardim/RJ, apresentam o relato de sua experiência no processo de desinstitucionalização e de retorno ao lar de um paciente interno há 10 anos em um hospital psiquiátrico do Estado, descredenciado pelo SUS e sob intervenção da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil e do Ministério Público Federal. Tal processo revelou-se mais que uma simples estratégia técnico-administrativa voltada para a resolução pontual de uma crise institucional: ele propiciou uma reflexão sobre a implicação desses profissionais numa realidade na qual o que estava em jogo era a devolução ao paciente do direito fundamental do ser humano: o direito à vida. Natural de Fortaleza/CE, o paciente passou uma década dentro do hospital apresentando informações relevantes e suficientes sobre sua origem, desconsideradas pela equipe que, há muito poderiam ter propiciado seu retorno ao lar. Através deste trabalho, os autores pretendem demonstrar o processo de desinstitucionalização como algo dialético: trata-se de um processo que passa pela desinstitucionalização de nós mesmos. Ao trabalharem para devolver ao paciente sua identidade de ator social, através da transformação de seu modo de viver, os autores confirmam a certeza de que também se transformaram em seu papel de operadores e efetivadores dos princípios da Reforma Psiquiátrica. Possibilitar o reencontro familiar após 26 anos de desaparecimento e de 10 anos de internação psiquiátrica revelou-se um trabalho árduo, porém indiscutivelmente possível e realizador, constituindo-se um marco na história da Saúde Mental. Palavras Chaves (3): Desinstitucionalização; Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental 227 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações em Saúde Mental Autores: Karla Gomes Nunes; Neuza Maria de Fátima Guareschi. Modalidade: Comunicação Oral Título: A legislação em saúde mental e as práticas de cuidado na cidade de Porto Alegre Resumo: Esta pesquisa analisa os discursos que formam a legislação de saúde mental no Brasil, os quais se articulam à constituição desse campo e à criação de práticas de cuidado para os portadores de sofrimento psíquico, por meio das políticas públicas de saúde mental, posteriores a 1990. A partir do percurso teórico-metodológico fundamentado na psicologia social, organizou-se o processo de pesquisa em duas etapas: 1) Levantamento da legislação em saúde mental, com a intenção de visibilizar dois pontos: a) as práticas de cuidado em saúde mental, formadas a partir da Reforma Psiquiátrica, e os serviços preconizados; b) as estratégias previstas para a superação da internação psiquiátrica como prioridade de tratamento. 2) Levantamento da rede de saúde mental de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, por meio do mapeamento dos serviços existentes na cidade e das práticas de cuidado voltadas para os portadores de sofrimento psíquico. O estudo pode visibilizar importantes mudanças na legislação e na rede de saúde mental de Porto Alegre, onde vários serviços foram criados e ocupam um lugar de referência para uma parte da população. Porém, mesmo com as mudanças em relação ao antigo sistema, há a recorrência de alguns enunciados que percorrem e constituem as possibilidades de fala, as relações de objetos e os modos de ser sujeito no campo da saúde mental, o que se observa em relação ao trabalho desenvolvido pelas equipes e as práticas de cuidado orientadas para crianças, adolescentes e, ainda, adultos e pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiátrica; Legislação de saúde mental; Práticas de cuidado 228 Eixo: História dos serviços substitutivos e ações em saúde mental Autores: Cinthia Maria Cecato Picoli; Cláudia Weyne Cruz. Modalidade: Comunicação Oral Título: A Participação da Família na Rede de Cuidados em Saúde Mental Resumo: Introdução: Este estudo foi desenvolvido como Conclusão do Curso de Especialização em Saúde Pública, da Escola de Saúde Pública/SES/RS. A Reforma Psiquiátrica no Brasil redireciona o modelo assistencial em saúde mental, incluindo a família como parte da rede de cuidados do portador de sofrimento psíquico. Esta pesquisa estuda como esse momento de transição é vivenciado pela família. Por isso, o estudo teve como objetivos: compreender a relação da família com o tratamento do familiar adoecido; identificar as causas que a família atribui ao surgimento da doença mental e a relação com a busca do tratamento. Metodologia: Pesquisa qualitativa. Instrumentos: Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os familiares de seis usuários do Setor de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Vacaria/RS. Conclusões: Foi possível identificar no discurso dos participantes da pesquisa a associação entre a doença mental e a possessão de espíritos ou ainda a sem-vergonhice. Estas atribuições dificultam o reconhecimento dos sintomas decorrentes do processo de adoecimento, acarretando, com isso, demora na busca pelo tratamento adequado. A família, de um modo geral, não está preparada para assumir os cuidados com o portador de sofrimento psíquico. Além disso, tem dificuldade em acessar os serviços de saúde. É necessário preparar a família para participar ativamente do processo de tratamento. Palavras Chaves (3): portador de sofrimento psíquico; família; rede de cuidados em saúde mental 229 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Marcela Alves de Abreu; Maria Stella Brandão Goulart. Modalidade: Comunicação Oral Título: Análise Institucional em um Hospital Psiquiátrico Mineiro nos Anos 60 Resumo: O presente trabalho apresenta a atividade realizada em 1968, pelo Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais, a partir de uma intervenção psicossociológica, no Hospital Galba Velloso, em Belo Horizonte. O hospital Galba Velloso foi inaugurado em 25 de janeiro de 1961, atendendo inicialmente mulheres internas do Instituto Raul Soares, também localizado na capital mineira, e de outras cidades do estado. Desde o seu início tinha uma visão diferenciada e humanizada no tratamento do paciente, e a partir desta visão, sob a direção do Dr. Célio Garcia, profissionais do Setor da UFMG formularam atividades de intervenção, para participação dos médicos, residentes, funcionários e a direção do hospital. O trabalho estava orientado nos 3 níveis de análise: grupo, organização, instituição; visando o balanceamento entre a participação e burocracia, podendo assim intervir em sua estrutura de poder. Buscand o atingir os objetivos da análise institucional, no dia 1 de maio de 1968 foi promovida a “Reunião comunitária de hospitais” e visava à troca de papéis entre os funcionários da instituição, durante 24 horas. Após a intervenção os seus organizadores analisaram a dinâmica institucional a partir de reuniões, analisando até mesmo as justificativas pela utilização de alguns termos, comuns na instituição, constatando uma defasagem entre o grupo jovem e o mais antigo. Ao final das atividades, os psicossociólogos não identificaram grandes alterações na dinâmica hospitalar, porém os jovens profissionais, que foram o objeto do trabalho, posteriormente, se destacaram, ocupando posições de militância na reforma psiquiátrica e direção de projetos alternativos, indicando impacto da intervenção. Palavras Chaves (3): Hospital Galba Velloso, análise institucional, Setor de Psicologia Social UFMG 230 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações em Saúde Mental Autores: Filippe de Mello Lopes; Walter Melo. Modalidade: Comunicação Oral Título: Cartografias da Relação entre Arte e Saúde Mental no Brasil Resumo: O presente artigo apresenta um recorte da pesquisa intitulada “A Relação da Arte com o Campo da Saúde Mental” orientada pelo Prof. Dr. Walter Melo, da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Essa pesquisa visa mapear os trabalhos que se dão na intercessão entre arte e saúde mental nas cinco regiões do Brasil, além de averiguar se, com a implantação de políticas de saúde a partir da lei 8080/90 e da lei 10.216/2001, houve aumento do número de trabalhos, assim como se houve mudança de característica dos trabalhos que relacionam a arte com o campo da saúde mental. Como método foi feito o contato com as secretarias estaduais e municipais de saúde para se contatar tais trabalhos. Como resultado, a pesquisa está construindo um catálogo com os trabalhos que relacionam a arte com o campo da saúde mental no Brasil. Esse catálogo visa dar visibilidade e aproximar as distâncias e permitir maior contato entre tais trabalhos. Para tal, já foram mapeados cerca de 130 trabalhos que se caracterizam como atuantes na interface entre arte e saúde mental, sendo que foi percebido um aumento após a diminuição dos leitos asilares e com a ampliação da rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos. Palavras Chaves (3): arte; saúde mental; território 231 Eixo: História dos serviços substitutivos e ações em saúde mental Autores: Fabiana G. Duarte; Silvio Yasui Modalidade: Comunicação Oral Título: FAZER VISÍVEL O INVISÍVEL: AS HISTÓRIAS DE UM CAPS. Resumo: O objetivo do presente trabalho é apresentar o processo de construção de um vídeo documentário contendo narrativas de profissionais e usuários sobre a história de um CAPS, situado em uma cidade de porte médio, localizada na região oeste do interior de São Paulo. Esta produção nasceu da necessidade de um grupo de estagiários do projeto de extensão universitária Atenção Psicossocial na Saúde Coletiva, em conhecer e transmitir para as “futuras gerações”, tanto de estagiários como de profissionais, o contexto que o serviço foi criado, as historias dos que o construíram, suas marcas, memórias, linguagens e lutas, para que possam reconhecer as reais demandas do local e, assim, orientar suas práticas. Nas reuniões de equipe e supervisões refletiu-se sobre o uso da narrativa – na forma de documentário - como o instrumento mais adequado a ser utilizado, pela possibilidade como um registro fiel ao discurso dos entrev istados, e por colocar os trabalhadores e usuários desses serviços no lugar de porta-vozes de suas historias. O processo de filmagem carrega as vicissitudes de se registrar a história destes serviços aparentemente sem memória, nos quais as pessoas passam, ficam e vão embora e as marcas que produzem estão pouco visíveis. Trata-se aqui de uma quase arqueologia que busca nas lembranças das pessoas e nos objetos (fotos, outros vídeos, produções das oficinas e etc) dar visibilidade aquelas marcas que constituem o serviço. Palavras Chaves (3): narrativas; documentário; saúde mental. 232 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Michelle de Almeida Cezar; Mayara Pacheo Coelho; Walter Melo Júnior. Modalidade: Comunicação Oral Título: O Cotidiano dos Serviços Substitutivos e Suas Contradições Resumo: Os movimentos da Reforma Psiquiátrica e também da Luta Antimanicomial brasileiras suscitaram grande repercussão no âmbito da luta por direitos mínimos, prevendo a modificação no modelo de assistência oferecido ao doente mental. Assim, foram criados novos serviços, entre eles o CAPS, com intuito de substituir o hospital psiquiátrico, na tentativa de restabelecer os laços sociais e superar o modelo asilar de assistência. O primeiro CAPS surgiu na cidade de São Paulo no ano de 1987 inserido no contexto político de redemocratização do país. No caso de São João Del Rey, o CAPS foi criado no ano de 2004 e se configura como CAPS I. Atende à população de São João Del Rey e região. Sua equipe técnica é composta por médico psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, técnico em enfermagem, ente outros. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é apresentar as atividades desenvolvidas no CAPS Del Rey como parte integrante do Programa de Extensão da Universidade Federal de São João Del Rey: Sistema de Saúde e Educação: estreitamento de laços e ações conjuntas (Laços e Ações). A atuação por meio da oficina de teatro desde 2007 e o levantamento das leis e portarias de criação e regulamentação destes serviços possibilitaram verificar como tem sido sua estruturação e organização. Dessa forma, observou-se questões que podem se configurar como entraves ao bom funcionamento do serviço como não atuar com a equipe mínima de profissionais e atender a uma população superior ao previsto. Palavras-chave: Serviços Substitutivos; Contradições; Oficina de Teatro. 233 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Lucas Henrique Braga Modalidade: Comunicação Oral Título: O Louco e a Cidade: Um Olhar Sobre o Acompanhamento Terapêutico Resumo: É sabido que a mudança proposta pela reforma psiquiátrica é muito mais complexa do que o desmonte dos manicômios e a oferta de espaços abertos de tratamento. Muito já foi feito em benefício daqueles que passaram anos em situação de extremo abandono nos hospitais psiquiátricos. Entretanto, sempre serão pertinentes os questionamentos acerca dessas novas práticas. É preciso que haja uma disponibilidade da sociedade em acolher o doente mental, com seus delírios e alucinações, de volta ao espaço urbano. Uma das iniciativas nesse sentido é a prática do acompanhamento terapêutico, que teve início em princípios da década de 70 e vem ganhando cada vez mais espaço no tratamento do portador de sofrimento mental (Ribeiro, 2002). Na última década, tem-se observado uma maior conciliação teórica entre o campo social e o psíquico nessa prática, possibilitando, além das intervenções clínicas, também um trabalho no sentido da ressocialização do sujeito. No presente trabalho, o autor faz um breve apanhado teórico da história do acompanhamento terapêutico no Brasil, valendo-se de sua experiência prática para levantar críticas e apontamentos suscitados durante suas incursões pela cidade com os sujeitos, como, por exemplo, os cerceamentos e barreiras simbólicas enfrentados, que acabam restringindo as saídas a trajetos que são, em muitos casos, curtos e repetitivos, “circuitos fechados que não fazem rede nos fluxos da cidade, ou ainda fecham-se em grades privadas e mediações midiáticas, cerceando-se a um convívio que se resume aos personagens usuais de seus trajetos fechados: CAPS, casa, supermercado, casa.” (Fonseca, 2008). Palavras Chaves (3): Acompanhamento terapêutico; Saúde Mental; Reforma Psiquiátrica 234 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Michele Cecília Silva Torézio; Nadja Cristiane Lappann Botti; Richardson Miranda Machado. Modalidade: Painel Título: Os Significados Midiáticos do Festival da Loucura de Barbacena Resumo: O Festival da Loucura é um evento realizado pela Prefeitura Municipal de Barbacena, com o apoio da Secretaria Estadual de Saúde e Ministério da Saúde. Como crítica ao paradigma asilar visa discutir o passado e suas implicações no presente, valorizando a história de Barbacena e desmistificando a visão clássica da loucura. Objetivo: Identificar os significados midiáticos do Festival da Loucura de Barbacena no período de 2006 a 2010. Metodologia: A análise documental teve como fonte de pesquisa as reportagens do período 2006 a 2010, publicadas nos jornais de circulação local (Barbacena On Line, Barbacena News), estadual (Estado de Minas, O tempo) e nacional (O globo). Os dados coletados foram analisados sob o referencial metodológico do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) que utiliza figuras metodológicas para organizar e tabular os dados. É modalidade de apresentação de resultados de pesquisa de natureza qualitativa que tem como objetivo expressar o pensamento de uma coletividade, como se essa fosse exatamente o emissor de um discurso único. Resultados: Foi possível identificar como significados midiáticos do Festival da Loucura as ideias de evento: de múltipla parceria, inusitado, acadêmico-cultural, turístico-cultural, polêmico, da loucura artística, que mescla arte e insanidade, que reflete a mudança de paradigma e de resgate histórico. Conclusões: Os significados midiáticos encontrados do Festival da Loucura expressam a dimensão sociocultural do processo da Reforma Psiquiátrica e aponta que para entender a mudança de paradigma na Saúde Mental, conhecer a reestruturação da política de atenção e suas transformações remetem-nos a uma abordagem histórica, política e social. Palavras Chaves (3): mídia; reforma psiquiátrica; cultura 235 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Joice Rodrigues Modalidade: Painel Título: Philippe Pinel e a Reforma Psiquiátrica: Continuidades e Rupturas Resumo: Este estudo apresenta os resultados de uma investigação que tem como objetivo analisar continuidades e rupturas nas concepções e tratamento da loucura. Apoiada nos escritos de Philippe Pinel e no texto da Lei da Reforma Psiquiátrica buscou-se elaborar uma análise comparativa dos discursos sobre loucura nessas duas fontes. Para Pinel a loucura deveria ser curada através do Tratamento Moral, ou seja, por meio da repressão dos comportamentos inadequados dos pacientes psiquiátricos. Os alienados deveriam permanecer longe da sociedade e da família, assim o manicômio passou a ser a melhor via de cuidado da época. O modelo de tratamento asilar permaneceu vivo e sem contestação por cerca de duzentos anos. Até que a partir dos anos 1970 profissionais da área da saúde passaram manifestar-se contra as precárias condições de trabalho e ao tratamento inadequado que era dado aos pacientes psiquiátricos. Especificamente no Brasil, os doentes mentais e familiares aliaramse a esses profissionais e passaram a fazer parte do Movimento da Luta Antimanicomial. Uma das suas principais conquistas foi a Lei da Reforma Psiquiátrica, que garante a proteção e os direitos dos doentes mentais e aponta que o tratamento deve visar à reinserção social do sujeito. Mas apesar das mudanças feitas é percebido que atualmente coexistem no Brasil modelos diferenciados de assistência, tanto fundamentado no modelo asilar quanto no modelo antimanicomial. Pode-se concluir que não basta apenas modificar o modelo assistencial, mas deve-se transformar o tipo de relação que a sociedade estabelece com o portador de sofrimento psíquico. Palavras Chaves (3): Philippe Pinel; Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental. 236 Eixo: História dos serviços substitutivos e ações em saúde mental Autores: Vitor Lima da Silva; Irma Manuela Paso Comunicação Oral Título: Projeto "Asas da Liberdade" e Política de Redução de Danos Resumo: Este trabalho visa apresentar o Projeto “Asas da Liberdade” como meio de problematizar as atuais políticas e ações dos Centros de atenção Psicossocial para álcool e outras drogas (CAPS-AD), e a eficácia de sua existência e funcionamento de acordo com os parâmetros do modo de atenção psicossocial. O projeto foi proposto pelo Instituo Arco-íris e desenvolvido a partir de parcerias intersetoriais, visando atender a mulheres privadas de liberdade através de oficinas sócio-educativas dentro dos presídios, e que funcionaram sob a perspectiva de redução de danos produzidos pelo uso abusivo de álcool e outras drogas, com objetivo de promoção de saúde integral. Os encontros foram realizados a partir da referência de Grupo Operativo, de Pichon Riviére. Relaciona-se com a História dos serviços substitutivos e ações em saúde mental, na medida em que foi uma proposta de intervenção a partir das Diretrizes da Política de Redução de Danos, que considera o sujeito atendido dentro de sua realidade social e cultural. Os serviços substitutivos propõem novas maneiras de atendimento e de funcionamento completamente diferentes da lógica manicomial, que tende a patologizar o comportamento social desviante da “norma”, promovendo uma atuação reducionista em relação ao uso da substância em si, sem considerar os aspectos culturais e sociais dos usuários do serviço. Desta maneira, constatamos a necessidade de instrumentalização dos CAPS-AD e de suas equipes multiprofissionais, para que possam aproximar-se de um funcionamento que respeite as diretrizes da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial em andamento no país. Palavras Chaves (3): Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, Redução de Danos, CAPS-AD 237 Eixo: História dos Serviços Substitutivos e Ações Em Saúde Mental Autores: Martha Helena Oliveira Noal Modalidade: Comunicação Oral Título: Um Recorte da História da Loucura em Santa Cruz Do Sul Resumo: Este trabalho ilustra brevemente a história da loucura em Santa Cruz do Sul(RS) mostrando a reorientação da atenção em saúde mental na cidade que por 109 anos teve um modelo estritamente hospitalocêntrico de assistência aos transtornos psíquicos. Um hospital psiquiátrico abarcou por um século a atenção ao sofrimento mental de pessoas da cidade e região, como único recurso terapêutico disponível. Eletroconvulsoterapia sem anestesia nem critérios de indicação, contenções em celas fortes e internações recorrentes sem resolutividade eram rotinas, até o seu fechamento, em 1999. A partir de 1996 a cidade passa a receber outro modo de cuidado ao sofrimento psíquico, com o processo de construção de uma rede de atenção integral à saúde mental, territorial, interdisciplinar, contemplando a integralidade dos sujeitos implicados. Essa rede conta atualmente com diferentes dispositivos de atenção, criados ao longo dos últimos 15 anos: •3 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II, CAPS ia, CAPS ad) •Serviço Integrado de Saúde (SIS) •AUFA-CAPS (Associação de Usuários e Familiares) •Fórum Regional Permanente de Saúde Mental do Vale do Rio Pardo •Enfermaria Psiquiátrica no Hospital Geral •Núcleo de Atenção à Saúde da Família (NASF) A ampliação dos serviços de saúde mental e a priorização do enfoque preventivo, comunitário, baseado nas prerrogativas do SUS e da Organização Mundial de Saúde, possibilitam atualmente, ações de saúde mental que promovem melhora clínica dos portadores de sofrimento psíquico, redução da necessidade de internações, com conseqüente reabilitação psicossocial e melhora na qualidade de vida destes e de suas famílias. Palavras Chaves (3): reforma psiquiátrica; saúde mental; rede de atenção integral. 238 TRABALHOS COMPLETOS DAS MESAS REDONDAS 239 O HOSPÍCIO NACIONAL E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PSIQUIATRIA NO RIO DE JANEIRO Cristiana Facchinetti Psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ), pós-doutoramento em História das Ciências e da Saúde (Fiocruz). Pesquisadora e professora do PPGHCS, ambos da Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz. E-mail cfac@fiocruz,BR Palavras-chave: Hospício Nacional de Alienados, História, psicologia Resumo: O presente trabalho analisa o processo de institucionalização da psiquiatria no Rio de Janeiro, mostrando como a recepção das idéias psicológicas em articulação com a luta pela institucionalização da própria medicina afetou o Hospício Nacional de Alienados e as políticas de profissionalização dos psiquiatras. 1. De colônia à metrópole: a saúde como civilização Até então proibida de produzir livros, revistas ou de oferecer cursos superiores, fundar instituições de ciência ou de cultura em geral, a antiga colônia foi transformada de uma hora para outra em Corte no período joanino (1808-1821).65 Como em tantas áreas, a medicina também sofreu grande impacto com este acontecimento. Ressalta-se que, no mesmo ano da chegada da família real ao Brasil, as duas primeiras faculdades de medicina no país, em Salvador e no Rio de Janeiro, foram propostas por meio de decreto imperial. O desejo da elite médica de participar das decisões para a construção da nação imperial e sua atuação no sentido de se fazer ouvir como sistema perito aparece a partir de então muitas vezes ao longo do XIX.66 Note-se, porém, a debilidade do processo institucional no período, como no episódio da Comissão de Salubridade e suas acusações contra a Santa Casa (1830), e os limites da vontade médica para estabelecer normas higiênicas para a cidade. Considera-se que tal fragilidade institucional decorreu também do retorno de Pedro I a Portugal em 1931, o que acabou por retardar muitos projetos, que ficaram no papel. Mas apesar de sua relativa incapacidade, a grita da Comissão traduzia uma representação de si como filantrópica, liberal e esclarecida, o que já estava apontado desde a virada do século pela pena dos médicos que retornavam da Europa67. E em parte, o provedor da Santa Casa desde 1838, José Clemente Pereira, se viu tendo que responder às demandas, quando da assunção de Pedro II ao trono. Entre tantas recomendações da Academia, José Clemente acatou como importante para a saúde dos pacientes da Santa Casa a necessidade de se construir alas de atendimento e internação especializadas, bem como enfermarias específicas para doenças contagiosas. E foi no embalo da idéia 65 Sobre o período joanino, ver, por ex.: PEDREIRA, J. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. 66 Como em 1830, quando a Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, argumentou pela necessidade de um hospício na cidade; 67 SILVA, S. S. A.; FACCHINETTI, C.; KURY, L. B. Os êxtases da Irmã Germana: diferentes interpretações em torno das doenças nervosas no Brasil. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., SP, v. 14, n. 2, June 2011 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142011000200010&lng=en&nrm=iso>. access on 27 July 2011. 240 de especialização que propôs também a construção de um espaço de tratamento específico para alienados, proposta aceita e tornada pública pelo Decreto Imperial de n° 82 como parte das comemorações da coroação. Ora, o hospício seria um agente de modernização: serviria tanto para reduzir o caos do hospital, que afetaria a recuperação de outros pacientes quanto para permitir a cura daqueles pacientes da Santa Casa que fossem para o asilo. A iniciativa de José Clemente, endossada pelo imperador, apoiava-se na recente proposta européia de tratar os enfermos mentais a partir dos ideais humanitários advindos da Revolução Francesa e das referências do alienismo, a primeira especialidade médica.68 2. Aos doudos de toda espécie, o Hospício de Pedro II Para a construção do hospício, o provedor conseguiu apoio imperial para fazer uma série de loterias, sem as quais o destino da construção efetiva do hospício ficaria incerto. O surto de febre amarela também ajudou, já que por causa dele houve um considerável aumento de doações para a Santa Casa. Assim, em dezembro de 1852, o Hospício de Pedro II foi inaugurado diante da presença do próprio Imperador. A instituição possuía um total de 140.000 metros quadrados. O edifício foi dividido por gênero, entre tranqüilos e agitados, além de diferenciação quanto à capacidade de produção.69 Neste sentido, o relatório de Antônio José Pereira das Neves, que em 1845 havia visitado hospícios na França, Bélgica, Alemanha, Inglaterra e Itália foi importante. Seu projeto arquitetônico teve a escola francesa de Pinel e Esquirol como apoio teórico, e a terapêutica do trabalho como um de seus maiores recursos,70 acompanhando as indicações do relatório. O primeiro diretor do Hospício, Dr. Manoel José Barbosa, organizou oficinas que permitiam ao interno participar na manufatura de roupas, calçados e artefatos de palha, bem como fundição de ferro, encanamento, engenharia elétrica, carpintaria, marcenaria, manufatura de colchões, tipografia e pintura.71 Assim, o modelo de sanidade – e de normalidade – estava fortemente apoiada no valor do trabalho especializado. É digno de nota o fato da grande maioria de internos possuírem em suas fichas, no item “profissão”, a categoria de “trabalhador”, que Engel72 demonstra estar vinculado a biscates e trabalhos não especializados. Mas apesar das tentativas, os diversos diretores do hospício denunciavam rotineiramente as dificuldades de colocar o hospício em plena condição de funcionamento. Uma queixa muito comum do primeiro diretor era o excesso de internos (1854).73 Tal queixa acompanhou o Hospício ao longo de toda a sua existência, aliás. Já o segundo diretor, Ludovino da Silva, atribuía às irmãs de caridade os inúmeros problemas de disciplina – os fracassos do tratamento moral. Segundo ele, elas não estavam preparadas para lidar com tamanha responsabilidade, já que só havia dois médicos que ali trabalhavam durante o dia (1868).74 O aumento das críticas, em parte decorrentes do próprio processo de profissionalização, acabou por intensificar os problemas entre os médicos e as irmãs da Santa Casa, responsáveis pela administração do hospício. Os relatórios do médico diretor Nuno de Andrade (1881-1886), em nada se pareciam com aqueles elaborados pelo primeiro diretor, que apenas aplaudiam as ações das irmãs. Ao contrário, suas queixas levaram, inclusive, a sua demissão, no ano de 1886. 68 idem. 69 PORTOCARRERO, V. Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da Psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. p. 128-129 70 ENGEL, M. G. Os Delírios da Razão: médicos, loucos e hospícios. Rio de Janeiro 1830-1930. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001. 71 GONÇALVES, M.S. Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos médicos na busca pela cura das “nevroses” e da loucura na Corte Imperial (1850-1880) tese doutoramento. Rio de Janeiro: s.n. 2011. 72 ENGEL, Magali Gouveia. Sexualidades interditadas: loucura e gênero masculino. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, Supl., p.173-190, jun. 2008. 73 GONÇALVES, 2011, op.cit. 74 RAMOS e GEREMIAS, op.cit., 2011 241 3. Casa de (Lou) Cura? A segunda metade do XIX assistiu a novas mudanças na sociedade local, especialmente a partir do fim do tráfico negreiro e da Guerra do Paraguai, que intensificaram as resistências contra a Coroa. A república não tardaria, especialmente com o fim da escravidão.75 Quanto às reformas no ensino médico ao longo de 1870, estas demonstram o estabelecimento de um processo de profissionalização da medicina ao longo do 2. Reinado. A década foi um momento crucial, porque a elite médica lutava para redesenhar os espaços institucionais e se colocar como portavoz de variados interesses do Estado.76 Além disso, uma geração de médicos formada no país, com menor poder aquisitivo e social, aspirava a meritocracia e a igualdade de direitos que lhes parecia impossível na manutenção da monarquia e da escravidão. A profissionalização certamente promoveu também a especialização do alienismo, já que a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro decidiu criar a Cadeira de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Mentais, em 1883,77 o que acabou por criar um ponto de articulação entre o hospício e a faculdade: o Pavilhão de Observações, em 1894. Com o crescimento do interesse pelo alienismo, era mesmo necessário justificar o mau funcionamento do hospício, as baixas taxas de cura e os altos índices de mortalidade. Ao se tornar diretor do hospício, em 1887, Teixeira Brandão, lente da cadeira de Moléstias Mentais e diretor do Pavilhão, reforçou o arsenal de críticas contra o poder da Santa Casa. Com tal intuito chegou mesmo a fazer denúncias sobre o mau uso do dinheiro e maus-tratos contra os pacientes. 4. O Hospício Nacional de Alienados; ou: ainda sob a batuta de Pinel e Esquirol Com a chegada da República, o Hospício foi desanexado do Hospital da Santa Casa, passando a se chamar Hospício Nacional de Alienados (1890). No mesmo ano instituiu-se a Assistência MédicoLegal a Alienados78, que incluía o Hospício Nacional, o Pavilhão de Observação e as colônias agrícolas de São Bento e Conde Mesquita. A ampliação da assistência foi pensada no sentido de dar ao hospício a oportunidade de fazê-lo funcionar a plena carga. Para isso, seria necessário retirar os pacientes crônicos que contribuíam para a superpopulação do hospital e impediam os bons resultados do hospício, abalando a crença sobre sua eficácia. Mas apesar de todas as mudanças propostas, as queixas se intensificaram. Teixeira Brandão foi interinamente substituído por Pedro Dias Carneiro (1892-1893 e 1897-1901). Em 1902, o diretor do HNA passou a ser Antônio Dias de Barros, demitido em seguida devido a irregularidades orçamentárias e administrativas. O anexo do relatório de 1902 tratou das péssimas condições do Hospício. Enfatizava a lotação excedente, a mistura entre pensionistas e indigentes e a "promiscuidade" entre adultos e crianças A Comissão constatou que tampouco havia divisão entre espécies nosológicas, psiquiátricas ou de natureza geral; criticou a falta de atividades para os enfermos e a falta de higiene e organização, ressaltando ainda os conflitos entre o Pavilhão de Observação e a diretoria do Hospício 79. A opinião pública passara a questionar não apenas os entraves para o bom funcionamento da máquina, mas perguntava-se agora se a própria máquina teria validade. O alienismo parecia desacreditado. 75 CHALHOUB, 1996, op.cit 76 EDLER, F. C. As reformas do ensino médico e a profissionalização da medicina na Corte do Rio de Janeiro 1854-1884. Dissertação de mestrado, São Paulo, FFLCH/USP, 1992. 77 MUÑOZ, P. FACCHINETTI, C. e .DIAS, A.A.T. Suspeitos em observação nas redes da psiquiatria: o Pavilhão de Observações (1894-1930). Memorandum, 82-104, 2011. Retirado em 25 jul 2011. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/en/a20-en/munozfacchinettidias01-en 78 O decreto 206, de fevereiro de 1890 criou a Assistência Médica e Legal de Alienados. 79 MUÑOZ, FACCHINETTI e DIAS, 2011, op.cit. 242 5. Para uma psiquiatria eficaz, as modernas maquinarias Ao longo das três primeiras décadas do XX, ocorreu um paulatino afastamento da tradição alienista francesa, e sua substituição pelo modelo organicista kraepeliano, considerado então mais capaz de solucionar a falta de eficiência do asilo. Tal mudança foi capitaneada por Juliano Moreira, que nomeado para ocupar o cargo de diretor do hospício, conseguiu também o apoio necessário para a aprovação dos decretos de 1903 e de 1904, que davam ao especialista exclusividade sobre os alienados.80 Os decretos permitiram também a concretização de diversas reformas estruturais no Hospital, a construção de novas seções e pavilhões81, bem como a instalação dos serviços fotográficos, oftalmológicos, odontológicos e do gabinete antropométrico. As oficinas de costura foram reorganizadas e o laboratório de histoquímica foi modernizado. Em 1905, o Serviço Cirúrgico e o Pavilhão para Moléstias Infecciosas Intercorrentes estavam prontos e o Pavilhão para Epiléticos Tranquilos ou Semitranquilos (Guislain e Griesinger) e o Pavilhão Seabra, com algumas novas oficinas foi inaugurado, assim como duas bibliotecas. Em seguida, construiu-se o Laboratório Anatomopatológico e mais uma sala de leituras.82 Houve, assim, um claro esforço de implantar um modelo teórico, político, administrativo e clínico capaz de introduzir a psiquiatria kraepeliniana a um patamar diverso do alienismo. A medicina mental organicista seria capaz, por meio das mais modernas máquinas e receitas trazer finalmente eficácia para o hospício; e as estatísticas tão caras a Kraepelin seria sua prova objetiva, no ambiente de institutos de pesquisa em medicina experimental e reformas sanitárias da nova república. Conclusão Estudar as dificuldades de institucionalização da psiquiatria por meio de um enquadre que considerou as particularidades locais e contextuais permitiu demonstrar como os psiquiatras do período estavam a par dos conhecimentos médicos mais modernos, ainda que por muito tempo não houvesse condições sociopolíticas para a implantação e institucionalização de determinadas teorias e práticas no país. Assim, ao contrário de interpretações sobre o atraso local frente ao conhecimento europeu, buscamos demonstrar que havia entre nós a circulação de grande parte dos debates científicos europeus do período. Entretanto, a capacidade dos médicos (e mais ainda, dos psiquiatras) de intervir eficientemente no governo ou de configurar políticas públicas era diminuta, especialmente até o início do século XX. Apenas com a aproximação da psiquiatria ao modelo organicista, associada ao aumento de importância dada pelo Estado à higiene mental é que os psiquiatras ganharam possibilidade de intervir como peritos na construção dessa nação, agora republicana. 80 PEIXOTO, A. (1933). “A memória de Juliano Moreira: fundador e presidente da Academia”. In: Anais da Academia Brasileira de Ciências, Tomo V, n.2, p. 83. 81 As seções do Hospício Nacional eram: Primeira (Pinel), Segunda (Esquirol), Alaor Prata, Bourneville, Calmeil, Cirurgia, Esquirol, Francisco de Castro, Griesinger, Guinle, Guislan, Lombroso, Morel, Nina Rodrigues, Pinel e Sigaud. Em 1915 cita-se pela primeira vez o Laboratório de Química e Biologia e no ano seguinte, o Serviço de Fisioterapia. 82 FACCHINETTI, C. RIBEIRO, A. CHAGAS, D., REIS, C. No labirinto das fontes do Hospício Nacional de Alienados. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, 2011. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0104-59702010000600031&lng=en&nrm=iso>. access on 29 July 2011. doi: 10.1590/S010459702010000600031. 243 Uma ideia perigosa para a humanidade Fernanda Otoni de Barros-Brisset Doutora em Ciências Humanas: Sociologia e Politica pela UFMG Psicanalista, Membro l’ Association Mondiale de Psychanalyse/EBP Professora do Departamento de Psicologia da PUC Minas Coordenadora Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciario/TJMG [email protected] Palavras chaves: Periculosidade – loucos infratores – responsabilidade “O passado dura muito tempo...” Final do século XVIII. Foi criado um novo código penal inspirado em ideias humanitárias, contrário à prática violadora de direitos do período medieval. Esse novo código foi batizado como código do delito e das penas, em homenagem ao revolucionário iluminista, fundador da escola penal clássica, Césare Beccaria. Ele nasceu com a função de ser um instrumento para garantir direitos: nenhum processo penal sem um crime que esteja designado anteriormente, o réu antes de receber qualquer condenação deveria ser julgado de acordo com as garantias do rigor processual. A pena deveria ser proporcional ao delito, deveria seguir uma medida justa, sem os excessos do período medieval. Esta justa medida, entenderam os legisladores que deveria ser uma medida mais humana do que as torturas, as fogueiras das caças as bruxas e os suplícios. Decidiu-se pela medida do tempo de privação da liberdade. Naquele momento de instauraçao do primeiro código penal moderno, as pessoas nomeadas loucas recebiam o mesmo tratamento penal, não eram objeto de uma legislação especial, uma exceção à regra. A pesquisa pelos sistemas normativos anteriores a 1791 explicitava que, em crimes capitais ou de lesa-majestade, a loucura não desculpava o crime. No código francês “do delito e das penas”, de 1791, é mais evidente ainda. Inspirado nos princípios da igualdade, a resposta jurídica a um crime deveria ser a mesma para qualquer pessoa, demente ou não, sem distinção. Em 1810, isso mudou. O que aconteceu entre 1791 e 1810? Na França, respondendo a uma disposição normativa, de 1793, que exigia o recolhimento dos desviantes das ruas aos asilos e hospícios, Philippe Pinel foi nomeado o primeiro diretor de um hospital exclusivo para alienados. Suas experiências, observações e a metodologia do tratamento moral, que construiu nesse espaço, foram publicadas em 1800. Sua obra, Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania1, gerou uma verdadeira revolução no mundo médico e adjacentes. Pinel defendeu enfaticamente que era preciso separar os loucos dos marginais, lutava pelo direito de os alienados serem reconhecidos em sua condição de doentes. Argumentava, em nome dos direitos desses pacientes, que os atos, porventura criminosos, e a violência dos dementes foram causados por incapacidade de sua vontade de controlar seus impulsos agressivos, visto que eram portadores de um deficit moral permanente. Para esse autor, a solução para tais casos era o asilo em instituições psiquiátricas. Ali, entregues aos cuidados dos médicos especializados, esses pacientes receberiam a merecida assistência no controle de sua doença, através da promoção do tratamento moral em seu corpo sensível. 244 Pinel descreveu inúmeras circunstâncias em que a agressividade, a impulsividade, a ausência de controle e a ineficácia da vontade foram responsáveis pela relação intrínseca entre a violência e a loucura, quando esta explodia em determinados indivíduos. Recomendável é voltar na obra de Pinel e descobrir ali o autor que defendeu que os loucos portavam em si uma intrínseca periculosidade, designando esses indivíduos como seres amorais. O tratamento moral proposto por esse médico alienista visava justamente reprimir essa violência natural nos estados de mania e alienaçao mental. Substituiu as correntes pelas duchas frias e camisas de força como modo de produzir, através da sensibilidade do corpo, algum tipo de educação moral capaz de promover a repressão da violência natural dos doentes mentais. A tendência natural dos alienados aos transportes de cólera, sua facilidade em atribuir interpretações sinistras aos acontecimentos e a explodir em murmúrios, nos fez sentir a necessidade extrema de instituir uma ordem invariável do serviço, medidas que devam ser executadas de forma rigorosa no hospício [...]. Em uma palavra, a direção do hospício, sendo similar àquela de uma grande família que fosse composta de seres turbulentos e furiosos, deve ter por ordem a punição e a repressão de tais comportamentos (PINEL [1800], 2007, p. 210). O impacto da publicação do tratado pineliano em 1800 e sua reedição em 1808 alcançou a reformulação do código penal francês em 1810. Nessa reforma do código penal, pela primeira vez, a loucura foi destacada. Para garantir direitos, pela primeira vez na história da humanidade, a condição de alienação mental deu causa a um estado de exceção. O código penal francês de 1810, em seu artigo 64, introduzia que “não há crime nem delito, se o réu estava em estado de demência no tempo da ação”. Com isso, instituiuse, no campo jurídico, o sistema da porta giratória, ou seja, quando o patológico entra na cena do crime, a criminalidade, nos termos da lei, deveria desaparecer, porque a demência apagaria o crime2. A primeira violação dos direitos da pessoa em sofrimento psíquico surgiu no instante em que o texto normativo destacou a loucura como exceção à regra, pois essa norma sequestrou do sujeito a capacidade de responder por seu ato como todos os outros. Se seu ato foi anulado, foi em razão de sua doença (menos capaz, menos humano, devido à relação intrínseca entre violência e doença mental); seu destino, a partir de então, passou a caber nas respostas dos saberes disciplinares. No plano das consequências, o sujeito foi anulado com seu ato. Não mais seria interrogada a resposta do sujeito, no seu lugar entram em cena as investigações e respostas científicas. Ao sequestrar a responsabilidade do sujeito por seu ato, podemos identificar que a responsabilidade por essa situação passou para as mãos da psiquiatria e do direito. Hoje estamos em condições de afirmar que, em que pese às boas intenções, essa solução normativa e assistencial não protegeu nem garantiu direitos - aqui, que ninguém se engane, esse ato foi uma ação segregativa, e a história que se seguiu, duzentos anos depois, a confirma. Desde então, dividiu-se a reforma moral dos desviantes em dois grupos: aqueles que são normais e devem ser reformados pelo tratamento penal nas prisões, e aqueles anormais, doentes mentais, que devem ser reformados pelo tratamento moral nos hospícios. Igualmente, o cenário político-institucional se orientava pela pretensão de reformar a natureza do indivíduo, que se tornou objeto do saber fazer disciplinar. Para separar os dementes dos normais, fez-se a parceria entre os discursos e práticas da psiquiatria e do direito. Dessa feita, o crime não seria mais o gerador do movimento das engrenagens penais, e sim a personalidade do criminoso e sua intrínseca relação com o perigo que representava. Em caso de demência, as turbinas do sistema de justiça seriam paralisadas para fazer rodar as manivelas dos serviços para a promoção da 245 higiene pública. Uma ideia: existem indivíduos perigosos! O início das teorias criminológicas data dessa época. Muitos dos conceitos que hoje trafegam com naturalidade nos discursos dos diversos setores de nossa sociedade foram cunhados nesse período. As concepções sobre a constituição psíquica e moral do indivíduo criminoso iniciam e proliferam, apesar de nenhuma delas permanecer como válida por muito tempo; os pressupostos que justificavam o esforço de sua invenção ganharam naturalidade e consistência discursiva. Dito de outro modo, as teorias morreram, mas as impressões substantivas que transmitiram continuam vagando no mundo difuso das ideias, e isso fez e faz funcionar a máquina segregativa dos corpos, sob o pretexto de sua presumível periculosidade. Por exemplo, a primeira das teorias inventou a doença conhecida como “monomania homicida”, cujo autor foi Esquirol, que se baseou na teoria de que existiria uma “mania sem delírio”, hipótese formulada por Pinel, indicando que alguns indivíduos cometem atos violentos sem nenhuma manifestação anterior ou posterior à doença3. A literatura confirma que houve um surto de “monomaníacos homicidas” entre 1815 e 1840, período no qual as ideias esquirolianas efervesceram e orientaram o pensamento médico-legal. Contudo, depois dessa época, nunca mais se deu crédito a esse conceito, e, quando se ouviu falar, foi para criticar. Porém, a ideia de que existem pessoas que cometem crimes imotivados, ou seja, sem motivo e de modo imprevisível, é naturalmente aceita por todos, ainda hoje. A teoria esquiroliana caiu do pedestal, mas a ideia por ela engendrada permaneceu viva sob outras vestes, dando consistência às teses sobre os criminosos loucos. Essas ideias nunca surgem desvinculadas do contexto sociológico que as nutriram. Nascem do esforço de dar sentido e tratamento ao sem-sentido do sintoma social de sua época. Naquele tempo, a urgência de defesa social era a máxima perseguida no discurso. Por exemplo, destacamos a entrada em cena de Benedict Augustin Morel 4. Esse autor lançaria, nesse período, a tese de que haveria em alguns indivíduos uma anomalia permanente, em que certo componente atávico, ancestral, agiria de modo atípico, fazendo desfuncionar as alterações produzidas no processo evolutivo do ser humano. Em outras palavras, é como se o componente agressivo e bárbaro não cedesse às restrições civilizatórias e continuasse em funcionamento. Indivíduos com graus variados, mas intrinsecamente violentos e desajustados, eram produtos de uma formação humana mal desenvolvida. Morel, então, com base nessa hipótese, formula a teoria da degenerescência e, com esta, a tese de que, para esses indivíduos, não haveria recuperação, nada a fazer. Existem muitas formas de profilaxia, esta é a parte que nos levará mais longe. Há uma que eu chamarei de ‘profilaxia defensiva’. [...] Eu prego que a gente não veja nenhuma aproximação injuriosa pelo fato de eu dizer daqueles que num estado doentio como a alienação, por exemplo, são perigosos para a segurança pública. Todavia, a gente não pode ignorar que os que são culpados pela força da lei e os que são alienados igualmente se tornam nocivos, prejudiciais pela perda de sua liberdade moral, e sem dúvida, a partir do interesse comum, deverão ser seqüestrados da sociedade (MOREL, 1857, p. 691). Não é preciso destacar que essa ideia de uma degenerescência intrínseca a alguns homens, degenerados, irrecuperáveis, está bem instalada no discurso dos dias atuais. De tal forma que, mesmo crianças e adolescentes, com base nessa ideia, são nomeados como irrecuperáveis em função de um distúrbio mental intrínseco. Nenhum cientista conferirá credibilidade às teses de Morel nos dias de hoje, mas isso não descarta que a ideia de um mal congênito seja o fundamento de muitas pesquisas, investigações científicas e novas teorias, ditas “de ponta”. 246 Depois, chegaria a vez de Césare Lombroso5, o mais famoso talvez, pois suas teses serviram para sintetizar e atualizar todas essas ideias anteriores, como descreveu em sua obra sobre o criminoso nato, o homem delinquente. Aqui o autor foi claro e direto, ao afirmar que os criminosos deveriam ser entregues aos médicos, e não aos juízes. Afirmou que a psiquiatria criminal já tinha em si a metodologia necessária para identificar esses indivíduos, “estava na cara”, e a única solução para tais degenerados era a segregação da sociedade. A título de curiosidade: Crime et châtiment foi o nome de uma recente exposição, no Musée D’Orsay de Paris, no verão de 2010. Ali estava exposta a escultura “A bailarina” de Edgar Degas. Por que aquela peça, leve e pura, estaria no meio de uma exposição sobre crimes e castigos? O fato é que Degas havia aplicado em sua balairina todos os traços do criminoso nato de Lombroso. A bailarina de Degas é uma execução da teoria lombrosiana. A ação desse escultor e pintor foi um grave protesto às teorias criminológicas de sua época. Contudo, nem sempre o movimento de resistência é suficiente para aplacar os delírios de normatização de uma sociedade enlouquecida pela ideia de uma profilaxia absoluta do mal que perturba seu sonho de uma humanidade sem riscos, sem pulsação, que, caso se realizasse, seria uma sociedade morta! Para concluir a historia, como todos sabem, a escola positiva criminal, alcançou a discussao do movimento internacional do direito penal e colocou em movimento o processo de reformulaçao do direito penal classico, propondo a substituiçao da escola classica pela escola positiva. A discussao girava especialmente sobre o sistema de garantia de direitos. Para Adolph PRINS, a liberdade de certos degenerados era incompatível com a ordem social e que para estes indivíduos a privação preventiva da liberdade era uma medida de segurança verdadeira. Contudo, Emile Garçon foi fervorosamente contrário à ideia de que medidas de segurança, em favor da defesa da sociedade, deveriam anteceder um ato delituoso. Ele não admitia, em nenhuma hipótese, que os “indivíduos degenerados, outros alienados, entrem no domínio do direito penal antes de ter cometido uma infração.” Ele proclamava sobre a violaçao de direitos, quando nao é garantido a todo e qualquer cidadao ter acesso ao devido processo e as garantias processuais previstas no decurso da sua execuçao. Proferia que a medida de segurança como instituto de proteçao seria uma arbitrariedade juridica. Foi em torno deste debate que os penalistas se dividiram, neste debate historico de Bruxelas, em 1909. Ou seja a cem anos atras. De um lado estavam aqueles partidarios de um direito penal limitado e de outro lado, os defensores de uma implantaçao de uma politica criminal que estava disposta a abandonar as garantias para prever ampla intervençao do estado como medida de defesa social, sendo que os mais radicais, defendiam esta açao mesmo antes do ato cometido. Se o sujeito é louco, potencialmente perigoso, deveria ser afastado da sociedade e mesmo do sistema penal, sob cuidados médicos, em nome da defesa social. O resultado deste debate, foi uma soluçao de meio, que preservou a ideia de uma excepcionalidade na execuçao da sançao penal aos alienados presumidamente perigosos. Cronologicamente: 1810, sequestrou-se seu direito de responder por seu atos processualmente, nos cem anos que se seguiram teorias presumiram nessa coisa sem responsabilidade uma periculosidade intrinseca, e finalmente, em 1909, a exceçao à regra encontra a sua forma definitiva de controle nas medidas de segurança, desde entao esses seres sao dejetados para fora da orbita da humanidade, sendo instaurados os manicômios judiciarios, sob a tutela do estado penal, para conter essas pessoas por tempo indeterminado, até cessar a sua periculosidade. O resto da história todos conhecemos, é prática centenária. Levaram cem anos para que a ideia de indivíduo perigoso contida na teoria de Pinel se transformasse em 247 fundamento das mais diversas teses criminológicas. Essas teses inspiraram os penalistas do final do século XIX que inventaram as medidas de segurança e a necessidade de manicômios especializados para guardar por tempo ideterminado os individuos intrinsecamente perigosos, a saber, os dementes, loucos de todo gênero, que por ventura viessem a perturbar a ordem social, como quer que seja, vindo a cometer qualquer ato que pudesse ser interpretado como um ato fora da lei. As teses que alimentaram tais idéias se constituíram vigorosas a princípio e rapidamente caíram no descrédito, mas outras surgiriam em seu rastro mantendo no espaço social as praticas manicomiais destinadas a proteger a sociedade dos individuos perigosos. Teses mais recentes, saídas do forno, reencantam a humanidade com seu canto de sereia, iludindo os crentes com esse argumento de que existem indivíduos intrinsecamente perigosos e que separá-los da sociedade é a receita do bem-estar social. “Da nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis” Neste tempo muito se repete, mas também anotamos o esforço daqueles que bailam e resistem a essa lógica da segregação. Não estamos entre os que acreditam na periculosidade intrínseca, na domesticação do programa pulsional que movimenta a humanidade. De tal sorte que propomos uma subversão: no lugar da presunção da periculosidade, elevar a presunção de sociabilidade. Em Belo Horizonte, temos trabalhado com situações complexas, cuja proposta é promover a conexão do detalhe particular que humaniza cada sujeito com a resposta do direito e da sociedade, de forma geral. Esse dispositivo conector engendra-se numa política intersetorial articuladora de ações entre os sistemas de justiça, saúde e recursos sociais diversos, dando lugar a respostas singulares para casos singulares, sem abrir mão da responsabilidade do sujeito diante dos atos dos quais é autor6. Contudo, ainda hoje, vemos renascer a tese, mesmo entre os que se dizem antimanicomiais - cujos argumentos levantam a bandeira da proteção de direitos para justificar que a questão do louco infrator é uma questão de saúde, e não mais uma questão de justiça -, de que existem determinados indivíduos que não têm que responder pelo crime que cometeram, porque sua condição psíquica não justifica sua responsabilidade. Passados 200 anos, eis o renascimento da ideia lombrosiana de que essas pessoas deveriam ser entregues aos médicos, e não aos juízes. Contudo, agora, aparece a tese revestida pelo discurso da época, entregar ao sistema de saúde, e não ao sistema de justiça. Atenção! Não há nada mais humano do que o crime, lembra-nos J-A. Miller7. Responder pelos atos praticados é uma solução humanizante, lembram-nos os sujeitos que acompanhamos. Mas responder como? Responder por um ato é uma condição do ser falante, o que do humano se articula ao Outro através do aparelho da linguagem, com o qual cada um se arranja ao responder pelo que em si faz diferença. Por essa via, partilha-se, na medida do possível, uma ordem simbólica, que estabelece regras e acordos, em comum. Mas e quando quem comete um ato não anexa o saber ao que faz, em razão da eclosão de sua loucura? Alguém pode responder pelo que faz sem um estado de consciência de si? Somos responsáveis inclusive por nossos sonhos, disse-nos Freud. São Paulo diria, neste debate, que somente conheceu o pecado pela lei. Sem a lei não ha pecado. A lei é a borda, é a resposta simbólica e social que indica o limite para aquela comunidade, naquela época. A lei é uma referência, principalmente para aqueles que, embaraçados pelo sofrimento, não sabiam onde ficava a fronteira que demarca as condições de sociabilidade para sua humanidade. Se hoje nos perguntamos por que essa lei e não outra em relação aos loucos infratores, não é para anular a função da lei. Questionamos, sim, a forma do texto normativo, justo ali, onde o texto da lei segrega e anula o sujeito como responsável 248 por seu ato, fazendo de alguns exceção à regra e, portanto, nulos como sujeitos de direitos. A lei humaniza. O crime e a lei fundam-se engendrados no projeto de convivência entre humanos. Não dispensaremos a legitimidade da lei, que se apresenta como uma oferta de laço ao Outro social. O ato-crime, aliás, foi o ato inaugural da civilização, fundação da sua humanidade. É desumano não ser considerado humano o suficiente para responder pelas consequências de sua existência, não se reconhecer em cada um a possibilidade de que possam advir outras respostas. São muitos os responsáveis, muitas são as responsabilidades. Que cada um tome a palavra para dar o testemunho da sua reflexão e experiência, sua responsabilidade para com as soluções de nossa época frente às idéias perigosas para a humanidade que nos constitui. Notas 1 Cf. PINEL, P. Tratado médido-filosófico sobre a alienação mental ou mania. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. Cf. FOUCAULT, M. Os anormais [1974-1975]. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 3 Cf. ESQUIROL, E. Des maladies mentales considérées sous les rapports médical, hygiéniques e médicolegal. Paris: Ballières, 1838. 4 Cf. MOREL, B.A. Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l’espèce humaine. Paris: Baillières. 1857. 5 Cf. LOMBROSO, C. O homem delinquente [1976]. Trad. Sebastião José Roque. São Paulo: Icone Editora, 2007. 6 Cf. BARROS-BRISSET, F. Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte:TJMG, 2010. 7 Cf. MILLER, J-A. Nada mais humano do que o crime. Texto traduzido e publicado na revista Almanaque online do IPSMMG, n. 3. Disponível em: <http://www.institutopsicanalisemg.com.br/psicanalise/almanaque/almanaque4.htm>. 2 249 Historia de las instituciones psiquiátricas en Argentina Psychiatric Institutions in Argentina. Perspective History Dra Prof Lucia Rossi, Historia de la Psicología Cát II Facultad de Psicología Universidad de Buenos Aires Resumen Se considera los antecedentes el decurso de mutaciones discursivas (nosografías, denominaciones de enfermedad) prácticas que conforman las instituciones públicas de salud y les confieren especificidad psiquiátrica en Buenos Aires,.Argentina. Su origen desde la Colonia a la actualidad; abre a una perspectiva atenta los cambios que acontecen alrededor de conceptos como enfermedad y salud mental enmarcados en diversos escenarios y contextos sociales y políticos acontecidos en Argentina. Palabras clave: Historia- hospitales- instituciones psiquiátricas-salud mental- Buenos Aires -Argentina Abstract: A history research shows the way discursive and practices changes (gnosographies, names of madness, mental illness)contribute to model public health institutions in order to achieve and promote its gradual specialized design in Buenos Aires, Argentina. Although this perspective searches deeply in its origins, also enlights the meaning of institutional changes by including them in different political social frames such have accounted in Argentine history. Clue-words History- hospitals. Psychiatric Institutions- Mental health- Buenos Aires- Argentina Introducción: Un recorrido por la historia de los hospitales permite rastrear el lugar conferido a la enfermedad mental y su atención hasta su institucionalización especializada como el Hospital Borda. Diversos contextos sociales políticos y económicos enmarcan el desplazamiento de énfasis desde la higiene pública (1900) a la higiene social (1920) y finalmente a la higiene mental y los cambios en la definición, actitud y prácticas frente a la enfermedad mental que abren a nuevas actitudes: prevención, y prácticas la “psicoterapia” en consultorios externos de hospitales (década del 20’). La transformación de las instituciones es referida a cambiantes e inestables contextos sociopolíticos. De los grandes Hospicios a los hospitales públicos abiertos en consultorios. De la enfermedad, cambios en sus clasificaciones y denominaciones permiten apreciar el recorrido a la actualidad y los cambios institucionales operados. De los estadíos terminales a los iniciales a la prevención atención primaria, con énfasis en la reinserción y reahibilitación actual: salud mental, definición aparecida en 1945 I Las primeras instituciones referidas a problemas mentales Las leyes de Indias indicaban la obligación de crear hospitales en la Ley II de 1573, debían ser creados en la proximidad de una iglesia bajo advocación del Patrono de la Ciudad y del cabildo. Asi en Buenos Aires, cerca del Monasterio de la Merced cuyo patrono es San Martín de Tours surge en 1614 el Hospital de San Martín a cargo de un barbero sangrador. En 1726 se contrata a 6 Betlehemitas- orden religiosa idónea en preparar remedios y curar que llegan en 1748, y bautizan el hospital como “Santa Catalina”. Los locos desalojados en la cárcel del cabildo fueron piadosamente recogidos en “el Loquero”. Se sustentan con “chacras”, grandes extensiones de terreno donadas. Otro Hospital es fundado por los jesuitas de San Ignacio en San Pedro Telmo: la Residencia de Belén. (Los jesuitas: diagnósticos psicopatológicos de la medicina griega: manía, melancolía, historia y tratamiento: el pharmakon de Dioscórides enriquecido con los hallazgos de las Misiones. Ej el 250 Hospital de San Roque en Córdoba. Cuando se crea el Virreinato 1776, por la expusión de los jesuitas, los bethlemitas quedan a cargo de ambos hospitales y sus respectivas “chacras” Santa Catalina y Hospital de la Residencia-. Abren una nueva sala, “Cuadro de Dementes” a la que se derivan los locos de Sta Catalina. Ambas chacras conformarán la Casa de la Convalescencia con sala de crónicos y de recuperación .La Residencia destinada a uso militar cuenta con cirujanos pagos por el rey. Aparece Una nueva medicina: El protomedicato en 1805. Con la Independencia, a partir de1815, se reduce la influencia de los Bethlemitas. La administración y dirección pasa al Estado en 1821: se confiscan fincas y bienes, se clausura el Sta Catalina y el Hospital de Residencia pasa a llamarse Hospital General de Hombres. Llegan los aportes de Pinel, como parte de la ciencia de mayo, como muestra la Tesis ”La manía” de Diego Alcorta. A partir de 1828, la nueva administradora será la Sociedad Filantrópica a la que se le ceden los terrenos de la Convalescencia . Rosas por un tiempo vuelve a los jesuitas con sus taxonomías laxas de criterios tomistas. Rosas reduce y suprime el aporte estatal a la Sociedad administradora. Hay 120 pacientes en el “Cuadro de dementes” del Hospital con centinela y atención médica bajo cuidado de Martín García. Con la organización nacional, (1860) el Hospital General de Hombres queda bajo la dirección de Buenaventura Bosch. Amplía el Cuadro de dementes” y en 1852 crea el Hospital General de Mujeres y luego el Hospicio para mujeres (1854). El gobernador Alsina cede parte de los terrenos de la Convalescencia para una Casa de Dementes Varones.(Ferro,2011). Inaugurado en 1863 como Hospicio de la Buena Ventura cuenta con 122 pacientes. Su artífice, B. Bosch, se inspira en las experiencias inglesas de Tucker, francesas de Pinel y Esquirol, Chiarughi, sostiene que la higiene, alimentación y buen trato, son las claves para la recuperación. El Hospicio de las Mercedes es dirigido por Uriarte(1876) y luego por Lucio Meléndez quien crea Talleres de jardinería, zapatería carpintería, herrería, releva las primeras estadísticas, publica una Revista y abre el Pabellón de Alienados Delincuentes. II El Estado Argentino inicia como política poblacional la campaña al desierto y la gran inmigración europea en el período conservador de 1880 a1916. Como política de Estado, la higiene pública -mejoramiento de las condiciones urbanas incluye la creación de un ambicioso dispositivo institucional clínico- criminológico, (hospicios y cárceles para contención) confiere a los médicos la tutela de la enfermedad mental, sus criterios diagnósticos de la clínica francesa en una mentalidad positivista. En respuesta a la desesperante condición sanitaria de la gran inmigración europea tiene una indudable intencionalidad de control social. En 1984 se crea la cátedra de Patología Mental en la Facultad de Medicina con Meléndez como primer Profesor y sede en el Hospicio de las Mercedes. Se construyen nuevos edificios que se inauguran en 1887, con 300 pacientes. . Cuando Cabred llega a la Dirección del Hospicio, renueva criterios médicos: libertad, bienestar físico y moral y trabajo y lleva la institución a su máxima expresión: tienen agua corriente desde 1893, jardines diseñados por Thays, Museo de Anatomía patológica. Inaugura una Escuela de Enfermería especializada en Psiquiatría (191 egresados) crea Laboratorios, un edificio de Clinoterapia, el Pabellón de Delincuentes, llega a tener 884 pacientes, 5 médicos y 5 practicantes (Volmer,2010) Sin embargo, lo más impactante es la expansión de un nuevo diseño: Las Colonias En 1899 se crea en Luján la Colonia de Alienados Open Door con un sistema de puertas abiertas escocés y un diseño médico asistencial y educativo- pedagógico de grupos de trabajo agrario pago que preveía un sistema 251 de adopciones de pacientes por parte de familias afincadas en el predio, implementado por Gorriti . (Gorriti,1932) En 1904 los Hospicios se nacionalizan y se expanden: surge en Córdoba el Asilo-Colonia de Oliva (1908); el Asilo Colonia de Regional Mixto de Retardados Torres (1918); el Asilo Colonia de Niños abandonados de Olivera, ambos en Pcia de Bs As. (Guerrino, 1962; Navarlaz, 2011) Cuando Borda asume como Director, innova con una nueva clasificación clínica de enfermedades mentales- congénitas y adquiridas- que se adopta en toda Latinoamérica. Las instituciones diagnostican y se especializan en contención, reclusión de enfermedades terminales o crónicas, pero abren innovadora a la rehabilitación por la socialización y enseñanza de un oficio. III El período de democracia ampliada 1916-1930 significa la participación política masiva de la primera y segunda generación de inmigrantes y su integración política social y económica en las clases medias urbanas en sector terciario. Epoca de grandes cambios marcados por el humanismo espiritualista característico de la primera posguerra europea. A nivel institucional se produce la reforma universitaria y se garantiza la gratuidad del Hospital público (1919). Los higienistas crean la Liga de Profilaxis Social al descubrir la asombrosa relación entre venéreas y población asilar. (se detecta que el 95% de los asilados son inmigrantes) La prevención o higiene social, la profilaxis social y sexual a través de la educación o de ágiles campañas publicitarias muestran la preocupación por el futuro poblacional. Criterios de higiene y prevención generan una nueva figura institucional más ágil: los dispensarios. La nueva actitud preventiva propone adelantarse al problema en la detección temprana. Esta actitud preventiva cambia la concepción de enfermedad mental, atenta ahora a los estadíos tempranos iniciales de la enfermedad, a enfermedades leves y sobre todo en la atención a la infancia. Florecen Institutos de Psicología todos los ámbitos institucionales en el ámbito laboral forense (tribunales de menores). La clásica Historia clínica del Hospicio incluye Testimonio personal del paciente – que confiere la palabra al sujeto en sus propios términos. El impacto institucional inmediato se desplaza en el realce de los hospitales con la apertura de consultorios externos: psicoterapia. (Piraino, 2008). El descentramiento hospitalario hace posible que la palabra y consejos del médico llegue a través de Enfermeras sociales y visitadoras a asistir al enfermo in situ, en el lugar del problema con políticas preventivas de higiene, vacunación, alimentación. La formación sistemática de auxiliares genera visitadoras de Higiene social enfermeras sociales y asistentes sociales. La correlación entre enfermedad mental y ambiente social se afianza: en 1928 con Ciampi proponen una nosología inédita, clasifican las enfermedades mentales según la autonomía funcional del yo. Dotadas de cierta reversiblidad- al admitir como un factor etiológico posible el ambiente social, las enfermedades mentales modifican su condición y en ese margen devienen en cierta medida prevenibles. En 1929, Bosch funda la Liga Argentina de Higiene Mental, que propende la apertura de consultorios especializados asegurando la atención psiquiátrica abierta. IV En 1930, el golpe de estado nacionalista y una gran crisis económica, inaugura una década de restricción en la participación política. Grandes migraciones internas se desplazan desapercibidamente del ámbito rural a los centros urbanos. Al no contar con políticas sociales, gran parte del problema social es derivado y absorbido por la institución médica. Surge asi la medicina social. Gonzalo Bosch, ahora Director del Hospicio de las Mercedes- docente adscripto y libre de la Cátedra de Psiquiatría que funcionaba en e el Hospicio, logra institucionalizar las novedades del 20’ que logran atravesar y sobrevivir en este período. Lo mismo ocurre en el Hospital Neuropsiquiátrico de Rosario dirigido por G. Ciampi – quien asediado, debe cerrar el Laboratorio de Psicología 252 Experimental, pero resiste y salva la cátedra de Neuropsiquiatría Infantil, creada en 1920. G. Bosch en el Hospicio de las Mercedes, ya con 1000 internos aproximadamente, reabre la Escuela de Enfermería (con 190 egresados), crea la Escuela de Visitadoras Sociales de Salud Mental desde 1935 a 1946, inaugura la Liga de Servicio Social en 1938 y el primer Servicio de Asistencia Social en el Hospicio.(Volmer, 2010) . En 1940 inaugura un nuevo edificio. Confiere sede al Curso Superior de Psiquiatras. (1942). Kraft, médico formado en Europa y Pichon Riviere como Jefe de Admisión, introducen la técnica de grupos operativos y el psicoanálisis. Bosch se destaca por introducir por primera vez un doble diagnóstico: primero el de admisión según la nueva nosografía funcional, luego el diagnóstico definitivo, clásico. Sin embargo en las Historias clínicas reflejan el signo del momento hay ítems de control social y político y un regreso al naturalismo en las categorías biotipológicas. La psiquiatría social de G. Bermann cuestiona la psicopatologización y criminalización de la pobreza (Bermann,1941). En el transcurso de la década del 40, se diferenciarán definitivamente, psiquiatría, psicoanálisis y psiquiatría social. G.Bosch realiza una obra institucionalizante de importancia: promueve definiciones como la unidad de lo psíquico desde el concepto de personalidad. Asegura la formación de Carolina Tobar García y de Telma Reca en el exterior: la primera institucionalizará la enseñanza diferencial en la Ciudad de Buenos Aires, la segunda creará el primer Dispensario de Higiene Mental Infantil en el Hospital de Clínicas (1934). V En 1945 con la posguerra europea surge la creación de la OMS y el concepto por primera vez positivizado de Salud Mental. En Argentina, en el período de democracia de participación masiva, adquiere rango ministerial. Desde el Ministerio de Salud Carrillo propone un sistema de salud integral a nivel nacional que asegure un sistema de derivación institucional funcional. Propone cambios nosográficos en las que clasifica las diversas afecciones mentales para asegurar una derivación inmediata a distintos centros según diagnósticos para recibir tratamientos diferenciados adecuados. Retoma la tendencia de la década del 20` creando el hospital de Peirofrenias y Neurosisde atención a la infancia y enfermedades leves. La Historia clínica de esta época muestra una drástica transformación con decidida inclusión de categorías sociales y laborales; nosografía e institución a derivar. La psicoterapia se expande en los dispensarios de Higiene infantil (Etchegoyen,1962) VI Ultimo período El caso Tucumán: El Hospital de Alienadas de 1938 (asilo cerrado) y el Hospital Nacional Obarrio (ex colonia de laborterapia), en la década del 50’, comienzan a transformar sus prácticas y prestaciones: el paulatino abandono de las internaciones prolongadas con tratamientos de shock, para convertirse por el uso de la psicofarmacología, la psicoterapia y los dispositivos comunitarios, en centros de Salud Mental (60’). El Obarrio con comunidades terapéuticas y de prevención comunitaria en salud mental, equipos móviles de prevención primaria y dispensarios barriales de prevención en los 70’ por Zimmerman, e influencia de P. Riviere y M.Goldemberg. La salud mental se expande a los hospitales generales. En 1991, son los psicólogos los que reorganizan el organigrama de la institución enfatizando la prevención primaria en psiquiatría, y la rehabilitación por resocialización y laborterapia. (Llapur, 2009). En Buenos Aires, con la democratización de 1983 se logra la Ley del ejercicio profesional del Psicólogo, que habilita al ejercicio de la psicoterapia a los psicólogos 253 Se los incluyen en residencias hospitalarias y Centros de Salud mental. Hoy, según la Red de servicios de Salud Mental- casi la totalidad de los Hospitales públicos tienen servicios de salud mental (Guía, 2010) Conclusiones: 1. En los antecedentes se puede constatar el tránsito entre pequeños rincones y sus denominaciones “Loquero”; Cuadro de dementes” a la constitución de instituciones prestatarias específicas. Su expansión y diversificación en colonias abiertas en el período de Conservador en respuesta al masividad de la gran inmigración europea. 2. En el período de democracia ampliada del 20’,el énfasis se desplaza a la higiene social con su carácter preventivo. Los hospitales abren espacios asistenciales y la apertura de consultorios para atención de enfermedades leves y en momentos iniciales en los que se empieza a ejercer la psicoterapia. Florecen los dispensarios y consultorios y la formación de auxiliares en asistencia social que permite llevar la asistencia y prevención in situ. Sobre el final de la década se formaliza la Liga Argentina de Higiene Mental. 3. Los logros de la década del 20, en materia de higiene mental se expanden institucionalmente en la década del 30´caracterizada por la alta restricción en la participación política, y su impacto en el avance masivo de categorías biotipológicas en los documentos de relevamiento de datos en todas las áreas. 4. La década del 50 se formaliza el sistema de salud en Argentina, con énfasis en la organización institucional y la aparición definitiva de la promoción de lasalud mental con criterios preventivos. 5. Hasta la fecha se observa un congelamiento en períodos de gobiernos militares y una expansión institucional versa en los de participación democrática 6. Las instituciones asilares van variando en su nombre, su diseño, su prestación: el Hospicio de las Mercedes, luego Hospital Neuropsiquiátrico Borda se llama actualmente Hospital Interdisciplinario Psicoasistencial José T. Borda. Los Centros de Salud Mental y Hospitales públicos de la Ciudad de Buenos Aires, cuenta con servicios de prevención , orientación grupal, Programas de atención comunitaria, Talleres protegidos de rehabilitación. Hay Redes de servicios adiccionales, de Violencia familiar y maltrato, Psicogerontología, Trastornos de alimentación; de Pareja y familia, Red de Hospitales de día, Musicoterapia, Terapia Ocupacional y de Investigación epidemiológica en salud mental. Se ha diversificado y complejizado la atención (Guía, 2010) Bibliografía Bermann,G(1941)”Instalación y organización de centros Neuropsiquiátricos de vanguardia”, Las Neurosis de Guerra, Buenos Aires, Aniceto López Etchegoyen,R(1963) “Estado actual de la Psicoterapia en Argentina” Acta psiquiátrica y psicológica Argentina (93-113) Buenos Aires Ferro,C;(2011):Topografía de los Hospitales en el Río de la Plata. (en prensa) Guerrino,A (1962) La psiquiatría Argentina, Buenos Aires, Cuatro Editores Guía de Recursos u y derivación. Red de servicios de Salud mental, Dirección General de Salud Mental, Ministerio de Salud; 2010; Buenos Aires Ciudad Gorriti,F;(1932):” Psiquiatría”, La Semana Médica (p111-1116); Buenos Aires Llapur,O;(2009): El psicoanálisis y el tratamiento institucional de la Psicosis; Serie Tesis de Psicología Vol IV, Facultad de Psicología, Universidad Nacional de Tucumán Tucumán, Dto de Publicaciones Navarlaz,V(2011) “La creación de establecimientos públicos de asistencia psiquiátrica en Argentina”, inédito Piraino,A;(2008): Orígenes del tratamiento psicoterapéutico ambulatorio en Buenos Aires en las décadas de 1920 y 1930; Buenos Aires, Bibliográfica Volmer,M.C (2010): Historia del Hospital Neuroipsiquiátrico José T. Borda; Buenos Aires, Editorial Salerno 254 A SAÚDE MENTAL NO BRASIL E NO RIO GRANDE DO SUL: HISTÓRIA E REFLEXÃO Míriam Thais Guterres Dias - UFRGS – [email protected] Resumo: O presente trabalho analisa a constituição da política de saúde mental no Brasil e no estado do Rio Grande do Sul, contextualizada na trajetória das políticas de saúde no Brasil, com suas conexões com o sistema econômico, político e social do país. O momento histórico analisado foi entre o Império e o início da Nova República, um período anterior à noção dos direitos sociais, aonde as políticas na saúde eram do tipo residuais e, posteriormente, meritocrático-particularistas. Assim, a análise teórica vai considerar os movimentos presentes nas articulações entre o campo do conhecimento e o campo econômico e político, determinado a constituir e consolidar um estado nacional e desenvolvimentista. Palavras-chave: História da saúde mental; políticas sociais; políticas de saúde mental. Resumen: El presente trabajo analiza la constitución de la política de salud mental en Brasil y en el estado de Rio Grande do Sul, contextualizada en la trayectoria de las políticas de salud en Brasil, con sus conexiones con el sistema económico, político y social del país. El momento histórico evaluado fue entre el Imperio y el principio de la Nueva República, un período anterior a la noción de los derechos sociales donde las políticas en salud eran residuales y, posteriormente, meritocráticoparticularistas. Así, el análisis teórica considerará los movimientos presentes en las articulaciones entre el campo del conocimiento y el campo político y económico, determinado a constituir un Estado nacional y de desarrollo. Palabras-clave: Historia de la salud mental; políticas sociales; políticas de salud mental. Abstract: The present work analyzes the constitution of mental health care politicy in Brazil and in the state of Rio Grande do Sul. It will evaluate the trajectory of the governmental actions, establishing connections with the country´s economic, politic and social system. For that, it will be studied the period comprised from the Empire until the beginnings of the New Republic, a period characterized by 255 the lack of social rights, when the health care policies where the residual kind and, subsequently, meritocratic-particularist kind. Hence, the theoretical analysis will take into account the actions presented in the articulations between the technical knowledge and the economic and politic field in order to construct and consolidate a national and developmental state. Key words: History of mental health care; social policies; mental health care policies. As políticas sociais públicas são constituídas a partir de um determinado modo de a sociedade conceber e explicar fenômenos sociais para a ação pública se efetivar com seus dispositivos legais e de gestão. A política setorial da saúde e sua especificidade de saúde mental foram sendo gestadas no teor, ritmo e tempo característicos da formação e consolidação do Estado brasileiro ao longo do século XX, particularidades que as moldam com feições contraditórias, ora de negação, ora de reconhecimento da questão social. A política social do tipo residual (Pereira, 2002) foi a marca no período do Império até 256 a década 1930 no Brasil, quando a assistência à saúde da população em geral era realizada pelas instituições hospitalares vinculadas à entidades religiosas. Os primeiros esforços de tratar os doentes mentais de forma institucionalizada foram uma das obrigações das Santas Casas de Misericórdia, associadas ao caráter de assistência social destas organizações. A Santa Casa de Porto Alegre iniciou suas atividades em 1826, com o recolhimento dos doentes mentais da então Província de São Pedro, denunciando ao governo seus sucessivos prejuízos financeiros e desgaste na sua imagem filantrópica, ao não conseguir prestar um serviço adequado aos pacientes. Na ocasião, o Imperador D. Pedro II emitiu uma carta ao Presidente da Província em 1854, expondo que “não é admissível exonerarem-se os Hospitais e Casas de Caridade das Províncias da obrigação de alimentarem e curarem os alienados que tiverem a seu cargo [...]” (Wadi, 2002, p. 46). A mobilização realizada pela Santa Casa provocou o governo a assumir diretamente uma ação de atendimento em saúde mental, com a criação do Hospício São Pedro (em 1925 nomeado como Hospital São Pedro, e então, em 1961, como Hospital Psiquiátrico São Pedro), que iniciou suas atividades em 1884, a exemplo do Hospital Dom Pedro II. Este foi o primeiro hospital psiquiátrico público do Brasil, inaugurado em 1852, no Rio de Janeiro. Já a primeira instituição psiquiátrica privada do país foi a Casa de Saúde Doutor Eiras, fundada em 1860, também no Rio de Janeiro. Diante do cenário de eclosão da Primeira Guerra Mundial e da necessidade de redefinir a composição da força de trabalho em decorrência do encerramento do ciclo do trabalho escravo, base da mão de obra da época, fez-se necessária a adoção de estratégias para a reprodução das condições de vida das classes trabalhadoras, que emergem com a instalação do modo de produção capitalista nos primórdios de sua fase industrial. São estas classes que irão determinar as primeiras ações estatais no setor de saúde brasileiro (Costa, 1986), a partir de um conjunto de medidas com o apoio do círculo intelectual médico-sanitário, para a preservação da saúde da força de trabalho e no controle e erradicação de um conjunto de doenças transmissíveis que subjugava a saúde da população. O saneamento era a ênfase principal na saúde pública naquele momento, motivo que levou o círculo médico-sanitário a defender a inclusão da carreira médica neste campo, sob influência da escola americana de saúde pública, principalmente da Fundação Rockefeller. Esta legitimidade pode ser medida pela criação dos Congressos Brasileiros de Higiene, no ano de 1924, que por várias décadas influenciaram o pensamento técnico e político na saúde pública brasileira (Hochman, 2005). O pensamento sanitarista foi constituído na concepção higienista, assentado num conjunto de práticas sanitárias para erradicar doenças transmissíveis que 257 afetam as condições de saúde. Mas, articulado a ele, esteve presente a concepção da eugenia, referente ao “estudo dos fatores socialmente controláveis que podem elevar ou rebaixar as qualidades raciais das gerações futuras, tanto física como mentalmente” (Costa, 1989, p. 81). A eugenia se constituiu num movimento intelectual que correspondeu a vários interesses, como sanear os aglomerados urbanos e rurais e imprimir novos comportamentos sociais para debelar os efeitos da miscigenação racial, considerada um risco social pela elite conservadora (Stancik, 2004). Deste modo, houve a aproximação histórica entre a eugenia e o higienismo na conformação da saúde pública brasileira, influenciando sua expressão na saúde mental de modo hegemônico, representado pela Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923. Os médicos psiquiatras da época se inspiraram no circuito intelectual brasileiro, o primeiro a difundi-la na cultura brasileira, e passaram a defender a prevenção eugênica como o instrumento mais rápido e eficaz para sanar a situação de degradação moral e social causada por “vícios, ociosidade e miscigenação racial do povo brasileiro” (Costa, 1989, p. 61). A prevenção eugênica se materializou através da criação de hospitais e colônias-agrícolas públicas para pessoas com transtornos mentais, tuberculose ou hanseníase, sendo o período desde a Proclamação da República até 1941 caracterizado como o da hegemonia do setor público na adoção do modelo das colônias (Sampaio, 1988). A categoria assistencialismo também esteve presente neste processo de institucionalização da saúde mental como política de governo, marcando até a atualidade a função social dos hospitais psiquiátricos. Até meados do século XIX, “o trabalho e as instituições de saúde repousavam em três pilares: a medicina liberal, as medidas coletivas de prevenção e higiene e o assistencialismo” (Médici, 1995, p. 366). No Rio Grande do Sul, o ingresso de pacientes no Hospício São Pedro não era por exclusivo critério médico, pois os Intendentes Municipais foram autorizados a requisitarem internação psiquiátrica, através do Decreto nº 3.356, de 1924. É interessante constatar que já naquela época surgia a proposta de incluir hospitais gerais no atendimento em saúde mental, quando foi discutida, no 258 Congresso de Higiene e Hospitais da cidade de Rio Grande, em 1929, a criação de anexos psiquiátricos nos hospitais das principais cidades do Estado, como forma de reduzir o número de internos no São Pedro (Godoy, 1955). Ao fim da República Velha (1889-1930), o Estado impulsionou a criação de mecanismos para responder as demandas do mundo do trabalho, tais como: legislação sobre acidentes de trabalho, ampliação dos serviços de saúde pela ação estatal, promulgação do primeiro Código Sanitário e instalação da previdência social privada, em 1923, com a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões, que originaram o sistema de previdência social e da medicina previdenciária pública no país. Estas medidas anunciaram mudanças importantes no Brasil, em decorrência da influência do cenário internacional de crise econômica no modelo agroexportador cafeeiro e na correlação das forças políticas, que desencadeou a Revolução de 1930 e iniciou um novo ciclo econômico e um novo papel do Estado brasileiro, que passa ter a centralidade na condução do processo produtivo e político (Fleury, 1994). Por consequência, a regulamentação de medidas de proteção social é a do “tipo meritocráticoparticularista, com fortes marcas corporativas e clientelistas na consagração de privilégios e na concessão de benefícios” (Draibe, 1993, p. 13), criando as condições favoráveis para o fortalecimento do Estado através de um aparato governamental unificado em todo o território nacional. De relevo, é criado o Ministério da Educação e Saúde Pública (1930) e os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) em 1933, e em solo gaúcho, o Instituto de Previdência do Estado (1931), o Juizado de Menores e a Secretaria de Educação e Saúde Pública (1935). A concepção liberal, predominante, era de que a saúde individual não era da competência da saúde pública, como expressa Gustavo Capanema, sanitarista e ministro da saúde e educação por um longo período: “O caso individual só interessa à saúde pública se puder afetar a coletividade, se for capaz de pôr a coletividade em perigo. Fora disso, dele não se ocupará a saúde pública” (Hochman, 2005, p. 136). A responsabilidade da saúde pública estava diretamente vinculada à função estatal para evitar riscos à coletividade. Nesta lógica está o fundamento da aprovação do Decreto nº. 24.559, em 1934, dispondo sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas. O Artigo 1.º define que a Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental pretende “concorrer para a realização da higiene em geral e da profilaxia das psicopatias em especial” (Delgado, 1992, p. 259), expressando e materializando o escopo da higiene mental. O Artigo 4.º do Decreto define os estabelecimentos psiquiátricos, e entre estes, os de assistência social, evidenciando o fenômeno do transtorno mental num país com altos índices de desigualdade social, bem como, no período histórico referido, o conjunto de organizações privadas filantrópicas a quem a sociedade delegou a tarefa de isolar e segregar a pobreza. 259 No Rio Grande do Sul, dois hospitais psiquiátricos privados são criados neste período, o Olivé Leite, Pelotas, em 1931, e a Clínica São José, Porto Alegre, em 1933. No São Pedro, o diretor do hospital, doutor Jacintho Godoy, realiza um conjunto de obras na instituição, a instalação de serviços ambulatoriais e a criação de novas carreiras na área de saúde mental: médico psiquiatra, a Escola de Enfermagem e o Serviço de Assistência Social. O fenômeno da superlotação seguia sendo um grave problema da instituição, que cumpria sua função social como depositário estadual de todo tipo de indesejados e pobres da sociedade. A capacidade do hospital era de 477 pacientes, mas ele chegou a abrigar 1.800 pessoas. Um fato relevante na época foi a inclusão do Manicômio Judiciário, criado em 1925, na área jurídica e de segurança, situação existente até os dias de hoje, trazendo prejuízos na assistência à saúde daqueles que cometem delitos e, ao mesmo tempo, tem transtorno mental. O desfecho da Segunda Guerra Mundial marca no Brasil o início do período desenvolvimentista (1946-1964), e o setor saúde foi considerado estratégico para o desenvolvimento econômico, precondição ao aumento da produção e da riqueza social (FEE, 1983), confirmando a concepção de saúde presente na gênese de sua constituição de política pública no Brasil como fundamental na reprodução das condições de vida das classes trabalhadoras e um setor considerado rentável pelos agentes econômicos. Neste período, os Estados Unidos da América passaram a exercer um poder hegemônico sobre o mundo capitalista, possibilitando a difusão e expansão do seu modelo de assistência sanitária, como a primazia do modelo assistencial hospitalocêntrico de alta tecnologia e da prática especializada (Almeida, 1997). Esta orientação influenciou a saúde mental no Brasil, com o governo promulgando Decreto Lei nº. 8.550, de 1946, que estimula a construção de hospitais psiquiátricos pelos governos estaduais, na óptica de consolidar “[...] a política macro-hospitalar pública como o principal instrumento de intervenção sobre a doença mental” (Paulin & Turato, 2004, p. 243). Esta política aumentou o número de hospitais e da população institucionalizada: “em 1950 existiam 0,41 internados por 1.000 habitantes; 0,82 em 1970. Enquanto a população geral aumentou 82% em 20 anos, a população do hospital psiquiátrico aumentou 213%, apesar do advento dos psicotrópicos” (Cerqueira, 1984, p. 87-88). Este quadro de valorização da hospitalização psiquiátrica como eixo da política pública de saúde mental será uma tônica no Brasil pelas décadas subsequentes. A urbanização, fenômeno que na América Latina foi consequente da mudança acelerada da base produtiva de agrário-exportadora para urbano-industrial, também colaborou para o aumento da 260 população nos hospitais psiquiátricos. Aos grupos populacionais que não conseguiram ingressar neste novo padrão de produção, um dos lugares destinados foram os hospitais psiquiátricos. Em 1950, existiam 24.234 leitos psiquiátricos, passando para 34.550 leitos em 1955 (Alves, 1992; Costa, 2002). A saúde mental no Rio Grande do Sul teve um expressivo desenvolvimento, tanto por ações realizadas no Hospital Psiquiátrico São Pedro, quanto na política setorial. A higiene mental e a assistência psiquiátrica mereceram capítulo especial no Código Estadual de Saúde (1962), pois as psicoses passaram a ter notificação obrigatória. Vários convênios foram firmados entre o Ministério da Saúde e a Secretaria Estadual visando o incremento de construção e reformas em hospitais psiquiátricos para atividades terapêuticas, iniciativa que revela uma política de expansão de estabelecimentos especializados. Tanto que no setor privado são construídos três novos hospitais psiquiátricos: Sanatório Psiquiátrico Espírita, em Pelotas, em 1948; Maria Vicença F. Lopes, em Rio Grande, em 1949, e Clínica Pinel, em Porto Alegre, em 1960. Este período foi um marco na proliferação de novos referenciais teóricos no âmbito terapêutico, como a psicanálise, a ambientoterapia e a formação multiprofissional na forma de residência. A possibilidade terapêutica através do trabalho e da expressão artística também foi desenvolvida neste período, constituindo-se, desde então, como dispositivo terapêutico relevante (Dias, 2007). A Organização Mundial da Saúde (OMS) analisava as legislações em saúde mental em diversos países, constatando a ênfase nos aspectos jurídicos em detrimento dos cuidados em saúde. Entre outras diretrizes, foi estabelecida a necessidade de serem criadas normas para orientação técnica do atendimento hospitalar psiquiátrico, referendando o modelo de saúde centrado nesta instituição (OMS, 1955). As primeiras críticas aos hospitais psiquiátricos surgem também no período pós-Segunda Guerra Mundial, a partir da experiência de médicos e enfermeiros que foram prisioneiros dos campos de concentração nazistas. Inicia-se, assim, um questionamento crítico de participação destes profissionais em instituições psiquiátricas, que se baseiam em discriminações tão desumanas como as que eles haviam padecido (Tuñon & Abudara, 1988). Este questionamento resultou em vários debates e novas formulações nos países centrais, como o surgimento da Psiquiatria e Psicoterapia Institucional na França; na Inglaterra, o desenvolvimento das Comunidades Terapêuticas, o movimento da antipsiquiatria, que vai defender o louco diante da sociedade; e a Psiquiatria Democrática italiana, inspiradora da reforma psiquiátrica brasileira. 261 O setor saúde segue permeado pela disputa por legitimidade entre os dois blocos existentes: a saúde pública, com seu modelo campanhista, e a atenção médica previdenciária, de cunho curativista e privado. Em decorrência desta situação, ocorre um amplo debate nacional sobre o papel do Estado na implantação de um efetivo sistema de saúde, com sua grande expressão na 3ª Conferência Nacional de Saúde (1963), quando o Ministério da Saúde propôs a criação de um Plano Nacional de Saúde e a Municipalização dos serviços de saúde no Brasil. Como conseqüência do Golpe Militar de 1964 e implementação da ditadura no Brasil, a ausência de debate e de fortalecimento das vontades políticas nos níveis regionais e locais, aliados à implantação de reformas institucionais, afetou a saúde pública e a medicina previdenciária existente. O serviço médico tornou-se um tipo de estratégia de maior relevo na relação estabelecida entre Estado e sociedade, traduzida como bem de consumo social (Cohn, 1996). O cuidado médico individual viabilizava um crescimento avassalador da produção quantitativa de procedimento, com consequente construção financiada pelo setor público, de grande número de hospitais, laboratórios e serviços privados e a multiplicação de egressos das faculdades de medicina e de odontologia (Guimarães & Tavares, 1994). No campo de saúde mental, destaca-se o Decreto nº. 60.252, de 1967, que instituiu a Campanha Nacional de Saúde Mental no âmbito das ações do Ministério da Saúde. As suas finalidades e objetivos estão fundamentados nas concepções campanhistas e da higiene mental, visando resolver o déficit de hospitais psiquiátricos, apontando a ampliação e distribuição de ambulatórios de saúde mental no país, com o fim de “diminuir a necessidade de internação e assegurar a assistência terapêutica sem afastar pacientes de seu ambiente social e familiar” (Brasil, 1968, p. 45). No estado gaúcho houve a aprovação, em 1964, do Decreto nº. 16.722, para a criação de Ambulatórios em Saúde Mental em 18 municípios, seguindo uma lógica de regionalização e densidade demográfica (Rio Grande do Sul, 1964). Esta iniciativa estimulou a criação de um conjunto de ambulatórios no estado, tanto no âmbito estatal quanto no privado, que por muito tempo se constituíram como um modo de atendimento associado ao tratamento hospitalar. Durante o governo Geisel (1974 a 1979), a coalizão política do regime militar passou por uma crise de legitimidade e econômica, esta gerada pela desestabilização no mercado internacional do petróleo em 1973, que colaborou para o fim do período de milagre econômico brasileiro, levando ao aumento da dívida externa para custear a ampliação das importações. O governo adota medidas que produzem o crescimento quantitativo da oferta de serviços e da instalação de unidades assistenciais de saúde com o financiamento do fundo previdenciário. O Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento é proposto, inspirado nas recomendações da Conferência de Alma-Ata, em 1978, que apregoa os cuidados primários de saúde 262 como “parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade” (OMS, 1978). Esta política propicia o incremento da oferta de serviços ambulatoriais básicos à população excluída do acesso a equipamentos sociais (Noronha & Levcovitz, 1994) como uma forma também de contrabalançar o grau de privatização da assistência médica expandida pela criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). O Plano Integrado de Saúde Mental (1978) é estabelecido, prevendo a formação das primeiras equipes multiprofissionais de saúde mental nas coordenações estaduais de saúde. Ele visou a formação de médicos generalistas para atender à clientela da saúde mental e o estímulo à formação de equipes ambulatoriais multiprofissionais de saúde mental. Estas medidas foram adotadas no estado do Rio Grande do Sul através de um programa de treinamento de médicos generalistas do interior do estado, denominado de programa de interiorização, visando prepará-los ao atendimento de pessoas com transtorno mental (Faria, 1981). Também se realizaram capacitações para os demais profissionais do estado para identificação de pessoas com transtornos mentais e propiciar o atendimento das crises agudas, dos egressos dos hospitais e daqueles com indicação de internação por ação policial. Esta ação propiciou a realização do programa de setorização no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em 1973, quando os seus internos foram agrupados conforme sua região no estado, substituindo o critério adotado até então de distribuição dos pacientes em unidades de atendimento por diagnóstico psiquiátrico. O objetivo destas ações foi reduzir o número de internos no hospital, integrando as ações das equipes de saúde das regionais da Secretaria da Saúde com as das unidades de internação do HPSP, de modo a facilitar a localização dos familiares e/ou responsáveis pelos pacientes institucionalizados e propiciar o retorno destes na ocasião de alta. Estas medidas de desospitalização do HPSP (Dias, 2007) foram resultados concretos de uma pioneira organização estatal da política de saúde mental na época, pois pela primeira vez foi formada uma instância responsável pelo planejamento e gestão das ações na área. Em 1972, foi criada a Equipe Central de Saúde Mental na Secretaria de Saúde, que dirigiu um conjunto de ações na condução de mudanças requeridas, considerando que pela primeira vez o programa de saúde mental foi incluído entre as prioridades de governo na área da saúde (Faria, 1981). Desta forma, o programa de setorização e de qualificação de profissionais, na lógica da regionalização, resultou na gradativa diminuição de pacientes internados no HPSP, passando de 5.000 a 1.915 pacientes internados, no final do período do regime militar. No âmbito da política de saúde estadual, foi sancionada a Lei nº. 6.503 em 1972, instituindo o novo Código Sanitário, que anunciava a realização de convênios com instituições psiquiátricas 263 privadas e o estímulo à e organização de instituições públicas ou privadas para a assistência psiquiátrica e social ao portador de transtorno mental e sua família. O consolidado na Lei refletia o momento histórico de forte investimento no setor de saúde mental, considerando que a oferta de serviços de saúde, financiados pela previdência social, foi uma relevante estratégia de relação entre o governo militar, através de seus representantes no solo gaúcho, e a sociedade. No ano de 1971 já existiam 80.000 leitos psiquiátricos no Brasil (Alves, 1992; Costa, 2002). O fenômeno da superlotação continuava no hospital, e as características e condições de sua população institucionalizada eram as seguintes: 61,7% dos pacientes na faixa etária mais produtiva, de 25 a 55 anos de idade; 63,7% sem necessidade de internação; 73,4% sem vínculo previdenciário; 55,5% eram mulheres; 42,3% com mais de 10 anos de internação, e 39% deles sem família localizada, entre estes, 47% sem necessidade de internação, ou seja, o retrato da exclusão e segregação, reforçando a função social dos hospitais psiquiátricos (Dias, 2007). Este era o cenário da política de saúde mental, condição esta que produziu críticas e propostas de mudanças na década posterior. E, como “[...] todos sabemos, o sistema socioeconômico determina as modalidades de tratamento em diferentes níveis. No momento brasileiro atual, a estes pacientes de nível socioeconômico baixo a sociedade só reserva a modalidade asilo” (Contel, 1981, p. 187). Na metade dos anos 1980 o país viveu um importante processo de mudança no campo político, com o fim da ditadura militar e a instauração do regime democrático, com eleição indireta para presidente da república, apesar de toda a mobilização pelas Diretas Já. O ano de 1987 é um marco no setor da saúde, com a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) no estado do Rio Grande do Sul, cujas diretrizes assumidas pelo convênio estavam alicerçadas nos princípios constituídos pelo movimento da Reforma Sanitária, como universalização, integralidade, regionalização e descentralização das ações de saúde. A composição política constituída no governo no período de 1987 a 1990 criou as condições para a formação de uma política de saúde mental orientada pelos princípios da reforma sanitária. A gestão teve a marca de assumir politicamente a defesa dos preceitos da reforma psiquiátrica, numa crítica ao modelo hospitalocêntrico e manicomial adotado até então. As estratégias na condução da política de saúde mental foram de redistribuição do poder, resgate da cidadania do doente mental e socialização do saber. Esta nova perspectiva de conduzir e pensar a saúde mental no estado marcou significativamente a história do setor, imprimindo um debate participativo, com a estratégia principal da formação e qualificação profissional. Uma ação articulada entre a gestão e o Conselho Estadual de Saúde aprovaram a Resolução que inclui leitos psiquiátricos nos novos contratos e convênios da Secretaria da Saúde com hospitais gerais, com a ênfase à saúde mental a ser contemplada nos projetos de municipalização. No início do período, 264 existiam 27 municípios com atendimento em saúde mental, e em julho de 1990, o estado tinha 333 municípios, e destes, 101 com ações/serviços de atenção em saúde mental (Rio Grande do Sul, 1990). Na gestão do Hospital Psiquiátrico São Pedro instalou-se o movimento pela transformação da instituição, que tornou-se pública durante a realização da VII Semana de Estudos com o tema “Por uma Sociedade sem Manicômios”, com a divulgação dos direitos dos doentes mentais e expressivas manifestações na sociedade local, com ampla repercussão pela mídia da época e adesão de forças políticas gaúchas. Esta possibilidade histórica produziu e foi produzida pelo movimento gaúcho de saúde mental, defensor da luta antimanicomial e autor da lei de reforma psiquiátrica, aprovada na década seguinte no estado Assim, conclui-se que o período estudado revelou mudanças significativas na gestão do sistema de saúde, com a instalação da descentralização do âmbito federal para o estadual. Ao mesmo tempo, foi uma época revolucionária quanto à mudança de concepção sobre a forma da atenção na saúde mental, marcando a passagem para uma nova perspectiva pautada na noção de cidadania das pessoas com transtorno mental. Verificou-se alguns pressupostos fundamentais para a análise do setor saúde, destacando entre eles: a visão do Estado sobre a contribuição estratégica do setor tanto na reprodução das condições de vida das classes de trabalhadores, quanto para o desenvolvimento da nação; conceitos teóricos como o higienismo e a noção liberal da medicina, e, por conseguinte, a histórica fragmentação entre saúde coletiva e atendimento médico individualizado como a ênfase dos interesses do mercado no setor. A interconexão de interesses do capitalismo mundializado também fica evidente pelas diferentes formas de orientação através dos organismos multilaterais. Pode-se dizer que estas orientações marcaram definitivamente a política de saúde, como a ênfase ora na hospitalização, ora na atenção primária, com destaque na saúde mental. Estas características vão fundar e constituir as políticas de saúde e saúde mental no Brasil, influenciando o momento seguinte, quando ambas passam por processos de reforma. Ao mesmo tempo, como reação a esta lógica mercantil e centralizadora da saúde e do modelo hospitalocêntrico e manicomial na saúde mental, vários segmentos profissionais e forças no legislativo começam a se organizar, realizando um profícuo debate e gerando novos patamares conceituais, marcando o período seguinte da trajetória brasileira no campo da saúde e da saúde mental. 265 Referências Alves, D. S. N. et al. (1992). Elementos para uma Análise da Assistência em Saúde Mental no Brasil. Em 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental, anais (p. 46-59). Brasília, Ministério da Saúde. Cerqueira, L. (1984). 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Ele diz: ”Dedico este livro à memória de uma mulher maya, devorada pelos cães.” Logo depois Todorov explica o sentido do assunto e da dedicatória: “Eu quero falar da descoberta que o Eu fiz do Outro. Nós podemos descobrir os Outros em nós mesmos, dar-se conta que cada um de nós não é uma substância homogênea e que não è radicalmente estranho a tudo que não coincide com o Eu. O Eu è um Outro e os Outros são o Eu. Posso conceber estes Outros como uma abstração ou com relação a mim ou como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode ser interno à sociedade (as mulheres por os homens, os ricos por os pobres, os loucos por os “normais” )ou pode ser externo, como por exemplo, uma outra sociedade...” Entre numerosas narrações, Todorov explica que escolheu a conquista da America, porque a descoberta da America, ou melhor, dos americanos, constituiu o encontro mais extraordinário da nossa história. Representou um verdadeiro sentimento de (alteridade) radical que nunca antes aconteceu, na descoberta de outras sociedades. “Uma mulher maya morreu devorada pelos cães – prossegue Todorov – nesta história concentra-se uma das hipóteses extremas da relação com o Outro. O esposo, de quem ela è o Outro interior, não oferece-lhe nenhuma possibilidade de se impor como sujeito livre e priva a esposa da própria liberdade. Esta mulher não è outro que o lugar onde se enfrentam os desejos e as vontades de dois homens; o poder deles è matar e estuprar as mulheres. Mas è a própria alteridade cultural que resolve o drama: a mulher maya não è estuprada, como poderia acontecer à uma mulher espanhola em tempo de guerra, ela foi servida de comida aos cães, porque ela era uma mulher não subserviente e índia...” A contar da conquista da America e durante 400 anos, a “civilização” ocidental tem buscado matar ou assimilar o Outro, tentando fazer desaparecer a alteridade. A sua modalidade de vida e os seus valores – econômicos, culturais, ideológicos – difundiram-se em todo o mundo. A idéia da sua superioridade procriou o racismo, até à escravidão, ao holocausto, aos lager, aos gulag, procriou as guerras para impor a própria idéia de democracia e ordem, procriou a criminalização dos dissidentes. “È superficial 83 Conferência de abertura proferida por ocasião do I Encontro de Pesquisadores em História de Saúde Mental (Florianópolis, agosto 2011). 269 – diz Todorov – se contentar em condenar os maus conquistadores e ter dó dos bons índios, como se fosse adequado não se identificar com o mal para combatê-lo. Nós somos diferentes dos conquistadores, mas somos também lhes somos semelhantes: não estamos certos que não comportando-nos como eles, não imitaremos, adaptando-nos às novas circunstâncias...” Esta idéia da superioridade de um Eu poderoso, cujo olhar não reconhece o Outro, è a idéia que Michel Foucault encontra ao fazer uma história da loucura. Foucault descobre que há um gesto de exclusão na construção do pensamento moderno. Fica evidente a ligação entre o nascimento da “razão” cartesiana e a exclusão da loucura, revela como a certeza da nossa civilidade tinha a ver com a delimitação da normalidade com respeito à irracionalidade: uma relação conflituosa de exclusão/ complementaridade entre a não razão e o sistema de valores éticos, afetivos e religiosos, definido como categoria da normalidade. “O meu estudo – diz Foucault – pretende reconstruir a decisão que, ao mesmo tempo, une e separa razão e loucura, pretende descobrir e buscar a troca perpétua, a obscura raiz comum, o encontro originário que confere sentido tanto à unidade quanto à oposição entre o senso e o não senso...”. Foucault afronta o monólogo da razão e escreve a história da loucura, descreve o grande internamento dos marginais na epoca do Renascimento e identifica o início da psiquiatria moderna em 1792, quando se impôs um novo paradigma – o paradigma da “objetividade/ do olhar puro e rigoroso”. Utilizo a palavra “paradígma” no sentido do físico Thomas Kuhn, que, em 1962, publicou o seu livro “A estrutura das revoluções científicas”. Kuhn descreve algumas mudanças, as mais clamorosas, na história das descobertas científicas: na astronomia, na física, na química. Kuhn põe em discussão radicalmente a confiança na evolução unilinear das ciências; critica a “ciência normal”- a atividade científica e os resultados (teóricos e práticos) sobre os quais concorda a comunidade dos cientistas duma disciplina. Kuhn emprega o conceito de “paradigma” em dois diferentes sentidos. O primeiro designa um cunho disciplinar: o conjunto das técnicas, modelos, valores ao qual aderem os membros de uma comunidade científica (a ciência normal). O segundo designa um particular elemento exemplar (“As Principias de Newton”, o “Almagesto” de Tolomeo). Neste caso, o paradigma é um exemplo, que através sua repetitividade é capaz de modelar o comportamento e as práticas dos cientistas. Como critério de cientificidade, o paradigma sucede às regras; a específica lógica do exemplo sucede a lógica da lei. Então, a grande cena instituidora do paradigma da psiquiatria – “o paradigma da objetividade/ do olhar puro e rigoroso do alienista”- ocorre em 1792 . Esta cena é descrita por parte de Michel Foucault no seu livro “Historia da Loucura na Época Clássica” e é pintada pelo famoso pintor, Jacques-Louis David. No quadro se pode ver Pinel, o médico de Napoleão, que está em Bicétre, um dos hospícios de Paris e que liberta as mulheres loucas amarradas. As loucas exprimem reconhecimento e começam a curar-se. Assim inicia a disciplina psiquiátrica. Quando Pinel liberta os loucos estabelece entre libertador e libertados uma espécie de dívida de reconhecimento que deverá ser saldada por duas modalidades. Em primeiro lugar, a violência selvagem do corpo amarrado, barrado com correntes, será substituída por uma submissão constante de uma vontade a uma outra vontade. Em segundo lugar, a dívida poderá ser anulada com a cura, com a terapia do louco, o melhor, com o conceito de doença que o louco deverá reconhecer em si mesmo. No entanto, esta cena de libertação não è só suscitada por princípios morais e filantrópicos. Representa a transformação de uma arcaica relação de poder baseada na violência física, em uma moderna relação de poder, quer dizer em um novo paradigma de sujeição, submissão, psicológica e moral do Eu do doente, mais apropriado à lógica do estado liberal. 270 Vale a pena observar como o novo paradigma se origina em um momento histórico de importante mudança social – na época da revolução francesa. Neste caso, os acontecimentos políticos influem nas decisões científicas, mas o novo poder também precisa deste novo paradigma para ser legitimado. O hospital psiquiátrico torna-se o símbolo, o monumento onde se exercerá o pacto de aliança entre loucos e psiquiatras: o louco se transforma em doente e o alienista se torna psiquiatra. Quando um antigo paradigma é substituído por um novo, origina-se uma revolução científica. Mas uma nova teoria não é, em si mesma, um acréscimo ao conhecido: ela exige uma nova avaliação dos eventos observados e raramente é conduzida a termo por parte de um único indivíduo e em curto prazo. A comunidade científica – no pensamento de Kuhn - procura assimilar as novas descobertas através da “depuração do paradigma”, para não provocar a crise das crenças compartilhadas. Inicia-se um processo dialético entre racionalização e mudança, que, às vezes, representa (como no caso da desinstitucionalização) um processo entre modernização e democratização. Neste processo “a ciência normal” se opõe á introdução do novo. É uma ciência acumulativa que obtém seu êxito por habilidade dos cientistas em escolher assuntos que podem ser resolvidos com técnicas, conceptuais e instrumentais, relacionadas àquelas que já existiam. No âmbito profissional, constitui um exemplo de depuração ou “escamotage” de Esquirol (em 1821) na intenção de resolver a contradição de tolerância da cidade belga de Geel: Esquirol institui as colônias rurais no interior dos manicômios, utilizando técnicas conceptuais que mantêm e consolidam o paradigma do internamento. No âmbito social e econômico busca a convergência entre a ideologia psiquiátrica e os interesses do poder político. Pode-se descobrir este emaranhamento de interesses e conflitos, por exemplo, na construção dos hospitais psiquiátricos na Europa, no fim do século XVIII. Nestas construções foi posta à prova a convergência dos interesses administrativos, comerciais, profissionais (e vocês podem refletir, aqui, sobre a importância similar que, no Brasil, teve, por parte do poder militar, o favorecimento, nos anos 70, do crescimento dos hospitais psiquiátricos privados conveniados, que constituíram recurso econômico e eleitoral para o regime!). Mas ainda mais pode-se ver o emaranhamento de interesses políticos na primeira lei psiquiátrica – a lei francesa do 1838 – que vai criar, por intervenção de Esquirol, uma forte aliança com o poder judiciário. Desde aquele momento a psiquiatria junta-se ao modelo carcerário e provoca a propensão irresistível em decretar como psiquiátrico qualquer gesto agressivo das pessoas. Assim a consolidação do paradigma – a chamada limpeza – desenvolve-se no decurso do século XIX e no início do século XX: é a época de transição do paradigma. O seu fortalecimento e mesmo a sua desnaturalização se realiza na época dos fascismos, quando surgem as terapia de shock e os doentes são inscritos no registro criminal, na Itália, e não mais considerados como cidadãos e por isso eliminados, na Alemanha nazista (o tristemente célebre projeto T4). O paradigma psiquiátrico, como necessidade de internar, em espaços disciplinados, de usar diagnósticos e técnicas de controle dos comportamentos, chega a ser predominante: na década de 50, o número dos internados nos hospitais psiquiátricos chega ao auge na Europa e nos Estados Unidos. A descoberta dos psicofármacos e a utilização deles, nos anos 50, não mudam a prática da psiquiatria asilar; fortificam, ao contrario, o paradigma do internamento com a necessidade de refinar e ampliar o modelo classificador das doenças. O que começa a reduzir a incontestabilidade do manicômio são mudanças econômicas, culturais e sociais: nas décadas de 50 e 60, cresce a sensibilidade coletiva na defesa dos direitos dos marginais e 271 dos diferentes. A luta para os direitos civís no Sul da EUA apaixona o mundo inteiro. Quando Billie Holiday canta “Strange Fruit” e denúncia o racismo da Ku Klu Klan que enforca os pretos nos árvores, as suas palavras fazem arrepiar e comover, mas, sobretudo, representam uma nova página na historia da emancipação: “As árvores do sul produzem frutos estranhos, sangue nas folhas, sangue nas raízes, um corpo preto que ondula na brisa do sul...” Pouco depois o movimento feminista releva como na dialética entre o Eu e o Outro exista na realidade a exclusão de gênero. A consciência desta mistificação gera conflitos, mas muda a percepção do Eu, seja o da mulher, que o do homem. Che Guevara entusiasma com as suas palavras: “O principio que nos governa é sentir no mais fundo do nosso coração qualquer injúria contra qualquer um, em qualquer lugar do mundo.” E os jovens estudantes no 1968, declaram “I’m care”: qualquer injustiça nós toca e impõe o nosso envolvimento. O sonho de uma vida melhor e a esperança em uma transformação radical dos estudantes oferece dignidade aos outros oprimidos. Mas talvez a mudança maior na dialética dos sujeitos tenha sido trazida por um modesto advogado da Índia. O Mahatma Gandhi demonstra a força revolucionária do conceito da não violência: Demonstra ao opressor a fragilidade dos seus pretextos e muda a unidirecionalidade da relação interpessoal. No âmbito especifico da saúde mental, no entanto, surgem algumas inovações: a política dos “Community Mental Health Centres” nos Estados Unidos, a “Psicotherapie institutionelle” e a organização do “Sector” na França, o uso da psicoterapia das psicoses, o pensamento fenomenológico existencial. Iniciam práticas críticas que recusam as contenções, o uso dos elettroshocks, o abuso dos psicofármacos: um exemplo luminoso é a prática de Nise da Silveira no Brasil. Mas dois serão os elementos determinantes para a mudança do paradigma. Primeiramente, a união político-cultural entre as práticas críticas e as lutas anti-autoritárias dos estudantes, dos operários, das mulheres nos anos 60 (no mítico 1968). Como segundo elemento, a capacidade dos inovadores em forçar a interpretação das antigas regras, transformando contemporaneamente a realidade das instituições, quebrando as barreiras físicas, psicológicas, culturais; como não é possível aceitar a separação das verdades, entre o escrito e o pensamento de um lado e uma prática inumana e imutável de outro. “Psiquiatria Democrática” na Itália demonstrou a possibilidade de mudar a relação entre o psiquiatra e o usuário e sobretudo a condição do doente, ainda aproveitando da velha lei. Esta atitude se demonstrou um recurso fundamental para ultrapassar a idéia da psiquiatria como repressão e controle dos comportamentos. Com a lei de reforma italiana de maio 1978, è sancionado o fim dos hospitais psiquiátricos. A conseqüente idéia de “uma sociedade sem manicômios” representa uma revolução científica: é a substituição do paradigma “da objetivação e do internamento” com um novo paradigma. O pensamento e a pratica de Franco Basaglia constituem o exemplo paradigmático da mudança. A grande cena instituidora do novo paradigma – que eu chamo o paradigma da “subjetividade/ do olhar-se na reciprocidade”- se depara perante os nossos olhos, antes da lei, se depara no mês de fevereiro do ano 1966: é a primeira assembléia geral no hospital psiquiátrico em Gorizia, dirigida por Franco Basaglia. Estamos na sala do jantar da Secção “B” feminina, à tarde. Os internados chegam em grupos de outras secções, atravessaram o parque coberto de neve. Há um murmurinho, mas há também muita tensão. Na mesa da presidência estão sentados os internados, enquanto os psiquiatras – Basaglia, Slavich, Casagrande, Pirella, Jervis, Schittar - e os enfermeiros (alguns deles ainda com a bata do 272 hospital) escutam na sala e, para falar, devem pedir a palavra. Estão presentes [os internados] Giovanna, Furio, Miklus, Carla, Margherita que as vezes solta um grito, mas è atenta e olha com curiosidade. Depois de um pouco de hesitação, Mario [um dos internos] è nomeado presidente da assembléia. Mario faz a lista dos temas das próximas assembléias. Este encontro já não è a comunidade terapêutica: não há regras, nem há tema proibido ou interpretações. Os loucos se reapropriaram do direito da palavra, eles decidem a organização da vida no hospital, falam da própria loucura, compreendem a própria historia e as suas contradições, reconhecem os próprios direitos. A psiquiatria encontra-se exposta: uma falha (ou fissura) é aberta na intercessão entre o poder e o saber, entre a prática e a teoria. A loucura começa a colocar sua própria voz diante da sociedade: nas assembléias, nos teatros, nas residências pós manicômio, nas cooperativas de inserção laborativa. Afirma-se uma nova presença: aquela do gesto louco, não mais insensato ou vão, mas dotado de sentido. Derruba-se a visão de um mundo onde estava ausente a diversidade; sobre a cena da vida não há mais o sadio ou o doente, existem apenas os sujeitos em sua concretude existencial. A revolução epistemológica, que acompanha a morte do manicômio, reside, paradoxalmente, na possibilidade de mudar a direção do olhar. O que é importante não é olhar; é importante deixar-se olhar, afirmar a reciprocidade, declarar-se juntos no palco da vida, abrir-se à dialética. Deixar-se olhar significa despedir-se do eu poderoso do alienista (“a lógica forte do observador puro e rigoroso”), renunciar, para sempre, à sua solidez e a seu peso. Para Sartre a percepção do Outro – base de todo conhecimento – é a possibilidade de ser visto por este Outro: perceber não é só recolher um objeto; é, sobretudo, dar-se conta de estar sendo olhado. O observador, na psiquiatria, reintegra-se na observação e o observado escapa do conceito de objeto e de “não razão”. Sua diversidade é um valor, o conflito é uma potencialidade inovadora, a desordem é pressuposto do ato criativo, a negação é virtude. Existem dois caminhos que, desde seu inicio, não mais se cruzaram: o pensamento da loucura e a prática da doença mental. Basaglia, primeiramente, examina ambos e o faz para dar voz ao “balbucio” da loucura e impor o silêncio à ciência. A doença mental é colocada entre parênteses para poder dar voz a quem não tem voz, para fazer falar a loucura. É em ato um processo dialético entre racionalização e mudança ou, melhor, entre modernização e democratização. A mudança é uma ruptura epistemológica com o passado (é a aceitação do novo paradigma). A transformação é uma tentativa de manter o antigo paradigma, fingindo responder a novos assuntos com técnicas conceptuais e instrumentais antigas. A transformação inspira-se em modelos de modernização, de eficiência, de medição só quantitativa. Um exemplo de transformação é a produção de cronicidade: tudo aquele que não é resolvido no âmbito do pressuposto standard é rejeitado, delegado a outras agências. “O manicômio tem sua razão de ser- diz Basaglia nas “Conferências Brasileiras - porque torna racional o irracional. Quando qualquer um fica louco e entra no manicômio, deixa de ser louco para transformar-se em doente. Torna-se racional enquanto doente. O problema é como desfazer este nó, superar a loucura institucional e reconhecer a loucura lá onde ela teve origem, como se diz, na vida.”. A crítica basagliana se reconduz à tradição do Iluminismo, à Kant, à Escola de Frankfurt. Negar o internamento psiquiátrico significa negar o absoluto do conceito de objetividade e de cientificidade da cultura ocidental e ao mesmo tempo reconhecer na organização institucional um elemento determinante, não natural, de definição do conhecimento e da produção da realidade. A psiquiatria de 273 fato è simplesmente a expressão médica de uma forma de pensar, segundo as categorias de inclusão ou de exclusão. È uma lógica que se torna manifesta no internamento, mas que penetra profundamente o social através da capacidade de criar vigilância e autovigilância. O pensamento de Basaglia se desenvolve dentro de uma cultura européia, rica e entrelaçada. Nele reconhecemos a antropologia fenomenológica, a daseinanalyse, o existencialismo e o estruturalismo. Em particular Basaglia parte da oportunidade fenomenológica de exprimir a própria subjetividade e prossegue com a conseqüente abolição da distinção normativa entre são e doente, até subverter a noção de norma. Do existencialismo compartilha a aspiração de avançar, para além da própria má-fé ou inautenticidade, em direção à conquista de uma liberdade que è consciência da própria história e da do Outro. Em geral o pensamento de Basaglia remete às reflexões de E. Husserl, K. Jaspers, E. Minkwski, J.P. Sartre, M. Merleau-Ponty, M. Foucault, mas também encontramos referências a A. Artaud, E. Goffman, R. Laing e sobretudo a W.Benjamin, T.Kuhn, A.Gramsci e Ivan Illich. Deste último autor, Basaglia aprecia o requisitório contra a transformação da atividade humana em mercadorias, produzidas em série, aprecia a procura duma técnica de formação democrática e de um estilo de vida simples. Mas para evidenciar a grande envergadura revolucionária na relação do Eu com o Outro, realizada pelo movimento basagliano, não podemos não pensar em Franz Fanon, psiquiatra, intelectual, militante revolucionário do Frente de Libertação Nacional na guerra pela independência da Argélia. Basaglia e Fanon têm em comum a indignação contra a discriminação, seja manicomial, por um, ou racial, por outro. Os dois lutam diariamente contra cada forma de opressão e violência, para impedir que as diversidades naturais ou históricas podem tornar-se desigualidades sociais. Fanon põe em evidência como a experiência da vergonha e da dessubjetivação do olhar racista, de alto para baixo, que congela o Outro no desumano, o condena à passividade, à invisibilidade. O preto – segundo a antropologia lombrosiana – fica culpado: culpado de não ser branco. A ruptura basagliana do paradigma da objetivação, através da crítica à pseudocientificidade da psiquiatria, deve muito à Goffman e Foucault. Mas è à Fanon que Basaglia dedica as últimas páginas da “ A Instituição Negada”, nas quais menciona a carta de demissão de Fanon da hospital psiquiátrico de Blida-Joinville em 1956. Para Basaglia, Fanon è o modelo de autodestruição do Eu forte e rigoroso, do sujeito do conhecimento, e da sua reconstrução como testemunha da condição de exclusão, de opressão, de colonização do doente mental. “Franz Fanon – diz Basaglia – tem seguido o inteiro iter institucional que o sistema lhe permitia: de brilhante psiquiatra comprometido na experiência reformadora em Saint-Alban, junto com Tosquelles, à psiquiatra de cor para doentes de cor em Paris e depois na Alger [Algéria], na época da guerra de libertação”. Naquele momento Fanon compreende que a relação entre o médico e o doente – tal como a relação entre o branco e o preto, entre quem detém o poder e que não o detém, em geral entre um Eu e um Outro – era sempre uma relação institucional, onde as listas já tinham sido definidas pelo sistema. “A psiquiatria – diz Basaglia – è conivente com o poder, seja quando aperfeiçoa a separação entre o louco e a sociedade, seja quando o restitua, readaptado, ao sistema...” Se as relações são sempre relações do poder, não è possível fazer outra coisa senão restabelecer uma margem de liberdade sem a qual não existe transformação. Esta liberdade gera reciprocidade, nega o princípio da hierarquia autoritária, pode transformar as consciências, chegar ao reconhecimento do Outro. Para Fanon, o reconhecimento significa o desaparecimento da colonização, mas também o desaparecimento do colonizado. Matar o racismo significa que o preto tem de matar o branco que vive 274 dentro dele e que o branco mesmo tem de matar o que em ele o desumaniza. Basaglia também persegue a injúria contra o homem que há em nós (como se expressa Fanon no ”Os malditos da terra”) e a sua prática é avessa ao reformismo e chega a ser ação revolucionária. A nossa experiência em Gorizia ( e depois em Trieste e em todo os outros lugares de libertação) de fato não surgiu só por uma preocupação humanitária, reconheceu sobretudo a necessidade de um gesto intelectual capaz de libertar uma lúcida paixão cognoscitiva, baseada na crítica e na contradição: um gesto no terreno da consistência da cotidianidade, mais autêntico da ciência com a sua pressuposta neutralidade. Basaglia, seja claro, não recusa a ciência, detesta só as suas veleidades de invadir a vida, de solucionar o problema da existência, tornando absolutas as próprias específicas premissas à todo o campo do conhecimento. No início da sua direção em Gorizia, Basaglia estava desanimado: aquele lugar era até pior do o cárcere, onde ele, jovem antifascista, foi preso na época da guerra. Basaglia não quer ser carcereiro, quer voltar para Universidade, mas a indignação prevalece e com ela a coragem da luta. Para sobreviver Basaglia e Fanon, e nós com eles, tiveram que estranhar-se e olhar de um ponto de observação outro e diferente do normal, foram obrigados a olhar os Outros com os olhos de estrangeiro, quer dizer, da pessoa que renuncia aos privilégios de quem pertence à classe dominante. Ficar do lado dos últimos não è fácil, não permite mistificação e má-fé, significa aceitar uma situação de luta dura e permanente. Mas o conflito mantém abertas as contradições deslocando-as para um nível maior, porta à recusa de cada paternalismo terapêutico, pode significar a contestação mesma do úsuario contra o seu libertador: nenhuma identidade pode ser dada como prenda, nenhum poder pode ser oferecido: o poder da autonomia tem que ser conquistado. Não è o opressor que pode dar a liberdade, è o sujeito mesmo que tem conquistar a própria liberdade. Existe um momento que simbolicamente aproxima a experiência de Fanon com a experiência de Gorizia. Em 1956 Fanon apresenta a sua demissão do hospital psiquiátrico de Blida e escreve uma carta famosa sobre o perigo da mistificação terapêutica e a necessidade da luta revolucionaria. Em 1972 nós, os psiquiatras da equipe em Gorizia, resolvemos dar alta, no mesmo dia, a todos os internados do hospital, depois apresentamos nossas demissões e nos dirigimos, com uma carta, aos usuários para explicar as motivações do gesto. Naquela época os políticos e os administradores da cidade não queriam que a nossa experiência saísse para fora do hospital, não queriam abrir Caps na comunidade. As duas cartas representam o ponto de chegada, político e técnico, mas também o ponto de saída. Para Fanon “...A psiquiatria como técnica médica é incapaz de operar como modalidade não mistificadora, no interior da situação colonial”. A transformação não pode se realizar fora da luta revolucionária, ela tem que manifestar-se com mecanismos psíquicos novos. Para nós, ao contrario, a revolução consistia na capacidade de ser radicalmente reformadores e absolutamente não violentos, em antagonismo à violência institucional. Naquele dia estávamos tristes. Na realidade apresentamos nossas demissões, só para antecipar a repressão do poder político. O nosso futuro era incerto (na realidade teremos nos espalhando em novas experiências mais radicais, em Trieste, em Arezzo, em Ferrara e em outros, tantos novos lugares de libertação), o que era mais incerto era o futuro dos usuários. Os enfermeiros estavam calados. Giovanna tinha os olhos brilhantes de choro, Margherita tinha ficado no seu quarto. Só poucos tinham a possibilidade econômica de sair do hospital. “...Este último gesto – foram as nossas palavras naquela última assembléia geral – que 275 afasta-nos do hospital è a prova coerente da recusa de sofrer os limites estabelecidos do exterior que deteriorariam a nossa, a vossa, emancipação... No momento que deixamos-os, estamos serenos mesmo que aflitos, porque sabemos que o que fizemos juntos é seu e ninguém poderá destruir. Além disso, estamos certos que todos vocês, usuários e enfermeiros, estão em condições de prosseguir a sua e a nossa luta, sabendo que nós estaremos em alguns lugares, mas lutando sempre pelas mesmas coisas: defender todos os homens, todos os Outros, e não só nós mesmos...” Mas daquela despedida brotarão outros encontros e outras lutas em outras cidades e em outros países. Para mim haveria a grande festa da saída de “Marco Cavallo” e a abertura do primeiro Caps em Trieste em 1975 e depois a inauguração da “Cà del Vento”, a primeira residência autogerida pelo usuários em Imola, ou a cerimônia do “Sal e Árvores”, quando, fechando o manicômio, derramamos sal no hospital e plantamos árvores nas novas residências, ou os eventos da “Cidade Reabilidada”, sempre em Imola, quando o que contava era precisamente a reciprocidade do olhar entre os loucos e a criança, ou entre os usuários e as donas da casa, ou outros cidadãos e quando todo isso acontecia nas praças, nas ruas, nos teatros da cidade. E depois haverá, para mim, a extraordinária experiência da assessoria da OPAS, acompanhando, desde o início, a reforma da saúde mental no Brasil. Naquele mesmo país, de quem eu falava com Basaglia, à noite, em seu apartamento em Trieste. Era o 1979, Basaglia estava voltando para o Brasil pela segunda vez, e eu estava para partir para Moçambique e, os dois, tentávamos aprender juntos o português. Basaglia estava admirado, entusiasmado pelos brasileiros. Sem duvida naqueles dias o Brasil estava saindo da ditadura, tinha fome de democracia e Franco estava em condições de oferecer sonhos e a consistência de uma pratica de mudança. Chegava no momento oportuno, mas havia também outras explicações por este enamoramento recíproco entre Basaglia e o Brasil. Uma delas revia exatamente com este assunto da dialética entre o Eu e o Outro. Basaglia me falava desta alegria de vida, deste olhar direto dos brasileiros, da ausência de uma modalidade formal na conversa (na declinação do verbo existia só o “você” e não três diferentes modalidade para se dirigir ao outro, como na língua italiana), falava da diferente “proxemica” na relações: o corpo do Outro era mais próximo, os contatos físicos mais espontâneos e fáceis. Basaglia admirava a capacidade de sonhar e a vontade de mudança dos brasileiros. Posteriormente, eu teria aprendido que esta vontade de utopia não derivava só da evidência das contradições sociais e da necessidade de justiça, mas também da própria história do país. Uma história que tinha mantido sempre aberta a dialética entre opressão e liberdade, desde o conflito com os índios, na época da escravidão, até o das imigrações. Um país multiétnico, que teve a coragem de defender e exaltar a mestiçagem; um país que teve a sorte de não estar envolvido na tragédia das guerras mundiais, quando na Europa se criou aquele estilo de alteridade nacionalista, baseada na mitologia do combate, na audácia, na hostilidade contra os estrangeiros. Há personagens, há gestos que permitem entrever na história do Brasil o desenvolvimento de uma cultura de tolerância e do direito: Joaquim Nabucco de Araújo, e André Rebouças que lutam apaixonadamente contra a escravidão, Abdias do Nascimento que defende a cultura da igualdade para afrodescendentes, Manuel Raimundo Querino na sua luta contra as perseguições dos praticantes das religiões afro-brasileiras e contra as idéias preconceituosas da ciência de Nina Rodrigues, Paulo Freire através da insuperável “Pedagogia do Oprimido”. E ainda mais o valor de testemunha de Dom Helder Pessoa Câmara, de Chico Mendes e o coragem de Alfonso Henrique de Lima Barreto em assumir sua diversidade contra a academia da literatura ou a extraordinária singularidade estética e teatral de Corpo-Santo. Penso em Nise da Silveira, que, desde a sua tese inaugural em medicina em 1926 (“Ensaio sobre a Criminalidade da mulher no Brasil”), decidiu ficar do lado das pessoas que se encontravam fora das normas e que jà mostrava-se discordante do clima político da época; aquele clima que era a favor da eugenia e contra as pessoas “taradas”, como proclamava Rodrigues Caldas, diretor da instituição psiquiátrica em Salvador. Penso enfim nas palavras tocantes de Machado de Assis (ele, neto de escravos), que descreve o dia do fim da escravidão: “Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 276 1888...todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos...Todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente foi o único dia de delirio público que me lembro de ter visto...” Por isso parece lógica a entusiástica adesão dos brasileiros à luta antimanicomial e ao pensamento de Franco Basaglia, porque Basaglia tem revelado, no vínculo do manicômio, as regras de um jogo – o jogo do poder - que, com modalidades e intensidades diferentes, se reproduz em outras realidades sociais ou institucionais (na escola, na saúde, nos lugares do trabalho), um poder a quem a ciência é frequentemente submetida. Mas o caminho da humanidade para a sua libertação não è linear: há vitórias, mas há também retrocessos e derrotas. Depois do 11 setembro 2001 e depois do triunfo do neoliberalismo e do mercado, estamos numa guerra total. A guerra è externa, com as suas crueldades e ferocidades no Iraque, no Afeganistão, na África, nos países árabes. Mas a guerra è também interna no interior da sociedade e das instituições, levadas pela especulação financeira, pela destruição do welfare state, pelo ataque ao ecosistema do planeta. Esta guerra interna assume ainda uma cara belicista, como na ideologia dos terroristas ou dos racistas, ou dos narcotraficantes (como no México), ou no rechaço dos migrantes na Europa, mas tem também uma cara menos vistosa, mas igualmente perigosa: a cara da perda do ethos público, da solidariedade ativa, da esperança na possibilidade de mudança, acostuma-se à injustiça, é homologada ao gossip, à ficção, à exaltação do sucesso e do direito do mais forte. A reforma na saúde mental não depende só da organização, do numero dos Caps, da quantidade de recursos, depende, sobretudo da capacidade de manter sempre aquele olhar de reciprocidade entre os sujeitos, de se manter estrangeiros ao pensamento dominante. Paradoxalmente, porém, hoje, não è essencial a contraposição das alteridades (entre o Eu e o Outro), porque as diversidades parecem ter conseguido um amplo reconhecimento social. Hoje è crucial o reconhecimento da desigualdade que acompanha a diversidade - reconhecimento e luta que necessitam de um envolvimento pessoal direto, imediato, para corrigir a injustiça: temos que corrigir nós mesmos. A verdadeira revolução è a revolução da nossa cotidianidade! A história exemplar da conquista da America ensina que a civilização ocidental venceu os índios graças à superioridade militar e à superioridade cultural na comunicação entre homens, mas ensina que esta superioridade se impôs à custa da comunicação com a natureza e com o destino da humanidade. Os europeus favoreceram a troca entre homens, os índios favoreceram a troca com a natureza. Mas nenhum dos dois era, e ainda è, intrinsecamente superior à outro: precisamos de ambos. Ter consciência da relatividade, e por isso da arbitrariedade, da nossa cultura, da nossa ideologia, dos nossos valores significa já nos modificar um pouco. A história (e não a ciência) não è mais que uma série de tais imperceptíveis e resolutivas modificações. “O ser do homem è comunicação profunda.- concluiu Michail Bachtin em Dostoevskij - Ser significa comunicar. Ser significa ser por outro e, através do outro, por si mesmo. O homen não possui um território interno soberano. Ele está completamente e sempre na fronteira: olhando para si mesmo, olha nos olhos dos outros. Não posso prescindir do outro.” E ainda uma última consideração a fazer. Ocorre-me frequentemente pensar o que aconteceu em Lampedusa: é uma pequena ilha no mar Mediterrâneo e o ponto mais ao sul da Itália e provavelmente também da Europa. É o ponto onde se atracam os barcos dos imigrantes africanos que, clandestinamente, querem entrar na Europa. Para eles é uma viagem perigosa: estão em dezenas, centenas, em pequenos barcos privados de segurança. Junto aos homens, estão também mulheres e crianças. Muitos morrem de fome e sede. 277 Muitos afogam-se. Se calcula que tenham sido mortas cerca de 10.000 pessoas nos últimos 15 anos. Por esta estimativa se recorda o número de africanos que morriam nos navios negreiros, no tempo da escravidão, na viagem que faziam da África à América. Ocorre, às vezes, que o mar traga os corpos dos mortos para as praias de Lampedusa. No pequeno cemitério da ilha, há uma área que é sempre maior: as sepulturas sem nome. A sepultura dos imigrantes. Penso que seja profundamente injusto não serem reconhecidos na vida ou na morte. Penso que uma pessoa sem nome, seja uma pessoa sem história, sem direito algum. Penso também que esta forma de anonimato dificulte, para nós, o reconhecimento da enormidade desta injustiça. O anonimato transforma as pessoas em categorias abstratas: migrantes, negros, loucos, desviantes, homossexuais, pobres – todos são “os outros”. São números, não são sujeitos! E assim diminui nosso senso de culpa a nossa responsabilidade. Quando reconhecemos, por outro lado, a subjetividade do outro, quando reconhecemos o seu nome e a sua história, é difícil não se sentir envolvido. É por esta razão que sinto o dever moral de dar um nome a aquela mulher maya que foi oferecida como comida para os cães. Sei que é uma ficção, uma ingenuidade, um comportamento tolo. Mas eu creio, porém, na força da simbolização e na coragem de não temer o ridículo. Entre nomes mayas, escolhi “Na mich te”, que quer dizer “flor de primavera”. E eu hoje, com vocês, neste lugar, quero chamar assim aquela mulher. “Na mich te”, nossa mãe, nossa irmã, nos te pedimos desculpas! “Na mich te”, te agradeço. Não te esqueceremos nunca. Refletindo sobre tudo isso, talvez devesse mudar o título desta conferência. Ao invés de falar de cidadania ou de paradigma, diria simplesmente, parafraseando Todorov: “Dedico estas palavras em memória de “Na mich te” – uma mulher índia que foi morta afirmando os valores da sua alteridade. BIBLIOGRAFIA Amarante, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de janeiro: SDE/ENSP, 1985. Attenasio, L., et al. La cura degli altri. Seminari di etno psichiatria. Roma: Armando., 2005. Babini, P., V. Liberi tutti: manicomi e psichiatri in Italia: una storia del Novecento, Bologna: Il Mulino, 2009. Basaglia, F. A Instituição negada: relato da um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Basaglia, F. Escritos selecionados. Rio de janeiro: Garamond, 2005. Basaglia, F. A psiquiatria alternativa. Contra o pessimismo da razão e o otimismo a prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979. Freire, P. Pedagogia do oprimido. New York: Herder & Herder, 1970. Fanon, F. Peu noire et masques blancs. Paris: Ed du Seuil, 1952. Fanon, F. 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