Caso clínico Rev. Medicina Desportiva informa, 2012, 3 (4), pp. 4–6 Doença de Freiberg em adolescente praticante federada de basquetebol Dr. Guido Duarte1, Dr. Daniel Saraiva2, Dr. Ricardo Mendes2 1 Assistente graduado; 2Interno de especialidade. Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia-Espinho, EPE. Resumo ABSTRACT Os autores apresentam um caso de doença de Freiberg numa adolescente praticante federada de basquetebol. A doente apresentava dor crónica ao nível do ante pé direito, com necessidade de medicação analgésica regular e de interrupções frequentes na atividade desportiva, a última das quais com cerca de 6 meses de duração antes da consulta inicial. Fazia-se acompanhar de um rx que confirmava o diagnóstico de doença de Freiberg do 2.º metatarso, com colapso ósseo e aplanamento da superfície articular. Para tratamento da lesão procedeu-se a uma osteotomia de ressecção dorsal (operação de Gauthier). O pós-operatório decorreu sem intercorrências e aos 6 meses após a cirurgia a atleta tinha retomado a atividade desportiva anterior com o mesmo nível competitivo. The authors present a case of Freiberg´s disease on a competitive adolescent female basketball player. The patient presented with chronic pain located at the right forefoot, supported by the regular ingestion of painkillers and the need of frequent interruptions of her sports activity, the last of which lasted for 6 months before the initial visit. She had a X-ray confirming the diagnosis of Freiberg’s disease of the second metatarsal head, with bone collapse and flattening of the joint surface. The treatment consisted on a dorsal wedge osteotomy (operation of Gauthier). The postoperative period was uneventful and 6 months after surgery she resumed the sports activity at the same prior competitive level. Palavras-chave Keywords Doença de Freiberg, osteocondrose, metatarso, basquetebol Freiberg disease. osteocondrose, metatarsal bones, basketball traumatismo (Freiberg, Smilie, Hauser, Braddock, Viladot, Mc Glamry). Apresentação clínica A doença de Freiberg pode considerar-se como uma das causas pouco frequentes de dor no ante pé. Carateristicamente atinge adolescentes femininas com atividade física relevante, as quais tipicamente apresentam dor na articulação envolvida, agravada pela carga e pela mobilização nos graus extremos dos arcos de mobilidade. Há a instalação de rigidez progressiva em extensão. O diagnóstico é na maior parte das vezes confirmado pelo estudo radiológico, sendo que o Rx pode ser negativo nos estadios iniciais. Mais tarde aparecem alterações da densidade da matriz óssea da cabeça do metatarso, que evoluem para colapso da superfície articular, desenvolvimento de osteófitos mais ou menos exuberantes na região periférica à superfície articular colapsada e osteoartrose da articulação atingida. O tratamento nas fases iniciais da doença, estádios I e II da classificação de Smilie5, é conservador, mas a persistência e agravamento das queixas, e sobretudo a evolução para Introdução A doença de Freiberg, ou osteocondrose da cabeça dos metatarsos3, é uma necrose assética óssea epífisária6. O 2.º metatarso é a sede mais frequente da doença, logo seguido pelo 3.º, sendo que o atingimento dos outros metatarsos é raro. De referir que Freiberg em 1914, na descrição original da doença, regista o atingimento da cabeça do 1.º meta numa adolescente de 16 anos praticante de ténis6. A etiologia da doença permanece desconhecida e cada vez mais se lhe reconhece uma origem multifatorial. Nas descrições originais da doença os autores davam particular atenção ao traumatismo agudo, ou sobretudo de repetição, como fator relevante no surgimento da doença, o que justificava a maior frequência de atingimento do 2.º metatarso, que é fixo e, em determinados pés, o mais longo, pelo que mais exposto ao 4 · Julho 2012 www.revdesportiva.pt Figura 1 – Rx: doença de Freiberg no 2.º metarso, grau III de Smilie Figura 2 – Rx apresentando uma fase evoluída do processo de resolução pós-cirúrgica da doença de Freiberg do 2.º metatarso, sendo visível o fio de aço utilizado no encerramento da osteotomia realizada degradação dos sinais radiologicos da doença (estadios III e IV), colocam a necessidade de recurso a tratamento cirúrgico2,3. Caso Clínico Em Janeiro de 2010 recebemos em consulta uma adolescente de 16 anos (d.n. 7-10-1993), saudável, estudante e praticante federada de basquetebol nas camadas jovens, com incursões frequentes no plantel sénior. Apresentava dor persistente ao nível do ante pé direito, com agravamento progressivo. A evolução da doença tinha cerca de 18 meses. Negava a existência de traumatismo de intensidade relevante. Fazia medicação regular com analgésicos. Inicialmente teria feito vários períodos de interrupção da atividade desportiva, seguidos de tentativas de retoma da mesma por períodos de duração imprevisível, até que cerca de 6 meses antes da consulta foi obrigada a parar por completo devido à intensidade das queixas dolorosas. Apresentava biótipo longilíneo, peso = 63 kg, estatura = 1,80 m e IMC = 19,44 kg/m2. Ao exame objetivo apresentava um pé egípcio, com uma fórmula metatarsiana de tipo primus minus. Queixava-se de dor muito viva na região da metatarso-falângica do 2.º dedo do pé direito, com edema e muito discreto rubor nessa região. Existia rigidez articular e o 2.º dedo apresentava-se em discreta hiperextensão sobretudo à custa da metatarso-falângica. Havia agravamento significativo da dor à tentativa de exploração das mobilidades articulares. A doente fazia-se acompanhar de um Rx e de uma RMN. O Rx confirmava a presença da doença de Freiberg (grau III de Smilie) (Figura 1). A RMN não acrescentava dados relevantes. Após uma ponderação de vários fatores, como a idade, a fase evolutiva da doença, o desporto praticado e o tipo de pé, foi proposto o tratamento cirúrgico para realização de uma operação de Gauthier (osteotomia de subtração dorsal na cabeça do metarso (Gauthier and Elbaz – 19795 (Figura 2). No pós-operatório foi colocada uma imobilização funcional, com carga parcial durante 3 semanas, após o que iniciou a fisioterapia. Reiniciou a atividade desportiva aos 4 meses de pós-operatório e a competição aos 6 meses. Retirou fio de aço utilizado no encerramento da osteotomia na cabeça do meta aos 14 meses após a cirurgia inicial. Atualmente encontra-se assintomática, o Rx apresenta matriz óssea de caraterísticas normais na cabeça do 2.º metatarso do Revista de Medicina Desportiva informa Julho 2012 · 5 Figura 3 – Rx de 27-10-2011 mostrando o resultado final do tratamento cirúrgico de doença de Freiberg no 2.º metatarso pé direito, que readquiriu esfericidade regular (Figura 3). Retomou a atividade desportiva ao nível competitivo anterior, com integração completa no plantel sénior do seu clube. Discussão: A doença de Freiberg é uma doença da adolescência, rara e de incidência mal estabelecida. O seu surgimento em adolescentes praticantes de desporto coloca questões relevantes sobre o retorno à prática desportiva, com repercussões ao nível emocional no jovem e nos seus progenitores. Na literatura encontram-se relatos de diversos casos do desenvolvimento desta doença em adolescentes praticantes de diferentes atividades desportivas, como a dança, atletismo, marcha, futebol, basebol, basquetebol, ginástica e badminton1,4,5. As publicações constituem-se na sua maioria de pequenas séries heterogéneas quanto à modalidade praticada, ao estadio da doença e à técnica terapêutica utilizada, pelo que são de pouco valor quanto á sua evidência epidemiológica. Muitas vezes, na mesma série, são apresentadas diferentes técnicas cirúrgicas, com tratamentos tão diversos, como a ressecção da cabeça do meta4, a utilização de enxerto osteocartilagíneo5, osteomias de encerramento dorsal tipo Gauthier ou simplesmente queilectomias4, a maior parte das vezes sem fundamentar de forma clara a opção da escolha e, sobretudo, sem nunca 6 · Julho 2012 www.revdesportiva.pt entrarem em linha de conta com a atividade física e/ou desportiva praticada. Também comum a quase todas é o facto de não ser dada enfase significativa à retoma desportiva após termo do tratamento5. Outro fator comum são os relatos dos bons resultados do tratamento efetuado, independentemente da técnica utilizada, e sem nunca serem relacionados à atividade praticada, pelo que aparentemente esse parâmetro poderia ser considerado irrelevante para o resultado esperado. No que respeita ao caso clínico apresentado, os autores optaram pela osteotomia de ressecção da região cefálica necrosada, operação de Gauthier, com o objetivo de recuperar a esfericidade da cabeça, garantir um revestimento de cartilagem sã e encurtar discretamente o 2.º metatarso, diminuindo a pressão intra articular e o stress decorrentes do traumatismo no solo durante a marcha e durante a prática desportiva. A condição de atleta fez com que durante o tratamento se mantivesse sempre presente a expetativa de completa recuperação, de modo a permitir a retoma do desporto praticado. Após o tratamento a jovem retomou o desporto no pleno das suas capacidades e integrando definitivamente o grupo competitivo sénior no clube que representava. É importante ainda referir que a variável temporal nunca foi tomada em linha de conta, já que em nosso entender o tratamento do jovem atleta, independentemente da atividade praticada ou da lesão que apresente, deve primar sempre pelo objetivo da recuperação completa, sem que nunca se invista no objetivo de retorno rápido à competição. O resultado obtido foi muito bom, quer a nível osteoarticular, quer a nivel pessoal e desportivo, validando a opção terapêutica adotada. Bibliografia 1. Air ME, Rietved ABM. Freiberg’s disease as a rare cause of limited and painful relevé in dancers. Journal of Dance Med. Sci. 14(1), 2010: 32-36. 2. Gillespie H. Osteochondroses and apophyseal injuries of the foot in the young athlete. Curr. Sports Med. Rep. 9(5), 2010: 265-268. 3. Orava S, Virtanen K. Osteochondrses in athletes. Brit. J. 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